Psicologia do Amor

Última atualização dessa parte: 05/09/2018
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Capítulo 1

A vida é cheia de imposições. Dia após dia somos cercados de pessoas que querem reger como devemos agir. Na antiguidade diziam: "Você deve ser recatada e do lar". Foi uma longa jornada até quebrar os paradigmas da sociedade – que até hoje tem os seus resquícios – e vivermos como bem entendêssemos. Porém, agora, a moda é outra. "Você deve sair, beber e beijar muito na boca". E, caso não o faça, é rotulado como a nerd, antissocial ou mesmo careta.
Pera lá, gente! Cadê a tão liberdade sonhada e conquistada?
Anos trabalhando para que nós pudéssemos agir como melhor nos convenhamos para agora essas mesmas mulheres estabelecerem o que eu devo fazer?
Isso está errado! Pura hipocrisia!
Por isso eu gosto de viver a minha vida ao meu modo. Se eu quiser dançar, eu danço; se me der vontade de beber alguma coisa, vou beber; se eu olhar o meu guarda-roupa e sentir vontade de usar alguma roupa, independente da ocasião, eu vou usar. Odeio que tentem me colocar em um cabresto para ser conduzido em uma vibe porque todo mundo tá indo pelo mesmo caminho.
“Ei, , aquele gatinho está te dando mole. Você não faz nada, é muito trouxa”. E daí? Se eu não quero ficar com ele eu não vou ficar. Acordem, pessoas!
Nunca senti vontade de ficar beijando um ou outro, mas, não condeno quem o faça, pelo contrário, sou a primeira a incentivar, porque ninguém tem paciência de ficar aguentando doce de ninguém, sendo que, na verdade, a pessoa tá morrendo de vontade de dar uns pegas.
Talvez eu seja fria, ou talvez, eu simplesmente não tenha encontrado alguém que eu queira de verdade. De qualquer forma, eu nunca namorei e ainda não tenho vontade. Quando chegar esse dia, estarei aqui de braços abertos, contudo, enquanto isso não acontece, continuo com o meu coração intacto. Quem nunca amou, não tem como ter um coração partido. Portanto, desse mal, eu nunca sofri.
Durante o meu curso aprendi que, quando somos nós mesmos, a vida fica mais leve. Fazer as coisas para agradar os outros é como trair o nosso próprio eu. Isso não gera alívio e nem aceitação. Os resultados são apenas cobranças externas em que você será tentada cada vez mais a satisfazer o outro ao invés de você mesma.
Ser autêntico e ter a sua própria identidade são primordiais em um mundo fadado pela imposição social. Caso contrário, seremos apenas como as folhas secas do outono, levadas sem rumo e direção por qualquer rajada de vento que vier.
Ah, caso não saibam, meu nome é e sou uma típica garota do interior que veio para a cidade grande estudar. Quando era adolescente não sabia muito bem o que fazer da vida, porém, graças a Deus, me encontrei no meu curso. Estou no penúltimo semestre de Psicologia e já estou ansiosa com a formatura no final do ano.
Hoje é o primeiro dia de aula do ano, estou revigorada de volta às aulas. Depois de um ano intenso, cheio de trabalhos, provas e seminários, nada melhor que passar as férias em casa, viajando e revendo os amigos antigos. Confesso que estou um pouco ansiosa. Não por ser o primeiro dia, mas sim porque é nesse semestre que eu terei aula com o professor mais carrasco do nosso curso.
Dizem que todo ano ele passa um baita trabalho, deixando todo mundo louco. Ele é super-rígido e exigente. As más-línguas dizem que se não desistirem do curso depois do semestre com ele, podem ficar tranquilos que a aprovação depois vem com louvor.
Nessa manhã, eu já havia tomado meu café e estava caminhando pelo campus em direção à sala de aula. Minhas mãos suavam um pouco, enquanto eu tentava acalmar a minha mente pensando em coisas aleatórias. Maldita ansiedade que sempre vinha me perturbar!
! – Uma voz gritou no meu ouvido, assustando-me, e senti um braço rodear o meu pescoço.
Rolei os olhos ao notar que era Denis, meu colega de turma, e dei um soco nele em resposta por ter me deixado surda momentaneamente.
— Ai! É assim que você me recebe depois de dois meses sem me ver, sua nordestina ingrata? – ralhou comigo, rindo, enquanto passava a sua mão no local em que eu havia lhe batido.
— Seria diferente se você não tivesse me proporcionado uma surdez aguda! – respondi, fazendo-lhe rir.
Denis era um garoto extremamente divertido. Ele era tão de boa com a vida quanto eu, por isso nos dávamos tão bem. O garoto não era tão alto, apenas um pouco maior que eu, e os seus cachinhos lhe davam um aspecto fofo e angelical. Bem que dizem que quem vê cara não vê coração, pois ali era o perigo da sociedade.
Antes que comecem a shippar ou qualquer coisa parecida, vou logo avisando, Denis e eu somos apenas amigos. Soletrem comigo: A-M-I-G-O, amigos. Ele havia dado em cima de mim na festa da calourada do primeiro semestre, porém, como ele mesmo disse, o fora foi tão colossal que ele largou de mão no mesmo instante e foi procurar outra. O sobrenome do Denis deveria ser Preguiça. Ele tinha preguiça até de investir em alguém. Se fosse difícil, ele caía fora no mesmo instante.
Eu não sei como ele conseguiu chegar até aqui no curso. Sério mesmo! O cara não fazia nada e eu acho que nem estudar para a prova ele deveria estudar. Como ele passava todo ano sem nem ficar para recuperação? Ah, acabo de me lembrar. O Denis era apto daquela pequena escorada básica, principalmente se tratando da minha pessoa. Como somos muito amigos, eu acabava relevando e sempre fazendo a parte dele nos trabalhos.
— Animada para a aula do terrível Dr. Benecke? – perguntou-me, imitando uma voz tenebrosa ao falar o nome do nosso professor.
— Um pouco. Estou tensa desde ontem. Acho que nem dormi direito – confessei para ele. Denis conhecia meus ataques de ansiedade e sabia como eu ficava antes de coisas desse tipo.
— Você precisa relaxar, ! Isso é falta de beijo na boca, eu já disse. Se quiser eu estou à disposição – gracejou para mim, fazendo biquinho na minha direção.
— Sai daqui! Eca! – coloquei a mão na boca dele, fazendo-o gargalhar.
— Você diz eca porque nunca provou a soberania da minha saliva! – falou orgulhoso, enchendo o peito.
— Nossa, você podia ser mais inconveniente, por favor? – ri para ele. Era isso que eu tinha que suportar todo o santo dia.
— Está mais calma?
— Sim! – respondi sincera, percebendo que as minhas mãos já não suavam como antes.
— Então eu não vou precisar ser mais inconveniente que isso não. - piscou para mim e continuamos a caminhar em direção a sala de aula.
Agradeci internamente entendendo o que ele havia feito. Denis me conhecia bem demais para saber que ele precisava fazer suas brincadeiras estúpidas para tirar a minha cabeça do nervosismo que eu estava.
Ao chegar à sala, sentei em uma carteira vaga qualquer que achei no fundo, tendo o meu amigo ao meu lado. Preferi não escolher alguma da frente, já que não queria encarar o professor carrasco cara a cara.
Não demorou muito, o Dr. Benecke chegou, exatamente na hora certa, sem um minuto a mais ou a menos. Seus cabelos eram grisalhos e ele tinha aquela típica cara de gente que chupou limão. Sério! Já dava para ficar assustada só pela expressão dele.
Um vinco enorme no meio da testa e a curva da boca levemente voltada para baixo. Seus olhos eram negros e pálidos e o seu nariz era enorme e pontiagudo. Parecia até o nariz do personagem principal do filme Meu Malvado Favorito.
— Bom dia! – a voz dele ecoou pela sala, fazendo todos nós nos calarmos no mesmo instante. — Vocês já devem ter ouvido falar sobre mim. Eu sou o Dr. Benecke, o professor de vocês durante essa disciplina. Não vou gastar o tempo precioso da minha aula para perguntar o nome de cada um de vocês, pois isso é irrelevante. Quando acabar o semestre, provavelmente eu não me lembrarei mesmo e eu pouco estou interessado em decorar nada. Aqui não é primário. Vocês precisam me conhecer e vocês têm que me agradar, não o contrário.
Mal tinha começado o discurso e eu já estava entendendo muito bem a fama que ele tinha. Acho que as línguas não estavam sendo más ao espalhar os boatos por aí. Realmente esse professor parecia ser osso duro.
— Desfaz essa cara de rato assustado, pois se não o professor vai notar e vai te pegar para cruz – Denis inclinou-se um pouco para o lado e cochichou baixinho para me alertar.
Engoli em seco e tentei me mostrar impassível, enquanto o ouvia continuar o discurso, agora falando sobre seu extenso currículo e todas as pesquisas que havia feito desde a época da graduação até o pós-doc em Portugal.
Creio que foi uma meia hora de falação sobre isso, depois ele começou a mostrar o plano de ensino para o semestre, apontando para o que ele ensinaria em cada data estipulada. Depois de algum tempo, chegou à parte mais temível, a distribuição de notas.
— Eu vou ser bem claro com vocês, pois odeio rodeios. Eu sou completamente contra a esse quadro engessado que muitos usam para avaliar os alunos, por isso, eu não dou provas.
Ao ouvir isso, vários murmúrios alegres soaram pela sala. Os alunos pareciam aliviados, porém eu, como já estava bem informada, fiquei quieta. Não ia me manifestar, pois já sabia que alegria de pobre dura pouco.
O Dr. Benecke apenas estendeu a sua mão e todos se calaram. Ele concertou os óculos em seu rosto e inspirou para continuar a falar e, pela sua expressão, eu já sabia que viria bomba.
— Comemorar antes da hora é sinal de pessoas precipitadas – falou, fazendo todos murcharem no mesmo instante. — Provas são métodos arcaicos e, como eu disse, não irei aplicar em minhas aulas. Do que adianta eu marcar uma avaliação e vocês decorarem para apenas gabaritarem e conseguirem nota? Não passará uma semana e vocês já não lembrarão nem uma vírgula do que escreveram no papel. Eu costumo fazer diferente. Cinco por cento da nota do semestre será da participação de vocês durante os debates que trarei para sala de aula. Como futuros psicólogos vocês precisam ter posicionamento diante de uma gama de casos diferenciados e precisam saber falar. A cada aula eu deixarei um artigo que será discutido na próxima, portanto, vocês nunca ficarão sem nada para fazer.
Bom... até ai estava tudo bem. Debater não era tão difícil assim. A única coisa ruim seria o tanto de material para ler em tempo hábil. Estava fácil demais para ser verdade, deve ser por isso que só valia cinco por cento da nota.
— Professor, mas e os outros noventa e cinco por cento da nota? – Pablo, um aluno que estava sentado perto de mim, perguntou.
— Se você esperasse eu terminar, saberia. Obrigado – o professor cortou-o. Simples assim, e continuou a explicação como se tivesse falado que 1 + 1 é 2. — O restante da nota eu avalio através de um trabalho individual que vocês precisam expor para a sala no final do semestre. É um trabalho extenso e complicado, devido a isso, vocês terão longos seis meses para pensar e se dedicarem totalmente ao projeto. Eu não tolero desmazelo. A forma que vocês apresentarão ele para mim mostrará o profissional que vocês serão no futuro.
O Dr. Benecke ajeitou os óculos pela quinquagésima vez e, ali, eu percebi que era algum tique que ele tinha, aliás, isso começou a me irritar para caramba.
— No final do ano vocês estarão formados, portanto, terão seus futuros pacientes e precisarão saber lidar com eles. O trabalho de vocês será uma prévia disso. Vocês terão seis meses para escolher uma pessoa que tenha algum caso justificável para terapia e precisão tratá-lo. O número das sessões quem vai definir serão vocês. Todas as escolhas e medidas, tudo será por conta própria, pois, no final, eu preciso saber se a análise do caso foi feita corretamente. Entretanto, não se preocupe, eu estarei à disposição durante o semestre para tirar dúvidas e não deixar que vocês piorem a situação do paciente de vocês, ao invés de ajudá-lo. Haverá erros, vocês são principiantes, mas também poderão concertá-los.
Os rostos de todos os alunos estavam lívidos. Era uma baita responsabilidade isso. Seria uma vida em nossa mão e se não soubéssemos fazer as coisas corretamente, poderíamos deixar tudo a perder.
Em contrapartida, apesar de ser um trabalho amedrontador, achei muito válido. Seria o nosso primeiro paciente. Na vida real nós não teríamos ninguém para supervisionar a gente, estaríamos por conta própria. Essa era a oportunidade de tentar e aprender, porém, não fazia o peso da responsabilidade diminuir.
— Vocês terão uma semana para escolher o paciente de vocês. Assim que fizerem isso, trarão os nomes para mim juntamente com a situação do paciente. Vocês relatarão em uma página o que levou vocês a essa escolha. Entenderam? – Dr. Benecke perguntou, após explicar os procedimentos para gente.
Vários tímidos 'sim' saíram de nossas bocas, recebendo um aceno de cabeça do professor em resposta.
Nem havia percebido que já havia passado uma hora da aula, somente quando o Dr. Benecke chamou a nossa atenção novamente com um monte de papéis na mão.
— Antes de saírem passem aqui e peguem o Termo de Responsabilidade e Autorização de uso de Imagem e Som. Esses serão documentos importantes que o paciente de vocês terá que assinar, permitindo que vocês utilizem as informações das sessões para fins didáticos. O termo deixa claro que, em nenhum momento, o nome do paciente será exposto na pesquisa e ele poderá desistir a qualquer momento que queira, afinal, eles não são obrigados a nada. Todos os direitos deles estão garantidos e, além disso, na folha atesta que eu sou o supervisor de vocês e que é um projeto pedagógico da disciplina, já que vocês não são psicólogos formados. Sem mais dúvidas, já estão liberados e até a próxima aula.
Um a um, os alunos iam se retirando e pegando os papéis com o professor. Levantei-me devagar e parei em frente a ele, que me entregou o meu sem nem olhar para o meu rosto.
Guardei rapidamente as folhas em minha pasta, escondendo o leve tremor dos meus dedos. Estava nervosa. Tinha apenas uma semana para rodar toda essa universidade, até achar alguém que pudesse encaixar na minha pesquisa e estivesse disposto a cooperar em meu trabalho, afinal, não é todo mundo que ia gostar de se abrir com uma estranha.
Assim que sai da sala, respirei fundo, tentando pensar positivo.
Vai dar tudo certo!
Quem sabe se eu perguntasse a , minha amiga, ela soubesse de alguém. Ela era professora, conhecia muita gente ali do campus.
Pensando nisso, fiquei até mais tranquila. Rapidamente eu acharia um caso brilhante e, ao final do processo, seria tudo tão esplêndido que eu me sentiria uma grande psicóloga. Para que me preocupar? Seria muito fácil e logo eu estaria com meu 10 nessa disciplina e, ao final do ano, com meu canudo em mãos.



Capítulo 2

— Eu estou desesperada! – choraminguei para Denis, encostando a minha cabeça na mesa.
A última aula da sexta-feira já havia acabado e estávamos fazendo um lanche na Tia da Cantina, uma pequena lanchonete que ficava ali no campus.
— Calma, . Você ainda tem dois dias. A aula é na segunda ainda, muita coisa pode acontecer até lá – meu amigo tentou me tranquilizar, mas nada tirava esse aperto que eu estava sentindo.
— Você diz isso porque já conseguiu o seu – retruquei, lembrando-me que no mesmo dia que o professor passou o trabalho, o infeliz do Denis se lembrou de uma peguete dele, fez contato e conseguiu a paciente “perfeita”.
— Você também vai achar. Já tentou falar com aquela amiga sua que você havia me dito?
— Sim. Só que a não soube me informar ninguém, além de mim ela não tem muito contato mais a fundo com os alunos para saber se eles passam por algum problema ou não – lamentei-me, recordando da conversa que eu havia tido com ela na quarta-feira.
— Por que não a usa mesmo? Ela não é a conhecida doutora do amor, meio alopradinha? – Denis sugeriu, girando o dedo perto do ouvido e mostrando que a minha amiga era doida.
— Não, Denis. Eu até pensei nisso, porém a já está “curada”, namorando e bem de vida. O me fez o favor de regular ela. Bem que ele podia ter esperado um pouquinho mais, não é? Eu agradeceria – falei, quase choramingando.
— Quem é que manda no coração, não é mesmo? Enfim, não adianta chorar pelo leite derramado. Vamos pensar em alguma alternativa. Se você quiser eu entro em contato com alguma garota da minha agenda. Já peguei muita maluca, na certa deve ter alguma que vai te servir.
— Eu não quero estudar nenhuma ex sua, Denis! – reclamei.
— Uai, mas por que não?
— Porque elas irão aceitar porque você pediu.
— Mas a intenção não é ter algum paciente? E daí se foi pelo meu pedido ou o seu? – perguntou sem me entender.
— E daí que elas passarão metade do tempo das minhas sessões querendo saber de você ou puxando o meu saco para que eu consiga te influenciar de alguma forma a querê-las de volta. Ou seja, vai lascar com o meu trabalho. Muito obrigada, mas eu passo. - expliquei para ele.
— Ah, então não reclama! É a única saída que eu posso te providenciar – falou rolando os olhos, já impaciente.
— Sério, Denis. Obrigada mesmo, porém prefiro dar o meu jeito. Se até domingo eu não conseguir ninguém eu juro que aceito a sua sugestão, ok?
— Tudo bem. Mas me fala mesmo, tá? Não vai pirar sozinha em casa. Eu vou te dar o prazo de até 23 horas e 59 minutos do sábado. Se não encontrar ninguém você me passa uma mensagem que eu te consigo uma paciente em cinco minutos – disse preocupado comigo, contudo eu só consegui rolar os olhos pensando na rapidez que ele teria para arrumar uma das suas ex-ficantes.
— Eu prometo para você – fiz num sinal com o dedo em juramento para ele.
— Ok. Agora preciso ir. Minha primeira sessão é hoje à noite – informou, levantando-se para ir embora, enquanto eu arqueei a sobrancelha com aquela informação.
— Sua primeira sessão é em plena sexta à noite? – perguntei rindo, já imaginando bem como seria aquela consulta.
— Claro! E ainda a levarei para conhecer o meu divã! – piscou para mim e abriu o seu sorriso Colgate.
— Credo, Denis. - Dei língua para ele, arrancando-lhe uma gargalhada. — Vai lá, seu imprestável. - Joguei um bolinho de guardanapo na cara dele.
— Tchau, chatonildes! Até mais! – despediu-se de mim e partiu em direção a noite possivelmente quente que teria, enquanto eu ia para casa, lamentando-me por não ter conseguido o meu caso.

Enquanto eu caminhava de volta para o meu lar, fiquei olhando de um lado para o outro. Vai que meu paciente surgia do nada, eu precisava estar atenta. Porém, para a minha infelicidade, não foi nada disso o que aconteceu. Eu já estava chegando à minha quitinete e nada de um milagre acontecer. Adentrei na portaria do prédio, digitei a minha senha e entrei, frustrada.
Eu morava em um edifício perto da universidade. Pode-se dizer que todos que residiam ali eram alunos da UFRJ. Os apartamentos, na verdade, eram quitinetes, por isso, o valor era mais barato e acessível para nós meros mortais que vivem da bolsa do auxílio estudantil e da iniciação científica.
Ao entrar em casa, tirei a minha roupa e fui tomar um banho relaxante. Nada melhor que uma água quentinha para trazer tranquilidade à alma.
Lavei com cuidado os meus cachos, recordando-me da época que eu havia inventado de esticá-los. Pobres fios dos meus cabelos, sofreram com a quantidade de química que passaram por eles. Foi um longo processo até conseguir fazer com que eles voltassem a ser naturais. Sofri, mas deu certo. Hoje tenho orgulho de cada cachinho meu, acho-os lindos. Porém, não sou contra quem queira alisar os seus, apesar de achar um desperdício.
Quem tem liso quer cachear e quem tem cacho quer alisar. Vai entender, né?
Estava cansada por causa da correria da semana, por isso fiz um mexido de ovo, algo bem rápido, só para encher a barriga mesmo e poder dormir. Depois que ganhei uma bela gastrite com a faculdade, tive que me alimentar de três em três horas corretamente, se não, nem omeprazol me salvaria.
Dormi como uma pedra, acordei só com o som do despertador maldito soando no outro dia. Coloquei na soneca, claro, e voltei a tirar aquele cochilo fantástico. Não sei quanto tempo durou, porém, quando comecei a despertar, ainda com os olhos pregados de remela, deparei-me com a tela piscando indicando que alguém estava me ligando.
— Alô? - atendi ainda sonolenta.
— Eu não acredito que ainda está dormindo, sua vaca! - uma voz alta gritou do outro lado do telefone. Era Hellen, uma amiga minha que também estudava comigo.
— Hoje é sábado, Hels. Me deixe em paz! Está cedo ainda!
— Já são meio dia! Já está na hora de levantar essa bunda morena da cama! - riu do outro lado da linha.
— Meio dia? Meu Deus! Agora só tenho a tarde e a noite para conseguir achar o meu paciente. Droga! - reclamei, levantando-me rapidamente e indo direto para o banheiro, em meio a alguns tropeços.
— É sobre isso mesmo que eu quis te ligar. Um passarinho lindo me contou que você está com problemas.
— O Denis é um fofoqueiro!
— Não o culpe, ele está preocupado. Ele só quer te ajudar!
— E você tá puxando o saco só porque ele tem um rostinho bonito! - ralhei, enquanto conversava e tentava jogar água no meu rosto ao mesmo tempo.
— Claro! Isso também conta… mas é sério, você precisa resolver isso logo. Escolhe qualquer paciente, não é como se fosse preciso à gente ter um mega caso. Somos estudantes, não temos nem preparação para tal coisa, o professor quer é nos ensinar o processo, que é o mais importante.
— Eu sei, Hels, o problema é que eu realmente não achei nada – suspirei. — Enfim… de qualquer forma, não precisa se preocupar, se tudo der errado o Denis tem uma lista feminina disposta a lhe fazer um favor.
Não era o que eu queria, mas fazer o quê? Com zero é que eu não ia ficar.
— Tudo bem, então! Eu ia te chamar para dar um rolê tomar um sorvete ou algo assim. Mas você vai ficar ocupada procurando isso, não é?
Tomar um sorvete seria ótimo, mas eu precisava tentar achar meu “paciente” com meus próprios méritos. Teria que adiar o convite.
— Infelizmente não vou poder. Mas a gente deixa para a próxima – respondi com lamento.
— Tudo bem, ! Beijos, qualquer novidade me liga, ok? Até segunda na aula.
— Até – falei antes que a ligação fosse desligada.
Sentei na cama novamente e esfreguei minhas têmporas com as pontas dos dedos. Eu precisava de um plano. Fui até a minha cômoda de roupas e peguei um casaquinho, pois havia visto pela janela um ventinho frio, e saí de casa meio sem rumo. Eu tinha a tarde e a noite para achar alguém plausível para o meu trabalho. Enquanto passava pelo corredor do prédio, vi uma grande movimentação para lá e para cá de universitários. Uns seguravam grades de cervejas, outros ornamentavam o local… Eu não sabia qual era a comemoração - não que eles precisassem de alguma data para poderem beber -, mas estava claro que haveria uma festa hoje. Sábado era dia de estudante vadiar. Estudantes que, ao contrário de mim, não precisavam se virar nos 30 para achar o seu trabalho da faculdade.
Resolvi parar em um pequeno restaurante que ficava na esquina do quarteirão do meu apartamento. Não era nada luxuoso, mas era o que dava para pagar, visto que eu vivia da bolsa permanência e da iniciação científica aqui no Rio. O lugar sempre era cheio de estudantes e, apesar de tudo, era um local confortável.
Fiz o meu prato e almocei rapidamente. Olhei as pessoas ao meu redor, eu gostava de analisá-los e era uma boa observadora, costumava acertar as coisas antes mesmo que me revelassem. Foi assim com a e o , um casal de amigos meus. Ela poderia jurar de pé junto que não sentia nada pelo cara, mas eu sabia que estava mais do que na cara que ela era amarradona nele. Assim que ela deixou as paranoias de lado, eles viraram um casal maravilhoso, que eu sempre soube que seriam.
Observei um casal que estava sentado não muito longe da minha mesa. Era um rapaz bonito e a garota igualmente linda. Ele estendeu a mão para segurar a dela, mas ela não parecia que estava querendo muito isso. Enquanto ele falava, os olhos dela desviavam de um lado para outro a todo momento. Ela não parecia muito confortável ou mesmo que quisesse estar ali. Ao contrário dele, que parecia ter os olhos brilhando em sua direção.
Suspirei, eu estava diante de um futuro coração partido. A recíproca não era verdadeira entre os dois, até um cachorro que visse esse casal saberia que a menina não ia demorar muito para chutar a sua bunda.
Quando os dois se levantaram, o cara pegou a mão dela e a entrelaçou em seus dedos e, em seguida, abriu a porta para ela passar. A garota rolou os olhos sem que ele visse e eu senti pena dele.
Em contrapartida, fiquei feliz por mim. Eu podia não ter desfrutado da magia do amor até hoje, mas, pelo menos, não tinha conhecido também a dor do coração partido; e aquele cara ali… teria seu coração destroçado logo, logo.

♥♥♥




Capítulo 3

Depois de ver o futuro trágico do casal, fui ao banheiro fazer minhas necessidades, tomar refrigerante sempre deixava a minha bexiga cheia.
Chegando lá, uma garota alta e magérrima vomitava na pia do banheiro. Aquele cheiro nojento estava por todo o lugar e eu tive que colocar a mão no nariz para que eu não começasse a vomitar junto com ela. Quase saí correndo, mas o meu senso de preocupação não me deixou ir, eu não ia deixar a menina passando mal lá dentro como se nada estivesse acontecendo.
Puxei a manga do meu casaco e coloquei perto do meu rosto, erguendo o braço, e dei alguns passos na direção da menina. A garota estava inclinada na pia, chorando. Sua maquiagem estava toda borrada, parecia uma cara de palhaço quando jogava água por cima. Tentei desviar desse pensamento para não rir, não era o momento para isso, ela parecia angustiada.
— Licença, moça, você está bem? - perguntei cautelosa, chegando mais perto e ignorando o fedor.
A garota virou o seu rosto para mim com fúria nos olhos e eu me perguntei o que tinha feito de errado para obter tal expressão dela.
— Eu por acaso pareço bem para você? - disse com rispidez.
— Desculpa, eu cheguei aqui e você parecia estar passando mal, fiquei preocupada! - Reuni toda a minha paciência para responder a grosseria dela. Reforcei mentalmente que a garota parecia estar doente, então eu não quis devolver na mesma moeda.
— Não, eu não estou passando mal! E não, eu não estou bem! Eu não pareço bem! Eu estou imensa, ridícula, gorda, balofa! Você não enxerga?! - Abriu os braços na minha frente e ia dizendo as palavras, subindo cada vez mais o tom de voz.
Ergui a sobrancelha tentando entendê-la. A garota era bem mais alta que eu e era tão magra que os ossos da clavícula dela estavam todos expostos com a blusa de alça fina que ela vestia. As canelas eram piores que de seriema, sinceramente, acho que a garota era pele e osso.
— Tá vendo? Você não entende! Ninguém entende! - exclamou, voltando a olhar para o espelho.
— Qual o seu nome? - perguntei com cautela.
— Melinda – suspirou e passou a mão pelas lágrimas que voltaram a jorrar.
Eu tinha ali na minha frente um quadro clássico de anorexia e/ou bulimia. Uma lâmpada acendeu em minha mente! Eu tinha ali um caso, poderia usar ele no meu trabalho e ajudar a garota. Eu só precisava tentar convencê-la a isso.
— Melinda… Você é linda! Eu sei que nesse momento você pensa o contrário, mas não é verdade! Eu não sei bem o que está passando, mas eu poderia te ajudar… Um ponto essencial da vida é aprender a nos amar como nós somos – tentei introduzir o meu pedido de forma mais sútil possível.
Melinda cruzou os braços em minha direção e franziu o cenho.
— Amar como nós somos? Querida… deixa eu te dizer uma coisa – deu dois passos em minha direção. — Só porque você é uma bola e gosta de ser assim, não quer dizer que todo mundo queira. Se você é feliz sendo imensa desse jeito, problema seu! Agora… da minha vida cuido eu. Se toca, garota!
Melinda jogou aquilo com tanto desdenho e raiva para cima de mim, que eu não tive tempo nem de ter uma reação. Ela apenas me ferroou com suas palavras, pegou sua bolsa e saiu correndo dali.
Que merda é essa que tinha acontecido?
A garota estava pior do que eu imaginava. Se eu tivesse a alma sensível talvez eu tivesse me sentindo atingida com aquelas palavras, mas eu era feliz com meu próprio corpo. Não que eu fosse à pessoa padrão de perfeição ou algo parecido. Se eu pudesse eu tiraria umas leves dobrinhas pequenas que tinha na minha cintura, mas nada que me incomodasse a esse ponto. Na verdade, nem era tão aparente assim e não seria agora que eu ia ser paranoica com isso.
Balancei a cabeça, tentando me situar novamente na realidade, e saí do banheiro. Até procurei a garota no restaurante, mas ela já havia ido embora. No final das contas eu estava preocupada com Melinda. Após muito buscá-la e perguntar se alguém tinha a visto, desisti. Esperava que ela pudesse conseguir alguma ajuda antes que o caso se agravasse. Situações como a dela era muito comuns, principalmente entre as meninas mais novas e, na maioria das vezes, não eram tratadas. Na realidade, grande parte dessas garotas nem ao menos tinham noção do quão profundo era esse problema e a maioria delas não tinham o apoio adequado para lidar com a situação.
Saí do restaurante e andei até uma pequena pracinha que tinha no bairro. Eu ainda precisava de um paciente e a única pessoa que eu havia encontrado me insultou e ainda saiu correndo de mim. Eu precisava dar um jeito nisso.
Caminhei sentindo a sombra das árvores que refrescavam e disfarçavam as ruas sem graça do Rio de Janeiro. Muitas pessoas gostavam de usar aquele local para passear com o cachorro, brincar com as crianças, fazer piqueniques, etc. Eu apreciava muito passar por ali, me fazia lembrar um pouquinho da minha terra, longe do amontoado de carros, buzinas e indústrias da cidade grande. Era um pedacinho da natureza em meio a esse caos. Ali você poderia esquecer-se do mundo tecnológico e curtir o som dos passarinhos cantando, os patos no laguinho e os calangos correndo pelo chão.
Entretanto, parecia que isso não atraía a todos. Enquanto eu traçava a minha rota, encontrei uma família que fazia um lanche no gramado. Um casal entregava um toddynho para uma menininha, que parecia ter uns quatro anos, e ria toda vez que via um passarinho. Aparentava ser a família perfeita até eu reparar em um adolescente, que estava um pouco distante deles. Ele usava um fone enorme nos ouvidos, um celular em uma mão e um tablet na outra. Sua mãe tentava chamar-lhe a atenção, mas o garoto apenas balançava a cabeça, fingindo ouvir. Não muitos minutos depois, o pai já estressado com isso, puxou seus fones de ouvidos e tentou tomar o seu tablet, mas o garoto emburrou e saiu batendo os pés, sentando-se em um banco mais longe, enquanto sua mãe suspirava frustrada.
Achei que os pais iriam atrás dele, porém, pelo visto, parecia que já estavam habituados com essa situação e preferiram deixar ele quieto.
Aproveitei esse momento para me aproximar do garoto, quem sabe ali seria um caso interessante? O menino poderia ser um viciado em games ou a tecnologia por si só. Quantas vezes damos mais atenção para o virtual do que aquilo que está no presente? Ficamos tão fissurados em nossos celulares, computadores e redes sociais que esquecemos que existe uma vida linda fora deles pronta para podermos viver.
Esgueirei-me disfarçadamente até o banco onde ele estava e sentei ao seu lado. Olhei para o lado e balancei o pé, tentando chamar a sua atenção de forma delicada, mas o menino não tirava o olho da tela do seu equipamento. Comecei, então, a cantarolar a primeira canção que havia aparecido na minha cabeça, mas depois dei um tapa na minha testa, lembrando-me que com aquele fone do tamanho de um tampão ele não ouviria nada.
Com cuidado eu cheguei mais perto e cutuquei o braço dele. O garoto franziu o cenho e com o canto do olho me mirou, voltando o seu olhar para o aparelho em suas mãos, sempre dividindo a atenção entre o tablet, que estava em aberto em algum jogo que eu não conhecia, e o celular, que tinha acesso ao Whatsapp.
Bufei irritada com a má educação do menino, ele viu que eu estava lhe chamando e me ignorou completamente. Tentei uma abordagem mais brusca, sacudindo o seu braço, porém, o adolescente apenas franziu o cenho, tentando fazer uma cara de bravo, e deslocou o seu corpo para ficar na ponta do banco e longe de mim.
Agora já chega! Esse menino ia se ver comigo e ia ser agora!
Fiquei em pé, parei em frente dele e dei um puxão em seus fones, fazendo-o lançar um olhar mortal para mim.
— Qual o seu problema? - exclamei, colocando as mãos em minha cintura.
— Até o momento? Você! - cuspiu para mim e tentou colocar o fone novamente em seu ouvido para me ignorar.
— Ah, na-na-ni-na-não! Você não vai fazer isso de novo, não vê que eu estou tentando falar com você?!
— Acho que ficou meio óbvio desde o momento que você sentou do meu lado – falou com voz de desdém e voltou a mexer seus dedos no tablet.
Eu juro que estava tentando ser paciente com esse garoto, mas ele não estava colaborando. Respirei fundo, contei até dez e pensei em todas as técnicas possíveis para me acalmar. Quando olhei para o garoto, ele ainda mantinha a sua atenção nos equipamentos, mas, pelo menos, não tinha voltado a colocar os seus fones.
— Olha, eu preciso da sua ajuda. É muito importante – comecei a dizer, sentando-me ao seu lado novamente e olhando para frente, observando os passarinhos como forma de me manter calma. — Eu receio que você esteja viciado nessas coisas – falei, balançando a mão em direção dos aparelhos. — Eu estava observando você… não que eu seja alguma perseguidora ou algo do tipo, não é isso. É porque eu tenho esse trabalho da faculdade e eu preciso escolher uma pessoa para ser tipo um paciente para mim e, se você permitir, eu irei te ajudar a sair desse vício… - parei, esperando que dissesse alguma coisa.
O garoto murmurou algo que eu tinha certeza de ter sido um “aham” e eu decidi continuar, enquanto ele ainda permanecia ao meu lado
— Nossa! Que ótimo! Para isso, então, eu vou precisar do seu contato e conversar com seus pais para autorizar! Você não sabe o quanto eu estava preocupada em não conseguir ninguém para esse projeto, ele é muito importante para mim – continuei explicando, enquanto virava para o lado, vasculhando a minha bolsa para achar um pedaço de papel e uma caneta para anotar os dados do garoto.
Com toda a empolgação, voltei meu corpo em direção do garoto novamente e tomei um susto. O infeliz não estava mais lá!
O garoto simplesmente sumiu das minhas vistas no instante que eu me distraí procurando a caneta e o papel! Filho da mãe!
Fiquei tão nervosa que, agora, encontrar aquele moleque era questão de honra!
Como ele ousava me deixar falando sozinha em plena praça pública?
Acho que demorei uns trinta minutos até encontrar o garoto. Enquanto eu me aproximava, ouvi-o gritar “Yeeees, peguei o Pikachu!”.
Percebi que aquilo era demais para a minha sanidade. Se em cada encontro que eu tivesse com ele para o projeto o garoto ficasse procurando Pokémon na minha sala, ou me ignorando, ou com aqueles fones altíssimos no ouvido, com certeza eu ia partir para agressão e não seria nada legal para a minha nota quando eu dissesse ao Dr. Benecke que eu perdi o paciente porque não tive paciência e soquei ele. Talvez um dia eu lidasse com um caso desse, mas na minha condição atual de estudante estressada e louca para tirar uma nota, eu preferia me abster.
Depois disso, fiz inúmeras outras tentativas de encontrar pacientes durante a tarde. Nessa aventura eu quase apanhei de uma garota ciumenta, fui perseguida por um maníaco e quase fiz um cara se jogar no asfalto, então, resolvi desistir.
Daqui a pouco eu que iria precisar de um psicólogo devido ao dia louco que tive. Todas as opções que me apareceram haviam terminado de forma bem ruim, então, com o rabo entre as pernas, decidi voltar para casa e finalmente aceitar a proposta do Denis.
Já era noite quando cheguei ao meu apartamento. Para piorar o dia catastrófico, hoje teria festa em algum dos apês do meu andar, ou seja, dificilmente eu dormiria e ainda por cima teria que aguentar os gritos dos bêbados pelo corredor.
Em dias de aula isso era uma merda. Muitas vezes eu precisava estudar e o barulho não ajudava nem um pouco. Hoje até que eu não me importaria muito, pois era apenas a primeira semana de aula.
Passei pelo trajeto do caos, esperando que não tivessem começado a farra tão cedo, mas, como em tudo eu sou o azar ambulante, eu poderia ter certeza que não era o caso.
Dito e feito. Quando cheguei ao meu andar, pessoas já se espalhavam por todos os lados, tive que sair me esgueirando entre eles até conseguir entrar pela minha porta. Já lá dentro suspirei, jogando-me de qualquer jeito na cama e enfiando a cara no travesseiro. Dei um grito abafado nele, tentando expulsar a minha decepção.
Não queria depender das peguetes do Denis, queria arranjar algo por mim própria. Era querer muito isso?
Abri o celular e coloquei o número dele na discagem, mas parei. Eu não precisava fazer isso agora. Ele tinha me dado o prazo até meia-noite, portanto, eu ainda tinha umas horinhas para me afundar na fossa antes dele esfregar na minha cara que eu poderia ter aceitado a ajuda dele muito antes de ter passado por esse reboliço todo.
Joguei-me na cama com meus cachos esparramados pelo lençol, segurei o celular com força na mão e fechei os olhos para ter meus momentos de bad sozinha.
Não sei quanto tempo fiquei ali, acho que até cochilei. Porém, fui despertada com um barulho forte de socos na minha porta. Levantei assustada, olhei as horas e ainda eram 23h30. O som alto da música rolava além das paredes, mas o que me deixou encafifada foram os socos que continuavam e uma cantoria desafinada do outro lado da porta.
Você foi à culpada desse amor se acabar…”
Porque homem não chora...”
Coloquei o meu ouvido na porta para entender melhor. O mais engraçado era ouvir isso no meio de um engasgo de choro e uma voz trêmula.
Os socos ficaram mais fortes e o que antes era uma canção muito desafinada e chorosa virou gritos e um choro compulsivo.
Fiquei preocupada e resolvi abrir a porta com cuidado, no entanto, ao destrancar, o peso do corpo da pessoa do outro lado fez força e fez com que a porta se abrisse por completo. Dei um pulo para trás com o susto e o cara caiu aos meus pés, cambaleando de tão bêbado que estava.
Parecia um rapaz jovem, tinha os cabelos castanho escuros, mas eu não conseguia ver o rosto do indivíduo porque ele estava literalmente beijando os meus pés enquanto cantarolava “você que destruiu a minha vida”.
Eu não sei quem ele pensava que eu era, mas com toda a certeza eu não me recordava de ter destruído a vida de ‘seu ninguém’.
O cara tinha uma garrafa de vodca na mão e abraçou os meus pés, rastejando-se no chão, enquanto começava a chorar.
— Ei, me larga! - tentei sapatear e desfazer o aperto dele, mas só o fez me segurar mais firme.
Por favor, não implora! - voltou a cantar e eu tive que revirar os olhos com o bêbado.
— Ai, meu saco! Ninguém merece isso. Ow, garoto, dá para por favor voltar para a sua festa e ir chorar em outro lugar? - falei alto para ver se ele saía do seu transe maluco e ia embora.
O rapaz levantou a cabeça e eu pude vê-lo pela primeira vez. Seus olhos estavam muito vermelhos, o rosto marcado pelas lágrimas e a aparência inchada pela bebida. Os cabelos estavam uma mistura de suor, colado em seu rosto, o cheiro do álcool impregnado e o canto dos lábios um pouco ferido. Ele não parecia ser um cara feio, mas estava tão derrubado e irritante que não dava nem para reparar melhor. Eu só precisava que ele me deixasse em paz e fosse curtir a sua fossa em qualquer outro lugar que não fosse o meu quarto.
— Por que você me deixou? - perguntou-me, franzindo o cenho e fazendo uma cara de choro, os olhos enchendo de água novamente.
Bufei irritada e me abaixei para falar com o intruso.
— Olha, eu não te deixei e nem sei quem foi que fez isso, dá para sair do meu apartamento agora? - implorei aproximando-me dele, ainda de pés atados e quase ficando bêbada com o cheiro da vodca barata que exalava do seu hálito.
— A mala já está lá fora… - resmungou e fechou os olhos, deitando sobre os meus dedos no chinelo.
Quando fui cutucá-lo novamente e insistir para sair, percebi que havia dormido. Agora eu estava ali no meu quarto, sozinha no meio da noite com um cara desconhecido, bêbado e chorão abraçado em minhas pernas, e sem saber o que fazer.


Capítulo 4

Devia ter quase meia hora que eu estava ouvindo o bêbado ressonar em um sono profundo no tapete felpudo do chão, ao lado da minha cama. Seu peito subia e descia lentamente, deitado de lado, uma mão agarrada ao travesseiro e outra embaixo do seu queixo.
Agora isso não parecia tão estranho quanto ontem à noite, quando tudo aconteceu. Já era de manhã e o meu novo inquilino ainda estava aqui no meu quarto e eu não fazia a mínima ideia de como tirá-lo. Ontem o meu coração bondoso não quis jogá-lo desmaiado no corredor afora. Até pensei nisso, o Denis falou que não seria esforço algum carregá-lo, mas preferi esperar até que ele acordasse. O problema era que já estava quase no horário do almoço e o infeliz ainda dormia como um bebê.
Na noite anterior, após ter caído à ficha que eu tinha um bêbado na minha casa, entrei em desespero, saquei o meu celular do bolso e liguei em pânico para o meu amigo. Acho que ele estava um pouco... ocupado. Tive que chamar várias vezes até que Denis me atendesse, o que valeu a pena, pois, assim que contei o ocorrido, ele xingou todos os nomes do outro lado da linha e veio rapidinho me salvar.
— Eu vou tirar esse imbecil daqui! - Denis falou com raiva assim que chegou e abriu a porta em um supetão. Segurou os pés do cara e já estava disposto a arrastá-lo.
Mordi o lábio, nervosa ao ver aquela cena. Na hora que o rapaz invadiu o meu apê eu tinha até levado numa boa, mas depois que ele desmaiou, mil pensamentos inundaram a minha mente. E se ele era algum assassino em série ou um estuprador?
Mas, em contrapartida, e se ele fosse apenas um cara com o coração partido? Alguém que passou por algum sofrimento e tinha ido só afogar as mágoas? Como eu conseguiria deixá-lo do lado de fora nesse estado?
— Eu não tenho certeza se devemos fazer isso... – murmurei, entrelaçando os dedos das minhas mãos.
— Como assim não sabe? , o cara invadiu a sua casa, bêbado! – exclamou. — Eu não vou deixar ele aqui com você sozinha, de jeito nenhum!
Meu amigo balançou a cabeça, reticente, contudo eu segurei o seu braço, fazendo-o parar.
— Denis, eu entendo, tá? Eu também tô com medo, mas vai que ele é uma boa pessoa? Quando acordar provavelmente vai nem se lembrar de como veio parar aqui. Lá fora as pessoas podem fazer algum tipo de ruindade, sei lá. Eu não vou me sentir bem se deixá-lo lá.
Denis bufou, rolou os olhos e cruzou os braços virando-se para mim com um olhar sério.
— Será que ele tá com algum documento ou celular? A gente pode tentar entrar em contato com alguém – opinei, pensando em alguma alternativa para aquela situação.
Abaixamo-nos e começamos apalpar os bolsos do cara, mas ele estava completamente liso. Aliás, para não dizer que não tinha nada, o rapaz estava com dez reais no seu bolso da frente.
— Esquece – Denis resmungou, sentando-se no chão, ao lado do corpo desmaiado.
— Pimentinha – chamei-o por seu apelido e fiz a minha melhor cara de pidona para ele. — Eu não vou me sentir bem, você me conhece! Você acha que eu ia conseguir dormir tranquilamente sabendo que deixei um cara à mercê de um povo louco de bêbado aí fora ou até mesmo drogado, vai saber que tipo de gente tem por aí. Não dá! Pode me chamar de doida, mas eu não vou deixar ele lá fora. – Bati um pé no chão, mostrando que não mudaria de opinião.
Meu amigo sabia que quando não tinha jeito quando eu decidia as coisas, por isso ele suspirou, colocou a mão na testa e olhou para mim, fuzilando-me.
— O que sugere, então?
— Olha, me ajuda a arrastar ele para o tapete do meu quarto, pelo menos ele não vai dormir no chão frio. Vamos esperar até amanhã e aí eu mando ele embora. Você pode dormir aqui no sofá, aí não corro risco de vida. Se eu tivesse um colchão podíamos colocar ele lá, mas como não tenho, o tapete já resolve - sugeri.
— Ah não, ! Você já estragou a minha noite. Você sabia que eu finalmente tinha conseguido sair com a gata da Cassandra da Assistência Social? Eu tive que ralar muito para conquistar ela e eu prometi que ia voltar.
Rolei os olhos, impaciente, sabendo que ele não teve que ralar coisa nenhuma, a única dificuldade que ele havia tido era fingir uma dúvida, atravessar o pátio e ir até ela para perguntar.
— Qual é, Denis?! Faz isso por mim, por favor! – Fiz uma cara de choro e um beicinho, sabendo que ele ia acabar cedendo.
Denis fechou os olhos e praguejou baixinho, deu um soco no chão e ficou em pé novamente.
— Mulheres! Acham que podem nos comprar com carinhas bonitinhas! Você vai ficar me devendo essa, dona . Ah, se vai!
— O que você quiser, Pimentinha! – Dei um salto para ele e apertei a sua bochecha, dando-lhe um beijo em agradecimento.
— Se eu fosse você não ficava tão animadinha, você sabe que meus pedidos são caros – ironizou.
— Desde que não venha querer me mostrar a "soberania" da sua língua ou do seu pau, a gente tá entendido. – Pisquei para ele ao final, assim que fiz o sinal de aspas com os dedos.
— Ah, se você soubesse... – Fingiu ficar pensativo e eu lhe dei língua. — Vai arrumar um lençol para mim, vai! Enquanto isso eu vou ligar para a Cassandra remarcando.
Lembrar disso agora me fazia rir. O Denis ficou a noite toda emburrado até pegar no sono. E foi assim que terminamos todos nessa situação pela manhã. O desconhecido dormindo ainda no tapete e Denis no sofá da sala.
Ouvi um leve resmungo e meu coração saltou assustado. Meus olhos fixaram no movimento do corpo do desconhecido, notando ele fazer alguns leves movimentos e franzir o cenho, parecendo que ia acordar.
O rapaz começou a espremer os olhos e logo levou a sua mão até eles, coçando-os. Quando finalmente os abriu, deu um salto no tapete e sentou-se de uma vez, dando um grito assustado. O susto que ele tomou foi tão grande que me assustou também e, quando percebi, havia gritado junto com ele e estava encolhida em cima da cama, com meus braços em volta das minhas pernas dobradas.
Ficamos com as respirações descompassadas, um encarando o outro, sem coragem de abrir a boca. Os olhos dele desviaram-se minimamente de um lado para o outro, observando o meu quarto. Em seguida ele fixou-se em mim, olhando-me lentamente dos pés a cabeça. Depois abaixou seus olhos e levantou lentamente o lençol que cobria seu corpo. Não sei o que ele estava fazendo, mas logo após esse ato ele ergueu a cabeça, soltou um suspiro profundo e se não me engano creio que ouvi um "ufa" ser sussurrado.
— Quem é você? Onde eu estou e que droga está acontecendo? – perguntou cautelosamente e depois deu um gemido, segurando a cabeça. Provavelmente era o resultado da tremenda ressaca que ele deveria estar sentindo no momento.
Meu coração ainda batia forte, mas ergui a voz para retruca-lo no mesmo instante.
— Acho que eu é que deveria fazer as perguntas aqui, já que eu é que tive a minha casa invadida por um cara estúpido, bêbado e cantando "Porque homem não chora"!
O rapaz passou a mão pelo seu cabelo desgrenhado e nojento, parecia até que todo óleo da cozinha havia sido jogado nele. Será que ele não tomava banho, não?
Ele franziu o cenho, parecendo perdido e sem entender o que estava acontecendo. Rolei os olhos impaciente e resolvi explicar a situação para ele, antes que pudesse ficar paranoico e dar mais algum chilique.
— Provavelmente você não se lembra de nada, mas como sou boazinha, vou resumir. Você estava bêbado, bateu na minha porta, falou um tanto de abobrinha que eu não entendi, cantou uma música de forma bem desafinada e desmaiou nos meus pés. Como eu sou um ser humano excepcional, fiquei com dó de te arrastar para fora e voi a lá, aqui está você. Agora é a sua vez. – Apontei a mão para ele, mostrando que agora queria respostas.
— Jura que eu fiz tudo isso? – perguntou, sua voz soando um pouco rouco e os olhos espremidos por causa da claridade, os cantinhos sujos de remela.
— Eu gostaria que fosse mentira, mas não é. Ou você acha que eu gosto de receber caras bêbados e desconhecidos na minha casa?
Eu às vezes até queria segurar a minha língua, mas tinha coisa que era tão óbvia... Por que as pessoas ainda perguntavam?
— Desculpe! – falou devagar, esfregando o dedo no canto do olho direito. Acho que ele ainda estava com resquício do álcool ou com muito sono, porque parecia mais lento que um jumento.
— E então? Vai me dizer quem é você?
O cara levantou um pouco estabanado e apoiando a mão na parede do meu quarto minúsculo. Bambeou um pouco, mas conseguiu ficar de pé e dar um passo para ficar na minha frente.
Levantei meus olhos para ele, notando que era alto. Seu corpo não era super atlético, mas também não era uma vareta. Era como um magro com músculos. Nada mal até.
— Meu nome é . Desculpe por... por tudo isso – disse e sua voz soou com pesar.
Ele aparentava estar triste e envergonhado, fiquei até com pena de ter sido tão dura com ele. Seus olhos desviaram de mim e miraram o chão, impedindo que eu o encarasse. Uma curiosidade me veio sobre ele, o que havia acontecido de tão ruim para que ele estivesse tão devastado? Eu já sabia que envolvia mulher, mas precisava ouvir dele para ter certeza.
— Não querendo ser bisbilhoteira, mas já sendo, por que ficou assim? Eu sei que as pessoas extravasam às vezes e gostam de tomar um porre, mas ontem à noite, pelas coisas que disse, parecia muito mais que isso.
O cara, que agora eu sabia que se chamava , mordeu o lábio inferior, ponderando se deveria abrir a boca. Mas, por fim, deixou cair os seus ombros e resolveu falar.
— Você me acharia ainda mais estúpido se eu dissesse que foi por uma garota? - perguntou, constrangido, colocando as mãos para traz do seu tronco e trocando o peso do corpo em seus pés.
— Sinceramente? De início sim. Mas eu sou uma excelente ouvinte, posso escutar o seu lado da história. - Sorri para ele, tentando deixá-lo mais à vontade.
Só eu mesmo para cuidar de um bêbado, morrer de raiva e depois ainda oferecer um ombro amigo no final. Bem que Denis vivia me dizendo que eu ainda me meteria em muita confusão na vida.
— É melhor não, eu acho que já causei muitos problemas. Vai por mim, minha vida é tediosa, triste e amargurada. Não foi sempre assim, mas depois... Esquece. Desculpe novamente, eu não queria ter feito isso, eu estava fora de mim. - Apontou para si mesmo e o tapete no chão.
parecia um cara agradável, mas havia uma nuvem de tristeza em sua volta que era impossível de não se notar. O jeito dele falar e a forma que ele se portava não escondia muito, além disso, seus olhos pareciam gritar "me ajude". Ao mesmo tempo em que ele parecia ser um cara transparente e fácil de ser lido, ele tinha também um ar de confusão.
Várias perguntas pipocavam minha cabeça. Por que ele bebeu? Ele fazia isso sempre? Por que estava com um aspecto tão sujo e desleixado? Há quanto tempo estava sofrendo? Qual era o motivo maior disso tudo?
Eu só precisei encará-lo mais uma vez para saber que era a caixinha que eu queria desvendar. Eu queria ajudá-lo. Um rapaz tão novo e apresentável não deveria estar chorando as pitangas bêbado e invadindo a casa dos outros.
— Às vezes tudo o que você precisa fazer é colocar para fora, sabia? – incentivei-o a dizer alguma coisa.
— Por acaso você é psicóloga? - Passou a mão no cabelo sujo e ironizou, elevando só um pouquinho o seu lábio.
— Uma psicóloga em formação, eu diria - Pisquei para ele e sorri.
deu de ombros e virou as costas para mim. Achei que era o sinal que eu havia ido longe demais ao perguntar algo íntimo, mas fiquei surpresa quando ele abaixou-se para pegar o lençol, começou a dobrá-lo e aproveitou essa distração para falar.
— Ela disse que eu não era o cara que ela queria para a sua vida. Mesmo depois de estar ao meu lado por anos e eu ter feito tudo por ela, ainda assim... simplesmente eu não era mais o cara. Não é uma grande história, afinal. Ela só terminou comigo, destruiu o meu coração e eu me afundei. E muito por sinal. Eu só preciso... – Colocou o lençol dobrado sobre a cama, olhou para mim e mordeu o lábio inferior. — Preciso descobrir como voltar a viver minha vida novamente.
Esse negócio de amor era complicado. As pessoas sempre acabam esperando algo da pessoa que se ama. A psicologia fala sobre o amor romântico e suas frustrações. Homens e mulheres tendem a idealizar demais e fazer projeções nos seus companheiros, sendo o resultado inúmeras frustrações por a pessoa não atender tudo aquilo que se esperou dela.
Era por isso que eu não pensava, idealizava e nem sonhava. Expectativas costumam nos decepcionar, a graça da vida estar em se deixar surpreender.
Uma luz veio na minha mente, assim que digeri o que ele havia falado. O que eu tinha a perder? Já havia tentado de todas as formas e estava mais encurralada que galinha presa no poleiro. Eu precisava tentar.
— E se eu te dissesse que posso te ajudar? – perguntei, deixando um sorriso enigmático se formar lentamente em meu rosto.
me encarou por alguns segundos com uma feição incrédula. Suas sobrancelhas arquearam-se e depois foram-se unindo vagarosamente, até que o seu cenho estivesse todo franzido.
— Desculpe, eu não estou pronto para ter outro relacionamento agora. Você é uma garota linda e em outro momento eu adoraria. Sério! Eu não pensaria dois segundos, mas hoje eu não posso e eu não quero te usar dessa forma para aplacar a minha dor. Mesmo assim, eu só tenho que te agradecer por tudo o que fez por mim. - Estendeu a palma da mão em minha direção, ao mesmo tempo em que recuou um passo para trás. Era quase contraditório isso.
Meu sorriso foi se desfazendo à medida que ele falava e eu percebia o que ele havia entendido da minha proposta.
Uma onda de raiva se apossou do meu corpo e fiquei indignada por ter achado isso. Pera lá, né?! Se eu fosse dar em cima de alguém eu tentaria uma abordagem melhor do que essa! Além disso, vê se eu ia querer um cara que estava fedendo a álcool, suor e sei lá quantos dias sem banho?!
— Pera lá, garanhão! – Estendi as palmas da minha mão, — Nem toda garota cai nos pés de um cara só porque ele tem um rostinho bonitinho, fica tranquilo que eu não estou interessada em você. Não dessa forma que você pensou.
deu uma leve encolhida com minhas palavras e seu rosto aparentava confusão e constrangimento.
— Desculpe, é que você disse... – tentou se justificar, mas eu o interrompi.
— Tá bom, tá bom, não importa! Você é um carinha agradável, passa na rua e as mulheres tendem a dar em cima de você, blá, blá blá, e achou que eu também queria a mesma coisa... Não vem ao caso. Não é nada disso. - Balancei a mão entediada por ter que dar aquele discurso, enquanto eu via a cabeça dele balançar várias vezes em negativa, porém nem dei moral, apenas prossegui a minha fala. — O negócio é o seguinte, eu te salvei. Você poderia estar apagado de bêbado do lado de fora, ter sido roubado ou sabe-se lá Deus o que mais poderia ter acontecido. Mas, mesmo você sendo insuportável ontem, eu te abriguei aqui e você me deve uma.
ficou paralisado na minha frente e engoliu em seco, cruzando uma mão na outra em seguida.
— É justo – respondeu, receoso. — O que você quer?
Abri meu sorriso novamente, sabendo que tinha jogado todas essas coisas para endossar a minha chantagem e que agora seria praticamente uma batalha ganha.
— Quero que seja meu paciente nos próximos meses.



Capítulo 5

— Você o quê? – Denis exclamou assim que eu terminei de explicar para ele a proposta que havia feito ao .
— Eu disse que o cara bêbado será meu paciente no trabalho do Sr. Benecke.
— Você só pode estar louca. Você nem o conhece! Meu Deus, , ele chegou bêbado, entrou no seu apartamento do nada e ainda por cima agarrou os seus pés! Ele pode ser um maníaco tarado e você tá aí querendo ainda revê-lo!
— Ele não é nada disso, Denis. – Rolei os olhos. — Ele é um cara que teve o coração partido e agora não sabe lidar com a situação. No entanto, eu vou ajudá-lo. É uma troca de favores, ele me deve essa.
Meu amigo emburrou a cara e cruzou os braços, encarando-me.
— E ele topou? – Arqueou a sobrancelha, desconfiado.
— De início não, mas você sabe como eu sempre tenho ótimos argumentos – falei, recordando-me de como estava sendo incisivo em não querer participar. Contudo, eu joguei na cara dele que tive que aturar a sua bunda bêbada a noite toda sem ao menos conhecê-lo e acho que ele ficou com remorso, resolvendo topar em seguida.
— Eu ainda não acho uma boa ideia… – Denis resmungou.
— Você não precisa achar, Denis. Eu vou fazer e vai dar tudo certo – retruquei, fazendo meu amigo bufar com raiva.
— Ok então. Já que você é cabeça dura para não mudar de opinião, me diga, sabichona, como você vai ajudá-lo? , você é inteligente pra caramba, mas o que sabe sobre coração partido? Você nunca nem gostou de ninguém – exclamou, erguendo os braços.
— Isso não é verdade! Teve aquele garoto ruivo do parquinho que te contei…
— Você estava na primeira série, , ele nem conta! Você só ficou encantada porque ele te deu uma bala.
Rolei os olhos e me auto condenei por ter contado tantos detalhes da minha vida para Denis. Caso contrário eu poderia até enrolá-lo.
— Ah, não interessa, Denis. Para de avacalhar o meu trabalho e cuida do seu. Eu posso não saber na prática, mas entendo as teorias e como lidar com isso. Relaxa e vai lá usar o seu divã com a sua tal “paciente”. – Fiz um gesto de aspas com os dedos, mostrando o quão irônica eu estava sendo.
— Com muito prazer! – Denis primeiro me olhou ultrajado, mas logo respondeu, abrindo um sorriso safado.
— Nojento!
Denis sorriu e levantou-se, colocando a xícara de café suja na minha pia e largando-a lá. Folgado, achava que eu era empregada dele.
— Enfim, só me prometa que qualquer coisa que aconteça você vai me procurar. – Expirou, frustrado. — Posso ter, pelo menos, uma conversa com ele antes?
— Denis, pelo amor de Deus! Vai ficar tudo bem.
— Ok, ok! Agora vou lá porque tenho uma consulta marcada. – Imitou o meu sinal de aspas com as mãos e ergueu a sobrancelha dele duas vezes, deixando claro as segundas intenções daquilo.
Despedimo-nos e logo após fiquei repassando os acontecimentos da noite anterior e de hoje de manhã. Agora, finalmente, eu tinha o meu “paciente”.
Confesso que estava nervosa e que as palavras do Denis martelavam em minha cabeça, trazendo-me insegurança.
Será que eu, uma pessoa que nunca havia vivenciado de fato esse tipo de amor, poderia ajudar alguém com o coração partido?
Resolvi começar a pesquisar sobre o assunto na internet, afinal, para um bom trabalho, precisamos estar preparados e munidos de informações. Surpreendi-me quando encontrei um site chamado “Desabafos.com” e o slogan “Faça aqui o seu desabafo”.
Sério que realmente usavam esse tipo de coisa?
Cliquei lá e pude ver que havia as mais variadas categorias de assuntos. Desde desabafos sobre livros ruins, produtos extraviados, relacionamento com os pais, até política e morte de cachorrinhos. Na lateral direita do site tinha um link onde era possível filtrar as informações. Cliquei no botão e selecionei depois a opção “desabafos do coração”.
Comecei a passar o olho por toda aquela tonelada de relatos descritos ali. Nunca imaginava o número de pessoas que tiveram alguma desilusão amorosa era tão alto. Alguns eram mais leves, outros mais tensos, mas, no geral, todo mundo já tinha tido o coração partido, o que me fez sentir um certo privilégio por ter o meu intacto.
Comecei a deslizar o mouse durante e leitura e me deparei com alguns desabafos interessantes.

Tive meu coração partido quando me declarei pro boy e ele disse que gostava mesmo era da minha irmã. Na hora não escondi minha decepção, mas a mesma passou quando ele me pediu ajuda pra conquistar minha ‘sis’ (Cara de pau? Nem um pouco! Haha), dei meu melhor sorriso e mandei ele se arrombar rs...)” - F.S.

Uau, parecia até aquelas histórias de novela. Imagina que horrível gostar do cara que gosta da sua irmã? Ainda bem que eu era filha única, logo não correria esse risco.

Eu fiquei bem na bad quando eu fui em um encontro e o cara tava bem nem aí pensando na ex. Fiquei ouvindo músicas bad (alô, Ed Sheeran) e fiquei pensando que minha vida estava fadada a solidão.” - L.R.

Fala sério, hein?! Para que o cara resolveu sair, então? Ex a gente deixa enterrada! Tadinha dessa menina, espero que não tenha ficado traumatizada e que o próximo seja um zilhão de vezes melhor.
Rolei mais o mouse e passei para os próximos depoimentos, esperando que fossem menos catastróficos.

Enquanto eu tava ficando/namorando com o guri, ele do nada colocou que tava em um relacionamento sério com outra no Facebook. Quando fui tirar a limpo com ele, ele só respondeu "ah é, esqueci de te avisar". No primeiro dia eu tava tão ??? que eu só ri da situação, no segundo eu tava meio triste, e no terceiro eu já nem lembrava dele. Foi quando eu me dei conta que eu não gostava dele de verdade, só gostava de ter alguém pra conversar.” - C.B.

Gente do céu! Ler esses depoimentos estava me deixando horrorizada! Como existia esse tipo de pessoa no mundo? O que custava ter um papo cabeça com a menina e terminar o relacionamento? Mesmo se estivesse só ficando, é questão de caráter. Eu hein, que povo doido esse! Ainda bem que a menina entendeu que não estava tão envolvida assim, caso contrário às marcas poderiam ter sido muito profundas.

Só tive o coração partido uma vez e por um amor não correspondido. Fui vítima de uma aposta, quando eu tinha uns 14 anos de idade. Isso me deixou muito insegura e hoje quase aos 22 tenho medo de me entregar a qualquer relação, então fujo de qualquer pessoa que tente se aproximar de outra forma, não sendo amizade.” A.J.

Eu-estou-em-choque!
Na verdade, estou perplexa!
Gente, não seria possível a existência de pessoas tão babacas assim no mundo. Seria?
E eu achando que só encontrava esse tipo de coisa em livros e fanfics, mero engano.
Esse depoimento me fez até analisar certas situações que nos deparamos por aí. Nós vivemos lendo historinhas de apostas que o cara é babaca e se apaixona depois pela menina e vivem felizes para sempre. Nada contra, até porque eu já li e gostei de várias delas, mas, caramba! Olha aí a vida real! Na realidade não é nada legal e nada bonito!
No planeta Terra o carinha machuca o seu coração, você fica com cicatrizes e carrega os traumas ao longo da vida. É, garotas, precisamos analisar e ter o nosso pezinho no chão! O mundo não é das Alices e nem cor-de-rosa como pensamos.

Eu fiquei de coração partido quando terminei meu namoro e só sabia chorar. Foi bem tenso e meus amigos dizem que mudei drasticamente o comportamento, só queria ficar dentro de casa e não ver as pessoas. Sendo sincera, não consigo lembrar de muita coisa porque fiz questão de deletar todos esses sentimentos horríveis, mas eu lembro bem de chorar agarrada numa camiseta e de ficar andando de capuz algum tempo, até dentro de casa HAUAHU Até virou piada interna aqui em casa, quando alguém tá de capuz já soltam "alguém tá meio depressiva". Dou risada agora, mas machucou muito.” N.G.

Ler isso só me causava mais medo de me envolver com alguém, parecia tudo tão horrível. Tantas meninas machucadas e marcadas de alguma forma por culpa do coração. Tadinha da garota do depoimento, agora toda vez que eu sair na rua com um capuz iria me lembrar dela.

Um garoto que eu achava que gostava na sala do 1º ano queria mesmo era minha melhor amiga. Eu que apresentei eles, eu que fiz a ponta de contato, e ele me escondeu isso. Quando me declarei, ele falou que gostava msm era dela, msm assim a trouxa aqui queria ajudar ele (não a ficar com ela, mas consolar, sabe?). DETALHE: ELE TINHA NAMORADA E ELA TB!” - J.B.

Eita, lê, lê!
Tá aí uma coisa que eu não suporto! Traição.
Tá junto, então tá junto. Não quer, separa. É questão de caráter e respeito. Espero que se eles tenham ficado, pelo menos tenham terminado com seus parceiros antes. Relacionamento aberto é relacionamento aberto, agora, trair a confiança do outro, é outra coisa e é duro demais. No fim, acho que o que essa garota do depoimento teve foi um livramento por não se envolver com esse cara.


“Eu gostava mt do meu ex namorado, tipo mt mesmo. Nós namoramos um ano e meio, até que eu descobri que ele mentia sobre tudo da vida dele, e não mentia só pra mim, mentia pra família e pros amigos também. Foi uma decepção enorme, chorei muito na noite que descobri, fiquei mt mal por uns 3 dias, mas não ficava só no quarto sabe, eu saía de casa, ia na faculdade, continuava vivendo. Eu não aceitava ficar trancada no quarto por causa dele, ele não merecia isso. (...) Tenho essa consciência hoje e, na época, minha família me ajudou muito a entender isso. Na verdade, eu superei bem rápido, e devo muito à minha família por isso. Eu sofri sim, muito, mas não deixei isso me vencer.” - G.M.

Uma história triste, mas fiquei tão orgulhosa da menina! Um bom ponto para eu anotar na minha caderneta. Nessas horas difíceis, o apoio familiar é fundamental. Preciso lembrar de perguntar ao como é a relação familiar dele ou mesmo dos amigos. Em momentos como esse, o melhor a se fazer é cercar-se de pessoas que são importantes para gente.

“Olha, numa das minhas maiores paixões o cara me disse na cara que eu não era suficientemente boa para ele por ser gorda e feia e eu chorei que nem louca. E o que eu fiz depois????? Me fiz passar por uma outra rapariga e ele se apaixonou por mim xD fiz isso durante 1 ano, por vingança e até hoje não me arrependo pq o fiz pagar por meu sofrimento!!! Sei que foi errado, mas não podia deixar um cara me diminuir dessa maneira.” C.O.

Socorro! Li me sentindo em um episódio de Revenge! Ao mesmo tempo em que eu ria da esperteza da menina, eu ficava também chocada! Quem eu era para julgar como alguém deveria agir em uma situação como essa, não é? Ainda mais depois do cara ser tão ridículo e preconceituoso. Mas uma coisa era certa, depois dessa ele não aprontaria novamente.

“A primeira vez que chorei por um cara, foi pq ele foi totalmente sincero comigo e disse que ainda amava a ex dele e não queria me enganar, pq gostava de mim, mas não era o suficiente para esquecer ela. Eu achava que não teria vida pós "ele", que ia tudo desmoronar, e a gente nem namorava, hein!? KKKK ele foi o primeiro cara que eu fiquei gostando de verdade...” H.L.

Até que enfim um cara legal e honesto nesses depoimentos. A garota teve o coração partido, mas, pelo menos, o cara não foi um babaca. Se eu pudesse falar algo, diria assim “Garoto, não sei teu nome, mas fiquei orgulhosa com a sua atitude”.
Enfim, ainda assim, já tinha lido depoimentos o suficiente para querer nunca me apaixonar. Deus me livre de ter que passar por todos esses processos.
Não que eu fosse virar uma fugitiva do amor, mas também não ia dizer que estava morrendo de vontade de ter meu coração batendo mais forte por alguém. Na verdade, isso só tinha me deixado mais receosa. Porém, vamos que vamos, né? Se tem uma coisa que eu aprendi nos últimos tempos é que no coração não se manda. Minha amiga que o diga.
Fiz mais umas pesquisas a respeito e descobri que a depressão após o fim de um relacionamento acontecia muito mais do que eu imaginava. Haviam até artigos que comparavam o sentimento de um término com a abstinência de um viciado de drogas. E, pensando bem, fazia muito sentido.
Quando começamos a nos relacionar com alguém são liberados hormônios como a Ocitocina, conhecida como o hormônio do amor e responsável pela interação, desejo sexual, etc. E também a dopamina, que nos dá a sensação de bem-estar e prazer. Esses elementos associam-se com o cheiro e o rosto do parceiro que amamos, fazendo com que o cérebro capte a atenção que recebemos do boy como uma droga. Seguindo o baile, de acordo com o número de encontros ou o tempo que ficamos com a pessoa, nosso cérebro torna-se “viciado”, acostumando-se a viver naquele ciclo feliz e recompensatório dos hormônios.
Quando acontece uma separação, principalmente se ocorrer de forma repentina, o corpo vai reagir igual a um que está em abstinência, igual ao que acontece aos viciados em drogas. Sintomas como fúria, por exemplo, são super comuns. Há o desejo de recuperar aquilo que foi perdido e resgatar o relacionamento que foi acabado. O cérebro é treinado para tentar reverter essa situação, por isso a pessoa fica com raiva, diz que nunca mais quer falar com o cara e dez minutos depois já está de volta ao fundo do poço.
A Dra. havia me explicado que isso é completamente normal. Faz parte da lei da natureza e do sucesso da procriação, pois, caso contrário, se nós apenas nos desinteressássemos um pelo outro facilmente, era provável que a raça humana já tivesse se extinguido.
Sem a dopamina e a ocitocina, aquela sensação de felicidade e prazer que a pessoa sentia antes se acaba, sendo substituída pelo choro e podendo levar à depressão. Mesmo aquelas pessoas que seguem suas vidas podem ter seus momentos de crises. Um coração partido, independente por quem quer seja, não é bobagem e nem infantilidade. Além disso, cada um tem o seu tempo para lidar com a dor que sente.
Acho que todo mundo sabe de algum caso de gente que até adoeceu depois de um término. Isso acontece porque o corpo, vendo tudo isso que aconteceu, começa a estimular a liberação de cortisona, também conhecido como o hormônio do estresse. Esse hormônio faz o apetite diminuir e enfraquece o sistema imunológico da pessoa, por isso podemos ficar doentes no sentido mais literal da palavra.
A intensidade de como tudo isso acontece varia muito de pessoa para pessoa e do envolvimento que tinha com seu parceiro. Quando ele é tido como o “ideal” a sensação para o corpo é como a perda de um membro. Agora quando o relacionamento já não era lá essas coisas, é comum que se supere mais rápido. Da mesma forma essa diferença é vista conforme o tipo de término que ocorre. Quando o rompimento acontece aos poucos, já foi citado alguma vez, ou alguma coisa parecida, a pessoa fica mais preparada, então não sente o tamanho do baque. Agora se acontece sem nem se esperar, é muito pior.
Por isso, ao começar as sessões com , eu precisaria colher todas essas informações. Para assim conseguir compreender a dimensão do relacionamento dele, as motivações e como tudo aconteceu.
É fácil julgarmos por fora, mas só quem sente é capaz de mensurar o tamanho da dor e as reações, muitas vezes incontroláveis, que o seu corpo tem.
Fiquei um tempo fazendo anotações na minha agenda e fazendo o cronograma das minhas sessões com o . Precisava ser organizada e mostrar todo um lado profissional, por mais que o próprio Dr. Benecke não fosse exigir tanto da gente.
Agora eu precisava de um encontro mais formal com o meu novo paciente para conhecê-lo melhor e preencher a ficha dele. A madrugada aqui em casa nem contava, passou mais bêbado ou desmaiado do que falante. Além disso, eu ainda tinha minhas dúvidas do quão sóbrio ele estava quando resolveu aceitar o acordo.
Peguei meu celular e busquei o número de , que eu havia salvo antes dele ir embora. Cliquei em Bebum e esperei chamar até ele atender.
— Alô – atendeu com a voz sonolenta.
— Não está meio tarde para ainda estar dormindo?
— Quem é?
— A sua salvadora, agora vai lavar esse rosto para conversar comigo porque eu não quero que você alegue que eu te induzi a concordar com alguma coisa porque estava, dessa vez, bêbado de sono – gracejei e ouvi um resmungo do outro lado da linha.
…?!
— A própria! Já levantou?
— Você é sempre chata assim ou só quando respira? - retrucou e eu acabei gargalhando.
— Pelo visto pelo menos consegui te acordar.
— Desculpe. Eu tô com uma dor de cabeça do cão.
— Não me atingiu. Mas a sua dor é só resultado da bebedeira.
— É… eu sei – respondeu após alguns segundos de silêncio.
— Enfim, vamos ao ponto. Preciso me encontrar com você ainda hoje para preencher a ficha e preparar teu caso. A entrega para o meu professor é amanhã. Você lembra do nosso acordo, não é? – perguntei, torcendo para que ele não usasse seu estado não sóbrio para cair fora.
— Sim, eu prometi. É o mínimo que poderia fazer. Não que eu esteja gostando da ideia, mas uma mão lava a outra…
— Isso aí! – Sorri, ainda que ele nem pudesse ver. — Que tal ir no Fiammetta Pizza que fica aqui perto? – sugeri.
— Por mim tudo bem. Pode ser às sete?
— Fechou. Beijo, até mais!
Acho que ele ia responder alguma coisa, mas não consegui entender, pois tinha desligado a ligação. Agora estava dada a largada do meu trabalho e o primeiro passo era me encontrar oficialmente com .



Capítulo 6

Arrumei os meus cachos em frente ao espelho, de forma que ficassem bem modelados, passei meu perfuminho básico, peguei minha pastinha e saí de casa. Como havia marcado com em um local perto, não precisaria pegar ônibus e nem táxi. Melhor para mim, vida de estudante já é muito apertada, todo trocadinho ia para xerox.
Eu sentia um frio na barriga e o meu coração saltando com a expectativa. Tinha medo de sair tudo errado, dele achar uma merda às sessões, dele desistir, de tudo. Foi fácil marcar com ele, difícil seria agora para encará-lo, não queria me frustrar, meu trabalho dependia que tudo corresse bem.
Caminhei até o local marcado e ao chegar à porta, logo avistei os cabelos escuros de , que batucava a mesa com os dedos, parecendo entediado. Respirei fundo e segui em frente, tentando não ficar nervosa. Eu devia parecer o mais profissional possível e deixar a minha ansiedade de lado. Eu poderia fazer isso, pensamento positivo!
— Olá, chorão! – cumprimentei-o com gracejo, uma forma de omitir tudo aquilo que estava sentindo dentro de mim, e sentei na cadeira oposta, ficando de frente para ele.
enrugou o rosto em uma careta e estendeu a sua mão em minha direção.
— Oi, . E, a propósito, meu nome é .
Dei uma risada e respondi o seu gesto, dando graças a Deus que a minha mão não suava, caso contrário ele perceberia que eu estava nervosa e que esse meu jeito descolado agora era pura fachada.
— Tudo bem, eu só queria quebrar o gelo. Eu sei o seu nome, – falei, forçando um tom mais grave, e pousei meu cotovelo na mesa, observando-o.
Ele parecia bem diferente de quando estava no meu quarto, a começar que não estava fedendo a cerveja ou vômito, na verdade, logo que cheguei perto dele senti um perfume muito gostoso, que me deu até vontade de afundar meu nariz em seu cangote e inspirar profundamente.
Sem pensamentos sujos, por favor!
O negócio não era com , mas sim porque eu adorava perfume masculino, mas como eu nunca tive um homem para cheirar, tinha que me contentar quando alguém passava com algum delicioso perto de mim. Denis também usava alguns muito bons, mas ele se aproveitaria da minha fraqueza por aroma masculino para tentar me pegar, então eu dispensava.
Além disso, agora estava bem vestido, o cabelo não parecia mais um ninho de passarinho e a cara não estava inchada. Ele estava bem… Apresentável.
?
Pisquei e voltei a mim, não havia percebido que tinha entrado em transe nos meus pensamentos. Isso sempre acontecia comigo, começava a viajar na minha mente e se deixasse eu ia à China e voltava sem ninguém perceber. O problema era que eu estava olhando para , aliás, não necessariamente pra ele, meus olhos estavam em sua direção, mas eu estava perdida em minha própria cabeça. No entanto, agora ele poderia achar que eu estava o encarando, droga. Deve ser por isso que ele estava acenando com a mão em frente o meu rosto.
Corei um pouco, sentindo vergonha, mas tentei dar o meu melhor sorriso e fingir que nada tinha acontecido.
— Desculpe. Então, o que estava dizendo, ?
— Eu disse que tinha pensado em desistir, mas não seria justo com você. Eu dei minha palavra, então vou até o final, mas queria que você não expusesse nada que venhamos conversar – pediu, esfregando as mãos uma na outra e sacudindo uma das pernas.
— Você está nervoso? – Arqueei a sobrancelha e segurei o sorriso.
Não queria caçoar dele, só achava engraçado. Eu tinha chegado ali tão insegura e pelo visto ele estava tão tenso quanto eu.
— Isso é esquisito – Apontou para mim e para ele. — Não é todo dia que uma estranha pede para ser minha psicóloga e manda eu abrir a minha vida emocional para ela.
— Bom, se serve de consolo, não é todo dia que eu recebo caras bêbados desconhecidos na minha casa também. – Pisquei e sorri, tentando quebrar a tensão.
— Touché! – ergueu o rosto para mim e elevou um pouco o seu lábio em um pequeno sorriso.
Era a primeira vez que o via mais relaxado. Ele tinha uma aparência muito mais bonita quando sorria – ainda que eu nem pudesse considerar isso um sorriso de fato, havia sido só uma tentativa contida. Ainda assim, ele deveria fazer mais vezes, pena que eu ainda conseguia perceber a carga do seu olhar. Ele estava triste, os ombros caídos e os olhos sem brilho o denunciavam. Quem sabe até o final do meu projeto eu conseguisse trazer um sorriso verdadeiro e leve para ele…
— E então? Com vai funcionar esse esquema? – perguntou, curioso.
Animei-me com o questionamento e coloquei a minha pasta em cima da mesa para tirar o formulário, mas tocou o meu braço, fazendo-me parar. Tomei um susto com o seu ato e olhei para ele imediatamente.
— Vamos só pedir algo para comer primeiro, que tal? Aí podemos conversar à vontade – explicou e eu retirei meu braço, juntando-o ao meu corpo e acenando com a cabeça em confirmação.
fez um movimento com a mão para chamar o garçom e fez o nosso pedido. Uma pizza pequena, metade marguerita e metade frango com catupiry, que era o meu favorito. Pediu também um suco de abacaxi com hortelã para mim e um de frutas vermelhas para ele.
Assim que finalizou, apressei-me para abrir minha pasta e retirar de lá a ficha de cadastro e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que ele deveria assinar. Eu não teria assunto para ficar conversando com o ali enquanto comia, nós estávamos em uma saída puramente profissional, portanto, era melhor já ir falando o que realmente importava.
— Antes de começarmos você vai precisar preencher alguns dados para mim. Um é só algumas informações pessoais, mas que não serão divulgados, é só para eu fazer a sua ficha como meu paciente. A outra é um termo que você me autoriza a usar aquilo que for abordado durante nossas consultas, porém sempre preservando a sua identidade. Além disso, o termo lhe garante pular fora do projeto a qualquer momento, mas você não vai fazer isso comigo, vai? – Uni uma mão na outra em frente ao meu rosto, fiz a cara do gato de botas e pisquei meus cílios para ele.
deu uma pequena risada pela primeira vez, fazendo seus olhos ficarem apertados e quase tampados por causa dos seus longos cílios. Balançou a cabeça e passou a mão nos fios escuros que caíram em seus olhos com o movimento, retirando-os e jogando-os para trás.
— Eu já te dei a minha palavra. Não vou furar.
— Bom mesmo! – Sorri e voltei meus olhos para os papéis. — Eu pensei de fazermos seis encontros oficiais, creio que será o suficiente para o seu caso. Eu preferiria que fosse em um lugar público, mas como não seria muito profissional, pode ser lá em casa, eu ficaria mais à vontade e Denis não iria encher o meu saco achando que você vai me sequestrar ou algo assim – expliquei e ele arqueou a sobrancelha, arregalando os olhos assustados.
— Uau, eu causei mesmo uma má impressão ao seu namorado, hein!
— Eca, ele não é meu namorado. – Fiz uma careta de nojo e balancei a cabeça. — Denis e eu somos amigos, é o irmão que eu nunca tive. E sim, você causou uma péssima impressão. Vamos dizer que Denis não é muito fã de Pablo também – gracejei.
— Você nunca vai esquecer isso, vai? – Colocou a mão na testa e revirou os olhos.
— Lamento, , você me deu bagagem para te atazanar durante uma vida inteira.
— Isso não seria antiético? Atazanar o seu paciente… – Apontou para ele mesmo e arqueou uma sobrancelha, mordendo o lábio inferior para conter um sorriso que temia sair.
Até que esse garoto era divertido, quando não estava no seu momento depressivo e de lamentações. Semicerrei meus olhos em sua direção, coloquei meus cotovelos na mesa, cruzando as mãos embaixo do queixo para encará-lo.
— Agora não estamos em nossa sessão formal, então estou aproveitando enquanto posso – respondi e deixei meu lábio se elevar ao final.
Quando iria me retrucar, fomos interrompidos pelo garçom que chegava com a pizza, então fomos comer. Deliciei-me com a minha, ao ponto de quase lamber os dedos na frente dele, pois estava muito gostoso. Enquanto comíamos, ficamos em silêncio, querendo ou não nós não éramos amigos e havíamos acabado de nos conhecer, não tinha muito assunto além do objetivo que tinha nos trazido até ali.
Eu estava sem ideias de como quebrar o gelo e eu não queria mais lembrá-lo do seu micão tour, portanto, por incrível que pareça, preferi ficar quieta e esperar terminarmos de comer para acertamos as coisas do trabalho. Abaixei minha vista para o meu prato, dando uma garfada em um dos últimos pedaços da pizza, quando ouvi dar um pigarro, chamando a minha atenção.
— Então… Psicologia, hein? Parece ser um curso interessante. Você gosta? – perguntou e eu percebi que ele já havia terminado de comer.
Sorri pelo questionamento, falar de PSI sempre me deixava contente, era a minha paixão, ainda que outrora um dia não havia sido, mas, felizmente eu me encontrei.
— Se eu gosto? Eu amo! – respondi com ênfase.
— Poxa, que bacana. Fico feliz, seus olhos chegaram brilhar quando me respondeu – comentou com um tom suave, apontando em direção ao meu olho. — Sabe, é muito bom fazer aquilo que se quer, muita gente termina a faculdade e ainda fica frustrado, não se encontra no curso, sabe? Há uma tendência muito grande no mundo em determinar que todos têm que ingressar imediatamente em uma faculdade se não serão um zé-ninguém na vida. Isso acaba levando as pessoas a fazerem escolhas precipitadas e desperdiçar o seu tempo.
Pisquei surpresa com o assunto, não que eu não concordasse, só não esperava uma conversa tão reflexiva vinda do . Também, depois da primeira impressão que tive dele, eu não esperava era nada, mas fiquei feliz por me surpreender.
— Eu entendo. Para falar a verdade, eu passei um pouco por isso. Quando formei no ensino médio, eu não sabia muito bem o que queria, tive outras intenções que não deram certo e acabei caindo dentro da Psicologia. Não que eu não achasse um curso legal, mas não era a minha primeira opção, entende?
balançou a cabeça afirmando e pareceu compreender.
— Então… no início me senti insegura, fiquei com medo de não ser isso que eu queria para mim. Além do mais, quanto mais eu estudava, eu via a responsabilidade que teria na vida das pessoas, as situações que eu teria que ouvir e presenciar, tive medo de não saber lidar e não ser forte o suficiente para poder ajudar alguém. É aterrorizante pensar que você tem uma vida em suas mãos e que pode ajudar a transformá-la para melhor ou cagar tudo – confessei e dei uma leve estremecida só de pensar nisso.
— É por isso que fui para as exatas – gracejou, quebrando o peso daquela conversa.
— Garoto esperto. – Pisquei e sorri, em seguida dei a última golada no meu suco.
— Mas, … – chamou-me. — Tenho certeza que você terá competência suficiente para poder ajudar muita gente.
— Você nem sabe, ainda não começou as nossas sessões – retruquei.
abriu um pequeno e raro sorriso para mim e recostou as suas costas na mesa.
— Então vou guardar essa frase para o final e ainda vou dizer “eu te avisei”.
— Espero, . Espero! - Sorri de volta para ele, internamente grata pelas palavras de motivação.
— Deixa eu te falar algo, direto de uma pessoa que já se formou e entende do que tá dizendo. – Sua feição ficou mais séria, como se quisesse muito que eu o escutasse. — Essa sensação de impotência acontece com todos que se formam. A gente entra na faculdade achando que vai sair o Sabe Tudo. Mas a verdade é que recebemos sim conhecimento, porém a prática vem com o tempo. Formamos ainda muito inexperientes e imaturos, a perfeição demora. O que faz a diferença é a dedicação e empenho para prosseguir e melhorar. Todo mundo recebe a mesma bagagem e é jogado no mundo das profissões, é o teu empenho que vai te diferenciar. Uma dica é tentar fazer bastantes estágios, pois eles dão mais experiências, mas não se cobre demais, na caminhada você terá erros e acertos. Comemore as vitórias e aprenda com as derrotas, você não vai ganhar todas as causas, o que não pode é desistir – terminou, elevando sutilmente o canto do lábio e recostando suas costas na cadeira.
Seus dedos longos da mão direita batucavam a mesa e o braço esquerdo estava estendido na cadeira vazia ao seu lado. Ele parecia tranquilo, mas me encarava piscando mais vezes que o normal, aguardando que eu dissesse alguma coisa.
— Uau! – exclamei surpresa. — Tem certeza que você é de exatas? Eu quase pensei que o psicólogo aqui era você!
— Às vezes tenho meus momentos – deu de ombros e mordeu a parte interna da sua bochecha, corando levemente.
Era engraçado ver um cara ficando vermelho, até porque não era branquinho. Não sei se ele não era muito adepto a elogios, mas eu não poderia negar como aquela cena havia sido a coisa mais fofa que tinha visto nos últimos dias.
— Obrigada – respondi sincera. — Sério mesmo. Eu costumo ser ansiosa, vou tentar lembrar disso durante esses momentos.
— De nada, é o mínimo que posso fazer com a doutora que disse que vai costurar o meu coração – brincou, mas observei um vislumbre triste nos seus olhos, quando ele desviou dos meus, olhando para qualquer lado que não fosse o meu rosto.
— Verdade. – Pulei na cadeira, tentando parecer animada e não demonstrar que havia notado como ele ficou. — Falando nisso, já que terminamos de comer – apontei para o seu prato –, vamos aos documentos. – Peguei os termos e estendi para ele.
Mostrei para ele o que precisava preencher e ficou lá escrevendo e assinando os papéis. Assim que terminou, ele me devolveu e parecia um pouco apreensivo. Estava já começando a notar sinais característicos nos seus trejeitos sempre que a situação ficava desconfortável para ele.
— Isso vai ser difícil. – Passou a mão pela testa, preocupado.
— O quê?
— Me abrir sem parecer um palerma chorão. Na verdade, só falar disso é muito complicado, além de constrangedor. – Suspirou e ficou olhando para o seu prato vazio.
, eu estarei aqui para te ajudar – Dei um pequeno sorriso fechado e estendi a minha mão para tocar a dele sobre a mesa no impulso.
Eu não sei o que ele tinha, mas ver a sua tristeza me dava vontade de colocá-lo em um potinho e o proteger. Tinha vontade de abraçá-lo e dizer que estava tudo bem sofrer, uma hora isso iria passar.
olhou para a minha mão sobre a dele com os olhos um pouco arregalados, não esperando aquele movimento meu. Assim que aquele sentimento de empatia passou, fiquei constrangida com o meu ato e retirei minha mão rapidamente, remexendo-me na cadeira, desconfortável. Por um instante eu tinha esquecido que era apenas um desconhecido para mim, eu não estava consolando Denis, estava ali com uma pessoa que eu havia conhecido um único dia.
— Er… Obrigado – Ele também recolheu a sua mão e depositou-a em cima da sua perna. Não sei se ele tinha ficado sem graça pela minha invasão ou por ter percebido que eu havia ficado constrangida com o que eu tinha feito. Qualquer uma das duas opções já me deixava envergonhada o suficiente.
Eu odiava ficar em uma situação em que eu me sentisse desconfortável. Minha vontade era sempre sair correndo para casa e me enfiar debaixo do meu cobertor. Era terrível! Aquele frio na barriga que eu sentia antes de entrar na pizzaria voltou com fúria total e eu só queria um buraco para me enfiar.
— Não há de quê. – Desviei meu olhar do dele e guardei os papéis um pouco desajeitada, levantando-me da cadeira. — Acho que já podemos ir, não é? Tudo certo aqui, depois eu te ligo marcando a data do nosso próximo encontro… Er, quer dizer, da nossa consulta. – embolei-me com as palavras e olhei direto para a porta, querendo fugir daquele constrangimento.
Eu só estava piorando tudo.
— Ah… então tá bom. – Olhou para mim, arqueando levemente a sobrancelha esquerda, mostrando-se um pouco confuso. — Espera só um pouquinho que eu vou pagar a conta e te acompanho. – Levantou da cadeira também e começou a se virar em direção do balcão para chamar o garçom.
— Ai, como sou idiota! – Bati em minha testa e exclamei para mim mesma, porém ele me escutou e girou a cabeça em minha direção.
— O quê? – perguntou.
— A conta, eu já ia embora me esquecendo da conta, como sou tapada! – respondi, envergonhada. Mordi o lábio inferior e bati o pé no chão mais freneticamente, segurando meu cotovelo com a uma das mãos.
Eu estava tão sem graça e doida para ir embora que já ia deixando a conta para trás para o pagar. que era o meu paciente e estava ali somente para interesses profissionais, que não estava em um encontro e não tinha obrigação nenhuma de pagar a minha parte, pelo contrário, ele estava fazendo-me um favor participando do meu projeto.
Que vergonha!
— Ah, não foi nada. Relaxa – Balançou a mão e deu um sorrisinho, tentando me deixar confortável.
— Que isso, claro que foi! - Sentei-me de novo, sentindo o meu rosto quente.
Não consegui encarar novamente no intervalo de tempo que se sucedia. Não sei se era o constrangimento ou o garçom havia evaporado da face da Terra, pois parecia uma eternidade e essa conta não chegava. Desviei o meu olhar de o máximo possível e ele também não puxou assunto nenhum. O que será que ele estava pensando de mim?
Provavelmente uma retardada ou uma oportunista, e eu só queria sumir dali.
O garçom finalmente trouxe a conta e a gente rachou. Eu já ia me despedindo de ali mesmo na mesa e sair correndo outra vez, porém ele pediu que eu o esperasse e fez questão de me acompanhar até a porta do estabelecimento. Ele queria me levar até em casa, mas eu garanti que morava pertinho e não precisava. Precisei repetir veemente que aquilo não era necessário, até que ele concordasse.
— Então é isso. – Colocou a mão no bolso, abaixou a cabeça e levantou um pouco o olhar, me observando. — Vou esperar me ligar pra gente marcar a data. Espero estar preparado até lá. – Elevou o lábio direito e balançou levemente a cabeça, fazendo com que os fios escuros caíssem em seus olhos.
— Vai estar. Tchau, . Até mais – Estendi minha mão para ele, despedindo-me.
estendeu a dele, mas não parou aí, deu um leve puxão e inclinou-se em minha direção, dando um beijo em minha bochecha.
— Tchau, .
Despediu-se e, em seguida, virou-se e caminhou pela calçada, indo embora pelo lado oposto da minha casa, as mãos de volta para o bolso do seu jeans e chutando uma pedrinha pelo caminho, enquanto eu ainda estava no mesmo lugar, piscando e observando ele partir.



Capítulo 7

— Eu não acredito! – Denis se jogou na minha cama gargalhando, enquanto eu sentei na cadeira da minha escrivaninha, emburrada.
— Dá pra parar de me zoar?
— Ai, meu Deus… – exclamou, quase sem fôlego de tanto rir. — Eu estou aqui imaginando a cena de você indo embora sem pagar! , você precisa de mais prática para sair com alguém, ia evitar bastante esses micos – falou, enxugando as lágrimas nos olhos.
— Primeiramente – estendi o dedo indicador para ele –, eu não estou saindo com o . A gente se encontrou para assuntos estritamente profissionais e eu só marquei com ele lá porque você falou que não era para receber ele aqui sozinha.
Denis rolou os olhos e jogou o braço sobre a testa, ainda deitado na minha cama, seus cachos esparramados pelo lençol e os dedos batucando em sua barriga.
— Mesmo assim. Você devia ter me contado isso durante a semana.
— Para você me atazanar todos os dias? Não, obrigada.
— Seria justo, já que você faz questão de me queimar para todo ser do sexo feminino que encontra pela frente. – Fez uma careta para mim e eu respondi dando língua para ele. Super maduro nós dois. Eu sei.
— Mas isso te faz ficar com menos meninas, faz?
Ele respondeu balançando a cabeça e abrindo um sorriso travesso.
— Então pronto, não me enche – Joguei uma almofada que estava ao meu lado em sua direção, mas ele a agarrou a tempo, gargalhando, e jogou de volta para mim, pegando-me desprevenida e atingindo bem na minha cara.
— Ai, você me acertou! – ralhei com ele, passando a mão na lateral da minha cabeça que ardia.
— Você começou, agora aguenta – Sorriu e sentou-se na cama, cruzando as pernas em cima dela. — Então, que horas que o Pablo vai chegar? – Apoiou o cotovelo em sua perna e a cabeça na mão, olhando para mim com aquela cara lavada que de anjo não tinha nada.
— Pablo?
— É, o seu paciente bêbado. – Rolou os olhos com impaciência e só de observar eu sabia que Denis estava incomodado com aquilo.
— Não fala assim dele, Denis. Desse jeito parece até que o cara é um alcoólatra, foi só uma noite ruim – defendi, mesmo sem conhecer a história de .
Na verdade, eu sempre fui o tipo de gente que odiava rotular as coisas e as pessoas. Por mais que eu brincasse com , eu jamais esperaria que ele fosse apenas aquilo que eu tinha visto no primeiro dia. São por causa desses pressupostos que muitas vezes fazemos julgamentos insensatos. Todo mundo deveria receber uma segunda chance, pois todos nós somos muito mais do que demonstramos ser.
Às vezes um erro, uma fala impensada, um gesto sem querer, ou um dia ruim. Apenas uma única coisa é responsável para que as pessoas nos rotulem e façam inúmeras suposições. E o restante da nossa vida que agimos diferente? Fica no churrasco. Pois ninguém quer saber.
Uma roupa, um gosto peculiar, um cabelo diferente. Tudo é motivo para nos escandalizarmos, como se as pessoas tivessem que entrar em uma máquina de clonagem para atender apenas ao nosso gosto ou ao nosso jeito de ser.
Somos feitos de erros e acertos, gestos e palavras, ninguém é uma coisa só. Somos uma roupagem de inúmeras facetas, mil e um pedacinhos diferentes e únicos que compõe o nosso ser.
— Diz isso porque você super o conhece, né? – Denis retrucou, injuriado.
— Ele me disse e eu acreditei. Qual o seu problema com ele? – lancei a pergunta com raiva, cansada de ter meu amigo alfinetando o a todo instante.
— O problema não é ele, é ele com você! – Levantou uma mão e passou pelos seus cachos, bagunçando-os, ele sempre fazia isso quando ficava nervoso.
— Hummm, alguém está com ciúmes, hein? – gracejei, aproximando-me e cutucando-o com o dedo.
Denis praguejou, segurou a minha mão e puxou-me para perto dele, derrubando-me na cama ao seu lado. Sua mão passou para a minha cintura e começou a deslizar seu dedo freneticamente, fazendo-me cócegas sem parar. Comecei a gargalhar e gritar para ele parar, quase sem fôlego, eu era muito sensível a cócegas e Denis sabia disso. Sempre usava esse fator contra mim quando eu o provocava.
Assim que ele viu que eu estava vermelha e quase sem ar, parou, e ficamos deitados na cama, rindo iguais dois bocós, até Denis voltar a ficar sério e olhar atentamente para mim.
— Eu não confio nele, . É isso. Espero que me entenda – falou, deixando o tom de brincadeira de lado e eu só pude rolar os olhos. — Qual é? O cara aparece na sua porta, bêbado, e isso é tudo que sabemos dele, você acha mesmo que vou deixar o cara se trancar com a minha amiga no apartamento dela e ficar de boas? Nem pensar. – Suspirou e voltou a tampar os olhos, de saco cheio.
— Tudo bem, eu entendo – rendi-me. — Você tem um pouco de razão em desconfiar. Mas eu não quero que o assuste, ok? Trate-o bem, ele é meu paciente para o trabalho, pelo amor de Deus, não o espante.
Denis tirou o braço que cobria seus olhos e sorriu para mim como se tivesse ganhado uma longa e árdua batalha.
— Tá bom. Mas se eu perceber que ele é um louco psicopata, eu mesmo vou cuidar dele.
— Tá, tá, brutamontes – Balancei a mão em descaso.
A campainha tocou e Denis levantou-se rapidamente da minha cama e correu para a porta. Eu corri atrás dele gritando, mas era tarde demais, ele parou em frente à porta e abriu-a de uma vez e eu, para a minha infelicidade, não consegui frear a tempo e trombei nas costas dele, caindo de bunda no chão.
— Er… ? Você está bem? – Era que estava ali parado na porta. Ele inclinou a sua cabeça para o lado, desviando de Denis, que estava na sua frente, e estendeu a mão para que eu pudesse levantar.
O idiota do Denis cruzou os braços e mordeu o lábio para segurar a risada, que eu tinha certeza que ele estava prendendo. Só passei um rabo de olho para ele, séria o bastante para que meu amigo notasse que se ele risse, ia se dar mal.
— Estou bem. – Sacudi a minha mão e recusei a dele, levantando-me em seguida.
Bati a mão na minha bunda e depois nas minhas roupas para me ajeitar, depois disso dei um leve beliscão em Denis escondido, que praguejou baixinho, fazendo morrer a sua cara de diversão. Abri o meu melhor sorriso em direção a , que ainda estava na porta com um semblante preocupado, e o convidei para entrar.
— Tem certeza que está bem? Foi uma queda feia. – Franziu a sobrancelha e me encarou.
— Tenho sim, estou ótima. Vamos entrando logo, senão vai ficar tarde – chamei-o. — Você – apontei para Denis – pode ficar lá no meu quarto enquanto isso.
Meu amigo colocou a mão no coração, enquanto pegava uma banana no fruteiro, fazendo uma cara de ultraje.
— Vai me enclausurar lá?
— Sim, Denis, era a condição, você lembra? – falei com os dentes cerrados. Ele havia prometido que não ia atazanar.
— Mas o Pab… – começou a falar, mas eu fechei a cara para ele, então ele se corrigiu. — Quero dizer, o não se importa que eu fique, não é, amigão? – Deu uma mordida na banana e um tapa no ombro do rapaz, que parecia perdido na situação.
— Bom, na verdade eu me importo sim – falou um pouco desconcertado e Denis abriu a boca, pois não esperava essa resposta dele.
Mas o que Denis queria? Que dissesse que estava louco para contar a sua trágica história de vida na frente de mais um desconhecido? Dessa vez fui eu que tive que segurar o riso para não zoar com meu amigo.
— Então acho que estamos todos claros. Denis, vai para o meu quarto, eu deixo você usar o meu notebook para você jogar aqueles jogos idiotas.
Meu amigo abriu um sorriso para mim, fez um sinal de ok com a mão e deu uma piscada, correndo para o meu quarto.
Eu não deixava o Denis mexer no meu computador desde que o peguei no flagra acessando certos tipos de sites, que é melhor eu nem expor aqui. Mas hoje era por uma boa causa, caso contrário ele avacalharia toda a minha sessão.
Assim que e eu ficamos a sós, dei um sorriso sem graça para ele, devido toda a confusão, e convidei-o para sentar-se no pequeno sofá que eu tinha na minha humilde sala. Ele sentou-se no canto, enquanto eu pegava a papelada para poder fazer as anotações. Apanhei o gravador que a Hels havia me emprestado na segunda-feira e coloquei-o em cima da mesinha de centro.
Assim que sentei na outra ponta do sofá, se mexeu, claramente desconfortável. Confesso que estava nervosa também. Meu coração batia forte e eu nem tinha conseguido dormir de noite direito, com medo de fazer alguma cagada. Estava muito ansiosa, tinha ensaiado as perguntinhas em frente ao espelho trocentas vezes para não gaguejar na hora.
— Preciso confessar que estou bastante nervoso – falou, mexendo uma mão na outra, que estava em seu colo.
— Tente relaxar. Pense que está conversando com uma amiga, não precisa ter vergonha. – disse para ele, mas também falava para mim mesma. Pela manhã eu já tinha feito à técnica da respiração que a minha antiga psicóloga havia me ensinado e melhorei bastante. Se precisasse eu ensinaria para ele também, mas não era o caso no momento, ele só parecia desconfortável mesmo por ter que abrir a sua vida assim.
— Tudo bem. – Respirou fundo e soltou o ar.
— Quero que você entenda que aqui nessa sala você pode falar sobre tudo sem medo, . Não estou aqui para te julgar ou te recriminar, apenas para te ajudar a passar por esse momento difícil. Vão ter momentos que você vai querer desistir, pois vamos mexer com sentimentos e momentos dolorosos, mas isso é importante para o seu acompanhamento.
— Ok, obrigado. – Sua boca se curvou em um pequeno sorriso e ele olhou-me por entre os fios de cabelo que caíam em sua testa.
Tentei dar um sorriso tranquilizador para ele e apertei o play do gravador, pegando o papel e a caneta em seguida.
— Então, vamos começar. , me conte um pouco sobre o seu motivo de estar aqui. O que está acontecendo com você?
Ele fechou os olhos e levantou um pouco a cabeça em direção ao teto, parecendo pensar. Em seguida, encarou-me com seus olhos castanhos profundos, que estavam levemente marejados, e engoliu em seco.
— Bom… – Mordeu o lábio e desviou o olhar. — A Vanessa e eu namoramos desde os 15 anos de idade. As pessoas sempre diziam que a gente ia acabar junto e realmente foi o que aconteceu. Primeiro amor de infância, éramos muito amigos, na verdade… Fazíamos tudo juntos. Quando chegou a adolescência foi tão natural que eu nem mesmo sei dizer ao certo como começou. Vanessa sempre foi mais do que uma namorada para mim.
Ele deu uma pausa e eu percebi como estava perdido naquela lembrança, seus olhos haviam se tornado opacos e encaravam além de mim. Além disso, era notório que ele segurava o choro e esforçava-se para manter o tom normal da sua voz. Ele estava fazendo um esforço enorme para não quebrar na minha frente, provavelmente envergonhado pela situação que eu já havia presenciado.
— Ela era a minha metade – recomeçou. — Sabe aquela pessoa que você pode contar toda a sua vida e que sempre vai estar lá para segurar a sua mão? A Vanessa sempre foi essa pessoa. Desde criança fazíamos planos juntos, quando começamos a namorar as coisas apenas tomaram um rumo mais sério. Eu… Eu achei que íamos ficar juntos para sempre, casar e formar uma família. Jamais… – Engoliu em seco novamente e abaixou a cabeça. — Jamais esperava que teríamos um fim – terminou, não conseguindo impedir que uma lágrima caísse em seu rosto.
virou a cabeça para o lado rapidamente e fingiu coçar o olho, enquanto enxugava a lágrima. Seu pé começou a bater no chão e ele ficou brincando com os polegares enquanto isso.
— Como você se sentiu com o término, ? – indaguei-o e ele fechou os olhos com força, como se sentisse uma dor física. Depois virou seu rosto para mim e deu um sorriso amargurado.
— Eu nunca imaginei que isso ia acontecer, então dizer que fiquei surpreso seria até uma ironia. – Balançou a cabeça e riu para si mesmo. — Quando ela falou… primeiro eu achei que ela estava brincando. Não podia ser verdade. Mas ela estava séria, como nunca havia visto antes. Então, eu olhei para os seus olhos… aqueles mesmos olhos que eu contemplava noite e dia, agora… agora estavam tão sérios e ao mesmo tempo tão tristes. E eu não conseguia entender, quando eu tinha feito isso com ela e não havia percebido? – Olhou para mim aflito, como se eu tivesse uma resposta para a sua indagação.
Retribui o seu olhar sem desviar, para que soubesse que poderia continuar.
— Nós éramos perfeitos, eu fazia tudo pela Vanessa. Eu lhe dava presentes, fazia todos os favores que ela pedia, sempre fui presente, eu deixei meus planos para ficar com ela, para que a gente ficasse junto. E ela simplesmente, em um belo dia de sol, vira para mim e diz que não dava mais?! – Sua visão triste tornou-se enraivecida. parecia inconformado.
Fiz uma anotação para perguntar em um próximo encontro quais eram esses planos dele. Por hora, eu apenas o deixaria desabafar sobre o término. Um passo de cada vez.
— Todo mundo sempre nos elogiava, nós ficamos sete anos juntos, será que isso não significou nada para ela?! Sete anos não são sete dias – Ergueu as mãos, levantando um pouco o tom da sua voz, enquanto eu permanecia vidrada no que ele dizia.
No fundo, vi a porta do meu quarto abrir um pouco e Denis aparecer pela gretinha, provavelmente deve ter escutado elevar a voz e isso chamou a sua atenção. Fiz um leve movimento com a cabeça quando meu paciente abaixou a sua, aproveitando a sua distração para fazer um sinal para o meu amigo de que estava tudo bem. Denis acenou e fechou a porta novamente, e eu voltei minha atenção para o rapaz despedaçado na minha frente.
Queria dizer ao que ele estava enganado, que se o relacionamento fosse realmente perfeito, ele não teria chegado ao fim. Talvez para ele tudo estava bem, mas um relacionamento não é feito de uma pessoa só, há duas visões, duas pessoas completamente diferentes e que pensam diferentes.
Sempre há um motivo, ninguém que ama acorda da noite para o dia e resolve se separar. Mesmo que não possamos enxergar ou ter consciência no momento, algo aconteceu. É como um câncer, ele começa a atingir aos poucos e de forma assintomática. Gradativamente aquilo vai crescendo e às vezes demora-se muito para perceber, vez ou outra aparecem alguns sintomas de que algo não está bem, que por muitos são ignorados e, quando realmente aquilo toma uma proporção inimaginável, já é tarde demais.
Por isso, eu tinha certeza que a Vanessa não tinha simplesmente acordado naquele dia e resolvido terminar com o , contudo, ele não percebia. Pelo menos não ainda. E ele não estava pronto para lidar com isso na primeira consulta, porém, eu acreditava que até o final das nossas análises, eu poderia o ajudar a enxergar isso.
— Como você lidou com isso? – perguntei assim que ele terminou de fazer a sua interjeição.
Observei-o se encolher levemente, envergonhado. Foi inevitável não se lembrar da cena da bebedeira, mas a gente precisava passar por isso se quiséssemos chegar a algum lugar.
— Acho que está claro que eu não estou conseguindo aceitar bem isso. No dia a gente brigou, ficamos nervosos, eu retruquei, mas ela foi reticente. Depois… – Ele abriu a boca, mas não saiu som algum. Tentou de novo, mas, em seguida, franziu os lábios e abaixou a cabeça, pousando a sua mão na testa, os cabelos entre os seus dedos.
– chamei-o. — Nada do que disser é motivo de vergonha. Vocês tinham um relacionamento e terminaram, o sofrimento faz parte do processo, assim como superá-lo. Você está indo bem, já está acima das minhas expectativas para hoje, continue. O que aconteceu depois?
suspirou e seus olhos encheram-se de água.
— E-eu c-chorei. – Piscou e uma lágrima desceu por seu rosto. — Eu sei que é ridículo e que tem todas essas coisas que homens não devem chorar, mas não consegui, e-eu… eu a abracei e implorei para que ela não me deixasse. Naquele momento eu não liguei para dignidade, ou qualquer outra coisa, eu só queria a minha Vanessa comigo. Foi como… Foi como se me faltasse o ar, era inacreditável, eu não podia aceitar que aquilo estava acontecendo – respondeu gaguejando um pouco e naquele momento ele pareceu até esquecer a sua vergonha, pois as lágrimas rolaram por seu rosto.
Eu queria atravessar aquele espaço e abraçá-lo, se houvesse uma forma milagrosa de pegar aquela dor e jogar fora, eu faria. Odiava ver alguém sofrer, meu coração ficava apertadinho. Porém eu precisava manter uma aparência tranquila e forte, como psicóloga eu teria que lidar com depoimentos muito mais tristes e profundos, e muito mais cabulosos também. Não podia absorver todas as coisas que eu ouviria, caso contrário, eu não teria estruturas para poder ajudar os meus pacientes.
— Ela desviou dos meus braços e eu pude sentir o frio, e foi esmagador – prosseguiu. — Ela pegou as coisas dela que ficavam na minha casa e virou as costas sem nem olhar para trás. E eu tentei muito consertar seja lá o que tinha de errado, porque eu acreditava em nós, eu acreditava piamente que podíamos ficar juntos de novo. Eu não sei mais o que é viver sem ela, nós convivemos o tempo todo juntos, ela cuidou de mim quando ninguém mais o fez, ela foi meu alicerce, ela era a minha melhor amiga e eu perdi não só a minha namorada, eu perdi tudo isso no momento que ela me deixou.
Os cantos do nariz de estavam avermelhados e ele passou o dorso da mão pelos olhos para enxugá-los. Aparentava menos incomodado por eu presenciar o seu choro e fiquei feliz por aquilo, era um sinal que ele estava sentindo-se confortável em minha presença.
— Vocês conversaram depois disso? – indaguei-o.
— Eu tentei várias vezes. Ela ignorou minhas mensagens e quando atendia era pedindo para que eu parasse de incomodá-la. Ela não quis me dar outra chance, falei para a gente tentar de novo, que não podíamos jogar nossa história fora dessa maneira sem pelo menos dar outra chance. Só que ela disse que… – Engoliu em seco e tampou o rosto, falando algo abafado entre as mãos.
, desculpa, não consegui entender, poderia repetir? – Inclinei um pouco o corpo na direção dele e fiz o pedido.
Ele abaixou as mãos e virou a cabeça lentamente em minha direção, me fazendo ver seus olhos rajados em vermelho e um sofrimento cruel em sua feição.
— Ela disse que não tinha volta porque ela não me amava mais. Como foi mesmo que ela disse? – perguntou para si mesmo, dando uma risada debochada e olhando para cima. — “Eu não quero te iludir, , acabou. Aquele sentimento que eu tinha por você não existe mais.”. Foi isso, exatamente essas palavras. – Balançou a cabeça em negativa. — Como eu não percebi? A gente ia aos encontros da família, ela vivia lá em casa, a gente se beijava, nós… – parou de falar e mordeu o lábio. — Esquece. O que quero dizer é que para mim tudo estava igual, enquanto para ela tudo tinha mudado. – Colocou as mãos por sobre o rosto novamente.
, por que você bebeu aquele dia? – questionei-o.
Sabia que seria difícil para ele falar, ele se constrangia por aquela situação, mas nós precisávamos tocar naquele ponto, até porque fora justamente o motivo que o trouxera até ali.
— Eu nunca fui de beber, espero que não pense que sou um pinguço – tentou gracejar em vão. — Naquela noite um amigo em comum nosso falou que ela estaria nessa festa que aconteceu aqui no seu prédio. Eu nunca fui muito de sair, sou do tipo mais caseiro, quem gostava dessas coisas era a Vanessa. Quando fiquei sabendo que ela ia vir… foi mais forte que eu. Eu não sei nem explicar o que me passou pela cabeça, talvez tentar ser uma pessoa diferente, mais descolada, qualquer coisa que pudesse chamar a atenção dela.
— Por isso você bebeu? Para fingir ser outra pessoa? – Franzi um pouco o cenho, sem entender muito bem.
— Na verdade, não. De início eu peguei uma garrafa e bebi um pouco, nada que pudesse me tirar da realidade. Isso até o momento que eu a vi em volta de um grupo de amigos. Eu me escorei no balcão para observá-la e ela estava tão linda – falou de uma forma doce. — Parecia a minha garota da época adolescente, quando íamos para os rocks escondidos. Ela sempre gostou de dançar e ali ela parecia leve, tinha um sorriso imenso nos lábios, ela sorria para todos que estavam em volta dela.
piscou, enquanto mirava a parede, hipnotizado em meios aos seus pensamentos.
— Naquele momento eu vi a menina que eu conheci, ela estava bem sem mim, eu soube no momento que a avistei maravilhosa, enquanto eu estava no fundo do poço. Ela estava feliz. Não parecia sentir o peso do término, pelo contrário, era como se estivesse… aliviada. Sem um peso nas costas. – Passou a mão por seu cabelo, derrotado pela confissão. — Eu não fui falar com ela naquela noite. Não consegui. Peguei uma garrafa de uísque que tinha na bancada e fui para o outro lado beber. Eu só queria por uma mísera e estúpida noite esquecer aquela dor que eu estava sentindo. Eu passei dias e dias enclausurado, chorando, tentando entender o que estava acontecendo, não conseguia comer, não conseguia dormir…
Fiz outra anotação lembrando que tínhamos que corrigir isso, precisava sair, ficar entocado em casa só o auxiliaria a entrar em um processo depressivo.
— … e enquanto isso ela estava em festas, com outros amigos, sorrindo e se divertindo. Eu queria isso também, queria esquecer, qualquer coisa que apagasse aquela dor terrível que eu sentia aqui. – Tocou o coração e franziu os lábios, olhando em minha direção. — Eu sei que fui ridículo e isso não vai mais acontecer, juro. – Fez um sinal para mim com os dedos cruzados para mim e eu inevitavelmente sorri para ele.
— Fico feliz em ouvir isso, . – Olhei para o relógio e vi que havia passado já uma hora. Eu nem mesmo havia notado como o tempo passou rápido, estava imersa nos relatos de . Voltei o meu olhar para ele e observei o quanto estava esgotado.
Já estava bom por hoje, como eu disse, um passo de cada vez. havia se aberto de uma forma que eu não imaginava. Forçar mais poderia atrapalhar todo o processo, também faz parte de um bom atendimento saber a hora de parar.
— Creio que por hoje é o suficiente. Quero dizer que estou orgulhosa de você, , e gostaria de agradecer pela confiança. Não se constranja pelos momentos que tivemos aqui, como eu te disse antes, o sofrimento faz parte do ser humano, não é questão de vergonha alguma. Eu jamais vou te julgar por qualquer coisa que você disser. – assentiu e deu uma pequena fungada no nariz.
— Obrigado, . Sinceramente, eu achava que isso era uma grande perda de tempo e confesso que sempre fui um pouco preconceituoso em relação a esse negócio de psicólogo. Sempre achei que isso era um pouco coisa de doido. – Levantou um pouco o lábio superior, envergonhado. — Mas agora, não sei explicar… Não teve nada de mais, no entanto, eu me sinto um pouco mais leve por ter desabafado.
— Um dos pontos é exatamente esse. – Pisquei para ele e sorri. — Aos poucos você ficará mais à vontade e juntos nós vamos descobrir como melhorar essa situação que você está passando agora. Muitas vezes, tudo o que precisamos é desabafar e em outras precisamos de ajuda para nos descobrir e enxergar a melhor saída para nossos problemas, seja o que for, o psicólogo é importante para qualquer um, até porque, todo ser humano nessa terra passa por uma situação de conflito na vida. O profissional será apenas uma mão a mais para te ajudar nessa empreitada.
— Você é boa. – Abriu um sorriso fraco, a tensão anterior se dissipando aos poucos.
— Quero ser – respondi, feliz com o elogio.
Peguei um caderninho que tinha deixado em cima da mesinha e estendi para ele.
— Tome, esse vai ser seu exercício diário. – Entreguei para ele. — Não sei se gosta de escrever ou não, por isso não vou colocar um limite grande. Pode ser até apenas uma linha, o importante e o que eu quero é que você todos os dias diga algo sobre como se sente. Toda vez que vier um sentimento negativo, você pode desabafar por aqui – falei dando um toque no caderno.
— Vou tentar. – Pegou o caderno das minhas mãos e colocou sobre o seu colo. — Obrigado.
— Ah, outra coisa, a próxima sessão será daqui uma semana e depois passará para 15 em 15 dias. Mas se você quiser adiantar ou ver alguma necessidade, sinta-se livre também. Organizei assim para que a gente possa fazer um período de três meses e ter alguns intervalos. Lembrando de novo, podemos marcar alguma consulta nesse espaço de tempo sem problema algum, tudo bem?
— Ok.
— Então estamos encerrados. – Alarguei o meu sorriso para ele, satisfeita, e nos levantamos.
— Obrigado por me ouvir, , e desculpa qualquer coisa – pediu, enquanto caminhava até a porta.
— Já te disse para parar com isso – ralhei, fingindo um mau humor e ele deu aquele sorriso pequeno de sempre.
— Desculpa, é inevitável.
Quando chegamos à porta, lembrei-me que precisava dizer-lhe uma última coisa.
— Para a nossa próxima sessão eu quero que você pense um pouco sobre seu relacionamento com a Vanessa. Use desses dias para meditar como vocês eram, mas não só as partes boas e maravilhosas, pense naqueles momentos não tão legais. Eu sei que eles existem, nenhum relacionamento vive de flor o tempo todo, ainda mais durante sete anos. Tenta refletir nele do começo ao fim e traga essas reflexões, ok?
— Vou fazer o possível – respondeu, encolhendo os ombros.
— Tchau, . E eu que agradeço por ter me dado essa chance.
— Eu acredito que no fim eu serei o único a beijar os seus pés. Estou ficando com toda a parte boa, você é que sofre tendo que ouvir os meus lamentos – gracejou, escondendo a tristeza e piscou os seus cílios longos, o que eu notava que ele fazia com mais frequência quando estava sem graça.
— Vai por mim, não é incomodo algum, afinal é a profissão que escolhi e eu amo isso.
— Estranha – brincou e colocou a mão no bolso, escorando no batente da porta.
Eu parecia uma miniatura de pessoa na frente dele, era alto e, como estava um pouco magro, aparentava ainda maior. Seus cabelos estavam desgrenhados de tanto que ele havia passado a mão molhada de lágrimas durante a sessão, porém não estava feio, depois que eu havia reparado em , dificilmente eu o acharia feio novamente.
— Então é isso… Vou lá. - Desencostou e tirou uma das mãos do bolso para acenar para mim.
— Até a nossa próxima consulta – respondi e inclinou-se para dar um beijo em minha bochecha, sorriu e virou-se para ir embora.
Continuei a observá-lo partir e dessa vez ele não foi embora direto. virou um pouco a cabeça, me fitando ainda parada na porta. Seu lábio curvou-se um pouco para cima e eu repeti o movimento em resposta. Em seguida ele voltou a olhar para frente e continuou a caminhar, enquanto eu sentia uma estranha sensação de satisfação e euforia pelo sucesso da minha primeira consulta.



Capítulo 8

Após um restante de semana de muitas reflexões e anotações, a segunda-feira chegou voando. Depois que havia saído, eu expulsei Denis também, pois queria aproveitar que estava tudo fresquinho na minha cabeça para começar a redigir o meu trabalho.
Agora estávamos na aula do Sr. Benecke, quase no final do debate de um artigo cabuloso que ele havia passado em inglês para a gente discutir. Apesar de parecer muito carrasco, o professor deixava a gente a vontade para falar o que pensávamos, estando certos ou não. Quando falávamos algo que não estava na linha correta de raciocínio, ele não nos reprimia, ao contrário disso, ele nos fazia mais perguntas para que nós mesmos pensássemos e fôssemos formulando novas respostas até chegar ao ponto crucial do estudo.
Na semana passada, havíamos também entregue os dados dos nossos pacientes e o Dr. Benecke havia pedido que, no prazo máximo de duas semanas, sempre levássemos o relatório parcial para sala, a fim de que ele ficasse a par da situação, pudesse tirar dúvidas ou fazer observações. E era uma forma dele saber também que realmente estávamos fazendo o projeto, ao invés de deixarmos para a última hora.
Quase no final da aula – ainda restavam uns minutos –, o professor liberou os alunos, com exceção de mim, já que ele pediu que o esperasse um instante. Tremi com medo mesmo sem saber o que ele queria falar comigo. Existe coisa mais aterrorizante do que alguém chegar para você e dizer “Precisamos conversar”?
— É o seu nome, não é? – perguntou sem olhar para mim, seus olhos fitando o papel em sua mão apenas.
— Sim – respondi em um fiapo de voz.
— Gostei do seu posicionamento no debate hoje, a senhorita articula bem. Como anda o seu trabalho semestral?
— Está bem, eu acho – respondi, insegura. — Semana passada eu fiz a primeira sessão, o paciente participou bem, creio que teremos bastante progresso.
— Isso é bom. – Continuou a folhear os papéis na sua mesa e aquilo já estava me irritando.
Para que ele havia me chamado se não podia nem me olhar nos olhos e me dar um pingo de atenção?
— Já tem algo escrito para mim? – questionou-me.
— Está quase pronto, só preciso fazer alguns acertos no relatório.
— Isso é bom – respondeu e eu rolei os olhos, ele não estava vendo mesmo.
— Então… já vou, professor. – Remexi a alça da bolsa no meu ombro e movi o peso do meu corpo de uma perna para outra.
— Ainda não. – Ergueu a mão em um sinal de pare e franziu aquele imenso nariz pontiagudo dele.
Acho que passei mais de dez minutos parada de frente para ele, enquanto eu via seus olhos correrem pelas folhas sobre a mesa.
Eu já estava no meu pico de irritação, mas eu jamais que ia extravasar para cima do pior professor da faculdade.
Meu nariz começou a coçar por causa do ar-condicionado gelado da sala e eu espirrei, chamando a atenção do Sr. Benecke e sendo o único instante que ele olhou de verdade para mim.
— Você ainda está aqui? – Enrugou a sua testa e eu tive vontade de gritar.
— Você pediu que eu esperasse – resmunguei, fechando minha mão em punho com força.
— Ah, é verdade. – Inclinou o seu corpo para baixo, até a sua maleta no chão, e tirou de lá um livro, inclinando-o em minha direção. — Leia esse livro, é de um psiquiatra que conta a história de dez pacientes com casos clínicos complexos como problemas de solidão, depressão, luto crônico, compulsão sexual e outros. É muito interessante.
Um lado meu queria responder a ele perguntando por que não havia me entregado o livro logo em vez de me deixar dez minutos esperando, o outro ficou grato pelo auxílio, então, para o meu próprio bem, preferi fazer a linha simpática e o agradecer.
— Muito obrigada, Sr. Benecke, vou lê-lo. – Sorri e passei meus olhos pela capa do livro, que se chamava Psicologia do Amor do Irvin D. Yalom.
Meu professor não respondeu nada, somente abaixou a cabeça, pegou um lápis e começou a rabiscar os papéis que ele tinha em mãos e eu decidi que era hora de ir embora. Coloquei o livro dentro da minha bolsa e virei-me para sair, louca para ficar longe do gelo que era aquela sala de aula e ir para o sol fresco do lado de fora.
– chamou-me, antes que eu tivesse dado um passo, e me olhou por cima dos cílios, com sua cabeça um pouco abaixada para a mesa ainda. — Pacientes tendem a criar um vínculo emocional com os seus terapeutas. Você verá um caso clássico nesse livro. Tenha cuidado e mantenha sempre uma atitude profissional. Não deixe que o seu paciente transfira a atenção dele para você como forma de refúgio da sua própria dor. Entendido?
Balancei a cabeça e engoli em seco pela forma dura que ele havia soado. Será que ele achava que eu ia me envolver com o meu paciente?
Por Deus, eu não era formada, mas era uma profissional.
Nunca teria a mínima possibilidade de rolar nem mesmo um lance entre nós dois. Primeiro porque eu estava muito despreocupada da minha vida amorosa para ter meu coração batendo logo pela pessoa mais imprópria da face da Terra. Outra que, até onde o mostrava, por enquanto, ele era completamente apaixonado pela ex. As sessões ajudariam a lidar melhor com isso, mas não era garantia de esquecimento nenhum.
Ainda assim, fiquei perturbada com o pensamento. Foi difícil até concentrar no restante das aulas, fiquei aérea e preocupada.
Por que ele tinha que encher a minha cabeça de minhoca? Agora eu ia ficar grilada com isso.
As aulas da manhã passaram e eu me condenei por não ter conseguido prestar atenção direito. Até a Hellen percebeu que eu não estava no melhor dia e correu logo para me perguntar o que era, assim que a aula terminou.
— Passei o final de semana todo estudando o artigo que o professor Benecke passou e escrevendo o projeto, não descansei muito bem, é só isso.
Vi um leve enrugar da testa de Hellen, no entanto ela logo suavizou e mudou a sua expressão para um sorriso.
— Tudo bem, vamos almoçar porque saco vazio não para em pé e o dia hoje é longo.
Passou o seu braço pelo meu, me arrastou até o pequeno restaurante que ficava perto do prédio em que estávamos e fomos almoçar. Ao fim, resolvemos escolher algum banquinho – de preferência debaixo de alguma árvore – para descansar, já que não teríamos a próxima aula.
— O Denis vai ficar bravo que você não o esperou para comer – Hellen observou, jogando-se no banco de concreto e colocando as suas coisas no chão.
— E você acha mesmo que ele está se lembrando de mim nesse momento? – Rolei os olhos e ri. — Eu o vi saindo com aquela caloura do primeiro período. Não quero nem imaginar o que eles devem estar fazendo agora – completei, fechando os olhos e apreciando os momentos de descanso pós-almoço.
Ao abri-los, franzi o cenho ao notar um cara muito conhecido saindo do prédio da Assistência Social.
— Merda! – ralhei e Hellen abriu os seus olhos, assustada.
— O que foi? – Levantou o seu corpo, sentando-se no banco.
— Não pergunta nada, só preciso que você entre na minha frente e que a gente saia de fininho – respondi, recolhendo a minha bolsa vagarosamente para não chamar a atenção.
, eu não tô entendendo nada – resmungou, mas fez o que eu disse.
Recolheu as suas coisas que estavam espalhadas perto do banco e nos colocamos em pé para sair.
Ao virar o corpo, percebi que havia parado poucos metros de onde tinha saído e tinha colocado a mão por sobre os olhos, tentando enxergar contra o sol em minha direção.
Congelei e arregalei meus olhos e, quando ele percebeu que era eu, levantou a mão para acenar, contudo, eu fui mais rápida e me virei, antes que ele completasse o ato, fingindo que não havia o visto.
— Eu acho que ouvi alguém te chamar – minha amiga comentou, enquanto começávamos a caminhar na direção contrária a de .
— Só ignora.
— Eu acho que ele está te seguindo – sussurrou, virando a sua cabeça para trás.
— Não olha! – ralhei, sem fazer o mesmo movimento que ela. Precisava fingir que não tinha o visto e nem o escutado.
, larga de ser louca, o cara está correndo vindo para cá e te chamando. – Hellen freou os pés e puxou o meu braço, obrigando-me a parar.
Eu queria torcer o pescoço dela naquele momento, mas tive que manter a calma, pois agora não tinha mais jeito. estava já a poucos passos e tinha um sorriso no rosto, enquanto acenava com a mão para mim.
O problema não era ele, se o Dr. Benecke não tivesse falado nada, eu não teria ficado tão grilada, mas com as palavras recentes na minha cabeça, eu não tinha tido tempo para digerir e me preparar psicologicamente para encará-lo sem pensar que ele poderia acabar apaixonado por mim.
— Ei, , que coincidência. – estendeu a mão para mim e eu retribuí, só tomei um pequeno susto quando ele me puxou para um beijo no rosto.
Eu ainda precisava acostumar que ele sempre cumprimentava e se despedia assim, sem exceções.
— Oi, . – Sorri em cumprimento. — Essa é a minha amiga Hellen – apresentei e ele fez o mesmo gesto com ela.
A Hels abriu um sorriso do tamanho do mundo em sua direção, deixando um beijo no rosto dele um pouco demorado demais para quem nunca nem tinha o visto. Não que tivesse passado de dois segundos, mas eu já tinha achado além da conta.
— É um prazer, – falou com a voz mais aveludada que conseguiu.
Meu paciente enfiou uma mão no bolso e deu um pequeno sorrisinho para ela, suas maçãs do rosto tornando-se levemente avermelhadas, e eu fui obrigada a rolar os olhos quando vi a minha amiga encará-lo do jeito mais felino possível.
— Então, o que te traz aqui? – resolvi puxar o assunto, antes que minha amiga falasse qualquer coisa que pudesse deixar constrangido. — Faz assistência?
— Ah, não. Já sou formado, sou de exatas, esqueceu? – Balançou a mão, gesticulando, e sorriu. — Análise de Sistemas.
— Ah, que legal! – Hellen exclamou e eu balancei a cabeça concordando.
— Estou fazendo um trabalho conjunto com um grupo de pesquisa do pessoal da Assistência Social. Um aplicativo, para ser mais exato.
— Nossa, isso é bem legal, !
— É sim! Parece que vamos nos esbarrar por aí às vezes, isso é, quando você não estiver correndo de mim – gracejou, mas as suas próprias maçãs ficaram ainda mais vermelhas na hora, e provavelmente as minhas também.
Hellen mordeu o lábio, segurando para não rir da situação, e eu queria enfiar a minha cara dentro de um buraco de tanta vergonha. Eu pensei que tinha sido sutil, mas pelo visto não. Abri a boca para respondê-lo, mas na hora nada me veio à cabeça. Gaguejei um pouco até balançar a cabeça, piscar, desviar o seu olhar para o chão e depois para mim.
— Desculpa, não era a minha intenção te constranger, eu só não entendi mesmo o motivo para tudo isso. Eu só não fui embora e acabei vindo até aqui porque pensei que talvez você tivesse desistido daquele projeto – falou, sem graça.
— Não, não, não! – Balancei as mãos e a cabeça ao mesmo tempo. — Claro que não. Você tem um compromisso comigo até o final do projeto, mocinho, não adianta tentar fugir agora – tratei de desfazer o mal entendido.
— Claro, não cogitei fazer isso. Pelo menos não depois que tivemos nossa primeira consulta. – Arqueou levemente o lábio, mas percebi que estava reflexivo, a sua frase aparentava muito mais do que queria transpassar, e eu sabia que era um sinal que estava refletindo nas coisas que eu havia pedido para ele.
— Ótimo – respondi contente.
— Mas isso não responde o motivo dela ter fugido de você, não é, ? – Hellen se intrometeu e eu não consegui conter o olhar furioso que dei na direção daquela aprendiz de Denis.
Isso que dá o convívio. Eu me livrava do meu melhor amigo e acabava com uma cópia perfeita dele, mas na versão feminina.
Respirei fundo e virei-me para a minha amiga, contando até dez mentalmente.
— O é o meu paciente no projeto do Professor Benecke. Já tivemos a primeira sessão semana passada – expliquei, mesmo que ela talvez já tivesse sacado isso por causa da nossa conversa. — Não era a minha intenção fugir, . Eu só quis colocar um espaço entre nós como psicóloga e paciente, para que não haja confusão das coisas. O local para tratarmos as coisas será sempre no meu consultório. – Preferi ser direta e falar a verdade, com exceção da parte da paixão que o Dr. Benecke tinha falado. Aquilo era exagero.
— Você quer dizer na sua casa, né? – ele brincou, achando graça.
— É, minha casa é meu consultório. – Dei de ombros.
— Então quer dizer que por causa do seu projeto nós somos proibidos de falar ‘oi’ um para o outro na rua e devemos nos tratar como dois estranhos? – Arqueou a sobrancelha e pude ouvir a minha amiga falando ‘ouch’ atrás de mim.
Senti-me meio envergonhada da minha atitude infantil, mas confesso que na hora eu estava com a cabeça muito cheia para lidar com ele. Eu queria fazer tudo direitinho e as palavras do professor ainda estavam fresquinhas na minha cabeça. Falando dessa forma agora, realmente havia sido muito estúpido e tempestuoso da minha parte.
— Eu sinto muito, . Claro que a gente pode se falar, foi um exagero um tanto enorme o que eu fiz. Meu professor havia acabado de me instruir quanto à relação que devemos ter com os pacientes e eu acabei agindo no impulso por zelo. Não era problema algum com você. A culpa é minha e das preocupações loucas da minha cabeça, me desculpe – expliquei, realmente sentida.
Eu era conhecida por falar a verdade ou o que eu pensava, não faria diferente agora. Claro que a gente não deve sair contando as coisas de forma nua e crua. Verdade sem amor e carinho, mata. A gente deve pincelar e transparecer da melhor forma que conseguir, mas sem deixar de ser sincero.
Creio que não esperava uma resposta tão franca, pois seus olhos estavam levemente arregalados e olhava sem piscar em minha direção.
— Gosto de você – soltou, fazendo que até Hellen engasgasse na hora.
Quando percebeu o que tinha dito, seus olhos se arregalaram ainda mais e ele balançou a cabeça, desconcertado.
— Gosto do seu jeito, não de você – tentou consertar, gaguejando um pouco, depois praguejou e colocou a mão na testa. — Não que você não seja uma pessoa legal, só… merda! – Respirou fundo, mentalizou por alguns segundo e soltou o ar, voltando a olhar para mim. — O que eu queria dizer é que gosto do seu jeito honesto de ser. Se todo mundo fosse assim, evitaríamos muitas confusões durante a vida. Um dos muitos problemas das pessoas é ir acumulando as coisas até a hora que elas explodem e causam um dano irreversível – explicou e eu sabia que ele estava falando dele e da Vanessa.
— Eu entendi – aliviei-me e sorri para tranquilizá-lo. — Realmente, a vida não é complicada, nós é que a complicamos.
acenou com a cabeça e o silêncio se fez presente. Querendo ou não, os constrangimentos que passamos haviam pesado um pouco ambiente. Eu com a minha atitude infantil e com seu mau jeito com as palavras. Ambos estávamos constrangidos e agora não conduzíamos conversa nenhuma. E para completar, Hellen, que era ótima para bater papo, parecia muito mais preocupada com um crush que ela conversava no celular do que ajudar a gente aqui.
— Vou embora, só tinha que fazer algumas coisas aqui mesmo. Foi bom te ver, . – optou por despedir-se, salvando a nós dois daquela situação embaraçosa.
— Te ligo para combinarmos a próxima sessão semana que vem.
— Vou esperar – respondeu e inclinou-se para me dar um abraço e um beijo no rosto.
Acho que eu nunca me acostumaria com isso.
virou-se para ir embora e eu o observei partir, até ser interrompida pela gargalhada da minha amiga, que agora guardava o celular no bolso e olhava para mim com um olhar superestranho.
Ééé, amiga, boa sorte com o seu paciente! – Inclinou-se para mim e me deu um beijo no rosto também, imitando e virando-se em seguida com um sorriso nos lábios.


Capítulo 9

O cheiro do queimado percorreu por todo o apartamento. Saí do banheiro com uma toalha enrolada no cabelo e uma mão tapando o meu nariz daquele fedor.
— DENIS! – gritei, batendo o pé até a cozinha.
— OI! – respondeu no mesmo tom, enquanto jogava a frigideira dentro da pia.
— O que você fez?! – Encostei perto dele e vi a tentativa frustrada de Denis cozinhar para nós. — Você queria colocar fogo na minha casa?!
— Não deveria ser tão difícil! – ralhou, coçando a nuca e depois foi até a janela e abriu-a, para que a fumaça se dissipasse e não morrêssemos asfixiados.
— Denis, era só um ovo frito! Qual a dificuldade nisso?
— Eu sou de humanas, tá legal? Tem toda uma logística matemática em relação à quantidade de óleo, tempo para esquentar a panela e de fritar um ovo. Você erra alguma dessas coisinhas e BUM, sai tudo errado – explicou gesticulando muito, e eu fui obrigada a rir, porque por incrível que pareça, eu sabia que Denis estava falando sério.
Fiquei com pena do meu amigo, ele parecia completamente frustrado enquanto colocava as mãos na cintura e olhava para a frigideira e o torrão preto dentro dela.
Digam-me como eu poderia ficar com raiva desse menino?
— Senta lá no sofá, deixa que eu cuido disso aqui, vai – falei carinhosamente. Em resposta, ele me deu um abraço e um beijo e correu saltitando.
Balancei a cabeça e comecei a limpar a bagunça que Denis havia feito. A fumaça ainda lacrimejava os meus olhos e eu tinha uma vaga sensação que o banho que tomei agora há pouco havia sido em vão, já que, provavelmente, eu devia estar com cheiro de defumado. Só esperava que meu cabelo também não estivesse, eu tinha acabado de hidratar os meus cachos e isso levava tempo e dedicação.
— Você sabe que agora vamos ter que comer miojo, não é? – Enxuguei minhas mãos e virei-me para olhá-lo, vendo-o esparramado no sofá, jogando alguma coisa no celular.
— Galinha caipira? – perguntou, referindo-se ao sabor do macarrão instantâneo e eu balancei a cabeça assentindo. — Comida mais nutritiva do universo. – Sorriu para mim e piscou, dando o seu aval.
Não que tivesse outra opção. Era final do mês e o dinheiro da bolsa só ia entrar dia 1º, ou seja, pobreza mode on.
— Só acho que já que você tá filando boia aqui direto, o mínimo que tinha que me fazer era uma feira.
— Você sabe que se tivesse como, eu faria, né chuchu? – Jogou-me um beijinho e eu rolei os olhos com o apelido horroroso. — Meus pais cortaram a minha grana e enquanto isso eu preciso de você!
— Por que não vai comer com alguma das meninas que você sai? Tenho certeza que elas iam adorar te oferecer um jantar bem melhor do que ovo ou miojo.
— E é justamente por isso que eu não vou. Para mim seria só uma refeição, uma ficada e fim, já para elas... Não quero iludir ninguém. Sou honesto! – Pousou a mão no peito e deixou transparecer a sua cara mais lavada do mundo.
— Aí por isso eu preciso te sustentar, né?! Tenho dinheiro nem pra mim – ralhei, enquanto ajeitava as coisas.
— Poxa, ssinha, mas eu trouxe os ovos hoje.
— E você os queimou – completei e ele simulou uma facada no coração, jogando-se no sofá novamente.
Eu não me importava que Denis fosse à minha casa comer, mas eu não podia perder a oportunidade de provocá-lo sobre isso.
Peguei dois miojos, mas não utilizei o pozinho que vinha dentro. Apanhei as coisas que eu tinha em casa, sal, temperos e queijo, e preparei o macarrão. Modéstia parte, parecia que a minha gororoba tinha ficado boa. O cheiro pelo menos era muito atrativo.
Denis arrumou a mesa para gente, como era o nosso acordo – já que eu não era nenhum serviçal para ficar só o servindo –, e depois fomos comer. Ao terminar ele lavou as vasilhas, após eu me recusar veemente, já que eu tinha limpado a bagunça que ele fez antes. Enquanto isso, fui pentear meus cabelos e me ajeitar.
— Denis, dessa vez você pode ir. Acho que já ficou mais do que claro que o é uma pessoa boa e normal – falei, depois de me arrumar.
Hoje era o dia da minha segunda consulta com e meu amigo teimou em permanecer novamente na minha casa enquanto isso.
— Mas eu tô confortável aqui! – reclamou, sentando-se no sofá e jogando os seus pés para cima dele.
— Então… Tá à vontade demais. Eu quero um pouco de privacidade e não acho certo você ficar de butuca tentando escutar o que está dizendo. A sessão deve ser sigilosa! – tentei convencê-lo, puxando as suas pernas para fora do sofá.
— Ai.
— Ai nada. Vamos, Denis, ele já deve estar chegando.
— Credo, ingrata, já está me trocando?! – Pousou a mão no peito e fingiu uma cara triste. — Eu vou, mas depois você que não venha implorar para eu vir, ok? – Levantou-se do sofá e balançou a mão em desdenho.
Como se eu que implorasse ele para vir, né? Foi só UMA vez e ele jogaria isso sempre na minha cara.
Ele pegou a sua carteira de cima da mesa e colocou-a no bolso, depois foi até a porta e abriu-a, tomando um susto ao encontrar parado ali com a mão fechada em punho e erguida, pronto para bater.
— Sensitivo eu, hein? – Denis arqueou duas vezes a sobrancelha e piscou para , dando espaço para ele entrar.
— An? – meu paciente indagou, dando um passo para frente e entrando na minha casa.
— Eu sou sensitivo, abri a porta na hora que você ia bater. Era isso que você ia fazer, não é? Não me diga que é algum tarado e estava aí espionando do lado de fora, pelo amor de Deus, cara!
— Ai, meu Deus – sussurrei e caminhei na direção deles, antes que o Pimentinha afugentasse o .
— Não, eu ia chamar agora! – respondeu, franzindo o cenho. — A marcou comigo, cheguei só cinco minutos mais cedo – completou, olhando para o relógio em seu braço.
— O Denis está só zoando com a sua cara, . Não pega pilha se não ele não vai parar de fazer isso para o resto da vida – orientei-o, antes que fosse tarde demais. — Quanto a você – olhei para meu amigo –, já pode ir embora. Beijo. – Dei um leve empurrãozinho em seu braço, forçando-o a sair.
Denis emburrou o rosto e caminhou para fora do meu apartamento, gritando um “tchau, ingrata” antes de ir.
Balancei a cabeça, sorrindo, e voltei o meu olhar para , que não estava entendendo nada da situação.
— Só ignora. Boa tarde, , pode se sentar. – Apontei o sofá para ele, enquanto eu fechava a porta. — Quer alguma coisa? Eu não tenho muita coisa para oferecer, mas pelo menos água aqui tem. – Sorri e ele balançou a cabeça negando.
Pedi para ele esperar um pouco para que eu pudesse pegar as coisas no meu quarto e, enquanto eu voltava, pude observá-lo melhor, notando que hoje ele parecia um pouco mais relaxado.
usava um jeans escuro e uma camiseta branca com um leve V na gola. Suas olheiras já não eram tão proeminentes como da primeira vez que nos vimos, porém elas ainda estavam lá. Os cabelos castanhos escuros ainda eram compridos demais e caíam em seus olhos, fato que o levava a ficar toda hora mexendo neles. Definitivamente estava mais apresentável, no entanto, não parecia ter sequer olhado no espelho ao sair ou reparado em alguma coisa, já que a camiseta estava amassada.
— Então, o que vamos fazer hoje? – perguntou, remexendo uma mão na outra, mas seus olhos tinham uma pitada de expectativa.
Sentei-me no sofá, coloquei as coisas em cima da mesa e sorri para ele, deixando-o mais confortável.
— Animado? – arqueei a sobrancelha e segurei o riso.
— Confesso que um pouco. A conversa que tivemos me fez ficar pensando em um bocado de coisas durante esses dias. Peguei-me por alguns momentos querendo falar algo, reclamar ou só desabafar, mas não tinha ninguém.
— Usou o caderninho que te dei?
— Er… Mais ou menos. – Desviou um pouco o olhar e mordeu a bochecha interna, estava bem clara a mentira, estampada na cara dele.
— É, Sr. , precisa fazer o dever de casa direitinho – brinquei.
— Eu tentei, juro! – Cruzou os dedos para mim em sinal e beijou-os. — Mas eu sou da computação, meu negócio é digitar.
— Ai, ai – suspirei. — Esse mundo está perdido. Quer que eu mude para um diário virtual? – gracejei.
— No início eu até quis, mas... Não sei explicar, foi diferente quando eu escrevi com caneta e papel. Saiu uns garranchos e talvez nem mesmo eu entenda, mas sei lá, não é a mesma sensação de quando digito. É mais cansativo, óbvio, mas foi bom.
Sorri, entendendo perfeitamente bem o que ele queria dizer. Eu sentia a mesma coisa. Era como se escrever à mão tornasse tudo mais pessoal e mais próximo da realidade. Fiquei feliz por ele ter percebido aquilo, ainda mais tratando-se de alguém da área da computação.
— Isso é ótimo, . E aproveito para dizer que hoje você me parece um pouco melhor. No nosso último encontro a vibe estava mais triste e pesada.
— Acho que nos últimos dias o sentimento foi outro, ando meio chateado. – Tentou sorrir, mas eu o vi enrugar a testa, além de encolher os ombros como sempre fazia quando me confessava algo.
podia estar mais à vontade, mas ainda não conversava comigo de boa vontade. Ele até queria, no entanto, ainda continuava constrangido, o que era normal, estávamos ainda no começo do tratamento.
— Pode me explicar melhor isso?
— Lembra que você me pediu para pensar durante esses dias sobre o meu relacionamento com a Vanessa? – recordou-me e eu acenei com a cabeça, concordando. — Então… Você falou para que eu lembrasse não só o que era bom, mas também das fases ruins. De início, foi um pouco difícil, mas ao passar dos dias eu relembrei muita coisa que acho que tinha ignorado, como por exemplo, as nossas discussões.
— Vocês brigavam muito?
— Na verdade, recentemente não havia briga nenhuma. Mas houve uma época que estava quase que insustentável – respondeu e semicerrou os olhos, pensativo.
— Me conte um pouco sobre o que houve nessa época, – pedi, atenta a todos os detalhes que ele dizia e a forma como ele se expressava.
— Não foi sempre assim, sabe? Eu te disse da outra vez e não menti, Vanessa e eu éramos perfeitos juntos. No início do relacionamento era mil maravilhas. Minha namorada… – pigarreou a garganta. — Digo, ex-namorada, tinha uma energia contagiante. Não havia um ser que não fosse conquistado pelo sorriso dela. Ela sempre foi àquela pessoa que gostava de sair, recebia mil convites para festas e dançava até o dia raiar, enquanto eu, não que eu fosse enclausurado, mas preferia outros tipos de saídas, além de não ser o melhor dançarino do planeta.
— O nerd e a popular? – brinquei e ele voltou a olhar para mim com aquele seu pequeno sorriso.
— Não exatamente. – Balançou a cabeça rindo. — Ela era uma nerd também e eu, apesar de não curtir as sociais, sempre tive muitos amigos na época da escola. Acho que éramos um pouquinho de cada coisa e não um rótulo, afinal.
— Isso é bom, . O mundo tende a colocar placas em nós, como se tivéssemos que ser isso ou aquilo, mas podemos ser tudo, desde que seja o que queiramos.
— Sim – concordou e continuou a falar. — Quando começamos a namorar, eu passei a ir a todas essas festas que ela ia, não me importava, eu só queria estar com ela, independentemente de onde fosse. Da mesma forma a Vanessa, ela me acompanhava nas minhas aventuras mais loucas e a gente se completava assim. No entanto, chega uma hora que isso cansa. Eu não curtia mais balada ou ter que ficar ouvindo as amigas dela falando de boy magia, maquiagem e roupas, vinte e quatro horas sem cessar. A gente envelhece e o pique acaba, sabe? Aí começaram as primeiras discussões, porque a Vanessa queria ir e eu não, e ela dizia que era muito chato ir sozinha porque os caras ficavam em cima.
— O que ela dizia para você quando ficavam nesse conflito?
— Ela falava que eu não era mais o mesmo do início do relacionamento. Ela sempre jogava isso na minha cara.
— Nós nunca somos os mesmos do início – refleti. — Principalmente porque quando começamos a namorar alguém, há uma euforia e um desejo de agradar ao seu parceiro. Os defeitos são ignorados, você passa a fazer coisas que não faria e a querer demonstrar todo o momento o quanto essa pessoa é especial. Com o tempo essa fase passa, você passa a enxergar de forma mais sólida o outro, as manifestações românticas diminuem e você passa a ceder menos. Isso tudo é normal acontecer.
— Exatamente! – se empolgou e colocou uma das pernas em cima do sofá, voltando o seu corpo para mim. — E a Vanessa não entendia isso. Ela queria que eu continuasse saindo para os lugares que ela gostava, falava que eu não me declarava mais, que eu tinha esfriado.
— E você tinha? – indaguei-o.
— Claro que não! Se eu tivesse, não tinha passado a vergonha que passei e não estava aqui precisando de terapia – defendeu-se, como se tivesse levado um soco no estômago.
, estar aqui não quer dizer que você era um namorado perfeito – falei as palavras com calma e de forma delicada para não feri-lo. — Mas também não quer dizer que você não era um bom namorado. Perfeito não, porque isso não existe. Somos seres humanos regados de erros. Nós falhamos uns com os outros o tempo todo e isso reflete em nossos relacionamentos.
— Mas eu amava a Vanessa! Aliás, amo! Só porque eu não fazia tudo o que ela queria não quer dizer que eu passei a não gostar dela – armou-se.
Era claro que para ele, nesse momento, era bem mais fácil não enxergar a própria culpa na relação, agora ele estava na fase de transferi-la para a ex-namorada, tentava desviar o sentimento que possuía para a raiva. Uma tática do nosso organismo para aplacar a dor, quanto mais ódio, mais fácil esmagar o sentimento que regia o relacionamento no início.
Ele ainda não tinha exposto isso, eu ainda não conhecia praticamente nada do , mas eu tentaria fazê-lo enxergar além da garota, para que ele pudesse ver a si próprio e poder entender o que aconteceu. O que confesso, eu estava muito curiosa para descobrir.
— Eu tenho plena certeza que você gosta dela, . Independente de namorarem ou não, pelo que me diz, ela sempre foi uma pessoa especial para você.
— Sim, ela era a minha melhor amiga.
— Deixa eu te perguntar algo… Quem mais cedia no relacionamento de vocês? Pode pensar para responder se quiser, não diga no súbito.
franziu o cenho, abaixou a cabeça e ponderou por alguns segundos, antes de falar.
— De início os dois. Ambos fazíamos o que o outro gostava. Depois que falei pra ela que não queria mais, a Vanessa empacou, dizendo que não ia me agradar também, mas no final, sempre acabava topando porque ela não gostava de ficar em casa. Dessa forma, ela acabava indo comigo para praia, pedalar ou escalar, pois pelo menos era uma forma dela passear.
— Isso era o pivô das brigas que aconteciam?
— Em partes. Nós tínhamos jeitos muito diferentes… – Mordeu a bochecha, enquanto pensava para falar.
— Como o quê, por exemplo?
— Eu sempre fui mais passivo, enquanto a Vanessa parecia ligada no 220V. Ela falava alto quando estava nervosa, enquanto dificilmente eu levantava a minha voz para nada. Enquanto ela era super ligada à família e todos esses programas que fazem juntos, eu era o cara que queria ficar quietinho na minha casa com pipoca e netflix, sabe? No final das contas, aquilo que a gente achou que se completava, na verdade foi o que começou a nos separar.
A famosa frase: os opostos se atraem. Pode até ser verdade, mas se o casal não encontrasse o equilíbrio ou um fator em comum, dificilmente seria possível dar certo.
— É o que eu disse, as diferenças existem desde sempre, mas no início do relacionamento as pessoas as ignoram. Quando entra uma fase ruim, é como se elas pipocassem na sua frente e você só pudesse enxergá-las. Em tempos bons, nós enaltecemos a qualidade do outro, mas quando vem à tempestade, somente os defeitos são expostos. Infelizmente o ser humano é assim e é um esforço diário tentar controlar essa nossa forma de ver o outro.
— É, talvez a Vanessa tenha visto só o que era ruim do nosso relacionamento e com isso o amor foi morrendo – suspirou, passando a mão no rosto.
Novamente havia uma transferência da culpa para o outro, o que era normal acontecer, mas não correto.
— Um relacionamento depende sempre de dois, . Dois que erram e dois que acertam. Ele é feito de inúmeros momentos, alguns ruins e outros muito bons. Se não fosse assim, não teria durado todo esse tempo.
— Se ela vê isso, por que terminou, então? Por que ela deixou de me amar? – Seu semblante voltou a cair e seus olhos escureceram-se em dor, enquanto lutava para tentar compreender.
— Creio que não podemos responder por ela, . Só ela sabe o que aconteceu de fato. O coração não é uma caixinha controlável, os amores vêm e vão, mesmo que muitas vezes queiramos prendê-los a nós. Tente focar em você, no que você sente e como será a sua vida daqui para frente.
abaixou a cabeça em suas mãos, pousando os cotovelos em sua perna, parecia sozinho e perdido.
— Isso é tão difícil, sabia? Nos últimos dois anos do nosso namoro, a minha vida girou só em torno da Vanessa. Éramos eu e ela contra o mundo. – Abriu um sorriso amargo.
— E os seus amigos? Nessas horas difíceis sempre é bom se rodear de pessoas e ocupar a mente.
— Eu meio que me afastei… – Desviou o olhar e mordeu os lábios, encolhendo-se levemente.
Notei um ponto delicado ali e que provavelmente ele não estaria pronto para falar no momento, por isso, fiz uma anotação para procurar buscar mais desse fato nas próximas sessões.
— Como eu disse, éramos ela e eu. Vanessa cuidava de mim, a gente ficava junto, eu era feliz assim.
— Bom… Mas agora as coisas mudaram e você precisará fazer uma nova rotina que não inclui mais ela. Quem sabe é o momento de reatar velhos contatos?
olhou para mim por cima dos cílios e passou a mão por seu cabelo, porém não me respondeu.
— Será que vou precisar passar isso como dever de casa? – falei de forma leve e humorada.
— Vou tentar – respondeu baixo e eu assenti, no fundo agradecida por ele estar tentando.
— Por que a gente não muda esse astral ruim e falamos de coisas boas? Vamos deixar as brigas de lado um pouco, me conte agora as partes felizes, como foi quando vocês começaram a namorar ou no tempo que estava tudo bem?
Meu paciente fechou os olhos e suspirou profundamente, em seguida colocou os dedos no vinco entre a testa, pensativo, deixando a sua expressão melhorar conforme trazia à mente as informações que eu queria.
— Ah, foi incrível! – abriu os olhos com o sorriso maior do que costumava dar, apesar de não ser um que tocasse a alma. — A gente se divertia muito junto. Era como quando éramos amigos, só que agora acrescido a beijos, abraços e pegações. – Balançou a cabeça e deu uma risadinha nostálgica. — No início, eu podia vê-la todo dia que mesmo assim continuava com toda aquela coisa do coração batendo forte, mãos suando e aquele frio na barriga. Dá até saudade sabe, são tempos que não voltam mais. Depois você acostuma, não deixa de amar, mas não se sente desse jeito toda hora.
Sorri com a emoção que ele me contava, seus olhos chegavam brilhar com o relato. E o mais interessante era que ele parecia empolgado, não pelo fato de estar falando do sentimento pela namorada, mas das sensações do que aquele sentimento lhe proporcionou.
— É algo muito gostoso, início de namoro é um tempo muito bom. – Inspirou e fechou os olhos com um sorrisinho na ponta dos lábios, encostando as costas no sofá. — Ah, mas eu já tô falando demais, você sabe como é isso. – Abriu os olhos e voltou a direcioná-los para mim.
— Na verdade, não – respondi imediatamente, enquanto fazia mais uma anotação no meu caderno.
Foi tão prático e rápido, que só pensei no que tinha falado depois e só após de um tempinho em silêncio que notei que me encarava com uma sobrancelha arqueada.
— Como não?
— Não sabendo. Nunca passei por isso, então não sei como é se sentir assim – respondi, dando de ombros.
abriu a boca levemente chocado, mas depois se remexeu no sofá se recompondo.
— Não pode ser verdade. Nunca gostou de ninguém?
— Ah, já tive uns crushs infantis, mas nada que me causasse isso tudo aí. Depois dessa fase vieram às responsabilidades, os estudos... No final das contas acabou que nunca namorei e nem quero por agora também.
— Então você nunca nem gostou de verdade de ninguém? – perguntou novamente e eu rolei os olhos.
— Já disse que não – respondi, agora um pouco impaciente.
Todo mundo ficava fazendo essa cara de espanto quando descobria isso, era um pouco exaustivo para mim. Ainda mais quando começava aquelas cobranças chatas que eu tinha que desencalhar, que precisava dar uns beijos na boca e blá, blá, blá.
— E como você quer me ajudar sem experiência nenhuma no processo?
— Eu vou lidar com centenas de casos que eu nunca vou ter vivido, . Relaxe – Pisquei e dei um sorriso triunfal.
— Ok, desculpa. Mas ainda assim, é chocante – exclamou e eu fechei o meu semblante.
percebeu e sacudiu a cabeça, como se quisesse corrigir o que havia dito.
— Não quero te pressionar e nem nada disso, só estou surpreso. Isso não é algo ruim, o seu momento vai chegar um dia e você vai curtir, não precisa apressar. É só que… A gente sofre e tudo mais, mas amar é muito bom. É um sentimento enorme que fica no peito que você precisa compartilhar, é uma sensação de plenitude, vai além do emocional, mexe fisicamente conosco – começou a contar empolgado para mim. — Quando acontecer com você, vai saber do que estou falando. – Cruzou as pernas como índio no meu sofá, até esquecendo do seu lamento nesse instante.
— Imagino que seja. Mas eu não tenho tempo pra isso, . – Suspirei. — Eu vim lá de onde Judas perdeu as botas só para estudar, preciso ralar para conseguir notas boas, dar conta dos projetos da iniciação científica e uns bicos que faço de vez em quando para me virar aqui. Não tenho tempo nem para respirar, quanto mais namorar. Eu me sinto exausta vinte quatro horas por dia, vivo de ovo frito, cozido e mexido, e ainda preciso tentar juntar as nicas para conseguir viajar para casa e ver meus pais – desabafei.
olhava para mim como se estivesse me analisando. Seus cílios longos batiam mais rápido e ele mordia o lábio inferior enquanto enrugava a sua testa.
— Você se estressa demais. Coloca o mundo nas costas quando às vezes precisa só espairecer. – Desfez o semblante assim que soltou isso para mim.
— Bom, é o que dizem… – falei, tirando por menos.
— Às vezes dar um tempo é bom para arejar a cabeça.
— Não tenho tempo disponível para dar um tempo – gracejei, fazendo piada com a minha situação. — E nós estamos nos desvirtuando, o paciente aqui é você. – Apontei a minha caneta para e ele encostou as suas costas novamente no sofá, mordendo o lábio para impedir o seu sorriso.
— Foi mal – falou, inclinando a cabeça levemente de lado, seus cabelos caindo nos olhos novamente, antes que ele jogasse-os para trás.
— Não foi nada. – Tentei deixar para lá. — Acho que por hoje é o suficiente.
Fechei o meu caderno e depositei-o sobre a mesa, encerrando a nossa sessão. Já tínhamos saído do foco mesmo e também não era bom forçar além do que o paciente poderia ir.
— Seu dever de casa será tentar mudar um pouco a sua rotina, tudo bem? Faça algo diferente, contate um amigo antigo, qualquer coisa que te ocupe um pouco mais. Uma mente cheia te levará a pensar menos nas suas dores, tudo bem?
— Pode deixar, doutora. – Esticou um pouco mais o seu sorriso, ainda sem mostrar os dentes, e piscou para mim, levantando-se em seguida. — , posso usar o seu banheiro?
— Claro, é à direita, a primeira porta. – Indiquei e ele seguiu o trajeto.
Levantei-me também e fui até a geladeira, àquela conversa toda tinha me deixado de boca seca e eu estava morrendo de sede. Peguei um copo no armário, abri a geladeira e o enchi de água, ao me virar, topei-me com de uma vez atrás de mim e derramei metade da água nele, além de encher o chão de caco de vidro.
— Droga! , você está bem? – perguntei, assustada, alternando meu olhar para ele e para o chão. Ainda bem que ele estava de tênis e eu de sapatilha fechada.
— Eu tô bem, calma. – Colocou a mão nos meus braços para que eu parasse de me mexer. — Molhado, mas bem. – Sorriu, achando graça, enquanto eu estava ainda assustada com a trombada.
Dei um passo para trás, afastando-me dele e pude reparar a situação que eu o tinha deixado. tinha a frente da sua camisa branca toda ensopada, a roupa estava grudada em seu peitoral e abdômen, além de ter ficado transparente.
Era difícil não notar a forma como o tecido havia colado em seu corpo, me deixando a vista os contornos dos seus músculos. Não que fosse um brutamonte, ele era magro, mas agora eu tinha certeza que ele era também um magro definido.
passava a mão pela camisa, tentando tirar o excesso de água, mas isso só piorava a situação. Em seguida levou a mão molhada para os seus cabelos que caíam nos olhos, deixando-os desgrenhados e logo após me pegando em flagrante com os olhos em seu corpo.
Tinha certeza que até a minha pele morena tinha se enrubescido naquele instante e foi impossível não gaguejar com a vergonha que se apossou em mim.
— P-perdão, . Nossa, eu sou um desastre. Como você vai embora assim? Caramba.
— É só uma camisa, .
— Mas, coitado, olha a sua situação! – Apontei para o corpo dele, forçando-me a não encará-lo e passar vergonha outra vez.
olhou para baixo, pegou a ponta da sua camisa, levantou um pouco e torceu. Eu disfarcei e virei o rosto para não ter que olhá-lo. A situação já estava constrangedora o suficiente.
—Ah! – exclamei para ele, chamando a sua atenção. — Espere um segundo.
Corri para o meu quarto, lembrando que tinha uma camiseta do Denis lá no meu guarda roupa, do dia que ele havia dormido aqui em casa. Achei à bendita e corri de volta, erguendo-a para .
— Aqui. – Entreguei para ele. — É do Denis, mas ele não vai se importar. Melhor do que sair desse jeito. – Ergui o ombro e me encolhi, mordendo a bochecha.
— Obrigado. – sorriu, agradecido, e colocou a blusa sobre o balcão.
Achei que ele ia ao banheiro, mas para a minha surpresa, pegou a barra da sua blusa branca e ergueu sobre a cabeça, ficando com seu peitoral exposto bem na minha frente.
Eu não namorava e tudo mais, mas também não era assexuada, né? Estava enjoada de ver Denis sem camisa na minha frente, mas não era um cara íntimo, estava na minha casa e era suficientemente atraente. Eu não era de ferro, os olhos foram feitos para ver, não é?
Pisquei um pouco aturdida e terminou de vestir a camisa vinho de Denis, que ficou um pouco curta para ele, mas pelo menos estava seca.
— Prontinho – falou, tentando puxar a camiseta para baixo, em vão. Se ele levantasse o braço era capaz de mostrar metade da sua barriga.
Mordi o lábio, tentando segurar o riso, estava muito engraçado, parecia até que tinha encolhido. Um pouco mais e pensaria que ele estava usando um cropped.
— Eu estou vendo isso, tá? – ralhou, brincando comigo e fazendo um sinal com o dedo indicador, apontando para seu próprio olho e depois para mim.
— Ops! – Coloquei a mão por sobre a boca, fingindo ser pega.
encostou na bancada e deu uma pequena gargalhada com a situação, encarando de volta a camiseta que havia ficado ridícula nele, ele ficava levantando e abaixando o braço para medir até onde a ela ia, repetidas vezes.
Seus olhos se espremeram em meio ao riso e, pela primeira vez desde que eu tinha visto , eu percebi um sorriso leve e verdadeiro vindo dele. Diferente daqueles educados que ele dava ou mesmo os que ele tentava conter. Por um momento, tinha se esquecido de tudo aquilo que estava sofrendo e, mesmo sendo através de um mico, ou algo constrangedor, sentia-me feliz por ver ele assim e esperava que esse fosse as primeiras de muitas gargalhadas que ele voltaria a dar.
Sem perceber, peguei-me sorrindo junto com ele, sentindo meu coração se aquecer com aquele som que saia da sua boca. Ainda que não fosse inteiro, ainda que eu soubesse que ele podia ir muito mais além, aquele momento específico, já fazia valer todo o meu desgaste e esforço pelas sessões. E, no final, eu esperava ser agraciada com um inteiro e pronto para recomeçar.



Capítulo 10

Essa semana todos os professores pareciam que tinham acordado de TPM. Não era possível que todo mundo, subitamente, havia resolvido passar os trabalhos mais cabulosos para a mesma época. Ou era isso, ou uma combinação baixa e suja.
Eu virei noites e mais noites acordada, parecia um zumbi ambulante a base de café. Minha gastrite já tinha atacado e eu estava sobrevivendo de omeprazol. Tinha esperança que se eu adiantasse minhas coisas, poderia terminar todos os trabalhos e reservar o final de semana para redigir o projeto do Prof. Benecke.
Era por isso que eu estava em plena sexta-feira à noite em casa, como sempre. Minha coluna doía por ficar sentada na cadeira da escrivaninha o dia inteiro e nem a carne da minha bunda era suficiente para amaciar aquela posição. A professora de Psicopatologia havia mandado a gente enviar o nosso artigo até às 23h55min daquela noite por e-mail. Já eram quase nove horas da noite e eu havia terminado pela manhã, no entanto, eu nunca achava que estava bom o suficiente, por isso ficava lendo e relendo o tempo todo, alterando algumas coisas.
Agora eu achava que finalmente estava aceitável. Salvei o documento e deixei o notebook aberto, enquanto eu ia na cozinha garantir que o meu corpo não desfalecesse sem alimento. De tarde, Denis havia comprado umas coisas no supermercado que eu pedi, já que o dinheiro da bolsa havia entrado. Estava saindo da “dieta” do ovo, graças a Deus.
Fui para a cozinha, peguei uns ingredientes e comecei a bater um bolo de cenoura. Rapidinho eu já tinha terminado, colocado para assar e feito à cobertura de chocolate. Agora era só esperar uma meia hora para o bolo estar pronto, jogar a cobertura e voi a la, encher a pança.
Voltei para o meu quarto e abri o arquivo do artigo de novo, a fim de dar só mais uma última olhadinha. Comecei a ler novamente. Não fazia mal uma última revisão, não é? Não que as outras dez que eu já havia feito não valesse de nada, mas nunca era demais mais uma.
Fui abaixando o arquivo para ler e a tela do notebook piscou. Estreitei os olhos e encarei a tela. Eu tinha piscado ou a tela tinha apagado e reacendido em milésimos de segundos?
Antes que eu mesma respondesse a pergunta, o notebook apagou e dessa vez ele não acendeu de novo.
Fiquei estática na minha cadeira, olhando para a tela sem piscar. Provavelmente era a bateria que tinha descarregado e eu não tinha percebido. Levantei-me e fui até o armário, peguei o cabo, o conectei no aparelho e na tomada. Agora sim ia dar certo. Apertei o botão ligar e nada. Comecei a me desesperar.
Respirei fundo, contei até dez e expirei, antes que eu entrasse em pânico.
Tentei ligar de novo e de novo, e de novo.
Até perceber que já estava balançando o notebook para lá e para cá, apertando o botão desenfreadamente e quase o tacando no chão.
Coloquei ele de volta na escrivaninha, peguei os meus cachos e puxei-os, agonizando. Eu estava muito ferrada. Eu deveria ter enviado o trabalho na hora que tinha terminado, agora o notebook tinha dado pau e eu tinha perdido tudo.
Meu Deus! Até o relatório do Sr. Benecke estava lá, se essa droga não ligasse eu estaria muito ferrada.
Quando penso que não, eu estava jogada no chão do meu quarto, olhando para o notebook e chorando em desespero.
Peguei o meu celular com as mãos tremendo e liguei para Denis, tentando saber se ele podia me salvar. A ligação chamou várias vezes, mas ele não atendeu. Tentei de novo até lotar o celular dele de chamadas perdidas e nada.
Era querer demais que logo o Denis estivesse disponível às nove da noite em plena sexta feira.
Tentei ligar para Hellen, mas o celular dela estava fora de área, o que me fez lembrar que ela havia dito que ia passar o final de semana viajando.
Eu estava perdida!
Rolei meus contatos telefônicos e não conseguia pensar em uma alma que pudesse me ajudar, apesar de que eu mesma não conseguia ver uma solução nesse momento. Eu não tinha o telefone de outros colegas de turma e também não tinha intimidade o suficiente para isso. Mas o que ele poderiam fazer por mim também? Ah não ser que tivesse algum gênio da computação entre eles, o máximo que poderiam dizer é: “Que droga heim, ”.
Eu havia gasto a semana inteira para construir esse artigo, não conseguiria fazer tudo do zero em apenas três horas. A única saída era tentar explicar para a professora, torcendo para que ela estendesse o prazo para mim, o que eu achava muito difícil acontecer.
Foi nesse momento que meu dedo, que deslizava pelos contatos, parou em cima do nome de . Um estalo veio na minha cabeça, lembrei que ele era formado em análise de sistemas, era bem provável que pudesse saber o que houve com o meu notebook. Talvez uma coisa não tivesse nada a ver com a outra, mas quem liga? Eu era de humanas e a pessoa mais próxima a mim e que poderia saber alguma coisa sobre computador era ele no momento.
Não quis pensar se aquilo era apropriado ou não, ou se eu ia perturbar um cara em plena sexta à noite, ou mesmo se ele acharia isso um abuso.
Situações desesperadas requerem medidas desesperadas.
Disquei o seu número e ouvi o barulhinho da chamada com o coração na mão. Uma vez, duas, três, quatro…
— Alô? ? – atendeu.
— Graças a Deus! – suspirei. — , eu preciso de você, eu estou desesperada – disparei com a voz trêmula, quase chorando novamente aflita.
, o que aconteceu? – entoou com a voz preocupada.
— Você está ocupado? Diz que não, por favor!
— Não?! – respondeu meio incerto, e era como se eu pudesse vê-lo com os olhos arregalados e a sobrancelha arqueada me encarando.
— Meu notebook deu pau e eu tenho um artigo para enviar daqui a pouco. É um caso de vida ou morte, eu estou desesperada. Será que você consegue ver isso para mim? Eu sei que estou sendo abusada, ainda mais a essa hora da noite, mas eu não te pediria se eu realmente não estivesse preste a entrar em uma crise de pânico.
— Chego aí em vinte minutos – assegurou e meus olhos lacrimejaram de alívio.
— Muito obrigada, .
— Não agradeça ainda, se eu conseguir te salvar, aí você fica me devendo. – Ouvi sua risadinha do outro lado da linha e sorri em resposta.
— Tudo bem, estou te esperando – encerrei a ligação.
Peguei o notebook e o cabo do carregador no meu quarto e levei até a sala. Eu não era de roer unha, mas naquele momento desesperador, até isso eu fiz. Meu pé batia freneticamente no chão, enquanto eu olhava toda hora para o relógio do meu celular, observando se já tinha passado o tempo que garantiu chegar.
Cinco minutos de atraso e eu já estava pirando por achar que ele havia desistido. Travava uma luta interna entre esperar, desistir ou ligar para ele de novo, mas agora chorando, quem sabe dessa vez o comovia mais.
Optei por fazer a última opção, mas antes que eu clicasse no botão discar, a campainha tocou e eu corri afobada para a porta, abrindo-a em um ímpeto.
— Você veio! – exclamei e abracei-o no impulso.
— Eu disse que vinha – respondeu risonho e um pouco desconcertado, soltei-o de uma vez e dei um passo para trás.
— Desculpas por isso, mas eu estou realmente muito desesperada.
balançou a cabeça, sorriu e passou as mãos por entre seus cabelos. Dessa vez usava uma calça preta e uma camisa azul escura de manga comprida, mas que estava puxada até os seus cotovelos.
Pelo menos agora se acontecesse algum desastre, certas coisas ficariam em menor evidência, já que a blusa era escura.
— Sem problemas – disse, colocando uma mão no bolso, a outra segurava uma bolsa que ele havia trazido consigo. — Onde está a fonte do seu desespero? – questionou com um tom divertido, piscando seus longos e fartos cílios.
Apontei para o meu notebook e ele sentou-se no sofá, trazendo-o para o seu colo, colocou-o na tomada e começou a mexer nele. Enquanto isso o seu cenho franzia, demonstrando a concentração que embutia no processo. Abriu a sua bolsa e tirou de lá algumas ferramentas e coisas que eu não fazia nem noção do que era, só sabia que estava quase entrando em colapso ao perceber que ia abrir o meu notebook.
— Tem certeza que sabe mexer nisso, não é? – perguntei, temerosa.
olhou para mim, virando a cabeça um pouco de lado, e arqueou uma sobrancelha como se dissesse: “É sério que está me perguntando isso?”.
Suspirei e coloquei a minha mão na testa.
— Relaxa, . Faço isso desde que era um garoto. Se eu não conseguir resolver o seu problema, ninguém mais consegue. – Piscou e sorriu, deixando à mostra os seus dentes brancos e uma cara lavada. Nem sabia que conseguia fazer essa expressão.
— Ok, vou deixar você trabalhar aí. – Dei as costas e fui em direção ao fogão, pois já estava sentindo o cheiro do bolo assado.
Retirei-o do forno e despejei a cobertura de chocolate. Era melhor ficar envolvida com meu bolo em vez de perturbar durante a sua tentativa de salvar a minha vida.
Ao terminar, fui fazer um suco, pois estava morta de fome, o estômago doía pela tensão e por ter passado muito tempo sem comer. Escolhi o sabor de maracujá para ver se eu conseguia ficar mais calma e quando acabei, coloquei tudo em cima da bancadinha da cozinha conjugada e sentei-me no banquinho, analisando trabalhar.
Ele estava compenetrado, mexia e levantava o eletrônico de um lado para o outro, digitava coisas freneticamente e vez ou outra cutucava algo em seu celular. Eu não fazia ideia do que ele estava fazendo, mas, pelo menos, transparecia confiança.
Ele me pegou em flagrante o observando, virou o rosto apenas um pouco para o lado e abriu um longo sorriso em minha direção. Foram apenas alguns segundos, pois logo depois ele voltou a encarar o meu notebook e continuou o que estava fazendo. Mas fora o suficiente para eu sentir um solavanco em meu peito.
Era engraçado como tinha esse jeito meio tímido e ao mesmo tempo belo. Podendo reparar nele melhor agora, notava que era muito atraente, contudo, ele não parecia ter noção disso. Talvez pelo fato de ter namorado durante sete anos, ele tenha se desligado, pois não precisava conquistar ninguém. No entanto, ao mesmo tempo, ele tinha aquela forma gentil de falar com a gente, um ar despojado por causa dos cabelos que ficavam sempre despojados e traços que eram delicados, mas também masculinos. Sua boca arredondada era muito bem desenhada e os cílios escuros e longos, unido aos seus olhos verdes intensos, poderiam fascinar qualquer pessoa.
Conheci o em seu pior e, em seguida, ele virou o meu paciente, por isso nunca o notei tão intensamente, mas verdade seja dita, ele era um rapaz muito bonito, e quando nos compartilhava o seu sorriso verdadeiro – o que não era fácil –, tinha o poder de estremecer todos à sua volta. Não porque ele tinha alguma segunda intenção, mas porque o seu sorriso refletia todo o seu rosto e iluminava o seu olhar, era um pecado para a humanidade ele guardá-lo somente para si.
Por um segundo me peguei imaginando como seria ter um sorriso desse somente para mim, conquistar o brilho no rosto de alguém apenas porque me viu, ou como seria a sensação quando lábios tão bonitos e chamativos tocassem os meus.
Foi inevitável erguer a ponta do meu dedo e tocar o meu próprio lábio, imaginando as milhares de emoções que eu gostaria de sentir algum dia. Fechei os meus olhos brevemente e a minha mente começou a fantasiar, porém, quando a voz de ecoou do sofá, eu dei um pulo no banquinho e endireitei a coluna, colando os braços ao lado do meu corpo.
— Consegui! – Ele sorriu ao mesmo tempo em que olhava eufórico para a tela do notebook.
Graças a Deus ele não me viu naquela situação constrangedora. Não ia ser nada agradável se ele me encarasse enquanto eu estava virada em sua direção, de olhos fechados e tocando meus próprios lábios.
Uma vergonha avassaladora se apoderou de mim. O que eu estava pensando?
Talvez Denis estivesse certo e eu precisasse beijar logo alguém, antes que eu passasse algum constrangimento maior que o de hoje.
Caminhei até ele e sentei ao seu lado, olhando para a tela do notebook aberta.
— Deu certo mesmo?!
— Sim, e nem demorou muito tempo. – Olhou o seu relógio e viu que havia passado pouco mais de meia hora apenas. — Acho que meu serviço está feito. – Alisou as mãos em sua calça e inclinou-se para levantar, porém, escutei o ronco do seu estômago e toquei imediatamente em seu braço, impedindo-o de fazer o movimento.
— Parece que alguém está com fome. – Ri, olhando para ele, e deu de ombros, mordendo a bochecha.
— Eu ia fazer algo para comer na hora que você me ligou, mas aí vim correndo para cá com pressa.
— Então o mínimo que eu poderia fazer é te oferecer alguma coisa, não é? Afinal, você salvou a minha vida.
não se fez de rogado, abriu um sorriso e voltou a sentar-se confortavelmente no sofá, em contrapartida, eu me levantei para pegar algumas fatias de bolo e suco para nós. Coloquei tudo na mesinha de centro, ao lado do notebook, e entreguei o dele, que modéstia parte, estava delicioso.
— Enquanto você come, vou enviar logo o meu trabalho, antes que aconteça algum outro desastre na minha vida – ironizei e trouxe o note para o meu colo.
Abri o meu e-mail, anexei o artigo e enviei para a professora, suspirando aliviada. Coloquei o aparelho de volta para a mesinha e encostei as minhas costas no sofá, sentindo o peso do mundo ir embora em um longo suspiro.
Flagrei com a boca cheia me olhando e segurando uma risada.
— O que foi? – indaguei-o, sem entender.
Ele fez um sinal de espera com a mão, engoliu o bolo e depois voltou a olhar para mim.
— Você é muito estressada – falou, mas não com uma entonação de acusação, ele parecia achar graça do meu jeito.
— Me conta outra novidade? – debochei e rolei os olhos, porém acabei rindo no final.
— Eu achei que você estava em um ataque de pânico quando eu cheguei. Sério, você me assustou, . Acho que no final, consertar o seu aparelho era uma questão de honra.
— Você não viu nada. O que mais me deu raiva foi que eu terminei de manhã e passei a tarde e parte da noite só revisando, enquanto já podia ter mandado o trabalho e não ter passado esse sufoco todo.
— Você sempre é assim? Preocupada, ansiosa e tudo mais?
— Na maioria das vezes, é difícil evitar – ponderei, desviando o meu olhar do dele, um pouco constrangida por ter meus “defeitos” expostos assim.
Eu não o olhava, mas sentia que estava me observando. Logo depois ele virou para o lado contrário e mexeu alguma coisa na sua bolsa, tirando de lá um pendrive.
— Quais eram os seus planos para hoje, se nada disso tivesse acontecido? – sondou-me, enquanto pegava meu notebook e trazia para o seu colo.
— Ia revisar mais uma vez o artigo, depois eu daria mais outra lida no material do meu caderno da facul e continuaria escrevendo um relatório que é para semana que vem.
— Tudo isso em uma sexta à noite? – Virou sua cabeça rapidamente para mim e arqueou as sobrancelhas.
— Sim, amanhã eu já tenho outras coisas para fazer.
Ele voltou a olhar para a tela e começou a mexer alguma coisa por lá.
— Esquece tudo o que você pensou que faria, nós vamos ter uma noite de cinema em casa. – abriu um vídeo no notebook e depois o pausou, olhando para mim com um sorriso nos lábios e empolgação.
— O quê? – questionei, tentando digerir o que ele havia falado.
— Olha, . Posso te chamar assim? Cansei de te chamar de . – Alargou um pouco mais o sorriso e eu acenei com a cabeça, ainda atordoada. — Então, no pouco que a gente já conviveu, percebi que você se encana demais nesse negócio de estudar. Claro que a gente tem que se dedicar e aprender, mas viver só em função disso não é vida. Você vai ter um surto desse jeito. A mente da gente também precisa descansar e é por isso que agora você vai deixar o que ia fazer de lado – até porque já deu para notar que você já tem tudo praticamente pronto – e vamos assistir a um filme que tenho aqui.
Eu queria ter falado para que ele estava sendo ridículo e que eu tinha muita coisa para fazer, mas eu sabia que ele estava certo. Poderia também ter dado mil desculpas para ele poder ir embora e dizer que aquilo era completamente inadequado, mas como poderia, sendo que o garoto tinha ido até ali para me ajudar no meio da noite?
Percebendo o meu silêncio, fez mais uma tentativa.
— Qual é, ? É o mínimo que posso fazer para ajudar depois do que tem feito por mim. Eu poderia apenas deixar o meu pendrive aqui para você assistir sozinha, mas meu sexto sentido me diz que você não vai fazer o que eu falei, vai? – Terminou a frase com um tom mais baixo, acho que se envergonhando de ter feito a sugestão.
Ele estava certo, eu não faria. No momento que ele saísse eu guardaria o pendrive e voltaria para a rotina que havia estabelecido. E parecia tão empolgado por me ajudar de alguma forma que, quando menos percebi, estava acenando com a cabeça e recebendo em resposta um daqueles raros e lindos sorrisos que compartilhava.
Ele inclinou-se e apertou o play para pôr o filme para rodar, aparecendo logo depois o título “Casa Comigo?”, causando-me uma gargalhada. Nem sei porque eu ria, mas achava engraçado carregando esses filmes no pendrive. O coitado, sem graça, encolheu os ombros e tratou de se explicar, mas nem isso me fez ter senso e disfarçar a risada.
— Era da Vanessa, ela pediu para eu baixar esses filmes de comédia-romântica para ela. Achei que você poderia gostar… – Mordeu o lábio e piscou mais rápido os seus cílios, aguardando o que eu diria.
— Eu gosto sim. Obrigada, . Só achei engraçado porque eu jamais imaginaria você assistindo isso. – Virei o meu rosto para ele e elevei um pouco o lábio, agradecendo-o sinceramente por fazer isso por mim. Ele me olhou de volta com um brilho entusiasmado e nos encaramos por um segundo ou dois, não sei explicar, mas me pareceu mais longo que o normal, por isso me remexi no sofá e inclinei-me para pegar o meu pratinho de bolo e comer enquanto via o filme.
Como estávamos assistindo pelo meu notebook, inevitavelmente não dava para ficarmos muito distante um do outro. Tivemos que chegar mais perto, o que resultou em um leve constrangimento de ambos, eu diria.
Eu sentia a pele quente do braço de colado ao meu, assim como a lateral do restante do seu corpo. Era como se o simples fato de nos encostarmos me fizesse estremecer. Eu não conseguia entender isso, mas eu conseguia reparar até o mínimo movimento da sua respiração e, cada vez que ele se deslocava, meus poros se arrepiavam.
Juro que eu estava fazendo de tudo para prestar atenção no filme, mas cada minuto que passava ficava mais difícil. O apartamento nesse momento parecia apertado demais, eu estava sufocando e o ar estava muito quente. Eu tinha certeza que eu devia estar suando, o que só me deixava com mais vergonha ainda porque com certeza notaria.
O filme era ótimo, mas era muito difícil que eu me atentasse. Vez ou outra, ria de algo que havia passado e eu sorria junto somente para acompanhar, não fazendo a mínima ideia do motivo para aquilo.
Eu balançava o meu pé e remexia as mãos enquanto encarava a tela, até que se movimentou para frente, deu pause no filme e voltou a sua posição inicial, virando o seu rosto para mim.
Péssima ideia, . Péssima ideia.
Engoli em seco, impossibilitada de mover um mísero músculo naquele momento. Acho que só agora ele havia notado o quão próximo nós estávamos um do outro, nossos rostos a menos de um palmo de distância.
Observei o seu pomo de adão subir e descer e a sua língua passar pelos lábios para molhá-los antes de falar.
— Você não está prestando atenção – afirmou com a voz quase sussurrada.
An?
— No filme – completou. — Eu percebi que você não estava prestando atenção – explicou e eu arregalei os olhos, sem saber o que dizer no momento. Estava confusa. O que raios estava acontecendo aqui?
Fiquei de pé de uma só vez, fazendo com que colasse suas costas no sofá com o susto.
— Eu, er… Precisava muito ir ao banheiro. Fiquei segurando, aí desconcentrei. Mas agora eu vou. – Apontei para o caminho onde me levaria até o sanitário e sai andando rápido de lá.
Entrei no banheiro perturbada, sentindo meu coração bater mais que uma escola de samba. Segurei a pia com força e percebendo que as minhas mãos tremiam com o ocorrido.
Não ia acontecer nada demais, então por que eu estava assim?
Tá legal, eu precisava ficar calma.
Respirei fundo e expirei calmamente, a fim de me controlar. Repeti mentalmente que essas coisas aconteciam. Como dizia mesmo? Atração, era isso. Hormônios do nosso corpo agindo, podia acontecer com qualquer um. Eu sou uma moça, ele é um cara, estávamos sozinhos à noite assistindo filme…
É um ambiente propício, não quer dizer que iríamos ultrapassar alguma linha, até porque eu não devo permitir isso nem em última hipótese de vida.
Fiquei ali alguns minutos até me recompor e voltei para a sala, torcendo para que ele não tenha notado ou sentido o mesmo que eu. não estava no mesmo local, sentava mais afastado do lugar onde estávamos, o que só me fazia pensar que ele havia sim notado o que aconteceu.
Dei um sorrisinho sem graça e voltei a me sentar, deixando um espaço suficiente entre nós dois. Ele fechou a mão em punho e levou até a boca para disfarçar uma tosse e um pigarro na garganta.
— Então… Podemos continuar ou quer parar? Estou te perguntando isso porque eu não quero te obrigar, . Assistir ao filme era só uma sugestão para te aliviar, mas se não quiser eu entendo, não precisa fazer isso só porque está sem graça de me dizer não. Eu percebi que parecia um pouco inquieta… – explicou-se, um pouco desconcertado.
— Não, foi uma ótima ideia, .
Pelo menos na teoria era, mas eu não precisava fazer essa ressalva.
— Eu que estou com a mente fora de órbita mesmo. – Não menti.
me encarava e eu não consegui decifrá-lo. Ele balançou a cabeça sutilmente, concordando com o que eu tinha dito, mas continuava com seus olhos em minha direção. Eu já estava quase ficando constrangida quando vi seu olhar se desviar para o chão e depois voltar para a mim sob os cílios, o cenho levemente franzido.
— Você acha que os opostos se atraem ou semelhante atrai semelhante? – soltou do nada e creio que foi impossível não notar o meu choque.
O que ele queria com aquela pergunta?
Engoli em seco e molhei os meus lábios, que eu já sentia ressecados a essa altura do campeonato.
— Isso é uma boa pergunta… – Dei um leve sorriso, aliviando a tensão. — A Dra. , minha professora da Iniciação Científica, diz que a ciência nunca entrou em um consenso. Cada pesquisa fala uma coisa diferente. Os opostos costumam se atrair porque o estranho provoca curiosidade. Não quer dizer que vai gerar o amor, às vezes é só um parceiro sexual, uma atração que é formada em torno dessas duas pessoas. Mas uma coisa é certa, não existe par perfeito, existem parcerias construídas com esforço, vontade e desejo de dar certo – respondi gesticulando, tentando não focar nele enquanto falava.
levou a sua mão até o queixo e coçou-o, olhando para baixo nesse momento.
— Foi o que eu pensei… – sussurrou para ele mesmo, porém pude ouvi-lo.
Logo depois ele levantou-se do sofá, pegou a sua mochila e começou a guardar algumas coisas dentro dela, enquanto eu apenas observava, sem saber o que dizer ou mesmo entender o que estava se passando. Assim que terminou, jogou-a sobre o seu ombro e olhou para mim mordendo o lábio.
— Eu não posso ficar, mas me prometa que vai terminar o filme todo em vez de ir estudar – pediu, erguendo a mão para tocar no meu ombro.
Péssima ideia, . Péssima ideia.
Seus dedos no meu ombro nu pareciam brasas e nesse momento eu praguejei internamente por usar uma blusa de alça, em vez de uma camiseta, a fim de me proteger do toque de .
— Ah… Tudo bem – respondi o melhor que pude durante aquele momento esquisito.
— Durma bem, . – Sorriu e inclinou-se para dar um beijo no meu rosto, que eu jurava ter demorado tempo demais ou talvez tivesse sido só a minha imaginação fértil.
segurou a minha mão com a sua e a trouxe para cima, na altura do meu peito, tocando os seus dedos nela para abri-la. Eu achava que ia desmaiar, mas antes que isso acontecesse, ele colocou o seu pendrive na minha palma e passou os dedos da sua outra mão por cima dos meus, fechando-os no objeto para que eu o segurasse. Em seguida saiu pela porta, deixando-me o seu pendrive e uma noite muito estranha para lidar.



Capítulo 11

Não dormi bem, como sempre acontecia quando eu estava nervosa, estressada ou ansiosa. Fiquei repassando a noite toda onde eu havia errado com para que aquela situação toda acontecesse. Eu não sabia até onde era coisa só da minha cabeça ou o que realmente tinha ocorrido. Eu não poderia pensar em daquela maneira porque, primeiro, ele era meu paciente, segundo, era apaixonado por outra.
Permitir sentir a mínima atração que fosse por ele, era inaceitável. Mas era difícil evitar quando se tinha um cara tão bacana ao lado, tímido, fofo e bonito. Dessa vez eu não poderia fugir do problema, porque o problema, pela ironia do destino, era a minha salvação. era o meu paciente e eu tinha um compromisso com ele até o fim. Por ele e por mim. Ambos precisávamos disso e eu não podia deixar uma atraçãozinha afundar o nosso barco assim.
Eu precisava de ajuda, eu precisava de alguém que me levasse a pensar racionalmente uma forma de sair dessa situação, sem literalmente sair. Se eu pedisse conselho a Hellen, ela mandaria eu aproveitar as duas coisas, o enquanto paciente e depois o crush. Denis, pior ainda. Ele seria a última pessoa que eu pediria um conselho desse tipo, primeiro porque ele não era referência alguma no assunto, segundo, porque eu tinha uma grande suspeita que o meu amigo estava se corroendo de ciúmes.
Durante toda a faculdade éramos nós dois contra o mundo. Ele tinha suas milhares de garotas que passavam por suas mãos, mas nenhuma ficava o suficiente para se meter em nosso meio. Já eu, nunca havia namorado, então não tinha problema. No entanto, agora Denis estava estranho comigo, muito distante quando ficávamos separados e grudado demais quando estávamos perto um do outro. Enfim, ele estava esquisito.
Resultado: eu precisava de alguém, e essa pessoa não seria nenhum dos meus dois colegas de classe.
Solução: bater na porta da única pessoa que poderia me ajudar nessa situação.
! – deu um largo sorriso para mim, assim que abriu a porta da sua casa, e abraçou-me. Correspondi-a, expressando em meu gesto a falta que eu sentia daquela maluca.
era também conhecida como a Doutora do Amor, eu fui sua aluna na universidade e trabalhei junto com ela em sua pesquisa. Se tinha alguém que tinha todas as respostas para a emoção humana, essa pessoa era ela.
Depois da sua última pesquisa, acabou passando mais tempo enfurnada nos laboratórios da D&D do que na faculdade. Ela ainda trabalhava lá, não se engane. Mas agora com a empresa angariando a continuação dos testes, ela precisava passar mais tempo fora, o que me fazia sentir muita falta dela, já que minha iniciação científica em seu laboratório havia acabado.
— Que saudades de você! Como está? – perguntou, tocando nos meus cachinhos, como sempre fazia. Ela dizia que os adorava.
— Bem, na medida do possível! – Dei de ombros e entrei em sua casa, assim que ela me deu passagem.
olhou para mim, intrigada, provavelmente por não estar acostumada a ver esse meu lado e deve ser por isso que ela pegou em minha mão e levou-me até o seu sofá.
— Por que eu acho que você não veio aqui só porque estava sentindo a minha falta? – Abriu um pequeno sorriso e deu um tapinha para que eu sentasse ao seu lado.
— Nossa, e por que não poderia? Eu sinto mesmo a sua falta, sabia? Quem mais vai me recitar todas as teorias da ciência amorosa agora? – Coloquei a mão no peito, fingindo-me ultrajada, e sorri para ela, desviando a atenção do foco principal. Ainda não estava pronta para falar. Na verdade, eu não sabia nem se uma hora essa coragem viria. Mas, se tudo desse errado, pelo menos eu tinha visitado uma amiga.
— Eu acredito que esteja mesmo. – Alargou ainda mais o sorriso, triunfante, mas logo seus olhos voltaram a ficar sérios. — Mas também sei quando você está aprontando alguma. – Bateu o indicador em seu queixo, pensativa.
— Eu não estou aprontando! – Franzi o cenho em sua direção.
— Ah, claro que não! Imagina! Você nem se coloca em confusão alguma – argumentou ironicamente e riu, levantou-se e andou até a cozinha, voltando de lá com uma caneca e uma garrafa na mão. — Achei que poderíamos tomar um cafezinho juntas, já que ainda é cedo.
Sorri para ela em concordância. Eu precisava mesmo de uma boa xícara de café.
— Obrigada.
— De nada, agora pode me contar! – Remexeu-se no sofá e me olhou com expectativa.
! – exclamei. — Pega leve! Por que não vai me contando como está a sua vida, o trabalho, e tudo mais?
— Bom, porque você veio aqui para falar de você e não de mim. – Rolou os olhos, simples e prática, como sempre. — Não entendo essa mania que as pessoas têm de enrolar as coisas, isso só posterga o inevitável, vai te fazer ficar tensa aí na expectativa, adrenalina saltando nas veias e o coração cada vez mais disparado. Você só vai se sentir melhor depois que desabafar mesmo – explicou, entediada, e eu quase quis gritar: “mas quando era você, você não era direta coisa nenhuma”.
— E quem disse que eu vim falar de mim? – Tirei por menos, tomando um gole do café.
— Sua cara e sua mensagem pedindo para me ver aqui, sendo que você nunca faz isso. Quer que eu comece a enumerar os motivos?
— Tá bom, tá bom, já entendi. Mas, mesmo assim, por favor, poderia falar de você e quebrar esse clima tenso, enquanto isso eu vou pensando o que vou dizer? Eu vim aqui no rumo, não foi bem planejado.
sorriu, mesmo rolando os olhos, e tomou um gole do seu café também, observando-me atentamente.
— Ok. Vamos lá! – Colocou a caneca na mesinha e cruzou as pernas como índio no sofá. — As pesquisas estão incríveis. Estamos na segunda fase dos experimentos e é algo de outro mundo, . Sério, sem comparação poder trabalhar em um lugar que tem todos os equipamentos necessários, os reagentes e tudo mais que eu precisar. Além disso, tem toda uma equipe maravilhosa e competente que tem se empenhado bastante. Não sei qual o resultado disso tudo, mas eu estou bem animada. – discorreu contente e eu sorri com a alegria dela.
Ver os sonhos de se concretizando me fazia um bem estar enorme. Eu havia acompanhado a sua luta e dedicação, por isso ela era um exemplo para mim. Com a aprendi que: Quando tudo te levar a desistir e te fazer esquecer dos seus sonhos, vá em frente, o resultado final só depende de você.
— Nossa, deve ser incrível mesmo! Fico tão feliz por ter participado disso!
— Você precisa ir até lá, . Sério, vai amar! Eu já te chamei quinhentas vezes, mas você é enrolada.
— Desculpa. É porque reta final da faculdade é uma loucura, você sabe.
— Já te disse para pegar leve, né? Esgotamento mental é algo sério, . Eu já te expliquei, vou precisar repetir de novo?
Balancei a cabeça em negativa, sabendo que já tinha ouvido esse discurso um milhão de vezes dela. Ainda assim, eu sabia que ela repetiria mais uma vez, só para ter certeza que eu havia decorado.
— Esse seu excesso de preocupação gera estresse. Lembra da cortisona, né? – perguntou e eu balancei a cabeça. — Esse hormoniozinho, em altas quantidades, faz uma bagunça na gente. Você tem percebido algum sintoma?
Mordi o lábio, querendo me impedir de falar, mas eu não conseguiria mentir para ela.
— Algumas coisas, meu cabelo mesmo anda caindo muito recentemente…
— Pois então! – Bateu a mão em sua perna e olhou para mim com o semblante fechado. — Isso é sério, . A gente acha que estresse é uma coisa boba e esse negócio de esgotamento mental é uma frescura da nossa cabeça, mas não é. Esses sintomas aparentemente pequenos, podem te levar a doenças ainda mais sérias. Eu sei que a vida moderna de hoje nos faz ter milhões de atividades para fazer. Vivemos com compromissos, quase sonhando que o dia tivesse 48 horas, mas a nossa mente precisa compensar os momentos tensos com momentos de prazer e diversão, se não, o que adianta se matar assim?
— Eu sei – respondi em um fiapo de voz.
— Sabe nada, se eu ainda fosse sua professora, eu te dava férias obrigatórias! – exclamou e eu acabei rindo.
— Seriam muito bem vindas se eu pudesse usufruir delas – lamentei.
— Está acabando, . Logo você estará formada, aproveite para tirar um tempo para você. Você merece isso, é a aluna mais dedicada que conheci. – Pousou a mão no meu ombro e eu agraciei o conforto que ela me passou.
Dei mais uma golada em meu café, tomando coragem para resolver a questão que estava na minha cabeça e havia me levado ali, afinal.
— Então… – Respirei fundo. — O negócio é o seguinte. Lembra do Dr. Benecke? Você chegou a conhecê-lo?
— Sim – respondeu, fazendo uma careta. — Meus pêsames para você que é aluna dele. – Sorri em concordância.
— Pois é. Ele passou um trabalho para nós em que tínhamos que achar um paciente e estudá-lo. Fazer algumas sessões, curtas mesmo, e apresentar no final do semestre. Aí tem esse garoto… – comecei falando e mexendo as mãos, e eu vi um leve sorriso aparecer no rosto dela.
— Sempre tem um garoto, homens são os problemas da humanidade – salientou rindo, entre o intervalo de uma golada e outra do café.
— Quem é o problema da humanidade? – surgiu, sabe-se Deus lá de onde, apenas com uma bermuda de dormir, os cabelos dourados bagunçados e a cara amassada e inchada de sono.
Santo Deus, eu nunca ia deixar de admirar a beleza daquele homem, era de tirar o fôlego.
— Baba menos que esse já é meu – sussurrou para mim e voltou a olhar para ele, os olhos brilhando em sua direção. — Os homens, amor, eles são o problema da humanidade – respondeu-o, enquanto ele se jogava ao seu lado no sofá e beijava a sua bochecha carinhosamente.
— Os homens com exceção de mim, claro.
Inclusive você – contrapôs seguido de um selinho e fez um carinho em sua bochecha.
— Eu não sou o seu problema, , eu fui a sua salvação. – Deu aquele sorriso que derretia qualquer uma a sua volta e só conseguiu correspondê-lo, com a cara mais apaixonada do mundo.
— Vocês poderiam parar com esse love todo, antes que eu vomite, e voltar a focar em mim, por favor? – interrompi o momento, querendo não me sentir inspirada com esse clima de amor no ar.
Os dois deram uma risada e voltaram a olhar para mim, permanecendo abraçados no sofá.
— Você! – Apontei para . — Para o bem da humanidade, por favor, coloque uma camisa! – pedi, quase que implorando, ou eu não teria concentração nenhuma tendo aquele corpo esculpido bem na minha frente. que me perdoe, mas o homem era um pecado, o que eu poderia fazer?
gargalhou, levantou, sacudiu meu cabelo para me provocar e voltou para dentro da casa, deixando Cecilia e eu sozinhas novamente.
— Enfim, deixa eu continuar antes que volte e eu me perca. – bufei e deu uma gargalhada, concordando em seguida. — Então, esse cara é meu paciente, o encontrei em uma situação, digamos, até peculiar, de coração partido pelo término do seu namoro de sete anos.
— Uau, sete anos é muito tempo.
— Sim e isso acabou com ele, apesar de que eu já noto algumas mudanças. Creio que aos poucos está melhorando.
— Hum, isso é bom. E onde entra o problema então? – Repousou sua xícara na mesinha e olhou-me atentamente.
— Euachoqueestouatraidaporele – falei rapidamente, desviando o olhar.
— An? Eu não entendi bulhufas do que me falou, .
Suspirei e olhei para cima, sentindo-me completamente estúpida por ter que dizer isso em alto e bom som.
— Eu disse que acho que estou atraída por ele – confessei.
— Hum… – ela resmungou, colocando o indicador em sua bochecha.
— É tudo o que tem a dizer? – retruquei.
— Na verdade não, mas o diz que eu preciso refletir antes de sair falando tudo o que penso sobre as pessoas, então eu tô fazendo isso.
— Se eu quisesse uma opinião ponderada eu tinha ido direto no , . Eu vim até você justamente porque é a pessoa mais racional que eu conheço e eu não tô em um momento para sucumbir a emoções – retruquei e abriu um sorriso para mim um tanto que perverso.
Esticou os braços e estalou os dedos das mãos, os olhos brilhando de alegria, talvez, por eu ter dado liberdade para ela poder fazer o que mais gostava, e por um segundo, eu temi ter aberto a jaula para o monstro sair.
— Então conte-me, dona . O que te levou a achar isso?
— Nós quase nos beijamos ontem, foi por pouco. Pelo menos eu acho que íamos nos beijar. Meu coração parecia que ia sair pela boca, tenho sentido um frio na barriga e uma vontade absurda de beijá-lo, além de entrelaçar meus dedos naqueles cabelos rebeldes dele.
— Interessante. Claramente são sinais de uma atração.
— Isso eu já sei, acabei de te falar.
— Impaciente, ela hein – fez uma careta pra mim e eu coloquei a mão no rosto, porque claramente ela estava se divertindo às minhas custas.
— Desculpa, mas você pode me ajudar? Eu quero saber o que fazer com isso!
— Bom… – Lambeu os lábios e inspirou para falar. — Não há muito o que dizer, seu corpo já notificou esse cara como um possível pretendente. Seja pelo olfato ou algum dos outros quatro sentidos que pode ter sido acionado, o negócio é que o estímulo já foi feito. Ele pode passar, ou não. Depende do que você vai fazer com isso.
— Eu não posso ficar com ele – enfatizei.
— Então sugiro se afastar. Se o seu cérebro já está dando sinais que quer esse cara, toda vez que você o vir, ele será ainda mais acionado. Cada toque, cada palavra, cada troca de olhar, tudo isso ativa os nossos sentidos e envia comandos para o nosso cérebro. E ele, em resposta, comandará uma cascata de hormônios e reações, te conectando ainda mais ao rapaz. Tudo só tende a ficar pior.
— Mas eu não tenho como me afastar dele, . Ele é o meu projeto, entende? Eu preciso terminar as nossas sessões. Não tem alguma forma científica de como fazer não ficar de quatro pelo cara proibido?
— Amiga, você acha que se eu soubesse, hoje eu estaria com o ? – Arqueou a sobrancelha para mim com um sorriso irônico nos lábios. — Eu sou a pessoa que mais correu de um amor na vida e veja como estou agora? Sou a cientista mais fajuta que há.
— Ai, meu Deus – suspirei e joguei minhas costas no sofá, frustrada.
— Olha, , falando sério. A única dica científica que a ciência comprova até hoje para esquecer alguém, superar e tudo mais, é se afastando, mas se você não pode fazer isso, é bem difícil te ajudar. Mas, apesar de qualquer emoção que possa ter, somos seres racionais. Não é porque você está atraída por ele que precisa sucumbir a isso. Pode ser que você sinta esse sentimento cada vez mais forte? Sim. Mas não significa que você vai se deixar levar pelos desejos. Não somos animais incontroláveis, apesar de muitas vezes querermos dar desculpas pelos nossos atos dizendo que foi impulso. Se fosse assim, todo mundo que tivesse raiva, mataria; ou todo mundo que sofresse, se mataria. Os impulsos existem, mas podem ser controlados. Vontade dá e passa. No fundo, quando fazemos algo, é porque em algum lugar na nossa mente nós já planejamos, maquinamos ou pensamos em alguma forma naquilo.
— O que sugere então?
— Tente manter a sua relação com ele nas consultas e só. Até porque, devido ser o seu paciente, é um fator a mais para você não misturar as coisas. Quando ele vier aos seus pensamentos, tente ocupá-lo com outras coisas. Se afaste o quanto der. Quando acabar as consultas cada um segue o seu caminho e pronto. Aproveite enquanto o seu cérebro entende isso apenas como uma atração, pois, se virar amor, as coisas se tornarão muito mais difíceis.
Suspirei, sabendo que eu estava mesmo em uma enrascada. era uma pessoa boa e realmente um cara legal. Seria muito fácil se apaixonar, ele tinha um jeito tímido e doce, uma forma inocente de falar e agir, que me fazia cada vez mais atraída. Tornava-o especial.
— Ou talvez você não precise se martirizar tanto e só precise esperar acabar as consultas para se jogar nisso que você está sentindo – se intrometeu na conversa, enquanto voltava para a sala, agora devidamente vestido.
— E esse é o meu namorado. – Cecilia ergueu a mão para ele e ele a pegou, depositando um beijo no seu dorso e voltando a sentar-se ao lado dela.
— Não acreditou que ia vir aqui ouvir só o que a diz, não é? – ele me indagou.
— Mas faz sentido.
— Claro que faz, eu entendo o fato de não poder se relacionar com ele agora, ele gostar de outra e tudo mais, mas por que se privar? Daqui alguns meses a situação é outra, nunca se sabe.
, o incurável romântico – resmungou ao seu lado e apertou a cintura dela, rindo.
— E você a Senhora da razão.
— Bom, ela veio aqui para pedir o meu conselho.
— Ok, ok, não precisam brigar – Balancei as mãos, conhecendo bem aqueles dois. Iam começar um embate entre razão e coração e eu ficaria no meio de um fogo cruzado. — De qualquer forma achei muito válido os conselhos – olhei para eles — de ambos. , não pretendo entrar nessa, não quero nem pensar na ideia. Se fosse em outra situação… talvez. Mas tudo é muito complicado e eu não quero me ver de coração partido no final, ele tá bem enquanto intacto. Mesmo assim, agradeço.
— Nada é para sempre – zombou, cutucando , fazendo a referência a história deles.
— Verdade, até mesmo essa atração que eu sinto agora – enfatizei. — Obrigada, gente, não quero atrapalhar mais vocês, tenho que correr para a faculdade agora.
— Não atrapalha nunca. Vamos marcar de nos ver mais vezes, sinto sua falta, estendeu a sua mão até a minha e a apertou.
— Também sinto. E falando em falta, cadê a Camila?
Perguntei da sua companheira de apartamento que, apesar de eu não ser intima, havia a visto algumas vezes.
fez uma careta e não escondeu a cara de desgosto. também não parecia muito confortável, mas permaneceu quieto.
— Acho que viajou com o namorado, algo assim. Ela não tem me dito muita coisa… – resmungou com um tom áspero.
Camila era a melhor amiga de e pelo jeito algo tinha acontecido ali, mas eu não seria indelicada de perguntar. Era a história delas, afinal.
— Ah sim. Então tá bom. Vou indo, agora. Beijão para vocês.
Despedi-me e me levou até a porta.
Não sei bem o que eu sentia após aquela conversa, não poderia dizer que estava aliviada, mas também não estava tensa da forma que cheguei.
Eu precisava me resguardar de e não demonstrar os desejos da minha carne. E o primeiro passo para isso era restringir as minhas conversas com ele. Seria em nossas sessões e nada mais. Qualquer tipo de amizade seria perigoso, nada de conversas fora de hora, tudo estaria vetado.
Cheguei à faculdade recitando esses pensamentos e analisando todas as formas que eu faria para manter e eu em distância. Denis havia me mandado uma mensagem dizendo que ele estava na Tia da Cantina e que era para eu encontrar ele lá. Fui com um sorriso no rosto até chegar ao local e avistar o meu amigo, que não estava sozinho. Ao lado dele na mesa estava um pouco confortável e um Denis com um sorriso no rosto, e eu ali parada, pensando em como no primeiro segundo o meu plano tinha ido por água abaixo.



Capítulo 12

O sol brilhava, um vento fresco batia, as pessoas transitavam pelo local e o meu amigo me esperava na Tia da Cantina... Tudo aparentemente normal, se não fosse à pessoa que o acompanhava.
estava com os dedos das mãos entrelaçados sobre a mesa e vez ou outra balançava a cabeça em sinal de sim e de não. Sua postura parecia meio rígida, o semblante era sério e as sobrancelhas curvadas formavam um vinco em sua testa. Até o Denis parecia diferente, com exceção do momento que ele virou para mim e sorriu. No entanto, ainda que o Pimentinha estivesse fora do seu estado natural, eu vi o brilho malicioso em seu olhar. Seja o que fosse que ele estivesse fazendo, ele estava se divertindo com isso.
Eu não queria nem imaginar o que é que o meu amigo estava aprontando com o . Era só o que me faltava; o Denis pagar de O Poderoso Chefão com o meu paciente.
Meu amigo, assim que me viu, estendeu o braço e começou a acenar enlouquecidamente, chamando-me para sentar com eles. Toda a minha ideia de sair correndo e me esconder antes caiu por terra e agora era tarde demais. Caminhei até eles e me sentei do outro lado da mesa quadrada, entre e Denis, e os cumprimentei um pouco sem graça, afinal, eu ainda não havia esquecido da noite com o moreno ao meu lado.
– Denis exclamou longamente, esticou o seu corpo, puxou a minha cabeça de forma desengonçada e me deu um beijo demorado na bochecha.
Cena, pura cena.
— Oi, Denis – respondi, empurrando-o pelo ombro e enxugando seu beijo melecado da minha bochecha. Em seguida, virei-me para e dei um pequeno sorriso. — Oi, .
— Oi, me correspondeu e elevou levemente o lábio em um tímido sorriso.
Nossa noite de ontem havia sido muito estranha, estava com medo que houvesse estragado tudo. Queria ter tido mais tempo para me preparar psicologicamente para esse encontro, mas como não tive a oportunidade, o negócio então era fazer a egípcia, fingir que nada aconteceu e que estava tudo na mais perfeita e santa paz entre nós.
— Não queria perguntar não, mas, já perguntando... Como vocês vieram parar em uma mesa juntos? – perguntei, a curiosidade falando mais alto do que eu.
abriu a boca para responder, mas Denis foi mais rápido.
— Eu vi o bonitão aqui passando, enquanto eu te esperava. Gritei para ele vir até aqui e o convidei para sentar. Ele é seu amigo, não é? E o amigo da deve ser meu amigo também! – Olhou para mim e depois fitou , abrindo um sorriso inocente, mas que vindo dele, de inocente não tinha nada.
— Ah claro! Porque eu sou amiga de todas as suas amigas também, não é? – Arqueei minha sobrancelha para ele, claramente deixando claro que eu não comprava o seu discursinho.
— Não é porque não quer, inha. – Apertou a minha bochecha e eu bati na mão dele, ele sabia o quanto me deixava irritada quando fazia isso. — Tenho certeza que minhas amigas fariam questão de ter você como amiga também.
— Ah claro. Imagino! Fico lisonjeada, mas não, obrigada. – Coloquei a mão no peito e dei o sorriso mais falso que consegui.
Começávamos a fazer o nosso duelo, quando eu lembrei que estava na mesa assistindo isso tudo. Olhei para ele, mas o meu paciente olhava para qualquer outro lado, batucando o dedo na mesa. Definitivamente nem um pouco confortável.
— O que você fez com ele, Denis? – perguntei.
Minha intenção era ser discreta, mas eu já estava muito nervosa tendo que lidar com isso tudo, então a pergunta saiu mais alta do que eu pretendia, e pior ainda foi o nível auditivo da resposta do Denis.
— Por que eu sempre tenho que ter feito alguma coisa? – Levantou as sobrancelhas para mostrar-se ultrajado.
Balancei a cabeça e coloquei a mão na testa, sem acreditar que isso estava acontecendo, mas logo senti uma mão segurar o meu braço para abaixá-lo.
— Está tudo bem, . Nós estávamos conversando só, nada de mais – Era que me tocava e dava um pequeno sorriso para me tranquilizar.
— Desculpe se o Denis foi invasivo ou petulante com você em algum momento, . Ele simplesmente não sabe a hora de parar – falei a última palavra de forma bem entoada para o meu amigo e colocando o meu olhar sobre ele, como um aviso que hoje, definitivamente, não era um dia bom para ele aprontar.
— Ei, eu tô aqui, tá legal! E seu amigo sou eu, você tinha que me defender. – Suas mãos se fecharam sobre a mesa, mas o sorriso desleixado ainda estampava o seu rosto.
— Ok, então me fala, Denis. O que vocês estavam conversando antes que eu chegasse? – Cruzei os braços e olhei firmemente para ele, aguardando a sua resposta.
— Er... E-eu estava só perguntando para o sobre coisas da faculdade, da vida, o tempo, futebol... Não é? – Denis encostou suas costas na cadeira e olhou para o meu paciente do outro lado da mesa.
— Ah... Claro – concordou e acenou com a cabeça, piscando os cílios repetidamente.
Aquele era o sinal que fazia se entregar. No tempo que eu o conhecia, eu já sabia muitos dos seus trejeitos, não era como se ele conseguisse enganar alguém, mesmo se quisesse.
— Sério? Que interessante essa camaradagem masculina, hein! – Enruguei a testa, mostrando-me claramente insatisfeita.
não se conteve e deu um pequeno sorriso, elevando o canto do seu lábio direito e balançando a cabeça, o que fez com que seus cabelos caíssem em frente aos seus olhos, no qual ele retirou com a mão logo em seguida.
Peguei-me admirando esse movimento quase em câmera lenta por uns instantes e logo percebi que Denis tinha o cenho franzido, observando também.
— Você faz sempre isso? – Meu amigo franziu o cenho e encarou , questionando-o.
— Isso o quê? – ele devolveu a pergunta.
— Essa coisa de piscar esses cílios longos e dar esse sorrisinho sutil no canto da boca.
— Sim.
— Não.
e eu respondemos ao mesmo tempo; ele negando e eu afirmando.
— Meu Deus, como você consegue? – Denis arregalou os olhos, espalmou as suas mãos sobre a mesa e virou-se pra mim.
— Como eu consigo o quê? – retruquei, sem entender.
— Não se apaixonar por ele! Olha isso! – Apontou para , que parecia querer cavar um buraco e se esconder. — Até eu em cinco minutos de conversa já tô apaixonado pelo cara, como você consegue ficar imune a isso?! – exclamou, olhando agora para .
— Não é nada demais – defendi, mesmo sabendo que sim, era um charme e tanto que tinha e fazia sem ao menos perceber.
— Claro que é, você sabe disso! É um jeitinho de sorrir inocente, mas, ao mesmo tempo, safadinho, porém não intencional. – Cruzou os braços por cima da mesa e encarou . — Me ensina?
abriu a boca, sem palavras diante do meu amigo inoportuno, e eu fui obrigada a tampar o meu rosto de vergonha por ele.
— Eu nem sei do que você está falando – ele se defendeu e Denis rolou os olhos.
— Denis, dá para você parar de atazanar o ? Você já pega meninas o suficiente para não precisar de ajuda nenhuma – ralhei, tentando controlar a situação.
— Mas é sempre bom aprender uma tática nova. – sorriu de forma safada e encostou as costas novamente na cadeira, colocando as mãos atrás da sua cabeça, divertindo-se conosco.
Eu não estava aguentando mais isso. A situação toda estava fora de controle. Já estava nervosa por conta das minhas tarefas da faculdade, tentando me controlar com o que estava acontecendo comigo quando ficava perto de , ainda estava ruminando a conversa que tive com a e agora precisava passar por isso aqui.
Denis estava envergonhando a mim e ao , deixando a nossa situação ainda mais constrangedora, mesmo que ele não soubesse da missa um terço do que se passava comigo.
Ainda assim, não dava!
Era como uma panela de pressão prestes a explodir, e foi bem isso que aconteceu.
— Meu Deus! Já chega, Denis! Você vai espantar o e ele nunca mais vai querer fazer as consultas comigo! – Bati a mão na mesa e me arqueei um pouco, protestando.
Minha voz saiu forte e meu olhar sobre meu amigo estava sério, chamando a atenção de ambos ali.
— Tá bom, tá bom. Parei. Credo! Santa Defensora dos Homens Indefesos.
— Ow! – exclamou, franzindo o cenho e a minha cara se enfureceu ainda mais para o meu amigo.
— Denis, vai embora! – pedi, exausta.
— Quê? – Meu amigo olhou pra mim com os olhos arregalados.
— Eu pedi pra você sair. Já deu! Queria me tirar do sério? Pronto, conseguiu!
Denis fechou o semblante e me encarou, ficamos nesse duelo algum tempo até que ele olhasse para e depois para mim novamente, seus olhos vacilando por um instante, parecendo ferido. Levantou-se da mesa em um impulso, pegou sua bolsa e saiu marchando, quase derrubando a cadeira.
Fechei meus olhos e suspirei profundamente, brigar com Denis era algo comum, mas aquela discussão específica havia me incomodado e eu não estava nada satisfeita com isso. Não era apenas uma brincadeira ou implicância entre amigos, nunca havia acontecido isso com a gente antes.
Ouvi um pigarro de , que estava no mesmo local ainda e tinha assistido toda essa cena que a gente tinha armado.
Minha vontade era sumir, mas ainda tinha que tentar consertar essa merda toda para, pelo menos, manter meu paciente, antes que ele sumisse achando que éramos um bando de loucos.
— Me perdoa por tudo, . – Virei para falar com ele. — O Denis não tem o direito de te incomodar assim. Eu sou amiga dele e sei que ele é invasivo, então, só me desculpe e não desiste das consultas por causa do que aconteceu – pedi, envergonhada.
... – suspirou e tocou meu braço. — Não tem motivo para me pedir desculpas.
— Claro que tenho! É minha culpa... – comecei a contrapor.
— Ei, pode parar. – Ele franziu o cenho e ergueu a mão. — Primeiro, não precisava. Eu poderia até ter interferido na discussão de vocês para me defender, mas, por algum motivo, eu senti que isso tudo não tinha a ver comigo especificamente, tinha? Claro que a conversa do Denis era sobre mim, mas creio que o maior problema na verdade está acontecendo entre vocês. Entrar no meio só pioraria a coisas. E, sinceramente, não me incomoda. Claro que eu fico sem graça, mas no pouco que já vi do seu amigo, percebi que é o jeito dele. O máximo que pode acontecer, sou eu ficar vermelho, mas depois passa. – deu um pequeno sorriso e apertou meu braço com afeto, deslizando seu dedo sobre ele e mostrando-me que estava tudo bem.
— Mesmo assim, o Denis passou dos limites hoje.
— Só ele? – arqueou a sobrancelha pra mim, mas manteve o sorriso no rosto.
— Existe mesmo essa história de cumplicidade masculina? – devolvi, sem entender porque estava defendendo ele, sendo que foi o mais prejudicado na história.
— Acho que até tenha, mas não é esse o caso agora. – Ele balançou a cabeça, mexendo os seus cabelos no movimento.
— Então talvez eu também tenha passado dos limites com o Denis. É o que quer dizer, não é? – Cruzei os braços e inspirei.
— Talvez... – retirou a mão do meu braço e mordeu o seu lábio, antes de recomeçar a falar. — Ele não parecia acostumado a ser expulso da mesa por você.
— Porque nunca tinha acontecido – completei e não respondeu mais nada.
Ele ficou em silêncio enquanto olhava para mim e só agora eu havia me dado conta que estávamos sozinhos novamente, enquanto a ideia inicial era justamente me afastar dele.
Eu me sentia exausta essa manhã. Eram mais coisas do que eu poderia lidar. Na verdade, eu estava me sentido dessa forma há tempos e só piorava cada vez mais. Contudo, enquanto meus problemas restringiam-se aos meus estudos, eu ainda conseguia controlar, agora, mexer com o meu emocional, era uma situação nova para mim.
— Eu estou cansada... – lamentei em desabafo, antes que eu pudesse me conter.
— Isso eu já tinha notado – brincou e me deu um sorriso confortável.
— Parece que sim. – Sorri de volta para ele.
tamborilou seus dedos na mesa e me encarou. A conversa havia terminado e, sinceramente, eu não tinha mais assunto, queria voltar para a minha casa, mas não podia porque tinha aula à tarde.
— Talvez a gente devesse sair – quebrou o silêncio, chamando a minha atenção.
Virei à cabeça subitamente em sua direção e arregalei os olhos.
— O quê?
— Não dessa forma! – engoliu em seco e espalmou as mãos em defesa para mim. — Não me interprete mal. Estou te convidando como amigo. Eu acho que você precisa dar uma relaxada, eu conheço uns lugares maneiros que você podia desestressar. Você tá precisando de ar livre.
Meu cérebro deu um giro muito louco. Sair com ? Não mesmo! Era completamente o oposto do que eu tinha recebido como orientação para fazer. Seria como me jogar nas piores armadilhas das minhas emoções hormonais. Como enfiar a mão dentro de uma jaula, sabendo que o leão estava lá pra te devorar.
Não mesmo! Não poderia fazer isso.
— Não podemos! – respondi de forma curta.
— Por quê? – Franziu um pouco o cenho e piscou aqueles malditos longos cílios pra mim.
— A gente tá em um projeto e você é o meu paciente, não podemos misturar as coisas.
— E o que tem a ver isso? – Cruzou os braços, parecendo realmente não entender.
— Seria completamente antiético a gente ficar se encontrando fora dos horários. Poderíamos acabar misturando as coisas. Então é melhor não.
— Mas ontem a gente assistiu filme juntos – observou e eu quis me matar pela bendita hora que eu havia concordado com isso.
— Um erro que não vai se repetir, – respondi e ele franziu ainda mais o cenho, talvez ressentido.
— Então você nunca vai poder trabalhar em uma cidadezinha do interior, né, porque lá todo mundo conversa com todo mundo, sai junto, é amigo, conhecido e tudo mais.
Ai se soubesse que o problema era muito mais embaixo entre nós dois.
Mas como ele ia saber?
só tinha olhos para a Vanessa, nunca que ele veria maldade entre nós, pois era algo que nem mesmo passava em sua mente. A boba era eu de ter ficado encantada com ele.
— Melhor não, , desculpe. A partir de hoje qualquer coisa entre a gente será somente nos horários de consulta e nada mais. Precisamos impor limites aqui. Pode me mandar mensagem ou ligar, desde que seja sobre os assuntos que estamos tratando. Fora isso, está terminantemente proibido – expressei de forma clara e, talvez, um tanto dura.
Mas sabia que era a melhor forma de podermos evitar quaisquer problemas.
fechou o punho sobre a mesa lentamente e depois recolheu-o, para esconder a mão sobre o seu colo. Sua expressão converteu-se em séria e ele parecia pensativo. Ficou olhando para baixo, fitando a mesa, depois me olhou por baixos dos cílios, desviou novamente e, no final, acabou me encarando com a cara fechada.
— Mas na hora que você precisou de mim para assuntos que não eram sobre o projeto eu te atendi, não foi? – falou de forma magoada, os olhos vibraram um pouco e eu me senti a pior pessoa da face da Terra.
havia dito que não tinha mais amigos, talvez aquela era a maneira dele conseguir sair de casa, finalmente fugir do seu casulo. Eu não queria que ele pensasse que eu tinha apenas o usado ontem e que agora estava desdenhando da sua companhia. Sabia também que sair seria algo que faria bem para ele. Mas, infelizmente, eu não poderia fazer isso. Ele que chamasse qualquer outra pessoa para ir junto, menos eu.
... – interpelei, tentando me corrigir e não parecer a pessoa mais contraditória da Terra. — Eu realmente te pedi isso, eu estava desesperada, me desculpa. Eu não tô rejeitando o que me ofertou por capricho. É realmente importante que a gente não passe muito tempo juntos fora das sessões, até para eu poder ter uma análise melhor do caso, sem estar envolvida de alguma forma. Eu preciso ter um olhar imparcial, entende? Ser sua amiga não vai te ajudar – expliquei da melhor forma que consegui, sem expor mais do que deveria.
olhou para mim e eu fiquei com o coração na boca, enquanto esperava que ele respondesse alguma coisa. Após alguns segundos, ele suspirou, arrastou a cadeira e se levantou.
— Tudo bem, eu só queria te ajudar de alguma forma. Preciso ir agora. Tchau, . – Acenou com a mão e se despediu de mim, só me dando tempo de fazer um leve aceno em resposta.
Dessa vez, desde que nos conhecemos, não teve beijo na bochecha, apenas uma despedida comum.
E por que eu me importava?
Eu estava agindo corretamente. No entanto, ainda assim, meu coração estava pesado, e eu fiquei me perguntando o motivo que algo tão simples parecia tão catastrófico para mim.



Capítulo 13

Havia chegado o dia da terceira sessão de . Dessa vez eu não tinha Denis para ficar me perturbando com antecedência e nem para tentar me deixar mais calma. Por isso, eu andava para lá e para cá, sem parar e estava muito nervosa.
Depois da confusão na Tia da Cantina, Denis e eu não havíamos conversado direito. Isso nunca havia acontecido e posso dizer que nunca imaginei que eu sentiria tanta falta daquele garoto. Ele era mestre para fazer o meu dia mais feliz e engraçado, sem ele, eu só pude terminar enfurnada ainda mais a minha cara em livros, artigos e apostilas.
Eu o procurei, mas ele disse que estava apenas ocupado demais com o projeto dele, o que significava que ele estava ocupado demais com garotas e, em consequência, fugindo de mim.
Tá, talvez não fugindo literalmente, mas também não fazia muita questão de ficar por perto. E isso doeu.
Quanto ao , eu havia mandado uma mensagem para ele com a data do nosso próximo encontro e o horário. Ele me mandou apenas o emoticon do joinha em resposta, provavelmente cumprindo as formalidades que eu tanto prezei para ele na última vez que o vi.
Fiquei preocupada que por causa da nossa “discussão” ele apenas desistisse de tudo e nunca mais quisesse me ver. Ou então que ficasse um clima tão estranho que o avanço que eu tinha tido com ele, retrocedesse.
Era por isso que não poderia haver envolvimento fora das sessões, para evitar que casos como esse acontecessem. Eu não podia por tudo a perder. Além de pensar no meu paciente, eu precisava muito desse projeto. A minha aprovação na disciplina dependia disso.
Então, só restava-me estar ali na sala, rodopiando mais que peão, a espera de . Respirei fundo e expirei várias vezes, tentando me acalmar e agir o mais naturalmente possível. Eu precisava me controlar para poder atendê-lo e fiz todas as minhas orações para que hoje fosse um dia agradável.
Não tardou e eu ouvi o som da campainha, o que me fez correr até lá para abrir a porta. estava parado, uma calça jeans azul escura e uma blusa vinho gola canoa. Não consegui decifrar a expressão dele, se era boa ou ruim, ele parecia muito… Imparcial.
— Oi, – cumprimentou-me, enquanto eu abria a porta e pedia para que ele entrasse.
— Fica a vontade, a casa você já conhece – tentei brincar para aliviar a tensão e caminhou até o sofá, cruzando os braços sobre a perna assim que sentou.
Assentei-me do outro lado e olhei para ele, que estava com a cabeça baixa.
Deus, eu tinha estragado tudo.
O clima estava estranho. Sabe quando tem uma áurea constrangedora que você não sabe como escapar? E o pior é que eu ficaria ali com ele ainda por uma hora, eu precisava pelo menos quebrar o gelo. No entanto, antes que eu abrisse a boca para tentar corrigir a situação, ouvi o som da voz de e fiquei quieta, esperando seja lá o que ele fosse falar.
— Eu entendo o que você disse da última vez. Desculpa se me mostrei arredio. É um direito seu e vou respeitar, não quero que isso cause algum desconforto entre nós – falou, roubando algumas palavras da minha boca.
Fiquei estupefata, não esperava isso dele. Estava acostumada com as pessoas esperneando, retrucando, debatendo, não apenas concordando e pronto. Pelo menos era o melhor para nós dois, por isso, esforcei-me para dar um sorriso condescendente para ele, sentindo-me levemente aliviada.
— Não tem porque se desculpar. Talvez me faltou jeito também para te explicar a situação toda, mas fico feliz por estar tudo bem então. Confesso que fiquei preocupada… – Inclinei um ombro e elevei o canto da boca, desviando o olhar.
, ainda com a cabeça levemente abaixada em direção das suas pernas, virou um pouco o seu rosto e me olhou com o canto dos olhos, deixando nascer um pequeno sorriso na lateral do seu lábio.
— Não tem que se preocupar, eu estou aqui. – Enfiou a mão nos cabelos que caíam nos olhos e jogou-os para trás, corrigindo a sua postura e agora encostando as costas no sofá.
— Ótimo! Está pronto para começar? – perguntei, pegando meu caderninho e colocando sobre o colo.
— Acho que nunca estou, mas vamos lá. – Piscou um dos seus olhos para mim e girou o seu corpo em minha direção.
Um dos pontos de hoje era perguntar se ele tinha feito à lição de casa, tentando sair mais com os amigos, etc. Mas como a nossa confusão teve algo relacionado a esse tópico específico, achei por bem deixar isso por último e começar por algo mais leve.
— Hoje nós vamos desfocar um pouco do seu antigo relacionamento, . Pelo menos no início da sessão, tudo bem? Agora eu quero saber sobre o , quem ele é, de onde veio, a sua história.
— Vamos lá! – sorriu e me deu o aval para começar.
— Pode começar falando sobre a sua família.
— Bom… – Lambeu o lábio inferior e o mordeu-o, soltando em seguida. — Eu nunca conheci o meu pai. Ele faleceu quando minha mãe ainda estava grávida, então sempre foi só eu e ela.
— Lamento, .
— Obrigado. – Balançou a cabeça. — Eu não cheguei a conhecê-lo. Em compensação, minha mãe era maravilhosa. Sempre trabalhou muito para conseguir me dar do bom e do melhor. A gente não tinha dinheiro, sabe? Ela era diarista, contratada para passar roupa fora, dar faxina, cozinhar, qualquer coisa que surgia ela topava. Nunca faltou nada lá em casa e como só tinha eu de filho, sempre me mimou como pode – falou com os olhos brilhando e eu sorri com o relato.
— É muito bom ter um relacionamento familiar feliz, ela é a base e a ajuda que muitas vezes precisamos – comentei e ele sorriu em concordância.
— Sim! A Vanessa vivia brincando que eu era até mimado em excesso pela minha mãe. Ela sempre fez tudo por mim, se deixasse ela colocava até o meu prato pronto na mesa. – Deu uma pequena risadinha e passou uma mão na outra. — Era só comentar, “mãe, hoje eu vou sair”, que ela passava umas três camisas e deixava prontinha em cima da cama, só para eu ter opções de escolhas no que usar. Confesso que ela me deixou muito mal acostumado. – Deu uma pequena risada.
— Uau! – ri. — Acho que a Vanessa tinha razão.
— Ah, com certeza tinha. – Sorriu. — Na vida sempre foi minha mãe e eu, e o que nunca me faltou foi amor e carinho. Não até enquanto durou… – Abaixou as vistas e seu sorriso morreu.
— Pode me falar mais sobre isso, ?
— Ela morreu. – confessou e eu segurei para não demonstrar surpresa com a informação. — E quando isso aconteceu foi um baque – completou e mordeu a parte interna da bochecha, sem olhar para mim.
— Você poderia me contar um pouco mais a respeito? – perguntei, ainda tentando me recuperar daquela informação.
— Ela tinha uma jovialidade invejável. Era uma mulher trabalhadora, estava feliz e realizada por ver meus projetos se concretizando. Aí simplesmente, um dia eu chego em casa e encontro ela desacordada no chão. – Engoliu em seco e passou a mão sobre o rosto.
— O que aconteceu, ?
— Dizem que foi infarto. Quarenta e dois anos e ela enfartou, no meu quarto, minhas camisas passadas em cima da cama porque eu tinha dito que ia sair com a Vanessa aquele dia – falou com a voz um pouco trêmula.
— Como foi esse processo pra você?
— O que acha? – perguntou um pouco ríspido, olhando para mim novamente com os olhos cheios de lágrimas. — Desculpe! – Piscou e voltou a olhar para baixo, deixando de me encarar. — Acho que parte do meu mundo se quebrou aquele dia e eu nunca mais fui o mesmo. Minha mãe, a minha única família, tinha ido embora. A gente nunca confia plenamente que os amores vão ficar, ou os amigos, colegas, nada disso. Mas pai e mãe, acho que são os únicos que a gente pensa que é eterno, que pode passar tudo na vida e ainda assim estarão ali sempre para você. Pai eu nunca tive, então só me restava ela. E sem ela… Só me restou a Vanessa. – Uma lágrima escorreu dos seus olhos, mas ele rapidamente a limpou.
— Que agora também não tem mais – completei, acreditando que estávamos chegando a um ponto importante.
— Exato.
, como você acha que essa perda afetou sua vida?
— Por um tempo eu fiquei mal, né? Acho que todo mundo fica. Mas a Vanessa me ajudou demais na época. Como eu morava sozinho com minha mãe, depois da morte dela a Vanessa quase que passou a morar lá em casa também. Ela me confortou, me ajudou pra caramba para arrumar as coisas do velório… Eu não sei o que faria se ela não estivesse ao meu lado – refletiu e abaixou a cabeça, colocando-a entre as mãos.
— Se me recordo, você havia me falado em outra sessão que houve uma época em que você e a Vanessa quase terminaram. Teve alguma relação com essa fase difícil que vocês passaram? – perguntei, lembrando do ponto que ele havia relatado anteriormente.
— Não. – Ele balançou a cabeça. — Pelo contrário, depois disso nossa relação ficou ótima.
Arqueei a sobrancelha, sem compreender.
— Como assim?
— Lembra que eu disse que, em um certo momento, quase terminamos? – recobrou e eu acenei com a cabeça afirmando. — Então, isso foi antes do que aconteceu. A gente brigava muito, nosso relacionamento estava insustentável, sabe? Estávamos tão insatisfeitos que qualquer coisinha virava algo grande. No dia que minha mãe morreu, por exemplo, eu estava indo para a casa de um amigo na fazenda porque queria ficar fora de sinal e refrescar a cabeça.
— Você acha que iam terminar?
— É provável. A gente não conseguia se entender mais e nem conversar direito. Nós definitivamente não funcionávamos mais juntos, estávamos perdidos em um labirinto sem mapa para voltar.
— Se estava tudo ruim, por que continuaram?
Perguntei e ficou quieto, encarando-me pensativo. Não soube medir o tempo do seu silêncio, mas esperei até ele inflar os pulmões, olhar para mim de novo e conseguir responder.
— Não sei… – iniciou. — Sinceramente, eu não sei dizer. Acho que quando você tem um relacionamento de tanto tempo, não consegue simplesmente terminar assim, ainda mais nós dois, que nos conhecíamos desde sempre. Não dá pra jogar fora, você só tenta e tenta e depois tenta de novo.
— Há alguns ciclos que a gente precisa quebrar para fazer um novo começo.
encarou-me com o cenho franzido e pensativo. Eu não sabia o que se passava na cabeça dele, mas esperava que minhas palavras ajudassem-no a trilhar um caminho melhor.
— Mas se tivéssemos rompido, eu não a teria do meu lado quando eu mais precisei. E a gente se acertou depois disso – ponderou, meio desconfortável com o rumo da conversa.
— Ou talvez, pela amizade, ela estaria ao seu lado da mesma forma. Você não disse que eram amigos?
— Sim, mas… Não sei dizer. Talvez sim, talvez não. O negócio é… O nosso relacionamento voltou ao normal depois.
— O que seria normal para você? – questionei-o, tentando entender o que havia acontecido entre eles.
— Quando minha mãe morreu, a Vanessa praticamente mudou para minha casa e as brigas cessaram. Ela me deu uma força muito grande, a gente não discutia e vivíamos praticamente como casados. Até passar minhas roupas ela passava e eu nunca pedi isso pra ela. – Deu um pequeno sorriso com a lembrança. — Nunca impus nada para a Vanessa fazer por mim. A gente dividia as tarefas lá em casa, mas outras ela fazia de bom grado, porque ela sabia que eu era péssimo, principalmente na cozinha. Depois que minha mãe morreu, criamos uma rotina imensa, um casamento sem casório.
— E todos aqueles pontos que você disse que causavam as discórdias de vocês antes? – indaguei, achando muito estranho toda essa súbita mudança.
— Não teve mais. Simplesmente sumiu. A Vanessa nunca mais me chamou para nada daquelas coisas, ainda que, muito raramente, ela comentava algo que ia ter em algum lugar, mas nunca chegou a me chamar para ir. E quando ela ficava mais aborrecida por alguma coisa, entrava no quarto e só saía depois de se acalmar.
… – chamei a sua atenção. — Você não acha muito estranho as coisas terem mudado da água para o vinho assim?
Ele arqueou a sobrancelha pra mim e uniu as sobrancelhas em seguida, parecendo meio surpreso com o questionamento. Creio que ele nunca havia refletido de fato nessa questão.
— As coisas mudaram porque a situação mudou. Não sei, nunca parei para pensar nisso. As coisas estavam bem, então, por que eu ficaria martelando sobre o motivo de estarmos em um bom relacionamento agora? Eu só abracei a causa e segui.
Respirei fundo, sabendo que o que eu diria a seguir talvez resultasse na abertura da caixinha do caos na cabecinha de . Seria difícil, talvez ele não conseguisse enxergar no momento, mas, para mim, estava bem claro o que havia acontecido, ainda que houvesse algumas lacunas ainda não descobertas.
… Você já parou para pensar que talvez as coisas nunca estiveram de fato bem entre vocês dois? Uma relação tão insustentável não se transforma da noite para o dia assim, ainda mais se unirmos ao fato que isso aconteceu após um evento trágico para você. Talvez a Vanessa tenha suprimido isso tudo porque você estava mal pela sua perda – falei com cuidado e esperei para que ele pudesse lidar com essa nova informação.
Que outro motivo teria para um casal que estava, como ele dizia, a beira da ruína, de repente virar mil maravilhas? E, subitamente, após um tempo, a garota resolve terminar com ele com justificativa alguma?
não enxergava e não compreendia porque para o lado dele, as coisas estavam bem. A Vanessa havia sido a âncora do momento difícil que ele estava passando. Claro que ela também tinha errado em não ter conversado com ele no processo, contudo, talvez nem ela tivesse percebido isso também, só quando já era tarde demais.
Há situações que, quando reparadas antes, possuem conserto, mas se só empurramos com a barriga, chegamos ao ponto de fazer tudo morrer. E eu acreditava piamente que fora isso que havia acontecido entre eles. A situação chegou a um ápice que não restou nenhuma outra opção que não fosse a Vanessa terminar.
— Você acha que… – começou, mas se calou. Fechou-se dentro de si, introspectivo, e após algum tempo em silêncio, ele olhou para mim, seus olhos frios, bem diferente do que era comum para ele. — Você pode ter razão.
Seus dedos fecharam em punho ao lado das suas pernas no sofá e o seu rosto começou a aparentar um aspecto sofrido. Vi o seu tórax subir e descer lentamente em uma respiração intensa. Não olhava mais para mim, apenas para um ponto qualquer na parede, em um semblante de lamento.
— Não deve se culpar por isso, – iniciei, tentando expor isso a ele, antes que se fechasse nesse sentimento negativo. — Você não a obrigou a estar nesse relacionamento, pelo contrário, estava passando por seu processo de luto, seria muito exigir que você conseguisse enxergar essa situação no momento. No entanto, é importante que, agora, você tente olhar sua relação com outros olhos.
— Uhum. – foi conciso e acenou com a cabeça. Um silêncio se fez presente por alguns segundos e depois ele retomou. — Eu deveria ter reparado… Vanessa nunca foi de se calar ou de não dizer o que pensa. Ela passava cada vez mais do seu tempo só dentro de casa comigo ou com a família dela, estava mais quieta. Mas como ela estava comigo, eu achei que tudo estava bem, afinal, nós não brigávamos mais, né? Doce ilusão… – Deu um sorriso triste enquanto elevava os ombros sutilmente.
— Às vezes as brigas e as discussões nos mostram justamente o que está errado. Claro que tudo tem limites e, em excesso, é prejudicial ou até fatal. Mas divergências são normais dentro de um relacionamento. Em outras situações, quando tudo acaba é que devemos nos preocupar. Quando não fazemos mais questão, quando não nos importamos mais com algo ou quando as coisas não fazem mais sentido… Se calar sempre é pior.
— Agora eu vejo… – Passou a mão pelo rosto e começou a balançar a perna. — Eu sei que você disse para não pensar nisso, mas a culpa é toda minha. Eu suguei a energia da Vanessa sem nem mesmo perceber.
— Foi uma escolha dela, . Ou você a obrigou a continuar com você? Em algum momento você implorou por esse relacionamento?
engoliu em seco, mordendo a bochecha interna.
— Bom, quando terminamos sim – respondeu, envergonhado. — Mas na época não. Na verdade, mesmo que antes da morte da minha mãe a gente estivesse brigado, depois foi apenas como se nada daquilo tivesse mais sentido. Nunca chegamos a sentar novamente para colocar os pingos nos is. Só continuamos como namorados como se nada antes tivesse acontecido.
— O luto do momento sobrepôs à situação que estava acontecendo com vocês. A dor por algo maior era mais importante, então vocês apenas ignoraram o que parecia pequeno no momento e se apoiaram no momento difícil.
— Isso – confirmou. — E depois que as coisas se tranquilizaram, eu estava com a Vanessa e não via nada de errado mais.
— Mas para ela havia – completei e ele olhou-me triste.
— Pelo que parece sim, afinal, ela terminou comigo – inclinou levemente o lábio em um sorriso irônico e abatido. Abaixou a cabeça e enfiou os seus dedos por entre seus cabelos, puxando-os levemente. — Podemos terminar? – mirou-me por sobre os cílios e pediu.
… – interpelei suavemente, mas ele balançou a cabeça em negação.
— Por favor! – pediu. — Eu… Eu preciso pensar.
A tristeza era nítida nos olhos dele, mas agora era diferente. Diferente de quando ele havia chegado chorando e desesperado por ter perdido a pessoa que ele dizia ser a vida dele. estava triste consigo mesmo, talvez por nunca ter visto os sinais, por não ter compreendido que as coisas só estavam boas para ele. Pela Vanessa nunca ter dito o quanto estava incomodada e por ter empurrado aquele relacionamento… pelo acúmulo de inúmeros fatores.
Talvez até o próprio viesse a enxergar com o tempo que nada era perfeito, nem mesmo para o lado dele.
— Tudo bem. Se sentir que precisa desabafar, use o caderno, pode ajudar – aconselhei-o.
— Vou fazer isso. – respondeu sem olhar para mim, levantou-se e eu o acompanhei.
Andamos em silêncio até a porta, abri para ele e o observei, vendo como ele estava se segurando para não desabar ali.
, tente usar esses dias para pensar no que conversamos, tudo bem? Eu sei que está doendo e sei que é difícil, porém, precisamos confrontar os nossos monstros para podermos superá-los. Pense na morte da tua mãe, no teu luto, no que seu relacionamento te influenciou. Reflete nessas coisas, ok?
— Vou tentar. Obrigado, . – Olhou-me mordendo o lábio e depois inclinou-se, me deu um beijo na bochecha e virou-se para ir embora.
Pelo visto as coisas estavam melhores entre nós, mas, em contrapartida, para , hoje seria um dia difícil e de muitas reflexões.



Capítulo 14

Amigo.
Uma palavra pequena, mas com grande significado. Não se sabe ao certo a origem. No latim, amicus, mas talvez tenha se originado da palavra amare, que significa amar, ou animi custas, que significa guardador de alma. Ou seja, alguém que toma conta de outro.
Para mim, amigo significa irmão, ou melhor, irmão sem laço sanguíneo, mas feito por laços de amor.
Pensando assim, era de se imaginar como doía ter Denis distante.
Ele nunca havia sido o cara de dar um espaço ou de se manter longe. Contudo, mais de uma semana havia se passado e nós ainda não havíamos conversado direito. Trocávamos algumas palavras na aula, mas somente o básico do básico e de forma super fria.
Denis sorria e gracejava com todo mundo, menos comigo. Para mim era só "oi", "bom dia" e "tchau".
Como também não sou fácil, fiquei brava e não o procurei mais. Conclusão: dois birrentos.
O que isso ia resolver? Em nada, obviamente.
Depois de muito refletir, decidi que era querer demais que o Denis me procurasse ou parasse de me ignorar, por isso, de hoje não passava. Eu já estava farta dessa situação, sentia falta do meu amigo e o queria de volta. A vida era curta demais para ficarmos perdendo tempo com briguinhas bobas e nos afastando de quem nos faz tão bem. Portanto, precisávamos conversar.
Sentei na minha cama, peguei meu celular e disquei aquele número que eu sabia de cor. Chamou várias vezes, até que finalmente ele atendesse.
— Alô. – A voz do meu amigo soou do outro lado da linha.
Fiquei em silêncio por um tempo, as palavras fugindo da boca e o coração saltitando de nervosismo. Estar brigada com Denis era muito desconfortável e estranho.
— Me perdoa por ter agido daquele jeito com você, eu fui uma idiota e eu quero meu amigo de volta – desabafei de uma só vez para ele, antes que perdesse a coragem.
Mais um outro longo silêncio se fez após a minha fala, até que eu pude ouvir um suspiro.
— Abre a porta, .
— O quê? – perguntei surpresa.
— Abre a porta – repetiu.
Corri com meu celular ainda na orelha e fui até a porta, abrindo-a imediatamente. Denis estava parado lá, os cachinhos arrumadinhos e uma carinha de cachorro sem dono. Em sua mão havia uma sacola, que ele estendeu para eu segurar.
— O que é isso?
— Uma oferta de paz – respondeu e um pequeno sorriso despontou da sua boca.
Abri o saco e não pude conter a gargalhada quando vi uma dúzia de ovos dentro dela, se não fosse assim, não seria o Denis.
— Pensei que podíamos fazer uma omelete, chorar nossas mágoas e fazer as pazes. – Ergueu os ombros e abriu um sorriso, escorando a lateral do corpo no batente da porta.
— Ai, vem cá! – Puxei-o para dentro e lhe dei um abraço apertado, daqueles gostosos que quando você dá, o mundo parece parar ao seu redor. São poucos que conseguem fazer isso com a gente e raros os momentos que eles acontecem, por isso, aproveitei, sentindo como se os planetas finalmente estivessem voltando a se alinhar nesse universo, afinal, o brotp Denissa não podia rachar.
Denis passou seus braços por mim e correspondeu-me com amor. Ambos sabíamos o quanto éramos importantes para o outro e assim como eu, tinha convicção que meu amigo tinha sofrido com esse período longe.
— Promete que nunca mais vamos brigar, você não sabe como a vida foi difícil e tediosa sem você – resmungou no meu ouvido durante o abraço.
— Digo o mesmo, Denis. Digo o mesmo – sussurrei, sentindo meus olhos lacrimejarem.
Me julguem, eu estava de TPM.
— Então, vamos fazer essa omelete ou não? – Denis me soltou e sorriu para mim, andando em direção da cozinha. Uma clara tática para disfarçar o momento sentimental e eu não o pegar no flagra chorando. Só que era tarde demais, eu vi seus olhos brilharem com lágrimas contidas, Denis fazia a pose engraçadinho e que não ligava com quase nada, mas tudo era uma capa, um tipo de refúgio que ele tinha e que eu ainda não havia conseguido desbravar.
— Só isso? Nenhuma conversa produtiva sobre como ferimos um ao outro e como devemos nos perdoar?
— Puff... – Denis fez um som com a boca em desdenho. — Vamos deixar para ser psicólogos quando estivermos com nossos pacientes. No meu mundo eu já te perdoei e não quero perder tempo remoendo mais nada. Para mim nós estamos bem. Estamos bem? – Virou-se para mim, esperando que eu respondesse alguma coisa.
— Por mim também! - respondi e sorri.
— Então estamos acertados. – Piscou e foi até o armário tirar uma frigideira. — Vamos comemorar com omeletes.
Gargalhei, vendo ele se movimentar de um lado para o outro procurando as coisas e colocando em cima da bancada. Aquele era o jeito do Denis demonstrar o seu carinho pelo que a gente tinha. Ele nunca fora muito adepto a gastar tempo discutindo nada. Se ele estava ali dizendo que estava tudo bem, era porque estava. Talvez por isso tenha demorando tantos dias, ele precisava colocar as coisas no lugar na sua mente maluca.
Há um ditado que diz que se a vida te der limões, você faz uma limonada. No nosso caso era: Se a vida te der ovos, faça uma omelete.
A gente discutiu e brigou, mas toda amizade tem disso. Agora era a hora de deixar essas coisinhas para trás e prosseguir. Nessa geração follow e unfollow, onde todo mundo pega e se desapega facilmente das pessoas, eu é que não queria perder meu amigo. Hoje em dia o difícil não é conhecer novas pessoas, mas sim fazermos com que elas permaneçam em nossa vida.
Caminhei até Denis e fui até ele para ajudá-lo, antes que ele colocasse fogo na minha cozinha novamente. Ficamos nos movimentando na cozinha, cortei alguns temperos para colocar na omelete enquanto Denis batia os ovos para fazer a mistura.
— Vai ficar aqui hoje? – perguntei, observando pela janelinha que o tempo estava fechando.
— Não vai dar, tenho compromisso. – Deixou um sorriso despontar dos seus lábios, mesmo sem olhar para mim.
— Meu Deus, você não cansa? – perguntei em tom de brincadeira.
— Nunca, , nunca... – cantarolou e entregou-me a vasilha com os ovos batidos.
Preparei a omelete e fritei-a enquanto ele arrumava a mesinha para nós. Pedi para que ele esquentasse um arroz que tinha na geladeira e uma farofinha que eu tinha feito na hora do almoço. Ele colocou no micro-ondas e depois de pronto, botou em cima da mesa, enquanto eu passava a omelete para o prato.
Vida de universitário também era assim, comida requentada, o melhor que tá tendo.
Comemos e rimos, Denis contava todas as peripécias que fez durante a semana e eu pedi para ele me atualizar de como andava o seu "projeto".
— Aí a garota disse que se eu quisesse que ela continuasse com as sessões, eu ia ter que assumir ela. Acredita?! A garota me chantageou – Denis reclamou, enquanto cortava mais um pedaço da omelete.
— Menina esperta, ela tem que lucrar em alguma coisa, não é? – brinquei e ele rolou os olhos
— Mas ela já ganha! – reclamou, sentindo-se ultrajado.
— Mas o que ela "ganha", ela já conseguiria sem precisar participar do projeto, Denis – esclareci, enfatizando bem que eu entendia as referências.
— Mesmo assim! Que inconveniente! Veja só, eu, Denis Louback, preso a uma garota por causa de um trabalho da faculdade. Fala sério!
— Eu te disse para não misturar as coisas. Isso que dá! – alfinetei e continuei mastigando, ao mesmo tempo em que segurava o riso.
... – colocou os talheres sobre a mesa e chamou-me calmamente. — Você sabe que é difícil para mim, não é?
Balancei a cabeça rindo, sabendo que ele estava falando sério e isso era o que tornava a situação mais hilária.
— Enfim, o que resultou nessa sua confusão? – perguntei, louca para saber o que ele tinha arrumado.
— Eu falei para ela que a porta da rua era a serventia da casa. Se ela não quisesse mais, podia ir – respondeu tranquilo enquanto eu abri a boca desacreditada.
— Você não falou isso! – exclamei.
— Falei sim. Coisa chata, eu hein! A gente fez um combinado, aí a menina vem dar de esperta para cima de mim? No Denisinho aqui não, amor. Sai fora! – passou a mão no seu peitoral e eu dei graças a Deus que eu era imune ao Denis.
Obrigada, bom Deus, por ter colocado no destino que eu seria amiga dele e não mais uma peguete.
— E ela respondeu o quê? - indaguei-o.
— Ficou brava, mas deixou essa história para lá. Ela sabe que, em outras situações, eu nem ficaria tanto tempo. , você sabe que eu não gosto de ficar muito tempo com uma pessoa só. Uma noite ou duas e é tudo – respondeu-me e continuou a comer, tranquilo.
— Que sorte a dela poder te ter por quase seis meses então, não é? – retruquei ironicamente e Denis sorriu.
— Exatamente! Como ela não pode enxergar o privilégio que ela tem? – endossou, provocando-me, e eu bufei como sempre, caindo no que ele dizia.
Denis era impossível. Era muito difícil acreditar que um dia ele se renderia a alguma paixão. Mas como eu também nunca havia me apaixonado, não achava estranho. A diferença é que Denis pegava todas e eu preferia não pegar ninguém.
— Minha hora já deu, . Vou lá, antes que comece a chover. – Colocou o garfo em cima do prato e começou a se levantar.
— Epa, epa, epa, mocinho. Tá achando que é aqui é casa da Mãe Joana? Só porque a gente fez as pazes não quer dizer que eu vou lavar tua louça. Pode ir lá, a pia é logo ali! – Cruzei os braços, vendo que o espertinho já ia sair da culatra.
— Droga, me pegou – reclamou rolando os olhos, mas em seguida deu uma gargalhada, pegando o seu prato e levando até a pia. — Se eu molhar e me atrasar para o meu encontro, a culpa sua.
— Tô pouco me lixando, só quero saber da louça lavada – retruquei sorrindo e comecei tirar as outras coisas da mesa.
Denis foi lavando e reclamando a cada segundo, ainda mais quando ele viu a chuva pingando na janela. Terminamos de ajeitar a cozinha, enxugamos e guardamos juntos as vasilhas.
— Agora eu vou. Tchau, , meu amor. Senti sua falta, chuchu – falou, apertando as minhas bochechas quando eu o acompanhei até a porta.
Ele estava no modo extrovertido e brincalhão novamente, mas seus olhos passavam um sentimento. Denis tocou no meu ombro, puxando-me para ele de novo e me abraçando.
— Nunca mais me mande embora – sussurrou no meu ouvido e eu apertei meus braços em suas costas, balançando a cabeça para cima e para baixo.
— Não vou – respondi baixinho de volta.
— Te amo. Deu um beijo na minha cabeça e me soltou para ir embora.
— Eu também – reforcei e em seguida despedi-me dele.
Fechei a porta com o coração aliviado, ter meu amigo de volta era como colar um pedacinho do meu coração novamente.
Denis tinha esse jeito bobo e alto-astral, mas conhecendo ele bem, eu sabia o quanto o tinha magoado falando daquele jeito. Ainda bem que, ao mesmo tempo, ele tinha um coração muito livre e bondoso, não guardava mágoa de ninguém. Mesmo incomodado ou afetado por qualquer coisa, ele preferiria passar por cima para manter a nossa amizade do que se afastar.
Tudo na vida de Denis era superficial demais. O relacionamento com seus pais, as garotas que saía, o jeito que ele levava o curso... Às vezes eu sentia que eu era a única coisa real e forte em sua vida, assim como ele era meu chão enquanto eu estava longe da minha família para estudar.
Nunca que eu ia deixar uma amizade dessas se perder por bobagem.
Enquanto eu pensava nessas coisas, ouvi a campainha tocar novamente. Não duvidava que Denis tivesse esquecido alguma coisa com aquela cabeça de vento que ele tinha.
Abri a porta com um sorriso no rosto e uma mão na cintura.
— O que deixou para trás? – perguntei rindo, mas meu sorriso desvaneceu ao ver ensopado na minha frente, seu queixo batendo de frio e os olhos rajados de vermelho.
— Posso entrar? – sussurrou com a voz trêmula.
, o que houve? – questionei, preocupada, e puxei-o para dentro.
— Você disse que quando eu precisasse, poderíamos marcar uma sessão fora de hora.
— Sim, eu disse – confirmei, olhando para ele e sem entender porque estava naquela situação.
— Então... Precisamos conversar.



Capítulo 15

Eu não sabia muito bem o que fazer. Passara mais de dez minutos que havia chegado e agora ele estava sentado no sofá. Eu havia arranjado uma toalha, uma outra camisa e uma bermuda do Denis para ele vestir, para variar. Seus cabelos estavam molhados e grudados em sua face, podia-o ver ainda tremendo de frio, ainda que já tivesse se enxugado.
havia terminado de passar a toalha pela cabeça e agora a dobrava enquanto olhava para o chão. Dei o tempo que ele precisava para se recompor, não quis forçá-lo, além de não querer que ele saísse correndo da minha casa naquele estado. Eu não sabia o que tinha acontecido, mas parecia perdido.
— Quer um chocolate quente? – perguntei, tentando puxar algum outro assunto e porque eu realmente estava preocupada com ele nesse frio.
ergueu um pouco a cabeça e me encarou, passou as mãos por seus braços, como um abraço ao próprio corpo, tentando se aquecer.
— Não, obrigado – respondeu com a voz meio rouca e encolhendo-se mais. — Desculpa aparecer aqui assim, mas… Eu precisava.
— Não tem que pedir desculpas, . Eu te falei que se precisasse poderia me procurar. Não precisa se apressar, quando estiver pronto, estarei aqui para te ouvir.
— Creio que se eu for esperar, nunca estarei pronto. – Mordeu o lábio inferior e fechou os olhos, espremendo-os.
Fui até ele e sentei ao seu lado no sofá. Estendi a minha mão e toquei a sua, chamando a atenção dele para mim. abriu seus olhos, que brilhavam com lágrimas não derramadas. Sua expressão era a mais profunda dor e eu só queria que ele me dissesse logo o que estava acontecendo.
— Eu estou tão confuso – sussurrou, fechando os olhos novamente e abaixando um pouco a cabeça.
— O que aconteceu, ? – perguntei, apertando um pouco a mão dele em conforto.
— Eu… Eu pensei naquilo que a gente conversou. – olhou para mim e sua voz vacilou –, você acredita que uma pessoa pode passar anos da sua vida acreditando em uma coisa e descobrir que estava tudo errado?
Olhei para ele atentamente, observando a confusão em seus olhos, a tristeza… Seja qual fosse o ponto que tivesse chegado na sua mente, havia mexido com todas as suas estruturas.
— Claro que é possível. A mente humana é a mais enganosa que há. Vivemos nos iludindo por diversos motivos. Preferimos muitas vezes não enxergar para não sofrer, viver algo diferente para passar ilesos pelas dificuldades da vida ou até mesmo ser quem não somos só para evitar as provocações alheias. Isso é muito comum, . Mas por que está me perguntando isso?
— Lembra quando eu te contei da morte da minha mãe?
— Claro que sim – respondi.
— Passei todos esses dias pensando. Acredita que eu nem mesmo consegui vê-la no caixão? Não tive coragem de fazer minha última despedida. Foi tão repentino e doía tanto… Preferi ficar distante no velório. Não tinha muita gente, minha mãe era filha única e meus avós são falecidos. Havia apenas algumas amigas dela, conhecidos da vizinhança e Vanessa. Eu não consegui… eu não consegui me despedir. Vanessa é que segurou as pontas na época e me deu todo o apoio que precisei. Eu te disse que ela praticamente mudou lá para casa, não disse?
Ele perguntou e eu acenei com a cabeça, concordando e mostrando que ele podia continuar o seu relato.
— Então… Nas outras semanas, por incrível que pareça, eu fiquei relativamente bem. Segui com minha vida, Vanessa passava mais tempo na minha casa do que fora e assim fomos prosseguindo. A gente nunca conversou sobre o assunto. Eu preferia não lembrar, não falar… Mexer com aquilo doía demais, então por que eu faria isso? Era melhor tampar qualquer coisa que me fizesse lembrar daquela dor. Mas na última sessão…
— Eu te fiz abrir algumas feridas que não estavam cicatrizadas – completei e ele concordou.
— Eu percebi que eu nunca superei. Passei o restante daquele dia atordoado pensando em como Vanessa e eu ficamos mais de dois anos em um relacionamento só por conta do que aconteceu, mas uma das coisas que mais me doeu, foi finalmente constatar que eu estava sozinho. Olhar para aquela casa e não ver ninguém, saber que eu tinha perdido a mulher que me gerou, que cuidou de mim, que me deu o maior amor do mundo… Isso sim foi pior. Ter que enfrentar o fato de frente, sem nada para camuflar, sem nada para poder me distrair, ainda que já tivesse passado dois anos. – Abaixou a cabeça e enfiou seus dedos nos seus cabelos, puxando-os levemente.
finalmente tinha chegado a um ponto crítico e importante. E agora eu percebia como tudo na vida de não era tão simples. Um término nem sempre é um término. E um relacionamento nem sempre é um relacionamento.
Era bem claro que havia substituído a dor da perda da sua mãe pelo relacionamento com Vanessa. Ele agarrou-se a ela como a sua âncora de salvação para que não naufragasse. Agora que não a tinha, ele finalmente estava enfrentando aquilo que não conseguiu há um tempo.
… – chamei-o com uma voz doce. — As perdas da nossa vida nunca são fáceis, principalmente de uma pessoa tão próxima e especial para gente. Mas você precisa passar pelo processo do luto para conseguir superar. Você precisa sentir a dor, a negação, o desespero e a superação. Tudo faz parte. Às vezes nós precisamos apenas nos permitir sentir. Não temos que ser fortes o tempo todo, há momentos que precisamos apenas chorar. – Agarrei a sua mão, ainda que isso não fosse a coisa mais certa no momento. Mas eu sentia que precisava de um apoio nesse momento, antes que desmoronasse.
— Eu não quero sentir… E-eu… Eu não quero pensar, dói demais… – Seus dedos se abriram e entrelaçaram aos meus, sua coluna curvou-se para frente enquanto ele olhava na direção das suas pernas, onde as nossas mãos estavam apoiadas.
Aos poucos senti lágrimas quentes caírem sobre os nossos dedos, os ombros de começaram a se convulsionar e ele entrou em um choro profundo. Seu corpo se inclinou em minha direção e eu passei meu braço pelas suas costas, trazendo-o para mim e o abraçando. Ele apoiou o seu rosto em meu ombro e eu senti a manga da minha camiseta se umedecer.
— Eu não tenho mais ninguém, . Não tenho pai, não tenho tia, tio, avó, avô… Eu só tinha ela. Agora eu não tenho ninguém. O que eu vou fazer? – perguntou, soluçando. — Meu Deus, eu sinto tanta saudade!
Eu não conseguia nem imaginar a dor que ele estava sentindo. Só o mínimo pensamento de perder a minha mãe fazia o meu coração se quebrar.
É aquilo… Pode passar várias pessoas por nossas vidas, mas mãe é aquela que fica, é aquela que cuida e te ama mesmo você fazendo todas as burradas do universo. É aquela que briga com você, mas nunca deixa de te dar carinho. É aquela que se tiver que deixar de comer para poder alimentar o filho, é o que vai fazer.
É quem sonha junto, é quem impulsiona, é quem deseja o melhor para ti, independente se você é a cidadã mais exemplar do universo ou uma serial killer.
Então, como eu poderia julgar por sofrer? Como eu poderia falar para se importar menos?
Eu já disse uma vez e volto a repetir. Cada um sente de um jeito, cada um tem uma forma de lidar com a sua dor. a bloqueou. Ele converteu a dor dele em um relacionamento que estava fracassado para não ter que ficar cara a cara com o sofrimento. E só agora, finalmente, ele estava diante desse fato de novo. E para piorar, dessa vez, sozinho. Não tinha uma namorada para iludi-lo, nem ninguém para poder converter a sua dor.
Mas isso era bom. Iria doer, iria o rasgar por dentro, mas iria sarar.
— Você vai conseguir. Chore o que tiver que chorar, grite se tiver que gritar, sofra o que tiver que sofrer, apenas sinta, . Se permita prantear a sua mãe, permita passar por tudo aquilo que o seu coração tem que passar… – sussurrei para ele, afagando as suas costas com a minha mão.
O choro foi diminuindo aos poucos e se afastou, passando o dorso da mão pelos seus olhos e enxugando as lágrimas. Seu rosto estava inchado e os glóbulos oculares vermelhos. estava devastado.
— Pobre Vanessa… Teve que me aguentar todo esse tempo por piedade. – Deu um sorriso sofrido enquanto passava a mão pelo nariz vermelho. — Eu acabei com ela, eu não sabia, me iludi, investi em uma relação que não existia, coloquei na minha cabeça que a gente tinha um amor eterno e que tudo estava feliz, mas, na verdade, foi pura ilusão.
— Nós sempre achamos que os amores são eternos, mas não quer dizer também que eles não o sejam. O que vocês tiveram, , foi eterno, intenso e especial enquanto durou. Mas assim como nós, seres humanos, mudamos o tempo todo, os nossos sentimentos também mudam. Um dia eu acredito que vocês foram tudo aquilo que você me disse nos primeiros anos, mas essa fase passou. O carinho pode existir e até mesmo o amor, mas talvez não mais aquele que sentia há um tempo. Se não houvesse nada, não acredito que a Vanessa teria permanecido, não pense que foi só por pena, vocês sempre foram amigos, não é?
— Sim.
— Às vezes pela amizade fazemos coisas tão grandiosas quanto por amor. Na verdade, a amizade é uma das formas mais belas do amor. Não há o acréscimo sexual, como nos relacionamentos, e não estão ligados para sempre por laços sanguíneos. A única coisa que une é o puro e singelo amor.
Joguei para que ele refletisse.
Ainda que eu ache que Vanessa não conseguiu ir em frente por conta da morte da mãe de , eu também enxergava o seu ato como uma resposta a todo o carinho que eles adquiriram um pelo outro nesse tempo juntos, seja quando eram só amigos, seja como namorados.
— Eu amo a Vanessa. – Ele virou a sua cabeça e olhou para mim atentamente.
— Você me disse – respondi, relembrando de todas as vezes que ele já havia repetido que ela era o amor da sua vida.
— Não, você não entende… – retrucou. — Eu sei o que disse antes, mas para ser sincero, eu já não sei se não tivesse acontecido isso, se eu iria querer manter esse relacionamento. Olhando para tudo o que aconteceu agora, eu não sei se ainda gostava dela da mesma forma que antes, ou até onde era um comodismo da minha parte em relação a esse relacionamento, ou até que ponto foi apenas para esconder aquilo que eu não quis ver com o falecimento da minha mãe. Mas ainda assim… Ainda que eu não goste dela da forma que eu pensava gostar, ainda que talvez a gente tivesse terminado há tempos, eu ainda a amo. Será que dá para entender?
Pisquei para ele, tentando compreender. No fundo eu acho que o entendia, mesmo sem compreender na totalidade. Eu nunca tinha tido um amor romântico, era um pouco difícil para mim.
— É estranho se eu dissesse agora que preferia as nossas brigas a o silêncio que estendemos nos dois últimos anos? – Ele passou a mão pelos cabelos e balançou a cabeça.
— Até que não. – Sorri. — Quando a gente ama, pensa que é para sempre. Vivemos tentando evitar brigas e discórdias, mas quando tudo acaba, é que devemos nos preocupar. Achar que tudo vai ser bom vinte e quatro horas durante o resto da vida porque os conflitos acabaram é utopia, os conflitos nunca acabam, eles fazem parte do essencial à vida. Sem os conflitos não temos pontos de vistas diferentes, sem os conflitos nunca podemos fazer caminhos opostos se convergirem.
— Vanessa estava certa, eu realmente não era mais o mesmo. Depois da morte da minha mãe, tudo mudou. Se já era difícil antes, deve ter ficado impossível. Não sei como ela aguentou tanto tempo. Não saía com os amigos, me afastei de todos eles, era só nos dois. Acho que parte disso foi porque eu tinha medo que eles tocassem no assunto. Na Vanessa eu confiava, porque ela respeitava o meu limite, se eu não queria falar, então ela simplesmente não falava. O problema é que acho que ficamos calados demais quando precisávamos apenas conversar.
— O diálogo é sempre primordial em um relacionamento. Em todo o tempo.
suspirou, recostou suas costas no sofá e olhou para cima.
— Hoje percebo…
… Você consegue enxergar hoje, por todo o relato que me fez, que sua dor e frustração é muito maior pela perda da sua mãe do que do seu relacionamento? Você está quebrado, o mundo arrancou uma parte de você que ninguém pode te dar de volta e que você vai lembrar para o resto da vida. Mas para piorar, você deu o resto de você para um relacionamento fantasioso. Você projetou uma vida, um relacionamento que não existia mais. Vanessa aplacou uma parte de você que doía, uma parte que tinha um buraco e lhe fazia uma falta enorme. Mas ela ainda estava aí, disfarçada. E você não podia enxergar porque continuava nesse ciclo, nessa visão deturpada do que vocês tinham. No entanto, Vanessa via, ela enxergava, ela sentia. E no momento que ela saiu da sua vida, tudo aquilo que você tinha escondido veio à tona.
— É muito difícil deixar ir mais outra pessoa da minha vida… Ainda mais sabendo que foi tudo culpa minha.
, mesmo errando pelo caminho, ou não sendo da melhor maneira, Vanessa fez o melhor para vocês. Em uma relação sincera os parceiros precisam se sentir livres para ficar ou não. Vocês mantiveram esse relacionamento pelos motivos errados. Para se ter um relacionamento precisa do esforço de dois, mas para encerrar esse vínculo, basta que apenas um tome a iniciativa, entende? Necessita apenas que um esteja insatisfeito. No caso de vocês, a Vanessa foi a primeira a notar, mas poderia ser você.
— Acho que eu nunca perceberia. É muito melhor ficar na zona de conforto do que ter que gastar energia, principalmente mental, para lidar com milhões de coisas que eu nem mesmo sei se consigo. Foi muito mais fácil ficar com a garota que me conhece a vida inteira do que pensar que nenhum de nós dois nos víamos mais da mesma maneira.
— Às vezes ficar sozinho é o que a gente mais precisa para aprender lidar com nós mesmos. Você precisa disso, . Precisa cortar o laço da dependência que te prende e te distrai daquilo que você precisa enfrentar. Você armou uma rota de fuga, uma toca que você se escondeu quando as coisas deram errado. Mas agora ela não existe mais, ela está exposta à luz do dia, aberta para que todos os tipos de predadores possam te encontrar.
— E o que eu faço agora?
— Aprende a lutar – respondi, oferecendo-lhe um sorriso acolhedor.
— Não sei por onde começar… – falou baixinho, as mãos fechadas em punho sobre a perna.
— Na verdade, você já começou. Não consegue ver, ? Só de estar aqui falando sobre o assunto ou mesmo por ter enxergado tudo isso. Olha o quanto você já caminhou! Pensa naquele cara que chegou ao meu apartamento bêbado pela primeira vez, achando que a namorada havia simplesmente chutado a sua bunda sem nem um motivo convincente. Veja quanta coisa já mudou! Olha quantas coisas você pôde conhecer de si mesmo! – lancei as reflexões e encarou a parede, pensativo.
Ah, se ele soubesse o quanto havia evoluído.
não era o mesmo cara de antes. O rapaz que havia chegado aqui no primeiro dia estava perdido e iludido. Havia uma venda em seus olhos que hoje havia sido desamarrada. só via o que estava à sua frente, muito longe do real problema que havia na vida dele. Aos poucos ele entendeu e se compreendeu. E tudo isso era uma parte importantíssima do processo.
A partir daí ele poderia dar outros passos. Ele poderia perceber que a vida dele não está fadada a um relacionamento, que ele é muito mais do que isso. A nossa felicidade nunca pode estar na dependência de alguém, se não somos felizes com nós mesmos, jamais poderemos ser com o outro. A verdadeira felicidade só pode ser encontrada dentro do nosso próprio coração. E, quando conseguimos enfim a alcançar, todas as tristezas que vierem em nossas vidas serão apenas temporárias. Como as chuvas torrenciais que passam para regar a terra no meio do verão.
— Eu me sinto perdido. Como se o que eu tivesse vivido fosse uma mentira, como se tivesse enganado a Vanessa e a mim – retrucou desolado.
— É normal se sentir assim agora, . Você está começando a ajeitar as coisas na sua cabeça. Aos poucos vai conseguir colocar a bagunça no lugar. Um passo de cada vez, sempre. Lembre-se disso, ok? Não importa a velocidade que caminhamos, o importante é chegar ao destino final.
Abri um sorriso condescendente, mesmo que demonstrasse uma profunda tristeza em sua expressão. Não era fácil perceber, depois de tanto tempo, que aquilo que se agarrou com tanto afinco era apenas uma armadura para se proteger dos seus próprios monstros.
— Lembra quando eu te pedi da outra vez para sair mais, retomar alguns laços? – perguntei e ele olhou para mim, não precisou acenar em resposta, seus olhos me diziam que ele lembrava. — Então, você não chegou a fazer, fez?
Ele balançou a cabeça, um pouco envergonhado.
— Vamos tentar isso. Nada muito radical, apenas tente mudar os ares aos poucos, voltar a sua vida, tomar a rédea novamente. Não quero que se enfie para lá e para cá todos os dias, seria só mais uma fuga, um modo de você se ocupar demais e esquecer tudo novamente. Reveja os seus amigos, mas também não se agarre a eles demais, não esqueça que você precisa desse tempo para você também. Lembre do que gostava de fazer e parou nesses dois anos. Traga boas memórias e aos poucos deixe a dor fluir, até que o machucado se cure com o tempo que ele é necessário para isso. Tampar a ferida não faz com que ela suma, apenas a protege. Mas quando tira o curativo ela continua lá, às vezes até mesmo pior do que antes porque você a abafou. Entretanto, o seu corpo tem um tempo próprio para cicatrizar, que é diferente do meu, do Denis, ou de qualquer outra pessoa. Cada um é cada um. Deixe a ferida aparecer e acredite que com o tempo, com força e uma maneira saudável, ela vai se curar, ainda que fique a marca. Mas, pelo menos, quando tocar já não vai mais doer.
passou a mão pelo seu rosto, retirando ali o resto de lágrimas anteriores que haviam ficado marcadas. Passou os dedos entre seus cabelos e depois reclinou o seu corpo para baixo, apoiando os braços em suas pernas. Virou o seu rosto para mim e me encarou em um silêncio profundo, piscando os seus cílios e mordendo a bochecha interna da sua boca.
— Você é maravilhosa, sabia? – soltou e senti meu rosto queimar com as palavras que saíram da sua boca.
Os olhos dele estavam ainda em um vermelho intenso, seu nariz um pouco inchado e suas maçãs avermelhadas e inchadas também do choro, entretanto, apesar de piscar com mais frequência que o normal, ele não se moveu e não vacilou em sua voz.
— É sério. Não sei nem como te agradecer. Eu sei que está fazendo por mim muito mais que precisava – prosseguiu.
— É só o meu papel, – deixei por menos, envergonhada.
— Não, não é. E eu agradeço por isso. Claro que você é e será ainda mais uma excelente profissional. Mas a pessoa , essa garota que está na minha frente, também é maravilhosa. Você poderia ter pouco se lixado para mim quando apareci na sua porta. Seria o que qualquer outra pessoa teria feito. E antes de me ouvir, antes de saber qualquer coisa que se passasse, ainda quando eu era apenas um bêbado patético que chorava pela ex, ainda assim você me acolheu, e isso mostra muito da verdadeira pessoa que você é e que eu adorei ter a oportunidade de conhecer – falou e eu engoli em seco.
não podia dizer essas coisas para mim. Não quando eu lutava para me afastar e manter o nosso ar estritamente profissional.
Felizmente, no momento que disse ‘vamos conversar’, para mim ele era um paciente. Não tinha atração que me distraísse no momento que ele desabafava. Eu estava vestida da psicóloga e ficava feliz por ver que o meu ‘eu’ era profissional o suficiente para separar as coisas até o momento. Contudo ali, naquele instante que ele tocou no meu ‘eu’ pessoal, a garota universitária, a simples menina do interior que morava no Rio para estudar, eu estremeci. E se eu tinha dúvidas que alguma coisa acontecia diferente em mim em relação a , agora eu tinha certeza.
— Não precisa ficar constrangida, é a verdade. – despontou um pequeno sorriso em minha direção.
Era engraçado e um tanto fofo o ver sorrindo, mesmo com a cara nítida que havia chorado muito.
— Eu nunca sei lidar bem com elogios.
— Então deveria aprender, porque se depender de mim você receberá muitos ainda. – Piscou e levantou-se do sofá, me deixando aturdida no local.
Meu coração batia forte, uma sensação alegre me atingiu com aquilo, mas, ao mesmo tempo, o pânico também se alastrava.
Eu receberia mais elogios dele?
Eu queria receber mais elogios dele?
O que isso significava?
O que isso não poderia significar?
moveu-se e pegou a sacola das suas roupas molhadas que estavam no chão do lado do sofá e colocou em seu braço, em seguida caminhou até onde eu estava sentada no sofá, inclinou-se em minha direção, pousou uma mão na minha bochecha esquerda e curvou a sua cabeça, deixando um beijo na minha bochecha direta.
— Agora vou te deixar aí, desculpas por te perturbar e não se esqueça, nunca perca essa essência tão especial que você tem – falou ainda com seu rosto próximo ao meu, logo que desencostou seus lábios da minha pele. Sua voz grave soprou perto da minha orelha e eu clamava para que eu não tivesse arrepiado durante o processo, pois não saberia como reagir se ele percebesse isso.
se afastou e caminhou até a porta, abrindo-a para ir embora.
— Obrigado, . – Virou-se para mim, seus cabelos secando-se levemente e bagunçados sobre a sua cabeça.
—An… De nada, . Não tem que agradecer, sabe disso. – Consegui que minha voz saísse melhor no final, ainda que tivesse ainda meio estupefata no início.
elevou um pouco o lábio em um sorriso e fechou a porta atrás de si. O aspecto arrasado ainda estava nos seus traços e no modo como andava, mas, ainda que ele não visse, havia uma compreensão em seu olhar. Eu sabia que ele conseguiria, era forte, ele só não havia ainda deixado que a sua força falasse mais alto. Ele havia corrido antes mesmo de tentar.
Mas agora era diferente e eu estava feliz com o progresso, ver o paciente evoluir me dava uma satisfação estupenda. A única coisa que me tirava o rumo era: Será que eu conseguiria lidar com tudo aquilo que eu estava sentindo até isso terminar?



Capítulo 16

Dias normais e nada novo debaixo do sol. Era bem assim que se passava a minha semana. Provas, atividades, trabalhos e afins. Dias agitados como sempre, eu enlouquecendo e desesperada para ter férias como sempre também.
Denis e eu havíamos voltado a conversar, mesmo que com menos frequência do que antes. No entanto, creio que agora se devia ao fato de estarmos em uma semana agitada na faculdade. Se bem que, vindo do meu amigo que não fazia nada, era bem provável que o seu sumiço tinha outro motivo.
A única coisa diferente que eu havia observado durante esses dias – e muito bem observado, diga-se de passagem –, eram as fotos novas que havia postado no seu Instagram. No meio da semana ele havia me achado e adicionado no aplicativo, o segui de volta e não perdi tempo para stalkear. Quem nunca fez isso com um crush que atire a primeira pedra.
não tinha tantas fotos recentes, talvez pelo fato de ter se anulado durante esses últimos dois anos e não ter feito muita coisa interessante. Mas havia algumas mais antigas, inclusive da época do seu namoro. Vanessa e ele faziam um casal muito lindo. Ela tinha uma pele dourada e um cabelo acastanhado, meio cobre, divino. Ela era quase tão alta quanto ele, eu pude perceber isso em uma foto que eles estavam juntos em pé.
Em várias outras eu via com a sua mãe. Nunca que eu descobriria que era ela se não fosse pela legenda. A mulher parecia muito nova, não tinha nem rugas. Seus cabelos eram escuros como os dele e a boca perfeitamente desenhada – me deixando saber de quem havia puxado –, além dos lindos cílios longos. Ela transmitia uma alegria tão grande com o olhar que até eu sorri, admirando-a.
Havia um pequeno vídeo que o havia feito dela na cozinha. Ele a filmava escondido enquanto ela estava lavando as vasilhas e cantarolando. Ela cantava e remexia o quadril ao mesmo tempo em que ele parecia estar atrás de uma fresta da porta. De uma vez, ele deu um pulo para dentro da cozinha e pegou na cintura dela, dando um grito grosso assombroso. Ela tomou um susto, deu um grito superfino e derrubou a vasilha cheia de sabão no chão, fazendo uma enorme bagunça. Um vídeo digno para se viralizar. Logo em seguida, a imagem ficou toda tremida devido as gargalhadas de , mas era possível ouvir sua mãe xingando-o e rindo ao mesmo tempo, nem ela conseguiu se conter.
Nesse instante eu percebi que eu nunca havia ouvido gargalhar de fato. Ele era típico de pequenos sorrisos e algumas vezes havia me dado à gentileza e oportunidade de apreciar um maior. Contudo, uma verdadeira gargalhada, daquela que sai do fundo da alma, eu nunca havia ouvido.
Aquela mulher do vídeo era incrível e meu coração doeu porque eu sabia que ela não estava mais entre nós. Eu nem a conhecia, mas uma pontada ardeu em mim. Ela tinha tanta energia, da mesma forma também transparecia isso junto dela. Uma morte tão precoce... Quem imaginaria? A mãe dele havia falecido e, com ela, deixou morrer parte da sua alegria de viver.
Não que ele quisesse se matar ou algo do tipo, mas quantas vezes vivemos apenas por viver? Na verdade, em grande parte da nossa vida, mais sobrevivemos a esse mundo de tormentas do que de fato vivemos.
Por um segundo senti falta desse rapaz do vídeo, um que eu nem mesmo conheci. Eu quis poder ouvir o som tão bonito que era sua gargalhada. Quis poder ver rir tanto que lhe faltasse o ar, quis que ele enxugasse as lágrimas de alegria, em vez de pranto.
Continuei a bisbilhotar e vi outras fotos e vídeos, muitas delas de em paisagens e lugares muito bonitos. Uns no Rio de Janeiro e outros não. Ele parecia um amante da natureza, por isso ele havia comentando que era tão diferente da Vanessa.
Durante a semana que se passou após a nossa última sessão, aconteceu algo que me deixou extremamente alegre. postou uma foto do nascer do sol. Ele não aparecia, apenas uma bela imagem do sol surgindo atrás do mar. Mas o que me deixava contente era a localização, horário e legenda.
Não era uma foto velha, tinha ido até a praia para isso e postado em horário real. Embaixo da foto tinha escrito: "Como eu sentia falta disso e nem sabia... Dias melhores virão."
Aquela simples foto e a pequena mensagem falavam muito mais do que poderiam imaginar. Era o passo que precisava dar, era ele saindo da sua toca e tomando as rédeas da sua vida. Aos pouquinhos, sem grandes surpresas, sem muito alarde. Um pequeno passo para ele, um grande salto para o futuro.
Curti a foto, mas não comentei nada. Aquilo era o suficiente para ele saber que eu tinha visto e estava orgulhosa dele.
Enquanto isso, ali estava eu, indo para faculdade, de volta à minha rotina sufocante. Cheguei e entrei na sala, caminhei até onde Denis estava sentado e joguei o meu material na carteira ao seu lado.
— Dia ruim? – Virou para mim e perguntou, dando-me um sorriso.
— Cansada, só isso.
— Você precisa pegar umas aulinhas comigo sobre "Como passar pela faculdade sem virar um zumbi" – falou e eu obriguei-me a gargalhar.
Creio que só o Denis tinha essa capacidade. Não era possível que qualquer outro ser humano fosse tão relaxado durante os estudos e ainda assim passasse em todas matérias sem nem ficar de recuperação.
Se Denis fosse um riquinho presunçoso eu acharia que ele estava pagando os professores por fora, porque não era possível. Mas Denis era quase um deserdado, que agora praticamente sobrevivia de ovos que nem eu. Então não, não era isso. Mas eu ainda não sabia a receita mágica e talvez nunca soubesse.
— Por favor, me mostre o seu truque porque eu estou desfalecendo, quase me desintegrando da sociedade – dramatizei e ele riu.
comigo! – Piscou e se endireitou na carteira ao ver a professora entrando na sala.
Marta era conhecida por ser uma professora esnobe, mas não tocava o terror como o professor Benecke. Ela entrou na sala com o seu coque perfeitamente armado, colocou suas coisas em cima da mesa, abriu os slides e começou a explicação da matéria. Durante a aula eu fazia as anotações no caderno e nas folhas dos slides que havia imprimido com antecedência, já que os professores disponibilizavam a aula antes para nós por e-mail.
Quase ao final, a professora encostou-se em sua mesa e pegou um material que estava em sua pasta.
— Vou entregar os artigos que vocês fizeram na semana passada, à nota está aí. Havia artigos excelentes e outros nem tanto. Fiquei bem decepcionada na verdade com a escrita de alguns, espera-se que uma pessoa graduanda tenha ao menos um bom português, mas me parece que alguns faltaram às aulinhas no ensino fundamental – disse com escárnio e começou mexer nas folhas. — Cristina – chamou e a aluna levantou-se para pegar o seu trabalho.
Em seguida, o nome do Denis foi chamado e ele levantou-se em um impulso, com aquele sorriso que não desgrudava da sua cara.
— Parabéns, Denis, seu artigo estava excelente, foi o melhor, para falar a verdade. Foi um prazer poder lê-lo – a professora elogiou e se o menino já estava sorrindo, agora ele arreganhava os dentes por completo.
— O prazer foi meu de poder fazer um trabalho tão profundo e interessante como o que a senhorita passou, professora Marta – meu amigo respondeu com uma voz melodiosa e eu quis vomitar.
Será que ele não conseguia deixar de lado essa vozinha sensual e esse ar conquistador nem com a professora? Meu Deus, a mulher tinha mais de cinquenta anos!
O pior foi que a professora deu uma risadinha e ele voltou todo presunçoso para a sua cadeira, pigarreando e colocando o seu artigo na minha frente, para que eu visse que ele tinha tirado a nota máxima.
— Não precisa esfregar na cara! Tá trocando sua nota por favores sexuais, é? – ironizei rolando os olhos e Denis gargalhou.
— Não consegue acreditar apenas que eu sou um bom aluno, ssinha? – murmurou e jogou-me um beijinho.
— Essas duas palavras não trabalham juntas no seu dicionário. Me dá aqui esse negócio que eu quero ler para conferir se é tão excelente mesmo. – Peguei o papel sobre a mesa e joguei no meio das minhas coisas.
— Pode conferir. – Denis riu e ficamos ali ainda esperando, enquanto não chegava a minha vez.
A professora foi chamando um por um, uns saíam com sorrisos, outros nem tanto. E eu já estava ansiosa para saber quanto eu tinha tirado. Eu tinha passado praticamente três noites em claro para fazer esse artigo que ela pediu na semana passada. Só esperava que todo o sacrifício me deixasse dentro do grupo que havia tirado ao menos uma nota boa.
— Antônio – a professora chamou e ele pegou o seu artigo, voltando a se sentar. — É isso. Parabéns para aqueles que, mesmo tirando uma nota ruim, ao menos tentaram. Próxima aula daremos continuidade a matéria e na próxima semana teremos uma prova.
Meu coração parou naquele instante. Como assim?
— Professora, faltou o meu. – Ergui a minha mão e falei com ela.
Marta arqueou a sua sobrancelha e olhou para a sua mesa, mexendo nos papéis que estavam em cima dela.
— Sinto muito, mas todos os trabalhos que foram entregues eu já corrigi e devolvi.
Levantei-me em súbito, ficando de pé e colocando minhas mãos sobre a mesa.
— Professora, mas eu te entreguei o meu trabalho, inclusive fui a primeira a entregar! – exclamei, sentindo minha carne tremer.
Eu tinha dado um duro naquele trabalho. Entreguei ainda um dia antes do prazo, no final da aula, quando ela estava indo embora. Eu me recordo bem da professora colocando no meio das coisas dela e saindo em seguida. O trabalho estava com ela!
— Qual o seu nome mesmo, querida? – Cruzou os braços e olhou para mim, a sala em extremo silêncio nos observando.
– respondi e ela colocou o dedo no queixo.
Curvou-se para a mesa, digitou algo em seu notebook e depois endireitou-se, voltando a olhar para mim.
— Lamento, mas não tem nada no meu sistema de notas. Você não me entregou.
— E por que eu te diria que te entreguei se eu não tivesse entregado? – exclamei, alterando meu tom de voz.
Eu estava indignada! Eu fiz a bosta daquele trabalho pra que então? Ela não podia estar falando sério!
— Talvez você quisesse justamente fazer essa cena toda. Bem provável que perdeu o prazo e agora está fazendo esse teatro todo para que eu lhe dê uma chance e, assim, pudesse fazer o trabalho perdido com um prazo a mais. Eu sou professora há trinta anos, , conheço todos esses truques de alunos.
— MAS NÃO É TRUQUE! – exaltei-me e Denis segurou o meu braço, como um pedido para que eu tivesse calma.
Maldição! Como eu ia ter calma se a idiota havia perdido o meu trabalho e agora me acusava de nem ter feito?
— Minha filha, se você não mantiver o seu tom, nem precisa dirigir mais a palavra para mim, eu não sou obrigada a ouvir desaforo de aluno mal criado em plena graduação não! – a velha reclamou e eu senti meu sangue ferver ainda mais.
— E eu não sou obrigada a ser acusada de algo injustamente!
— Você tem provas?
— O quê? – perguntei.
— Alguma prova que tenha entregado esse trabalho para mim – explicou com uma cara de tédio. — Caso contrário, é zero sem contestação!
Meu sangue gelou e eu cambaleei. O artigo valia um terço da nota, sem ele eu estaria pendurada e ia ter que praticamente fechar tudo dali em diante na disciplina.
Eu não tinha como provar, só estava ela e eu na sala na hora que entreguei. O pânico começou a me dominar, meu coração batia forte e minhas pernas tremiam, temi desmaiar a qualquer momento.
— Na... – comecei a falar, mas fui interrompida por Denis, que se levantou ao meu lado.
— Eu vi professora, a fez o trabalho e ela entregou para a senhora no final da aula retrasada – meu amigo interveio e eu senti uma pequena onda de alívio, ainda que eu estivesse em sentido letárgico com a situação.
A professora franziu o cenho e olhou para ele com atenção.
— Denis, querido... – Abriu um pequeno sorriso para ele. — Eu sei que tem uma alta estima pela garota e quer dar um de super herói para conquistar a donzela nesse instante, mas comigo não vai colar, ainda que eu te adore e saiba que você é um aluno excelente – rebateu e eu achei que ia morrer naquele instante.
— Mas é verdade, professora! – Denis retrucou, fechando a sua expressão. — E eu não teria que mentir para conquistar garota nenhuma, muito menos a que é uma irmã para mim – completou e eu o vi fechar o punho, sabendo que ele estava com raiva.
Eu não sabia se estava em desespero com a situação do meu trabalho ou se sentia vergonha dela achar tal coisa sobre mim ou mesmo por ela ter exposto o meu amigo a uma coisa do tipo na frente de todos os meus colegas.
Marta ficou em silêncio, depois uma pontada de um sorriso se manifestou em seus lábios. No entanto, não de uma forma boa, aquele sorriso fez o meu coração parar de bater. Parecia maquiavélico. Quem diria que a senhorinha se mostraria uma bruxa ao final?
— Tudo bem, já que vocês preferem assim... – Cerrou os olhos e curvou-se novamente para o seu notebook, antes de voltar a sua atenção para nós de novo. — , você vai me entregar o trabalho amanhã, mas não seria justo com nenhum dos seus colegas que eu permitisse que você fizesse o mesmo trabalho que todos os outros, ainda mais depois de eu ter já entregue a eles. Seria muito fácil para você pegar um deles para se basear e fazer o seu, não é? Pois bem, eu quero um novo artigo, agora com 25 páginas, valendo metade do valor total. O tema eu envio por e-mail na parte da tarde.
— Como você quer que ela faça um novo trabalho para amanhã e vai passar ainda o que precisa fazer só na parte da tarde? – Denis indagou-a e passou seu braço pelas minhas costas, praticamente me segurando.
Eu já não tinha boca, não tinha energia, não tinha nada.
Eu estava travada, em choque, pronta para desmaiar.
Parecia que eu estava dentro de um filme muito ruim, imóvel, apenas assistindo a destruição total ao meu redor.
— É isso ou nada. Ela pode ficar com zero também se preferir. Não estão satisfeitos? Procure o colegiado, me julguem. Vamos ver quem vai se sair melhor – lançou em tom de desafio e eu já sabia a resposta.
Quem acreditaria em uma aluna ao invés da professora? Na universidade ninguém se importa com nada disso, a gente que se ferre. Eu já tinha cravado a minha cruz nessa disciplina no momento que eu a contestei, continuar com isso seria prosseguir e ainda adicionar o ódio de todos os professores que fossem amigos dela e comprasse a sua história de que eu não havia entregado o trabalho e queria apenas dar um show.
— Bom, diz que quem cala, consente. Então estão dispensados. A aula acabou – encerrou, pegou o seu material e saiu.
Denis me segurou pelos braços quando eu senti que não conseguia ficar mais em pé sobre minhas pernas.
Eu ouvia o barulho dos alunos indo embora, nenhum deles parando ou se preocupando com o que tinha acontecido. Quem iria se colocar no meio dessa confusão? Ninguém, só Denis, que era o meu parceiro pra vida toda.
— Me tira daqui, por favor – sussurrei com a força que eu consegui e meu amigo me arrastou para o lado de fora em direção à saída.
Eu não conseguia andar direito, eu sentia o pulmão se fechar e eu acreditava piamente que seria possível segurar o meu coração com a mão, de tão forte que ele batia e parecia sair do meu peito.
Não consegui parar para ver nada, não sei o caminho que a gente passou ou quem havia segurado na minha mão enquanto eu sentava em um banquinho. Eu só sentia o choque, o absurdo... O desastre.
— Aquela mulher é louca! Eu vou até a diretoria, reclamar ou qualquer coisa que faça dar um jeito nisso. Ela não pode fazer isso com você! – Ouvi a voz de Denis, mas parecia que ela estava ao fundo, tão ao fundo.
As lágrimas brotaram em meus olhos e eu nem vi quando elas começaram a ser derramadas.
Eu tinha passado dias fazendo aquele trabalho, eu tinha dado o meu sangue, eu estava estressada, cansada, eu havia gastado três noites para revisar e entregá-lo com antecedência. Toda aquela reta final da faculdade estava me consumindo, eu estava mais nervosa que o habitual, eu só queria deitar e descansar, mas não conseguia. Aí, ainda por cima, me aprontam uma dessa... Eu só queria deitar, chorar e desistir de tudo.
— Calma, , vai dar tudo certo. – Uma mão segurava a minha e a acarinhava, acho que vinha do meu lado direito, na mesma direção que eu tinha ouvido uma voz doce, imaginei que era Hellen que estava ali.
Comecei a balançar o meu corpo, puxei meus joelhos para cima e os abracei, deixando as lágrimas caírem e o soluço sair.
— Eu vou lá agora! – Denis falou furioso e eu finalmente olhei para ele de relance.
— Não... – sussurrei com a voz quebrada. — Não adianta!
Denis bufou, ajoelhou-se no chão e segurou o meu rosto com as mãos.
— Olha pra mim, ela tá errada, a gente precisa provar isso! É um absurdo você ter que fazer um trabalho novo.
Engoli em seco e deixei mais lágrimas se derramarem. Denis me puxou para os seus braços e me abraçou, balançando-me entre eles. Nas minhas costas eu sentia a mão de Hellen também me fazendo carinho, mas não adiantava, eu estava arrasada, só tinha vontade de chorar, chorar e continuar chorando.
Eu não sabia explicar o que estava sentindo, só queria que tudo sumisse, era como se a cereja que faltava para o bolo finalmente tivesse sido colocada, como se tudo fosse explodir.
Talvez as pessoas vissem e achassem que era bobeira, mas... Eu não conseguia controlar. Eu estava sobrecarregada, tinha um mundo nas costas, ansiosa com os trabalhos e ainda por cima estava sendo injustiçada, só para complicar mais a minha vida.
— O que está acontecendo aqui? ? O que houve?
Eu não sabia de onde ele tinha surgido, mas era a voz de ali. Denis afrouxou os seus braços de mim e olhou para ele, também desviei para encará-lo, mas não consegui dizer nada. Eu estava fraca demais para qualquer coisa, sentia meus pés fora do chão e parecia que eu tinha uma taquicardia. Meu estômago começou a doer e eu sabia que tudo isso era o pico de estresse por toda aquela situação.
Voltei a olhar para o chão, abraçando o meu próprio corpo e vi de relance Denis se levantar e conversar com . Eu nem conseguia prestar atenção no que eles diziam, talvez Denis estivesse relatando o ocorrido para ele ou sei lá. Eu não conseguia nem sentir vergonha por estar naquele estado deplorável na frente de qualquer um que passasse. Só de pensar no que tinha acontecido, na vergonha, no trabalhão que eu ia ter para tentar fazer um trabalho novinho, do zero, ainda valendo apenas metade dos pontos... Minha cabeça dava um nó só de pensar.
. – se abaixou na minha frente e segurou a mão que estava no meu colo. — O Denis vai te levar para casa agora, tudo bem? Vai para lá, toma um banho, veste uma roupa fresca, relaxa que as coisas vão dar tudo certo. Daqui meia hora eu passo lá para te buscar, tudo bem? – Passou o polegar na minha mão e eu encarei o seu gesto, sem prestar muito atenção no que ele dizia.
Só conseguia ficar lembrando da professora Marta, a acusação estúpida, o trabalho novo que eu teria que fazer...
— Eu acho que ela tá em choque – Hellen falou baixinho ao meu lado, mas sabe quando você está em uma situação e parece que está vendo tudo desenrolar pelo lado de fora?
Era como se eu estivesse fora de órbita, presa por trás de um vidro, vendo todos os outros falando e agindo, mas sem saber o que era no final.
— Leva ela, Denis, conversa com a lá, daqui a pouco eu chego. Faz o que a gente combinou. – se ergueu e falou com meu amigo.
Combinado? Não sei sobre o que diziam, mas nem queria saber.
Trabalho...
Novo...
Pra amanhã...
— Vem, , vamos embora. – Denis puxou-me pela mão e eu andei ao seu lado.
Não vi o caminho até em casa, não lembro se paguei o ônibus, nem mesmo me recordo de passar pela portaria do prédio. Eu acho que ainda derramava lágrimas no caminho.
Não me lembro de indo embora, muito menos de Hellen. Eu estava atordoada demais para isso.
Denis me empurrou para dentro do banheiro, ligou o chuveiro e virou-me em sua direção pelos ombros.
— Toma um banho quente para relaxar. Esquece isso, eu vou dar um jeito, tá? Olha pra mim, .
Eu estava olhando, não estava? Ele estava falando comigo, meus olhos estavam em sua direção.
— Eu tô falando olhar de verdade – respondeu como se tivesse ouvido os meus pensamentos. Ou eu tinha falado em voz alta e não tinha percebido? — Volta para o seu amigo aqui. – Passou o seu polegar em minha bochecha molhada e eu mirei os seus olhos.
Denis transbordava preocupação, acho que eu nunca tinha o visto tão preocupado comigo, nem quando eu estava no meu pico mais alto de estresse e ansiedade.
— Eu preciso começar a fazer minhas coisas – falei fraca, depois de tudo.
— Não precisa não, o que você precisa é de descanso e de um ar fresco. Esquece essa merda de faculdade, esquece essas porcarias de trabalho. Sua mente e sua saúde valem muito mais que isso. Você confia em mim? – perguntou, ainda segurando o meu rosto, para que eu não fugisse dele em momento algum.
Sacudi a cabeça em afirmação. Se tinha uma pessoa que eu confiava era Denis, eu sabia que ele faria o possível e o impossível sempre que eu precisasse.
— Muito bem. – sorriu. — Então toma o seu banho, eu vou ajeitar suas coisas. Esquece o seu trabalho, eu garanto que ele vai tá prontinho para amanhã, mas hoje você vai deixar tudo para lá. Eu vou fazer ele, eu tirei nota máxima, pode ficar tranquila que a sua nota eu garanto. – Deu um sorriso travesso e uma piscadinha, afastando as suas mãos agora que ele tinha percebido que eu estava mais atenta.
— Não posso deixar que você faça isso, Denis. Eu não... – comecei a retrucar, mas ele me pausou.
— Você disse que confiava em mim, não foi? Eu prometo para você que estará tudo certo amanhã. Vou fazer tudo pelos meios corretos, nada diferente do que você faria. A única diferença é que eu não vou dar uma crise por isso, vai ser tranquilo. Agora, você, vai descansar.
Em outras situações eu jamais conseguiria deixar isso nas mãos do Denis, no entanto, eu me sentia tão exausta e ele dizia com tanta firmeza para eu confiar nele... que só me restou aceitar.
Mais tarde eu pensaria no que fazer, por hora eu acatei a sua decisão de tomar um banho, então ele saiu do banheiro e disse que ia me esperar no meu quarto.
Passei um bom tempo deixando a água morna correr pelo meu corpo, tentando tirar os nódulos de tensão que eu já sentia. Depois, enrolei-me na toalha e fui até o meu quarto. Coloquei um vestidinho fresco, devido ao calor infernal que a cidade estava e saí, ajeitando meus cachos com as mãos.
O banho havia me acalmado um pouco, apesar das lágrimas que eu ainda tinha derramado, mas, por fim, senti uma leve melhora no meu estado.
Com o meu emocional e a minha mente do jeito que estava, eu jamais conseguiria mover uma vírgula para fazer o trabalho, por mais que eu não conseguisse também imaginar Denis fazendo-o, a única coisa que eu poderia concluir era em desistir e pensar na provável recuperação que eu ia pegar na disciplina.
Ao chegar à sala, Denis estava com no sofá aos sussurros e eu franzi o cenho sem entender o que estava acontecendo.
? – perguntei, surpresa por encontrar ele ali. Se fosse para uma sessão eu teria que pedir mil desculpas para ele, pois não tinha condições nenhuma para ajudá-lo nesse instante.
— Eu disse que estaria aqui em meia hora. – Abriu um pequeno sorriso para mim.
Ele disse? Meu Deus, minha mente estava tão cansada e confusa.
Claro! Ele havia falado isso para mim na rua. Céus, eu estava fora de mim.
— Ah, sim. Me perdoa, minha cabeça não está muito boa. – Sorri sem graça e caminhei até eles.
— Você está pronta? – Ele perguntou, levantando-se e sorrindo mais abertamente enquanto me encarava.
— Pronta para quê? – Arqueei a sobrancelha, sem compreender.
— Ela tá sim, toma aí sua bolsa, . – Denis jogou uma mochila em minhas mãos e me empurrou pelas costas em direção a .
O que estava acontecendo aqui?
— Eu não sei do que estão falando? Sair para onde? – perguntei, alternando meu olhar entre os dois.
— Menos perguntas e mais ação. Só vai, sinha. Faz o que teu amigo aqui tá te pedindo, vai? Você disse que confiava em mim! – Empurrou-me mais e olhou para mim, tentando indicar com os olhos o que a gente tinha conversado anteriormente.
Ele estava me expulsando de casa, era isso? Será que ele é que não confiava em mim para ficar quietinha enquanto ele cuidava de tudo?
Era bem provável.
Tirei meus olhos do meu amigo e mirei em , que tinha uma expressão fofa e ansiosa no rosto, esperando a minha resposta.
— Não vai dizer que confia nesse louco e não em mim, não é? – brincou e Denis rolou os olhos para ele.
— Só hoje, só por causa dela – Denis resmungou e me empurrou mais. — Vai, , anda.
Colocou a mão no meu ombro e outra em e nos empurrou em direção a porta.
— Acho que você não tem muita alternativa – o moreno falou baixinho para mim em meio uma risada e estendeu a mão em minha direção.
— Por que eu acho que vou me arrepender de topar seja o que for que eu esteja topando com vocês? – retruquei, abrindo a porta para sair.
— Nunca vou te fazer se arrepender de nada, respondeu e cravou seus olhos em mim, seu verde cintilando mais do que o normal.
Eu não sabia o que estava acontecendo e nem o que significava aquilo tudo, mas eu fui. Coloquei a minha mão sobre a dele – sem saber o que me esperava ou o que aconteceria – e apertou-a de volta, abrindo aquele belo sorriso para mim, bem diferente do que havia me oferecido nos últimos dias.



Capítulo 17

Eu não queria pensar em como poderia ser estranho estarmos de mãos dadas descendo as escadas do meu prédio. Eu não queria pensar em como era surreal eu estar indo para algum lugar com que eu nem mesmo sabia onde era.
Não era um ato lascivo ou mesmo maldoso, sua mão me transmitia carinho e segurança, um conforto pelo que eu havia passado. Sem poder imaginar como, esses dois garotos da minha vida tinham se unido em um plano mirabolante para me ajudar e eu me permiti ser amparada por eles.
A gente não consegue tudo sozinho. Eu estava a ponto de desmoronar com todo o peso que eu colocava nas minhas costas todos os dias. Eu mesma me colocava em expectativa, eu mesma me cobrava além do meu limite. Eu não sabia a hora de parar, dar um pause e descansar o meu corpo.
No entanto, era difícil fazer isso quando se tinha a mente ligada no 220v todas as horas do dia. Talvez isso que eles planejaram para mim – que eu não sabia o que ainda – era a única maneira de não me fazer parar no hospital por uma crise de nervos.
E não é brincadeira. Isso já tinha acontecido comigo uma vez, na época do terceiro ano do ensino médio quando eu estudava para passar no vestibular.
Eu não queria que isso acontecesse de novo. Eu me sentia fraca e com tudo sob a flor da pele, notava minha mente ruir aos poucos, não conseguia mais concentrar em muita coisa, minha memória estava péssima, as dores no estômago cada vez maiores, os cabelos cada vez mais ralos... Eu precisava parar.
e eu descemos as escadas e fomos até a rua, parando em frente a uma moto. Ele foi até ela, pegou dois capacetes que estavam pendurados no guidão do veículo e estendeu um para mim.
— Nós vamos nisso? – perguntei, fechando os meus dedos com força no capacete.
Não que eu tivesse algum problema com a moto em si, mas moto e trânsito no Rio de Janeiro, com certeza era uma combinação apavorante.
— Bom, é a única forma de chegar onde eu quero te levar e essa é a única condução que eu tenho... – Deu de ombros e colocou o seu capacete em sua cabeça.
— Ai, meu Deus, eu vou morrer! – murmurei assustada e sorriu, balançando a cabeça.
— Não se preocupe, eu sou um ótimo piloto. – Aproximou-se de mim, parando bem perto, em minha frente.
Tomou o capacete das minhas mãos e ergueu-o na minha cabeça, abaixando-o cuidadosamente. Pegou a fitinha que tinha embaixo e travou no meu queixo, deixando o seu dedo deslizar na minha pele por um segundo ou dois.
— Certinho – sussurrou, olhando em meus olhos, enquanto eu ficava sem ar de novo, mas dessa vez por um motivo bem mais... Deixa para lá.
deu um passo para trás e se afastou, subiu em cima da moto com maestria, parecendo realmente bem familiarizado a ela.
Não queria dizer nada, mas ficava incrivelmente sexy naquela moto preta, ainda mais com parte do seu cabelo saindo sob a frente do capacete. Adicione isso ainda ao movimento que ele fez quando colocou as mãos no guidão e olhou para trás para me ver, apenas um pouquinho, deixando-me a par do seu perfil.
— Você vem? – perguntou, fazendo subir a lateral de um sorriso.
— Eu estou de vestido – lembrei.
— Então é melhor você o segurar – brincou e riu, olhando para frente novamente.
Balancei a cabeça e resolvi tentar me jogar nessa empreitada. Segurei as pontas do meu vestido e arrisquei subir na moto, de forma muito desengonçada por sinal. Já não estava acostumada andar de moto, piorou tendo que segurar a roupa para não mostrar mais do que deveria.
Após muita labuta, consegui me posicionar. Enfiei a saia do vestido debaixo das coxas e segurei no ferrinho que ficava na parte detrás da moto, porém colocou sua mão para trás, puxou os meus braços e posicionou-os em sua cintura.
— Assim é melhor e mais seguro – falou com a voz abafada pelo capacete fechado.
Se ele estava dizendo, quem seria eu para contestar, né?
Estava insegura, mas obedeci e espalmei as duas mãos em seu abdômen. Eu não era nenhuma devassa, mas era por questões de segurança, não é? Apenas por isso eu conseguia sentir os gomos leves da barriga de em minhas palmas, por isso.
Senti as costas de balançarem um pouco e eu acho que era fruto de uma risada. Será que eu fui além da imaginação e realmente havia deslizado os dedos pelo local?
Soltei minha mão em um súbito, constrangida, mas antes que eu as afastasse demais, segurou meus braços novamente e os apertou contra ele, deslizou suas mãos em minha pele até chegar em meus dedos, permanecendo ali por alguns segundos, como em uma ordem muda para não o soltar.
Ligou a moto e acelerou, meu corpo impulsionando-se para trás com a largada e eu me agarrando ainda mais a sua cintura. Agora eu entendia porque ele havia me mandado segurá-lo ali, caso contrário, era bem capaz que eu tivesse dado uma cambalhota de costas e depois rolasse pelo asfalto.
Passado o susto inicial, começamos o nosso percurso. A velocidade era alta e por mais que estivesse calor, o vento que batia fazia frio por estarmos de moto. Nem percebi quando havia me encolhido, grudando meu peito nas costas de . Fechei os meus olhos para não lacrimejarem, enquanto sentia o zigue-zague do veículo cortando os carros. Acho que o local que estávamos indo era meio longinho, mas a sensação de fazer o percurso na moto era muito gostosa.
Passamos um tempo no trajeto, ouvindo as buzinas, o barulho da cidade grande e depois o barulho do mar e o silêncio. Abri meus olhos e vi que estávamos em uma região bem vazia e diferente da loucura do centro do Rio. A praia era magnífica e a paisagem incrível. Entramos em umas estradinhas loucas até chegarmos a um local quase deserto, tendo apenas um quiosque num canto reservado à direita.
estacionou a moto pertinho do estabelecimento e descemos do veículo. Só depois de descer que eu percebi que não sentia as minhas pernas direito, por causa do tempo que fiquei na mesma posição. caminhou até mim, desafivelou o meu capacete e o pegou, retirando o seu em seguida também. Ele amarrou-os junto à moto e passou a mão em seus cabelos bagunçados. Após isso, olhou para mim com um sorriso colado ao rosto.
— O dono do quiosque é um conhecido meu, pode usar o banheiro para trocar de roupa, vai precisar – falou, apontando em direção do banheiro.
— Trocar de roupa para quê?
— Você não vai querer molhar seu vestido, não é? Você é livre para se banhar como quiser, mas creio que entrar no mar com roupa de banho é bem melhor. – Piscou, pegou a barra da sua camisa e a tirou bem ali na minha frente, deixando-me desconcertada.
— Eu não trouxe biquíni. – Franzi o cenho.
— Ah, trouxe sim, dá uma olhadinha na sua mochila.
Peguei-a das minhas costas e a abri, vendo umas cinco peças de biquínis diferentes e dois maiôs meus, tudo embolado ali dentro. Além disso tinha uma toalha, um protetor, duas saídas de praia e uma canga.
— O Denis ficou responsável de providenciar suas coisas – explicou, dando uma risadinha sem graça e eu tive que gargalhar.
— É, e realmente arrumou, ele trouxe tudo o que tinha lá e socou aqui dentro. – Balancei a cabeça, imaginando meu amigo procurando minhas roupas no meu guarda-roupa.
Acho que esse era o dia mais louco da minha vida. Havia começado com uma tempestade e agora eu não conseguia e nem queria raciocinar nada. Talvez depois eu brigasse com Denis por isso, mas por hora, eu achei mais fácil continuar seguindo o plano, se isso fosse realmente me fazer sentir melhor.
Arrastei-me com minha bolsa para o banheiro e troquei por um conjuntinho de biquíni mais novo que eu tinha. Coloquei uma das saídas de praia que meu amigo tinha pegado e saí.
me esperava do lado de fora, escorado no balcão do quiosque e conversando com um senhor que trabalhava ali. Eu não conhecia aquele lugar, mas parecia um pedacinho do paraíso. Um refrigério no deserto.
— Pronta? – Interrompeu a sua conversa com o homem e virou o seu rosto para mim, abrindo um lindo sorriso.
— Mais ou menos, não sei bem o que você está aprontando... – resmunguei e mordi o lábio, achando tudo isso uma loucura.
— Obrigado, Seu Nelson. Agora eu vou lá. – apenas se virou e despediu-se do homem, piscou para o senhor que ele conversava e caminhou até mim, pegando a minha mão novamente como havia feito no apartamento.
Antes que eu protestasse, ele puxou-me, fazendo-nos caminhar na areia e guiando-me para um local mais afastado, onde a praia fazia uma curva em U. Chegando lá, ele colocou uma mochila que ele trazia consigo no chão e pegou a minha, colocando-a ao lado da sua. Atrás de nós havia uma matinha e um morro, que deixava o local mais isolado.
— Vamos subir? – sugeriu, apontando para o alto do morro e eu acenei aceitando.
Até então trocávamos poucas frases e o silêncio era o mais presente. Não sei se era por falta de assunto ou porque ele não sabia o que dizer depois de ver o meu estado lá na faculdade. De qualquer forma, o silêncio era bom, fazia-me aproveitar mais o ambiente e absorver tudo o que estava ao meu redor.
foi na frente, guiando-me em uma estradinha que passava por dentro da matinha. Foi uma aventura, nós entrávamos no meio desse mato como se fosse em um túnel, subíamos em uma caminhada, e depois saíamos bem mais em cima, já sobre a pedra. Nela tínhamos que andar de forma meio lateralizada por causa do ângulo da estrada, mas não era nada assustador, só cansava um pouco e eu estava meio sedentária. O lado bom era que, pelo menos, gastava energia. Subimos mais até chegarmos a um lugar plano, que era o topo do morro, finalmente o nosso destino final.
Lá em cima o vento batia mais forte, fazendo os meus cachos voarem por todo o lado. caminhou até uma pedra que ficava bem mais na ponta do morro, abriu os braços e olhou para trás onde eu estava, abrindo um grande sorriso para mim e voltando a olhar para frente de novo em seguida.
Sorri com a sensação de liberdade que ele passava, estava claro que amava aquilo ali. Caminhei até onde ele estava, podendo observar a vista magnífica daquele local. Dava para ver a praia dos dois lados, a mata que acompanhava em torno dela e ao longe as casas da cidade. Era uma pincelada de Deus na Terra.
Fechei os olhos e fiz como , abri os braços e desfrutei daquela sensação de liberdade que a natureza me proporcionava, como se fôssemos um pedaço dela, parte integrante desse mundo de paz. Eu não era ninguém ali, apenas um pontinho no universo maravilhoso, um mero risco imerso na perfeição.
Dava para ouvir os pássaros voando por cima de nós, o barulho das folhas com o vento e as ondas do mar se quebrando. Eu nunca tinha desfrutado de nada tão bom, era um calmante completamente natural.
— É maravilhoso, não é? – refletiu e eu abri os olhos para ele, pegando-o no flagra enquanto ele tentava tirar uma foto minha.
, nãããão! – reclamei, tampando o rosto e rindo.
— Você estava tão linda e serena, ainda mais com essa paisagem atrás, não pude evitar, desculpa. – Sorriu, enquanto seus fios balançavam de um lado para o outro com o vento.
— Obrigada por me trazer aqui. Eu sei que não é nada milagroso, mas eu me sinto um pouco melhor.
— Era essa a intenção. – Mordeu a sua bochecha, segurando para não inclinar o lábio em um sorriso. — Às vezes a gente precisa se desligar de tudo e apenas deixar a mente fluir e descansar. Eu amava vir aqui quando eu estudava, pensei que pudesse te ajudar também.
— Eu ainda não consigo acreditar que você e o Denis armaram isso tudo. – Balancei a cabeça e segurei parte do meu cabelo que queria voar para a minha boca.
— No final das contas nós nos mostramos uma dupla muito organizada, diga a verdade! – Riu e estendeu a mão para colocar um cachinho que tinha se soltado para detrás da minha orelha. — Em casa você nunca ia conseguir se acalmar. Então o melhor a ser feito era te tirar daquela loucura toda. Confesso que eu fiquei com a melhor parte. Pobre Denis! – brincou, ainda com a mão atrás da minha orelha e seus olhos pregados nos meus.
Respirei fundo, encarando-o de volta. Nenhum dos dois dizendo mais nada, apenas olhando o outro. foi o primeiro a quebrar o vínculo, deixando o seu braço cair para junto do seu corpo, e eu agradeci mentalmente por ele ter feito algo que eu não conseguiria.
— Por que não nos sentamos aqui um pouco? – sugeriu e eu aceitei, sentando-me do lado dele.
Ficamos lado a lado, olhando a paisagem à nossa frente, curtindo ouvir a natureza e permanecer em silêncio. Não sei quanto tempo se passou, mas foi um momento bem aproveitado, um tempo que eu pude tentar me esvaziar e incrivelmente sentir algo se preencher em mim, ao mesmo tempo em que parecia que uma mão ia retirando pouco a pouco as coisas que me afligiam.
— Estar aqui dá uma sensação de grandeza, como se fôssemos os donos do mundo, mas, ao mesmo tempo, nos faz ver como somos tão pequenos... Olhe toda essa maravilha, quem somos nós em meio a isso tudo? – iniciou uma conversa, ainda olhando para frente.
— Passamos tanto tempo presos em nós mesmos que nos esquecemos do mundo imenso à nossa volta – refleti.
— As pessoas estão preocupadas com você, . Eu estou preocupado com você. – enunciou a constatação lentamente, virando a cabeça apenas um pouco para mim.
— Eu sei... Eu também – confessei. — São muitos anos com muita coisa acumulada, estudando como louca sem parar. Acho que o que aconteceu hoje foi o resultado de um grande acúmulo de pedras no meu caminho.
– chamou-me com carinho, um calor cuidadoso saindo nas suas palavras. — Exigir de nós mesmos é bom para podermos nos superar, mas nunca deve ser feito de forma que nos deprecie. Tentar melhorar é uma coisa, achar que nada está bom é outra muito diferente. Às vezes eu penso se você não consegue enxergar como é maravilhosa em tudo o que faz... – completou e eu encolhi-me levemente, constrangida.
— Eu não sou maravilhosa, , longe disso.
— Claro que é. A melhor aluna, sempre tira as notas mais altas, realmente aplicada e inteligente. Além disso, ocupava-se com a iniciação científica e com os bicos para completar sua renda. Sabe escutar como ninguém, tem os melhores conselhos, um coração enorme, ao ponto de ajudar até a pessoa que ninguém ajudaria – vulgo eu –, e mais ainda, é uma amiga formidável, pois para aguentar aquele dos cachinhos lá, tem que ser uma pessoa muito maravilhosa mesmo – endossou, implicando com o Denis de brincadeira e eu ri.
— Não sei como sabe tantas coisas sobre mim.
— Eu sei muito sobre você, – respondeu-me firme, dessa vez sem piscar. — E é por isso que eu quero que perceba que você pode pegar mais leve com você mesma, as coisas dão certo, no final tudo se ajeita. Não é como se eu estivesse falando com uma pessoa desmazelada e que não tem compromisso com nada. Eu estou falando com a , que é uma garota dedicada, estudiosa e organizada. Não tem como dar errado. Além do mais, ainda que desse, às vezes a gente precisa apenas aprender com as curvas que aparecem no nosso caminho, porque a vida é assim, não é feita só de retas.
, meu melhor psicólogo – sorri afetada e ele correspondeu.
Ele estava certo, por mais difícil que fosse parar de me cobrar. Eu sentia que aquilo estava me consumindo ao ponto de sentir as minhas energias físicas se ruindo. E eu só percebi de verdade o quanto eu precisava dessa pausa no momento real que estava tendo ali, caso contrário, negaria até a morte.
— Eu só quero o teu bem – ponderou, quase que sussurrado.
Sua mão se ergueu até o meu rosto, ele tirou um cachinho da minha testa, deslizando o seu dedo pela minha pele até colocar detrás da minha orelha novamente. Meu coração saltou com o momento que nos cobria. Não era apenas o ato dele, era o local, era o sendo fofo e atencioso comigo quando não precisava ser nada mais do que um paciente, era a sua preocupação velada, era tudo dentro de um pote só.
A mão dele desceu pelo meu rosto, traçando a minha bochecha e eu instintivamente fechei os olhos. Se eu queria disfarçar qualquer atração que estava existindo, agora era tarde demais. Eu estava exposta e ele poderia ver o quanto mexia comigo.
Antes que eu pudesse inundar nas sensações que aquilo me fazia, ouvimos uns barulhos de galhos se mexendo, o que me fez abrir os olhos imediatamente e recolher a sua mão. Olhamos para o lado e vimos um calango sair correndo do meio da matinha, fazendo-nos rir.
O momento fora quebrado pelo animal e antes que eu pudesse pensar nisso, me interrompeu.
— Vamos descer? – Ele perguntou e levantou-se, bateu a mão na bunda para tirar a sujeira que havia grudado e estendeu a mão para me ajudar a levantar da pedra.
Segurei-a e me ergui, ajeitando a minha saidinha de praia também. não me soltou, entrelaçou seus dedos nos meus e segurou firme. Ele já havia feito isso outras vezes, mas depois do momento que tivemos, eu não sabia se era certo toda essa intimidade e tudo o que estava acontecendo ao nosso redor.
Ele vendo que eu havia parado, olhou para trás e notou a minha apreensão, abriu um pequeno sorriso e caminhou para mais perto de mim, ainda sem me largar.
— Você sabia que pensa demais? – O lado esquerdo do lábio dele se curvou e ele bateu seus cílios longos, enquanto olhava para mim. — Por que não esquece por um instante tudo? Somos apenas nós dois, uma tal de e um tal de . Esquece a universitária, a psicóloga, a que tem um monte de tarefas e obrigações, a certinha que carrega o mundo nas costas. Vamos aproveitar isso aqui? Só hoje... Por favor! – Juntou nossas mãos fechadas e levou-as até o seu coração.
Eu podia sentir as palpitações fortes e rápidas. Não creio que a intenção dele era me mostrar isso, mas eu percebi, notando que ele batia no mesmo ritmo que o meu.
Eu pensava demais, sabia disso.
Sempre tive dificuldade de me desligar de tudo ao meu redor, sempre pensando e pensando e pensando.
Mas estar ali parecia tão mágico...
Dava-me uma sensação de leveza que me fazia querer fechar os olhos e esquecer de tudo, ser apenas eu, sem peso algum.
Fazia-me querer voar.
Olhei para , que tinha os olhos verdes escuros cravados em mim e uma expressão esperançosa no rosto, ele deslizava seu polegar no dorso da minha mão enquanto a segurava.
— Faça o seu melhor – respondi, abrindo um sorriso em resposta para ele.
Depois eu pensaria. Por uma única vez na minha vida eu queria desligar-me sem pensar nas consequências que aquilo traria.
Deixei meu futuro acadêmico nas mãos do meu melhor amigo e agora eu estava deixando a minha mente e minhas emoções para serem guiadas nesse dia - que tinha tudo para ser magnifico - com .
Ele levou nossas mãos unidas até os seus lábios e depositou um beijo ali, fazendo-me sentir seus lábios quentes em minha pele.
Era um gesto tão simples e cálido, mas havia me aquecido e causado um rebuliço em meu estômago.
voltou a me puxar pelo caminho de volta e caminhamos em silêncio, apenas ouvindo o barulho da natureza ao nosso redor. Fizemos todo o trajeto até voltar à praia. Chegando lá, soltei a mão de e tirei o meu chinelo para poder sentir a areia entre meus dedos dos pés.
Era extremamente relaxante e gostoso, o sol me acalentava e a brisa do mar causava-me um refresco. Fechei os olhos e inspirei profundamente, querendo gravar todas as sensações na minha mente. Abri meus olhos novamente e virei-me para flagrar ao meu lado me observando com as mãos na cintura e um grande sorriso no rosto. Deixei um sorriso desposar meus lábios também, um sorriso que foi diretamente direcionado a ele.
Rapidamente abaixei-me, pegando a ponta da minha saída de praia e erguendo-a por minha cabeça, saindo em disparada em direção do mar em seguida.
— O último a chegar é a mulher do padre – gritei, olhando para trás enquanto corria para a água.
riu e correu atrás de mim rapidamente. Comecei a gargalhar e tropecei um pouco com as ondas que batiam em minhas canelas ao entrar na água. Dei um gritinho e um pulo ao sentir o mar frio, mas continuei a tentar correr, visto que estava cada vez mais perto.
— Você é uma baita de uma trapaceira! – gritou e se jogou em cima de mim, rodeando os seus braços no meu corpo e levando nós dois a afundarmos na água.
Dei um grito com o susto, mas tive tempo para tampar o meu nariz e não engolir água nenhuma. Ao voltarmos para a superfície, ainda tinha um dos seus braços rodeado na minha cintura nua e gargalhava, balançando o cabelo encharcado e passando a outra mão no rosto para tirar a água salgada dos olhos.
Estávamos praticamente colados, mais próximos do que nunca, mas o que tinha me desestabilizado não era isso. Foi o som... Aquele belo e genuíno som que eu achei que jamais iria ouvir, aquele que eu havia ouvido apenas em vídeos antigos, que mostrava um diferente daquele que eu tinha conhecido em casa.
Era uma gargalhada profunda e que saía da sua alma. Ele parecia tão leve, não tinha aquela tristeza no fundo dos olhos, apesar de eu saber que esses últimos dias não haviam sido fáceis para ele também. Mas, ainda assim, ele parecia disposto e renovado. Seus olhos brilhavam e eu ouvia aquela risada enquanto ele me olhava, fazendo dobrinhas nos cantinhos dos seus olhos e marcas nas laterais das suas bochechas de tão largo era o seu sorriso.
não tinha noção de como era lindo assim. Era mais do que uma beleza física, era uma beleza de alma e coração. Algo que traspunha o estereótipo e que conquistava, independente da aparência que ele viesse a ter.
Se tivesse visto isso na primeira vez que nos conhecemos, era bem capaz de ter me apaixonado instantaneamente, apesar de não acreditar em amor à primeira vista. Mas tinha atração e sensibilização à primeira vista, não é? Com certeza isso teria acontecido. carregava algo muito bonito dentro dele, que não era intencional, apenas reluzia.
Ele ainda me olhava, a risada diminuindo, mas não saindo da sua expressão. A água batia na altura da minha cintura, o que significava que era bem rasa ainda para ele. Naquele momento eu senti uma vontade enorme de beijá-lo, algo que não era comum vindo de mim. Mas ao contrário disso, me afastei e joguei um punhado de água na cara dele e sorri, nadando em fuga um pouco mais para o fundo.
— Você é uma grande trapaceira, , sim você é! – retrucou e dispôs a tentar me alcançar, jogando um punhado de água de volta em minha direção.
Começamos uma guerra interminável e ficamos ali por um bom tempo, o que resultou em muitas gargalhadas, caldos e água no nariz. Eu já sentia a minha garganta ardendo e a pele da minha bochecha sensível ao sol, mas não queria sair, não queria desfazer aquela bolha que se formou durante aqueles momentos.
Paramos de brincar e nadamos um para o lado do outro, a respiração ainda ofegante e cansados depois de tudo.
— Acho que esse foi o melhor dia da minha vida nos últimos anos – comentou, após dar um mergulho para consertar os cabelos bagunçados, ficando agora com todos os fios para trás.
— Eu precisava muito disso – refleti, abaixando-me até que apenas minha cabeça ficasse para fora da água. — Obrigada, . – Olhei para ele de relance e dei um pequeno sorriso.
— Foi ótimo para ambos. – Virou a cabeça de ladinho, mostrando-me a marca do seu sorriso na bochecha esquerda. — Vamos para areia, daqui a pouco vamos ficar iguais uvas-passas – disse, divertido, pegando a minha mão por debaixo da água e erguendo-a para cima, a fim de me mostrar meus dedos enrugados.
Acenei com a cabeça e ergui-me junto com ele, andando para sair do mar. Estávamos um ao lado do outro e a água já batia na altura da minha bunda quando fomos pegos por uma onda grandinha, que me fez desequilibrar. A onda era forte e eu fui impulsionada para frente; na tentativa de não cair, segurei no braço de , mas só piorei a situação. O meu desequilíbrio acabou me fazendo dar dois passos desengonçados para frente e puxar nós dois para o chão, caindo quase por cima de mim.
Eu estava derrubada de costas e com o cabelo todo na minha cara, enquanto estava de joelho, gargalhando e olhando para mim. Antes que outra onda nos pegasse, ele levantou-se rapidamente e segurou a minha mão, arrastando-me pela areia até que estivéssemos praticamente fora da água, o suficiente para que onda alguma pudesse me engolir.
Eu ria, enquanto sentia um quilo de areia entrar na parte inferior do meu biquíni. Continuei de costas para o chão, gargalhando e segurando a minha barriga que até doía de rir pelo desastre. fazia o mesmo em pé, porém com a coluna curvada ao meu lado, apoiando as mãos em seus joelhos. Logo em seguida ele deitou-se também perto de mim, ainda sendo arremetido com os resquícios das gargalhadas.
— Você sempre está caindo perto de mim – ele brincou, enquanto eu tentava tirar aquele monte de cacho do meu cabelo do meio da minha cara.
— Opa, só foram duas vezes – retruquei, rindo e embaralhando-me em minha ação.
— Deixa que eu te ajudo – sugeriu e levou a sua mão até o meu rosto, tirando mecha por mecha e posicionando-as para trás.
Assim que a minha vista estava exposta novamente, percebi o corpo de inclinado lateralmente em minha direção, ele estava apoiado com o braço direito na areia e seu rosto estava praticamente sobre o meu, enquanto a sua mão esquerda fazia o trabalho de arrumar os meus cabelos.
Um gesto singelo e que me causava calafrios toda vez que ele me tocava e arrastava os dedos pela minha pele.
Eu não sei se precisava me tocar tanto, se ele podia pegar só a mecha e levá-la para trás, porém, ele deslizava o seu dedo lentamente em cada ação e, quando sua missão chegou ao fim, passou as costas do seu indicador pela minha bochecha, descendo até o meu queixo.
Engoli em seco, olhando atentamente para os seus olhos. Aquela íris verde escura e intensa não se desviava de mim. Estávamos conectados, como se nada pudesse quebrar aquela linha imaginária que nos ligava.
estava perigosamente perto e eu com todos os meus sentidos atentos a ele, tão compenetrada que eu podia sentir, mesmo com a brisa gelada, o ar quente da sua narina batendo em meu rosto, podia – sem nem tocar – notar o coração dele bater mais forte e, sem dizermos uma só palavra, sabíamos o que queríamos naquele instante.
Era como se pudéssemos ler o pensamento do outro, como se tudo até aqui tivesse nos levado para esse exato momento inexplicável.
Talvez seja por isso que, sem verbalizar, fechamos o espaço um do outro. E sem letras, versos ou canções, estávamos em um beijo cálido e majestoso.
Pela primeira vez eu podia sentir como era tocar os lábios de alguém, ainda por cima que eu apreciava. Uma sensação majestosamente divina e de bem estar. Eu sentia que era certo e não queria pensar o contrário, não agora.
Havia sido primeiramente apenas um roçar, algo tão simples e puro, e que apenas concretizava as nossas emoções. afastou-se milimetricamente, apenas para olhar nos meus olhos, uma confirmação se poderia prosseguir ou não.
Eu respondi por ele, fechei os meus olhos e ergui um pouco a cabeça para poder desfrutar dos seus lábios. O beijo agora era profundo, apesar de continuar doce e leve. Eu sentia desfrutando-me como algo raro, sua língua encontrando a minha pela primeira vez. Beijávamos querendo guardar cada instante, memorizando cada segundo em nossa pele. Não era desesperado, pois sentíamos como se tivesse todo o tempo do mundo.
Os tempos atuais fazem com que vivamos em alta velocidade, sem parar para prestar atenção em nada ao nosso redor, no entanto, estávamos fora dessa realidade, queríamos parar o tempo, sair da loucura e viver cada pecadinho de nós.
O beijo era macio e quente, sua mão esquerda acarinhava a minha bochecha e o seu corpo quente estava grudado na minha lateral. Não tinha como não saber o que fazer ali, era tão paciente e nosso momento tão único, que eu me deixei ser levada e guiada, sem se preocupar se estava fazendo certo ou errado.
Sua boca tinha gosto de mar. O gostinho salgado da água deslizava pela minha língua e meu corpo arrepiava-se quando ele arrastava seus dentes pelo meu lábio inferior e o puxava. A sua mão deslizou pelo meu pescoço, fazendo traços por ali que causaram um furor em meu abdômen e, cada vez que eu apreciava, eu só sabia que queria mais.
Nenhum momento foi desrespeitoso, ainda que eu estivesse com meu corpo exposto pelo biquíni e ele trajasse apenas a sua bermuda. não me deixava sentir constrangida, contrapondo-se a isso, eu sentia-me bem e leve, agora sim eu tinha certeza que poderia voar.
Por um instante pareceu que eu ouvi o som da rachadura na estrutura firme que eu tentava manter, como se alguém chutasse o último dominó da pirâmide, fazendo tudo ruir, contudo, era um desmoronamento bom e satisfatório.
Algumas coisas precisam ser derrubadas em nossas vidas para que possamos reconstruí-las de uma forma melhor. Um remendo apenas deixa uma trilha de erros, quando se quer realmente o melhor, é necessário desfazer e recomeçar.
Nesse dia na praia, com a natureza e com , eu estava no ponto zero. Não poderia ser um pause na minha vida, pois se assim o fosse, eu apenas continuaria amanhã com os mesmos problemas e aflições. Tinha que ser um stop, onde fazia a música da vida voltar ao início e eu poderia entoar novamente a minha canção.
Ainda que eu soubesse que aquela bolha se partiria no momento que voltássemos para casa.
Depois dali eu voltaria ser a e ele o que não deveriam ter se envolvido. No entanto, ainda que fôssemos enfiar tudo na gaveta da nossa memória apenas como uma lembrança bonita, graças a Deus, pelo menos até o momento, eu não me arrependia.



Capítulo 18

Temos o costume de achar que a vida é medida por acontecimentos mirabolantes e momentos grandes e vibrantes. Viagens magníficas, presentes caros, trabalhos bem-sucedidos...
Tudo isso faz parte, mas não é o que vai ser mais especial em sua memória.
Na vida podemos ter todas essas coisas, no entanto, são os pequenos instantes que irão te marcar para sempre.
No mais profundo do seu ser, quando fechar os olhos no seu travesseiro, não vai ficar aspirando o hotel fabuloso que você ficou em uma viagem fenomenal. São os detalhes que poucos notam que voltarão à sua mente, sensações simples e especiais que preencherão o coração.
Essas junções de pequenas coisas vão formando o nosso íntimo, preenchendo as memórias e se tornando imutáveis.
Era por isso que, por mais que eu me sentisse alegre, satisfeita e em paz pelo dia de ontem, o que eu mais me lembraria era daquele doce instante em que e eu nos olhamos, falamos um com o outro sem palavras e concretizamos um beijo doce e singelo.
Isso eu nunca ia esquecer.
Segundos valiosos viram poeira em nosso dia a dia, mas, aqueles lá, tornaram-se inesquecíveis.
Eu estava fazendo um esforço para não estragar o que aconteceu. Ainda que fosse tudo tão errado, mas tão certo ao mesmo tempo.
Era incrível como parecia me entender. Ficamos juntos na praia como se nada ao redor importasse, porém, no instante que fomos embora, antes que eu subisse novamente na moto, lembro perfeitamente do que ele havia me dito.
— Eu sei que quando voltarmos tudo vai mudar, a psicóloga e o paciente retornarão. Mas não se preocupe, eu não vou fazer tudo se tornar mais difícil para você, não vou comentar, não vou forçar a barra, só não me peça para esquecer, por favor, não diga que tudo aqui foi um erro, porque eu não sinto como se fosse. Ainda que quando pisarmos o pé do lado de fora, tudo volte a ser como antes e você queira manter a distância ética que disse que deveria ter... ainda assim, vamos deixar isso como uma lembrança bonita entre nós.
Era o único pedido que ele havia me feito e tenho certeza que meus olhos lacrimejaram. Eu nunca tinha me sentido tão feliz e tão triste ao mesmo tempo. Neguei ver o que tinha acontecido como algo ruim, mas eu sabia...
Ah, como eu sabia... que quando eu chegasse em casa, tudo seria diferente. Não sei como seria lidar com ele de novo com as memórias frescas na minha cabeça, contudo, eu tinha certeza que respeitaria o nosso espaço. Ele sabia tanto quanto eu os motivos para não repetir nada do que houve entre nós.
Logo depois de ter feito o seu pedido, colocou a lateral do indicador embaixo do meu queixo e inclinou-se para me beijar. Depositou um beijo tão frágil que achei que nós quebraríamos ali. Elevei a minha mão para o rosto dele, querendo gravar cada pedacinho, sabendo que nunca mais poderia repetir aquilo. Eu nem mesmo sabia o que tinha nos movido para aqueles instantes, só sabia que havia sido lindo.
Seria o nosso segredo, o tesouro que eu levaria escondido no meu baú. seguiria com a sua vida e eu a minha, mas tínhamos passado um bonito e inusitado tempo juntos.
Durante o caminho de volta, não houve palavras, talvez conversas aleatórias tornaria tudo pior. Apenas uma despedida fraca em frente ao meu apartamento, onde eu pude me jogar na minha cama durante a noite e me forçar a não chorar e não me arrepender.
pediu para que eu dissesse que não havia sido um erro, mas como era difícil separar as coisas sabendo que eu tinha me deixado envolver com o meu paciente, e ainda por cima um paciente em estado de superação de um término.
As palavras do Dr. Benecke vieram forte na minha cabeça. Ele havia me orientado quanto a isso, ele havia me dito a respeito dos pacientes que se apegam aos psicólogos como uma válvula de escape.
Eu sabia porque tinha beijado , mas qual o real motivo para ele me beijar? E se isso fosse uma forma dele tentar esquecer a Vanessa? E se tivesse me usado para aplacar a dor que ele estava sentindo?
Eram tantos pensamentos difíceis de compreender. Eu tentaria não pensar em nada disso, era melhor não perder o meu tempo destruindo as boas lembranças que eu tinha. Aquilo jamais iria se repetir, então não tinha motivo para me lamentar. A única coisa que eu deveria me preocupar era se manteria a sua palavra e se nós conseguiríamos nos tratar normalmente para prosseguirmos com as sessões. Isso era o mais importante no momento.
E, para minha (in)felicidade, hoje era um desses dias. Tão cedo e antes mesmo que eu me recuperasse do dia anterior. Pelo menos eu teria aula o dia todo para me distrair e só o encontraria às seis da noite.
Denis havia me ligado e pedido para encontrá-lo na porta da sala, por isso não entrei e fiquei ali esperando por ele até avistá-lo com um sorriso de ponta a ponta da orelha.
— Quem é o cara mais perfeito do mundo? – Denis abriu os braços, caminhando em minha direção.
— Henry Cavill – respondi rindo e abri os braços para ele também.
— Estraga prazeres.
— Você sabe que eu tenho um crush nele, Pimentinha. – Dei um tapinha no seu queixo e nos soltamos.
— É... Difícil competir, mas posso ser o segundo cara mais perfeito do mundo então.
— Acho que posso te dar esse posto – falei para agradá-lo e ele apertou a minha bochecha, provocando-me.
— Você deveria me amar mais, ssinha. Quem foi que te salvou das garras da professora Marta? – Arqueou a sobrancelha duas vezes, sugestivo.
Virei para ele com os olhos arregalados e segurei os seus ombros, impedindo que ele entrasse na sala.
Eu já tinha desistido do trabalho. Havia chegado tarde ontem em casa e eu não tinha capacidade nenhuma de fazê-lo. Eu teria que lidar com as consequências disso depois. Já que estava na merda, que me jogasse de uma vez. Denis havia dito que ia tentar dar um jeito, mas eu tinha poucas esperanças.
— Ela voltou atrás?
— Não. – Ele mordeu o lábio e deu de ombros. — Mas eu já entreguei o seu trabalho a ela na sala dos professores assim que eu cheguei.
— Você fez o trabalho para mim? – perguntei, sentindo os olhos lacrimejarem.
Como eu estava sentimental!
— O que eu não faria por você, Chuchu? – Abriu aquele sorriso que eu conhecia bem, mas arrastou o pé no chão, acanhado.
Denis era aquela esbanjação de amor, mas quando ele falava sério, ficava sem graça. Por isso retribui o afeto me jogando nos braços dele de novo, dando-lhe um beijo na bochecha e falando mil obrigadas.
— Tá bom, já chega. Assim você me queima para a mulherada. Vamos entrar na sala e, enquanto o professor não chega, você aproveita para me contar como foi a saída com o Pablo.
— Ainda chama ele assim? Achei que agora a picuinha já tinha acabado. – Ri.
— E perder a oportunidade? Nunca. Aquele ali precisa sempre aprender qual é o seu lugar – falou, fechando o cenho e eu não contive a gargalhada. — Palhaça, para de rir! Vem me falar o que fizeram ontem. – Caminhamos até duas carteiras vagas e colocamos o nosso material.
Olhei para os meus cadernos disfarçando, enquanto minhas bochechas queimavam com as lembranças do dia anterior.
— Foi muito divertido. O me levou de moto até uma praia mais deserta, não sei bem onde fica, até porque passei parte do trajeto de olhos fechados. – Sorri, enquanto Denis me encarava. — Chegando lá tinha um morro bem alto que subimos, a vista lá é linda, Pimentinha, você tinha que ver.
— Então o Pablo até serviu para alguma coisa – resmungou, cruzando os braços sobre a carteira.
— Eu ainda não estou boa com as armações que vocês fizeram para cima de mim, mas não vou brigar porque realmente eu estava precisando de um pouco de paz.
— Tá vendo o que você me faz? Até tive que confiá-la na mão daquele cara. Não acredito que ele te levou de moto! Se eu soubesse não tinha deixado – emburrou.
— Você não tem que deixar, Denis, esqueceu? – Enfiei minha mão nos seus cachinhos e fiz um cafuné. — Ah, obrigada pelas trocentas roupas que você colocou na minha mochila, pelo menos eu tive muitas opções para escolher. – Gargalhei, Denis abriu um sorriso e depois fechou os olhos para aproveitar o carinho, ele adorava que mexessem em seu cabelo.
— Roupa de mulher é complicado – respondeu com os olhos fechados. — Era tanta coisa e pra mim era tudo igual, só soquei tudo dentro para depois você não reclamar que eu tinha pegado a roupa errada – resmungou, quase pegando no sono.
Íamos continuar conversando, mas o professor chegou, então tivemos que nos endireitar. O dia passou agitado e rápido. Quando percebi, já estava na hora de ir embora e eu tinha que dar uma arrumadinha na casa antes que chegasse.
— Que tal a gente ir comer uma pizza hoje? Você, a Hellen e eu. – Denis correu para me alcançar e perguntou.
— Ah, não vai dar. Hoje tenho sessão com o – respondi e meu amigo fechou a cara.
, , ... Tudo agora só é – desdenhou, rolando os olhos.
— Não fala isso, Denis. – Voltei meu olhar para ele, segurando meu caderno no peito.
— Que seja, tá bom então. A gente vai sozinho – respondeu, deu-me um tchauzinho com a mão e saiu correndo de novo, só que dessa vez até onde a Hellen estava.
Respirei fundo e segui para casa, tentando ignorar a crise de ciúmes do meu amigo. Ele tinha feito muito por mim, então eu daria um desconto dessa vez. Durante o percurso eu mandei uma mensagem para perguntando se ele lembrava da sessão de hoje e ele respondeu-me com um "sim" junto com um emoji piscando. Confirmei o horário com ele e quando cheguei em casa tratei de dar uma arrumada, já que ontem eu tinha me dado o dia de folga.
Dei uma varridinha, passei pano e depois guardei umas vasilhas que estavam sobre a bancada da pia. Depois fui tomar banho, cuidar dos meus cachinhos e me ajeitar para esperar .
O relatório já estava ficando até grandinho. Sempre depois das sessões eu costumava ouvir as gravações e fazer as anotações, aproveitando enquanto estava tudo fresco na minha mente.
Levei o meu caderno e o gravador para a sala, agora só aguardando a chegada dele, que não tardou e foi pontual como sempre. Logo já estava eu abrindo a porta para que ele entrasse, encarando-o frente a frente e tentando não lembrar das maravilhas que os seus lábios fizeram comigo no dia anterior.
— Ei – saudou-me e abriu um sorriso tão largo que eu poderia ver todos os seus dentes e as covinhas superproeminentes.
Ele sempre tinha apenas aquele elevar de lábios, um sorriso contido, portanto, ser recebida com aquela imensidão, causava um calafrio na minha espinha e um furor no meu estômago.
— Entra – chamei-o e ele caminhou para dentro de casa com um ar mais despojado e tranquilo, algo inédito para uma sessão.
sentou-se no lugar do sofá que era de costume e meu batimento falhou ao pensar na gente ali em casa, sozinhos, depois de tudo – o que me levou a torcer para que nenhum de nós tocássemos no assunto proibido.
Respirei fundo e decidi forçar-me a esquecer, pelo menos por um tempo, aquele segredo que compartilhávamos. Coloquei a capa de psicóloga e endireitei a minha postura, pronta para lidar com ele como meu paciente. Eu sempre fui boa com isso e sempre consegui deixar de lado minhas emoções internas em momentos que elas não caberiam, agora não seria diferente. O meu trabalho e precisavam que eu soubesse agir corretamente e eu não queria decepcionar.
Creio que percebeu isso, seu rosto tinha um vislumbre de orgulho e eu acreditei que ele também estaria ali apenas como meu paciente, assim como havíamos combinado.
— Então, , a última sessão foi difícil, creio que você teve de lidar com sentimentos novos e coisas que você não esperava. Como foram seus dias depois dela? – iniciei, retomando o último assunto que tratamos.
mordeu o lábio inferior e franziu o cenho, parecendo tentar se recordar de todas as coisas importantes que precisava me dizer.
— No início foi complicado, mas agora me sinto melhor. Não vou dizer que estou completamente bem, no entanto, os dias foram importantes para que eu finalmente aceitasse o quanto eu errei e me fechei para a vida. – Parou, respirou fundo e retomou. — Hoje consigo ver claramente que eu preferi me agarrar a Vanessa e depositar toda a minha vida em torno dela, eu estava disposto a ignorar qualquer coisa que pudesse balançar o vislumbre de perfeição que achava que a gente tinha.
— O que te levou a essa conclusão, ?
— Eu sofri demais quando minha mãe morreu, eu até já te disse isso. E aquilo doía tanto que, quando Vanessa se dispôs a me abraçar e entrar nesse sofrimento comigo, eu só agarrei a oportunidade. A minha ex amava a minha mãe também, que a tinha como uma filha, então tenho certeza que a Vanessa sofreu muito, talvez não na mesma intensidade que eu, mas sofreu. Ela estaria comigo ali de qualquer forma, hoje eu vejo isso, sabe? Só que na época, ter uma pessoa que me entendia e cuidava de mim naquele momento, foi como uma luz pra minha vida. Eu só quis me apegar aquilo e não deixar mais nenhuma escuridão me levar. Eu estava desnorteado e sem direção, colocar minha cabeça em um relacionamento era a forma de não estar só e não precisar ver o que tinha acontecido.
— Eu fico feliz que você reconheça a importância que a Vanessa teve em sua vida, . Os términos não foram feitos para cultivar o ódio. Tudo na nossa vida tem o lado bom e ruim, costumamos repassar o lado mau, mas e todas as coisas boas que aconteceram no processo?
sorriu e balançou a cabeça concordando. Dessa vez ele relatava sem o tom de amargura e também não tinha aquela tristeza pesada ao redor. Eu havia reparado que havia falado "minha ex" tranquilamente, sendo que ele nem tinha muito o costume de usar essa expressão.
— Sim, ainda que eu tenha induzindo-a a entrar nisso comigo de forma errada, ainda que a gente não devesse ter continuado junto, ainda assim, Vanessa foi ótima e me aliviou uma barra. Sem contar todo o nosso namoro nos anos anteriores, mesmo que no final brigássemos muito, sempre fomos muito companheiros e amigos.
— Isso é ótimo – respondi com sinceridade, sabendo que essa era a melhor forma de libertação.
Sabemos que as pessoas preferem sempre focar na raiva que passou em um término ou em todos os defeitos que seu parceiro ou parceira têm. Mas isso, em sua maioria, é apenas uma forma de tentar tirar agilmente a outra pessoa da cabeça, uma saída para sofrer menos. Às vezes dá certo, às vezes é um grande engano, apenas uma forma de camuflar o real sentimento ou a ferida que está no seu coração.
Realmente conseguimos compreender que superamos quando conseguimos olhar para frente sem amargura, ódio ou rancor. Quando conseguimos seguir nossas vidas tranquilas, sem ter que ficar voltando ao passado o tempo todo ou viver remoendo algo que já deveria estar enterrado em nós.
Há términos que são mesmo ruins, há pessoas realmente péssimas na vida e que nos ferem de verdade, mas há também outras que apenas não são mais compatíveis conosco, ou amores que já se foram, sentimentos que se perderam. Erros que são cometidos muitas vezes por ambos e que não requerem de nenhum ódio mortal.
Fico a pensar se as pessoas já pararam para pensar que da mesma forma que você está queimando alguém com a tua versão da verdade, alguém pode estar te queimando também. Há sempre dois lados, duas histórias, dois pensamentos, duas formas de enxergar a situação.
Ainda que talvez a pessoa "mereça", nada traz mais paz do que deixar para trás tudo isso e seguir a vida levando a bandeira do amor.
O ódio é como uma erva daninha, só precisa de uma semente plantada em qualquer tipo de solo e ela tem o poder de se espalhar infinitamente. Já repararam como aqueles matinhos horríveis conseguem nascer no meio da grama mais bonita ou em uma terra seca que você acha que nada consegue sair dali? Da mesma forma é esse sentimento, ele consegue penetrar em qualquer coração e tem o poder de enraizar e ocupar todo o espaço, ao ponto de sufocar todas as outras espécies.
Já o amor é como aquela flor que você tanto quer ver brotar. Ela precisa de um solo bem cultivado e de muitos nutrientes para o seu crescimento. Além disso, precisa ser regada todos os dias, carece de luz e um espaço amplo para respirar. Difícil, não é?
Eu sabia bem disso porque sempre fui péssima com plantas, elas sempre morriam.
O amor é assim, difícil ser trabalhado, complicado de conseguir fazer crescer. Mais penoso ainda é chegar ao ponto de gerar uma semente para ser cultivado em um outro solo. No entanto, quando conseguimos, o jardim torna-se lindo.
Era por isso que eu ficava feliz de ver analisando o seu relacionamento de outra forma. Ainda que Vanessa tivesse seus defeitos, ele agora também reconhecia os dele e reconhecia todas as partes bonitas que viveu, independente da dor e das coisas ruins que se seguiram.
Esse era um ponto praticamente fechado do trabalho que eu fazia com , o que me gerava uma sensação de orgulho muito forte.
Contudo, algo que ele havia dito há um tempo ainda me intrigava. Antes dele chegar, eu estava lendo as anotações e recordei-me de um ponto importante, crendo que agora era o momento de tocar nele.
, tem duas coisas que havia anotado para poder conversar com você. Uma era em relação ao seu afastamento dos amigos, que efetivamente nós já conseguimos discutir e descobrimos que, na verdade, foi por conta do falecimento da sua mãe e não por causa do seu relacionamento. Mas há outra coisa em aberto que eu não posso deixar passar, eu lembro que você tinha dito em uma sessão que abriu mão de muitas coisas por conta da Vanessa. O que quis dizer com isso? – indaguei-o.
— Ah! – Suspirou e pela primeira nessa sessão eu vi um pequeno desapontamento nos seus olhos. — Eu sempre tive vontade de passar um tempo no exterior, fazer um intercâmbio para me especializar mais na área da tecnologia e aprimorar meu inglês. Nada muito longo, podia ser um curso de poucos meses mesmo. Eu tinha recebido uma proposta, mas eu estava naquela fase do casulo fechado com a Vanessa. Ela não podia ir comigo e eu não queria ficar sem ela. Então... – Parou e mordeu o lábio.
— Você não foi – completei por ele.
— Isso.
— E a Vanessa, o que achou disso?
— Não disse nada, não apoiou que eu ficasse e nem que eu fosse. Acho que a gente estava na fase "vamos viver juntos e aplacar a nossa dor", talvez ela estivesse tão iludida quanto eu naquele momento. Estava tudo tão recente ainda em relação ao falecimento da minha mãe... Na verdade, eu não sei explicar, não tem como eu responder essas perguntas por ela. Mas a decisão final foi minha, eu não quis ir para ficar aqui com ela.
— Entendi – afirmei, fazendo algumas anotações. — Se arrependeu?
— Muito. Era uma oportunidade única, sabe? Eu tinha um professor na faculdade que me adorava. Ele tinha conseguido esse curso de quatro meses lá nos Estados Unidos com bolsa e tudo. Mas, por mais que eu quisesse ir, eu não consegui. Na minha cabeça a Vanessa e eu não podíamos ficar separados. Eu não queria me sentir só, estar sozinho me levaria a pensar e encarar coisas que eu não queria, então, se ela não podia ir, eu também não.
— Mas era tão pouquinho, – refleti.
— Sim, mas na minha mente era o suficiente para que pudesse acontecer uma porrada de coisas que estragariam o que a gente tinha. Mal sabia eu na época que já estava estragado faz tempo – disse com pesar.
— É uma pena, . Mas tenho certeza que terão outras oportunidades e, quando elas vierem, agarre-se a elas. Não é sempre que novas coisas surgem. Eu sei que em relacionamentos há concessões, ambas as pessoas precisam abrir mão de algumas coisas para fazer dar certo, mas isso precisa ser muito bem pensado para que não se carregue o fardo do arrependimento para o resto da vida. Amar também é deixar livre, deixar que a pessoa escolha o que é melhor para ela. Não tem nada de errado em abrir mão de algo por amor, desde que seja feito de forma consciente e que realmente venha lhe trazer felicidade, nunca por medo e como forma de prender. Esse tipo de escolha deve lhe trazer leveza e não se tornar um fardo.
juntou as suas mãos sobre a perna e entrelaçou seus dedos, acenando em concordância com o que eu dizia.
— Talvez o tempo longe tivesse me feito enxergar as coisas erradas entre nós e em mim mesmo.
— Mas, pelo menos, você tá vendo tudo isso agora, . Mesmo depois de tanto tempo, você pode enxergar, e isso foi ótimo para o seu crescimento. Não se lamente pelo que passou, pense que hoje você evoluiu.
— Sim. – Olhou para cima, refletindo, e depois voltou a olhar para mim com um sorriso no rosto.
— Refiz alguns contatos, semana passada até saí com uns velhos amigos meus, foi revigorante.
Abri um sorriso contente. Esse era um passo grande para ele.
— Nossa, ! Isso é muito bom! Vi que você retomou alguns hábitos também, não é? – questionei-o, lembrando-me da foto em seu Instagram.
— Sim, tem sido um tempo bacana. Com os meus amigos eu recebi muitas broncas por ter desaparecido, mas eles me abraçaram como se nada tivesse acontecido. Abri o jogo, contei superficialmente o motivo do meu afastamento e eles entenderam. Eu os conheço na palma da minha mão e confio neles, não sei como consegui ficar tanto tempo longe.
— Que bom que eles conseguiram compreender a sua situação, cerque-se sempre de pessoas que te apoiem e que irão te ajudar, aí a sua jornada terá um processo mais leve. Aos poucos você vai retomar a sua vida de novo, . Devagar e sempre.
— Acho que eu não me sentia tão bem em anos. Eu tenho uma sensação de liberdade batendo muito forte no meu peito. Como se eu estivesse trancafiado há muito tempo e agora eu pudesse finalmente respirar e sentir a luz do sol.
— Você está melhorando. – Sorri para ele. — Depois que você entende onde encaixou as peças erradas do quebra-cabeça, fica mais fácil retirá-las e montá-las novamente no lugar correto – discorri com o coração exultante com o seu progresso.
abaixou levemente a cabeça e olhou por sobre os seus cílios longos, um leve sorriso lateral cobrindo seus lábios.
— Eu ainda acho que preciso fazer algumas coisas, sabe. Tem alguns pontos soltos que eu preciso aparar. Mas esses eu não vou te contar, quero fazer por mim mesmo, depois você irá saber – falou misterioso e mordendo a bochecha para não sorrir, endireitou a sua postura no sofá e cerrou os olhos em seguida, como se quisesse me passar confiança.
Dei uma gargalhada baixinha e anotei no meu caderninho para que eu lembrasse de perguntar na próxima sessão se ele tinha feito ou não, seja lá o que ia fazer.
— Tudo bem! Na próxima você me conta. Só temos mais duas consultas pela frente, mas visto que você está cada vez melhor, creio que é o suficiente. Continue fazendo o que te pedi, escrevendo no caderninho, saindo mais, retomando seus amigos e praticando seus exercícios. Aí na próxima vamos ver como está à evolução disso tudo.
— Nossa, como passa rápido – exclamou e eu ri.
— Verdade, mas já faz mais de dois meses desde que você bateu na minha porta.
— Nem me lembre. – se enfiou no sofá soltando um resmungo fingido. — Vou fazer o que você me orientou e me esforçar bastante, no final você vai ter orgulho de mim, Doutora . Eu preciso te compensar pela confusão do dia que nos conhecemos – brincou em meio ao riso e eu o acompanhei.
Correspondi-o tendo a certeza que eu estava orgulhosa dele. Eu sentia o meu coração exultante por cada progresso e por cada vez que ele abria a boca para me dizer o que tinha conseguido enxergar. Não tinha nada mais compensador do que ver um paciente progredindo, entendendo mais a si mesmo e conseguindo cumprir cada etapa disposta. Era por essas e outras que psicologia era e sempre seria o curso do meu coração.



Capítulo 19

Um sábado à noite onde Denis estava disponível era quase uma raridade, no entanto, quando a professora Marta entregou o meu trabalho com a maior cara de bunda que eu já tinha visto, nós tínhamos certeza que deveríamos comemorar. Eu havia fechado a nota, contra todas as possibilidades. Quando ela me chamou em sua mesa, minhas pernas tremiam mais que gelatina em cima do trator, contudo, o alívio apoderou-se do meu corpo quando vi circulado a minha nota naquele papel.
— Que isso não se repita mais, porque da próxima não terá segunda chance – a professora resmungou, mas eu pouco me importava.
A nota máxima para mim, na verdade, era equivalente a metade do valor total, já que a jararaca não permitiu que valesse a mesma quantidade que o trabalho anterior. Mas como minhas notas eram todas boas, não estaria tão prejudicada como antes.
Pulei, abracei e beijei o Denis, e ele me correspondeu falando mil vezes que eu precisava aprender a confiar mais nele. Eu não sei como ele tinha feito aquele trabalho tão rápido, mas ele havia conseguido e confesso que – ao passar o olho na atividade – estava muito bem feito. Para quem já tinha desistido e achava que ia tomar um zero mesmo, aquilo ali era o céu.
Denis sacou o celular, desmarcou com alguma menina e virou-se para mim em seguida falando que precisávamos comemorar. Por isso estávamos ambos ali em casa, preparando um x-egg burger caprichado em pleno sábado à noite. Era o que precisávamos depois de ter tido uma aula em pleno final de semana e ainda por cima ter que aturar a cara da Marta.
— Olha, eu ainda não sei como você fez, mas obrigada. Só espero que não seja pega por plágio. Você não plagiou né, Pimentinha? – perguntei, enquanto passava o bife de hambúrguer.
— Tsc, tsc, tsc. – Denis balançou a cabeça. — Você sempre pensa o pior de mim, não é, ssinha? Pois saiba que eu fiz tudinho durante a tarde e a noite, até cancelei meus compromissos, enquanto você tava lá toda-toda passeando com o Pablo. – Rolou os olhos e eu gargalhei.
— Vocês me obrigaram, esqueceu? – Arqueei a sobrancelha para ele, encarando-o.
— Maldita hora – resmungou baixinho, enquanto continuava cortando o tomate.
Preferi não retrucar para não dar mais margem para desavenças. Denis não estava lidando bem com , isso eu já tinha percebido. Mas parecia que cada vez mais ele se chateava ou acaba se afastando, fazendo-me preferir ficar quieta e não tocar mais no assunto .
Terminei de fritar a carne e fui fazer o mesmo com o ovo, Denis ajeitou os pães e a alface, depois montou os hambúrgueres e eu passei-os novamente na frigideira para esquentar. Ajeitamos a mesa e Denis, que tinha feito um suco, colocou-o lá também.
Deliciamo-nos com nossa arte na cozinha que, modéstia parte, tinha ficado muito bom. Não sei se era a fome ou realmente os dotes culinários que estavam melhorando. Denis ficou fazendo gracinha como sempre e eu rindo. Planejamos uns roteiros de passeios, pois uns amigos nossos viriam para cá nas férias, e nos divertimos pensando em tudo o que podíamos aprontar com eles, já que eram do interior e não conheciam nada aqui.
Estava tudo muito tranquilo e em paz, até que Denis cruzou as mãos debaixo do queixo e me encarou com um aspecto sério. Parei de comer e enruguei a testa, sem entender o que passava em sua cabeça.
– chamou-me com um semblante fechado, o que não era comum para ele. — Qual dica você diria para um cara que descobriu estar apaixonado pela amiga e não sabe o que fazer?
Seu olhar estava atento ao meu, e eu engoli em seco, sem compreender bem aquela pergunta. Para falar a verdade, eu não queria nem imaginar nada porque só a possibilidade me fazia ter calafrios.
Tá certo que havia notado que o Denis estava estranho comigo. Havia dias que ele andava esquisito e estava ciumando bastante o . No entanto, jamais imaginaria que ele poderia estar apaixonado por mim. Isso não podia acontecer, estragaria toda dinâmica maravilhosa entre nós, já que eu só o via como um bom amigo.
— An... É complicado, porque se essa pessoa não for correspondida, pode criar uma situação estranha entre eles – argumentei, como um sinal para ele pensar muito bem antes de dizer qualquer coisa.
— Mas aí você acha que ele deve guardar isso só para ele pelo resto da vida? Não acha que de qualquer forma já é complicado o suficiente? – indagou-me, cruzando as mãos embaixo do queixo, sem nem piscar.
Ele tinha um ponto interessante, porque se a pessoa que estava na friendzone não conseguisse sair fora desse sentimento, dificilmente a amizade seria a mesma de qualquer jeito. No final das contas, era bem capaz do amigo se afastar para tentar esquecer a paixão.
Estávamos em um ponto sem saída e eu sempre fui conhecida por ser bem sincera, agora não seria diferente, se tínhamos algo para resolver, que fosse já, antes que se tornasse uma bola de neve. E eu já tava de saco cheio de tanta nevasca na minha vida, não queria acumular mais uma.
— Bom... – iniciei, resolvendo ser franca e me preparar para qualquer impacto que pudesse vir. — Acho que a melhor coisa é a sinceridade. Falar o que sente e poder ver o que vão fazer com isso, seja permanecer a amizade como está, seja engatar alguma coisa. Ainda que não dê em nada, esses amigos precisam resolver isso juntos, antes que as circunstâncias os façam se afastar. Até porque, segredos causam situações e suposições que não existem, deixando as coisas piores. Verdade é tudo, sempre – concluí, sentindo um frio na minha barriga.
Denis continuou olhando para mim e começou a abrir um lento sorriso. Em um instante, antes que eu pudesse piscar, ele avançou sobre mim e me agarrou, dando-me um abraço tão apertado que eu quase me senti sufocada.
— Obrigado, . – Deu um beijo molhado em minha bochecha. — Vou correr e ligar para o Dani para dizer a sua dica para ele, afinal, você é melhor psicóloga da turma, sua palavra vale mais do que a de todos nós, sabia que ia sair um conselho muito sábio da sua boca. – Levantou e sacou o celular do bolso, discando uns números.
— Dani? – perguntei ainda estática e sem entender nada.
— É, dããã. O Daniel, aquele amigo meu que você conheceu de Paulo Afonso. Ele tá apaixonado, mas todas as dicas que eu dou, ele não segue. Falei para ele chegar e tascar um beijo logo nela, mas ele é lento demais pra isso. – Rolou os olhos com impaciência enquanto eu ainda encarava.
Minha boca ainda estava aberta, mas eu tentei organizar a minha mente para formular uma resposta decente para o meu amigo.
— Talvez porque em vez de conquistá-la, isso iria fazê-la fugir, além de ser invasivo, Denis – retruquei, começando a voltar a mim e sentir o sangue correr novamente em minhas veias.
— Que seja, vou falar com ele. – Colocou o celular na orelha e olhou de novo para mim.
Não sei com que cara eu ainda estava por causa do pânico alojado ao achar que meu amigo estava apaixonado por mim. Só sei que Denis arqueou a sobrancelha, abaixou lentamente o celular e o desligou antes que a chamada fosse feita.
— O que foi? – questionou-me e me analisou, andando até onde eu estava.
— Nada – respondi rapidamente, tentando disfarçar meu descontrole.
Denis colocou a mão na minha testa e franziu o cenho, tentando me interpretar. Nessas horas eu odiava os ataques de ansiedade por me deixar tão transparente e detestava que o meu amigo me conhecesse tão bem.
— Você está pálida. O que aconteceu pra te deixar assim? Foi algo que eu fiz ou disse? - Permaneceu olhando pra mim com a testa enrugada enquanto eu balançava a cabeça para negar.
Tinha certeza que meus olhos se arregalaram com a pergunta e, ao invés de disfarçar, eu só piorei a situação. Aos poucos a expressão preocupada de Denis foi se desfazendo e ele mordeu o lábio, segurando uma explosão de risos que eu sabia que viria.
— Eu. Não. Acredito! – exclamou pausadamente. — Você não achou que... – Ele não conseguiu terminar porque deu uma longa gargalhada e se jogou no sofá rindo às minhas custas, os braços abraçando a barriga e o som da risada ecoando pelo apê. Ao contrário de mim, que cruzei os braços e o encarei, brava.
— Eu não achei nada – fulminei.
— Achou sim! – Enxugou as lágrimas dos olhos e tentou se recompor no sofá, inutilmente.
— Tá, ok. Achei. Mas você não colaborou – confessei, jogando-me ao seu lado, envergonhada.
, meu amor. – Endireitou-se e, ainda sorrindo, apertou a minha bochecha. — Eu amo você. De todas as mulheres, se eu pudesse escolher uma para namorar, com certeza seria a , isso é, se eu não te enxergasse como uma irmãzona. – Abriu um sorriso para mim. — Ainda que você seja gata, maravilhosa, linda... Sou homem e quem não te admiraria, né? Mas eu não jogaria a nossa amizade fora para um caso de uma noite só e você merece um cara mais decente se um dia quiser chamá-lo de namorado. – Piscou e acarinhou a minha bochecha, naquele jeito meio louco do Denis, mas carinhoso de ser.
— Você tem estado estranho, ciumando o ... – Aproveitei o momento para jogar a real na nossa amizade.
— Claro que eu ciúmo o cara. – Encostou suas costas no sofá novamente e respondeu, com a ponta de um sorriso. — O rapaz chega querendo roubar a minha melhor amiga para ele, todo cheio de jeitinho de bom moço. Éramos a nossa dupla, você e eu, e agora, querendo ou não, eu preciso aprender a dividir o pouco tempo que você tem livre com ele. Queria o quê? Que eu pulasse de alegria? – Rolou os olhos e bufou.
Inclinei um pouco a cabeça e dei um pequeno sorriso em sua direção. Apesar de ser um menino expansivo e alegre, eu sabia que amigo íntimo mesmo, ele só tinha a mim. Denis era aquela pessoa que você nunca conhece bem de verdade, que se passa por várias coisas menos o que ele realmente é, um artifício para fugir de uma realidade que ele não desabafa nem mesmo para mim.
— Você nunca vai perder o seu lugar na minha vida, Denis. – Estendi minha mão na dele e entrelacei nossos dedos.
— Eu sei, mas, ainda sim, eu ciúmo, sinto como se todos os meus cachinhos fossem cair da minha cabeça – dramatizou e eu ri. — Quero que seja feliz, mesmo que seja com o Pablo. Mas vai doer até acostumar – desabafou sincero e eu vi um pingo de tristeza no rosto dele, como eu nunca tinha visto.
Joguei-me em seus braços e a gente se abraçou, eu queria mostrar todo o meu carinho e como ele era especial na minha vida naquele gesto.
— Um dia você vai achar alguém muito especial e eu vou ter que aprender dividir parte do seu coração com ela também. No entanto, temos que lembrar que os amigos têm pedaços em nossos corações que nem o maior amor da nossa vida pode ocupar, e eles são eternos.
— Eu te amo, . – Abraçou-me com mais força e deu um beijo na minha têmpora.
— Eu também te amo, Denis. Mas que fique aqui uma correção, isso não significa que tenha alguma coisa entre o e eu. Ele é meu paciente, uma pessoa que eu tenho carinho, mas só – falei, deixando de fora o fato que não deveria ser lembrado nunca mais.
Denis me soltou e rolou seus olhos, fazendo um barulho com a boca.
— Me engana que eu gosto! – ironizou.
— Estou falando sério, Denis. Eu não tenho e nem posso ter nada com o – enfatizei.
— Pois não parece, tá bem claro que você se apaixonou pelo Pablo! – Ergueu a mão e apontou para o meu rosto.
— Eu não tô apaixonada! – exclamei. — E quem é você para me acusar?! Você dorme com sua paciente, Denis!
— Mas, pelo menos, eu não tenho vínculo emocional. Acabou projeto, bye, bye! – Fez um sinal de tchauzinho com a mão e riu. — Já você – franziu o cenho –, tá toda apaixonadinha... Toda boba pelo bonitão do . Porém, eu não te culpo, eu disse aquele dia que até eu quase me apaixonei por ele. – Gargalhou e levantou do sofá, dirigindo-se à mesa para pegar as coisas e colocar o prato na pia.
Eu levantei também, acompanhando-o, e depois voltamos para a sala, enquanto eu resmungava ao seu lado.
— Eu não estou apaixonada!
— Apaixonadinha, apaixonadinha, apaixonadinha... – Denis começou a recitar no meu ouvido e eu dei um tapa no seu ombro, empurrando-o em seguida.
— Me deixa em paz! – ralhei, jogando-me sobre o sofá.
— Tá apaixonada, já era! Você acha que eu tô com ciúmes, por quê? Vê se eu sou lá homem de ciumar à toa?
— Pois está perdendo o seu tempo, Denis. – Rolei os olhos e respirei fundo para não cair em provocação.
— Então você não vai se incomodar se eu te disser que eu o vi ontem na rua, vai? – Abriu um pequeno sorriso, seus olhos brilhando em travessura.
— Óbvio que não.
— Nem se eu disser que ele estava junto com uma garota? – soltou maldosamente e eu o olhei de relance, segurando-me para não perguntar nada a respeito.
Era só me concentrar que eu tinha certeza que não ia o fazer ganhar esse jogo.
— Tem certeza? Mesmo se eu disser que era uma gata e que eles pareciam íntimos? – perguntou e eu não me contive em virar a cabeça em sua direção, fazendo-o alargar o sorriso ao notar isso. — Tá, eles não estavam íntimos no sentido literal da palavra, mas pareciam velhos conhecidos. – Ele riu, sabendo que estava me provocando de todas as maneiras.
— Não me importo.
— Era linda demais, quase que eu fui até lá e pedi para ele me apresentar. Seria justo, né? Eu tô deixando ele sair com você, então ele precisa me ajudar com a outra menina. Olha, foi por um triz que eu não fui, só desisti porque tive a sensação que eu interromperia alguma coisa.
— Denis. – Respirei fundo. — Primeiro, você não tem que deixar nada, quantas vezes eu preciso repetir? E segundo, eu não tenho nada com o , meu Deus, sério que você ainda não entendeu isso?
Denis fingiu não me ouvir e ignorou completamente o que eu falei. Não era possível que ele tava se fazendo tão de besta assim, eu tinha certeza que tudo era uma forma para me fazer confessar. Meu amigo sentia o faro da mentira em mim ou mesmo da omissão, ele não retardaria enquanto não se desse por satisfeito.
O Pimentinha jogou a cabeça para trás no sofá e continuou falando e descrevendo a garota em detalhes para mim. Assim que ele começou, eu não tive dúvidas, sabia muito bem quem era a pessoa que estava com .
— É a ex dele – afirmei e Denis virou a cabeça em minha direção.
— Sério? – perguntou e eu fiz um movimento afirmando. — Opa, o negócio começou a ficar interessante. Eu achei que eles tinham terminado, será que tá rolando revival?
— Ai, Denis. Eu não sei! E não me importa saber disso, não como a pessoa normal como todo mundo. Eu preciso saber como a psicóloga, para poder acompanhar o caso, fora isso eu pouco me importo, o pode fazer o que quiser da vida, voltar com a ex, arranjar outra, não me importa, entendeu?! Não. Me. Importa!
— Se não importa, por que todo esse nervosismo, então? – Ele cruzou os braços, olhou para mim segurando o riso e arqueou uma sobrancelha.
— Porque você me estressa! – Joguei uma almofada nele e ele agarrou-a, gargalhando.
— Ah! – Estalou o céu da boca. — Não é isso, não! Você tá toda afetadinha – cantarolou.
— Não tô afetada! Jesus! Eu joguei pedra na cruz, só pode! Denis, eu não me importo, sério – repeti mais para mim mesma do que para ele. — A minha única preocupação com o é que ele tenha uma recaída, ele tinha desenvolvido muito bem nas sessões, ele mesmo havia me dito que descobriu que o que ele sentia não era o que pensava. Em momento algum das últimas sessões ele demonstrou para mim que queria voltar com ela, seria um grande retrocesso e um grande erro, e não tô falando isso por causa de mim, mas sim porque é mais do que óbvio que o não gosta dela dessa forma mais.
— E por que tá mais do que óbvio? Por que ele gosta de você?! – Denis rebateu e eu grunhi alto, passando a mão por meu rosto.
— Ele não gosta de mim! Ele nem pode gostar de mim, Denis. Eu não quero ser mais uma válvula de escape para ele. Já aconteceu isso com a Vanessa, eu não quero ser mais uma. não precisa de mim agora, não dessa forma.
— Talvez não seja, não acredita que ele possa mesmo gostar de você?
— E da onde você tá tirando esses absurdos, Denis?
— Ah... – Mordeu o lábio. — Sei lá, vocês fariam até um casal fofo, mesmo que isso fizesse todos os meus cachinhos caírem de ciúmes. — Sorriu, passando a mão por seu cabelo e eu acabei rindo com ele.
— Ai, Denis, você é impossível, mas eu te amo assim mesmo. — Balancei a cabeça sorrindo. — O negócio é o seguinte, o é um amor de pessoa, bonito, educado, fofo, tem umas conversas bacanas, é difícil lidar com ele, confesso para você. Mas a gente não pode se envolver. Por inúmeros motivos. A começar que ele é meu paciente, ponto! Isso já é um grande fator. O segundo é que está saindo de uma situação confusa, quem me garante, se ele viesse a gostar de mim, se é isso mesmo ou só uma forma que a mente dele usou para escapar de novo da dor que ele tá sentindo? Eu não posso ser conivente com isso. O terceiro motivo é que em nenhum momento o disse isso, graças a Deus, ou eu nem saberia o que fazer.
Denis ficou olhando atentamente para mim, mordeu a bochecha interna e passou a mão por seu queixo.
— Faz sentido, mas eu não pensaria nada disso, eu apenas deixaria rolar.
— Claro que deixaria – resmunguei em meio a um sorriso.
— Pensar nisso tudo dá dor de cabeça, acha não?
— Com toda a certeza – afirmei, pois sabia na prática como isso dava dor de cabeça!
Não era à toa que eu tinha rolado na cama diversas vezes pensando no assunto, mesmo que nunca tivesse feito uma insinuação desse tipo. Uma tarde de beijos não significava que ele gostasse de mim.
As pessoas viviam pegando umas as outras e nem por isso se gostavam dessa forma. Muitas gostam apenas de curtir o momento e talvez foi o que levou a fazer isso. Estávamos imersos a um momento e acabou rolando, fim de história. Agora ambos usávamos o aparelho do MIB – Homens de preto e esqueceríamos o que aconteceu, seguindo adiante e tocando a vida.
Era difícil para a minha cabecinha isso, porque eu nunca fui adepta ao ficar. Então, se eu havia beijado naquele instante, era porque realmente ele mexia comigo. Não afirmaria que estava apaixonada, porque eu mal sabia dizer o que sentia. Eu nunca tinha me apaixonado antes, por que teria que me apaixonar logo pelo cara que eu não podia?
Isso que dá ficar se gabando por não ter o coração partido!
Quem nunca sentiu, não tem muita noção do que é. Eu não podia afirmar uma paixão, mas eu sabia que, de uma forma ou de outra, eu estava gostando de , o carinho que eu sentia por ele era diferente do que sentia pelas outras pessoas e também era diferente do que eu sentia pelo Denis, já que eu não tinha vontade de beijar o meu amigo.
No entanto, independente do que eu estava – ou não – sentindo. Aquilo deveria ficar para lá. Se eu não podia seguir em frente com isso, para que alimentar? Não fazia sentido nenhum, ainda mais correndo o risco de ter tido uma recaída.
O que era muito possível.
Eu acreditava que era forte e eu havia pensado que ele tinha superado e entendido que o que ele tinha com a Vanessa tinha terminado há tempos. No entanto, poderia estar enganada. E aquilo me doía e me incomodava em ambos os sentidos. Tanto a psicóloga, quanto a menina que foi beijada.
— Vem aqui! – Denis estendeu o braço para mim e me chamou, assim que notou o meu silêncio e meu ar pensativo. — Não pensa nisso agora, desculpa, tá? Eu não queria te deixar assim, só queria que você se abrisse comigo. Às vezes você é difícil, . Não sei se é porque você me acha um panaca ou porque não quer se mostrar vulnerável para mim. Mas eu tô aqui, eu sou seu amigo, não precisa ter vergonha de desabafar quando precisar, tudo bem? – Abraçou-me e me deu beijo na têmpora direita.
— Eu não quero gostar do – sussurrei contra ele, enquanto sentia os braços de Denis me rodear, como uma irmã que cuidava com afeto. Ele era a única pessoa que eu tinha ali no Rio – já que minha família morava muito longe – e eu agradecia todos os dias por Deus ter colocado ele na minha vida.
— Vai dar tudo certo. O máximo que pode acontecer é finalmente você saber o que todos os relés mortais passam. — Ele riu contra meus cabelos. — Mas sobrevivemos, não foi?
Eu balancei a cabeça, sentindo meus olhos arderem.
— Então você também vai sobreviver. – Sorriu e continuou a me embalar.



Capítulo Bônus

Eu tinha uma vida feliz e normal, como a da maioria das pessoas. Tive minhas dificuldades, mas nada que me levasse a ser uma pessoa destrutiva ou mesmo rebelde. Eu era conhecido como o cara legal, o garoto obediente, a pessoa que nunca tinha intriga com ninguém.
Não era rico, mas também não passava dificuldade. Minha mãe colocou a mão na massa para me dar do bom e do melhor. E não era com um emprego dos sonhos não. Era fazendo faxina mesmo, lavando roupa para fora, aceitando cargo de vendedora e chegando em casa tarde da noite. Não foi fácil, mas foi um tempo feliz.
Cada um fazia a sua parte, minha mãe sustentava a casa enquanto eu tinha que dar conta dos meus estudos. E eu fiz. Ralei pra caramba, passei na federal e hoje estou formado e trabalhando, com vários contratos e fazendo meu serviço de dentro de casa. Tem coisa melhor?
Ah, para completar, eu tinha uma garota maravilhosa ao meu lado. Uma amiga que me apoiava e que fez da minha infância algo muito mais agradável para se lembrar. Adolescência, hormônios, beijos e namoro. De amizade para o primeiro amor. Um amor que durou sete anos de altos e baixos. Mais altos do que baixo, mas quando caiu, foi de vez, descendo a ladeira e destruindo tudo o que tinha na frente.
Mas, tirando isso, eu tinha uma vida boa, até então eu tinha a garota dos sonhos, um estudo bacana e uma família que se resumia a minha mãe. Não tinha nada para reclamar. Até que um dia tudo mudou. E eu jamais esqueceria àquela cena.
Eu poderia ter 365 dias felizes no ano, mas bastou um para virar a minha vida de cabeça para baixo, e esse foi o dia que eu me despedi da minha mãe.
Éramos ela e eu, com a adição da Vanessa depois, Mas mãe é mãe, namorada é namorada. Talvez foi aí que eu comecei a misturar tudo dentro de mim.
Quando minha mãe morreu foi um baque na minha vida, fui jogado em um inferno de dor que eu não queria enfrentar. Eu queria voltar a minha vidazinha pacata, tranquila e feliz. Eu não conseguia imaginar uma vida sem a pessoa mais importante que eu tinha. Simplesmente não dava.
Vanessa me conhecia bem demais para saber que eu não estava bem, eu precisava de consolo e ajuda e ela foi isso para mim, mesmo que a gente estivesse na pior fase do nosso relacionamento. Ela jogou tudo para o alto, mandou um dane-se bem grande e me abraçou.
E vocês acham que eu quis saber de alguma coisa? Óbvio que não.
Eu não quis saber por que diabos a gente estava péssimo e prestes a terminar. Eu não queria nem lembrar que a gente estava assim antes de tudo acontecer.
Era a Vanessa ali, a minha amiga da vida inteira, a única pessoa que eu tinha agora. Eu só me agarrei a isso, como uma forma de sobreviver no meio daquele lamaçal que me sufocava.
Voltamos a namorar como se nada tivesse acontecido, eu estava frágil demais para lidar com um término agora. Hoje eu entendo o que aconteceu, hoje eu sei porque Vanessa continuou comigo. E nesse ciclo de anos que a gente já carregava, era mais fácil continuar com o que eu já era acostumado do que começar uma nova vida, afinal, sete anos não são sete dias, creio que nenhum de nós sabíamos mais como era ser solteiro, já que o nosso relacionamento havia começado bem cedo.
O problema era que nada estava bem. Aquela paixão, o fogo que se deve ter entre um casal, já tinha morrido bem antes da minha mãe. Mas a gente permanecia juntos, muito mais por culpa minha do que tudo.
Eu devia ter visto que a Vanessa não estava feliz, eu devia ter percebido quando ela deixou o papel de namorada e se tornou mais minha mãe do que uma parceira. Ela não fez por mal, a Vanessa tinha um coração grande demais para me deixar de lado e ela quis ocupar um espaço que ela sabia que fazia falta em mim. Por isso, aos poucos, praticamente mudou para a minha casa, tomou as tarefas que antes minha mãe fazia e eu preferi pensar que tudo estava bem a ter que lutar contra outra dor. Preferi me agarrar a um relacionamento frustrado do que ter outra perda na minha vida.
Não queria ficar sozinho, se ela se fosse, como eu ficaria?
Não foi consciente e nem premeditado. As coisas só foram acontecendo sem nos darmos conta, mas hoje eu vejo. As sessões me ajudaram bastante para enxergar tudo isso. Não foi nada fácil descobrir que vivi uma mentira que eu mesmo causei, no entanto, agora era hora de enfrentar isso.
Eu sentia que precisava fechar os pontos da minha vida, encarar as situações mesmo que doessem. Hoje eu podia compreender que a dor faz parte do processo para que possamos nos tornar pessoas mais fortes. Eu fui fraco, eu fugi, mas agora eu havia retornado e era hora de seguir em frente.
Por isso, naquela tarde, quando encontrei a Vanessa na rua, eu sabia que precisávamos conversar. Uma casualidade do destino havia dado um empurrãozinho, e eu aproveitaria para encerrar.
Quem diria que eu a encontraria numa calçada qualquer na rua?
Quando trombei com ela e ela me viu, seu semblante mudou. Vanessa ficou extremamente séria e eu a entendia. Ela devia ter medo de que eu chorasse ou implorasse para voltar como das outras vezes. No lugar dela eu também fugiria de mim. Claramente eu estava envergonhado das cenas patéticas que eu tinha feito, contudo, eu não podia mudar isso agora, foi o que eu senti naquele momento, foi a minha dor ainda não descoberta. Era muito mais que um pedido de volta de relacionamento, ali eu estava desesperado, não queria ficar só, não queria encarar a minha própria dor. Era mais fácil focar em um namoro, eu só queria que tudo continuasse normal, mas tudo já estava diferente e eu apenas não percebia.
— Oi, Vanessa – cumprimentei-a, sem graça, sem saber ao certo como começar a conversa.
— Ah, oi, . – respondeu, trocando o peso das pernas e olhando para o lado, nitidamente querendo escapar daquela situação.
— Eu queria conversar com você, se puder... – pedi e ela suspirou, passando a mão por sua testa.
— Olha, … Desculpa, mas a gente não tem mais nada para dizer.
— Eu sinceramente preciso. Prometo que não vou pedir para voltar, não é nada disso. Mas, Vanessa, a gente sequer conversou. Fomos amigos por muito mais que sete anos de relacionamento, você não acha que deveríamos pelo menos ter um encerramento digno? – insisti, tentando convencê-la.
Minha ex mordeu o lábio e balançou o pé. Ela estava em dúvida, não sabia se acreditava em mim, mas eu havia pedido pelos anos da nossa amizade. Se valesse alguma coisa ainda pra ela como ainda valia para mim, ela aceitaria.
— Não quero que as coisas fiquem pior, , é para o seu bem, eu quero que a gente supere tudo isso e não sei se ficando junto de você no mesmo ambiente irá ajudar – avaliou, sobriamente.
— Eu prometo para você que não vou dificultar as coisas entre nós, Vanessa. – Dei um passo para aproximar dela, mas não perto demais ao ponto dela achar que tinha alguma segunda intenção. — Alguma vez eu não cumpri com o que eu prometi? – Abri um pequeno sorriso, lembrando-me de todas as nossas promessas loucas de infância, mas que eu fazia questão de fazer valer a minha palavra. Como quando disse que ia conseguir um sorvete de menta para ela, mas não tinha nenhum no bairro, então, o meu eu de 12 anos resolveu comprar um pacote de bala de menta e jogar dentro do sorvete de baunilha antes de entregar o pedido especial.
Vanessa riu, talvez lembrando-se do mesmo fato que eu. Balançou a cabeça, segurou o cotovelo esquerdo com a mão direita e me observou alguns segundos antes de dar a sua resposta.
— Tudo bem. Você tá a pé? Se tiver eu te levo de carro pra sua casa, a gente conversa lá e depois eu vou embora.
— Tô sim, pode ser – concordei e fomos para minha casa.
Por mais que eu soubesse o que queria e o que eu deveria fazer, não tinha como não ficar nervoso. E eu era tão patético que tinha certeza que ela conseguia perceber. Mas, para melhorar a minha estima, eu sabia que ela estava nervosa também. Vanessa sempre sacudia a perna e mordia a bochecha quando estava nervosa, repetidas vezes.
Fizemos o percurso em um silêncio um pouco constrangedor até chegarmos em minha casa. Vanessa estacionou o carro e logo estávamos lá dentro. Ela entrou observando ao redor e só de olhá-la eu sabia que uma onda de lembranças vinha em sua mente. Havia sido um longo tempo juntos, muito mais até do que os anos de relacionamento, era triste pensar em como estávamos ali agora, cheio de puderes e pouco à vontade um com o outro.
— Quer se sentar? – ofereci, eu mesmo sentando-me em um lado do sofá.
Vanessa acompanhou-me, colocando a sua bolsa em seu colo e posicionando-se um pouco distante de mim. Encaramo-nos, sem saber como começar aquela conversa, mas eu havia lhe chamado até ali, não podia jogar esse fardo para ela, por isso, resolvi iniciar o diálogo.
— Eu não quis te trazer aqui para fazer você voltar atrás, Nessa – chamei-a por seu apelido –, pode ficar tranquila. Mas acredito que a gente precise desse momento, a forma como tudo terminou não foi legal.
Vanessa abriu a boca para dizer algo, mas eu pedi para que ela esperasse, eu precisava falar. Precisava aproveitar da coragem que eu tive para me abrir com ela e deveria ser justo, levando em conta tudo que ela significou um dia para mim.
— Primeiro eu quero te pedir perdão. Eu tive muito tempo para pensar depois que você colocou um ponto final na nossa história e você estava certa. Eu te admiro por ter conseguido fazer isso, acho que se dependesse de mim, estaríamos da mesma forma até hoje. – Respirei fundo. — Eu errei muito com você. Eu devia ter visto os sinais, enxergado como tudo era ruim, mas a verdade, Nessa, é que no fundo eu não quis ver. Depois que minha mãe morreu, eu preferi tampar meus olhos e te levar comigo nesse barco furado que era o nosso namoro. Eu não tenho como voltar atrás e mudar o que aconteceu, mas eu posso pedir perdão e te garantir que nunca mais vou te trazer para essa bagunça novamente…
... – A garota em minha frente sussurrou, os olhos meio chocados talvez com tantas coisas despejadas de uma só vez.
— A gente teria terminado, não é? Pode ser sincera comigo – pedi. — Antes de acontecer o que aconteceu, antes de descobrir do falecimento da minha mãe. Não tinha mais volta ali – falei em tom de afirmação, mas também como uma pergunta, pois queria ouvir da boca dela.
— Me desculpa. – Os olhos dela encheram-se de lágrimas. — Não dava mais, você sabia, eu sabia… Houve um tempo em que éramos bons juntos, mas esse tempo passou e estava tudo tão difícil. Na verdade, acho que a gente já tinha praticamente terminado, porém sem palavras. Mas, , quando você me ligou contando o que aconteceu… Eu jamais te deixaria sozinho. Eu… Eu amava a sua mãe como se fosse da minha própria família, ela me tratava como filha. Você não pode levar a culpa sozinho, , foi opção minha estar ao seu lado, você nunca me pediu e nem insinuou nada.
— Mas você não precisava. Não do jeito que foi.
— Não acredito que no meio de tudo o que estava acontecendo algum de nós estivesse consciente o suficiente para pensar em alguma coisa. Só porque a gente não estava dando certo, não quer dizer que eu não te amava. A dor também tem algo intrigante que acaba unindo as pessoas. Eu também estava sofrendo, . Claro que jamais posso comparar a minha dor com a sua, mas doeu em mim também, eu quis ser consolada assim como você. Nós dois nos jogamos nisso. A única diferença é que eu notei primeiro o quão errado isso havia sido.
Passei a mão no meu rosto, pensando em tudo aquilo. Vanessa continha-se para não chorar ali, assim como eu. Eram feridas abertas que doíam, saber e entender o quanto havíamos traçados caminhos tortuosos era triste.
— Eu queria que você tivesse dito alguma coisa antes. Antes que tudo tomasse essa proporção tão grande. Eu fui tão cego… – refleti.
— Eu não consegui, sempre tive dificuldade de tratar os nossos desacordos. , você estava tão mal, eu queria te ajudar, mas eu não sabia o que fazer. Você não conversava comigo, não se abria, eu não queria trazer mais uma angústia para você, falar dos nossos problemas ou do nosso relacionamento. Eu quis te dar espaço, eu achei que se eu suprisse você de amor e carinho, você conseguiria sair daquela situação – explicou com olhos brilhando de lágrimas.
— Mas na verdade não melhorou e você ficou presa a mim, enquanto eu achava que a gente estava vivendo uma maravilha. – Passei a mão por meu rosto, para tentar distrair antes que chorasse.
— Eu acho que no fundo você sempre soube, . Só não quis enxergar. Nós nunca mais fomos os mesmos. Claro que havia respeito, carinho, gratidão e as outras coisas que compõe um casal, mas não era a mesma coisa, não mais…
— Eu sei. Hoje eu percebo isso.
— Eu tentei, juro que eu tentei ser forte, eu tentei me manter com você, mas … – Os olhos que antes tremulavam, agora escorriam de lágrimas. — Eu não consegui. Não dava mais, eu me sentia sufocada em uma vida que não era mais minha, tudo parecia falso, eu tinha vontade de gritar, mas não tinha coragem, eu não queria te machucar. Eu sei que eu fui uma filha da mãe pela forma que terminei com você, mas eu sou muito covarde, eu fugi, eu só meti isso pra cima de você e fui embora porque tinha medo que se a gente conversasse e eu te ouvisse, eu pudesse voltar atrás – confessou.
— Não diga isso novamente. Você não tem que se culpar, se tem uma pessoa que foi responsável por isso foi eu e não você.
Respirei fundo, refletindo cada palavra. Eu deveria ter percebido. Eu amarrei Vanessa por dois anos em um mundo encantado que só existiu dentro da minha cabeça, como em Nárnia, eu entrei, mas não quis mais sair.
— Você se arrepende? – soltei a pergunta.
— Do quê?
— Do nosso relacionamento – esclareci.
— Não, claro que não, . A gente se amou, eu tenho plena certeza do que sentimos um pelo outro, nós vivemos intensamente cada momento juntos só que…
— Acabou – completei a palavra que ela não havia conseguido terminar.
— Isso. – Suspirou. — Não soubemos a hora de parar, a hora que não dava mais.
— Insistimos em algo que já não existia.
— Mas não significa que tudo foi erro. Nós só nos deparamos com trilhos diferentes.
— Vanessa, todo ciclo precisa se encerrar, por isso, antes de mais nada, eu queria muito que você me perdoasse por não ter compreendido o momento certo, por não ter enxergado e ter te prendido tanto tempo comigo.
... – Estendeu a sua mão e tocou a minha, um gesto tão familiar e que me proporcionou uma sensação gostosa, mas não como antes, não tinha desejo, era apenas afeto. — Nós dois erramos, eu nunca devia ter feito esse papel com você, eu deveria ter sido sincera desde o início. O fato de sua mãe ter morrido não iria me tirar de perto de você. Eu poderia estar ao seu lado como sua amiga, assim como sempre fui, mas optei para estar como namorada e carreguei isso por muito tempo. Você estava em luto e não percebeu. Os dois erraram. Sem culpa entre nós.
Retirou a mão lentamente e voltou as suas costas para o sofá, o rosto ainda um pouco inchado, mas com um leve sorriso, como se quisesse me dizer que estava tudo bem. Ela sempre pensava em mim, mesmo quando não precisava, mesmo quando poderia aproveitar a oportunidade para me xingar de todos os nomes por ter nos prendido em um relacionamento péssimo, ainda assim, ela tentava me liberar.
— Fiquei pensando muito sobre isso nesses dias. Tenho feito tratamento psicológico, não é bem oficial, porque é com uma estudante ainda, mas tem me ajudado pra caramba. Me fez entender como a gente pode arruinar algo tão bonito e belo quando não sabemos a hora limite para o não. Nós sempre fomos amigos, antes de qualquer coisa, e olha como tudo terminou.
— A gente destruiu tudo, não é? – Seu sorriso tornou-se amargo e triste. — A gente era a dupla dinâmica. Você foi excelente namorado e um grande amigo, , não tenho dúvidas disso. Claro que tínhamos nossas desavenças, éramos diferentes. Mas eu nunca vou esquecer dos detalhes… Como quando na escola eu esqueci de fazer o trabalho e você colocou o meu nome no seu, ficando com zero no meu lugar; ou mesmo na época que a gente namorava e você deixava aqueles bilhetinhos espalhados nos lugares mais ilustres falando do quanto me amava. – Passou a mão pelo seu rosto e enxugou uma lágrima que escorreu em sua bochecha, enquanto eu arquei um pouco um sorriso com a lembrança.
— Eu era um bobão, não é? – brinquei.
— Não, . – Balançou a cabeça e riu para mim. — Você é especial. A garota que conquistar o seu coração vai ser uma garota de sorte.
Meu sorriso se alargou com o pensamento e eu esperava mesmo que pudesse ser uma pessoa melhor, que tivesse aprendido com os meus erros para estar pronto para um possível novo relacionamento no futuro.
Antes que minha mente voasse por isso, pisquei e concentrei-me na garota a minha frente, dizendo as palavras que eu sentia e sabia que ela merecia ouvir.
— Eu sempre vou te levar no meu coração, Vanessa, não é porque terminamos que meu amor por você acabou. Não é o mesmo, o amor que nos movia como namorado e namorada acabou, mas meu carinho, admiração e amizade por você sempre vai existir. Talvez hoje a gente não saiba ainda lidar um com o outro, mas eu ainda quero ser seu amigo, não quero jogar tudo fora simplesmente porque não estamos juntos mais.
— Eu espero que possamos amadurecer o suficiente para isso porque essa é uma proposta que eu adoraria cumprir. – Seu sorriso se alargou e pela primeira vez o clima tornou-se bem mais leve ali. — Eu também amo você, . – Estendeu a mão para mim novamente e a apertou. — Me perdoa.
— Eu não tenho o que te perdoar. Acho que ambos estamos perdoados e prontos para partir.
Vanessa balançou a cabeça positivamente, inclinou-se para mim e me abraçou. Foi um abraço cheio de afeto, sentimentos e paz. Estávamos encerrando ali um ciclo iniciado há bastante tempo. Era definitivamente o fim, com todos os pingos dos ‘is’ colocados corretamente, as cartas expostas na mesa.
Eu sabia que sempre haveria amor, mas não o romântico. Algumas coisas eram muito claras para mim agora, o fim de um relacionamento não tinha que ser o fim daquela pessoa na sua vida, não tinha que vir cheio de mensagens de ódio e desprezo. Vanessa foi especial para mim pelo tempo que ela esteve na minha vida, talvez sempre seria, mas não ocuparia mais o mesmo espaço de antes. Esse não pertencia a ela há muito tempo. Eu até havia tentando fazer com que ela permanecesse lá, mas não mais. O meu coração agora não saltitava por ela, não havia desejo ou mesmo vontade que voltássemos a ser um casal. Só restava uma imensidão de afeto e carinho.
— Você é um cara especial.
— As boas línguas dizem que sim – zoei, ainda abraçado a ela e ela riu.
Encerramos o abraço, assim como o ciclo. Havia sido difícil, havia demorado anos, mas havia chegado ao fim. Aos trancos e barrancos, entre erros e acertos, eu me sentia agora em paz. Não havia angústia e eu sabia que aquilo tinha sido a coisa mais certa a se fazer. Quem diria que o cara que cantou Pablo por um término agora se sentia estupidamente feliz com o fim definitivo da antiga relação? Eu me sentia mais novo do que nunca, a cabeça arejada e o coração leve e livre para ser guiado por onde ele queria agora saltitar.



Capítulo 20

Passei por uma semana difícil e empurrei os dias de qualquer jeito. Eu sentia uma confusão de coisas acontecendo dentro de mim. Às vezes era como se meu coração estivesse espremido, em outras ele parecia querer saltar para fora do meu peito. Já em algumas ocasiões, a minha pele formigava com as lembranças de uma certa tarde única e maravilhosa que eu havia tido com um certo alguém.
Seja como fosse, a vida precisava andar. Eu cometi um desvio de percurso e precisava lidar de uma forma que as consequências fossem amenizadas. Isso incluía, então, afastar esses tipos de pensamentos e qualquer outra coisa que envolvesse de uma maneira diferente e além do seu status de paciente.
Eu havia entregado todos os relatórios parciais ao Sr. Benecke e ele acompanhava o caso. Fiz de tudo para não deixar transparecer nenhum tipo de emoção perante ele. O professor havia me elogiado e disse que a evolução do caso estava indo muito bem. Ele nem havia precisado interferir em nada, apenas havia dado umas dicas aqui e ali de como abordar sobre alguns assuntos durante o processo das sessões.
Nem todos os alunos haviam dado a mesma sorte. Cada caso é um caso e nosso professor, com toda a responsabilidade que tinha, fez questão de analisar um por um de perto. Alguns, por exemplo, ele acompanhou presencialmente as sessões junto com os meus colegas, porque o caso era muito delicado, segundo ele.
De qualquer forma, e eu tínhamos pela frente, segundo os meus cálculos, apenas mais duas consultas. A de hoje e a próxima.
A meu ver, teve uma evolução fantástica. Não que isso tivesse acontecido da noite para o dia, estávamos praticamente três meses no processo e eu sabia que certas feridas cicatrizariam apenas com o tempo. No entanto, havia se erguido, estava feliz, havia voltado a sorrir e sentia-se bem. Se ele continuasse, depois do meu trabalho, o acompanhamento com algum outro psicólogo, creio que logo estaria ótimo. Minha única preocupação no momento era sobre o que o Denis havia me falado.
Um frio na minha barriga perpassava-se toda vez que eu me recordava que hoje eu saberia sobre Vanessa, pois não achava que seria do feitio de esconder tal coisa. Mas confesso que não sei se eu estava preparada para a resposta que ele me daria. Incomodava-me pensar nele com ela novamente? Não sei. No entanto, mais do que isso, era imaginar que todo o processo que construímos poderia rolar ladeira abaixo novamente. Como sua psicóloga, seria frustrante, porém, como a garota , eu também detestaria ver aquele mesmo quebrado que bateu à porta da minha casa há um tempo.
O meu apê já estava todo arrumadinho esperando que ele chegasse. Eu não sei quantas vezes eu já tinha sentado no sofá, levantado, bebido água, ido ao banheiro e arrumado meus cachos. Eu precisava ficar tranquila e tinha que estar pronta para o que ele me contasse, o que não demorou muito, pois logo a campainha tocou e eu abri a porta, encontrando parado com um sorriso no rosto.
Uau, definitivamente eu não esperava por isso.
Eu mal havia me acostumado com os seus sorrisos verdadeiros e agora já era recebida com um presente dos céus. Não foi à toa que eu precisei reaprender a como respirar na hora, já que havia ficado sem fôlego. estava mais belo do que nunca e nada tinha a ver com roupas ou forma como se vestia, era o seu semblante alegre que tocava a alma de qualquer um.
— Oi, . – Inclinou-se e me deu um beijo na bochecha para me cumprimentar.
Engoli o meu coração, que parecia querer saltar pela minha garganta, e esbocei um sorriso, colocando um dos meus cachinhos por detrás da orelha em um gesto tímido.
— Ei, ! Vamos entrar? – convidei-o, dando passagem para que ele pudesse adentrar o recinto.
Como já estava acostumado, meu paciente caminhou pela sala e sentou-se no sofá. Sua perna sacudia um pouco e eu percebi que ele estava inquieto, mas não de uma forma ruim, ele aparentava estar empolgado, seus olhos brilhando em uma expectativa que eu não sabia definir.
Deus, que não fosse pelo motivo que eu estava pensando, por favor!
— Está pronto? – perguntei, assim que me sentei e me posicionei de frente para ele.
— Prontíssimo, doutora – respondeu e piscou para mim, erguendo os braços e cruzando-o atrás da sua cabeça ao recostar no sofá.
Ah, . Não faça isso…
Mordi meu lábio inferior e desviei o olhar, tentando me concentrar em qualquer coisa que não fosse o belo rapaz ali e como aquele simples gesto havia sido tão sutil e sensual ao mesmo tempo.
— Como foi os últimos dias para você? Tem usado o caderninho? – perguntei, introduzindo logo a nossa sessão, pois sabia que no momento em que eu começasse, essas coisas ficariam fora da minha mente.
— Foram ótimos. De verdade, eu sinto que estou cada vez melhor. Tenho escrito bastante nessa última semana também. Eu me senti um pouco confuso há alguns dias, acho que escrever me fez conseguir tirar o que tinha no meu peito e eu não conseguia identificar.
— A escrita tem esse poder fantástico com a gente. – Dei um pequeno sorriso e prossegui. – Mas o que tem te deixado confuso, ? – questionei-o, olhando para o meu próprio caderno e esperando a sua resposta para caso fosse necessário anotar alguma coisa.
Ele não respondeu de imediato, por isso acabei erguendo o meu olhar e o encarando. passava uma mão na outra e olhava para mim, percebi quando seu pomo subiu e desceu por sua garganta e ele tossiu um pouco antes de falar.
— Acho que ainda é cedo para falar sobre isso – desviou do assunto e eu arqueei a sobrancelha, sem compreender.
Será que realmente havia chance dele ter voltado com a Vanessa? Seria possível que estivesse constrangido em me contar depois de todo o nosso processo das sessões?
— Você sabe que, como sua psicóloga, eu estou aqui para te ouvir e não te julgar, não é? Seja o que for, você pode saber que tem liberdade para me contar, sem constrangimentos – tentei deixar claro para que ele soubesse que eu estaria ali para ajudá-lo independente de qualquer coisa. Eu estava pronta para ouvir, ainda que pudesse pisar no meu coração. precisava confiar que eu estava ali do lado dele para qualquer coisa que precisasse desabafar.
Olhei para ele, mas seu semblante agora estava mais sério e parecia um pouco preocupado. Ele balançou a cabeça e elevou o canto da boca levemente, só ao ponto de desfazer o semblante que ele carregava.
— Não se preocupe, . Você vai saber – respondeu com confiança e eu preferi não insistir, já que ele não queria me contar. Talvez durante a sessão eu pudesse contornar novamente o assunto ou mesmo ele criasse coragem para me dizer do seu possível retorno com a ex-namorada.
— Tudo bem. Então me fale sobre a sua rotina, fez o que te sugeri?
deixou os ombros caírem e vi um leve suspiro sair da sua boca com a mudança de assunto, abriu um sorriso e começou a contar de alguns velhos hábitos que havia retomado, como suas corridas matinais na praia, e disse que no final de semana tinha saído com alguns velhos amigos novamente.
— Eu entrei na academia também. – Sorriu e ergueu o braço em um gracejo para mostrar o muque.
— Uau, quanta evolução! – Acabei rindo com ele.
Ele balançou a mão, fazendo descaso, e arqueou levemente o lábio.
— Na verdade, não foi nem para ficar bombado e nem nada disso. Na época que eu fazia a minha graduação, eu fiquei uma pilha, o médico me indicou praticar exercícios para desestressar, por isso comecei a caminhar e entrei na academia na época. Foi muito bom para mim! Nos últimos dois anos eu fui desanimando até parar e entocar em casa, então agora eu resolvi voltar.
— É verdade, exercícios produz endorfina, que gera a sensação de bem-estar, ajuda o controle de estresse, ansiedade e até no combate à depressão. É muito bom mesmo. Fez bem em voltar, além disso, vai ser mais uma coisa para te tirar de casa e evitar que você se feche no seu ambiente novamente.
— Sim, tinha até esquecido de como eu gostava. Você deveria fazer também.
— Tá achando que eu tô precisando, é? – Levantei uma sobrancelha, desafiando-o a responder essa pergunta.
— Óbvio que não, você é linda do jeito que é – respondeu despreocupado, não dando nem tempo de eu digerir a sua resposta. — Eu tô dizendo isso por causa da sua neura com os estudos. Ia te fazer bem.
— Eu odeio academia, .
— Ah, no início é chato mesmo, mas quando a gente vai com alguém ajuda, porque um anima o outro, você deveria ir comigo – sugeriu e eu acho que devo ter arregalado os olhos porque ele logo completou. — Ou com o Denis, do jeito que aquele ali gosta de ser o bam, bam, bam conquistador, ele deve fazer.
Eu ignorei propositalmente a sugestão dele. Até parece, e eu juntos malhando, parecendo um casal. Não mesmo. O que a gente precisava era de distância e não mais motivos para eu me apaixonar. Caso contrário, o único músculo que eu malharia seria o meu coração.
— Pior que não. Denis é muito preguiçoso para isso. – Dei de ombros. — Retornando ao assunto do momento, que deveria ser você – apontei minha caneta para ele –, estou muito feliz com o seu rendimento nessa semana. Mais alguma coisa de diferente que você queira compartilhar? – fiz a insinuação novamente, esperando que ele finalmente me contasse.
Eu já estava blindada depois das dicas que ele havia dito, esperando o pior. Mas, para a minha alegria, pelo menos estava bem, ao menos, aparentemente bem.
— Na verdade, tem sim. Tem algo que eu queria dizer desde a hora que eu cheguei. Não sei como você vai ver isso, porque não havia me dado nenhuma instrução sobre uma situação dessa, mas eu segui o meu coração – falou, sério, cruzando as mãos por sobre as pernas e inclinando a sua coluna um pouco para frente.
Apenas balancei um pouco a cabeça, permitindo que ele pudesse prosseguir.
— Eu me encontrei com a Vanessa – soltou e me encarou, aguardando a minha reação.
Eu esperava que não tivesse transparecido nada no meu rosto, pois o meu coração nesse momento pesava como um chumbo. Eu sabia, sabia, sabia… Mas só ouvindo da própria boca dele para aquelas palavrinhas pequenas terem tanto efeito sobre mim.
— C-como foi? – gaguejei um pouco, mas depois consegui firmar a voz.
— Estranho, difícil, mas preciso… – respondeu vagamente, mas eu sabia que ele não ficaria por aí. — A gente meio que se esbarrou na rua, foi uma baita de uma coincidência, mas uma coincidência boa sabe, porque eu estava pensando nela naquele dia, eu sabia que eu precisava encontrá-la de qualquer maneira.
Se eu tinha alguma dúvida ou negava para mim mesma que eu possuía ao menos um mísero sentimento por , agora eu tinha certeza. Por que de outro modo, não tinha motivo do meu coração doer tanto ouvindo aquilo, tinha?
— E por que você precisava encontrá-la? – Era uma pergunta simples e que eu deveria fazer para o processo, mas, com certeza, eu não queria ouvir.
Não queria ser obrigada a escutar falando que ainda a amava, que agora que já estava melhor que poderiam ter uma chance juntos. No entanto, eu precisava fazer isso e ainda fazer uma cara linda e plena como se nada daquilo me afetasse.
Nas últimas sessões, eu achei mesmo que havia ficado claro que os sentimentos de por ela não eram esses, mas ao que parecia, eu estava errada, ou ele estava confuso. Contudo, foi só quando ele finalmente respondeu a minha pergunta, que a ficha caiu e eu entendi o que realmente havia acontecido.
— Eu sabia que tinha que dar um fim para nós – falou, tranquilo e eu fiquei levemente chocada.
Aquela pequena frase mudava tudo.
Então não queria voltar?
Como assim um fim?
Perguntas rondavam a minha cabeça e eu queria saber a resposta para todas elas.
— Como?
— Sabe, depois de tudo que eu passei por esses dias, tudo que compreendi e pude ver, nada me tirava da cabeça que eu precisava vê-la de novo, ter certeza que não estava louco ao perceber que não tinha e não queria mais nada entre nós. Entenda, , eu cheguei aqui achando que não teria vida sem Vanessa, e agora, é como se ela fosse apenas uma lembrança boa, uma pessoa importante da minha vida. É estranho para mim essa mudança, eu por vezes pensei se eu estava enganado, se aquilo que estou sentindo agora… – Engoliu em seco, olhou para mim por baixo dos cílios e abaixou a cabeça rapidamente. — Digo, se tudo o que está acontecendo e essas mudanças são apenas coisas disfarçadas. Eu queria ter certeza que estava bem. Além disso… Poxa! Nós namoramos por sete anos, eu acho que a gente devia isso a nossa história. Até pela amizade que nós construímos.
Ouvi tudo de boca aberta, não esperando essa atitude dele. Não porque eu não achava maduro para isso, apenas não imaginava que ele daria esse passo por conta própria. Seria algo que eu até indicaria para ele fazer futuramente, quando ele se sentisse pronto, mas, pelo visto, o meu paciente já sentia que o momento deveria acontecer.
— Me conte como foi.
— Eu estava na rua quando me encontrei com ela, de início ela não quis me ouvir, mas acabei convencendo-a. Foi bom, ela foi lá em casa, a gente conversou. Eu me abri, pedi perdão, fui bem sincero. Sei que errei muito e quis mostrar que estava consciente disso. Ela também falou o que ela sentiu na época e foi bem esclarecedor, para ser sincero. Foi um peso a menos, eu me culpei muito por achar que tinha estragado parte da vida da Vanessa, mas no final das contas, acho que percebemos que ambos erramos no processo. Foi como fechar mais uma etapa da minha vida.
Provavelmente era por isso que havia chegado aqui com um aspecto tão sereno. Eu me enganei em minhas suposições, apenas estava liberto, feliz sem a carga que ele carregava, sentindo-se disposto para prosseguir com a sua vida.
, eu não sei como dizer o quanto eu estou orgulhosa por isso. Como você se sente agora que conversaram?
— Bem melhor, antes achava que não ia conseguir lidar, que a gente poderia sair mais brigado do que antes, mas acho que o carinho que ficou pelos bons momentos foi maior. Devíamos ter feito diferente, eu tinha que ter lidado com a minha dor e enxergado como tudo estava ruim e Vanessa deveria ter conversado antes comigo sobre o que estava acontecendo. Ambos erramos, mas nós dois também sabemos que o nosso relacionamento tinha acabado bem antes que isso, e foi natural, a gente não funcionava mais junto como um casal. Ter empurrado com a barriga foi péssimo e por pouco a gente poderia ter destruído o que restou da nossa amizade.
— E agora, o que você sente em relação a vocês?
— Seria estranho se eu dissesse que sempre vou carregar a Vanessa no meu coração. Ou sempre vou ter um amor por ela?
Encarei-o, esperando que ele continuasse a sua explicação.
— Não quero que pense de forma romântica, . Eu não tenho afeto desse tipo por ela mais, nem mesmo desejo. Não quero que pense isso de mim.
Franzi minha testa e o meu olhar para ele.
— Você não precisa se preocupar com o que eu vou pensar, . Eu estou aqui para te ouvir – retruquei, tentando mostrar a ele que era imparcial ali.
recostou-se para trás, arqueando um pouco as sobrancelhas e engolindo em seco.
— Mesmo assim, eu quero que tenha certeza disso. – Encarou-me, batendo seus cílios. — É apenas um carinho pela amizade que sempre tivemos, mas nada além disso. O nosso tempo passou há eras, ainda que talvez ela possa se fazer presente em minha vida em algum momento, não será dessa forma mais. É como… Como se eu não conseguisse olhar para ela com esse tipo de interesse, mesmo que eu me esforçasse. E isso é engraçado porque, antes eu vim aqui justamente porque eu queria superá-la, mas no final das contas, quando eu entendi o que se passava dentro de mim, as coisas apenas foram ficando mais fáceis e descomplicadas.
— Quando começamos a entender mais de nós mesmos, as coisas se desenrolam. Creio que nós somos os maiores atadores de nós das nossas próprias vidas. – Arqueei um pouco o meu lábio em um sorriso e o respondi.
— Eu fiquei pensando se isso que eu sinto hoje por ela é algum resquício. É tão comum ver ex-namorados ou casados se odiando. Parece que quando acaba é quase “de lei” ter que falar mal do outro. Então é estranho para eu ir contra isso e não sentir nada… Eu deveria agir diferente? Porque eu não me sinto errado, . Eu me sinto em paz e eu juro para você que não tem nada romântico sobre isso.
Segurei a ponta de um riso pela forma que tentava me mostrar que não queria voltar para a Vanessa. Se não estivéssemos em uma sessão, eu juraria que ele quer provar algum ponto…
– chamei a sua atenção com delicadeza. — Há diversas formas de amar. O amor é um sentimento igual, mas, ao mesmo tempo, interpretado e expresso das mais variadas maneiras. Por isso não há relacionamentos iguais e que hoje dizemos que amamos alguém, mas amanhã, quando gostamos de outro, achamos que o amamos mais que o anterior. Razão, tempo e momento. Além disso, o amor não se resume apenas a sua forma romântica como casal. Há amores tão intensos quanto esses. Amor de família, amor de amigo… Cada um deles é importante e faz parte da nossa essência. Você pode não namorar alguém e ainda assim amá-la, e da mesma forma esse amor pode não incluir a paixão, desejo ou conexão sexual, apenas a forma pura e linda de amar ao próximo. – Abri um sorriso para ele, fazendo-o entender que estava tudo bem e que ele não precisava se martirizar pelo que sentia.
parecia atento as minhas palavras, analisando cada movimento que eu fazia e tentando compreender o que se passava.
— Carinho, admiração e afeto também fazem parte da nossa forma de amar. A sua amizade com a Vanessa e o que vocês nutriram juntos não precisa ser jogado fora apenas porque não querem mais manter um relacionamento. Não é errado amar, . Errado é odiar, cultivar inimizades e destilar a raiva sobre as pessoas. Se todas as pessoas colocassem o amor antes dos nossos pensamentos egoístas, talvez teríamos menos batalhas no mundo.
Podia ser estranho aos olhos dos outros, mas era verdade. Eu não me sentia incomodada com o que disse sentir pela Vanessa, porque eu finalmente entendia o que ele falava.
Jamais ficaria satisfeita se me sentisse bem com tendo uma separação cheia de rixas e raivas, apenas para satisfazer um ego e aplacar um ciúme. Que sinal melhor eu teria da superação dele, se não fosse justamente ele ter um coração livre de qualquer sentimento negativo que o seu passado deixou?
Eu sei que muitas pessoas têm dificuldade de lidar com esse tipo de coisa. Infelizmente há uma cultura doentia que dita que precisamos falar mal do nosso parceiro ou parceira quando se acaba a relação. Uma necessidade de aplacar uma raiva ou torcer para que o seu novo amor não tenha uma relação amigável com nenhum(a) ex, por puro medo de um possível revival.
Mas, oi?
Que tipo de amor é esse onde não se há confiança?
Se eu não puder confiar que o meu futuro namorado, seja quem for, possa estar comigo porque gosta realmente de mim, que futuro eu almejo ou posso esperar?
— Fico aliviado em ouvir isso. – elevou o canto da boca num pequeno sorriso. — Não sei o que vai ser daqui para frente. Talvez lá no futuro Vanessa e eu possamos voltar a ser amigos, talvez não. Não vou forçar nada, mas também não vou perder meu tempo procurando coisas para odiá-la. Eu não preciso disso, pelo menos não mais. Talvez se eu estivesse tentando esquecê-la como antes estava… Mas eu não estou necessitado de usar essa artimanha, eu me sinto livre e em paz com esse término, por mais surpreendente que possa ser.
— Cada pessoa que passa na nossa vida deixa uma marca. Algumas boas e outras nem tanto. Não precisamos perder tempo cultivando as ruins. – Inclinei a cabeça levemente e abri um sorriso para ele, que foi correspondido.
— Eu tenho a sensação de que estou pronto, sabe… Não sei se consigo explicar, mas é como se tudo estivesse se encaixando agora.
— Você evoluiu muito, . Não é à toa que não ficarei com o coração pesado quando acabar as nossas sessões. A próxima já é a última – lembrei-o.
arregalou os olhos levemente, como se só tivesse percebido isso agora.
— Mas já?! – exclamou.
— Não se preocupe, tenho certeza que está bem melhor do que quando chegou, . Você já até fez o que eu te recomendaria no final da próxima sessão. Além disso, se precisar de mim para qualquer coisa, você pode me procurar, estarei sempre a ouvidos. Mas por hoje é só. Continue fazendo as recomendações, saindo, buscando os amigos e se precisar escreva no caderninho os desabafos. Eu entro em contato para marcar a nossa última sessão, tudo bem?
ficou um tempo em silêncio, mordeu a bochecha e rastejou a sua bunda para mais perto de mim no sofá, esticando a sua mão vagarosamente até que tocasse a minha. Meu coração deu um salto e, por instinto, tentei recolher minha mão, porém fez uma pressão maior sobre ela.
— Quando tudo acabar, será que a gente pode… Conversar? – perguntou, receoso, e eu tive medo do que ele queria com isso.
— Claro que podemos, eu acabei de dizer que se precisar de mim é só entrar em contato. — respondi e dei um sorriso nervoso, sentindo a pele que ele tocava pinicar.
— Você não está entendendo, . – Franziu a testa, encurvando a sua sobrancelha. — Eu digo… Conversar sobre assuntos que a gente não pode conversar enquanto essas sessões continuarem.
– repreendi-o, puxando a minha mão antes que ele tivesse chance de impedir-me novamente. — Eu sempre serei a sua psicóloga, portanto, os únicos assuntos tratados entre a gente devem ser esses – enfatizei, séria, fazendo com que ele me olhasse um pouco chocado com a minha rispidez.
Não queria ser grossa, mas eu não queria dar liberdade para que ele achasse que pudéssemos ter algum tipo de envolvimento. Isso não podia acontecer, nem mesmo depois. Eu não poderia permitir que transferisse os sentimentos para mim ou me usasse como uma válvula de escape como Vanessa, nem mesmo poderia alimentar nenhum indício de nova dependência dele.
ficou me encarando por um tempo sem dizer nada, travamos esse olhar mudo entre nós, até que ele se rendeu e deu um suspiro profundo e passou a mão por seu rosto, até levar aos seus cabelos e jogá-los para trás, desconcertado.
— Tudo bem – falou e logo se colocou de pé. — Já que terminamos por aqui, eu estou indo então, até a próxima sessão. – Caminhou até a porta sem olhar para trás e saiu antes que aquele assunto pudesse se estender.
Dessa vez se foi sem os seus constantes cílios batendo, ou mesmo os pequenos sorrisos que me dava ao despedir, ou então o beijo na bochecha que antes me desconcertava, mas que agora havia me deixado mal acostumada. A única coisa que deixou foi uma rachadura do meu coração, porque se ele tinha se chateado com o que eu tinha dito, poderia ter certeza, que havia sido muito mais difícil pra mim o fazer.


Capítulo 21

Eu não sei o que havia conversado com Denis, mas agora o meu amigo estava empenhado a não me deixar quieta em casa no final de semana.
Desde segunda que ele já havia me avisado que sábado iríamos a um aniversário de uma “amiga” dele. Tentei contestar, dizer que tinha coisas a fazer e tudo mais, porém não adiantou. Ele apenas me respondeu que já estava anunciando com antecedência justamente para que eu pudesse me organizar e nem ousasse fugir dele. Por isso, cá estava eu em casa, tentando decidir com que roupa deveria ir, sendo que preferia estar calçada com minhas pantufas e meu pijaminha rasgado, porém, confortável.
Por ironia do destino, essa semana eu também tinha encontrado duas vezes pela faculdade, trocamos poucas palavras e como um dia eu estava com o Denis e outro com a Hellen, deixei que eles guiassem a conversa, a fim de evitar falar diretamente com ele.
Havia aquela situação estranha pairando sobre a gente depois da nossa última consulta. E, por mais que o meu coração batesse mais forte e a minha vontade era ficar perto dele, eu sabia que deveria evitá-lo, pois não confiava em mim mesma o suficiente para não dar bandeira.
A única coisa que ele falou comigo diretamente foi perguntar se eu estava pegando leve com minhas “coisas”. Eu sabia o que isso significava e ele também. Como fui monossilábica na resposta, acredito que ele não tenha acreditado em mim. Depois desse dia, Denis não parava de falar pra gente ver filme ou ir lanchar, até mesmo inventava mil e uma programações pra a gente, além de falar de uma forma nada sutil que eu precisava estudar e me preocupar menos.
Era por isso que eu achava que o havia comentando algo com meu amigo, talvez achando que Denis ia ter mais sucesso do que ele, já que eu havia restringindo a nossa “amizade” para algo puro e único profissional.
Mas, por outro lado, eu sabia que deveria cuidar mais de mim, sabia que precisava preocupar comigo mesma e aliviar a minha mente, antes que eu adoecesse de verdade. Esse foi um dos motivos que eu finalmente havia topado ir com Denis nessa maldita festa. Eu precisava dar uma volta, sair da minha zona de aconchego e dissipar a minha cabeça.
Não adiantava eu apenas dar conselhos aos outros, eu precisava seguir aquilo que eu mesma dizia. Sendo assim, dando um voto de confiança, estava ali em casa me ajeitando, até a hora que Denis viesse para me buscar.
Não tardou muito e ele chegou. Como eu havia deixado a porta da minha casa destrancada, ele entrou e foi direto no meu quarto, me observando enquanto eu terminava de passar o batom.
— Uh-lá-lá, hein! Se não fosse minha amiga, eu dava uns pegas! – Denis recostou-se na porta e falou sorrindo, o que respondi com uma careta.
— Nem se seus cachos fossem os últimos da Terra ou mesmo nos seus lindos sonhos.
— Ah, , você sabe que os sonhos você não pode controlar, né? Você nem imagina cada safadeza que a gente faz enquanto eu estou dormindo.
— Eca, Denis! – ralhei, pegando o travesseiro em cima da minha cama e jogando na direção dele, mas ele desviou e deu uma gargalhada.
Denis balançou a cabeça, mas sem bagunçar os seus cachinhos – que hoje estavam bem enroladinhos –, em seguida sentou-se na minha cama.
— Sério, você tá uma gata! Vou ter que ficar até de olho em você.
— Não preciso de babá!
— Tudo bem, eu não queria mesmo. Estava só fazendo o meu dever de amigo. – Rolou os olhos e abriu um sorriso. — Tenho certeza que vou aproveitar muito mais conhecendo algumas meninas novas. – Seus olhos brilharam de malícia e eu sabia muito bem o que ele queria dizer.
— Ótimo. Pelo menos a Hellen deve estar lá, então não fico sozinha – comentei e o Denis bufou.
— Relaxa, você não vai ficar sozinha, . – Passou o braço pelo meu ombro, enquanto eu pegava as chaves e minha bolsa para sairmos.
A festa era numa república não muito longe dali, no entanto, pelo que Denis havia me garantido, não era nada estrondoso. Diz ele que seria uma vibe mais tranquila, então, na confiança da amizade, aceitei.
Ao chegar lá, o local não estava tão abarrotado de gente. Algumas pessoas conversavam e bebiam pelos cantos, outras jogavam na mesa de sinuca da sala e algumas curtiam a música ambiente. Não demorou muito para meus olhos encontrarem Hellen e eu suspirar aliviada por não ter que ficar igual uma barata perdida, já que não precisei nem piscar e Denis já havia sumido pendurado em alguma garota.
— Ei, ! – Minha amiga jogou os braços sobre mim com o sorriso em cada ponta da orelha.
— Tá bêbada? – perguntei, empurrando ela pelos ombros e analisando o seu rosto e sua euforia.
— Puff... Claro que não! Eu sou naturalmente alegre. – Rolou os olhos, gargalhando, tomou o copo da minha mão e bebeu.
Eu havia pegado logo na entrada, havia uma mesa e uma garota na recepção que serviam as bebidas com e sem álcool.
— Ei, isso é meu! – rebati.
— Era! – Sorriu e deu um passo para trás, gargalhando.
Eu disse que ela era um aprendiz do Denis, eu disse.
— E aí, como você está? – Seu sorriso se desfez um pouco e sua testa se enrugou ao me analisar.
Eu sentia meus amigos às vezes pisando em ovos ou mesmo tentando não empurrar a situação na minha cara, no entanto, não tinha uma forma fácil de falar sobre isso, por isso eu estava tentando e me esforçando ao máximo.
— Bem, na medida do possível. Estou tentando manter minha mente ocupada com coisas mais leves e me pressionar menos.
— Estou feliz que tenha vindo. – O sorriso voltou para o seu rosto e ela colocou a mão no meu ombro.
— Bom… Não vou te dizer que estou exatamente feliz de estar aqui, mas também não é ruim.
— Já é um começo – endossou, enquanto pegava o celular e digitava rapidamente alguma coisa.
— O que tanto você faz que não desgruda desse troço?
Hellen me olhou pelo canto do olho e segurou um sorrisinho, que me deixou claro que ela estava aprontando alguma coisa.
— É um carinha que eu ando conversando – respondeu, tímida.
Coloquei minhas mãos na cintura e virei-me para ela.
— Que negócio é esse que eu não tô sabendo? – ralhei de brincadeira.
Ela olhou para mim, deixando seu sorriso murchar um pouco.
— Desculpa, mas esses dias foram tão loucos, você não estava muito bem e isso acabou ficando em segundo plano.
Fiquei um pouco triste por ser esse tipo de amiga. A pessoa que tá passando por um problema e não está disponível para ser o ombro parceiro quando seus amigos precisavam, mas eu entendia o lado dela, Hellen estava preocupada comigo, e talvez eu fizesse o mesmo em seu lugar.
— Mas agora já estou melhor, então pode tratar de me contar – retruquei e vi a empolgação correr nos olhos dela novamente.
Migaaaaaaa – cantarolou. — Eu acho que eu tô apaixonada. Ele é um amor de pessoa, lindo, educado…
— E quem é essa maravilha toda que eu não conheço?
— Aí que tá. Eu também não. – Mordeu a bochecha e colocou o peso do seu corpo em uma só perna.
— Como assim, Hels?
— A gente não se conheceu ainda, por enquanto só nos falamos pelo celular. Mas já estamos vendo de marcar para nos encontrar.
Meus olhos se estreitaram e eu a encarei. Hellen parecia estar encantada com esse garoto, mas eu era conhecida por ter um bom radar e não sabia o motivo ainda, mas isso não me cheirava muito bem.
— Ih, cuidado, hein. Pode ser furada. – Não queria ser a amiga que jogava o balde de água fria na outra, mas ter o pé no chão nunca é demais, né?
— Eita, , não me agoura não! Pelo que já sei, ele nem mora tão longe lá de casa. Relaxa! Enquanto isso, a gente vai se falando e curtindo, o negócio é aproveitar as oportunidades da vida.
— Então tá, se você diz… Só toma cuidado – respondi, mas com uma sensação esquisita nessa coisa toda.
— Ok. – Balançou a mão, tirando por menos. — Falando em aproveitar as coisas boas da vida… Olha quem tá vindo ali. – Apontou disfarçadamente para o lado e virei o rosto para acompanhar a direção que ela mostrava.
Meu coração deu um pequeno solavanco ao notá-lo. Ele conversava com mais dois rapazes e sorria abertamente para eles como se fossem velhos conhecidos. Logo em seguida duas meninas chegaram até eles também sorrindo, uma delas pousando a mão no ombro de . Ele olhou-a, acenou a cabeça em cumprimento e depois voltou o seu olhar para o seu amigo, que continuava contando alguma coisa. Uma gargalhada saiu da sua boca e eu estremeci. Uma parte de mim ficava alegre por vê-lo socializando daquele jeito, mas alguma coisa me causava também um grande aperto, talvez fosse o sinal que ele estava seguindo a sua vida e logo sairia da minha.
Ele ainda conversava com o grupo quando virou seu rosto em minha direção e cravou seus olhos nos meus. Foi difícil descrever, mas, naquele momento, era como se ele só conseguisse me enxergar, como se eu fosse única.
Primeiro ele franziu o cenho, confuso, mas depois mordeu a bochecha e a ponta de um sorriso se fez no seu rosto. Ele inclinou-se para os dois amigos e falou alguma coisa antes de começar a caminhar em minha direção e deixá-los para trás. Sua passagem era lenta e cada passo mais perto, meu coração parecia parar.
— Olha quem está aqui! – iniciei assim que ele parou em minha frente, em uma tentativa de quebrar o gelo ou qualquer coisa constrangedora depois do nosso último encontro.
— Ei – cumprimentou-me um pouco tímido, depois olhou para Hellen e sorriu para cumprimentá-la também.
— Ei, – Hellen falou empolgada e jogou-se sobre ele, abraçando-o da mesma forma que fez comigo.
Rolei os olhos com a sua animação, mas concentrei-me no rapaz a minha frente, sem saber como agir ali. Tinha uma nuvem de coisas não ditas entre nós, eu sabia que havia ficado chateado com o que eu tinha dito para ele, mas eu não poderia mudar de opinião. O que aconteceu, aconteceu, mas não queria dizer que voltaria a se repetir.
Encontrar novamente em uma situação fora do padrão não estava nos planos, mas agora ele estava ali, o que eu poderia fazer?
Ouvi Hellen pigarrear, roubando a nossa atenção. Ela alternou seu olhar para mim e , eu nem havia percebido que estávamos nos encarando e ignorando-a completamente.
— Err, então... – ela iniciou, erguendo o celular que estava na sua mão e o balançando. — Eu preciso fazer uma ligação urgente, caso de vida ou morte. Você poderia fazer companhia para a enquanto eu não volto, ? Não queria deixar ela sozinha. Obrigada – falou apressadamente e saiu, antes mesmo que ele pudesse responder.
Olhei o caminho que ela havia feito com os olhos um pouco arregalados e constrangida com a forma nada sutil dela de deixar-nos sozinhos. Voltei a encarar , que não tinha desviado o seu olhar de mim, nem mesmo para reparar no que Hellen havia feito.
— Você não precisa ficar de babá. Pode me deixar aqui e ir conversar com seus amigos. – falei, tentando aliviar a situação que a Hellen deixou.
Ele olhou para trás, analisando os dois caras e as garotas que ainda estavam lá, seu lábio se arqueou um pouco em um pequeno sorriso e voltou a olhar para mim.
— Eu vou ficar aqui mesmo – respondeu e sorriu, como se nem lembrasse que tinha ido embora chateado da última vez que me viu.
Ou tinha perda de memória ou um coração muito tranquilo, não guardando rancor.
De qualquer forma, eu me lembrava. E confesso que tinha medo.
— E então, o que te trouxe aqui? Achei que não gostasse de festas – resolvi iniciar uma conversa aleatória, a fim de nos tirar de qualquer possível situação embaraçosa.
— Não é minha praia, mas meus amigos me garantiram que seria mais uma social do que um rock, então aqui estou. Além disso, eu estou com dois anos de dívidas com eles e realmente com saudade de sair um pouco – revelou, andando até um local mais recuado, onde tinha uma bancada e ele poderia sentar no banquinho. Acompanhei-o, encostando-me na mesinha e ficando ao seu lado. — E você?
— Denis me trouxe. De uns tempos para cá ele parece um chiclete me chamando para sair ou fazer alguma coisa a todo momento. Você não teria nada a ver com isso, teria, ? – Cruzei os braços e ele entortou a boca em um sorriso.
— Não sei, teria? – Arqueou uma sobrancelha, enquanto servia um refrigerante em copo plástico que estava ali em cima, levando-o até a boca em seguida.
— Não sei se eu gosto de vocês juntos. – Fiz um leve bico, franzindo a minha testa.
— Você tem medo de como as nossas mentes poderosas podem trabalhar quando estão unidas – gracejou e deu uma risada, o som iluminando seus olhos.
— Oh, machos poderosos, desculpe-me pela minha ignorância – zombei e rolei os olhos, fazendo-o rir ainda mais. — É sério, você disse algo a ele?
— Bom… Se eu não posso ajudar por mim mesmo, eu queria garantir que alguém o fizesse. – Piscou os cílios umas três vezes, como fazia em determinadas situações e mordeu a bochecha interna.
… – iniciei, mas nem mesmo eu sabia o que dizer.
— Eu só quero o seu bem, assim como você quis o meu. – Tocou a sua mão na minha, segurando-a e erguendo-a levemente.
Eu senti a eletricidade percorrer contra a nossa pele, o calor desse leve gesto me consumia. Um simples segurar de mão nunca seria apenas isso quando se tratava de e eu.
Como algo assim conseguia mexer tanto comigo?
— Você não precisa se preocupar comigo, – retruquei, puxando a minha mão, mesmo que fosse uma tortura fazer isso. — Concentre-se em você, em sua recuperação. Você já tem seus próprios sentimentos para lidar, não quero ser mais um estorvo.
— É impossível não me preocupar com as pessoas que eu gosto – interpelou rapidamente, franzindo o cenho.
Minhas pernas tremeram, ainda que ele tivesse dito aquilo de forma bem genérica. Mas a intensidade que ele passava em seu olhar acabava fazendo minha mente pensar outras coisas.
Não queria me iludir, nem mesmo empurrar ainda mais essa situação. Eu não podia mais me enganar dizendo que não gostava de , mas eu não queria me tornar também a garota de estepe. Não queria ser a pessoa que ele utilizaria para desfocar do que estava vivendo. estava evoluindo muito bem e eu já havia errado muito deixando o nosso “relacionamento” sair do âmbito profissional, por mais que não tivesse planejado nada disso.
— Ainda assim, eu sou a pessoa que está te acompanhando como psicóloga em um trabalho, . Somente isso.
Era difícil botar isso para fora, mas eu precisava afastar e deixar as coisas em seu devido lugar, não podia dar esperanças para algo que não poderia acontecer.
– ele colocou o polegar e o indicador no vinco entre os olhos, como se estivesse pensando pacientemente nas palavras –, você sabe que a gente já ultrapassou essa linha invisível que você colocou há muito tempo – completou.
Abri a boca aturdida e fechei-a, não esperando aquela resposta dele.
— Então esse é mais um motivo para a gente recolocar as coisas no lugar – endossei e ele suspirou.
… Eu... Eu não entendo. A minha cabeça é completamente diferente da sua, eu sou um cara prático. Exatas, esqueceu? Se duas pessoas se gostam, por que elas não podem simplesmente ficar juntas? Eu compreendo a parte ética que você diz e eu vou respeitar isso, prometo. Nós só temos mais uma sessão, está quase no fim. Se quiser eu converso com você somente nela e nada mais, desde que você garanta que vai pelo menos me dar a chance de ser ouvido quando tudo isso acabar – foi falando frase por frase com os olhos cheios de súplica, aproximando-se de mim lentamente.
Meu coração batia forte e eu só conseguia me concentrar no trecho “se duas pessoas se gostam”.
Não, ele não podia dizer isso.
Ele não podia fazer isso comigo.
, não...
— Você está confuso… – Foi a única coisa que eu consegui dizer. Minha mente estava a mil e o meu coração afundou, despencando lentamente e se fragmentando no processo.
Eu tinha me tornado aquela garota...
balançou a cabeça e arqueou as sobrancelhas.
— Não, eu não estou confuso, não mais – respondeu, reticente.
— Sim, você está.
— Eu acho que eu sei o que se passa comigo, . E eu estou te dizendo que eu estou bem certo das ideias – contra-atacou com um tom mais impaciente.
— Você também achava estar certo quando bateu no meu apartamento na primeira vez, e ainda assim… – comecei a falar sem frear a minha língua nervosa, mas observei seus olhos se arregalarem e o seu semblante se magoar com a declaração, só então me fazendo perceber o que tinha falado.
— Ouch! – Franziu o cenho e deu um passo para trás.
, desculpa… Eu não devia ter falado isso. Eu estou tensa com essa situação e não sou muito conhecida por ter freio na boca quando estou fora das minhas consultas. Me perdoa – tentei consertar a merda, se é que tinha jeito.
— Não foi assim que eu planejei na minha cabeça quando eu me declarava para a menina que eu gosto.
Seu tom de voz era carregado de amargura e se eu não estivesse tão preocupada pelo o que tinha feito ou mesmo com a possibilidade de ser o estepe de , talvez eu tivesse ficado com algum lado do meu coração exultante com as palavras que eu tinha ouvido.
Respirei fundo, sabendo que tinha o ferido e o deixado nervoso. Era por isso que envolvimento com pacientes não era algo ético a ser feito, por isso deveria ser evitado. Se cada um tivesse mantido a sua posição, se fosse apenas um paciente, eu não estaria nessa situação, ele não estaria correndo o risco de estar me usando para desviar novamente do seu problema e eu não seria a possível pessoa responsável em partir ele em dois novamente e proporcionar uma possível recaída.
— Você está enganado, , você não gosta de mim. Você pensa que sim, mas isso é apenas um refúgio, uma forma de sair da realidade novamente – respondi e ele fechou o semblante no mesmo momento.
Pela primeira vez eu vi a paciência dele se esvair. sempre era a pessoa que emanava tranquilidade, mas as minhas palavras foram o gatilho máximo que ele poderia suportar.
Ele pegou na minha mão e me arrastou pelo corredor da casa até um local vazio e um pouco escuro, escorando-me na parede e colocando seu corpo na minha frente, seu rosto bem próximo do meu.
Eu sentia o ar pesado sair das suas narinas, mas, ao mesmo tempo, sentia o toque forte, porém carinhoso, dele na minha cintura. Seus dedos deslizando por sobre a blusa, ora contidos, ora movimentando-se de forma lenta e torturante, deixando um rastro de calor.
— Você acha que eu queria? – perguntou-me com a voz grave e rouca, um tom abaixo do normal. — Você acha que foi uma opção para eu gostar de você? Acha mesmo que o cara que apareceu bêbado na sua casa por causa da ex queria se desapegar fácil assim? Eu lutei, , eu não queria abandonar o sentimento que eu achava que sentia pela Vanessa. Mas sabe qual é a maior ironia? Que no meio de tanta ilusão, você foi a única coisa real na minha vida. Eu não tive como conter, pois quando percebi, você já estava impregnada sob cada maldita célula do meu corpo. E eu não sei como isso foi acontecer, só sei que eu não vou deixar passar, e se eu tiver que esperar até a última sessão para poder, finalmente, te beijar de novo, então, dane-se, eu vou esperar.
Fiquei sem ar, não sabia o que dizer depois de ouvir tudo aquilo. Eu nunca tinha ouvido falar daquela forma, era como se ele estivesse guardando tudo isso há tempos até finalmente transbordar e despejar sobre mim.
Minhas pernas tremiam e por pouco eu achei que poderia desfalecer. Nossas respirações estavam descompassadas, eu sentia na minha frente segurando-se e nem eu mesma sabia como conseguia não beijá-lo naquele momento. Talvez fosse o susto da declaração ou o medo por estar passando por toda essa situação nova na minha vida.
... – tentei dizer algo, contudo, fui interrompida.
— Por favor, , não diz nada – pediu, diminuindo ainda mais o tom e com um timbre tenso. — Se for para dizer qualquer coisa para me afastar, só... não. Por favor. – Veio mais para perto e encostou a sua testa na minha têmpora e, mesmo não o vendo, eu sabia que ele tinha fechado os olhos. Sua mão esquerda subiu até a minha bochecha e começou a fazer um movimento circular no local, enquanto o meu coração batia tão forte que eu conseguia escutá-lo ao bombear o sangue pelas minhas veias.
Fechei os olhos, também em reflexo, e ficamos ambos parados, imersos numa nuvem complexa de sentimentos que me deixava atordoada, mas de uma forma inexplicável, era muito bom.
puxou-me e passou os braços pelas minhas costas, trazendo-me para o seu peito e me acomodando ali. Demorei um pouco para ceder, mas logo depois me vi erguendo minhas mãos e retribuindo o afeto, percebendo um baixo suspiro vindo dele após o ato.
— Eu realmente gosto de você, – sussurrou no meu ouvido e meus pelos se arrepiaram, fazendo-me engolir em seco.
Respirei fundo e empurrei-o delicadamente pelos ombros, me afastando dele. Olhei o seu rosto e ele transparecia um aspecto muito diferente do que já havia visto. Conhecia o derrotado, triste, feliz, animado e até mesmo nervoso. No entanto, por mais que ele parecesse sério, era muito mais do que isso, carregava uma intensidade e um brilho, uma devoção que me fez sentir como se eu fosse a pessoa mais importante dali. Ele parecia realmente... apaixonado.
Creio que por isso que foi ainda mais difícil para mim fazer aquilo. Porque eu sabia que poderia partir o coração dele. No entanto, também doeria em mim, porque eu tinha plena certeza que gostava do , ainda que eu pudesse duvidar da reciprocidade dele.
Eu sabia que ele esperava algo, qualquer coisa. Mas eu não podia dar o que ele queria no momento, eu não poderia retribuir, eu teria que guardar tudo aquilo que eu sentia. ainda era o meu paciente e além disso, eu tinha outros motivos muito fortes para não ceder.
— Desculpa, . Não podemos.
A boca dele franziu e ele olhou para cima, respirando fundo, enquanto eu ainda tinha a minha mão no seu ombro. Descia-a lentamente, até conseguir me afastar por completo, dando um passo para trás.
Não podia mais encará-lo ou eu não seria forte o suficiente. Virei o rosto e saí praticamente correndo de lá, deixando-o para trás. Somente do lado de fora que fui perceber que as lágrimas fluíam do meu rosto, havia atravessado todo o caminho sem mesmo olhar para os lados ou conversar com alguém, não sabia se estava assim desde que o deixei, eu só queria voltar para casa.
Em todos os depoimentos que havia lido e tudo que já tinha ouvido sobre o amor, nada havia me preparado o suficiente para o coração partido. No final das contas, a teoria era verídica, só quem está passando pelo momento pode dimensionar como dói e como é difícil suportar.
Não importava o quanto a minha mente dissesse que eu havia agido corretamente, não importava quantas vezes eu repetisse para mim mesma que era o certo para nós dois.
Nada faria doer menos, nada me confortaria.
Assim que entrei em casa, sentei, escorando-me na porta e deixando as lágrimas continuarem a fluir. Peguei o meu celular para mandar uma mensagem para o Denis, antes que ele morresse de preocupação pelo meu sumiço da festa, e uma para Hellen.
Desbloqueei a tela e meu coração deu um salto forte ao ver a notificação que havia aparecido no meu whatsapp. O nome de estava ali, mostrando uma única mensagem não lida.
Queria dizer que eu havia sido forte o suficiente para ignorar e bloquear o aparelho novamente, mas não foi o que aconteceu. Eu abri, eu li e eu chorei.
Uma única frase. Três palavras que me aqueceram e me fizeram desmoronar ao mesmo tempo.
“Eu vou esperar”.



Capítulo 22

— Então vamos recapitular… a Hellen te deixou com o , algum tempo depois vocês desaparecem do nada e a Hellen me vem chorando falando que te perdeu de vista. Então ela me deixa louco e a gente sai te procurando em cada cubículo da casa, ao mesmo tempo que procuro o , mas ele está sumido também. Depois disso, mais tarde, eu recebo uma mensagem de AMBOS, dizendo que tinham ido embora da festa. Então a pergunta que eu vou fazer pela quinta vez: O. Que. Aconteceu?
Denis me interrogava, mas minha resposta sempre era a mesma, eu dizia que nada tinha acontecido, apenas tinha sentido vontade de voltar para casa. O problema era que meu amigo não tinha comprado a minha desculpa e estava determinado a arrancar de mim a verdade. Será que minha cara estampava tanto assim que eu estava mentindo?
Mordi meu lábio inferior, sabendo que não poderia mais esconder nada do Pimentinha, e ainda que eu não esperasse os melhores conselhos, talvez ele pudesse pelo menos me acalentar no final com um abraço.
— Para te contar o que aconteceu ontem, eu vou ter que começar do início – resmunguei, apertando minhas têmporas com os dedos e massageando-as.
Eu havia deixado Denis no escuro, sempre me esquivando e evitando o máximo relatar o que tinha acontecido entre e eu. Não era porque eu não confiava nele, mas há certas coisas que a gente sempre prefere guardar no cantinho do coração. Era mais fácil pra mim fingir que nada estava acontecendo enquanto só nos dois sabíamos. Contar para o Denis, seria admitir o trem que estava descarrilando e o meu erro no processo do trabalho.
— Estou esperando. – Denis cruzou os braços e encostou as costas no meu sofá, sua testa estava franzida ele tinha uma expressão séria e impaciente.
Respirei fundo, como se inalar o ar fosse me dar coragem para verbalizar aquelas palavras difíceis. Foquei meus olhos nos dele e uni minhas mãos, esfregando meus dedos um nos outros e sentindo a umidade escorrer na minha pele.
— Não tem aquele dia que eu dei uma crise por causa da professora Marta? - lembrei-o e ele acenou. — Então, naquele dia o me levou para sair e foi quando tudo começou sair fora de ordem, o que me faz lembrar que isso tudo é culpa sua, foi você que armou com ele essa cilada! – Apontei para ele, brava, como se jogar a culpa nele fosse esquivar a minha própria, ledo engano.
Denis rolou os olhos e bufou em meio ao riso, ignorando completamente o meu acesso de raiva.
— Você sabe que a gente fez o que precisava ser feito, chuchu. Se você tivesse ficado em casa, ia continuar uma pilha, e se fosse eu que te levasse para sair, quem ia fazer o seu trabalho? Eu fiz o que tinha que ser feito para ajudar a minha amiga. Mas não me enrola, desembucha logo.
— Ok – suspirei e esperei alguns segundos antes que conseguisse soltar o restante da frase. — Acontece que a gente meio que se beijou – falei num fiapo de voz inaudível.
Denis continuou de braços cruzados olhando para mim e apenas piscou os olhos. Eu não sabia o que aquilo significava, então resolvi perguntar, era melhor ele brigar o que tivesse que brigar do que esperar ele engolir tudo e explodir depois.
— Você ouviu o que eu disse? – questionei-o.
— Sim, tô esperando você terminar para eu descobrir onde tá o problema.
— Denis! Eu disse que eu e o nos beijamos, o problema tá justamente aí! Depois disso as coisas só pioraram – retruquei, endossando bem a merda que tinha acontecido.
– chamou-me calmamente e seu lábio se arqueou –, eu faço muito mais do que isso com a minha paciente. Você queria mesmo que eu ficasse chocado porque você tá dando uns pegas no Pablo?
Dessa vez era a minha vez de rolar os olhos, era claro que o Pimentinha seria a pior pessoa para eu contar os meus problemas. O que eu poderia esperar?
— Denis, querido – iniciei, tentando unir toda a paciência do mundo. — Vamos pensar por um único momento que você não é essa pessoa sem noção que liga para nada no mundo e vamos supor que você será um profissional de respeito, tudo bem? – pedi e Denis gargalhou, inclinando seu corpo para frente no sofá, unindo as suas mãos e apoiando-as sobre as pernas.
— Ok, Srta. , agora eu sou o Sr. Louback, o psicólogo mais consagrado do Rio de Janeiro. Conte-me o seu problema. – Encorpou a voz em um teatro irritante.
Resolvi ignorar a brincadeira e tentar mostrar as coisas pelo meu ângulo e não o pervertido dele.
— O é meu paciente, se a gente se envolve em qualquer sentido romântico ou algo parecido, eu posso impactar diretamente em sua evolução.
— Então não se envolva, só dá uns beijinhos e tchauzinho. Aliás, você já deu, né?! – Arqueou o lábio e eu dei um soco no seu braço.
— Para de fazer graça e presta atenção!
— Eu tô prestando – defendeu-se, resmungando de dor. — Eu sei que você gosta do cara, . Mas é só não demonstrar para ele. Fingi que foi tesão reprimido e bola pra frente. Hajam como se nada tivesse acontecido.
Denis falava como se fosse a coisa mais fácil do mundo. Talvez era para ele, que agia dessa forma todo santo dia, mas para mim, o negócio era bem diferente.
— Aí que tá o problema – exclamei alto, quase dando um pulo no sofá. — Eu tentei fazer isso, um acordo silencioso para tratarmos a situação o mais dentro da ética possível, ainda que essa linha já tenha sido extrapolada, mas o ontem falou que gosta de mim. Que GOSTA de mim! – Repeti para poder enfatizar o problema.
Denis mordeu o lábio e pareceu pensativo pela primeira vez.
— Bem que eu imaginava… – disse, mas parecia falar mais consigo mesmo, e só depois seus olhos voltaram a focar em mim. — E você, o que você quer? Não estou dizendo que devem ter um relacionamento agora, porque por mais que eu não siga as regras e tudo mais, eu entendo a importância delas existirem. Eu sei que tô errando no método do meu trabalho, mas você não é como eu, eu sei que se pudesse faria tudo para mudar o que aconteceu entre vocês. Então a pergunta é, o que você pensa a respeito disso?
— Eu não acho que ele goste de mim de verdade. Denis, veio até mim com um problema muito mais profundo do que aparentava. A ex-namorada era fichinha diante do que realmente estava acontecendo em sua vida, esse namoro era só uma forma de camuflar o que estava acontecendo. E agora ele me fala que gosta de mim. Isso pode ser claramente uma tentativa de sair novamente do foco que ele precisa, que é enfrentar o problema que ele estava passando – expliquei o meu ponto, sem dar detalhes do que realmente acontecia com o meu paciente.
— Ou talvez ele goste de você de verdade.
— Não dá para saber. E ainda que fosse, não está pronto para entrar em um relacionamento agora, ele saiu de um não faz três meses e tem pouco tempo que ele se deu conta que não gostava da ex. Além disso, ainda que a gente esperasse a última consulta para ter alguma coisa, seria claro que algo havia começado antes disso e eu não quero ser essa pessoa. ainda está vulnerável, ele tá aprendendo a caminhar sozinho agora.
— Faz sentido – resmungou, coçando o seu queixo enquanto analisava a situação.
— Claro que faz! E Denis… Eu realmente gosto do . Ele foi o único cara que mexeu com o meu coração, ao ponto de eu poder dizer que estou apaixonada. Mas eu não o amo! Não tenho nenhuma idealização de casamento e bebês ou mesmo um conto de fadas. Se eu não posso me envolver com ele agora, por que eu vou procurar isso? Eu nem sei quanto tempo levaria para podermos ter alguma coisa, isso é, se realmente esse sentimento for genuíno, o que não dá para saber.
— Então seja verdadeira com ele, deixe claro que não pode acontecer nada – Denis opinou como se fosse fácil.
— Eu tentei! – exclamei frustrada. — Ele entende, mas não entende. Ele compreende o fator ético, mas ele acha que a gente pode ficar junto depois que tudo isso acabar porque ele me garante que o que sente por mim é verdadeiro. Quando eu disse as minhas suspeitas para , ele ficou frustrado e eu temo que isso possa acabar prejudicando em sua evolução. Querendo ou não, ainda que tenha ficado mais forte, ele ainda está em um período de vulnerabilidade.
Terminei de relatar com os olhos marejados. Era um choque de realidade, mas era a verdade. Eu não estava fazendo doce ou impedindo uma possível felicidade minha porque eu queria. Se eu fosse seguir meus próprios interesses, claro que eu optaria por passar mais e mais dias desfrutando dos beijos maravilhosos do . Mas as coisas não eram assim tão simples.
— Verdade. Olha, … Eu odeio ser a pessoa que vai falar isso para você, mas como o Dr. Louback, psicólogo renomado e super-correto, eu te diria que você errou em deixar as coisas chegarem aonde chegou. No primeiro momento que você viu que isso não conseguiria caminhar de forma correta, você deveria ter aberto mão do caso e passado para o professor Benecke. – disse com o cenho franzido e os olhos sérios.
Fiquei boquiaberta pelo seu comentário. Não que ele estivesse errado, na verdade, ele estava certíssimo, e era isso que me impressionava.
— Eu sei – sussurrei, meus olhos piscando para conter as lágrimas que acumulavam ainda mais.
Eu devia ter feito tanta coisa diferente, não imaginava que as coisas chegariam ao ponto que chegou. E, quando a gente se beijou, foi em um momento tão inesperado e que eu estava tão frágil, que eu não consegui me conter. Naquele instante eu não enxerguei o como meu paciente, eu não consegui pensar nas proporções que tudo isso levaria... Eu só quis aquilo, quis me sentir bem, quis sentir o toque e os lábios da primeira pessoa que eu gostava de verdade na vida, quis apagar toda a confusão que estava na minha cabeça.
Mas ainda assim, era um erro.
Não queria denominar o momento lindo que a gente teve assim, até tinha prometido a que não diria isso, mas definitivamente foi a pessoa errada no momento errado.
Ou talvez a pessoa certa no momento errado.
Agora eu nunca descobriria.
— Vem aqui. – Denis abriu os braços para mim e eu me joguei nele, enquanto ele passava seu polegar nas lágrimas que agora corriam sobre as minhas bochechas. — Eu te disse a verdade e o correto, mas , somos humanos, nós erramos. Claro que há erros que trazem mais impactos que outros, só que ainda assim, ninguém tem como mandar nos próprios sentimentos, no máximo tentamos controlá-los, o que não quer dizer que será uma missão bem sucedida.
— Eu fui uma estúpida. Eu sou uma péssima profissional – chorei com a voz entrecortada, em meio aos soluços.
— Não, você não é. Primeiro, , você nunca foi uma pessoa que gosta fácil de ninguém, na verdade, nunca tinha gostado de alguém antes e olha que não foi por falta de investidas. Isso só aconteceu, te pegou desprevenida que nem vírus da gripe. – Tentou me confortar e eu ri com a sua comparação. — Segundo, um erro não te rotula como uma péssima profissional. Talvez as pessoas possam te julgar por isso, mas ninguém acerta 100% das vezes. Eu sei que quando se trata de saúde, um erro pode custar uma vida, mas não é essa a situação aqui. O que houve não quer dizer que você vai sair se envolvendo ou gostando de todo cara que você for consultar. Se fosse assim, você já tinha se apaixonado por dezenas de outros rapazes nos períodos dos nossos estágios. Além disso, eu sempre te acompanhei e sei como você é uma menina correta e estudiosa. Não se culpe dessa maneira, senão você vai tornar isso tudo pior do que já é.
— Você só diz isso porque é meu amigo – retruquei, passando as mãos pelo meu rosto para enxugar minhas lágrimas.
— Você sabe que não é verdade, chuchu. Eu sou um vagabundo, eu sei. Eu nunca levei o curso a sério, faço um monte de merda e nunca sou chutado. Eu tô num curso por obrigação e eu nunca vou seguir carreira nele, mas preciso desse diploma se eu quiser ter finalmente minha paz. Contudo, ainda assim, eu sei como as coisas funcionam, eu tive assistir anos de aulas e tudo mais, sei o que devemos ou não devemos fazer, e sei que você será uma excelente profissional.
Afastei-me dele, mais chocada pela informação que ele soltou do que pelo consolo que ele me dava. Tá legal que eu sabia que Denis não levava o curso a sério, mas jamais ouvi tais palavras saírem da sua boca.
— Você nunca me disse isso – exclamei, atônita. — Você não vai seguir a carreira?
Denis rolou os olhos, espreguiçou-se ao meu lado e soltou uma risada.
— Para, ! Você acha mesmo que eu tenho cara de psicólogo?! Por Deus, eu envergonharia toda a classe e eu respeito demais a profissão para continuar nesse ramo. Não mesmo. Vou pegar o meu canudo e adeus.
— Oh, graças a Deus! – Coloquei a mão no peito e suspirei sinceramente aliviada.
Denis fez uma cara de ultraje, passou o braço em minha cintura e jogou o meu corpo deitado no sofá, enchendo-me de cosquinha até eu ficar sem fôlego.
— Tá aliviada que eu não vou ser seu colega de profissão, né?! Agora vai ter que pagar essa audácia com risos para secar essas lágrimas de uma vez! – entoou enquanto me matava de rir.
E era assim que Denis conseguia transformar o pior momento da história no mais hilário possível. As lágrimas que eram de desespero foram se transformando a medida que eu gargalhava e ele me enchia de cócegas. Meu estômago começou a doer e minhas bochechas ardiam com as risadas. Quando me faltou o ar, Denis se afastou com seus cachinhos todos bagunçados e as maçãs do rosto avermelhadas de tanto rir.
Sentei-me novamente no sofá, passando a mão por meu cabelo para me endireitar e fazendo uma tentativa de recuperar o fôlego. Voltei meus olhos para o meu amigo que parecia satisfeito e alegre, porém, ao pensar no que meu amigo havia me dito, logo meu sorriso foi se desvanecendo.
— Quais são seus planos? Denis, eu não entendo, se nunca quis seguir a profissão, por que fez isso tudo a final? – Inclinei levemente a cabeça e perguntei-o suavemente.
Denis jogou suas costas contra o sofá e passou a mão por seu rosto, remexendo o seu corpo no acento, definitivamente desconfortável.
— Esquece isso, .
— Mas, Denis… Nós somos amigos e você sempre se esquiva quando eu pergunto qualquer coisa muito pessoal. Você sabe que pode contar comigo, não é? Nós somos mais que amigos, somos irmãos de alma e coração, eu tô aqui para o que precisar de mim.
Denis abriu um pequeno sorriso, inclinou o seu tronco, segurou as minhas mãos e levou-as até os seus lábios para beijá-las.
— Eu sei, ssinha. Eu confio em você, mas é algo que eu ainda… Ainda não quero dizer. Deixe esse caso para outra história, ok? O momento agora é seu, não precisa se preocupar comigo. – Deu uma piscadela e seu lábio se arqueou em um sorriso treteiro.
— Ok – soltei um muxoxo, sabendo que não adiantaria forçar a barra com ele, isso só o afastaria.
— Isso! – Seu sorriso se alargou. — E como você está em relação aquelas outras coisas? Meus grandes truques estão dando certo, afinal? – perguntou-me com um sorriso convencido.
— Alguns, o último nem tanto... – resmunguei, recordando-me que era culpa do Denis eu ter ido naquela festa, que resultou no encontro entre e eu.
Tirando a noite trágica, eu senti parte do meu estresse diminuir, apesar da queda de cabelo persistir. Eu tentava me controlar e estabelecer horários para fazer todas os meus planejamentos, seja estudar, quanto ler um livro ou ver um filme, pois sabia que eu precisava de um tempo para descansar a minha mente também.
— Eu voltei às consultas com aquela psicóloga que eu ia antes, foi muito bom – contei para o meu amigo. Ele já sabia que eu havia ido na época do início da faculdade, então não foi muita surpresa. — Ninguém é forte o tempo todo, né? Como dizem... Até os médicos precisam de médicos – recitei o jargão e Denis sorriu em resposta com um olhar orgulhoso.
— As coisas estão melhorando… – Denis estendeu sua mão para segurar a minha em forma de apoio. — Ainda que você pense que tá tudo desabando, na verdade, de tijolo em tijolo, estamos construindo a nossa fortaleza.
— Que profundo, Denis – brinquei e abracei-o.
— Eu tenho meus momentos. – Soltou minha mão, passou seus braços pelo meu ombro e colocou o queixo sobre a minha cabeça.
E ali eu fiquei feliz, pois sabia que ainda que eu tivesse meu coração partido, ataques de estresse ou passasse por uma grande tribulação, ainda assim eu teria meu amigo ao meu lado e pessoas com quem eu poderia contar. E só por isso, eu já era extremamente grata.





Continua...






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