Capítulo Único
Eu a perdi no dia 1º de novembro, 1755, em Lisboa.
Chamavam-no de o dia de Todos os Santos. Bendito fosse o dia de Todos os Santos. Ralharia com Deus, Cristo e os apóstolos para nunca existir o dia 1º de novembro naquele infernal ano.
Onde estavam os meus santos, para acudir-me em meio à minha perda? Onde estavam os homens de Cristo para dizerem-me que quem a tomou de mim não foi, na verdade, um Deus prepotente e mal-intencionado? Qual outra razão haveria para ela não estar em meus braços neste exato momento?
No entanto, a minha tragédia não se iniciou de tarde do dia 1º de novembro, como a de muitos que conhecera, e sim no dia 31 de outubro.
31 de outubro, 1755. 10h28. Lisboa, Portugal.
“Roubas-lhes a graça, a virtude, a beleza
Captura-lhes a magnitude da existência
Dos teus lábios, apenas suas cores
Das rosas negrescas, avermelhadas”
— Trago uma carta à senhorita . — trazia o chapéu em mãos, preto, juntamente com a carta devidamente lacrada para a minha dama. O mordomo de sua casa olhou-me de cima a baixo, reconhecendo-me de muitos outros cortejos que dei à senhorita.
— A senhorita não se encontra em casa. Volte amanhã com a vossa carta.
E fechou a porta antes que lhe dissesse para dá-la assim que retornasse.
Aquela carta não poderia esperar para o dia seguinte.
Decidi procurá-la pelas vielas e ruas de Lisboa metaforicamente, pois tinha conhecimento de que, àquela hora da manhã, senhorita só poderia estar em um específico lugar. Não havia me ocorrido este pensamento ao sair de minha casa.
Era uma sexta-feira. Havia uma missa das 10h até às 11h na Igreja do Carmo, que ficava a alguns quarteirões de distância da senhorita .
Pondo o chapéu na cabeça, prontamente direcionei-me até o Convento do Carmo, este anexado à Igreja. Entrei em uma súbita calmaria, fazendo minha reverência ao sagrado altar, novamente segurando meu chapéu, e encostei-me à parede atrás dos bancos. O padre falava o sermão, o que indicava que o horário estava correto. Fiz minha procura pela senhorita sorrateiramente, não saindo de minha posição.
Seu chapéu com o topo com penas rosas em um círculo e com um belíssimo crochê azul embaixo deste, segurando seu cabelo, fez-se notar em meu campo de visão. Senti meu coração crescer em clara ansiedade ao encontrá-la. Movi-me até certo ponto de forma lenta, sem ser notado. Estava sentada na ponta do banco, ao lado da mãe.
No entanto, ao parar um pouco mais a frente de onde se encontrava e virar meu corpo para olhá-la, notei que a pessoa que a pessoa ao seu lado não era sua querida mãe.
Senhorita , em uma rara e alegre ocasião, estava sozinha.
Mal pude conter o meu largo sorriso ao constatar o fato, e logo repreender-me por tal indolência. Senti minhas bochechas ruborizarem ao ver um leque preto repousado em seu colo.
Oh, não.
Saberia ela a linguagem dos leques? Seria demasiada sorte.
Quando me viu, arregalou seus olhos. Pareceu assustar-se com a minha presença e eu abaixei a minha cabeça, saudando-a. Assim que a levantei, pude vê-la rapidamente pegando o leque em seu colo.
Sim, senhorita era familiarizada com a linguagem dos leques.
Olhando para mim novamente, levantou suas sobrancelhas, fazendo-me pensar que estava se perguntando se eu conseguiria entender o que ela me diria com os gestos com o leque.
Esperançoso, assenti discretamente com a cabeça.
Seu primeiro movimento foi colocar o leque, ainda fechado, próximo ao coração.
“Tu me conquistastes”.
Senti todos os meus músculos relaxarem, a carta com minha poesia escrita apenas para os seus olhos pesando em meu bolso.
Depois, pousou o dedo indicador na ponta do leque.
“Desejo falar contigo”.
Agarrei o relógio de bolso, mostrando-lhe a interface.
“A que horas?”.
Abriu e fechou rapidamente uma vareta de seu leque.
“Neste instante”.
Mirei o padre, ainda de pé, forçando sua voz para ser ouvido em toda a extensão da igreja.
Encarei-a novamente, hesitando em cometer tamanha grosseria para com aquele homem da Igreja. Contudo, o que encontrei foi determinação em seus olhos, ao mesmo tempo em que erguia o leque com a mão direita em punho em frente ao seu rosto.
“Siga-me”.
E, após isso, levantou-se graciosamente de seu lugar, o vestido azul, com delicadas flores rosas e folhas verdes, destacando-se em meio aos bancos pretos. Caminhou até a lateral esquerda, local em que eu me encontrava, e ao ver que eu a observava, apoiou o leque, fechado, na bochecha esquerda.
“Não”.
Senhorita não queria que ninguém notasse que eu a estava esperando. Assim que ela abriu uma das portas de madeira, um pouco atrás de mim, esperei excruciantes minutos até seguir seu caminho.
Fiz o máximo para não produzir qualquer som, então entrei.
Ela me aguardava encostada no fim do corredor, distraída. Abriu um raro sorriso, tímido, quando viu que eu já estava lá.
— Surpreendestes-me, senhorita. — pronunciei-me, colocando ambas as mãos no chapéu, nervoso. — Minha imaginação não poderia jamais…
Levantou a mão esquerda, parando minha fala. Com a direita, segurava aquele vistoso leque preto.
— O que viestes fazer aqui, senhor ? Sabes muito bem o horário desta missa e também que eu compareceria. — sua postura, agora reta, era um tanto intimidadora. De todas as vezes que havia ido até a sua casa, havia visto-a apenas sentada em sua cadeira, com o pai ao seu lado, escutando meus cortejos profundos e verdadeiros. — Assumo apenas que esperavas encontrar-me com minha mãe, não?
— De fato, esperava. Fui à vossa casa e o rapaz disse-me que não estavas. Esqueci-me da hora.
Senhorita deu um passo à frente, um pouco mais próxima de mim. Naquela distância, poderia sentir o cheiro de sua fragrância. Rosas.
Tanto minha suposição quanto ao seu elemento da natureza favorito quanto minha constante observação da decoração de sua cadeira estavam certas, e o poema nunca pareceu mais correto.
— E fostes à minha casa ver-me novamente?
— Perdoe-me pela minha indelicadeza ao tentar encontrá-la aqui, não pude esperar o vosso retorno.
— Para deliciar-me com vossas palavras, senhor?
— Versos.
Nunca havia estado tão próximo a ela. Toda a situação berrava à violação dos códigos de nossa civilizada sozinha. Estar sozinho com uma mulher honrada era, na melhor das palavras, uma blasfêmia.
As consequências se fôssemos vistos eram horrendas para uma mulher tão delicada e correta como a senhorita .
— Recite-os para mim. — seu tom era curioso, os lábios contorcidos em um sorriso firme, satisfeito. Todos os meus pelos, protegidos por minhas vestes pesadas, eriçaram-se pela oportunidade de ver as reações de seu rosto ao ler o poema. Ou eu lê-lo a ela.
Tirei a carta do bolso, o envelope branco tremendo. Ou aquilo era a minha mão? Retirei o fino papel levemente amarelado de dentro, a tinta da pena um pouco escorrida no início de cada verso.
No entanto, aquelas palavras não foram destinadas à minha boca, e sim a dela. Talvez não recitados, porém lidos à noite, antes de seu sono, a poesia guardada escondida dos olhos de curiosos, embaixo do colchão.
Entreguei-lhe o papel, dizendo:
— São vossos, senhorita. Apenas vossos. Não ouso diminuí-los pronunciando-os de meus lábios.
Não disse coisa alguma ao aceitar o papel em sua mão livre, virando-o para si e, como o meu próprio martírio, repousando seus olhos no meu escrito.
Nada pôde ser ouvido por mim além de todas as inúmeras formas que poderia dizer-lhe o quanto a amava.
Poderia dizer-lhe que, desde a primeira vez que a vi, nesta mesma igreja, seu radiante brilho e beleza capturou-me como uma isca daquele estranho e bem falado sentimento chamado de amor.
Poderia dizer-lhe que, apesar da constante presença de outras pessoas no mesmo cômodo que ela, meus olhos eram apenas destinados a ela. Ela era o meu anjo, a minha musa.
Quando ela finalmente terminou de ler aquele curto poema, escrito por um simples homem, ergueu seu olhar para mim. Durante a leitura, manteve a postura fechada, sem que eu pudesse tirar qualquer conclusão do que achara. E, mesmo naquele momento, ela poderia tanto ter odiado-o quanto amado-o.
Uma simples frase ecoava em minha mente.
“Tu me conquistastes”.
Havia eu grosseiramente assassinado minha, até então, desconhecida conquista?
— Encontre-me amanhã de manhã nesta mesma Igreja, na primeira missa. Estarei sentada com minha mãe; não se aproxime antes que lhe peça.
Dobrou o papel e o colocou dentro da manga de seu vestido. Ainda enigmática, deu as costas e andou na direção oposta a que estávamos.
— Senhorita! — chamei-a, o desespero martelando em todo o meu corpo.
Apenas a vi virando-se para mim por alguns segundos, o leque em seu queixo, fazendo um simples movimento.
E, se nada daquele houvesse acontecido, se eu não lhe tivesse entregado o poema, se não houvesse ido até a igreja, talvez nunca em minha vida eu iria me sentir daquela forma. Totalmente extasiado de felicidade e alívio.
“Amo-te”.
1º de novembro, 1755. 9h03. Lisboa, Portugal.
Meu sono fora interrompido abruptamente diversas vezes por meus pensamentos ávidos. Senhorita pretendia matar-me de ansiedade e expectativa. Como ela, logo ela, uma mulher tão correta e pura, conseguira elaborar tal plano? Um plano que, se descoberto, poderia aniquilar todas as suas chances de casar-se com outro senhor?
Apenas o mero pensamento de vê-la nos braços de outro por um pequeno deslize meu, como não me levantar no horário previsto, fazia todos os meus sentidos ficarem alertas. Deveria ser discreto ao aproximar-me dela, visto que ela estaria acompanhada de seus pais.
Era o dia de Todos os Santos. Todos iriam às igrejas fazerem suas orações e zelar pela vida de seus entes falecidos. Se apenas uma pessoa notasse algo peculiar... Nunca, em toda a eternidade, me perdoaria se a deixasse vítima das críticas de nossa cidade. Senhorita seria descrita como obscena, imoral.
O quanto haveria senhorita de amar-me para pôr-se em uma situação de risco apenas pelo mero desejar de ver-me? Aquilo acalorava o meu coração e fazia-me, juntamente com o receio de perdê-la, ficar noite adentro imaginando os diversos cenários que aconteceriam em algumas horas.
A missa começaria às 9h30, porém não sabia se senhorita chegaria um pouco mais cedo para sentar-se em um lugar próximo à Sacristia. Recordando-me de como a conhecera, era provável que o fizesse. Optei, então, por só sair de minha casa alguns minutos após as oito da manhã. Não tardaria meu martírio e também não a faria esperar pela minha presença.
Assim almejava eu.
Senhorita
Senhor não apareceria.
Como haveria ele de aparecer, após tamanha infâmia de minha parte ao estar a sós com ele nos fundos da casa do Senhor? E, então, pedi-lo para repetir o mesmo feito no dia seguinte! Consideraria-me uma impura, relataria meu comportamento indevido aos meus pais e faria-me a vergonha e piada de Lisboa.
Meu maior anseio era estar enganada, no entanto, os fatos eram sólidos. As reais consequências de meus atos não se tornaram claras para mim até retornar em minha casa e sentar-me em minha cadeira favorita, envolta apenas de meus pensamentos. Onde estivera a minha cabeça? Fora encontrar-me sozinha com um respeitoso senhor, como pude eu ser capaz de utilizar-me das mensagens com o leque?
Aprendera aquilo durante minhas idas à casa dos Serrão, em que a primogênita, Maria Isabel, ensinara-me a como transmitir frases para outros, intencionalmente a homens, apenas fazendo simples gestos com o leque.
Fazia-o e gravara-o por puro divertimento, nunca sequer ponderando utilizá-lo.
E cá estava eu, aguardando o que se seguiria do uso daquela linguagem.
— Criança, o que te aflige? — ouvi a voz preocupada de minha mãe ao meu lado. Sua bíblia repousava no banco à nossa frente, estranhamente debatendo-se contra a madeira. Olhei atentamente para a cena incompreensível.
Em alguns segundos, era como se nada houvesse acontecido.
O Diabo havia me guiado a realizar minhas ações e agora pretendia iludir-me com falsas visões. Não o deixaria enlouquecer-me.
— Nada, mamãe. Estou deveras cansada. — o que não era uma balela. Afinal, estivera acordada até tarde da noite ponderando a gravidade do cenário que ocorreria em alguns minutos, se senhor sequer aparecesse.
Minha mãe tomou minha resposta como a única verdade e retornou seu olhar para a análise das pessoas que chegavam à igreja.
De súbito, uma sensação de temor envolveu minha mente. Se mamãe notasse senhor no recinto... Comentei casualmente com a senhora como a decoração para o dia de Todos os Santos estava bem arranjada naquele ano.
Minha preocupação, é claro, mostrava o fino fio de esperança que eu ainda carregava em meu coração.
Impulsivamente, minha cabeça virou-se para a majestosa porta da Igreja do Carmo, meus olhos atentos a qualquer rosto familiar, com um chapéu polido, bem tratado, apesar de ser um dos únicos chapéus que possuía.
— Estás certa, minha querida. Que belíssimas orquídeas.
Estivera prestes a concordar com um simples murmuro quando fui interrompida pelas batidas apressadas de meu coração ao pé de meus ouvidos. Comprimi um sorriso, como há muito tinha aprendido a fazer em sua presença, ao repousar meus olhos em seu rosto preenchido por perspectiva do que viria a acontecer.
— Sim, mamãe. — ela não notara a demora em minha réplica, muito menos o meu discreto retorno para a posição original de meu olhar.
Senhor viera. Senhor amava-me!
— Mamãe, dai-me licença, se faz favor. Antes de a missa iniciar-se, irei encontrar-me com a freira Julieta. — falei assim como planejara. Senhora afirmou com a cabeça, pedindo-me cautela ao seguir meu caminho, e levantei-me do banco, agarrando meu leque rendado e preto.
Discretamente encontrei o olhar de senhor em mim. Repeti um dos movimentos que havia feito no dia anterior, o leque segurado com a mão direita em punho em frente ao meu rosto.
“Siga-me”.
Senhor
Senhorita trajava um vestido com um tom de rosa claro, rendado de branco ao redor de seu pescoço, no final das mangas e na bainha da saia. Era simplesmente magnífico. Suspeitava que a cor não houvesse sido intencional, no entanto, se fosse, havia um significado puro e incontestável.
Amor.
Enquanto a seguia de maneira a não ser notado, frases soltas ecoavam em minha mente, formando o que poderia ser, talvez, o meu mais expresso clamor por senhorita .
“Mostrar-lhe-ia o caminho, se tu já não o soubesses
Mostrar-lhe-ia as flores, se tu já não fosses banhada e embelezada por elas
Mostrar-lhe-ia a alegria, se tu já não a tivesses só para ti
Mostrar-lhe-ia o meu coração, se tu já não o tivesses furtado”
Ao abrir a pesada porta, pareceu-me que a maçaneta de ouro maciço tremera sob o meu toque. Até os objetos inanimados sabiam o estado deplorável de aflição que eu me encontrava.
À minha frente, em quiçá uma miragem minha, estava senhorita , no exato local em que ela revelara que me amava. Um largo sorriso estava em seu rosto, talvez o mais bonito que eu veria em toda a minha mundana vida.
— Viestes. — ela sussurrou em uma só respirada, como que de alívio. Como ela duvidara que eu encontraria-a?
— Dizes-me que me amas, que lhe conquistei, que deseja ver-me novamente. Senhorita , tua dúvida é um tanto quanto irracional. — permiti-me aproximar-me dela, vendo-a notar que eu estava caçoando de sua preocupação. Ela manteve-se calada ao também notar que minha aproximação havia sido o mais perto que já havíamos chegado de nos olhar.
Se estendesse meu braço, poderia sentir o calor de sua pele em meus dedos.
— Sabes bem o porquê de minha dúvida existir.
— Nunca a julgaria daquela tenebrosa forma, amo-a demasiadamente para isto.
Fora a primeira vez que eu havia dito o que há muito sentia e o que eu presumia que senhorita já soubesse. Contudo, a surpresa em seu rosto chocou-me. Subitamente senti a vontade de tocar em sua bochecha, afastando qualquer pensamento incerto sobre os meus sentimentos. Contive-me.
— Amas-me? — seu tom, ao mesmo tempo admirado e abismado, espantou-me ainda mais. — A sério?
Com o que eu havia de coragem em meu interior, segurei sua mão direita, diminuindo ainda mais a nossa distância. Não pude deixar de pensar o quanto aquele encaixe parecia ser perfeito.
— Mostrar-lhe-ia o caminho, se tu já não o soubesses — utilizei-me de meu melhor tom ao recitar os precários versos que me vieram à cabeça, tentando recordá-los. Observei atentamente a forma com que os seus fios caíam sobre o seu rosto, o contorno de seus lábios, a faísca de seus olhos. — Mostrar-lhe-ia as flores, se tu já não fosses banhada e embelezada por elas — levei sua mão à minha boca, dando-lhe um delicado beijo e sentindo as mais diversas sensações passarem pelo meu corpo. Ouvi-a engolir a seco, provavelmente tendo em seu pensamento, assim como eu, como aquele toque íntimo embrulhava o estômago. — Mostrar-lhe-ia a alegria, se tu já não a tivesses só para ti — senti as feições de meu rosto se acalmarem, em uma súbita serenidade. Mantive sua mão à altura que usei para beijá-la. — Mostrar-lhe-ia o meu coração... — abaixei sua mão em direção ao meu peito, repousando-a em cima de meu coração. Disse a última sentença em um tom mais baixo. — Se tu já não o tivesses furtado.
Apesar de como eu poderia tê-la em meus braços sem o menor esforço, ela levantou o leque que segurava com a outra mão, pondo a alça deste sob os seus lábios.
“Beija-me”.
Houve um breve instante em que pensei que eu havia interpretado mal àquele gesto, confundido-o com outro. Não, era impossível que senhorita tivesse acabado de pedir para que eu a beijasse. Hesitei, de fato, pois se eu estivesse correto e alguém nos visse...
Para os infernos. A única pessoa que existia em meu privado mundo, com os meus olhos refletidos em seus olhos, era senhorita .
E como eu cobiçava seu beijo.
Tirei sua mão de meu aperto, direcionando ambas as minhas mãos para as suas delicadas bochechas. O leque já havia sido abaixado. Tendo um breve vislumbre de seus olhos fechando-se, puxei seu rosto para perto do meu, meus lábios procurando por sua boca, desejando-a.
Foi quando tudo ruiu.
O chão sob os nossos pés subitamente era feito de areia, a terra sendo puxada para todas as direções possíveis. As paredes, do mais caro mármore, começaram a desmanchar-se, formando rachaduras. O susto nos fez paralisar, e meu primeiro instinto foi puxar o corpo de senhorita para perto do meu enquanto podia.
Vozes gritantes perfuravam nossos ouvidos, vindos de dentro da Igreja do Carmo, que nunca veria mais uma missa. O terror nos assombrava, tomando o espaço de todas as outras emoções em nossas almas. Corri com senhorita em meu aperto para fora do edifício, cambaleando, incerto de qual seria o caminho. Era um labirinto sem fim e instável. Não poderia passar pela porta em que viemos sem que nos vissem.
Em meio aos gritos, ao horror, a voz de senhorita fez-se presente. Estava fragilizada.
— Por ali! — ela apontava para uma porta no final do corredor que entrara.
Os vidrais que cobriam aquele corredor partiram-se em inúmeros pequenos pedaços, chovendo em um festival de cores em nossas cabeças. Apanhei rapidamente meu chapéu e o pus em senhorita , segurando firme.
O tintilar do vidro ao cair no chão soaria poético, se os Santos não nos tivessem nos agraciado com suas iras.
Quando abri a porta que ela havia apontado, a frequência do terror aumentou consideravelmente. Os pedintes vociferavam contra os céus, as pessoas corriam sem rumo para algum lugar seguro, que não caísse sobre elas. Algo atrás de mim exaltou-se em um estrondo. Tentei apertar senhorita contra mim, porém apenas senti o ar.
Arregalando os olhos, olhei para trás, para onde eu sabia que senhorita estava em pé, encarando o horror que assombrava nossa cidade.
Entretanto, o que encontrei foi, pouco atrás da porta, senhorita estendida no chão.
Um urro saiu de minha garganta, animalesco. Parte da parede direita havia cedido, pesada e mortífera, e alguns resquícios dela haviam encontrado a testa da minha dama, perfurando-a como um delicado beijo. Seus esbeltos olhos estavam abertos, sem nenhum brilho, encarando-me.
Pouco me importava se a porta cedesse sobre mim — naquele ponto, eu queria que ela o fizesse. Joguei-me contra o corpo sem vida de senhorita , as lágrimas banhando o meu rosto como a repulsa fazia com a minha alma.
Mea culpa.
Ajoelhei-me junto a ela, sentindo tudo rodar embaixo dos meus pés. Peguei em sua mão, sem o seu calor, sem o seu espírito, e depositei ali um último toque de meus lábios, que pareceu demorar uma eternidade. Não sabia se tremia por conta do chão ou se por conta de meu choro intenso. Levei meus dedos até os seus olhos, fechando-os. Após isso, ergui-a em meus braços, tirando-a daquele inferno.
O leque balançava em seu pulso e o sangue, vermelho como o meu ódio, escorria por seus olhos, nariz e boca. Não pude limpá-lo devido à determinação com que corria pelo mar de seres humanos desesperados, em busca de um local de repouso para a minha dama. Todavia, o que captava meu olhar eram casas indo a baixo, famílias sendo despedaçadas.
Corações sendo despedaçados.
Meu coração sendo despedaçado.
Mea culpa.
1º de novembro, 1765. Porto, Portugal.
Tive que deixá-la à mercê de Deus quando, em um mais profundo abalo, desequilibrei-me e ela caiu de meus braços. Ao abaixar-me para puxá-la novamente para mim, o máximo que agarrei com minha mão foi seu leque, porque logo fui empurrado pela multidão, perdendo seu corpo de vista.
A imaginária imagem dela sendo pisoteada por lisbonenses sem pudor algum assombrava minhas noites.
Todos os que restavam, infelizmente incluindo a mim, alojaram-se no porto. Foi quando a grande onda veio. Ao notar o recuo do mar, minutos antes, tentei alertar aos que estavam perto de mim. Os farrapos de minhas e das roupas de todos tornaram-nos iguais. Alguns tomaram minhas palavras e seguiram-nas; afastamos-nos o máximo que pudemos.
Após a chegada dos barcos que nos levariam para longe de Lisboa, e também após a calmaria do mar, nunca ansiei tanto estar morto. Olhava ao meu redor e via apenas os afortunados casais que sobreviveram ao castigo dos Santos.
Meu pensamento não saía do olhar morto de senhorita sobre mim.
Seu leque dizia-me que, por algumas horas, eu fora o mais feliz dos homens.
Quando íamos para o norte do país, espalhou-se pelo convés que um grande incêndio havia alastrado toda a cidade de Lisboa, destruindo e determinando o seu fim. Por quatro dias suas chamas iluminaram os céus.
D. José I, rei, e Marquês de Pombal, primeiro-ministro, reconstruíram Lisboa em menos de um ano após o dia 1º de novembro. Um tempo relativamente curto para tamanho desastre, assim acreditavam todos.
O que eu acreditava e me importava era que nunca poderia visitar o túmulo de senhorita .
Entretanto, se fosse possível, juntaria o que restava de meus trapos e ofereceria-lhe uma begônia, representando nossa inocência. Depois, ofereceria-lhe uma cravina, representando sua perfeição. Também ofereceria-lhe um cravo branco, representando nosso puro amor.
Por último, se ainda restassem dúvidas, ofereceria-lhe um crisântemo vermelho, representando o quão profundamente eu a amava.
O verdadeiro desafio sempre seria reconstruir as ruínas remanescentes da minha alma.
“Por mea culpa, minha dama
Da onde me sento apenas a tua ausência reparo
Por mea culpa, senhorita
Não ouvistes minha canção de fiel e eterno amor”
Chamavam-no de o dia de Todos os Santos. Bendito fosse o dia de Todos os Santos. Ralharia com Deus, Cristo e os apóstolos para nunca existir o dia 1º de novembro naquele infernal ano.
Onde estavam os meus santos, para acudir-me em meio à minha perda? Onde estavam os homens de Cristo para dizerem-me que quem a tomou de mim não foi, na verdade, um Deus prepotente e mal-intencionado? Qual outra razão haveria para ela não estar em meus braços neste exato momento?
No entanto, a minha tragédia não se iniciou de tarde do dia 1º de novembro, como a de muitos que conhecera, e sim no dia 31 de outubro.
31 de outubro, 1755. 10h28. Lisboa, Portugal.
Captura-lhes a magnitude da existência
Dos teus lábios, apenas suas cores
Das rosas negrescas, avermelhadas”
— Trago uma carta à senhorita . — trazia o chapéu em mãos, preto, juntamente com a carta devidamente lacrada para a minha dama. O mordomo de sua casa olhou-me de cima a baixo, reconhecendo-me de muitos outros cortejos que dei à senhorita.
— A senhorita não se encontra em casa. Volte amanhã com a vossa carta.
E fechou a porta antes que lhe dissesse para dá-la assim que retornasse.
Aquela carta não poderia esperar para o dia seguinte.
Decidi procurá-la pelas vielas e ruas de Lisboa metaforicamente, pois tinha conhecimento de que, àquela hora da manhã, senhorita só poderia estar em um específico lugar. Não havia me ocorrido este pensamento ao sair de minha casa.
Era uma sexta-feira. Havia uma missa das 10h até às 11h na Igreja do Carmo, que ficava a alguns quarteirões de distância da senhorita .
Pondo o chapéu na cabeça, prontamente direcionei-me até o Convento do Carmo, este anexado à Igreja. Entrei em uma súbita calmaria, fazendo minha reverência ao sagrado altar, novamente segurando meu chapéu, e encostei-me à parede atrás dos bancos. O padre falava o sermão, o que indicava que o horário estava correto. Fiz minha procura pela senhorita sorrateiramente, não saindo de minha posição.
Seu chapéu com o topo com penas rosas em um círculo e com um belíssimo crochê azul embaixo deste, segurando seu cabelo, fez-se notar em meu campo de visão. Senti meu coração crescer em clara ansiedade ao encontrá-la. Movi-me até certo ponto de forma lenta, sem ser notado. Estava sentada na ponta do banco, ao lado da mãe.
No entanto, ao parar um pouco mais a frente de onde se encontrava e virar meu corpo para olhá-la, notei que a pessoa que a pessoa ao seu lado não era sua querida mãe.
Senhorita , em uma rara e alegre ocasião, estava sozinha.
Mal pude conter o meu largo sorriso ao constatar o fato, e logo repreender-me por tal indolência. Senti minhas bochechas ruborizarem ao ver um leque preto repousado em seu colo.
Oh, não.
Saberia ela a linguagem dos leques? Seria demasiada sorte.
Quando me viu, arregalou seus olhos. Pareceu assustar-se com a minha presença e eu abaixei a minha cabeça, saudando-a. Assim que a levantei, pude vê-la rapidamente pegando o leque em seu colo.
Sim, senhorita era familiarizada com a linguagem dos leques.
Olhando para mim novamente, levantou suas sobrancelhas, fazendo-me pensar que estava se perguntando se eu conseguiria entender o que ela me diria com os gestos com o leque.
Esperançoso, assenti discretamente com a cabeça.
Seu primeiro movimento foi colocar o leque, ainda fechado, próximo ao coração.
“Tu me conquistastes”.
Senti todos os meus músculos relaxarem, a carta com minha poesia escrita apenas para os seus olhos pesando em meu bolso.
Depois, pousou o dedo indicador na ponta do leque.
“Desejo falar contigo”.
Agarrei o relógio de bolso, mostrando-lhe a interface.
“A que horas?”.
Abriu e fechou rapidamente uma vareta de seu leque.
“Neste instante”.
Mirei o padre, ainda de pé, forçando sua voz para ser ouvido em toda a extensão da igreja.
Encarei-a novamente, hesitando em cometer tamanha grosseria para com aquele homem da Igreja. Contudo, o que encontrei foi determinação em seus olhos, ao mesmo tempo em que erguia o leque com a mão direita em punho em frente ao seu rosto.
“Siga-me”.
E, após isso, levantou-se graciosamente de seu lugar, o vestido azul, com delicadas flores rosas e folhas verdes, destacando-se em meio aos bancos pretos. Caminhou até a lateral esquerda, local em que eu me encontrava, e ao ver que eu a observava, apoiou o leque, fechado, na bochecha esquerda.
“Não”.
Senhorita não queria que ninguém notasse que eu a estava esperando. Assim que ela abriu uma das portas de madeira, um pouco atrás de mim, esperei excruciantes minutos até seguir seu caminho.
Fiz o máximo para não produzir qualquer som, então entrei.
Ela me aguardava encostada no fim do corredor, distraída. Abriu um raro sorriso, tímido, quando viu que eu já estava lá.
— Surpreendestes-me, senhorita. — pronunciei-me, colocando ambas as mãos no chapéu, nervoso. — Minha imaginação não poderia jamais…
Levantou a mão esquerda, parando minha fala. Com a direita, segurava aquele vistoso leque preto.
— O que viestes fazer aqui, senhor ? Sabes muito bem o horário desta missa e também que eu compareceria. — sua postura, agora reta, era um tanto intimidadora. De todas as vezes que havia ido até a sua casa, havia visto-a apenas sentada em sua cadeira, com o pai ao seu lado, escutando meus cortejos profundos e verdadeiros. — Assumo apenas que esperavas encontrar-me com minha mãe, não?
— De fato, esperava. Fui à vossa casa e o rapaz disse-me que não estavas. Esqueci-me da hora.
Senhorita deu um passo à frente, um pouco mais próxima de mim. Naquela distância, poderia sentir o cheiro de sua fragrância. Rosas.
Tanto minha suposição quanto ao seu elemento da natureza favorito quanto minha constante observação da decoração de sua cadeira estavam certas, e o poema nunca pareceu mais correto.
— E fostes à minha casa ver-me novamente?
— Perdoe-me pela minha indelicadeza ao tentar encontrá-la aqui, não pude esperar o vosso retorno.
— Para deliciar-me com vossas palavras, senhor?
— Versos.
Nunca havia estado tão próximo a ela. Toda a situação berrava à violação dos códigos de nossa civilizada sozinha. Estar sozinho com uma mulher honrada era, na melhor das palavras, uma blasfêmia.
As consequências se fôssemos vistos eram horrendas para uma mulher tão delicada e correta como a senhorita .
— Recite-os para mim. — seu tom era curioso, os lábios contorcidos em um sorriso firme, satisfeito. Todos os meus pelos, protegidos por minhas vestes pesadas, eriçaram-se pela oportunidade de ver as reações de seu rosto ao ler o poema. Ou eu lê-lo a ela.
Tirei a carta do bolso, o envelope branco tremendo. Ou aquilo era a minha mão? Retirei o fino papel levemente amarelado de dentro, a tinta da pena um pouco escorrida no início de cada verso.
No entanto, aquelas palavras não foram destinadas à minha boca, e sim a dela. Talvez não recitados, porém lidos à noite, antes de seu sono, a poesia guardada escondida dos olhos de curiosos, embaixo do colchão.
Entreguei-lhe o papel, dizendo:
— São vossos, senhorita. Apenas vossos. Não ouso diminuí-los pronunciando-os de meus lábios.
Não disse coisa alguma ao aceitar o papel em sua mão livre, virando-o para si e, como o meu próprio martírio, repousando seus olhos no meu escrito.
Nada pôde ser ouvido por mim além de todas as inúmeras formas que poderia dizer-lhe o quanto a amava.
Poderia dizer-lhe que, desde a primeira vez que a vi, nesta mesma igreja, seu radiante brilho e beleza capturou-me como uma isca daquele estranho e bem falado sentimento chamado de amor.
Poderia dizer-lhe que, apesar da constante presença de outras pessoas no mesmo cômodo que ela, meus olhos eram apenas destinados a ela. Ela era o meu anjo, a minha musa.
Quando ela finalmente terminou de ler aquele curto poema, escrito por um simples homem, ergueu seu olhar para mim. Durante a leitura, manteve a postura fechada, sem que eu pudesse tirar qualquer conclusão do que achara. E, mesmo naquele momento, ela poderia tanto ter odiado-o quanto amado-o.
Uma simples frase ecoava em minha mente.
“Tu me conquistastes”.
Havia eu grosseiramente assassinado minha, até então, desconhecida conquista?
— Encontre-me amanhã de manhã nesta mesma Igreja, na primeira missa. Estarei sentada com minha mãe; não se aproxime antes que lhe peça.
Dobrou o papel e o colocou dentro da manga de seu vestido. Ainda enigmática, deu as costas e andou na direção oposta a que estávamos.
— Senhorita! — chamei-a, o desespero martelando em todo o meu corpo.
Apenas a vi virando-se para mim por alguns segundos, o leque em seu queixo, fazendo um simples movimento.
E, se nada daquele houvesse acontecido, se eu não lhe tivesse entregado o poema, se não houvesse ido até a igreja, talvez nunca em minha vida eu iria me sentir daquela forma. Totalmente extasiado de felicidade e alívio.
“Amo-te”.
1º de novembro, 1755. 9h03. Lisboa, Portugal.
Meu sono fora interrompido abruptamente diversas vezes por meus pensamentos ávidos. Senhorita pretendia matar-me de ansiedade e expectativa. Como ela, logo ela, uma mulher tão correta e pura, conseguira elaborar tal plano? Um plano que, se descoberto, poderia aniquilar todas as suas chances de casar-se com outro senhor?
Apenas o mero pensamento de vê-la nos braços de outro por um pequeno deslize meu, como não me levantar no horário previsto, fazia todos os meus sentidos ficarem alertas. Deveria ser discreto ao aproximar-me dela, visto que ela estaria acompanhada de seus pais.
Era o dia de Todos os Santos. Todos iriam às igrejas fazerem suas orações e zelar pela vida de seus entes falecidos. Se apenas uma pessoa notasse algo peculiar... Nunca, em toda a eternidade, me perdoaria se a deixasse vítima das críticas de nossa cidade. Senhorita seria descrita como obscena, imoral.
O quanto haveria senhorita de amar-me para pôr-se em uma situação de risco apenas pelo mero desejar de ver-me? Aquilo acalorava o meu coração e fazia-me, juntamente com o receio de perdê-la, ficar noite adentro imaginando os diversos cenários que aconteceriam em algumas horas.
A missa começaria às 9h30, porém não sabia se senhorita chegaria um pouco mais cedo para sentar-se em um lugar próximo à Sacristia. Recordando-me de como a conhecera, era provável que o fizesse. Optei, então, por só sair de minha casa alguns minutos após as oito da manhã. Não tardaria meu martírio e também não a faria esperar pela minha presença.
Assim almejava eu.
Senhorita
Senhor não apareceria.
Como haveria ele de aparecer, após tamanha infâmia de minha parte ao estar a sós com ele nos fundos da casa do Senhor? E, então, pedi-lo para repetir o mesmo feito no dia seguinte! Consideraria-me uma impura, relataria meu comportamento indevido aos meus pais e faria-me a vergonha e piada de Lisboa.
Meu maior anseio era estar enganada, no entanto, os fatos eram sólidos. As reais consequências de meus atos não se tornaram claras para mim até retornar em minha casa e sentar-me em minha cadeira favorita, envolta apenas de meus pensamentos. Onde estivera a minha cabeça? Fora encontrar-me sozinha com um respeitoso senhor, como pude eu ser capaz de utilizar-me das mensagens com o leque?
Aprendera aquilo durante minhas idas à casa dos Serrão, em que a primogênita, Maria Isabel, ensinara-me a como transmitir frases para outros, intencionalmente a homens, apenas fazendo simples gestos com o leque.
Fazia-o e gravara-o por puro divertimento, nunca sequer ponderando utilizá-lo.
E cá estava eu, aguardando o que se seguiria do uso daquela linguagem.
— Criança, o que te aflige? — ouvi a voz preocupada de minha mãe ao meu lado. Sua bíblia repousava no banco à nossa frente, estranhamente debatendo-se contra a madeira. Olhei atentamente para a cena incompreensível.
Em alguns segundos, era como se nada houvesse acontecido.
O Diabo havia me guiado a realizar minhas ações e agora pretendia iludir-me com falsas visões. Não o deixaria enlouquecer-me.
— Nada, mamãe. Estou deveras cansada. — o que não era uma balela. Afinal, estivera acordada até tarde da noite ponderando a gravidade do cenário que ocorreria em alguns minutos, se senhor sequer aparecesse.
Minha mãe tomou minha resposta como a única verdade e retornou seu olhar para a análise das pessoas que chegavam à igreja.
De súbito, uma sensação de temor envolveu minha mente. Se mamãe notasse senhor no recinto... Comentei casualmente com a senhora como a decoração para o dia de Todos os Santos estava bem arranjada naquele ano.
Minha preocupação, é claro, mostrava o fino fio de esperança que eu ainda carregava em meu coração.
Impulsivamente, minha cabeça virou-se para a majestosa porta da Igreja do Carmo, meus olhos atentos a qualquer rosto familiar, com um chapéu polido, bem tratado, apesar de ser um dos únicos chapéus que possuía.
— Estás certa, minha querida. Que belíssimas orquídeas.
Estivera prestes a concordar com um simples murmuro quando fui interrompida pelas batidas apressadas de meu coração ao pé de meus ouvidos. Comprimi um sorriso, como há muito tinha aprendido a fazer em sua presença, ao repousar meus olhos em seu rosto preenchido por perspectiva do que viria a acontecer.
— Sim, mamãe. — ela não notara a demora em minha réplica, muito menos o meu discreto retorno para a posição original de meu olhar.
Senhor viera. Senhor amava-me!
— Mamãe, dai-me licença, se faz favor. Antes de a missa iniciar-se, irei encontrar-me com a freira Julieta. — falei assim como planejara. Senhora afirmou com a cabeça, pedindo-me cautela ao seguir meu caminho, e levantei-me do banco, agarrando meu leque rendado e preto.
Discretamente encontrei o olhar de senhor em mim. Repeti um dos movimentos que havia feito no dia anterior, o leque segurado com a mão direita em punho em frente ao meu rosto.
“Siga-me”.
Senhor
Senhorita trajava um vestido com um tom de rosa claro, rendado de branco ao redor de seu pescoço, no final das mangas e na bainha da saia. Era simplesmente magnífico. Suspeitava que a cor não houvesse sido intencional, no entanto, se fosse, havia um significado puro e incontestável.
Amor.
Enquanto a seguia de maneira a não ser notado, frases soltas ecoavam em minha mente, formando o que poderia ser, talvez, o meu mais expresso clamor por senhorita .
Mostrar-lhe-ia as flores, se tu já não fosses banhada e embelezada por elas
Mostrar-lhe-ia a alegria, se tu já não a tivesses só para ti
Mostrar-lhe-ia o meu coração, se tu já não o tivesses furtado”
Ao abrir a pesada porta, pareceu-me que a maçaneta de ouro maciço tremera sob o meu toque. Até os objetos inanimados sabiam o estado deplorável de aflição que eu me encontrava.
À minha frente, em quiçá uma miragem minha, estava senhorita , no exato local em que ela revelara que me amava. Um largo sorriso estava em seu rosto, talvez o mais bonito que eu veria em toda a minha mundana vida.
— Viestes. — ela sussurrou em uma só respirada, como que de alívio. Como ela duvidara que eu encontraria-a?
— Dizes-me que me amas, que lhe conquistei, que deseja ver-me novamente. Senhorita , tua dúvida é um tanto quanto irracional. — permiti-me aproximar-me dela, vendo-a notar que eu estava caçoando de sua preocupação. Ela manteve-se calada ao também notar que minha aproximação havia sido o mais perto que já havíamos chegado de nos olhar.
Se estendesse meu braço, poderia sentir o calor de sua pele em meus dedos.
— Sabes bem o porquê de minha dúvida existir.
— Nunca a julgaria daquela tenebrosa forma, amo-a demasiadamente para isto.
Fora a primeira vez que eu havia dito o que há muito sentia e o que eu presumia que senhorita já soubesse. Contudo, a surpresa em seu rosto chocou-me. Subitamente senti a vontade de tocar em sua bochecha, afastando qualquer pensamento incerto sobre os meus sentimentos. Contive-me.
— Amas-me? — seu tom, ao mesmo tempo admirado e abismado, espantou-me ainda mais. — A sério?
Com o que eu havia de coragem em meu interior, segurei sua mão direita, diminuindo ainda mais a nossa distância. Não pude deixar de pensar o quanto aquele encaixe parecia ser perfeito.
— Mostrar-lhe-ia o caminho, se tu já não o soubesses — utilizei-me de meu melhor tom ao recitar os precários versos que me vieram à cabeça, tentando recordá-los. Observei atentamente a forma com que os seus fios caíam sobre o seu rosto, o contorno de seus lábios, a faísca de seus olhos. — Mostrar-lhe-ia as flores, se tu já não fosses banhada e embelezada por elas — levei sua mão à minha boca, dando-lhe um delicado beijo e sentindo as mais diversas sensações passarem pelo meu corpo. Ouvi-a engolir a seco, provavelmente tendo em seu pensamento, assim como eu, como aquele toque íntimo embrulhava o estômago. — Mostrar-lhe-ia a alegria, se tu já não a tivesses só para ti — senti as feições de meu rosto se acalmarem, em uma súbita serenidade. Mantive sua mão à altura que usei para beijá-la. — Mostrar-lhe-ia o meu coração... — abaixei sua mão em direção ao meu peito, repousando-a em cima de meu coração. Disse a última sentença em um tom mais baixo. — Se tu já não o tivesses furtado.
Apesar de como eu poderia tê-la em meus braços sem o menor esforço, ela levantou o leque que segurava com a outra mão, pondo a alça deste sob os seus lábios.
“Beija-me”.
Houve um breve instante em que pensei que eu havia interpretado mal àquele gesto, confundido-o com outro. Não, era impossível que senhorita tivesse acabado de pedir para que eu a beijasse. Hesitei, de fato, pois se eu estivesse correto e alguém nos visse...
Para os infernos. A única pessoa que existia em meu privado mundo, com os meus olhos refletidos em seus olhos, era senhorita .
E como eu cobiçava seu beijo.
Tirei sua mão de meu aperto, direcionando ambas as minhas mãos para as suas delicadas bochechas. O leque já havia sido abaixado. Tendo um breve vislumbre de seus olhos fechando-se, puxei seu rosto para perto do meu, meus lábios procurando por sua boca, desejando-a.
Foi quando tudo ruiu.
O chão sob os nossos pés subitamente era feito de areia, a terra sendo puxada para todas as direções possíveis. As paredes, do mais caro mármore, começaram a desmanchar-se, formando rachaduras. O susto nos fez paralisar, e meu primeiro instinto foi puxar o corpo de senhorita para perto do meu enquanto podia.
Vozes gritantes perfuravam nossos ouvidos, vindos de dentro da Igreja do Carmo, que nunca veria mais uma missa. O terror nos assombrava, tomando o espaço de todas as outras emoções em nossas almas. Corri com senhorita em meu aperto para fora do edifício, cambaleando, incerto de qual seria o caminho. Era um labirinto sem fim e instável. Não poderia passar pela porta em que viemos sem que nos vissem.
Em meio aos gritos, ao horror, a voz de senhorita fez-se presente. Estava fragilizada.
— Por ali! — ela apontava para uma porta no final do corredor que entrara.
Os vidrais que cobriam aquele corredor partiram-se em inúmeros pequenos pedaços, chovendo em um festival de cores em nossas cabeças. Apanhei rapidamente meu chapéu e o pus em senhorita , segurando firme.
O tintilar do vidro ao cair no chão soaria poético, se os Santos não nos tivessem nos agraciado com suas iras.
Quando abri a porta que ela havia apontado, a frequência do terror aumentou consideravelmente. Os pedintes vociferavam contra os céus, as pessoas corriam sem rumo para algum lugar seguro, que não caísse sobre elas. Algo atrás de mim exaltou-se em um estrondo. Tentei apertar senhorita contra mim, porém apenas senti o ar.
Arregalando os olhos, olhei para trás, para onde eu sabia que senhorita estava em pé, encarando o horror que assombrava nossa cidade.
Entretanto, o que encontrei foi, pouco atrás da porta, senhorita estendida no chão.
Um urro saiu de minha garganta, animalesco. Parte da parede direita havia cedido, pesada e mortífera, e alguns resquícios dela haviam encontrado a testa da minha dama, perfurando-a como um delicado beijo. Seus esbeltos olhos estavam abertos, sem nenhum brilho, encarando-me.
Pouco me importava se a porta cedesse sobre mim — naquele ponto, eu queria que ela o fizesse. Joguei-me contra o corpo sem vida de senhorita , as lágrimas banhando o meu rosto como a repulsa fazia com a minha alma.
Mea culpa.
Ajoelhei-me junto a ela, sentindo tudo rodar embaixo dos meus pés. Peguei em sua mão, sem o seu calor, sem o seu espírito, e depositei ali um último toque de meus lábios, que pareceu demorar uma eternidade. Não sabia se tremia por conta do chão ou se por conta de meu choro intenso. Levei meus dedos até os seus olhos, fechando-os. Após isso, ergui-a em meus braços, tirando-a daquele inferno.
O leque balançava em seu pulso e o sangue, vermelho como o meu ódio, escorria por seus olhos, nariz e boca. Não pude limpá-lo devido à determinação com que corria pelo mar de seres humanos desesperados, em busca de um local de repouso para a minha dama. Todavia, o que captava meu olhar eram casas indo a baixo, famílias sendo despedaçadas.
Corações sendo despedaçados.
Meu coração sendo despedaçado.
Mea culpa.
1º de novembro, 1765. Porto, Portugal.
Tive que deixá-la à mercê de Deus quando, em um mais profundo abalo, desequilibrei-me e ela caiu de meus braços. Ao abaixar-me para puxá-la novamente para mim, o máximo que agarrei com minha mão foi seu leque, porque logo fui empurrado pela multidão, perdendo seu corpo de vista.
A imaginária imagem dela sendo pisoteada por lisbonenses sem pudor algum assombrava minhas noites.
Todos os que restavam, infelizmente incluindo a mim, alojaram-se no porto. Foi quando a grande onda veio. Ao notar o recuo do mar, minutos antes, tentei alertar aos que estavam perto de mim. Os farrapos de minhas e das roupas de todos tornaram-nos iguais. Alguns tomaram minhas palavras e seguiram-nas; afastamos-nos o máximo que pudemos.
Após a chegada dos barcos que nos levariam para longe de Lisboa, e também após a calmaria do mar, nunca ansiei tanto estar morto. Olhava ao meu redor e via apenas os afortunados casais que sobreviveram ao castigo dos Santos.
Meu pensamento não saía do olhar morto de senhorita sobre mim.
Seu leque dizia-me que, por algumas horas, eu fora o mais feliz dos homens.
Quando íamos para o norte do país, espalhou-se pelo convés que um grande incêndio havia alastrado toda a cidade de Lisboa, destruindo e determinando o seu fim. Por quatro dias suas chamas iluminaram os céus.
D. José I, rei, e Marquês de Pombal, primeiro-ministro, reconstruíram Lisboa em menos de um ano após o dia 1º de novembro. Um tempo relativamente curto para tamanho desastre, assim acreditavam todos.
O que eu acreditava e me importava era que nunca poderia visitar o túmulo de senhorita .
Entretanto, se fosse possível, juntaria o que restava de meus trapos e ofereceria-lhe uma begônia, representando nossa inocência. Depois, ofereceria-lhe uma cravina, representando sua perfeição. Também ofereceria-lhe um cravo branco, representando nosso puro amor.
Por último, se ainda restassem dúvidas, ofereceria-lhe um crisântemo vermelho, representando o quão profundamente eu a amava.
O verdadeiro desafio sempre seria reconstruir as ruínas remanescentes da minha alma.
Da onde me sento apenas a tua ausência reparo
Por mea culpa, senhorita
Não ouvistes minha canção de fiel e eterno amor”
Fim
Nota da autora: Eu descobri sobre esse terremoto quando eu tinha uns nove anos. Minha tia-avó estava lendo um livro sobre esse incidente e eu fiquei um tanto curiosa. Nunca passou pela minha cabeça que eu iria usar o que ela me disse somado com o que encontrei pela internet em uma shortfic que, para ser bem sincera, foi uma delícia de escrever.
Sobre a linguagem do leques, eu não criei! Ela realmente existiu. Isso eu descobri visitando um museu, quando a guia mostrou um dos leques usados por uma rainha. Eu deveria ter onze anos, e não me lembro absolutamente nada das mensagens e gestos que ela falou. Também agradeço ao Google.
Sei que não reproduzi como um homem do século XVIII (ou mulher) escreveria, mas... Amei participar desse especial!
De qualquer forma, espero que você não tenha morrido de tédio com essa shortfic no estilo aula de história! E também que tenha gostado <3 Qualquer comentário vai fazer o meu coração se encher de amor, que nem o do pp. Aliás, quero esse pp para mim, já avisando.
Beijos no core iluminado de vocês,
Caroline.
Outras fanfics minhas:
12. Tomorrow (Ficstape #060: Olly Murs - Never Been Hurt/Finalizada)
03. Where Do Broken Hearts Go (Ficstape #003: One Direction - Four/Finalizada)
His Phonecall (Outros/Shortfic)
The Moon (Outros/Finalizada)
Sobre a linguagem do leques, eu não criei! Ela realmente existiu. Isso eu descobri visitando um museu, quando a guia mostrou um dos leques usados por uma rainha. Eu deveria ter onze anos, e não me lembro absolutamente nada das mensagens e gestos que ela falou. Também agradeço ao Google.
Sei que não reproduzi como um homem do século XVIII (ou mulher) escreveria, mas... Amei participar desse especial!
De qualquer forma, espero que você não tenha morrido de tédio com essa shortfic no estilo aula de história! E também que tenha gostado <3 Qualquer comentário vai fazer o meu coração se encher de amor, que nem o do pp. Aliás, quero esse pp para mim, já avisando.
Beijos no core iluminado de vocês,
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