Capítulo Único
Acordo em meio a pessoas das quais não me recordo em uma sala igualmente desconhecida. Tudo do que me lembro são pequenos flashes da noite passada, nada esclarecedor. Minha cabeça lateja assim que me levanto do sofá-cama improvisado, tomo cuidado para não acordar ninguém e encontro uma latinha de cerveja pela metade, que acaba sendo finalizada por mim, mesmo estando quente para os meus padrões.
Como se eu já estivesse estado ali, acho o banheiro sem dificuldade e passo alguns instantes me observando no espelho: se eu tinha olhos de cigana oblíqua e dissimulada, não sabia. Mas era fato que naquele momento eu tinha os tais olhos de ressaca. Passo os dedos pelos nós de meus cabelos e espero que isso seja o suficiente para voltar para casa. Meus coturnos e minha blusa de frio estavam ambos na sala de estar, e me visto silenciosa – não que qualquer um presente naquele local fosse dormir por menos de doze horas –, pronta para enfrentar o frio matinal de uma São Paulo outonal, e deixo o local.
As ruas estão vazias – vez ou outra encontro alguém pronto para ir ao trabalho ou algum morador de rua – e não demoro a encontrar uma estação do Metrô. Passo meu cartão na catraca, percebo que aquela seria minha última passagem antes que o crédito acabe e praguejo mentalmente – como se minha vida já não estivesse uma merda completa. Me apoio no lado direito das escadas rolantes e espero pacientemente a chegada à plataforma, onde já há mais pessoas do que na rua – ou seja, o metrô está com velocidade reduzida. Não me considero sortuda, porém o trem não demora a chegar à plataforma, sua chegada anunciada pelo barulho férreo e um vento intenso. Torço para que esteja vazio, afinal, não me aguento em pé – pela primeira vez em algum tempo, parece que o Universo me escuta: o vagão está vazio, exceto por dois caras que parecem estar tão na merda quanto eu e uma senhora com muitas sacolas. Me encolho no assento da janela, sem que haja nada para ver exceto os túneis escuros e, regularmente, as estações. Só me dou conta que estou segurando o choro quando sinto as lágrimas quentes escaparem de meus olhos.
São Paulo – Março de 2016
Aquele não era nosso primeiro encontro. Nem segundo ou terceiro. A vida sempre dava um jeito de unir e . Nos conhecemos no cursinho pré-vestibular, entramos na mesma instituição, campus diferentes. Mas a vida sempre dava um jeito de fazer com que nos encontrássemos por aí. Uma semana atrás, ele me chamou no WhatsApp, após ver que estaríamos no mesmo show. Íamos sozinhos, mas de repente o acaso nos uniu, como sempre. Nos encontramos na Estação Pinheiros e dali seguimos até a Vila Madalena, onde seria o show dos Sans-Culottes.
Nossa relação era fria: eu não conhecia as inseguranças de , não sabia o nome de sua avó e sequer tinha noção de seu signo, apesar de apostar que fosse aquário. Nossa relação fria nunca passou de ficadas casuais toda quinta, no período das aulas de inglês do cursinho (aula essa que matávamos) e, depois, de ficadas casuais toda vez que nos encontrávamos em algum lugar onde não havia pressa. O nosso relacionamento não tinha amarras, não tinha amor, mas eu me apaixonei. Eu e não namorávamos, mas eu montava playlists para ele. Nós não namorávamos, mas eu fiz seu bolo favorito apenas para deixá-lo feliz. Ele não retribuía meu carinho, mas eu entendia que era seu jeito. Eu que sentia demais.
Quando chego em casa, a primeira coisa que faço é tomar uma aspirina. Não sei ao certo que dia é hoje – arrisco domingo –, mas isso não importa: não há dia santo para mim, não há descanso. Preciso seguir à risca meus novos hábitos para que não haja espaço para em minha mente e isso consiste em estar chapada o tempo inteiro. Tenho estado no piloto automático, festejando infeliz em todos os bares e baladas da cidade e bebendo vodca na minha garrafa de água durante o horário de aula. Eu estou destruída, sabe. Ele sabe, mas não se importa.
Lavo meu rosto, troco minha blusa e melhoro minha aparência passando algumas camadas de rímel, afinal, não perdi toda a minha dignidade. Escondo uma marca de chupão em meu pescoço com corretivo e minha habilidade com maquiagem se encerra na hora de passar batom. Mudo de roupa algumas vezes antes de finalmente chamar um Uber. A festa que irei dessa vez é do outro lado da cidade, bem longe de casa. Tenho ido cada vez mais longe, como se ver pessoas diferentes fosse me mudar. Como se eu fosse encontrar longe de casa alguém que me amasse. Como se, estando longe de casa, fosse finalmente sentir minha falta.
O sempre foi seco. Raramente nós conversávamos sobre coisas bobas, sobre nós. Nossas conversas eram sobre os assuntos das aulas e nada além disso. Ele nunca se esforçou para me conhecer, mesmo que eu me entregasse de bandeja. Eu sempre perguntava sobre ele, que respondia sem jamais questionar de volta. Eu sabia tudo sobre ele, mas ele nunca fez questão de saber nada sobre mim. Ele apenas me beijava, pegava na minha bunda e me fazia chorar, porém, eu que me apego fácil. Ele nunca quis nada sério.
Desço do Uber na estação de trem, onde compro dois bilhetes e ligo para Carol, uma garota que conheci ontem. Ela e as amigas me encontrarão na Linha Verde e de lá seguiremos para um bar onde um amigo da prima de uma delas trabalha. Eu não me importo, só preciso ver gente e ter alguém do meu lado. Na transferência da Estação Paulista para a Estação Consolação, penso ter visto o pelo menos três vezes. Desde que ele sumiu da minha vida, deixando minhas mensagens sem resposta e ignorando meus pedidos de atenção, vejo seu rosto em qualquer cara que tenha o cabelo castanho e volumoso. Olho assustada para esses caras, os encaro quando não tenho certeza do que estou vendo, como naquelas cenas de delírios dos filmes, onde a personagem vê coisas irreais. Me tornei um maldito clichê do cinema norte-americano.
Quando finalmente encontro as garotas, elas estão falando coisas sobre as quais não tenho a menor ideia, então apenas as acompanho até chegarmos no lugar. Fumo um cigarro e caminho pelos arredores do local, para só depois entrar e me reunir com elas. Começo minha tarde com cerveja e me arrisco na sinuca. Depois disso, mais um coquetel desses de burguês, afinal, graças ao tal amigo da prima, temos um desconto. Eu não estava completamente sóbria, então não demora para que o álcool finalmente faça seu efeito. Sorrio mais fácil, me aproximo das pessoas. De repente, não é uma má ideia comemorarmos a noite com um shot de tequila. O álcool queima minha garganta, mas me faz me sentir viva. Eu estou rindo fácil, todas estamos. Decidimos que podemos ir em outro bar da vizinhança, acompanhadas por um daqueles pseudo-lenhadores brasileiros, que nunca nem pegaram em um machado na vida. Atravessamos a rua correndo, deixando alguns motoristas furiosos buzinando. Estou feliz, me sinto quente e viva, como se nada fosse capaz de me deixar para baixo.
Ao entrarmos nesse outro bar, peço mais um dos drinques gourmetizados, com folhas de não-sei-o-quê na vodca não-sei-de-onde. Desce como água e eu só sinto uma leve tontura ao levantar. Uma das garotas que não conheço se aproxima e me beija, coisa que não impeço. Não é como beijar , mas ainda é um beijo. Dou uma gargalhada e voltamos a beber e flertar com caras aleatórios. Eu danço, rio, bebo muitas doses de muitas bebidas, mas por fim o meu coração partido se mostra presente e faz com que minha garganta feche e meus olhos encham d'água. Corro até o banheiro e me tranco numa cabine, onde choro a plenos pulmões. Choro soluçando, como uma criança. Choro sem me preocupar em disfarçar toda a saudade que finjo não sentir. Não houve nada real entre e eu, mas minha mente parece fantasiar inúmeras lembranças românticas de nós dois. Sofro por um relacionamento que existiu apenas na minha cabeça e isso chega a ser absurdo, até para mim. Na ficção, o cara problemático sempre se apaixona pela garota, mas a minha vida não é uma maldita ficção e obviamente o cara problemático não dá a mínima pra mim.
Quando saio do banheiro, bebo mais uma cerveja e me agarro às primeiras pessoas que vejo, sem distinção de gênero ou idade. Deixo que garotas me toquem enquanto beijo caras que não conheço e que nunca mais verei novamente. Deixo que esses caras me toquem enquanto beijo essas garotas que não me verão depois dessa noite. Deixo que o álcool e os beijos de desconhecidos me confortem por um momento antes de eu precisar encarar minha vida real, onde não há abraço ou palavra amiga que me conforte. Eu sofro por me apegar muito rápido, sofro por me apaixonar mesmo sabendo que não é recíproco e não há nada que eu possa fazer com isso. Eu sinto a dor do coração partido que ansiava por tudo que nunca viveu, como se todas as expectativas tivessem se transformado em arame farpado e me dilacerassem aos poucos. Nós rimos, trocamos os copos. Um dos caras acende um baseado que dividimos. Eu bebo mais e não sinto mais o coração partido. Eu bebo mais e deixa de existir ao menos nessa noite.
Quando acordo, não lembro como cheguei em casa. Meu estômago e minha cabeça doem, sinto uma puta tontura quando me sento na cama. Como é de costume, checo as mensagens antes mesmo de me levantar e, entre mensagens perguntando sobre as atividades em sala de aula, nudes não requisitados de caras dos quais não me lembro, um nome se destaca. Eu nunca apaguei seu contato, nunca troquei o toque personalizado, nunca apaguei nosso histórico de mensagens.
: Oi
: Como vc tá?
: Tô com saudade de vc...
Eu desperto completamente e, por mais que a razão me dissesse para ignorar aquilo, afinal, eu já sabia o que viria depois, o coração é mais rápido. Abro a conversa e respondo.
: Eu tbm tô... Vc não sabe como eu senti sua falta.
Fim.
Nota da autora: Infelizmente, me inspirei em acontecimentos reais pra escrever essa história. Isso tudo aí em cima é relacionamento abusivo e só hoje, algum tempo depois de viver algumas situações bem parecidas que eu compreendo o quão doentio é estar com alguém que te põe para baixo. Nunca se deixem confundir amor por veneno. Amor é paciente, amor é liberdade. Amor é tudo o que faltou nessa história. Beijos e até a próxima!
Outras Fanfics:
Maîtresse-em-Titre (Restritas/Outros - Em Andamento)
02. Twice (Ficstape Catfish and the Bottlemen - Finalizada)
15. Eddie's Gun (Ficstape The Kooks – Finalizada)
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