conter12

Homecoming XXI — Special Projects:

(Oito meses desde a queda dos Vingadores — segunda-feira.)

— Futura Sra. Stark, pode prender a respiração um pouco?
O sorriso que floresceu no rosto de Virginia Potts pode iluminar o mundo e eu preciso respirar fundo para controlar o meu, imaginando se meus olhos brilham tanto como os seus. Semelhante aos filmes que assistimos e as amigas da noivas caem no choro ao vê-la com seu vestido, estou sobrecarregada com os sentimentos que surgem na superfície. Tudo o que consigo pensar é em como Pepper parece um anjo ao ser adornada com os outros detalhes do vestido e como seu sorriso não falha vez alguma, mesmo que tente manter a sua pose de desconcerto com toda a situação e atenção sobre ela.
Conheço a história de minha mãe, seus pais e toda a sua família. Sobre como eram extremamente religiosos e a expulsaram de casa no minuto em que Pepper se recusou a casar com um qualquer aos dezesseis anos para dar continuidade a sua educação e como tem se virado com tudo isso sozinha desde então; apenas contando com visitas rápidas de sua mãe enquanto o pai não estava presente. Logo veio estágio na Stark Industries aos vinte e quatro anos, a promoção para secretária de Tony e a consequente ascensão para a cadeira de CEO da empresa. E como não tinha tempo para muito além de garantir um futuro seguro e até se esqueceu de que uma vida social era importante. Enquanto tomávamos café e Tony pegava as chaves do seu carro para “ir dar uma volta” e arrastava um Peter sonolento consigo, Pepper comentou sobre ter algumas colegas para a acompanhar, porém a minha presença e opinião seria mais que necessária para que tomasse as decisões certas.
Fico de pé no instante que Pepper estica a mão para mim do pódio onde está de pé.
— Você está linda, mãe. — Garanto-lhe sorrindo da mesma maneira e sentindo quando aperta minha destra com força e sua mão treme um pouco, olhos fechados quando o corset é enlaçado. O seu dedo desliza pela costa da minha mão e eu faço o mesmo com a sua, essa sendo a minha primeira vez lhe confortando. A costureira atenciosa, o designer e seus ajudantes estão sorrindo um pouco também. — Eu estava pensando e por que exatamente o Tony não pode ver você com o vestido? — Indago e Potts ri, o peito vibrando e o aperto em minha mão diminuindo. O vestido não é o oficial, sendo apenas um teste para a escolha do modelo que deve ser preparado.
— Superstições à parte, acho que deve ser pelo suspense, meu amor — Seguro suas mãos com as minhas, tentando lhe acalmar quando vejo que uma agulha está bem próxima a sua pele e eu detesto as probabilidades de ela não a machucar. Pepper teme agulhas. “Na minha opinião o momento em que a noiva adentra a igreja ou o local onde ocorrerá a cerimônia, é mágico!” Olho para uma das costureiras com sotaque francês que retornava com a saia do vestido e nós duas confirmamos com a cabeça. Deve sim ser um momento mágico. — Eu nem consigo imaginar... — Ela divaga e eu solto a ponta de seus dedos, tendo de me afastar para que lhe vistam na saia. Pepper suspira quando abre os olhos azuis e busca meu reflexo no espelho enorme que foi enfiado no quarto do casal. Estou me virando de costas quando sua voz soa: — ! Eu pensei que você já estava com o seu vestido!
É a minha vez de suspirar, afinal eu realmente já deveria estar experimentando os vestidos que foram confeccionados como exemplos para mim e que estão descansando em um divã. Posso ver quando Eleanor e Ava, as duas ajudantes que deveriam estar me enfiando em um vestido, me olham como que diz “Não avisei?” e Claire complementa com um “Todos avisamos”. Eu ergo as mãos para poder dizer algo ou inventar alguma desculpa mas Burton — o designer secundário da marca — já está precisando segurar Pepper em seu pódio pois ela quer descer dele, me esconder atrás do biombo negro e me enfiar dentro de um vestido. Eleanor apenas balança a cabeça e segura em minha mão enluvada devido a presença de estranhos e minha aversão a ler seus pensamentos, e ela me leva a contragosto para o outro closet gigantesco atrás de nós e Pepper acompanha toda a saga pelo espelho antes de voltar a sua posição inicial.
Foi uma experiência traumática permitir que Eleanor e Ava me examinassem e tirassem as minhas medidas para escolherem o tamanho certo, principalmente devido às muitas cicatrizes em meu corpo. Algumas são em minha costa, além do hematoma que uso meus poderes para camuflar de seus olhos curiosos, mas ainda tem o curativo em minha coxa e outras cicatrizes em meus joelhos e cotovelos. Contudo, se elas se assustaram com elas, foram gentis o suficiente para não comentarem nada, ao contrário de Zuhair que estava maravilhado com outra coisa. “Srta. Potts, a sua filha tem proporções incríveis!” E Pepper apenas confirmou tudo, sorrindo como sorriu por não questionaram o meu título de sua filha, por mais que não nos pareçamos em nada.
O primeiro vestido que elas me fazem vestir é verde escuro, quase esmeralda, com uma saia longa que se inicia logo acima de meu umbigo e desliza em seda até o chão. Várias jóias e rendas delicadas adornam o corset, as mangas são caídas em meus ombros e um casto decote revela parte de meus seios. Ainda estou estudando o vestido quando percebo que estou no closet de Tony, cheiro do seu perfume dominando o local e me fazendo respirar fundo quando Claire autoriza pois já abotoou o vestido. Eleanor move os dedos rapidamente e com delicadeza pelo meu cabelo, lançando uma trança rústica por meu ombro. Mal consigo me reconhecer ao olhar para o espelho encostado na parede.
! — Pepper chama do outro cômodo. — O que achou? É o verde? — Seu nervosismo transparece pela preocupação excessiva com os detalhes, mas ainda assim estou sorrindo só por ouvir a sua voz.
— Ele é lindo, mas — Respondo, sentindo o tecido macio deslizar por minha luva. — Parece com o safira da Zimmermann que você gostou, lembra? — A semelhança dos vestidos é mais óbvia ao mencioná-la em voz alta e eu aperto os lábios. A resposta não parece agradar a Zuhair quando aparece no vão da porta e me ronda por algum tempo, agora que mais assistentes trazem um pódio para mim. — E isso — Toco o corset de tule, sentindo-o melhor quando removo a luva de minha mão direita e meus dedos navegam pelas montanhas de esmeraldas. — Não me agrada muito com a seda. — O olhar especialista do designer me deixa nervosa e ele toca em meu ombro nu, arrepiando minha pele, pois não gosto nem um pouco do toque de desconhecidos em mim, principalmente homens. Ao perceber, segura em minha trança com cuidado. — Não acho que deveria ter algo chamando mais atenção do que a seda, sabe? — O questiono e sinto-me vitoriosa quando ele assente com os lábios apertados em um beicinho. — Fica muita coisa junta.
— Tem um bom olho para isso, anjo — Ele alisou a saia do vestido, ficando de joelhos. — E eu sei qual esse Zimmermann que mencionou, ele é impecável! — Dá um sorriso sincero ao pedir que as suas assistentes se aproximem. — Um verde esmeralda assim não combina muito com ela, estão vendo? Ela tem um rosto muito jovem e — Ele toca em meu queixo, o erguendo. — Não vai combinar com o tom de pele da se ela não usar uma tonelada de maquiagem. Não é o tom dela. — O cuidado alheio é bem-vindo e eu o observo enquanto redireciona suas assistentes para outro modelo de vestidos. Ele vira de costas para que Eleanor me vista em um roupão de cetim cor-de-rosa.
É quase impossível querer que entendam o que estão fazendo neste exato momento, então não digo, pois é difícil que compreendam que estão selecionando vestidos de luxo que custam o preço de carros para alguém que estava acostumada a usar uniformes velhos e imundos. E que eu, apesar de ter uma opinião que Zuhair considera boa, ainda tenho dificuldade em entender que Pepper e Tony acreditem que eu mereça isso. Mas não permito que os pensamentos obsessivos me atinjam, desejando nada mais do que uma perspectiva boa em relação ao meu futuro e esquecer meu passado, por mais obscuro que ambos possam parecer. Me sinto em uma poltrona enquanto Claire usa uma chapinha em meu cabelo para manter as curvas da trança quando a retirar, a fim que eu possa ver os vestidos e como ficarei neles de cabelo liso. Estou calçando os sapatos indicados quando me avisam que chegaram mensagens em meu celular e Ava me entrega o aparelho.

Peter Parker
online

O Tony me forçou a experimentar um terno de trinta mil dólares.

Me diz que está na mesma.

Vestido de 18 mil. E sapatos caríssimos e que, acredite, são péssimos para andar.

Está gostando dos vestidos? O Tony tá meio preocupado de você se sentir sobrecarregada e, pra ser sincero, eu também estou.

Eu estou bem, não se preocupem. É só meio estranho. Aconteceu uma coisa chata da última vez que fui em uma dessas lojas de luxo e estou meio receosa ainda.

Fora que nunca deixa de ser estranho gastar tanto dinheiro com roupas.

Podemos conversar sobre essa coisa chata quando eu chegar, se você quiser. Foi no dia do acidente, não foi?

Nós vamos voltar em algumas horas. Ainda pedi para ir no apartamento pegar meu material e pagar o aluguel para o senhorio.

Podemos sim. Obrigada, Pete :)

Ah, avisa o meu pai que eu ia gostar muito de uma barra de chocolate daquela loja que ele gosta na Fifth Avenue. Com amêndoas.

O Tony disse: “ainda bem que ela queria e não quer”.



Ainda estou sorrindo para a tela do celular quando Peter envia uma foto de Happy dormindo em uma poltrona e Rhodey discutindo com meu pai enquanto segura uma garrafa de champagne. Salvo a foto em minha galeria quando Zuhair chama meu nome, surgindo novamente com um vestido, uma caixa de jóias e um sorriso enorme e cúmplice com suas funcionárias. O vestido que me ajudam a colocar é pesado, as centenas e talvez milhares de pedrarias sobre ele dando o peso necessário para acomodar e moldar-se em meu busto. Ele é magnífico e em tom creme ainda que rosado, só o suficiente para não parecer o branco do vestido de Pepper e as pedrarias são um dourado quase rosê, distanciando-me um pouco mais do branco da noiva. Não há decote e eu me sinto confortável com a peça e com a capa de tule levíssima sobre meus ombros que funciona como a manga, tão elegante e sofisticada que não é algo que imaginei vestir um dia. As pedrarias e os brilhos se concentram mais no busto e somem com o alongar da saia e do tecido da capa, de forma que todo o brilho não é chamativo demais. São quinze ou vinte minutos até que Eleanor termine com o penteado em meu cabelo, porém estou concentrada demais no espelho.
A criatura refletida parece vinda de outro planeta. Um planeta onde a pele brilha como diamante lapidado e, aparentemente, onde fazem roupas a partir de jóias e tecidos leves como o ar. O mínimo de movimento faz o brilho da sequência de luzes no teto cintilarem contra as pedras. Estou radiante e, por um instante, todos olham fixamente para mim. Quando Eleanor se abaixa aos meus pés e me pede para calçar o salto da mesma cor do vestido, tudo parece ser demais. Sinto que estou sufocando quando Zuhair me chama, um sorriso gigante de aprovação em seu rosto ao me apressar para ir até o closet de Pepper.
— Oh, Pepper... — Não consigo elaborar nada além disso.
Não sei o que lhe dizer pois eu somente me apresso em sua direção, ainda com o apoio de Ava para não cair devido ao tamanho exagerado dos saltos. Pepper é a noiva mais linda que eu pude imaginar e eu não ouso tirar meus olhos de sua figura monumental. Paro diante dela ao perceber que também está estática ao me ver, as mãos cobrindo seus lábios entreabertos pois ela parece uma princesa e se porta como uma. Ela está envolta em um vestido de noiva clássico em seda branca e pesada, com um decote quadrado e elegante, tão moderno quanto Pepper e tão sofisticado e igualmente clássico como ela. Há também um véu longíssimo que se estende pelo cômodo como uma trilha até um tesouro — até Pepper. A cintura é justa e não há detalhes com joias ou bordados, apenas intensificando a beleza do tecido, o longo cabelo loiro dela está preso e sinto que posso desmaiar. Pepper está impecável.
! — Ela sorri para mim, os olhos arregalados e o rosto um tanto rosado. — Você está tão linda! Parece uma modelo! — As costureiras e Zuhair não param Pepper em seu caminho até mim dessa vez, não quando ela se apressa na minha direção e estica as mãos para mim com os olhos marejados, mas não me toca. Como se o mais singelo toque pudesse me fazer sumir no ar. As mãos pairam diante de meu cabelo, ombros e todo o resto. Então segura em minhas duas mãos com força. — Querida, você está perfeita!
Dou uma risada engasgada quando me abraça e nos balança um pouco.
— A noiva aqui é você, mãe. É quem está mais linda entre nós duas. Em disparada. — Garanto-lhe, tomando cuidado para não amassar o seu véu ou qualquer outra coisa, evitando que as joias de meu vestido arruinem o tecido do seu. Seus dedos se fecham em meus braços quando nos afastamos e Claire oferece um lencinho para Pepper secar os olhos. Toco em seu ombro, sentindo a seda delicada escorregar por meus dedos e evitando vê-la chorar por mim outra vez. — Se continuar chorando, eu vou chorar também… — Provoco quando ela dá um tapinha em meu braço e me abraça de novo, um abraço quente e maternal como os seus sempre são e que tanto demorei para me acostumar.
A abraço de volta com a mesma intensidade, não me preocupando mais com as pedrarias e as rendas, apenas em sentir seu corpo mais próximo ao meu. Quero chorar de felicidade e contentamento, tanto por ela quanto por Tony. Tony que tanto havia lutado contra seus sentimentos e finalmente encontrou alguém com quem quer passar o resto de sua vida e em paz pelo máximo de tempo que puder. E por Pepper Potts, que mesmo lutando para esconder, está realizando um sonho ao casar com um vestido incrível e com uma pessoa incrível. Pepper e Tony poderão finalmente pertencer um ao outro. Sinto um lencinho deslizar para minha mão quando Zuhair funga e Potts toca em meu cabelo, o afagando cuidadosamente em nome das presilhas de Eleanor.
— Zuhair, já apresentei minha madrinha? — Ela indaga antes de beijar minha face, felicitando-me.
Os vestidos ainda precisam de muitas alterações até o casamento, o que significa mais reuniões com Zuhair e sua equipe de designers, mais jóias e a escolha dos sapatos. Quando Claire pergunta se pode tirar meu colar de abelhinha para, nos instantes que ainda temos, ver quais colares serão ideais e seu tamanho, de imediato os meus dedos estão sobre o colar e engulo em seco, ponderando como escapar da situação até que Pepper avise que o usarei no casamento se quiser. E também mencionar que não há necessidade de removê-lo pois eu havia lhe recebido de presente há pouquíssimo tempo. Não tenho chances de questionar como ela sabe, afinal não lhe contei ainda sobre ele ou sobre Peter, mas me conforta saber que não precisamos comunicar cada detalhe pois ela entende-me bem. Pepper experimenta mais alguns vestidos, comentando que havia encomendado tantos pois não sabia qual ficaria melhor apesar das dicas valiosas de Zuhair. Somente quando Ava questiona o que acontecerá com os outros vestidos feitos a mão pelo estilista e que não serão selecionados para a próxima fase de provas, é que ela conta sobre seus planos de leiloá-los e doar o dinheiro para caridade.
E, considerando os valores absurdos que Murad cobra por seus vestidos, e que alguém como ela os usou em algum momento e considerou casar-se como eles… É uma boa campanha solidária. Zuhair comenta sobre socialites e umas estrelinhas de Hollywood que imploraram de joelhos por uma sessão com ele, mas que estaria ocupado demais com o que apelidou de “Casamento do Século” e como distrações não seriam bem-vindas, umas vez que o vestido de Pepper será único. Assim como o meu que, aparentemente, não será o que já foi escolhido por mim, mas uma versão remodelada, com mais detalhes e produzido só para mim. Nunca haverá outro igual, o estilista garantiu sonhador. Não compreendo como a alta-costura funciona ou imagino quantas outras provas ainda teremos, mas sei que Tony realmente não poupará um único centavo neste casamento e nós somos as provas vivas.
Pepper se desculpou com Zuhair e sua equipe algumas vezes por precisar realocá-los do Líbano esses dias e principalmente pela situação em que Nova Iorque se encontra e tantas catástrofes em tão pouco tempo. Antes mesmo que eu possa deixar o cômodo para evitar ouvir sobre os acidentes, ouço vozes e risos no andar de baixo, indicando que meu pai havia retornado após quase oito horas seguidas. Não entendo de primeira o motivo do alarme de todos os funcionários ou de Pepper, que começa a remover os brincos e pede que garantam que a porta está trancada. Bom, isso até lembrar-me que Tony não deve vê-la vestida de noiva ou o seu vestido até o dia do casamento. E o conhecendo bem, é óbvio que ele não acredita nas superstições ou sequer se lembra delas, o que acaba motivando-me a levantar a saia do vestido, chutar os saltos apertados para longe e correr para fora do quarto dos dois. Pepper dá um grito, chamando meu nome para que eu não corra com a perna machucada ou vá cair na escada, mas no meio do caminho escada abaixo eu a ouço rir e sei que não estou encrencada.
— Pai! — O chamo alarmada ao continuar descendo, cuidadosa com meus passos e o vestido. — Não suba!
Faço a curva para desembocar na sala, encontrando meu pai apoiado na costa do sofá branco de doze lugares, seus braços cruzados e um sorrisinho escapando ainda que ele tente se fingir desinteressado. Paro onde estou quando ele remove o óculos de sol, sua surpresa ao me ver tão bem vestida o fazendo sorrir de verdade, as rugas em seu rosto maduro acentuando a felicidade que sente. E não consigo me conter, precisando sorrir de volta mesmo que veja necessidade de cruzar meus braços sobre o peito ao não saber o que fazer com minhas mãos em razão da timidez que sinto. Timidez essa que se amplifica ainda mais quando o elevador ao lado das escadas soa com um “ding” baixinho e não é preciso muito para que Peter também surja, caminhando até meu pai que não disfarça o centro de sua atenção e eu deixo um suspiro me escapar quando Pete vira-se para mim, ainda no meio das escadas, e seu rosto revela a surpresa de me ver assim.
Sua expressão é a mesma de alguém que tem todo o ar forçado para fora, os lábios um pouco abertos apesar do transe óbvio que minha aparência lançou sobre ele. Peter está encantador também, cabelo e ombros com um leve salpicar de neve e vestindo um dos três suéteres que Pepper lhe presenteou de Natal e que ficou perfeito em seu corpo. Não reconheço o tênis novo que calça ou o casaco dobrado no seu braço, mas sei ser obra de Tony. Ainda assim, Pete parece arrebatado com minha aparência e eu engulo em seco, descendo o último degrau para estar diante dele.
— Algum motivo específico que eu não possa subir? — Stark questiona para minha sorte e eu lembro de sua presença, além de também recordar-me do motivo de ter descido. Pela cara que ele faz ao pôr seu óculos de volta sobre o nariz, eu também devo estar babando em Peter como uma idiota. — Não vá me dizer que está acreditando na superstição arcaica de que não posso ver o vestido.
— Não pode ver o vestido pelo fator surpresa, não por uma superstição. — Explico-lhe, unhas fincadas na pele exposta de meus braços, observando enquanto Pete o imita e apoia-se no sofá, uma sacola da chocolateria que eu gosto em sua mão esquerda. — Mesmo que ela só tenha escolhido a modelagem do vestido e não o vestido que vai usar.
— Não é o tipo de coisa que se escolhe em uma única manhã, realmente. — Ele dá de ombros e remove o lenço em seu paletó a tempo de eu revirar os olhos e apoiar-me no corrimão quando o estende para Peter. Ele que também já imaginava o que aconteceria, entorta a boca ao observar o lenço vermelho. — Tá babando no meu mármore, menino.


*


A Sala de Conferências não é nova para mim, mas ainda assim, me sinto uma forasteira ao pisar nela após tantos meses sem nem mesmo recordar-me de sua existência. Eu já havia sentado nestas cadeiras, as minhas mãos cruzadas debaixo da mesa ou entrelaçadas com a palma macia de Natasha. Mas a observar com todas as cadeiras vazias é estranho e melancólico. Sem Natasha, Steve, Bucky ou Sam. Sem discussões sobre planos de ataque, arsenais e coordenadas de bunkers e alvos. Há apenas vazio. Não há esperança em mim de que um dia este local volte a ser preenchido pelas mesmas pessoas, não quando entendo as circunstâncias que os dissiparam e justificam a relutância de ambas partes virem a unirem-se outra vez.
? — A voz de Peter me afasta dos devaneios e eu viro-me em sua direção na porta entreaberta, a luz do corredor iluminando o seu contorno enquanto se esgueira para dentro da sala.
— Ei — Sussurro apesar de não haver necessidade de conter a voz, uma vez que este é um dos andares praticamente desativado do Complexo. — Como você descobriu esse lugar? — Pete encosta a porta atrás de si, mas permite que um filete de luz ilumine o cômodo o suficiente para que eu veja seu aproximar e erga minhas mãos inconscientemente, tocando o seu rosto quando ele move meus pulsos na altura certa, meu coração acelerado ao senti-lo. — Oi. — Volto a sussurrar quando seus dedos escorregam e se curvam em minha cintura, um riso fácil me escapando quando sinto seu próprio sorriso e a curva de suas bochechas em minha mão.
— Oi, para você, — O som de sua voz é melodioso e fico na ponta dos pés para alcançar sua boca, nossos lábios se encostando por um breve momento. Sinto meu coração se preencher com tanto amor que desejo prolongar cada segundo que passamos juntos. Peter beija-me duas vezes, nos lábios e uma em minha palma. — Senti a sua falta hoje. — A confissão é a primeira coisa que me diz além do que nós conversamos por mensagem de texto mais cedo, a informação lhe escapando com a facilidade de um mero respirar quando encosta sua testa na minha. Escorrego a palma de seu rosto até o peito e sinto seu coração acelerado como o meu. Com a outra mão, sinto que Peter também está sorrindo e sua respiração sopra um ar morno em mim, assim como sua face que também está quente.
— Também senti — Respondo com um afagar em sua bochecha que Pete corresponde em minha cintura sobre o tecido da camiseta que visto. O toque me deixa zonza. — Você se divertiu com os meninos? — Questiono e envolvo os braços em seu pescoço, dependendo do seu aperto em mim para não perder o meu equilíbrio. E como sempre, Peter não falha em me manter segura, imitando-me ao envolver seus braços em meu contorno e deixando que eu me apoie na mesa. — Pagou o senhorio?
— Sim -— Seu riso não nega que de eu chamar meu pai, Happy e Rhodes de “meninos” é engraçado. — E sim, eu paguei o Sr. Smith. Apesar do Tony ter comprado tantas roupas para mim que talvez a gente precise de um apartamento novo com closet incluso.
— Ele disse que foram só algumas... — Franzo a boca apesar de essa não ser uma preocupação sua, dada a forma que Peter menciona as compras. Seu queixo roça em minha testa quando dou uma olhada em seus sapatos novos. São bonitos e da mesma marca que Pete costuma usar, só que um modelo novo. — Está tudo bem? — Encolho os ombros, olhando para ele quase temerosa. — Não ficou incomodado?
Peter balança a cabeça, e realmente não parece incomodado. No entanto, ele demonstra me entender.
— Não... É só diferente — Assinto, atenta para ter certeza que os exageros de Tony não o incomodaram da mesma forma que me incomodavam logo no início de minha vida com ele. O lábio de Peter se ergue milimetricamente quando seus dedos tocam meu rosto e movem meu cabelo para trás. Ele franziu seu nariz também, fazendo graça. — E eu estou exagerando, também. Foram só quatro sacolas cheias. — Eu sussurro seu nome, não querendo que precise engolir como se sente. Nunca fizemos isso e a ideia de acabarmos fazendo tal coisa agora que estamos juntos me revira o estômago. Quero que seja tudo da mesma maneira de antes, não que ele precise andar em cascas de ovos comigo agora. — Está tudo bem! — Peter ri do jeito que eu gosto, encolhendo os ombros e os olhos apertados. — De verdade, . — Concordo de novo, tentando me convencer. — São roupas como as que eu uso, só que de uma marca legal. Ele me deixou escolher tudo. — A gentileza de meu pai não me passa despercebida, não apenas por deixar Peter escolher o que queria, mas por ter levado-o para comprar roupas. Ainda assim… — E, de novo: não liga — Sopro um riso quando seu dedo pressiona a possível ruga entre minhas sobrancelhas. Pete sorri para mim. — Foi uma experiência legal sair para comprar roupas e não precisar fazer as contas na cabeça.
— Eu só não quero que você se sinta pressionado. — Explico-me buscando seus olhos que não são nada além de compreensivos. Nós dois entendemos nossos limites, seja a insegurança dele com dinheiro ou a minha com pessoas. Sempre demos passos lentos, então não quero o apressar da mesma maneira a qual ele nunca me fez correr. — É tão... Estranho e confuso — Balanço a cabeça por não gostar do que digo, uma vez que Pepper havia tentado me convencer anos atrás que não havia problema em receber presentes, afeto e atenção. São coisas difíceis de acostumar-me mesmo após tanto tempo. — Ao menos é para mim, ser cuidada dessa forma. Ainda é depois de quase três anos e eu não quero que fique desconfortável com isso, Pete. Como se… — É a vez de Parker balançar a cabeça, descartando minha preocupação, o nariz roçando o meu ao aproximar o rosto de mim. Quase perco o fio da meada com a sua gracinha. — Como se tentássemos te mudar. Eu te quero do jeito que é, sem mudar nada.
, eu nunca nem considerei que queriam me mudar. — Sua voz é verdadeira e a mesma que tenho me acostumado há meses. É o bom e velho Peter sendo sincero e um pouco nervoso ao mudar o peso de um pé para o outro. — Eu só estou vendo o Tony fazer muito por mim desde que me conheceu. Seja me colocar em um quarto de hotel cinco estrelas na Alemanha, dizer que ia mexer uns pauzinhos pra mim no MIT, puxar minha orelha quando necessário… — É minha vez de franzir o nariz ao lembrar dos sermões de papai, recebendo um beijinho no nariz vindo de um Peter risonho. Não planejo deixar que Tony precise se repetir para nós outra vez. — A May, o cuidado dele e da Srta. Potts com ela e comigo... — Assinto ao entender o quão valioso os atos de meus pais foram para ele. Toco o cabelo de Pete e ele suspira com a boca encostada em minha testa, o peito se enchendo e esvaziando com seu exalar. Não nos esqueceremos tão cedo deste acidente, infelizmente. — Acho que essa deve ser a forma dele demonstrar que se importa. Se oferecer para pagar nosso aluguel, chamar a neurocirurgiã mais famosa de Nova Iorque para a May, me dar um relógio caríssimo de Natal antecipado... É o jeito dele.
Pondero a explicação por um instante, então lembro-me das meias que calço e do tênis. Da roupa que cobre meu corpo, dos produtos que uso no banho, de pratos cheios de comida e os livros que gosto. A essência do amor de Tony Stark em tudo o que coloca em minhas mãos.
— Promete? — Nossos lábios tocam quando cobro-lhe uma garantia.
— Prometo. — Peter, entendendo o que desejo, sela a garantia com um beijo delicado e casto.
Meu celular toca em meu bolso e eu fecho os olhos, encostando o rosto na garganta de Peter pois é o toque que indica ser uma mensagem de meu pai. Nem sequer tivemos tempo de almoçar ainda, mas é necessário que nos apresentemos no laboratório. Há muito ainda há ser discutido, porém me recuso a ir para outro lugar onde Peter não esteja beijando minha cabeça, abraçando meu corpo e seu perfume seja tudo o que posso sentir.
— Então, você vai me dizer o que houve para me chamar para uma sala escura num andar desativado?
— Não achou romântico? — Sua voz é abafada pelo meu cabelo, me fazendo sorrir ao me afastar.
— Super. — Finjo-me de desentendida também.
— A escuridão dá o toque especial, não é? — Peter beija minha boca apesar de rirmos como dois idiotas. No momento que ele se afasta, seu aperto em mim se torna mais seguro e eu o ouço engolir em seco, o que me deixa atenta. Havia de ter outro motivo para um encontro tão escondido. Quando sinto Peter buscando meus olhos com afinco apesar da pouca luz, apenas assinto. Estou pronta. Ele beija minha testa antes de iniciar. — Eu falei com o Tony sobre a conversa dele com o Secretário Ross. — Prendo a respiração com a informação murmurada contra minha testa, a calmaria no tom de Peter sendo responsável por me acalmar ainda que ele não note o que faz. — E ele me explicou que está tudo bem.
— O que o Ross queria comigo? — Indago com confiança, surpreendendo até a mim mesma.
— Conhecer você — Desta vez, é Peter quem me surpreende com sua firmeza e seu descontentamento semelhante com o que expressou a ouvir sobre Ross ontem a noite, irritado antes mesmo de saber o que ele poderia desejar comigo e muito mais desgostoso com a situação agora que sabe o interesse do Governo comigo. Ouço seus dentes baterem, indicando que ele aperta a boca e suspiro. — Descobrir sobre os poderes da Phoenix. Incluí-la no acordo. — Engulo em seco, contudo, me mantenho quieta. Pete afaga minha cintura novamente, acalmando-me como se pudesse ler minha mente e eu curvo a mão em seu peito, respirando com toda a calma que posso pois meu pai me manterá segura e Peter está aqui comigo, de maneira que não há local mais seguro onde eu poderia estar. — Mas você, como o Tony disse, não é uma moeda de troca. Como o Homem-Aranha e o Máquina de Guerra não são. Não somos parte dos Vingadores pois nos recusamos antes, lembra? — Seu nariz toca o meu e eu concordo devagar, ciente que ele lembra de minha memória fotográfica, mas quer me acalmar ao me fazer reagir aos estímulos. Pete sabe que perguntas e lembretes são importantes, assim como eu fiz quando ele teve a crise na Arena.
— A utilização de poderes para engajar-se em atividades de vigilante é penalizada por meio de detenção sem julgamento civil — Cito a cláusula do Acordo de Sokovia. Cláusula essa que, junto a outras, foi o motivo de Wanda Maximoff ser presa em uma prisão de segurança máxima no meio do oceano com Clint, Sam e Scott Lang. — Sem o devido processo legal, Peter — Reitero com amargor. — Significa que podem jogar a gente em uma prisão de segurança máxima sem justificativas ou pena estabelecida em lei. Indefinidamente.
— O que seria considerada atividade de vigilante perante aos Acordos? — Pete prossegue, mãos subindo e descendo nos lados de meu corpo para distrair-me e acalmar. Eu suspiro em troca e fecho os olhos. — A lei não é clara aí, . — Ele está certo e isso é uma dianteira, apesar de não ser garantia legal. — É uma brecha legal. Outra brecha é que o seu pai é Tony Stark e esses acordos nunca vão te alcançar. — Peter assegura com convicção, balançando a cabeça. — Mais uma garantia é o fato de que eu não vou deixar que o Ross, ou quem quer que seja, te tire daqui. Esse Complexo é a sua casa, Tony, Pepper e Happy são a sua família. Enquanto eu estiver aqui, não vou aceitar que tirem você de nós.
Suas palavras se fincam em meu coração e eu encosto o rosto no pescoço de Peter, ficando pequenina até caber em seus braços e ele poder me esconder de meus medos.


*


Quando nós voltamos para o andar de convivência, com Peter sendo cuidadoso comigo nas escadas ao ponto de oferecer que pode carregar-me para que eu não precise colocar força na perna machucada, a sala não está vazia como esperei, mas ainda assim não solto de sua mão e ele entrelaça nossos dedos. Não o impeço, apenas firmando o toque e o trazendo comigo ao caminharmos um pouco na direção de Pepper na ponta do sofá, essa que ergueu a mão em sinal de quem nos pedia para fazer silêncio. Com um ar tenso pairando no cômodo, viro-me na direção de meu pai, este que se apoia na parede da sala e está com os braços cruzados sobre o peito, olhando para a televisão que também roubou atenção de Rhodes, e ele passa por nós com um toque no braço de Pete e um “joinha” para mim.
E é assim que entendo o motivo de toda atenção no jornal: eu sou a atração principal.
Estamos diante do que pode muito bem ser a próxima geração dos Vingadores que perdemos. Essa é a prova viva de que os Acordos de Sokovia foram criados para destruir os Vingadores que, apesar dos pesares, foram responsáveis por nosso planeta ainda estar a salvo. — O apresentador mostra imagens de cima do acidente na Ponte do Brooklyn e eu engulo em seco, apertando ainda mais os dedos nos de Pete. Pelo ângulo, são os mesmos helicópteros que imaginei serem para socorrer aqueles na ponte, mas que estavam ali apenas para filmar toda a tragédia. É sujo. — A Fênix foi a única pessoa que pôde ajudar aos sobreviventes das explosões na ponte por ser a única que podia agir! — O apresentador continua, seus punhos cerrados ao bater na mesa. — Estamos falando que, se não fosse uma vigilante que não está contida pelos acordos e dependia da autorização das Nações Unidas para agir, mais de doze mil cidadãos americanos teriam morrido!
Minha imagem surge no centro da tela, o uniforme destacando-me em meio aos sobreviventes que iam correndo na direção do vão livre que criei entre uma metade da ponte e o distrito de Brooklyn. O meu rosto é ocultado pela máscara, impedindo que me identifiquem fora o nome que decidiram chamar-me e o óbvio uso de meus poderes, estes que as câmeras filmam afastando os carros para os civis. Ouço um suspiro vindo de Pepper e ela apoia os cotovelos nos joelhos, atenta para cada cena e, principalmente, para aquela em que sou engolida por chamas na primeira explosão capturada pelas câmeras nos helicópteros. Sinto os dedos de Peter se firmarem em minha mão e repito o gesto em uma tentativa de confortá-lo, reconhecendo como essa é a cena de um pesadelo para ele.
Estão vendo o carro que explodiu à direita do vídeo? — Aperto a boca ao lembrar-me exatamente do que o homem se referia, mesmo evitando encarar a televisão. Viro o rosto na direção de meu pai, ele que não liga para a reportagem e deixa seus olhos recairem sobre mim. — Ali dentro estava a pequena Alice Mills, meus caros. — Alice. Engulo em seco o nome da menina enquanto papai me olha, os meus poderes não sendo necessários para reconhecer dicotomia em seus olhos. — Uma bebê de dois anos que havia ficado presa no carro após a porta emperrar com uma das dezenas de engavetamentos que aconteceram. — A criança que salvei se chama Alice. E Tony continua me olhando, amedrontado por mim e podendo ver seu reflexo em meus olhos. Ele tenta sorrir para mim, mas seu orgulho é quase melancólico. — E se atentem ao fato de que, se a Fênix não tivesse estado ali e removido a pequena Alice Mills do carro, ela não estaria em casa nesse exato instante. Sem ferimento algum. — Seguro no pulso de Peter com a mão livre, não querendo olhar para a foto da criança que deve estar estampado na tela e fugindo de meu pai que é semelhante demais a mim. — Alice é uma dos doze mil sobreviventes que alcançaram terra firme antes do desabamento da Ponte do Brooklyn há três dias. Este desastre que se solidificou na história como um com a menor taxa de perdas humanas na história moderna de Nova Iorque. Apenas 0,5% de perdas.
Prendo a respiração, encostando o rosto no braço de Peter por meio segundo antes que ele o passe por meu ombro e me leve ao seu encontro, seu rosto na direção da televisão e respirar apertado. Os meus dedos se flexionam contra o seu suéter, faminta pelo apoio e aconchego dele, pois é assustador e chato ver isso por outro ângulo. Chato na acepção entristecedora da palavra.
Mortes imensuráveis, é claro. — O repórter prossegue, apoiado em sua mesa. — A prova de que precisamos daqueles que condenamos há algum tempo mais do que eles precisam de nós. Garantia de que pessoas, heróis, como a Fênix, são necessários. — Peter usa a mão livre para afagar minha costa quando viro o rosto de novo, as palavras do repórter não sendo algo que eu queria ouvir. Não preciso ser convencida de coisa alguma. — Alguém que arrisca sua própria vida, se permite ser cercada por chamas para salvar um desconhecido, merece crédito. Merece nossa confiança antes que seja só mais um grandioso nome na história. — Encolho os ombros e tento me sufocar contra o peito de Peter quando ele continua: — Em nome de Anthony Stark, Steve Rogers, Bruce Banner, Clinton Barton e Natasha Romanoff, deixo aqui as boas-vindas para o futuro. — Não é a voz do repórter que ouço, não, não. É a de Natasha garantindo aos outros membros dos Vingadores que as pessoas precisavam voltar a confiar neles, em nome do futuro da organização. Em meu nome. — Obrigado por seus feitos inimagináveis, Fênix. — Quando anunciam uma rápida pausa na cobertura dos eventos da ponte e garante retorno breve com mais informações sobre as explosões no porto, enfim ouso abrir meus olhos.
Natasha não estava errada ao pedir que Steve pensasse sua posição mediante os Acordos de Sokovia, uma vez que a confiança dos civis acerca dos Vingadores estava abalada. Aperto os dentes quando me recordo da briga instaurada após o Secretários Ross apresentar os acordos e como tudo construído foi por água abaixo devido a uma resma de papéis. Mas o repórter está correto: eu não sou, assim como Peter, contida pelos acordos. Posso agir onde meu pai não pode. Respiro fundo e me afasto um pouco de Pete, apesar da relutância dele em me deixar partir mesmo por um momentinho, olhando-me com cuidado e afeto.
— Bom, agora estamos cientes que o uniforme é a prova de fogo — Minha voz vacila um pouco e Pepper vira-se para mim, sua expressão demonstrando o quão incrédula ela está com minha conclusão. — Eu não fiz de propósito! — Prossigo e ouço uma risada contida de Rhodes enquanto toma um gole de suco. Sinto Peter balançar a cabeça, igualmente revoltado apesar de seu corpo vibrar com uma leve risada. — Quando foi a última vez que propositalmente corri na direção de fogo?
— O fato de você perguntar sobre a “última vez” significa que fez isso vezes demais — Pepper esclarece e se levanta, balançando a cabeça para mim. — Anthony, fala com a sua filha.
— Como se isso fosse funcionar… — Stark resmunga, esfregando o rosto. Pepper passa por nós e segue na direção da cozinha, apanhando uma taça do armário e a enchendo com vinho que estava na porta da geladeira. — E eu pensei que era nossa.
Ela toma um gole de vinho branco antes de apontar para ele com a taça.
— Não quando age como você.


*


— Pronto, dá uma olhada. O que acha?
Aproximo o meu rosto do microscópio digital do meu laboratório após seis horas confeccionando um uniforme de moléculas tão instáveis como meus poderes e resistentes na mesma proporção. Além de ter sido a pauta decidida para nossa lição de hoje, meu pai a transformou em uma forma de castigo, apesar de eu estar sentada aprendendo e com café quente disponível a todo instante. Rhodes riu ao vir nos visitar e comentou que eu poderia explodir o Complexo que Tony não teria pulso algum para me castigar. Stark o expulsou do laboratório jogando um amendoim nele. Agora, observo com atenção como as ligações potentes das teias de Peter englobam as pequenas esferas de vibranium, apenas aguardando pelo contato com o catalisador no lança-teias para formarem as ligas poderosíssimas que ele e meu pai comentaram ontem.
Quero bocejar de sono, mas estou impressionada demais com o trabalho que os dois fizeram e não quero, nem por um instante, que pense que não me importo. Pelo contrário. Me sento corretamente de novo, colocando minhas mãos em meu colo quando o faço e sentindo minha costa encostar-se no peito de Peter ao ficar na sua frente, as camadas de roupa não me impedindo de sentir o seu calor. Agarro-me às mangas do moletom que visto, sorrindo com o bom trabalho dos dois.
— O problema é que diminui o alcance das teias porque mudamos a fórmula. Quer dizer, você e o Sr. Stark mudaram a fórmula; obrigado de novo. — Peter se explica com agitação e nervosismo, desligando o microscópio para que eu não a analise mais, retirando a pequena quantidade da fórmula líquida e a descartando em um papel toalha. Seu nervosismo é adorável, ainda que desnecessário. Tudo parece que funcionará bem, principalmente se foi feito por nós três. — A antiga era muito elástica, com nylon — É um comentário forjado pelo nervosismo e a necessidade de falar algo, mas me faz sorrir pois suas orelhas estão ficando rosadas enquanto volta a limpar a lâmina mesmo ela sendo descartável. Quero afagar sua orelha, mas me contenho. — Essa é com nanotubos de carbono, então é mais resistente porém comprime o nylon.
Sinto minhas sobrancelhas se apertarem.
— Isso não é bom, Peter. — Insisto, não muito animada com a possibilidade de isso o atrapalhar no dia-a-dia, principalmente quando eu tenho total conhecimento de que seu meio de transporte favorito é ir se pendurando de prédio em prédio por Manhattan. — Você ainda tem anotada a outra formulação, não é? — Lhe indago um segundo antes do seu dedão se pressionar entre as minhas sobrancelhas, suavizando a ruga que havia se formado ali. Reviro os olhos ao afastar a sua mão com falsa rispidez, lhe fazendo rir. — Peter!
Parker abaixa a cabeça, rindo um pouco antes de abrir seu bloquinho de notas.
, eu presto atenção em tudo o que você fala, tá? Relaxa. — Balanço a cabeça mesmo que o detalhe faça meu rosto aquecer um pouco. Reviso a antiga fórmula e a nova quando ele abre o seu bloquinho para mim e acabo suspirando em desagrado, preocupada por ter sido a responsável pela mudança. Nem mesmo quero imaginar caso isso não funcione. — Já testamos e eu consegui parar e quebrar dois propulsores do Sr. Stark. Acho que é o suficiente. E você teria visto elas em ação se não houvesse capotado no sofá quando disse que ia só “descansar os olhos”. — “Você está me culpando por estar cansada, Sr. Parker?” Pete passa a mão pelo cabelo, balançando a cabeça e me olhando com um absurdo de carinho. — Estou dizendo que se você tivesse descansado antes poderíamos ter passado mais tempo juntos. — Não posso evitar curvar meus lábios.
Após nossa conversa sobre o Secretário Ross, acabei por cair no sono no sofá do laboratório e Tony me carregou para meu quarto, mas voltei para cá assim que acordei.
— Certo. Mas e se você precisar delas mais elásticas? — Indago outra vez.
— KAREN pode resolver isso para mim — Ele indica ao tocar duas vezes em seu relógio de pulso onde KAREN havia sido instalada na noite de ontem. Como FRIDAY em minhas pulseiras, sua inteligência artificial foi acoplada em um acessório costumeiro. — Podemos programar a questão do catalisador. A ativação vai depender do momento que eu precisar usar, como uma das centenas combinações de teia no meu uniforme. — Peter me lembra das combinações projetadas por meu pai e eu assinto. — Pensei nisso no sábado quando assistia uma cobertura do que aconteceu na ponte.
A menção do acidente me arrepia. Talvez, se May não estivesse envolvida nele, não estaria tão afetada, uma vez que participei de missões piores e mais catastróficas do que as poucas perdas dele. Sokovia já é apenas figurante em meus traumas e pesadelos, a maioria sendo apenas lembranças com cheiro e gosto de fumaça. E sangue, obviamente. Sangue em minhas mãos, roupas e rosto de quando auxiliei Clint Barton a carregar o corpo de Pietro para o Porta-Aviões da SHIELD.
— Acho que se estivesse lá, na ponte, teias com vibranium seriam bem úteis — Pete se justifica apesar da possibilidade me apavorar. — Poderia ajudar a sustentar a ponte, reconectar os cabos soltos.
— E eu acho que perderia a cabeça se você estivesse lá, Peter. — É minha vez de pensar na situação.
— Lembra que falamos sobre você não fazer piadas envolvendo perder a cabeça? — Pete questiona ao apoiar o queixo na mão e seu cotovelo na mesa. Relembro-me de nossa conversa neste laboratório um dia após o acidente, quando discutimos e eu lhe implorei para manter meu segredo sobre o atentado. Eu balanço a cabeça, concordando com nosso combinado que pactuou que ele também não brincaria sobre os seus pesadelos. No entanto, não é neles que Peter parece pensar, o seu rosto assumindo uma expressão mais séria e sóbria quando toca minha mão que também estava sobre a mesa. Aperto seus dedos, certa de que em algum ponto precisaremos conversar sério sobre o atentado e, de preferência, descobrir quem o armou. — Happy ficou o tempo todo com você quando saiu com o Osborn, não ficou?
— Ficou. — Garanto-lhe sem hesitar, percebendo um certo repuxar de seu lábio ao mencionar Osborn. Não é raiva, apenas um ciúme que torna Peter mais humano e adorável. É a sua vez de apertar minha mão, mantendo sua atenção onde nossas palmas se encontram. — Até mesmo tive um comunicador no caso de algum problema. — Peter assente, a expressão apreensiva não relaxando momento algum. — E uma arma na bolsa, também. — Isso o faz fechar os olhos e quase sorrir.
— Precisamos decidir o que fazer em razão do atentado, . — Apesar de minhas confirmações, Peter não sorri e apenas prossegue com justificativa ao comentar sobre o atentado. Eu engulo em seco, mas concordo. Ainda que tenha tentado não pensar nisso, a ideia me apavora. — Tentar achar imagens que indiquem de onde o tiro veio, já que sabemos que foi de Manhattan — “Toda a área próxima ao desabamento está em quarentena aguardando a perícia.” Lhe informo. — Isso não importa, . — Peter descarta o que digo sem pestanejar, franzindo a sobrancelha. — Alguém quis matar você. Isso não é algo que eu consigo ignorar ao colocar a cabeça no travesseiro. — O rosto de Peter não mente o quão pertubado a situação lhe deixa, revelando a angústia e preocupação que tem tentado manter em um nível contido. — A mera ideia de você estar desprotegida me mata. — A confissão aperta meu peito e Peter segura meus dedos ao erguê-los para seus lábios e beijar os nós da costa de minha mão, ainda um pouco arranhados e feridos. Sua perna esbarra em meus joelhos quando movo meu banquinho na sua direção. — Precisa me deixar fazer alguma coisa. — Seu pedido me deixa enjoada. A mera ideia dele desprotegido também me mata. — Se o Tony não pode fazer nada, eu quero fazer.
— Nós vamos fazer algo — Afirmo apesar de não confiar em mim mesma ou acreditar na mentira que eu lhe conto. Eu não permitirei que Peter acabe em meio a algum fogo-cruzado por minha culpa. Quero apenas manter despercebida por algum tempo até que as pistas esfriem e Peter se esqueça disso tudo, mesmo ciente que será difícil. — Na verdade, já estamos fazendo, Peter. — Dou de ombros, surpresa ao vê-lo erguer a sobrancelha, desconfiado de mim como deve estar ao já me conhecer bem. — Eu estou no lugar mais seguro possível, com o Homem de Ferro e o Homem-Aranha para me proteger. — Peter revira os olhos e morde o interior da bochecha, os lábios lutando para conter um sorriso. — Fora o meu colar que vai me manter segura e avisar quando eu precisar de você comigo.
— Sabe que se eu pudesse, manteria você envolta em kevlar da cabeça aos pés, certo? — Um outro beijo é pressionado em meus dedos e eu dou uma risada com a sinceridade dele. — Por trás de umas vinte e poucas camadas de vibranium e vidro blindado. Só para garantir. Isso enquanto não contar a verdade para o Tony, é claro. — Eu sussurro seu nome quando menciona meu pai, apavorada que ouse contar-lhe o que aconteceu, mas Peter beija meus dois pulsos agora, acalmando-me sem palavra alguma. Eu deixo um suspiro me escapar. — Eu prometi que não diria a verdade para ele. Não prometi que não insistiria e gostaria mais que tudo neste mundo que você dissesse a verdade.
— Eu tenho as minhas razões para querer manter isso entre nós dois. — Eu engulo em seco, apesar do calor dentro de meu peito. — Tinha razões para manter entre mim e a Cho se você não me conhecesse tão bem e tivesse a capacidade de descobrir a verdade por si só.
— Então me considere a voz da sua consciência te implorando para repensar os seus segredos que não servem para nada além de te machucar e, que se forem parecidos com esse, devem ser divididos com quem pode te ajudar, .
Observo o rosto perfeito de Peter por alguns segundos e sinto meus lábios se curvarem em um sorriso.
— Desculpa — Balanço minha cabeça, entretida com a forma que franze as sobrancelhas em confusão. — É só que eu pensei que estava falando com o cara que tirou o rastreador do uniforme para perseguir uns traficantes de armas. — Apoio a palma da mão na cabeça, fingindo estar confusa com a situação.
— E você está — Ele garante sincero e com uma expressão densa. — Só que a diferença é que eu aprendi com os meus erros, mas você ainda está tentando se convencer que está certa. — A sua resposta é como um soco no estômago. — E sabe que não está certa se precisa mentir para o Tony e a Srta. Potts. Sabe disso.
Eu engulo em seco, molhando meus lábios.
— Eu preciso de tempo. — Minha voz é um mero sussurro.
— Eu estou te dando esse tempo, você sabe — Peter encosta a testa na minha quando eu fecho os olhos, a culpa pesando em meu peito por não ser a única sofrendo com minhas mentiras. — Sabe disso, não sabe?
— Não queria que soubesse disso, Peter — Não vejo necessidade de mentir. Não para ele. — Não queria que ninguém soubesse. Acho que nem mesmo eu gostaria de saber.
— Também não queria que você soubesse, — Minhas mãos empunham sua camisa, buscando o mínimo de amparo possível quando encosta os lábios rapidamente em minha bochecha antes de me abraçar. O seguro com tanta força que me sinto fraca. — Não queria que passasse por isso. Não merece um pesadelo desses. — Escorrego para fora do banco, finalmente o abraçando como queria e sem restrições. Somente o quero perto, aqui comigo até toda a dor e o medo ir embora. — Sei que eu posso estar forçando a barra — Balanço a cabeça da melhor forma que posso com meu nariz contra a pele macia de seu pescoço, respirando o seu perfume. Eu faria o mesmo por ele, mas não sei se estou pronta para ver tudo desmoronar se Tony tomar alguma decisão precipitada. Não quero lhe perder agora que mal o tenho para mim. — Com o lance do Ross e agora isso, mas eu não quero que alguma coisa horrível assim aconteça com você, . Eu me preocupo com você.
— Sei que se preocupa e no fundo você está certo, mas… — Engulo em seco, detestando que Peter se afaste miseramente para me olhar. Desta vez, não deixo lágrima alguma escapar apesar do pinicar em meus olhos. Estou exausta de tanto chorar. — Mas eu estou com medo. — É dificil lhe admitir tal coisa, da mesma maneira que foi lhe admitir que tenho medo de meus sonhos e que queria estar ao seu lado. Cada passo que dou, cada respirar, me assusta mais que qualquer coisa. Os olhos de Peter se suavizam ao ponto que todo seu rosto o acompanha, porém não há surpresa em sua face. Ele sabe que o que me impede de agir agora é o medo paralisante e por isso está aqui. Por isso me dá o tempo que lhe peço apesar de estar sofrendo junto a mim como nunca quis que sofresse. Aperto a boca quando Peter passa a mão por minha testa com cuidado, afastando o cabelo dali para me olhar. — Eu não quero mais ter medo, mas não consigo. — Sussurro de volta e seus lábios encostaram em minha têmpora, se movendo um pouco enquanto assente. — Não vamos mais brigar por isso — Estou me esforçando para não implorar. — Eu vou fazer o certo, mas preciso da coragem que não tenho agora.
— Prometo que não vou mais brigar se não me der mais motivos para brigar, o que eu duvido muito — Defiro um tapa em seu braço, tentando conter meu riso melancólico pois ele pode muito bem estar certo. Peter ri com respeito às minhas emoções, beijando minha bochecha com tanto carinho que temo minhas pernas desistirem de me manter de pé e me chateio com o fato de que, amanhã, Peter e May retornarão para o Queens e não o terei por perto o dia inteiro. Não terei mais em quem me apoiar e com quem dividir meus segredos que nunca nem mesmo deveriam ter chegado aos seus ouvidos. — Vai ficar tudo bem — Pete garante, pendendo a cabeça para o lado que olho, todas as comparações dele com um filhote feitas por MJ mais óbvias que nunca.
Suas mãos deixam meu rosto aquecido pela emoções turbulentas e encontram repouso em minha cintura.
— Em luz do meu estado de saúde muito frágil — Inicio, mudando o peso de uma perna para a outra, mesmo ciente que não preciso apertar botões algum para que Peter me dê atenção. Quero mudar de assunto, me fortalecer e ter memórias boas para durarem quando tudo isso acabar. A preocupação em seu rosto se transforma em um falso aborrecimento, as novas provocações e brincadeiras entre nós me deixando feliz ao ponto que quero enterrar meu rosto em seu peito e abraçá-lo com todas minhas forças de novo. Peter molha os lábios, assentindo ao conter um de seus sorrisos adoráveis. — Posso te pedir uma coisa?
— Essa é a sua nova desculpa para tudo? Vai ser assim agora? — “Mhm” Garanto para entretê-lo ainda mais apesar de pouca animação devido a nossa conversa prévia, concordo com a cabeça e ele me imita, finalmente sorrindo para mim. Seus dedos afagam minha cintura e eu repito o gesto ao afagar seu braço acima de seu cotovelo, onde há uma cicatriz áspera. — Pode pedir literalmente tudo o que você quiser.
— Podemos assistir um filme? — É uma pergunta tola, mas vejo necessidade em fazê-la. Deveríamos estar aqui para terminar o protótipo do que seria um uniforme, mas não quero passar a noite em um laboratório ou conversando sobre o atentado que quase me impediu de estar aqui com ele agora. — Sei que temos que fazer outras coisas, mas os meus pais saíram com o Rhodey e eu não aguento mais ficar em laboratórios. — Justifico-me para que entenda que não é meu intuito desviar da ideia de meu pai para nós, mas procurar uma maneira de poder aguentar mais tempo e com a cabeça mais leve. — Os últimos dias foram tão cansativos que só quero desligar a cabeça. Por favor.
— Sabe que não precisava pedir ou justificar nada pra mim, não é? — Pete sorri com ternura, voltando a afagar minha cintura em movimentos circulares delicados. Algo muda em sua expressão que antes foi puro carinho e, por meio segundo antes de se recuperar, demonstrou pena. — Sabemos que está cansada, . Mas sabemos que é cabeça dura o suficiente para só descansar quando for escolha sua. — E é somente assim que percebo que isso tudo pode muito bem ter sido uma armação de Tony para que eu finalmente relaxe. Quando busco os olhos de Peter, ele somente dá de ombros, parecendo entender meus pensamentos. Dou um soquinho em seu braço, incrédula que os dois tenham armado para que eu finalmente relaxe. — Auch! — Reviro os olhos, afastando-me dele pois o soco deve ter doído mais em mim do que nele. — Só por isso, eu vou escolher o filme, tá?
E é assim que nós acabamos na cozinha vazia do Complexo, acendendo as luzes ao caminharmos e os sensores se ativarem, uma sacola de compras enfeitando a ilha da cozinha. Pete está lavando as mãos na pia enquanto removo algumas coisas da sacola, dentre elas, alguns pacotes de M&M e refrigerante.
— Eu posso te perguntar uma coisa? — Ele faz a mesma pergunta que fiz previamente e eu assinto, um tanto ocupada em procurar latas de refrigerante que estejam geladas. — Os Acordos de Sokovia… — Ouço um suspiro enquanto Peter seca as mãos com uma toalha de pano, vindo até mim. — Quando a gente conversou no Queens pela primeira vez, deu a entender que estava do lado do Tony pela dívida que tinha com ele. Ainda se sente assim hoje?
Ergo os olhos para Peter, parando minha atividade anterior e ele se dedica a ela mesmo sem eu pedir.
— Não. — Ele olha em meus olhos, como se buscasse um vacilar que eu sei não haver neles. Tony Stark e Pepper Potts são a minha família. — Meus pais são a minha família, não aqueles que foram embora e não se importaram em me deixar para trás. — Pete aperta a boca, demonstrando que, apesar de minha rude confissão, ele não quer se meter em meu julgamento. Eu suspiro, apoiando os braços na ilha. — A Nat foi a única que conversou comigo sobre o que estava acontecendo e o que poderia acontecer. Ela disse, e eu me lembro muito bem, que sabia o que aconteceria se não estabelecesse uma trégua com o Rogers. Disse que não queria que eu estivesse ali quando tudo acabasse.
— Quando eu paro e penso sobre a Alemanha — Peter molha os lábios com a língua e a sua expressão séria que tem se intensificado mais e mais nos últimos dias marca presença de novo. — Lembro de te ouvir. — Nossos olhos se encontram e a máscara se racha, um filete de um sorriso escapando dele. Ele vai embora tão rápido quanto veio. — Pedindo que o Capitão Rogers não virasse as costas para vocês. E tinha tanta emoção na sua voz ao pedir que ele ficasse, . Acho que todos sentiram aquilo também.
— Ainda assim ele virou as costas. Apesar de eu ter o ajudado a fugir, ele virou as costas. — Encolho os ombros pelo peso que me escapa com a confissão. — Eu mantive os destroços de uma torre de vigia suspensos a tempo de Steve e Bucky conseguirem entrar na garagem onde o Quinjet estava. Mas fiz isso não por ele, porque sabia que ele não iria descansar até nos destruir de dentro para fora, mas pelo Tony.
— Pra que ele não se sentisse o único culpado. — Movo a cabeça devagar. Sim. — Mas você se sente?
— Não. — Garanto com sinceridade. — Não me sinto culpada. Não era uma decisão minha, não quando havia outra vida na linha, Peter. — Encolho os ombros de novo.
— Você e o Sargento Barnes eram próximos, certo? — Ele volta a remover algumas coisas das sacolas. Molho de tomate, mostarda e maçãs. Enquanto isso, estou abismada que saiba disso. — A Srta. Potts disse para mim no sábado que, se estivesse por perto, o Sargento Barnes estaria com uma sniper nas mãos assim que ouvisse sobre o seu encontro com o Osborn. — Apesar de tantos detalhes em apenas uma frase, desde ele e Pepper conversando sobre meu encontro até a aversão de Peter ao dizer o nome de Harry, minha atenção se prende em uma só coisa: Tony não contou para Pepper que o Soldado Invernal foi responsável pela morte dos seus pais. Ele a poupou de sentir aversão a Bucky. — Que ele chamava você de Tampinha.
— Não é justo comparar uma adolescente anêmica com um super-soldado com um braço de vibranium — Aviso com um sorriso ao lembrar-me mais de Bucky quando Peter menciona o apelido. — Mas, sim. — Concordo enquanto Peter dobra a sacola de papel metodicamente, como já o vi fazer com as sacolas onde costuma levar o seu lanche para a escola. — Nós dois tivemos muita dificuldade em dormir logo no começo. Então passavamos a madrugada conversando naquela janela — Aponto para a janela atrás do piano que ninguém usa, mas Tony jura saber tocar. — Ele me contou toda a história de O Hobbit uma vez — Peter arregala os olhos, um sorriso surpreso se formando em seu rosto. — Aparentemente, o livro saiu em 1937 e ele leu antes de ser convocado.
— Seria legal conhecer ele um dia — Não posso evitar assentir. Bucky e Peter no mesmo cômodo seria a coisa mais hilária da década. Ou melhor, Bucky, Peter e Sam. Sim; Sam não poderia faltar. — Se bem que, quando nós chegamos a nos conhecer na Alemanha, o encontro não foi o mais civilizado…
— Talvez o Bucky soubesse que nós dois acabaríamos juntos e compilou toda a superproteção em um soco que você parou, mesmo que eu ainda não entenda como. — Comento ao levar os refrigerantes até a geladeira. “Então, talvez seja melhor deixar as apresentações para uma outra hora” Peter murmura ao coçar a nuca, arrancando um sorriso de mim ao apoiar-se na pia. — Com medo, Homem-Aranha?
Peter pende a cabeça para trás, o pescoço se alongando quando balança a cabeça, sorrindo de forma a fazer meu coração se encher de amor. Seus sorrisos sempre me fazem sorrir também.
— O que vai querer comer, Fênix? — Ele zomba com um pano de prato sobre o ombro ao cruzar os braços.
Balanço a cabeça de imediato ao passar por ele na direção da dispensa, procurando por um pacote de milho para pipoca. Raramente consigo comer pipoca, uma vez que Pepper deteste que eu coma o que quer que tenha sido cozido em um microondas e óleo quente me apavora. Encontrei o pacote em uma cesta junto a mais chocolates e uma caixa de Sour Patch Kids. E Gummy Worms. Pego tudo o que sei que Peter gosta, voltando para a área principal da cozinha com os braços cheios de doces.
— Pode fazer pipoca para a gente? — Questiono ao erguer o pacote para ele, usando minha melhor cara de “por favorzinho” como a que costuma fazer Happy Hogan parar no McDonalds no quilômetro cinco da estrada para o Complexo e comprar um Double Cheeseburger para mim. Peter segura o pacote apesar de muito entretido observando as porcarias que peguei, rapidamente pegando um dos doces ácidos que gosta quando lhe ofereço o pacotinho.
— Posso — Responde antes de colocar a coisa estranha na boca. Faço uma careta ao abrir um armário e vasculhá-lo atrás da panela onde Pepper costuma fazer pipoca para nós. Pego ela e coloco sobre a pia junto com o óleo que ela também usa. Também aproximo o saleiro de onde Peter ainda permanece na pia, quase entretido com minhas preparações. Quando preparo tudo o que precisa, dou um passo pra trás, mãos atrás de meu corpo quando olho para Peter e ele franze as sobrancelhas momentaneamente antes de um sorriso escapar-lhe. — Você sabe fazer pipoca? — Balanço a cabeça e, sendo o cavalheiro perfeito criado por May Parker, ele não demonstra incômodo com minha inabilidade ou que a acha engraçada. É uma das muitas coisas novas em minha vida, que ele sabe ser nova, e não se importa. — Quer que eu te ensine?
— Envolve óleo quente, certo?
— Sim. — Peter concorda ao levar a panela até o cooktop, de costas para mim. Engulo em seco quando apanha o pacote de novo e seus músculos se flexionam apenas pela força mínima que deve usar para abrir o saquinho. — Mas, quando a May inventou de fazer uma dieta, ela usava água. Tudo bem que ela destruiu um pote de plástico, o microondas e a casa ficou cheirando a queimado por uma semana, mas acho que tinha como aquilo dar certo de alguma forma. — O bíceps de Peter se flexiona outra vez quando ele se estica e pega a xícara que estava sobre a pia. E eu fecho os olhos. — Porém é melhor mesmo que não mexa com óleo quente, pode se machucar. — O cuidado de Peter me faz sentir tola por ter me concentrado em seu físico enquanto ele pensava em minha segurança, mesmo sendo algo tão pequeno. Ele está medindo a quantidade correta de milho quando pressiono um beijo agradecido em sua bochecha.
— Vou organizar o sofá. — Aviso ao me afastar, apertando seu braço com carinho ao partir.
Corro as mãos pelo cabelo ao me dirigir a sala-de-estar, respirando fundo da forma mais silenciosa que consigo, tímida que Peter possa ouvir o quão mexida qualquer coisa que ele faça pode me deixar. Não posso imaginar o quanto MJ irá se divertir ao saber de nós, o quão feliz ficará internamente ainda que faça piadinhas e me lance os mesmos olhares de “eu não disse?” que fez sempre que me via com o Harry na sexta-feira. E Harry Osborn também surge em minha mente após dias de nosso encontro, após dias onde tudo que consegui e consigo pensar é em Peter. Entendo o quão terrível estou sendo a ele, principalmente por ter inclinado-o para uma conclusão de que alguma coisa poderia se formalizar entre nós além de amizade. Me sinto maldosa ao pensar em Harry e como minha intenção de ir a um encontro com ele foi somente uma tentativa falha de tirar Peter de minha cabeça, mesmo que ele já estivesse encontrado repouso em meu coração. A ideia de mandar uma mensagem para ele além de me soar suja, por Peter estar aqui, também é má.
Preciso conversar pessoalmente com Harry e pedir que perdoe minhas ações posteriores.
Ergo as mangas da camiseta surrada que uso, observando a forma que o sofá está disposto e como ele poderia ficar, concluindo que projetar a parte que se extende para frente seria mais confortável. Deixo a magia no que decidi denominar como “piloto automático” enquanto me dirijo ao armário próximo ás escadas para os laboratórios. É somente ao observar os cobertores ali, que percebo que vamos assistir um filme no sofá. Como nos filmes românticos que assisti no mesmo sofá. Devagar, eu seleciono dois cobertores, temerosa que pegar apenas um para nós dois não seja a melhor opção. A pipoca começa a estourar na cozinha e eu viro o rosto na direção de Peter, ele que checa seu relógio atentamente. Nós já dividimos um só cobertor na noite de nosso primeiro beijo, então talvez não seja tão estranho, mas ainda assim…
— Hmm… — Engulo em seco, abraçando os cobertores macios. Ele vira para mim e, apesar da distância entre nós, sei que pode me ouvir bem mesmo sem eu ter chamado o seu nome. — Lembra que a gente discutiu no sábado sobre… — Fecho os olhos. Não o olhar tão doméstico com uma toalha de prato em seu ombro e uma mão no quadril pode facilitar. — Sobre ser tudo meio novo e tal?
— Claro, o que foi? — Sei que Peter está vindo até mim pois sua voz soa mais perto e eu abro os olhos, o encontrando quase cruzando a sala para me alcançar. — O que aconteceu?
— Está tudo bem, calma — Garanto ao virar por completo em sua direção, segurando os dois cobertores e sentindo um calor envergonhado se espalhar por meu pescoço e rosto. Ao ouvir-me, Peter para onde estava, secando as mãos e com a expressão mais adorável do mundo. Isso me dá coragem o suficiente para tentar prosseguir — Um cobertor ou dois cobertores?
Os seus lábios se afastam, como se não esperasse tal pergunta, mas há reconhecimento em seu rosto.
— B-bom… — O seu gaguejar é tão reconfortante para mim que talvez ele nem imagine. Saber que está tão nervoso quanto eu, no bom sentido, me assegura mais. — U-um só parece… Um só é ótimo. — Peter assentiu várias vezes, como em uma tentativa de assegurar suas palavras. Meu rosto se aquece mais, ainda que seja minha opção favorita também. Repeti seu gesto. — Mas se o Tony pegar a gente debaixo de um só cobertor, eu sinto que ele vai me pendurar no topo do Empire State e o sofá está se mexendo sozinho?
Não, na verdade não está. Observo como o piloto automático funciona apenas por eu querer o sofá de uma maneira, ondulações violetas de meus poderes sendo responsáveis por movimentar a estrutura e dispor as almofadas que eu desejei se alterarem.
— Sou eu — Informo ao seguir em sua direção, ainda segurando os dois cobertores e os dispondo sobre o sofá, acenando com a mão para aproximar ainda mais a mesa de centro. Quando encosta na costa do meu joelho, decido que está bom. Olho para Peter em uma tentativa de explicar meus planos, mas ele parece ainda tão incrédulo com meus poderes como sempre. — Dois cobertores, Homem-Aranha — Aviso ao chamar sua atenção e ele volta a me olhar, um leve rubor no seu rosto. — Um para nós e um extra para que eu não precise impedir meu pai de te pendurar no Empire State.
— Você sabe que isso que faz quebra umas mil leis da física, certo? — O apitar do cronômetro em seu relógio parece o despertar e Peter sorri para mim antes de voltar para a cozinha. — E boa ideia, ! — Ele elogia alto ao começar a chacoalhar a panela de pipoca.
Me junto a ele sem demora, apenas colocando o controle da televisão no encosto do sofá e retornando para cozinha a tempo de pegar um dos dez baldes de pipoca que Tony comprou para o Complexo, me preocupando quando Peter segura nas alças quentes da panela para despejar a pipoca. Quando volta com ela para o cooktop desligado, vejo que as pontas de seus dedos estão um pouco vermelhas e faço uma nota mental para lembrá-lo de usar uma pomada. Como da última vez que fez pipoca para mim no Queens, eu sou a responsável por adicionar o sal e misturá-la um pouco no balde.
— Obrigada, Pete — Agradeço-o enquanto apanho o resto das coisas sobre a ilha, jogando os doces em um outro balde de pipoca. Ao passar por mim na direção da geladeira, Peter toca minha cintura com cuidado, assim como fazia com meu braço para me agradecer por algo antes de estarmos juntos. — Os refrigerantes estão no freezer. — Lhe aviso ao levar tudo para a sala, dispondo a pipoca e os doces em cima da mesa de centro e separando dois porta-copos para nós.
Me sinto ansiosa, mas não da forma terrível e sufocante de sempre. Não. É uma ansiedade confortável que me faz querer sorrir sem nenhum motivo aparente além do fato que assistiremos um filme juntos, o que já fizemos algumas vezes em seu apartamento mas agora parece algo inédito pois, talvez, eu vá colocar minha cabeça em seu ombro e Peter passe o braço por mim. Pela segunda vez, corro os dedos pelo meu cabelo, sonhando que isso possa tirar todas as bobagens da minha cabeça, mesmo que elas me deixem eufórica. Só assim percebo a linha tênue entre ansiedade e felicidade.
— Que filme você quer… — A pergunta morre em minha boca quando vejo Pete se aproximar com, além dos refrigerantes e um guardanapo, uma bolsa de gelo. — Não… — Aperto os olhos ao sentar no sofá.
Sim. — Peter não parece se importar com minha recusa ao sentar do meu lado, sua calça de moletom fazendo cócegas em contato com minha perna desnuda que justifica a necessidade de um cobertor. — A doutora Cho disse que precisa fazer a compressa, — Ele coloca as latas de refrigerante sobre os porta-copos cuidadosamente antes de envolver a bolsa de gelo no guardanapo de pano. — São só vinte minutinhos e você pode tirar, eu prometo. — Somente quando Parker beija minha testa eu desisto de reclamar outra vez.
— Você parece a minha mãe. — Suspiro derrotada ao sentar-me corretamente no sofá e enfim erguer a perna que, para meu azar, já havia começado a incomodar. A última vez que eu levei um tiro foi quase cinco anos atrás, muito antes de Tony me salvar e eu já havia esquecido a dor de um. Estou pegando uma almofada para erguer meu pé quando Peter coloca seu celular em meu colo e levanta do sofá, se direcionando a um dos amontoados de almofadas.

Srta. Potts
online

Peter, meu bem!

Você pode lembrar a de colocar um gelinho na perna? Tenho certeza que ela vai esquecer.

Se divirtam e não durmam muito tarde que amanhã tem aula!



— Essa foi a coisa mais querida e irritante que eu vi na minha vida. — Comento com uma risada impossível de conter, meu sorriso grande ao ponto das minhas bochechas doerem. O toque de Peter em minha panturrilha me desperta e eu olho na sua direção, ele que está procurando a posição ideal para uma almofada que escolheu. — E essa é a segunda coisa mais querida e irritante que eu já vi. — Reintero com um sorriso quando ele olha para mim e eu lentamente coloco minha perna sobre a almofada, sentindo de imediato o alívio que é erguê-la ainda mais.
— Dá pra ver na sua cara que a dor aliviou — Peter suspira aliviado como eu, cuidadoso a fim de não esbarrar em minha perna ao sentar ao meu lado de novo e também erguer as suas no lado estendido do sofá. Não gosto que tenha sobrado pouco espaço para ele, mas Pete não parece ligar para isso ao curvar-se sobre mim para colocar o gelo em minha perna. Uso minha mão livre para segurar o gelo enquanto ele pega seu celular de volta e vai para a tela inicial. — Pronto. Só vinte minutos e você vai estar novinha em folha.
— Você colocou a minha foto como papel de parede? — Minha voz é fraca ao lhe questionar se estou alucinando ou não. Peter afasta os lábios, os movendo como se buscasse por uma resposta e, para minha surpresa, ele os fecha, dá de ombros e assente.
Sim. — Peter me olha e a sua consciência limpa é óbvia. Somente consigo erguer minha sobrancelha, afinal, apesar de ser adorável que realmente tenha gostado da foto, não posso imaginar a sua intenção com isso. — Por favor, finge que não viu isso, — Ele usa a desculpa de desdobrar o cobertor para evitar me olhar, ainda que suas orelhas e pescoço estejam vermelhos. Mordo o interior do lábio para evitar me inclinar um pouco e beijar abaixo da sua orelha.
Mas, ao em vez disso, fico em silêncio e sorrindo como uma idiota enquanto Peter cobre a minha perna ferida com o cobertor e então nos cobre até a cintura, apanhando a pipoca e a colocando no espaço minúsculo entre nós dois, tão miudo que o balde fica um pouco torto e algumas pipocas caem. Eu as pego e coloco na boca ao encostar-me mais nele, segurando a risada necessária para ignorar que Peter enfiou um punhado enorme de pipoca na boca para não poder dizer nada. Mas, ainda assim, quando encosto a cabeça em seu ombro, Peter não hesita em escorregar um pouco no sofá para que eu possa me acomodar melhor.
— Eu espero que esteja marcando os vinte minutos, Parker. — Suspiro quando uma gota de água escorrega por minha perna. É um alívio para a dor, como um anestésico, porém, é estranho ainda não estar melhor. Já se fazem quatro dias desde o acidente e eu já deveria estar curada.
— Falta só dezessete agora — Ele indica, mostrando-me seu relógio. É um relógio muito bonito, igual ao que Tony usa. Concordo devagar, minha bochecha em seu ombro. — Tempo suficiente para a gente achar alguma coisa legal na Netflix. — Não comento nada sobre ele ter dito que seria quem escolheria o que iriamos assistir, mas acabo sorrindo com a situação. Não me lembro de ter sorrido tanto em algum momento da minha vida como fiz com Peter nos últimos dias. Com o controle, entro na Netflix, bufando ao ver que Tony trocou o ícone de meu perfil pela milésima vez. — Eleven até combina, vai.
— Eu nunca assisti essa série, mas a MJ disse que ela é legal… — Comento, preparada pra maratona que será encontrar algo decente na Netflix. A primeira opção que surge é TOP GUN: Asas Indomáveis e, quando olho para Peter, ele faz uma careta. Continência ao Amor vem logo em seguida. — Quem está controlando isso, o Exército?
— Extraordinário é legal — Peter indica o filme abaixo da seleção de propaganda militar. — Mas você chorou quando a gente assistiu da última vez, então… — “Caiu sal de pipoca no meu olho” É a pior e mais improvável justificativa do mundo, e é por isso que Parker dá uma risada incrédula. — E então o que foi aquilo de você e a MJ fungando quando quebraram o aparelho auditivo do Auggie?
— Você e o Ned ficaram com cara de choro quando o Batman “morreu” em Cavaleiro das Trevas e eu não disse absolutamente nada. — Recordo com um aperto em seu braço.
— O Alfred estava chorando, , por favor… — Entrego o controle para Peter quando me inclino para verificar as horas no seu relógio. Mais catorze minutos. Ele passa por mais um monte de filmes, comentando sobre como “Madrugada dos Mortos” soava uma boa opção. — É o que eles ficam no shopping, — Parker confirma minhas suspeitas mas eu balanço a cabeça. — Ok… Sem guerra e sem zumbis ou criancinhas chorando. — “Não é tão difícil” Comento ao comer um pouco de pipoca e me inclino para pegar uma lata de refrigerante. — Eu pego — Peter me intercepta e o faz para mim, também abre a lata para completar antes de voltar para a posição antiga. — Isso descarta Train to Busan, certo? — Concordo ao tomar um gole do refri, voltando a encostar a cabeça no ombro de Peter. Ele propositalmente passa por Footloose sem nem questionar e eu dou risada com o nariz encostado em seu ombro. Mais uma seleção enorme de filmes passa até que algo chama a minha atenção.
— Orgulho, Preconceito e Zumbis! — Pepper considera o filme uma piada de mau-gosto, mas ainda assim eu o assisti e não vi muitos problemas.
— A May vai morrer de desgosto… — Peter avisa com um balançar de sua cabeça enquanto me inclino um pouco para apanhar o StarkPad sobre o sofá e desligar as luzes da cozinha e algumas da sala. Concordo repetidamente, tentando decidir se deixo a luz da varanda acesa ou não. “Sabe, o livro não é tão ruim quanto soa.” Garanto ao voltar para perto dele, encolhendo-me quando Peter passa seu braço por meu ombro. — Existe um livro disso? — Assinto outra vez. — MJ? — Repito com um sorriso. — Sabia.
Quando estou confortavelmente aninhada na lateral do corpo de Peter, ele inicia o filme. Obviamente é um pouco difícil concentrar-me no filme de primeira, seja pelo gelo em minha perna ou por estar quase apoiada por completo em Peter, com seus dedos acariciando meu braço. Já assistimos inúmeros filmes juntos em sua casa, mas eu no sofá e Peter sentado no tapete ou com uma distância considerável entre nós. No entanto, não me sinto minimamente desconfortável, apenas com aquela mesma euforia que é muito fácil de ser confundida com ansiedade. Percebo que não sou a única com um resquício de ansiedade, reconhecendo que Pete está balançando sua perna inconscientemente, o que May já havia reclamado uma vez e eu ainda não havia percebido acontecer muito fora da escola. Mas, o tremor passa assim que dobra tal perna e eu me inclino mais em sua direção, o fazendo rir ao tentar olhar em seu relógio outra vez, recebendo apenas um beijo casto na têmpora.
— Só mais um pouquinho, tá? — E eu sei que ficaria submersa em um rio congelado para ouvi-lo falar comigo tão carinhosamente assim todos os dias. Quando o Coronel Darcy abre o potinho de vidro com as moscas que detectam zumbis, Peter murmura algo sobre matá-las sem oxigênio no potinho, desatento para a parte interessante da cena. — Não faz o menor sentido colocarem insetos em um… — Tomo outro gole do refrigerante, ignorando o tensionar vindo de Peter quando a sobrinha do Sr. Kingston vira o rosto para a câmera em um jumpscare óbvio. — Ah, que legal…
— Como nós vamos assistir IT se você se assustou com algo assim? — Questiono baixinho, relembrando como Peter apenas fechou seus olhos em desistência quando MJ, Ned e eu comentamos sobre querermos assistir o filme.
Nós não vamos. — Ele declara ao pegar o balde com os doces, a pipoca ficando em meu colo. — Vocês vão assistir o filme do palhaço assassino enquanto eu vou assistir Power Rangers. — Faço um som de desagrado com a montagem no filme conta a história da Londres regencial apocalíptica. — M&M — Peter estende a embalagem de M&M para mim, já aberta. — Depois que vocês souberem todos os jumpscares eu tento assistir daqui a alguns anos.
— Power Rangers? — É a única pergunta que lhe faço, ignorando a introdução da família Bennet para olhá-lo apesar das poucas luzes acesas.
— Palhaço assassino? — Peter retruca, imitando minha expressão.
Os vinte minutos seguintes do filme se passam em um silêncio confortável, e é como era antes. Não passamos o filme inteiro conversando como detestamos que Ned costume fazer, o que certa vez acabou o banindo para o tapete na vez que fomos assistir Animais Fantásticos no apartamento de Peter. Quando chega o momento de remover o gelo, pauso o filme pois Peter decide levar a compressa novamente para o freezer, avisando que terei de usá-la novamente em mais vinte minutos. Enquanto o espero, puxo o cobertor para debaixo de meu queixo, sentindo falta do calor de seu corpo que nem mesmo percebi ser tão necessário para ignorar o frio. Assim que ele retorna e desliza para debaixo do cobertor comigo e me traz mais para perto, percebo pela milionésima vez que o Peter é quente como uma fornalha. Ele tenta me oferecer uma gummy worm quando chega a cena do encontro de Lizzie e a zumbificada Sra. Featherstone após eu lhe avisar que haveria outro jumpscare. Pego a bala apenas para lhe oferecer de volta, seus lábios encostando em meus dedos quando a recebe, murmurando que não entende como não posso gostar do seu “doce da infância complicada”, como apelidei assim que o apresentou para mim pela primeira vez.
Eu apenas lhe ofereço um M&M em troca.
— Qual é o appeal do Mr. Darcy? — Sussurro sem entender o desespero da Srta. Bingley.
— Ele é misterioso e rico — Peter explica ainda sem muita confiaça. — May acha o outro Mr. Darcy bonito — Saber que Peter se preocupa tanta com a opinião da tia para mencioná-la é fofo. — O do filme da atriz que parece a Padmé.
— A Padmé parece com a Keira Knightley?
— Você precisa assistir os primeiros filmes de Star Wars, . — Peter ri baixinho.
E, pela primeira vez em séculos, não quero que meus pais voltem logo para casa.
O filme continua com alguns comentários pontuais, desde algo sobre Doctor Who e o ator que interpreta o Mr. Collins, até eu o avisando sobre mais uma cena com zumbis. Logo, o cansaço que sinto começa a mostrar seus primeiros sinais, meus olhos ardendo um pouco e eu me apoio mais em Peter, descartando a almofada e praticamente deitando-me de lado da maneira mais cuidadosa que eu posso. Pela metade do filme, quando o insuportável do Tenente Wickham surge e meus M&M acabam, estamos deitados lado a lado no sofá como ficamos em minha cama na noite do nosso primeiro beijo. Minha cabeça está apoiada no peito de Peter e seu abraço ao meu redor mantendo-me segura e mais próxima possível dele. E como naquela noite, eu posso ouvir seu coração um pouco mais acelerado do que o normal, apesar do carinho que Peter não deixa de fazer onde for que sua mão toque.
— Então nós já decidimos que você vai ficar com todas as minhas roupas? — Peter indaga com a voz mais cansada que antes, revelando como os últimos dias também foram cansativos para ele e como nós dois realmente merecemos deixar aquele laboratório e descansar um pouco. A este ponto, não faço a mínima ideia se terminaremos de assistir o filme, mas não poderia me importar menos. “Hum?” Murmuro, virando o rosto para o olhar, o seu cabelo meio bagunçado pela fricção com o sofá, deixando sua aparência ainda mais sonolenta e adorável. Sua bochecha está um pouco marcada com a textura de meu cabelo de quando apoiou a cabeça na minha, mas seu sorriso é amável. Peter toca na camisa que visto, segurando o tecido entre os dedos enquanto Elizabeth Bennet e o Coronel Darcy estão lutando em cena. — Esse moletom é meu. — Me ergo um pouco ao tentar analisar a roupa que se refere, apenas reconhecendo que sim, o moletom é seu e não é uma camisa de manga longa como imaginei ser. É só um moletom de tecido fino que, no fim do dia, é a cara de Peter.
— Não lembrava, Pete. — Murmuro novamente, voltando a deitar em seu peito, buscando o seu calor e fechando os olhos quando volta a me cobrir com o cobertor e envolve os braços por mim, o calor contido entre nós.
— Tudo bem — Sua voz está meio grogue de sono, mas não camufla o sorriso que sei estar estampando o seu rosto e se confirma quando beija minha testa. A televisão está tão baixinha que eu o escuto perfeitamente quando confessa baixinho para mim. — Ficou muito mais bonito em você, .


Homecoming XXII — The Truth Untold

(Nove meses e vinte e nove dias desde a queda dos Vingadores – terça-feira.)

A mão de Peter cobre meu ouvido quando o som alto me alcança, garantindo-me que ele está bem ali apesar do barulho irritante que me desperta. Levanto a cabeça quando a luz começa a me incomodar, indicando que já amanheceu e o som todo deve emanar de um muito bem-humorado Tony Stark.
— Santo Deus… — Peter resmunga com a voz pesada de sono enquanto me esforço para sentar, cerrando os olhos para conseguir enxergar alguma coisa. — Devagar, devagar — Seguro a sua camisa firmemente quando quase escorrego do sofá, a sua mão que apoia a minha costa sendo o que me impede de cair. — Pronto, pronto.
Olha a mão, Parker!
Desconcertada com despertares barulhentos todas as vezes que durmo ao lado de Peter, luto para ficar de joelhos sobre o sofá, um pacote de M&Ms pinicando meu joelho quando viro para aonde Tony está de pé com uma colher de madeira e uma frigideira. Ele está com um sorriso mais que satisfeito ao me olhar, abaixando a panela e inclinando-se para dar um beijo igualmente contente em minha testa, com um óbvio sentimento de missão cumprida. Somente consigo sustentar o meu olhar de irritação por um instante antes de um bocejo longo escapar e a risada não muito distante de Pepper soar na cozinha e incluindo, mesmo assim, um ralhar dela por Tony “ter acordado as crianças com um panelaço”. Daqui, sinto o cheiro de bacon e ovos. E pipoca, pois há pipoca no chão. Volto para a posição anterior ao me sentar no sofá e aguardo enquanto Peter se espreguiça; as pernas bem esticadas e camisa escura subindo um pouco ao cruzar os braços sobre a cabeça, o que me leva a tomar a decisão de voltar a olhar a bagunça no sofá.
— Bom dia. — Não tenho forças para lhe cumprimentar, ainda incerta se meu pescoço dói pela posição em que dormimos ou se é um resquício de desconforto do acidente, então viro minha cabeça para ele o mais devagar que posso e sua mão esquerda toca meu rosto, afastando o cabelo grudado nele com cuidado, apenas um olho aberto e sua face tão inchada de sono como a minha deve estar.
Peter continua encantador apesar das bochechas fartas pelo sono e os olhos apertados. Com isso em mente, encosto o rosto em seu peito, curvada sobre ele por um instante antes de desistir e me deitar de vez no sofá, a cabeça em seu peito novamente. Ele passa o braço no espaço minúsculo entre as almofadas e meu corpo antes de pousar em meu estômago, onde seguro a sua mão enquanto removo os grãos de pipoca grudados na minha perna. É só após lançar o quarto grão não estourado de milho no balde em cima da mesa que tento lhe olhar.
— Bom dia. — O cumprimento é fraco suficiente para lhe arrancar um sorriso sonolento e querido, meus olhos se fechando quando, apesar do ângulo terrível, Peter se inclina e encosta seus lábios logo abaixo de minha têmpora, quase em minha orelha. Não é um beijo, é mais um esfregar do seu nariz perto da raiz de meu cabelo, mas é tão gentil como um. Ele afaga a que está segurando e eu tenho consciência suficiente para saber que, muito em breve, meu pai aparecerá de novo e não será muito fã de nos ver tão próximos outra vez. — Horas?
Peter ergue o braço, esfrega os olhos e então tenta olhar no relógio de novo.
— Sete e doze — Ele suspira e eu também. — A gente vai atrasar?
— Acontece — Não me sinto muito capaz de dizer mais de uma palavra de cada vez. Pode ser a sede por comer tanta pipoca ou o sono que nunca foi tão pesado assim, mas entrelaço os nossos dedos e, com mais esforço que necessário, tento me sentar de novo e tenho sucesso. Peter também se levanta, observando a bagunça na mesa de centro e, mesmo segurando minha mão, começa a catar o lixo, juntando tudo no balde de pipoca. Como na ala hospitalar após o acidente de May, me apoio nos seus ombros, aguardando que ele termine o trabalho desnecessário para subirmos. — Não precisa.
— É rapidinho. — E é, pois em menos de um minuto, Peter já juntou tudo e promete que vai jogar no lixo quando descermos. — Viu? — Concordo devagar quando ele fica de pé, a lentidão do meu assentir baseada nas pontadas que sinto na cabeça. Também devido a ela e a dor na perna, me seguro em seu pulso ao caminhar.
— Peter? — Estamos a caminho do elevador quando ouço a voz de Pepper e me apoio na moldura de mármore quando ele vira-se para ela, tentando parecer mais acordado ao arregalar bem os olhos e erguer a cabeça. É uma tentativa, sem dúvida, e eu apenas observo como o seu cabelo está uma bagunça. — Onde colocaram o gelo de ontem, filho? — É preciso só uma olhada de Pepper para nosso estado para que ela encoste a mão no rosto e segure o riso. — Quer saber? Deixa isso pra lá, meninos. Acordem um pouco antes de ir para a aula.
Ergo uma joinha para ela antes de me arrastar para o elevador, Peter no meu encalço.
Meu banho demora muito mais que o esperado, ainda que eu não lave o cabelo, só use o mesmo óleo extremamente cheiroso que Pepper usou nele antes da festa de Tony. A demora se dá pelo susto que levo ao remover o curativo em minha perna e perceber que ainda estou muito longe do nível de cura que outrora o ferimento estaria. Como em qualquer tiro, o rombo é oval e é loucura considerar que o Dr. Cross considerou ser causado por um vidro. De qualquer forma, o problema se funda, não só na demora inesperada de meu corpo em recuperar-se, mas na secreção que escorre após a remoção do curativo e no estado cianótico mais que exagerado da pele ao redor do ferimento. Está tudo roxo e inchado, assim como demasiado sensível ao toque e úmido.
Com o coração acelerado e mãos trêmulas ao reconhecer quão deplorável minha situação é e como realmente irei precisar de ajuda para voltar ao normal e tentar consertar isso, permaneço em meu banheiro por alguns minutos ao tentar fazer um novo curativo, até mesmo utilizando a pomada que o Dr. Banner havia feito para Natasha antes de desaparecer após Ultron. Ela a usou em mim ao retornarmos de Sokovia, logo após me ajudar a tirar as roupas encharcadas com o sangue de Pietro. A pomada é enfiada no bolso de minha mochila quando retorno para o quarto após lutar para me vestir, o jeans mais largo possível, evitando evidenciar meu curativo refeito. Visto algumas camadas de roupa até finalmente vestir o cardigã branco que queria usar, a camisa preta por baixo me agradando e destacando meu colar novo. Não ouso tirar os brincos em momento algum e sento na ponta da cama para tentar me calçar, ciente que a dor em minha perna é por ainda não ter tomado os medicamentos.
Preciso falar com a Doutora Cho sobre eles e talvez pedir alguns mais fortes.
— Deixa que eu amarro.
Ergo minha cabeça que estava abaixada na direção de meus pés, as meias já calçadas de forma desleixada pois detesto a ideia de comparecer à aula agora, mas entendo a necessidade e me forço a tentar. Peter caminha para dentro do quarto até me alcançar no pé da cama e se ajoelhar para auxiliar com o tênis, mesmo sem que eu sequer tenha lhe pedido. Não há dúvida alguma que May o criou muitíssimo bem. Iria mencionar algo sobre cavalheirismo, mas as palavras soam desnecessárias quando sua aparência se mostra mais interessante, então me pego engolindo em seco agora que sua cabeça está baixa e os fios um úmidos e ainda bagunçados pingam um pouco em minha calça jeans. Ele está com a mesma combinação que funciona muitíssimo bem para ele: camiseta simples, camisa de flanela e o jeans. Também sinto o cheiro de qualquer coisa que é única dele: menta e sândalo. Contudo, as roupas novas são um pouco diferentes das antigas que facilmente disfarçavam seus músculos, talvez sendo os jeans novos que lhe se encaixam muito bem ou o casaco novo, mas Peter parece maior. Estendo a mão para trás para a toalha que separei no caso de decidir lavar o cabelo e a seguro logo abaixo de seu cabelo.
— Será que o Sr. Stark vai ficar irritado? — Parker desliza meu pé para dentro do tênis escuro, as veias em seus braços se saltando quando começa a amarrar o cadarço. Seco um pouco dos seus fios úmidos e o indago em tom baixo qual seria o motivo de tal irritação e o herói dá de ombros e murmura algo sobre não apertar muito o cadarço. — Nós acabamos caindo no sono juntos de novo. E tem também o clássico: mexi com a filha de um Vingador.
Mordo o interior da minha bochecha enquanto ele passa para o outro pé.
— Pepper disse para dormirmos cedo, não? Não houve especificação de circunstâncias.
Black… — Peter faz um som com a língua, como se reprovasse o que falei, no entanto, ele está sorrindo um pouco ao começar a calçar o outro pé, cuidadoso ao movimentar minha perna doente. Engulo em seco ao lembrar-me da situação do ferimento. — Como está a sua perna? — Afasto a toalha para olhar seu rosto que se eleva até mim e demonstra uma preocupação velada com minha saúde. — Está se sentindo melhor?
— Estou bem. — Detesto a ruga preocupada em sua testa. — Está tudo bem.
Peter me observa por um momento a mais, desconfiado e desapontado. Eu me encolho.
— Te conheço melhor que isso. — É simples. As poucas palavras concentram bem a sua decepção que embola meu estômago e faz meu rosto inteiro pegar fogo. Engulo em seco, devido a sede e o embaraço de ele não precisar de muito para detectar minhas mentiras, assim como a vergonha de o desapontar com o mesmo comportamento que já havíamos discutido ser terrível para nós.
Corro a língua por meus lábios, rompendo com meu voto de silêncio.
— Não sinto que teve melhora nenhuma desde o acidente. — É uma confissão pequena e que eu costumeiramente não faria para ninguém. Por anos, meus ferimentos se curavam sem nem mesmo um anti séptico e talvez esse seja o motivo de eu ser tão adamante em tratá-los hoje. Peter põe meu pé no chão e se acomoda melhor de joelhos, mãos apoiadas em meus tornozelos ao me olhar com atenção. Ele não parece confiante em me ouvir, mas confiante em saber que estou falando a verdade. — E é uma dor tão funda e aguda que é difícil ignorar. — A dor costuma atravessar toda a minha perna, como um choque elétrico em um corpo molhado, comparação que entendo bem por já ter lhe sentido. — Sempre que eu ando, parece que estou forçando a perna em uma afiada.
O suspiro de Peter é pesado, profundo e aflito. Tudo em um único sopro de ar que ele dá na direção oposta a mim ao esticar-se e puxar a cadeira de minha escrivaninha, sentando-se sobre ela e a rolando mais para perto, ao ponto de nossos joelhos se tocarem antes de ele abrir um pouco suas pernas e me acomodar ali. Levo minha mão para seu joelho e Peter a aperta, um impulso inconsciente de ambas as extremidades. Curvo os dedos ao redor de seu dedão.
— Precisa falar com o Tony. — Outra vez, ele tira o cabelo do meu rosto, mesmo que eu prefira os fios ali para que eu não precise olhá-lo diretamente.
— Eu vou falar, de verdade. — Pela primeira vez, não minto sobre o assunto e sei que Peter sabe que falo a verdade. Minha preocupação parece compensar meu medo. — E com a Doutora Cho, também. Mesmo não tendo terminado ainda com os remédios, preciso falar com eles. — Peter assente veemente, segurando minha mão com ambas as suas, ao ponto que sinto a tensão se dissipar de seu corpo em um outro sopro de ar que lhe faz assentir de novo. — Continuo sentindo que há algo errado e, se falar, vou precisar contar a verdade ao Tony e a Pepper sobre o atentado. — A conclusão não é atraente, mas entendo que Peter não mente ao dizer que devo fazê-la para meu bem. É uma mentira pesada demais para sustentar. — Acho que não tenho escolha. — Dou de ombros. — Quando tomo o remédio, de imediato, eu me sinto melhor. Depois a dor parece piorar duas vezes mais até a hora de tomar a nova dose. A cada dia, parece aumentar. — A última frase o faz franzir a boca e apertar os olhos, de forma que demonstra sentir dor das minhas palavras.
— Você parece mais fraca, apesar de estar mais lúcida hoje do que nos últimos dias. — Seus olhos me analisam como se eu fosse uma fórmula defeituosa, elencando os erros na sua cabeça e seu rosto se carrega de frustração apesar do sorrisinho com a piada. — Está realmente mais fraca. Brincadeiras à parte.
— Está tão aparente assim? — Indago com um tapinha em seu braço. “Lúcida.”
Os ombros de Peter estão caídos e a coluna curvada.
— Sim. — Ele lamenta com um sorriso fraco, escancarando seu intuito de me acalmar ainda que esteja preocupado. Molho os lábios, consciente que minha imagem não está nada boa e até um pouco embaraçada de ficar assim diante dele. Porém Peter segura meu rosto, afaga minhas olheiras com os dedões, como se pudesse afastar a coloração escura abaixo delas. — Sua pele parece ter perdido o brilho, não sei…. Você está radiante, emocionalmente. Mas seu corpo parece cansado. Até o seu coração soa como se estivesse trabalhando o dobro. Sei que está cansando rápido também. — Eu engulo em seco, percebendo que ele tem enumerado cada probleminha em sua cabeça há um tempo, uma vez que os solta sem pestanejar, sem precisar percebê-los agora. — E eu vou ser chato e pedir, quantas vezes forem necessárias, que conte a verdade para os seus pais.
— Não está sendo chato. Está preocupado comigo, o que é justo. — Assumo ao segurar os seus pulsos, o calor de sua pele sendo reconfortante. Um tanto como sua expressão de surpresa velada. — E está certo, acima de tudo.
— Está delirando ou esse seu gênio-forte também está perdendo força? — Solto o pulso que Peter pressiona em minha testa, medindo minha temperatura com humor. — Acabou de dizer que estou certo e, pior ainda, que você está errada? — Reviro meus olhos para sua careta incrédula.
— Eu não suporto você. — Resmungo e seguro seu rosto com uma mão, os lábios de Pete se apertando em um biquinho antes de eu os cobrir com os meus rapidamente. Sinto seu sorriso e eu o correspondi antes que ele se afastasse, checando meus pés uma última vez antes de levantar e me oferecer suas mãos para que eu faça o mesmo.
— Vamos — Convoca atento para meu equilíbrio ao se afastar e pegar minha mochila na escrivaninha. Eu aviso que posso levar, mas ele balança a cabeça. — Deixa que eu levo.
De mãos dadas, nós deixamos meu quarto e só assim percebi que sua mochila já estava sobre os seus ombros este tempo todo. Peter me desvia das escadas e chama o elevador ao tirar o seu celular do bolso após uma mensagem de Ned identificável pelo ringtone ser o som de um sabre de luz.
— Ned avisou que vamos ter que subir a corda na aula de educação-física. Ele encontrou o professor no metrô. — Peter me informa do conteúdo da mensagem e eu franzo o nariz. — Não é como se você fosse milagrosamente dar as caras na aula, mas, qualquer coisa, pode falar que está com a perna ferida. — Pete me informa ao entrarmos no elevador e eu dou risada ao apertar o botão para o andar comunal.
— Já fui para a aula uma vez, sabia? — Evito sua acusação velada sobre o fato de MJ subornar o professor com chocolate para podermos faltar e recebo apenas um olhar desconfiado dele, certo de a história ser uma mentira. — É verdade! — Garanto e Peter encosta a cabeça no espelho do elevador, o rosto virado para mim ainda descrente. — No primeiro dia de aula, você e o Ned estavam fazendo flexões enquanto eu e a MJ estávamos sentadas no banco e o Ned disse que você conhecia o Homem-Aranha. — As sobrancelhas de Peter se erguem ao relembrar-se do dia e reconhecer que eu estou certa. — Tudo porque você babava pela Liz Toomes e ela falou que o Homem-Aranha era bonito. E eu preciso concordar com a Betty porque aquilo não deixa de ser estranho, já que usa uma máscara e você podia ser muito bem um homem de meia idade como os outros heróis.
— É sério que a única vez que você assistiu a aula de educação-física foi quando não nos conhecíamos e eu estava tentando, do jeito mais inútil possível, impressionar outra garota? — Peter me olha abobado e eu dou de ombros. Ele balança a cabeça, as orelhas rosadas de vergonha. — Isso só pode ser piada...
— Eu pensei em assistir a aula mais algumas vezes, de verdade, mas é muito chato.
O elevador pára e nós descemos, bom, eu desço e Peter permanece parado e me olhando como se eu houvesse criado uma segunda cabeça. Estendo a mão a ele e ele vem para mim, a mesma expressão de leve confusão e ponderação em seu rosto, algo que prefiro ignorar ao nos aproximarmos da cozinha. Afasto qualquer pensamento assim que reparo na montanha de comida sobre a ilha. Abro a boca para dizer algo mas Tony passa por nós entregando um prato cheio em minha mão e um copo de suco para Peter enquanto Pepper enrola uma banana em plástico-filme.
— Nem vou perguntar se dormiram bem porquê o garoto ronca igual um trator e você parece que não dormia a dias, Monstrinha. — Meu pai comenta ao preparar outro prato. Imagino que deveria estar tão cansada que nem sequer me lembro de ouvir Peter roncar. Ou talvez seja só piada.
— Bom dia, de qualquer forma. — Cumprimento ao soltar a mão de Peter enquanto bebe o suco, olhos fechados e rosto um pouco vermelho. Pepper sorri com doçura e coloca duas sacolas de papel-pardo sobre a ilha.
— Sanduíches, tá? — Ela indica e eu assinto, me sentando no banquinho quanto Tony retorna com um outro prato e coloca onde quer que Peter se sente. Três cadeiras de distância de mim. Aperto os lábios para não rir da implicância. — As bebidas vocês compram na escola, tá? Eu botei um dinheirinho para comprarem um doce ou qualquer coisa que quiserem, também.
— Muito obrigado, Srta. Potts. — Peter agradece por nós, sentando-se e pondo as nossas coisas nos banquinhos vazios entre nós, somente começando a comer quando se certifica de que tudo está equilibrado. Pego um pouco dos ovos mexidos quando Tony senta na ponta da mesa improvisada, vigiando-nos e principalmente a mim enquanto como. Ele desliza um copo de suco de laranja para mim igual o de Peter e eu tomo uma golada para o satisfazer.
— Come a maçã, também — Tony aponta para meu prato que só agora percebo ser mais saudável que o de Peter, com mais frutas e menos bacon. Na ausência de bacon, há farelo de aveia em cima das frutas e umas sementes estranhas. Chia ou linhaça ou qualquer outra que Pepper coloca nas frutas deles. — Tem mais vitamina que suco industrializado. — Concordo com a cabeça, mesmo revoltada com o ultraje que é Peter ter cinco fatias de bacon no seu prato e eu não ter nenhuma.
— Peter, a May vai ser levada para o Queens hoje como nós tínhamos combinado, ok? — Pepper avisa com a mão no ombro dele após grampear as sacolas de papel. Engulo a comida, incerta sobre ter sido informada tal coisa também. Talvez eles tenham conversado enquanto eu dormi ontem pela tarde ou algo do tipo, então me atento ainda mais na conversa para não perder mais nada. Peter assente, limpando a boca com o guardanapo. — A Doutora Palmer recomendou uma enfermeira para ficar com vocês te dando apoio enquanto a May se recupera, assim como alguns medicamentos para continuar o tratamento do coração. Acredito que até a hora de você chegar da escola, já vai estar tudo organizado no apartamento e eu vou lá assim que sair da reunião para visitar vocês.
Aguardo por alguma resistência de Peter, mas ele não diz nada e eu realmente considero ter perdido toda a discussão acerca da ajuda que Tony e Pepper desejam dar para May. Volto a comer e faço uma nota mental para questionar Peter sobre tudo o que aconteceu enquanto eu dormia.
— E, , nós precisamos conversar hoje a noite, ok? — Engulo a colherada mais cheia de farelo de aveia possível, precisando tomar um pouco de suco para ajudar a mistura a descer, seja pela secura da aveia ou pelo aviso de Pepper que me deixa imediatamente tensa. Limpo a garganta e, assim que meus olhos encontram os de Peter, entendo que será o momento certo para discutirmos a questão do atentado. Eu assinto para Pep, percebendo como a sua expressão está um pouco mais séria ao me olhar desta vez.
Eu engulo em seco, pegando um cubo de melão no prato.
— Também preciso conversar com vocês dois sobre algo. — Cruzo minhas mãos sobre a mesa, mantendo minha expressão o mais amena possível apesar de uma cólica nervosa se formar. Eu ouso olhar para Pepper de novo, mas também vejo Peter e o alívio em seu rosto.
— Aconteceu alguma coisa?
Sinto a mão de Tony em meu ombro e a cubro com a minha em um reflexo.
— A verdade é que sim, mas… — Pepper está se movendo para vir até mim e eu seguro a respiração, o que faz Tony apertar meu ombro com apreensão. Não vou fazer isso agora. Sei que vou soltar a bomba e ser colocada de castigo em meu quarto, mas não agora. — De noite, pode ser? — Alcanço a mão de Pepper sobre a ilha e ela a curva, apertando as pontas dos meus dedos, a expressão apreensiva se amenizando.
— Claro, meu amor. — Ela assente várias vezes, mais para si do que para mim. Tony também emite um som de concordância e Peter encosta o queixo no peito. — Vai com o Peter para o Queens depois da aula, tudo bem? Busco você assim que sair da Torre.
— É melhor assim. — Tony dá um tapinha em meu braço ao se levantar e empurrar meu prato mais para perto de mim e fazer o mesmo ao passar por Peter, ele que conteve sua fome para nos observar. — Conversem no carro e a chega aqui com a orelha quente, já. — Tento sorrir, mas não consigo no momento. Ele vira para mim ao jogar sua garrafinha vazia de suco-verde na lixeira. — Essa cara de culpa aí não tá enganando ninguém — Somente respiro, soltando a mão de Pepper. — O estrago vai ser grande, não vai?
— Vai. — Assumo com a última gota de coragem que consigo. — Daquele tipo você-não-volta-mais-para-Midtown-grande.
— Beleza… — Tony bufa as mãos nos quadris. — Vou tomar meu remédio pro coração.
Abaixo o rosto ao terminar de comer, me mantendo em silêncio até o resto da refeição, apesar da tensão absurda que imaginei que se formaria ser menos que fantasiei. Pepper também se junta a nós após trazer mais um prato de panquecas e mais ovos e pela primeira vez vejo Tony se esforçar para comer a comida que está na mesa, até mesmo cutucando Peter por suas roupas novas e questionar sobre as camisetas da sua vergonhosa escolha de franquia favorita e como Star Trek tem as melhores publicidades. Engulo as panquecas que Pep coloca em meu prato e dou algumas risadas apertadas quando brinca sobre não fazer rostinhos nelas com gotas de chocolate, mas por fim é só o que eu faço.
Quero sair correndo em determinado momento. Desaparecer como fiz naquela vez que trouxeram um dos brutais torturadores da HYDRA, o mesmo que quebrou minha perna uma vez com uma barra de ferro enferrujada. Natasha e o Sargento Barnes “cuidaram” do que eu não tinha nem a habilidade nem a coragem para enfrentar, de forma que Steve e Tony precisaram lidar com as consequências de um criminoso sob a custódia dos Vingadores ter “desaparecido”. Contudo, não há ninguém aqui além de mim para suportar isto. Tento reproduzir a postura calma que Tony e Steve Rogers assumem quando têm de lidar com casos particularmente difíceis.
Nós terminamos de comer e Tony avisa que não precisamos lavar a louça, dando um tapinha no braço de Peter ao guiá-lo para fora da cozinha sem mim. Considero que ele deseja que eu fale sozinha com Pepper e por isso está levando Peter para longe, mesmo que a conversa seja segura para ele também ouvir. Tudo, no fim do dia, vai ser ouvido por Peter e sua super-audição. Eu engulo em seco e removo a sujeira do prato, deixando a louça na pia quando sinto o aproximar esperado do Pepper, a sua mão no sul de minha coluna pousando ali de maneira reconfortante
— Está tudo bem? — Ela não demora para questionar o motivo, encostando seu quadril na pedra de mármore.
— Está sim, mãe. — Garanto e ligo a torneira para ao menos lavar meu copo. Não aceito dar tanto trabalho assim.
Pepper pausa por um instante, esticando a mão para fechar a torneira e usando os dedos um pouco úmidos para guiar meu rosto em sua direção com um toque cuidadoso em meu queixo. Seu rosto revela a sua insegurança e eu deixo o copo na pia, apoiando o quadril no mármore para a olhar.
— Tem certeza? — Ela é tão querida a falar comigo que a culpa me devora por dentro um tanto mais voraz que antes. — Sobre o que precisa falar, meu anjo?
— É sobre o acidente. — Assumo, sem coragem de mentir para ela.
Uma tristeza rápida cruza as suas irises e seus lábios se franzem.
— Ainda está ferida, não está? — Junto as pálpebras quando Pepper toca em meu cabelo com delicadeza, o colocando atrás de minha orelha e massageia meus ombros igual faz com Tony.
— Sim. — Confirmo a sua suspeita com pesar e amargor em minha língua. — Mas é sobre como me feri. — Especifico e ela faz um som de concordância. — Juro que falo a noite. — Repito a promessa que tenho intenção de cumprir. — E o que precisamos conversar?
Pepper suspira e desliza o dedo sobre o véu fotoestático que uso para ocultar o ferimento em minha testa. Sua preocupação se reflete na tensão de suas sobrancelhas e ombros, na delicadeza dos seus dedos também ao perceber que, para surpresa e horror, eu não estou me curando.
— Sobre o Peter — Posso sentir o pulsar de minha jugular quando menciona Peter e a necessidade de conversarmos sobre ele. — O Harry — Minha boca está seca, pois não sou estúpida ao ponto de não saber o tópico de nossa conversa ser o quão cruel tenho sido com eles. — Sobre a minha filha não ter muita responsabilidade afetiva com nenhum dos rapazes. — Quando lhe olho, sua face é dura e eu não esperava menos. Apenas concordo com a cabeça, bochechas e pescoço em chamas. — A gente conversa à noite, ok? Te amo. — Pepper afaga minha bochecha e eu assinto, envergonhada.
— Também te amo. — Respiro a declaração para ela.
Minutos depois, sou surpreendida uma outra vez, pois não é Happy que me aguarda com Peter na garagem e sim, Tony Stark em um track-suit e tênis de corrida. E, de certa forma, não é uma surpresa tão grande encontrar os dois debruçados sobre o motor de um dos carros de luxo de meu pai e com a ideia de ir para a escola há muito esquecida por eles. Tenho o bom senso de não os impedir e apenas seguir na direção do Rolls-Royce e o adentrar antes que algum deles note que cheguei e corra para abrir a porta ou pior – decida me carregar para dentro do carro. Estou dando um jeito para que meu livro de questões do S.A.T não ocupe todo o espaço da mochila quando ouço o capô ser abaixado e mais movimentação até que Peter abra a porta contrária de onde entrei com sua óbvia cara de “eu poderia ter feito isso por você” que ele faz sempre que abro uma porta.
— Terminaram de babar no motor? — Questiono com um sorriso, mas o reflexo na janela com fumê me garante que ele foi fraco. Peter coloca sua mochila no banco antes de entrar e logo Tony faz o mesmo, ajustando o banco do motorista pois Happy é maior que ele. Tiro a mochila do caminho para que Peter se sente mais perto, ignorando o revirar de olhos que Tony dá no retrovisor e que está, obviamente, nos vigiando.
— Nunca tinha visto um Rolls-Royce Cullinan de perto. — Pete explica enquanto passo o cinto de segurança, cuidadosa para não amassar minha roupa. Ele também coloca o cinto antes de se acomodar com a mochila no espaço confortável entre si e o banco do passageiro, somente assim vindo segurar minha mão. — O motor é um biturbo do Phantom — Assinto com um sorriso, mesmo não entendendo nada sobre carros e qual o uso deste motor. Mas o sorriso de Peter vale a pena ficar confusa, principalmente por estar animado com o assunto e não preocupado comigo. Afago sua mão, ainda o ouvindo comentar algumas coisas sobre o motor. — Também tem uma câmera 360º e visão noturna.
— Fora que é uma das SUVs mais seguras lançada até hoje. — Papai comenta sobre o ponto mais importante para ele ao ligar o carro com sua mera digital no painel. — Tirou nota máxima no teste de segurança de capotagem e airbags. A blindagem também é nível VII, a mais resistente que existe. — Tony bate com os nós dos dedos no vidro grosso enquanto o painel liga e Peter se inclina para olhá-lo melhor. — Esses vidros aguentam granadas e calibres de uso militar. Fiz uma conversão exclusiva para os carros da gente e os veículos do Complexo, até mais resistente que os que fiz para a SHIELD em 2014.
— Todos os vidros do Complexo são assim, certo? — Peter questiona curioso e nós, Tony e eu, assentimos. O Complexo é um dos locais mais seguros construídos por Tony.
— Com um fumê de uso exclusivo do exércitos e altos cargos, também. — O informo, as portas da garagem se abrindo após o carro subir no elevador. A luz do Sol é agradável, apesar de toda a neve que ainda cobre cada canto onde a luz alcança. — E há a possibilidade de placas de vibranium serem acopladas no vidro, principalmente no caso de um ataque. — O que esperamos que nos ataque não foi exatamente especificado em momento algum, afinal, as possibilidades são diversas. Nós nunca estaremos seguros por completo, mas a farsa é confortável.
— Soa muito como bunker do fim do mundo — Parker sopra, apesar de não estar errado. — Ou um paiol como era antigamente antes de ser um bunker. — Olho para ele, confusa com a nova informação que nunca alcançou meus ouvidos. Eu sabia que o Complexo já “existia”, mas não como um bunker de guerra. — O Sr. Carlson foi o professor de botânica no ano passado e explicou sobre como o Doutor Howard Stark foi o primeiro americano a utilizar um sistema de plantação hidropônica com sementes transgênicas em escala industrial.
— Mas como o meu pai não sabia quando parar de se intrometer no curso da natureza, o projeto foi abandonado antes de alcançar algum consumidor. — Tony suspira ao acelerar, as árvores cobertas de neve tornando-se uma cortina branca nas janelas do carro. — Foi na época que ele estava trabalhando com o insano do Philip Osborn, então era muita loucura para uma criação só. — O nome da família de Harry me surpreende, mesmo que eu previamente houvesse sido informada por Pepper sobre filiações entre eles antes. — Muito dinheiro envolvido, principalmente, o que sempre cega e desvirtua a Oscorp.
— Vocês trabalharam juntos em algum projeto depois disso? — A dúvida não é apenas de Peter, mas também é minha ao ponto que busco os olhos de Tony pelo retrovisor.
Stark assente, mas seus olhos estão focados na estrada.
— Na faculdade. — A memória não precisa ser revelada por mim para que eu sinta o seu arrependimento. — Mas eu passava metade do tempo de ressaca e suando o Adderall que tinha usado na noite anterior. — Torço o nariz para a fase antiga de Tony, essa tendo tomado forma antes de seus pais faleceram. Antes de toda a Stark Industries ser lançada sobre os seus ombros. — Eu ainda tenho o projeto em algum lugar na Torre, mas não tenho interesse em nada com um dedo da Oscorp, ainda mais depois de Lagos.
Engulo em seco com a afirmação sólida, as suas palavras semelhante às previamente proferidas há alguns dias e as mais recentes de Pepper enlaçando meu pescoço como uma corda e me sufocando. Porém ao ouvi-lo tocar no assunto do desastre que aconteceu em Lagos uma outra vez, eu não consigo evitar deixar que sua crença acerca da participação de Norman Osborn na fabricação da arma-biológica me atice. Por outro lado, o puxar leve em minha mão vindo de Peter é questionador como o olhar que me dirige, o que me lembra que ele não estava conosco quando discutimos isso na noite antes de meu encontro com Harry.
— Lembra-se que a Wanda Maximoff causou uma explosão em um prédio em Lagos, na Nigéria, pouco antes de irmos para a Alemanha? — Questiono a ele, evitando olhar meu pai. Nós não mencionamos Lagos ou qualquer coisa antes de nossas vidas atuais, muitas memórias e dores são atreladas ao passado curto que dividimos. E falar sobre Wanda é duro. É como falar com cacos de vidro adornando minhas cordas vocais, pois é cruel pensar nela e no que vivemos há anos. O breve amadurecer que tive no último ano, os atos praticados por ela tornaram-se mais indigestos que foram antes. Peter parece lutar para lembrar-se, mas enfim consegue. “Vagamente”, suspira ao acomodar-se melhor no banco para me olhar, mesmo que eu não queira vê-lo. — Estávamos lá para recuperar uma arma biológica que seria roubada pela HYDRA.
O nome da organização me fere mais do que lembrar-me da existência de Wanda.
Semelhantemente à maneira que toda a equipe vivenciou seus piores pesadelos nas mãos de Wanda durante a ascensão de Ultron, sou golpeada pelas memórias de tudo o que presenciaram. O que todos viram graças às visões assombrosas proporcionadas por Wanda ao sermos atacados por ela a mando de Ultron não comparavam-se ao que Natasha e eu víamos. Não eram visões fabricadas que Maximoff usava contra nós, mas apenas um retrato de nossos maiores pesadelos — nossos passados. Enquanto Steve Roger alucinava com retornar para Peggy Carter e Tony via todos Os Vingadores como cadáveres, eu via Brock Rumlow. Sangue escorrendo no chão sujo, cães selvagens e ossos quebrados. Via a HYDRA se materializar diante de meus olhos meras quarenta e oito horas após meu resgate.
No entanto, se Peter percebe o efeito que o mero pronunciar do nome da organização me provoca, ele não o comenta e apenas segura minha mão com mais afinco, entrelaçando nossos dedos e cobrindo-os com sua outra mão. Eu balanço a cabeça, pois sei que há mais a ser dito.
— Mas um dos soldados, Brock Rumlow, acionou uma bomba acoplada no seu uniforme. — Brock Rumlow. O nome que Pepper tem pavor a ouvir e que faz o sangue de Tony e Bucky ferver como lava. Eu engulo em seco, apertando a mão de Peter com mais força, quase feliz que não saiba a verdade sobre mim. O ódio poderia o corromper. — Ele mataria a Maximoff e o Capitão Rogers, assim como todos os civis em um raio de cinquenta metros. Porém a Wanda — O vermelho da raiva que sinto por Rumlow se subdue quando lembro-me do deslize cometido por Maximoff por pura tolice. — Que não tem as mesmas habilidades de contenção que eu tenho, ou o treinamento, o cuidado, ou o mínimo de conhecimento prévio, era a única presente. — Eu estava com Natasha, lembro-me bem. Lembro de sustentar uma redoma para proteger os civis dos escombros. — Ela levitou o Rumlow e o lançou contra um prédio com mais de duzentos civis, incluindo um grupo diplomático da Nação de Wakanda que estava ali para assinar um acordo.
— E dias depois o Rei de Wakanda morreu em um segundo atentado. — Peter relembra e eu assinto. — A ONU considerou que estavam planejando um ataque às reservas de Wakanda e essas organizações terroristas que tinham planejado os atentados estavam tentando desestabilizar e invadir o país.
— Tudo isso por uma arma-biológica que foi teoricamente produzida em um laboratório da Oscorp na Itália. — Tony interfere com sua teoria e eu não posso impedi-lo, ciente que o apoio de Tony é suficiente para convencer Peter. Ele nos olha pelo retrovisor, sério pela primeira vez desde que conversamos sobre um possível futuro aterrorizante sem sua presença. — Um cientista da Oscorp requisitou que a assessoria do laboratório que preparasse a documentação para a patenteação do antígeno meses antes da arma ser localizada por nós. Dois meses antes a Oscorp celebrou a aquisição de uma farmacêutica chinesa com campos de pesquisa na mesma área da geleira onde o vírus foi encontrado.
— E vocês perderam a arma, o responsável da venda e as provas na explosão.
Lembro-me da minha reação dias atrás quando Tony contou-me sobre a participação da Oscorp no atentado em Lagos e como fui imatura ao não acreditar no que contava e só quis enxergar aquilo como uma tentativa de afastar-me de Harry mesmo quando as cartas estavam sobre a mesa e fui estúpida o suficiente para não conseguir chegar à mesma conclusão que Peter chegou com tanta facilidade. Como pude estar cega ao ponto de não reconhecer que Tony dizia a verdade? A Oscorp, ainda que não propositalmente, é a responsável pelo despertar do Soldado Invernal e por todas as consequências que o evento trouxe para nós. Se a arma não tivesse sido criada, não estaríamos em Lagos, talvez todos ainda estivéssemos aqui e os Acordos de Sokovia nem mesmo existiriam. Barnes estaria seguro dos monstros no fundo de sua mente e não seria dito “responsável” por tudo o que aconteceu conosco nos últimos onze meses.
Os Vingadores não teriam sido arruinados se não fosse por Norman Osborn.


*


— O que o Tony disse mexeu com você, não foi? — Peter questiona ao caminharmos as duas ruas que restam para chegarmos em Midtown após termos pedido que meu pai parasse antes da escola, a ideia de chegar em Midtown em um Rolls-Royce não sendo tão “lowkey” como sempre prezei que minha existência ali fosse. — Sobre a Oscorp?
Nossos dedos estão entrelaçados enquanto caminhamos pelo mesmo parque onde Peter pediu que Happy parasse o carro na sexta-feira, mas já passamos pelo local onde eu pedi para Happy parar e saí correndo atrás dele. Desta vez, não estou desesperada ou com o rosto úmido com minhas lágrimas, apenas estou segurando sua mão e caminhando bem pertinho dele. Peter se esforçou para me impedir de carregar minha mochila, mas bati o pé e consegui que me deixasse levá-la.
Sua pergunta me faz assentir. Ainda estou chocada com a realização da responsabilidade da Oscorp no fim dos Vingadores. Compreendo que não posso culpá-los no todo, ciente que Wanda foi parte responsável por nos destruir de dentro para fora com sua imperícia, mas sei que há muito mais além disso. Sei que houve o concurso de ego entre Steve Rogers e meu pai, e o relacionamento raso de muitos da equipe, assim como o panorama geral antes dos Acordos e Lagos.
— Eu não vi necessidade de meter o Harry no meio disso tudo — Peter se pronuncia de novo, diminuindo o passo para termos mais tempo de conversar e por estarmos atrasados de qualquer forma. Seu parecer sobre o assunto me conforta. — Por mais que eu tenha os meus problemas com ele e não acredite estar defendendo o cara, não é certo culpar ele pelos problemas do pai. — Tenho que me concentrar para não associar Peter e meu pai de imediato, entendendo que eles têm seus “problemas” com Harry em âmbitos diferentes. Mas não deixo de notar o tom de ciúmes na fala de Peter e sentir culpa. — Pelos erros da empresa, muito menos. — Ele dá de ombros e eu concordo. — É óbvio que as falhas da empresa não devem ser culpa do Harry. A Stark Industries também cometeu deslizes antes e durante a gerência do seu pai e nenhum desses erros precisa ser ligado a você. — Eu afago a mão de Peter quando aperta os dedos nos meus, dando ênfase em sua opinião que ambos sabemos não ser universal. Se ele me olha, não tenho como saber pois estou observando a grama que cresce pelas placas de concreto da calçada. — Mas não pode negar que meio que faz sentido o seu pai querer te afastar dele.
— Eu sei. — É difícil engolir a verdade. Pois Harry é filho do Norman Osborn assim como eu sou filha do Tony Stark. — Agora eu entendo que não seja só pelo Harry, mas pelo Norman. Do mesmo jeito que nunca, a partir do momento que souberem quem sou, serei só eu. — Olho para Peter e sua expressão revela que ele sabe exatamente do que estou falando. Suas sobrancelhas se apertam da forma mais amável possível e eu o vejo engolir em seco ao assentir levemente. — Serei eu, meu pai, Howard e quem mais veio antes dele. — Minha garganta se aperta, mas eu engulo o nó que se forma. — Não é um legado agradável ou leve de carregar.
— Mas dá para mudar. — Tento não me atentar na forma que Peter vacila. Não é uma mentira fácil, mas talvez ele não a veja como uma, talvez apenas como uma possibilidade escassa, porém não impossível. No entanto, estou balançando a cabeça antes mesmo que prossiga. — Corrigir os erros, . Como o Tony tem tentado corrigir e eu sei que você vai conseguir ir ainda mais além.
— Confia demais em mim. — Esfrego a mão livre em seu braço.
— Eu conheço você. É diferente. — A mão que previamente segurava a minha agora está no meu ombro esquerdo pois Peter passou o braço por ele e paramos de andar. A certeza em seu rosto e a confiança puríssima em seus olhos que estudam-me quase convence a parte incrédula em mim. Ergo a sobrancelha para ele ao apoiar a mão em seu peito, segurando no bolso do seu casaco novo e escondendo meus dedos frios ali para evitar lhe olhar e deixar que me convença que isso será fácil. — Sei que sempre vai tentar fazer o certo e é isso o que importa. — Abro a boca para dizer algo mais, para lhe interromper e lembrar-lhe que não tenho um bom histórico em fazer o certo, ou só para dizer seu nome, mas Peter não permite e usa a mão livre para afagar meu outro ombro e inerentemente me fazer olhá-lo. — O que o Tony está nos ensinando não é só no caso de algo acontecer com ele, mas é para quando for a sua vez de estar no posto dele. Ele sabe que você tem capacidade de estar lá, .
— Mas essa confiança toda é desconfortável, Peter…
— É um peso chato, eu sei. E tem que ser e mostra que você se importa e vai tentar fazer o certo. — Peter toca meu queixo, sua boca formando um beicinho por ver que vou bater o pé nisso também. Não penso muito antes de tocar no beicinho dele e o fazer sorrir ao revirar os olhos para mim, voltando a caminhar. Peter me segura com mais firmeza e eu envolvo um braço ao redor de sua cintura, apoiando a mão no seu quadril ao caminharmos para a escola. — E, no fim do dia, é como a Pepper disse depois do acidente: agora tem sangue do Tony nas suas veias. É uma Stark. Já era antes, agora a biologia só vai dar uma mãozinha pelos próximos noventa dias.
— Isso soa definitivo — Engulo em seco, incerta se gosto da nomenclatura. — Stark.
Stark soa muito incrível! — Parker se defende, encolhido quando cutuco o músculo firme sobre suas costelas, a reação de o “castigar” um pouco torcida com o quão imponente meu nome soa quando munido de um sobrenome com um histórico tão importante e não apenas um que foi designado para mim por uma inteligência artificial. Soa legítimo. — É sério! — A risada dele é adorável, pois talvez essa foi a primeira vez que considerou isso, assim como eu. — É charmoso, !
Stark? — Eu experimento com o sobrenome também e Peter para de caminhar, o braço escorregando de meu ombro enquanto me mantenho em movimento, apenas segurando a sua mão antes que percamos o contato.
Stark… — Ele saboreia a junção e pondera por meio segundo. — Ok, é definitivo.
Estou gargalhando quando Peter me alcança e pressiona os lábios na minha testa, o seu sorriso tão largo e genuíno que até sinto seus dentes encostarem em mim por um momento antes de voltarmos a prosseguir para Midtown.

*


Não houve necessidade alguma de estar próxima a Michelle para a ouvir.
Antes mesmo de entrar na sala, seus pensamentos se sobressaíram quando comparados ao resto dos alunos de Midtown e que enchiam os corredores com a troca de períodos. Ela havia visto quando Peter e eu chegamos a Midtown, havia apertado a boca ao reparar como Pete olhava para mim e sorria ao me ouvir falar, ela revirou os olhos quando ele segurou meu livro de Química I e foi embora quando Peter me impediu de pegá-lo de volta. Havia mágoa em cada caminhar seu, assim como óbvio desapontamento, assim como todos parecem sentir por mim. MJ não considerava raiva, apenas um desapontamento. O sentimento foi o motivo de não me dizer coisa alguma quando sentei ao seu lado em nossa mesa, ou falar nada comigo durante a aula, afinal, seus pensamentos estavam fazendo toda a matemática por ela e formando as teorias precipitadas enquanto estudávamos sobre pilhas.
“Talvez a seja como qualquer outra garota rica que não liga pra quem vai acabar machucando e faz o que quiser, porque gente com ela não precisa se importar com as consequências. Foi pura estupidez pensar que ela não era assim. Não quero imaginar como o Harry deve estar. É cruel tirar algo assim de alguém com ela, mas não é possível! A não brincou com o Harry, mas com um tonto igual o Peter também. É cruel.” E eu engulo tudo o que ela pensa sobre mim com uma força que não imaginei ter. Escuto os seus pensamentos que me machucam como facas ao me considerar uma qualquer que faria o que fiz por pura falta do que fazer. A ouço lembrar de nossas conversas sobre os meninos e sobre Peter, como ela considera agora que tudo o que fiz foi para enrolar Peter pois eu devo “gostar da caçada”. Mesmo sabendo que Michele não faz a mínima ideia de que sei o que passa em sua cabeça, é difícil não sentir vergonha, ou ignorar a humilhação que me faz querer sumir. Ou a dorzinha em meu coração ao saber o que pensa de mim quando algo assim nunca passaria por minha cabeça ao seu respeito.
“Pensar que ela trocou o Harry dessa forma é assustador e preocupante. A passou esse tempo todo só usando ele para causar ciúmes no Peter e eu fui cumplice dessa gracinha toda… O mais preocupante, por outro lado, é que só assim para eu perceber que realmente não conheço quem tenho chamado de melhor amiga por todos esses meses.” E essa foi a parte mais dolorida que me fez soltar a caneta enquanto o Sr. Harrington apontava alguns detalhes sobre a matéria. Na mente de MJ eu pude ver meu perfil, o subir e descer de meus ombros e meus brincos pelo véu de meu cabelo. Ela desviou o rosto para seu livro outra vez. “Não entendo se alguma vez não lhe dei o que ela queria. Se acabei me intrometendo demais ou se a simplesmente não vê em mim o necessário após tudo o que dividi com ela. Não conheço sua família, de onde ela vem, como consegue ter tantos segredos com o Peter e o Ned que tornam-se qualquer bobagem ignorável quando me aproximo… Os ferimentos que tenta esconder, a tristeza absurda que parece tomar conta dela às vezes, tantas faltas injustificáveis… As mentiras em si.” Esfreguei meu rosto quando ela engoliu em seco, balançando a cabeça devagar. “Eu não conheço mais a . Na verdade, não sei se um dia a conheci, o que é mais triste ainda.”
“Ela sabe sobre tudo. Sobre a minha família, sobre os meus sentimentos que são demais e me incomodam, sobre o meu corpo que me desagrada, sobre o dinheiro. Sobre a falta dele também.” Eu afasto minha concentração para o mais longe possível de MJ, mordendo minha língua para não ouvir o que mais pensa sobre mim. A ouvir mencionar sobre o dinheiro que lhe falta e que é abundante em minha vida. Eu reconheço os olhares que direciona a mim quando pago por algo, mesmo que seja um café com leite ou um chá de hortelã.
Quando a aula acaba e nós estamos o mais quietas como jamais estivemos desde que eu a conheci, começo a juntar meu material dentro do estojo, cobrindo a chave de fenda que esqueci ali.
— Eu não entendi bem o que está acontecendo para você ter ido em um encontro com o Harry e chegar de mãos dadas com o Parker — Sua voz é fria, mesmo que ela não goste de ter soado assim. “Fria demais, MJ. Assim mesmo que a não vai mais querer falar comigo. Ela já ficou de boca fechada a aula inteira, não é um bom sinal ser fria assim.” Eu engulo em seco, molhando os lábios ao lhe olhar. — Mas em vista de você ter chegado com um sorriso bobo e ele com o sorriso mais pateta que eu já vi, vou considerar que de alguma forma deu tudo certo. — Eu não mordo sua isca e, por mais estranho que ela considere o meu silêncio e o quanto se sinta culpada por ele, eu só assinto e organizo meus papéis sobre a mesa.
“Vai me dar um gelo agora, ?” Inconscientemente, eu repito meu assentir. “Ok.”
— Você se lembra que falamos de Peças Infernais? Que os meninos parecem com os meninos do livro e tal? — Eu engulo em seco e enfio a papelada dentro do livro de química, evitando lhe olhar. É sério que ela quer falar sobre livros após pensar coisas tão maldosas sobre mim? — Você também está muito parecida com a Gray e não nos aspectos bons dela.
— Michele — Minha voz é dura e tenho certeza que minha expressão é o que lhe faz dar um suspiro raso. — Por favor, me poupe disso.
“Da verdade? Só pode ser brincadeira!” Coço a nuca, tensa e magoada. “Quem é você?”
— Só estou sendo sincera. Você não está muito acostumada com a verdade, mas eu estou. — E é claro que ela está falando a verdade, o que me dói mais ainda. — O que fez com o Harry não foi legal. Dava pra ver que ele gostava de você e você usou ele como distração, . — A verdade é tão dolorida como perceber que tudo o que pensou sobre mim é verdade em sua cabeça. Michele me acha vazia. — Tudo bem que sempre tenha sido o Peter no seu coração e que talvez sempre seja o Peter, mas você foi má. Foi sujo. — Eu mordo o lábio, evitando lhe olhar. — Você é rica e consequentemente mimada, mas isso não significa que tem que ser tão inconsequente a esse ponto.
— Confia em mim quando eu digo que estou ciente do que fiz — Inicio com um aperto na garganta. Não gosto de como sou rude ou como estou na defensiva com ela como jamais imaginei que precisaria ficar. — E não preciso de você sendo, o que deve imaginar ser, esse epítome de sensatez no meu ouvido. Sinceramente, eu não quero ouvir você me comparar como uma mimadinha qualquer ou o que for que achar, e eu sei que acha, que eu sou. — Meu rosto está fervendo e minha língua pesada. — Não quero ser plateia de um dos seus shows e discursos sem fim, MJ. Pode me oferecer este dia de folga?
Quando lhe olho, Michele está impassível. Sua face revela surpresa, humilhação e humor ao mesmo tempo. Sua mente gira em uma espiral por diversos estados. Irritação, autoconhecimento e vergonha. Michele é consciente de que se pôs em um altíssimo pedestal de sinceridade, mesmo que tal sinceridade extrema possa magoar quem for, afinal, já ouviu mentiras demais em sua vida que se recusa a causar a mesma dor em outra pessoa. No entanto, não consigo não pressionar tal nervo. Ela fez questão de pressionar muitas feridas, mesmo em seu inconsciente.
— Então eu só vou te lembrar que deveria pensar antes de agir. E de falar também. — Mordo a língua para me impedir de questionar se ela não vê necessidade alguma de fazer o mesmo. — Colocou o coração de outra pessoa na corda bamba que o seu e o do Peter estava há meses. Foi pura burrada e desleixo, o que você tem feito há um tempo. — Volto a enterrar meu material na mochila, satisfeita que a sala esteja vazia. — Estou feliz por você e o Peter, mas com um pé atrás e preocupada com isso tudo. — Sinto o sabor de cobre em minha boca ao enfim notar que MJ está projetando seus problemas sobre mim, problemas esses que nunca se deu o trabalho de dividir comigo e só sei por ler os seus pensamentos. A raiva que sinto diminui um pouco, mas ainda é quente em minhas veias. — Amar e escolher alguém sempre é um compromisso. Se um dia, que eu não espero que chegue, vocês terminarem e ainda ser ele quem ama, por favor, não faça isso de novo com outra pessoa. — Eu finjo não perceber o tremor em sua voz e como ela percebe o que fez. Sinto sua angústia daqui. — É cruel. — O tremor se intensifica quando fecho a mochila.
— Sei que está desapontada comigo, MJ. — Suspiro. — Vai em frente. Pode dizer.
Ela me olha por um instante e sei que divide o mesmo arrependimento que eu, mas MJ nunca aceitou não ter a última palavra. Então ela cerra os punhos e olha no fundo dos meus olhos.
— Não preciso. Já sabe, não sabe?
Eu deixo a sala de aula com passos duros e rápidos, não suportando um segundo a mais em sua presença. Controlo minhas emoções ao sair no corredor, caminhando por curvas e descendo a escada para o andar inferior, querendo colocar o máximo de distância possível entre nós até conseguir ignorar que MJ estava a segundos de deixar algumas lágrimas lhe escaparem. Talvez os seus pais se desentenderam hoje, mas isso não é algo que meu coração consegue entender. Esfrego o rosto com uma rispidez que preocuparia Pepper, mas sei que ela também não se importará com isso quando eu chegar em casa e lhe contar a verdade. Ou até mesmo quando ela tiver a mesma conversa comigo que Michele quis ter. Irresponsabilidade emocional, um defeito ironicamente inadequado a uma telepata.
Assim que consigo me acalmar e desviar meus pensamento de Michele, vou na direção de meu armário, no mesmo local que combinei de encontrar Peter após sua aula na marcenaria que está em andamento devido o horário. De certo, MJ irá para a biblioteca e eu sei que não conseguirei ficar no mesmo lugar que ela, então considero possível aguentar mais quarenta minutos de pé no corredor. Poupo minhas lágrimas, mesmo ciente que elas deveriam vir pois é minha primeira vez brigando com MJ, mas decidi economizar para mais tarde. Reconheço que esta talvez seja a última vez que estarei em Midtown em algum tempo, logo, queria boas memórias, o que claramente não terei. Gostaria de conversar sobre Peter e eu com MJ. Queria lhe ver fazer caretas e dizer que somos idiotas, mas dar o apoio necessário para mim. No entanto, fui concedida apenas uma briga estúpida que não se formaria se os meus poderes infernais não houvessem me revelado mais que MJ ousou dizer a mim. Eu estou tentando engolir minha raiva quando a porta da sala de história se abre e Harry Osborn surge a menos de quatro metros de mim.
É mais difícil segurar as lágrimas, pois já estou exausta o suficiente, mas preciso falar com ele. Harry pousa os olhos sobre mim, mas não há nada além de suas irises verdes, como se eu só fosse outra aluna qualquer que estava escorada em um armário entreaberto do corredor. Fácil assim, não preciso de muito para perceber que, assim como Michele, ele sabe sobre Peter e eu.
— Harry — Quero me socar ao chamar o seu nome. Ainda assim, me esforço e mantenho a voz firme e não desvio os olhos de seu rosto que demonstra neutralidade. Lhe devo ao menos uma justificativa sincera e respeitosa. — Nós podemos conversar? — A pergunta é trêmula, mas não parece incomodar. Pelo contrário, o previamente sorridente e agradável Harry Osborn parece tão impassível e frio como uma das estátuas centenárias dos Mittal.
A pausa que ele dá, de míseros quatro segundos, me deixa enjoada.
— Claro. — Osborn engole em seco, cruzando os braços defensivamente sobre o suéter. Sua expressão é concentrada, as sobrancelhas franzidas e a mandíbula um pouco apertada. Igual a como olhou para Gwendolyn dias atrás enquanto estava no meio do campo de polo. — Porém, vamos fazer isso rápido antes que o seu namorado se incomode em nos ver sozinhos. — Meu coração salta ao ouvir Harry mencionar Peter tão abruptamente, com tanta frieza sem saber o quão importante Peter é para mim. Ou não se importando, pois não me deve nada e eu sou a vilã aqui. — Parker, certo?
Desta vez, tenho absoluta certeza que ele nos viu igual MJ fez e minha culpa aumenta.
— M-me desculpa, Harry. E-eu... — Fecho os olhos, fincando as unhas nas palmas das mãos. Não consigo olhá-lo sem me sentir terrível como sei que realmente fui, mas me esforço para tal, entendendo que não posso ser baixa assim com ele e é o mínimo que devo a Harry. — Eu sinto muito que o encontro possa ter erguido questionamentos e eu possa ter o induzido a um erro sobre o que estava acontecendo entre nós. — Toco o ferimento na testa que dói quando franzo a sobrancelha. —- Não quero ser maldosa e dizer que o que aconteceu entre mim e o Peter foi inesperado pois já havíamos conversado sobre isso antes e agido segundo nossos sentimentos, mas eu não considerei que poderia acontecer outra vez. — Para minha surpresa, os olhos glaciais de Harry se suavizam, e ele não parece muito afetado pelo o que lhe digo. — Muito menos depois de nós sairmos, mas… — Engulo em seco, respirando fundo. — As desculpas estão me faltando agora porque não há nada que eu possa dizer para me redimir pelo o que fiz. — A confissão parece atingi-lo e seus lábios se afastam, o queixo se abaixando minimamente para um assentir contido. — E-eu sinto muito. Nunca foi a minha intenção fazê-lo de bobo ou o machucar.
— Eu sei. — Harry não soa magoado, apenas um tanto surpreso que eu tenha decidido falar com ele após a bagunça que fiz. A surpresa está clara em seu rosto, responsável por diminuir a intensidade de seu amargor. — Esse é o motivo de eu não querer ser imoral ao ponto de a culpar por alguma coisa, ainda que nós dois reconheçamos que não foi ética comigo ou com o Parker. — Assinto veemente, sentindo o peso de sua decisão. “Querer” ser imoral. O golpe em meu peito que é saber que Peter também pode ter sido ferido por minhas ações não me escapa. — Não devia nada a mim, mas talvez a ele. Nós mal nos conhecíamos antes de sábado, , mas pelo o que entendi, vocês dois estavam nesse... Impasse há algum tempo.
Com a boca amarga, perco a possibilidade de lhe responder quando Harry dá uma passo para mim, buscando controlar as nossas vozes para não deixarmos o assunto ser ouvido por outros.
— A conheço a pouco tempo, mas é fácil saber que se preocupa até mesmo com o som da sua respiração incomodar alguém, . — Há a sombra de um sorriso em seus lábios, mas não me conforta pois, apesar de tanto cuidado, não consegui poupar ninguém. — Eu entendo que não fez por mal, mas tente ser um pouco mais consciente. Não fazer algo por mal, não exclui a sua culpa por ser imprudente ou inexperiente. — Harry suspirou, balançando a cabeça ao demonstrar compreender-me apesar de nós dois sabermos o quão errada estou. Sua compreensão e interesse em ao menos me ouvir é quase amarga. — Mas eu entendo você, entendo. Porém não é uma pílula fácil de ser engolida.
— Eu sinto muito. — É a mais pura e inalterada verdade. — Harry, eu sinto muito.
— Sei que sente. Eu também sinto, acredite. — Seu sorriso não é maldoso, o que talvez fosse ser mais fácil para mim. Não há mágoa ou raiva nele ou na aproximação de Harry. — Não tenho dúvidas que nós seríamos bons namorados em algum tempo, mas reconheço que fui o único a querer isso. Só… — Eu abaixo a cabeça quando a culpa é demais e não consigo sustentar sua expressão, ainda que ciente que dificilmente um relacionamento entre nós seria sustentável enquanto houvesse oxigênio nos pulmões de Peter. — Tome mais cuidado com os sentimentos alheios, hmm? — Harry aperta meu ombro rapidamente antes de me deixar estagnada no corredor e seguir para longe.
E eu me deixo ser devorada pela culpa enquanto ele se afasta.


*


Eu passo o resto do dia reclusa na biblioteca.
É impossível me manter afastada de Michele durante o dia, todas as nossas aulas foram transferidas ainda no início de ano e estamos juntas na grande maioria, exceto Biologia Aplicada que tenho junto a Harry e me recuso a aparecer, decidida a estudar sozinha em casa o conteúdo que seria lecionado pelo professor. Acaba por ser necessário, mais de uma vez, que eu tome remédios para a dor de cabeça cegante que sinto ao longo do dia, seja pela ausência de MJ ou por finalmente reconhecer todas as burradas que fiz nos últimos dias. Tenham sido elas direcionadas a Peter e Harry, ou a mim mesma e minha segurança. Ou a MJ, como fiz ao destratar-lhe da forma que fiz apenas por ela expor a verdade que consegui esconder tão bem de mim mesma.
Brinquei com os sentimentos de Peter da forma mais cruel que poderia, principalmente ao considerar seu emocional após o acidente que quase tirou May dele. Michele não poupou palavras e não havia necessidade de poupá-las quando acusou-me de minhas falhas: fui cruel e suja. Suja pois meu coração estava partido e precisava acalmar os gritos em minha cabeça, de saudade de Peter ou de medo. Cruel pois não pensei em nenhum dos dois, mesmo após retornar para os braços de Peter. A dor de ter os ferido por minha ignorância me faz lacrimejar enquanto estudo, as lágrimas e um suspiro cansado me escapando na biblioteca vazia e ecoando pelas estantes de livros. O que foi dito mais cedo por Pepper também ecoa por minha cabeça diversas vezes. A minha irresponsabilidade afetiva pode ter ferido Peter da mesma forma que feriu Harry, mas ele a desconsiderou ou pior, engoliu a mágoa.
No entanto, mesmo que eu não queira e saiba estar agindo de maneira mais suja ainda, as justificativas para meus atos se acumulam em minha mente fraca. Felizmente, o que foi dito por Harry não se sobrepõe ao que formulo em meu consciente estúpido. Minha inexperiência ou falta de uma previsão quanto às minhas ações não é uma excludente de culpa. Eu os magoei e desapontei de qualquer forma. Ademais, a ironia de ter chamado Wanda Maximoff de descuidada e inexperiente hoje cedo não me escapa.
Toda a culpa soma-se ao acidente e não consigo evitar cobrir meu rosto e chorar como a vitimista que sou muitas das vezes. Eu choro por Pepper e Tony que irei desapontar, preocupar e entristecer com toda a mentira que tenho escondido em relação ao acidente da ponte. Choro por Peter que magoei com minhas péssimas decisões e nem mesmo me conscientizei ao ponto de me desculpar. Choro por MJ que está desapontada comigo por estar agindo da mesma forma que sua mãe, e também choro por MJ ainda não ter me contado a verdade sobre sua família. Choro por ela me considerar mimada e um tanto fútil, como temo que Peter considere após tudo o que o fiz passar. Eu choro até uma enxaqueca mudar o motivo de minhas lágrimas e eu reconhecer, uma outra vez, o quão frágil meu corpo está. Os choques afiados em minha perna me apavoram. Me esforço para tomar mais dos remédios que a Dra. Cho recomendou para a dor, tomando três cápsulas e não apenas uma.
A ansiedade que sinto piora após o almoço quando Peter avisa que o seu professor de espanhol pediu que ficasse para informações extras acerca das suas notas e que nós não nos veríamos até o fim do dia.
Quando são três da tarde, eu acordo sem mesmo ter percebido cair no sono, os sons dos alunos que se reunem na biblioteca após o fim das aulas sendo o que me faz despertar. Tenho um resquício de bom senso e aviso Peter sobre onde estou, largando o celular sobre meus materiais para esfregar minha bochecha que certamente está marcada. Me dou alguns segundos para acordar antes de me levantar e juntar os livros que peguei em uma tentativa de me ocupar e começo a guardá-los de volta onde estavam. Enquanto coloco um livro de história em seu lugar correto, esfrego as lágrimas já secas e grudadas em minha bochecha, tentando evitar que Peter me veja neste estado. Não imagino o quão exausto esteja de me ver assim, ou o quão exaustos meus pais também devam estar comigo, pois também não me suporto mais.
— Ei, você! Te achei, — A voz animada de Peter é um bálsamo em minhas feridas vulneráveis e eu viro o rosto em sua direção enquanto guardava o livro de literatura, sentindo minha tensão diminuir mesmo que devesse aumentar ao vê-lo após perceber o que lhe fiz passar. — Desculpa pelo almoço, o Sr. Gutierrez queria organizar as datas das minhas provas.
— Tudo bem. Como ficou decidido? — Questiono ao terminar de guardar o livro. Quando coloco o penúltimo no lugar e Peter ainda não respondeu, o silêncio me preocupa. — Pete?
O bálsamo de sua voz é minimamente eficiente quando Peter envolve-me com cuidado em seus braços, estes cruzados diante de meu corpo e acima de meu umbigo, o calor do seu peito se espalhando por minha costa e rapidamente acalmando meus nervos. Fecho os olhos ao sentir seu abraço, deixando um exalar cansado me escapar ao apertar seus braços com mais força e senti-lo compreender o que desejo e ele me abraça com mais força, o queixo apoiado em meu ombro e corpo curvado para que a diferença de altura não seja tão evidente e perturbe o que faz. Aperto seus antebraços, encolhendo-me o máximo que posso em uma tentativa falha de me afundar em Peter e não precisar mais deixar o conforto que ele me dá. Não entendo se percebe o quanto ele é necessário, mas agradeço a cada deus acima de nós por tê-lo comigo apesar de todas as burradas que cometi.
— Você não disse o seu “Ei, você” — A sua justificativa é murmurada em meu ombro, o calor da boca de Peter aquecendo-me apesar da roupa e a derrota manhosa expressa por ele serem os responsáveis por me fazer rir soprado apesar do dia péssimo, meus olhos ainda firmemente fechados. Aperto seus braços carinhosamente de novo, sentindo o afagar dos seus dedos em minha cintura acima da roupa e assim como sinto afeto aflorar em meu peito por sua bondade e a atenção que demonstra com os mínimos detalhes. — O que aconteceu? — Peter questiona do mesmo jeitinho que me acusou de esquecer nosso ritual, a voz abafada por meu ombro ainda que a preocupação que eu forcei se tornar típica dele seja expressa. — Está sentindo alguma coisa? Hmm? — O som que emite é tão delicado que quero me virar e esmagar seu rosto com beijos.
Então eu faço exatamente isso, mudo de posição e uno nossos lábios com o máximo de delicadeza que posso, apesar de querer devorá-lo por o adorar tanto. Peter me segura igual a antes, ainda se inclinando sobre mim e encostando no nariz no meu devido ao ângulo, uma mão se certificando de apoiar entre minhas omoplatas enquanto seus lábios garantem que ainda sou querida apesar de tudo o que fiz. Eu seguro o seu rosto com cuidado, a curva de sua bochecha adequando-se à minha palma. O selar não é aprofundado nem por mim nem por ele, o que indica, vez mais, que Peter quer saber o que há de errado comigo ao ponto de nem mesmo iniciar outro selar rápido em mim, apenas encostando a testa na minha ao afastar nossas bocas.
— Me desculpa pelo o que eu fiz. — Sussurro para ele, acariciando seu rosto e apoiando a outra mão no encontro entre seu pescoço e seu ombro, sentindo sua testa se franzir. Para minha infelicidade, ele afastar de seu rosto do meu de maneira que posso ver sua expressão de incerteza. — Por ter ido em um encontro com o Harry depois do nosso beijo e não ter pensado em você — Observo quando a realização se finda em seu rosto, os olhos um pouco mais abertos e lábios levemente afastados. Peter suspira e balança a cabeça, as mãos navegando de minha costa para meu rosto, mas eu o imito e balanço a cabeça também. — Não, Peter. Precisa me ouvir. — Eu cobro, engolindo o nó em minha garganta. Me detesto por ter machucado alguém tão puro como ele, este que se recusa a ouvir minhas desculpas esfarrapadas. — E-eu não deveria ter ido, eu deveria ter ficado com você desde o começo e a May estava doente e eu te deixei para sair com outra pessoa — Meu respirar é engasgado pois Peter me puxa para seus braços de novo. O abraço com toda força que posso, pressionando o rosto no seu peito e evitando cravar as unhas ou segurar em punhos a sua roupa nova. Não vou arruinar isso também. — Eu não pedi desculpas por magoar você. — Murmuro na sua camisa. — Desculpa.
— Aquilo já passou. — Fecho os olhos ao sentir o carinho que Peter faz em meu cabelo enquanto me conforta, a lábios encostados no topo da minha cabeça. — Eu já perdoei você. Não fez por mal. Eu entendo.
— Não queria te machucar. — É a mais pura verdade. Não queria machucar ninguém, no entanto, é tudo o que tenho feito nos últimos dias.
— Sei que não queria, por isso te perdoei, — Respiro fundo quando Peter se afasta, ainda segurando meu rosto e me fazendo olhá-lo apesar de minha vergonha. — Já passou e a gente não vai mais pensar naquilo, tudo bem? — E eu quero me afogar em Peter, pois não há nada além de esmero na sua expressão. — Tá tudo bem agora. Tudo bem. — Ele reassegura, os dedos delicados colocando meu cabelo atrás de minha orelha ao ponto de que, mesmo ciente que minha culpa não vai desaparecer, eu assinto. O meu coração ainda se aperta com sua gentileza em não me culpar ou sentir qualquer rancor. — O que aconteceu? — Pete questiona com as sobrancelhas apertadas. — Conta pra mim. O que te fez pensar nisso?
Engulo em seco a fim de manter minha voz firme o suficiente para responder.
— Eu briguei com a MJ — É algo mínimo se comparado com tudo o que passamos nos últimos dias, porém Michele sempre foi o meu ponto de equilíbrio com a normalidade que foi tirada de mim muito cedo. — Ela falou algumas coisas maldosas.
— Ô, ... — Peter me trás para si novamente, pressionando repetidos beijos em minha cabeça quando afundo o rosto em seu sternum,segurando sua cintura e tentando respirar. — O que ela disse? — Ele questiona atencioso quando apoio o queixo em seu peito, o ângulo me proporcionando uma vista adorável de um sinal abaixo de sua mandíbula. “Não foi o que ela disse, foi as coisas que pensou por sentir raiva” explico com a voz mais firme. — Raiva? — Peter chiou em um tom confuso, afastando-se para me olhar. Sua boca se franze nos cantos, apontando para baixo em incredulidade, assim como suas expressivas sobrancelhas que se erguem. — Qual motivo a MJ tem pra ter raiva de você? Legal que ela é irritada e meio ranzinza com todo mundo, mas com você?
— Ela nos viu chegar juntos hoje cedo — A resposta não lhe convence, ao ponto que Pete permanece me olhando estranho, assim como olhei para MJ no começo. Ela, como uma boa amiga, deveria estar feliz por nós. — A MJ está desapontada comigo porque isso de eu ter saído com o Harry e voltado para a escola com você, como se nada houvesse acontecido, fez ela lembrar dos pais dela. — Percebo que estou me aprofundando demais e não deveria ter mencionado os pais de MJ, mas é Peter e sei que este assunto não sairá daqui. — Consequentemente ela se achou no direito de pensar coisas maldosas sobre mim e dizer coisas grosseiras. — Eu suspiro, a memória me irritando. — Segundo a MJ eu sou mimada e inconsequente. E, nesse momento, o tópico do dinheiro já deixou de ser motivo de brincadeira para ela e é uma justificativa para eu ser assim.
— Desculpa, mas "assim" como? — Peter exigiu com a face séria. — Uma boa amiga que ignora a "honestidade" da MJ que às vezes é pura indelicadeza? — Eu abro a boca para argumentar, pedir que não leve isso muito a sério, mas Peter não parece muito interessado em ignorar isso. — A MJ pode não ter feito por mal, mas como você mesma disse e eu vou concordar nesse caso aqui, não querer machucar não exclui a culpa. — Peter balança a cabeça, claramente desapontado. — Deve ter sido por isso que ela me ignorou quando falei com ela no corredor e perguntei sobre você… — Seguro o braço de Peter, um pouco menos aborrecida por ter dividido meus problemas com ele, da forma que desejo ter feito com MJ. Peter afaga minha cintura com delicadeza ao suspirar. — Bom, enquanto isso, o Ned está bem feliz pela gente e quer saber quando vai conhecer o meu sogro.
Não sei se é a sua tentativa de me confortar com a notícia de que Ned está feliz por nós ou é a forma de se referir a Tony como sogro, mas Peter me faz rir. Me faz rir pois ainda é absurdo que nós estejamos juntos e ele possa ter conversado sobre nós com Ned, e é mais absurdo ainda o fato de que Tony Stark tem um genro. Peter me dá um sorriso enorme e radiante como o Sol, satisfeito por ter me confortado e logo se recompensa com um beijo amoroso em minha bochecha assim que envolvo os braços ao redor de seu pescoço, o desejando o mais perto possível agora que o tenho para mim.
Peter me imita e abraça minha cintura.
— Vamos pro Queens? Pra você descansar um pouco? Hum? — O convite é um que não conseguiria negar de maneira alguma — Esfriar a cabeça e esquecer disso? — Assinto enquanto Peter volta a tirar um pouco de cabelo do meu rosto e eu conto as sardas rosadas no seu nariz, assim como tento manter meu coração dentro do peito. — A gente pode comer alguma coisa e assistir um filme enquanto espera a Pepper chegar e te levar para o julgamento.
— Peter! — Eu protesto com um resmungar pois ele está certo e agora está rindo de mim.
Detesto como a sua risada me faz rir também.


*


Ned acena para nós ao descer em sua estação, o chaveiro de teclas de computador com o seu apelido balançando quando ele começa a correr para não perder seu ônibus que passa em quatro minutos. Abaixo a mão que acenava para ele e a apoio no braço de Peter que me mantém segura entre a parede e uma barra de apoio, algo que faz desde a primeira vez que pegamos o metrô pro Queens e ele havia acabado de revelar ser o Homem-Aranha. Lembro-me como ele fez isso naquela vez, apoiado na barra e virado para mim como está agora, mas também conversava com Ned, que me fazia muitas perguntas sobre meus poderes e meu pai. A memória me faz sorrir com a inocência de tudo, mesmo a situação tendo sido a menos de um ano, uma vez que nossas vidas mudaram intensamente desde ela.
Naquele dia, era a quarta vez que eu andava de metrô em Nova Iorque e primeira vez que ia até o Queens, um certo desconforto no estômago por ser a primeira vez que ficaria sozinha com um rapaz. No entanto, agora não há desconforto algum ao ficar ao lado de Peter, mas sim um sentimento de segurança que pessoa alguma além de Tony, Pepper e Happy conseguia me passar desde o fim dos Vingadores. Ainda há alguns alunos de Midtown aqui, espalhados pelos bancos e dando risadas. Não tento encontrar MJ ou descobrir se ela está em outro vagão, só me concentro em como Peter apoia a mão na parede quando o metrô zarpa e me faz pender um pouco na direção de seu braço ao perder o equilíbrio. A minha falta de habilidade no transporte se tornando mais óbvia quando ele dá um riso baixo após eu segurar no seu antebraço erguido.
— Faz um tempo que não te vejo ouvindo música. — Pete comenta ao tocar minha orelha perto do brinco que me presenteou.
— Eu sei — Saber que percebeu um detalhe assim é razão para meu rosto se aquecer um pouco apesar do aquecedor do metrô ser defeituoso e estar bem frio. — A música ajudava a abafar as vozes das outras pessoas — Falo baixo para que só ele possa ouvir e dou um toque de minha cabeça no seu braço, indicando que “as vozes” são os pensamentos delas. — Acho que eu já tenho "audição" seletiva e as vozes não me deixam mais tão inquieta.
— Isso é bom — Peter ajusta sua posição agora que Ned foi embora, ficando bem diante de mim. — Você conseguir decidir quem vai ouvir. — Eu concordo pois é algo que lutei para conseguir dominar. — Até falou de não gostar de lugares com muita gente por causa do barulho. Hospitais. — Lhe contei sobre isso em nossa conversa na noite que Visão retornou para buscar as coisas de Wanda que ainda estavam no Complexo, a noite que Peter controlou a tempestade dentro de mim antes que ela pudesse se formar por inteiro. — Mas não acha perigoso? Não saber?
Entendo de onde a sua preocupação vem, principalmente ao lembrar-me do atentado.
— Um pouco. — Aperto os dentes ao suspirar. — Mas mesmo que esteja concentrada em outra coisa, ainda consigo me atentar a coisas importantes. — Explico, não querendo que pense que eu tenho estado perdida. Ou, talvez, não seja somente uma preocupação dele e sim, um medo só meu. Temo estar enfraquecendo com o passar do tempo e não conseguir executar meus deveres como antigamente, em especial ao imaginar o quão enferrujada devo estar comparada a anos atrás. — Por exemplo — Olho para uma das alunas que faz aula de francês comigo. — A garota de chapéu amarelo, Alisson Monroe, ela quer saber onde eu comprei esse jeans.
Na verdade, Alisson está em dúvida se gostou mais de meu jeans ou meu colar, o que me faz sorrir pois o último foi um presente de Peter.
— Não ri. Às vezes são coisas importantes assim. — Peter olha para meu jeans e balança a cabeça. — A resposta é: ele é um dos jeans da Pepper na época da faculdade que eu furtei. — Dou de ombros. O jeans é antigo e macio, um pouco grande e precisou de um cinto. Cinto que peguei do armário de Natasha enquanto ela ainda estava conosco. — E por que lembrou de música? — Indago e começo a pressionar a gola de seu casaco para baixo, o tecido rico certamente o mantendo aquecido.
— Tava no laboratório de robótica ouvindo música e o aleatório tocou uma que já te ouvi ouvindo. — “Ah”. Peter se aproxima mais e eu envolvo os braços ao redor de seu pescoço, finalmente satisfeita quando solta a o apoio do poste e segura-se em mim também. — Eu tinha colocado ela em uma playlist há um tempinho, mas não tinha tido tempo de ouvir inteira. — “Qual era?” Hot Rod do Dayglow.
— E o que acha de Can I Call You Tonight? — Indico outra das minhas favoritas.
— Se o Tony não jogar o seu celular no meio do Pacífico, claro que pode. — Peter assente com um riso preocupado. Eu ergo a sobrancelha, incerta de onde a preocupação surge. Isso é, até que eu precise cobrir a boca para não gargalhar bem na sua cara e chamar a atenção de todo o metrô pra nós. A situação é tão boba e engraçada que minha barriga dói apesar de eu me sentir mal por rir dele. Em algum ponto, uma sombra de realização cruza a expressão de Peter e ele fecha os olhos com força, rugas de riso surgindo em seu rosto quando esfrega a testa, suspirando tão perto de mim que o ar alcança minha bochecha. Meu riso é abafado por seu ombro quando Peter, sem muitos lugares para esconder suas face rosadas, escolhe enterrá-la em meu ombro. — Can I Call You Tonight é o nome da música, não é? — Ele suspira derrotado entre o riso, abraçando minha cintura.
Faço carinho em seu cabelo, sentindo ele me acompanhar na risada quando concordo.
Nós descemos na estação do Queens, de mãos dadas pois está mais movimentada do que nunca com a falta que a Ponte do Brooklyn faz. Algumas pessoas esbarram em nós, o que não é nada além do normal em Nova Iorque, mas que parece fazer Peter passar a outra mão para trás e eu seguro nela também. Passamos por alguns músicos e eu até considero parar para comprar um refrigerante em uma máquina, porém o grupo de crianças que a sacode para derrubar um salgadinho preso no vidro me faz desistir.
— Acho que a gente vai precisar ir no Delmar comprar comida. — Pete bufa enquanto aguardamos algumas senhorinhas com várias sacolas passarem na nossa frente na escada rolante.
— O Tony não te avisou? — Indago um pouco tímida. Peter vira-se para mim com uma expressão incerta antes de se tornar conhecedora, mas sem parecer desconfortável como imaginei que estaria. Dou um sorrisinho envergonhado, afagando sua mão. — Ele vai mandar algumas compras para vocês enquanto a May não se recupera. Eu deveria ter te avisado que ele ia fazer isso, mas com tudo o que aconteceu eu me esqueci.
— Tudo bem, é coisa do Tony. — Peter sorri um pouco, claramente já tendo imaginado a possibilidade de meu pai ter feito algo. Eu engulo em seco e concordo, segurando sua mão com mais força. — Mas assumo que vou sentir saudade da comida da Srta. Potts. É melhor que a da May… — Ele me ajuda a sair da escada rolante, atento para cada passo meu e me esforço para não reclamar da preocupação desnecessária.
— Eu gosto da comida da May… — Comento quando Peter passa o braço por meu ombro ao desembocarmos em uma área da estação que está ainda mais movimentada, com algumas pessoas correndo com latas de tinta. Um rapaz esbarra em uma das senhorinhas asiáticas, derrubando o seu rolo de papel gigantesco e se apressando para voltar a correr. Peter firma o braço ao meu redor.
— É meio difícil errar um sanduíche de pasta de amendoim e geleia, … — Garante com tensão palpável ao avançarmos pela plataforma, mantendo-me segura contra ao seu corpo ao nos aproximarmos do ponto onde as pessoas estão mais aglomeradas. — Agora canja de galinha…
Estamos próximos a escadaria que levará até a superfície do Queens quando meus olhos detectam algo cuja familiaridade é assustadora. Agarro a parte de trás do casaco de Peter quando as minhas pernas decidem não prosseguir, toda atenção roubada pelo cartaz que dois se rapazes colam na parede da estação. Ambos usam máscaras para cobrir seus rostos, mas seu sorriso é incontestável quando uma garota passa por eles e os oferece tapinhas nas costas. A reconheço do especial da CNN sobre o acidente. Seu nome é Carli Banks e sua irmã, a garota de tranças boxeadoras que grita para um grupo de meninas se apressarem, Chiara, está com o braço enfaixado. As duas deram entrevistas para o especial ontem e suas descrições liam “irmãs sobreviventes do desastre na Ponte do Brooklyn”.
Talvez seu desnecessário agradecimento seja a motivação de Carli aguardar no meio das pessoas que se apressam para fora da estação, os rapazes finalizarem a colagem do cartaz com o meu rosto estampado. Não exatamente estampado, uma vez que tingiram minha máscara no tom de minha pele e colaram um ponto de interrogação pixelado.
Fênix — Peter pronuncia com uma surpresa palpável, o aperto em mim diminuindo ao perceber que não havia perigo algum. Eu, pelo contrário, seguro-me mais nele ao acompanhá-lo na leitura do enorme cartaz que se repete várias vezes pela plataforma. — Ocupação desconhecida, idade desconhecida. Vista pela última vez na Ponte do Brooklyn em 03 de janeiro. — Ele não menciona o enorme símbolo de "procurada", e percebo não haver necessidade para tal quando meus olhos recaem para a última linha do cartaz. — Se firmar contato, por favor, lhe dê os nossos agradecimentos.
Não sei por quanto tempo observo o cartaz e as pessoas que se dedicam a colar os outros nas paredes, um leve aperto em meu coração ao lembrar-me do acidente e de que, de forma alguma, o agradecimento é necessário. Peter afaga meu braço e ergo o rosto para lhe olhar, sendo presenteada com um sorriso amável e olhos brilhantes antes de receber um beijo casto na testa. Estou tentando ir em frente e formular algo para dizer, mas as palavras me faltam e na ausência delas, Pete sorri mais e dá um passo na direção de Carli.
— Ei! — Ele ergue a voz para ser ouvido, o que funciona pois Carli se vira para ele ao esfregar a mancha de tinta na bochecha. — Vocês tem algum cartaz sobrando? — Olho para Peter novamente, incrédula por ele querer um dos cartazes, mas com certo quentinho no peito, além de um rubor quente se espalhando por meu rosto quando me aperta como um abraço de lado para destacar o que diz em seguida. — Sou um grande fã.
— Claro! — Carli Banks sorri largo, um pouco desengonçada ao puxar um dos cartazes que estava debaixo do braço e o enrolar, entregando o canudo para Peter. Ela também enfia a mão em uma das duas pochetes ao redor de seu quadril. — Vocês querem um bottom, também? Os adesivos já acabaram, mas acho que devem estar entregando alguns perto do stand de guias!
— Dois, por favor. — Peter indica com a mão que segura o poster, sem nem hesitar em me soltar. Eu seguro-me nele com mais afinco, lutando contra a vontade de enfiar meu rosto no peito dele no meio de tantas pessoas. Engulo em seco quando ele recebe os bottons com a mesma foto, mas em forma de um desenho. — Obrigado. — Pete estende os dois para mim e, um pouco acanhada, pego um. — Bom trabalho! — Engulo em seco, oferecendo um sorriso agradecido para Carli antes dela desaparecer no meio da bagunça. Analiso o botom por um momento, correndo o dedão pelo desenho que deve ter demorado certo tempo para ser feito, preocupada com o dinheiro que podem ter gastado nele. — Espero que não fique com ciúmes — Olho para Peter, que está muito concentrado em colocar o bottom em seu casaco. Está um pouco torto quando ele termina, mas o beijo pressionado em minha têmpora me faz ignorar a assimetria. — É só que a Fênix é a minha heroína favorita.
Terminamos o caminho até o apartamento em silêncio, exceto uns comentários de Peter sobre não precisarmos andar tão rápido ou que podemos descansar se minha perna doer. Quando nós chegamos em seu apartamento, Peter vai atrás de mim enquanto subo os quatro lances de escada, da mesma maneira que fez ao deixarmos o metrô. E assim como fiz lá, seguro minha língua e as reações do meu corpo, evitando externar o quanto cada pisada é afiada e me faz chegar suando na sua porta. No entanto, eu sinto toda tensão de Peter e deixo que ele se ocupe me ajudando a tirar o meu casaco e o cachecol, que é seu de e ele me emprestou há três meses quando saímos para jantar junto com May em um restaurante coreano. Atento-me para ouvir se há mais alguém aqui além de May e o som da voz agradável de uma das enfermeiras do Complexo me alcança.
— E eles vão se casar em março, certo? — A voz da Enfermeira Margareth faz Peter virar o rosto na direção do corredor enquanto dobra meu casaco. — E eu disse: gatinha, se você quer que o casamento dê certo dessa vez, vocês precisam pular a vassoura!
Pete ergue a sobrancelha para mim e eu dou de ombros. A Enfermeira Margareth tem um bom tempo de profissão e foi fisioterapeuta antes de enfermeira, de modo que faz todo sentido ter sido quem meus pais escolheram para acompanhar de perto a recuperação de May. Estou tentando olhar o quarto de May de onde estamos perto da porta, mas quando vejo um filete da colcha da cama, sinto o repuxar de Peter nos cadarços de meus tênis antes de ele se levantar e começar a tirar o seu casaco.
— MJ estava certa em dizer que eu sou mimada — Informo ao remover os sapatos agora que os cadarços estão folgados. — Você está terrível desde o acidente.
— Primeiro que eu nem vou dizer nada sobre a MJ — Peter avisa ao pendurar seu casaco e tirar o seu tênis também, os juntando com os meus perto da porta onde nossas mochilas estão. — E você está doente, então eu vou cuidar de você. — Ele dá de ombros e estende a mão para mim, uma expressão de clara despreocupação estampada em seu rosto. — Faria o mesmo por mim que eu sei.
May está confortavelmente deitada na cama quando entramos em seu quarto, cercada por vários travesseiros e almofadas de aparência macia, todas que foram bordadas por ela devido a aparência ser parecida com as da sala e os panos de prato. As duas janelas do quarto estão abertas para a entrada da luz natural e Marge está sentada na cadeira da escrivaninha, tendo a puxado para mais perto da cama a fim de conversarem melhor.
A minha maior justificativa para sorrir com a cena é perceber que May não está ligada a monitores ou sendo constantemente medicada. Ela também parece ter tido a chance de tomar um banho, tanto que o apartamento cheira ao seu hidratante de rosas, o cabelo bem penteado também indicando a melhoria do seu estado apesar do tremendo susto que nos deu. Ela não veste as roupas hospitalares e sim um vestido folgado para permitir o acesso da enfermeira quando necessário, o que indica que a sua recuperação está dentro do planejado e em breve ela estará como antes.
— Oi, crianças! Peter, essa é a Marge e ela vai ficar com a gente esses dias para ajudar com os remédios e a fisioterapia. — Ela sorri um pouco envergonhada para nós e Peter se aproxima para dar um beijo na bochecha dela, tocando seu cabelo, como se lhe garantisse que não há motivo para sentir-se embaraçada por coisa alguma. — Marge, esse é o meu sobrinho que eu te falei. Não disse que ele é uma gracinha? — Os elogios me fazem sorrir por saber que Peter deve ter ficado rubro. Quando ela me olha por cima do ombro dele, May me dá uma piscadinha. — Vocês já comeram alguma coisa? — Questiona assim que o sobrinho se afasta para cumprimentar Marge e é a minha vez de lhe dar oi, beijando a sua outra face e apertando seus dedos gentilmente. — E essa aqui é a , a sobrinha da Pepper. Minha nora, pelo andar da carruagem, não é?
, meu benzinho! — O alívio que a interrupção da Enfermeira Marge causa me faz rir um pouco e eu aceno para ela de onde estou. — Como você está, querida?
— Muito bem, Marge. Obrigada. E você? — Ela descarta a minha pergunta com um riso, dando um tapinha no braço de Peter que, como esperado, está um ruborizado e insiste em pegar uma das poltronas da sala para ela ficar mais confortável. — E você, May? — Questiono ainda segurando a mão da tia de Peter, evitando me sentar na ponta da cama apesar da dor na perna ainda incomodar após as escadas. — Como está se sentindo? Está precisando de alguma coisa? — Peter sai do quarto, removendo o suéter no corredor ao seguir na direção da poltrona de couro na sala pois, é claro, ele nunca iria aceitar um não como resposta.
— Só saber se os pombinhos já comeram alguma coisa, mocinha! — May dá risada pela falta de uma resposta prévia para sua pergunta e sinto minhas orelhas esquentarem mesmo que um sorriso seja complicado de manter oculto por muito tempo. Infelizmente não tive a chance de contar a meus pais sobre Peter e eu, nem mesmo para MJ, então saber que apesar de nosso silêncio May está ciente de tudo é agradável. Saber que alguém nos apoia assim é gratificante. — Finalmente de mãos dadas, hein? Espero que funcione dessa vez, os dois ficam tão queridos juntinhos assim! — Sopro o ar que segurei, sentindo o rosto quente apesar de assentir.
— A gente ainda não… — Como o herói que é, Peter desfaz a minha tensão ao bater com os pés da poltrona no batente da porta de May, a carregando como se pesasse menos que um saco de açúcar e eu me afasto para que ele a manobre para dentro do quarto. — Eu podia ter feito isso, sabia? — Aviso-lhe e viro-me para May, que observa o sobrinho ainda um pouco surpresa pela força bruta do mesmo apesar de saber de seus poderes já há alguns meses. — E, não. — Enfim respondo a pergunta de May, observando enquanto Peter coloca a poltrona na mesma posição que a cadeira antiga e recebe um apertão de bochecha de uma Marge obviamente assustada pela força dele. — Ainda não comemos nada. Pelo menos eu ainda não. — May faz uma cara de Pepper para mim, a mesma de quem diz “e porque não?”. Em sua mente, ela faz a mesma pergunta. — Fiquei estudando na hora do almoço.
— Vou fazer uns sanduíches pra gente, não se preocupa — Peter garante para a tia ao vir ficar ao meu lado novamente e May concorda. — Fui conversar com o professor de espanhol na hora do almoço também, então… — Pete toca em minha costa e apoia-me, de forma que posso trocar o peso de uma perna para a outra. — Está tomando os remédios direitinhos ou quer que eu faça um aviãozinho? — Ele questiona ao se inclinar sobre a tia e fazer a mesma pergunta que Tony fez para mim certa vez quando havia acabado de ser instalada no Complexo e me recuperava de Sokovia. May dá um tapa no braço dele. “Já tomou e deveria estar descansando, não é?” Marge intervém enquanto abaixa as cortinas, diminuindo a luminosidade do quarto e May fecha os olhos, claramente insatisfeita por estar de cama. Afago sua mão, a entendendo bem. — A gente vai comer enquanto você descansa, tá? — Abrindo os olhos amáveis para nós, ela concorda com a proposta do sobrinho. Eu solto sua mão para segurar o ombro de Peter, de forma a deixarmos que May caia no sono em paz. — E se a senhora precisar de qualquer coisa, é só chamar, ok?
— Vocês também, crianças! — A enfermeira responde gentil ao abaixar a última cortina.
Quando deixamos May descansar e eu sento na mesa da cozinha, fecho os olhos pelo alívio da pressão sobre minha perna. Ouço a porta da geladeira abrir e fechar, assim como o barulho da cadeira diante de mim ser puxada, o que me faz abrir os olhos e nem mesmo questionar Peter quando ele coloca um saco de ervilhas congeladas e uma toalha sobre a mesa.
— Onde estão os seus remédios? — Engulo em seco ao permitir que me ajude a levantar a pena, tão devagar que sinto vergonha apesar do elevar fazer diferença na dor. Pisco algumas vezes, respirando fundo antes de balançar a cabeça para ele, não querendo lhe dar trabalho e ciente que já tomei um número alto de remédios na biblioteca e não devo tomar mais nenhum por algumas horas. — ? — Peter chama e eu respiro fundo pois sinto umidade em minha testa quando toca nela. As escadas realmente foram exaustivas. — E-eu vou ligar p-para a Senhorita Potts, tá? — O mencionar de Pepper me faz apertar a sua mão, a força suficiente para fazê-lo não ousar se levantar apesar da apreensão em seu rosto. — . — Sua advertência é fraca pela preocupação que enlaça sua voz.
— Não, não — Suspiro ao usar minha outra mão para colocar as ervilhas congeladas em minha perna, o frescor sendo agradável e útil para disfarçar a queimação. Pete toca meu rosto com a costa da mão, a delicadeza que usa sendo a mesma que alguém usaria com um animal ferido. — Está tudo bem — O alívio do gelo também é quase imediato, assim como seu toque. — Só preciso recuperar o fôlego. — Lhe garanto com mais firmeza enquanto a dor se dissipa pois só precisava me sentar um pouco. Peter engole em seco, ainda me observando como se eu fosse uma bomba prestes a explodir. — Não quero ser mais um problema para você. Eu só precisava me sentar um pouco, já está passando.
— Um problema seria ver você sentir dor igual sentiu no hospital e eu não fazer nada, — Peter afaga minha testa ao afastar o cabelo dela novamente, me olhando tenso de onde está agachado ao meu lado. Quando tenho certeza que a dor não está mais tão afiada como antes, encosto a testa na sua. Seu pequenino e delicado selar em minha mão sobre a sua me acalma. — Tem certeza que está tudo bem? — Asssinto devagar, respirando fundo para ajudar na circulação de ar. — ?
— Está tudo bem. Eu não vou mais mentir para você. — Prometo com todas as palavras. Sinto o ar que Peter exala e aperto seus dedos apoiados em minha coxa boa. Ele faz o mesmo, selando o acordo entre nós. — Só precisava me sentar, fiquei muito tempo em pé. E já tomei remédios demais. Só posso tomar outros mais tarde. — Peter pousa a mão sobre a minha que segura as ervilhas sobre o ferimento, tentando garantir que estou fazendo certo igual fez ontem a noite. A sua preocupação não só me entristece por ser motivo de mais incômodo como também deixa um pouco curiosa. — Como já sabia que eu estava com dor? — Sopro a pergunta, o calor de sua palma sendo um bom contraste na costa de minha mão.
— Eu te escuto. — A sua explicação me faz erguer a sobrancelha, ainda confusa com a explicação. Pete sorri um pouquinho pra mim. Ele é tão lindo que sinto vergonha de meu estado. Meu rosto deve estar suado e o cabelo bagunçado. — Quando alguém sente dor, a pressão sobe. O coração bate mais rápido. Fora que a respiração fica apertada. — Concordo, pois faz total sentido e é incrível que Peter tenha habilidades tão inconcebíveis ao ponto de detalhes assim serem óbvios para ele. — E... Hormônios. — Ergo a sobrancelha novamente e seu sorriso é tímido. — Pra encurtar tudo, as mudanças químicas que o corpo de alguém tem quando libera hormônios são fáceis de perceber. Quando se sente dor, o corpo libera um hormônio. É estranho, mas somado aos outros sinais, fica fácil de descobrir o que é. — Aperto os lábios a ponderar a explicação e seguro a pergunta sobre isso justificar ele sempre tratar MJ e eu da forma mais cautelosa possível só por estarmos no ponto chave de nosso ciclo menstrual. Ou de TPM. — Vou ver o que tem na geladeira pra gente comer, ok?
Depois de um assentir meu, ele se levanta e começa a vasculhar os armários enquanto dou uma olhada no lado de fora pela janela da cozinha e a ervilha vai se derretendo. Inclino a cabeça para ver a pequena poça e, gesticulo com os dedos, o piso logo voltando a aparência normal e a água sumindo. Engulo em seco e viro a cabeça para Peter, que abre a geladeira e apoia o braço na porta ao verificar o que foi estocado nela pelos funcionários do Complexo. A luz que entra da janela não é nem um pouco aconchegante, principalmente por se refletir na neve do lado de fora, mas eu tento fingir o contrário. Que a luz é o amarelo bonito de verão igual a quando vim para o Queens pela primeira vez há muitos meses. Também finjo que eu não estou ferida e que May não está dormindo em seu quarto por causa dos remédios.
Faço isso pois estou consciente de que não poderei retornar aqui após esta noite. Foi um erro inescusável não contar a verdade sobre o atentado para meus pais, e eles farão o necessário para que isso fique cravado em minha mente. Me assusta não saber por quanto tempo ficarei longe de Pete, não tanto quanto me assustou no passado após Washington. Assusta muito mais. Então, enquanto o observo retirar algumas coisas da geladeira, me concentro em gravar alguns detalhes de nossa tarde. Can I Call You Tonight, os posters e May indiscretamente me chamando de nora. Também guardo nas minhas memórias do dia que Peter foi a primeira pessoa a utilizar “ Stark”. Assim como meu pai nos acordando hoje e levando para a escola, o que me lembra de Ned falar de Tony como sogro de Pete e derreter meu coração.
Sei que terei um bom castigo pelo o que fiz, mas que é justo e devo aceitá-lo.
— Cara… — O suspiro de Peter me desperta e eu pendo a cabeça para trás onde ele está apoiado na pia junto a muitos ingredientes e uma cesta de pães e muffins que eu não havia percebido estar ali. A sua expressão perplexa me faz querer rir. — Os seus pais compraram muita coisa... — Eu lhe dou um sorrisinho e franzo o nariz, esperando que compreenda que é o jeito deles. De Tony, na verdade. A cesta de pães pode ser Pepper, mas os salgadinhos que entopem o armário, os favoritos de Peter com vinagre e sal? Estes são Tony. — O que é isso aqui? Isso é pesto? — Ele enfia a mão na geladeira entreaberta de novo e abre um pote de vidro que tenho certeza que eu e Pepper lutariamos muito para abrir. Peter aproxima o pote de seu nariz e arregala os olhos, claramente animado com o que achou. — É pesto!
— Fica gostoso com queijo e tomate. — Aponto para os tomatinhos cerejas e as bolinhas de queixo que boiam em um jarro de vidro com azeite e algumas folhinhas dentro. Peter concorda, atento para o que eu digo. — Tem alguma proteína? — Estou faminta. — Peito de peru, salame…
— Deixa eu ver… — Ele se inclina para o fundo da geladeira, onde os frios devem ficar. — Tem… Peito de frango já temperado — A adição disso no possível sanduíche me faz salivar. Peter fecha a porta da geladeira enquanto ainda lê a embalagem. — Com gostinho de frango assado! — A imitação de uma propaganda de televisão me faz rir baixinho, o que também lhe faz rir um pouco ao juntar seu achado com o resto dos ingredientes. Ele é cuidadoso para não ficar de costas para mim, sempre de lado ao analisar tudo que está sobre a pia com as mãos nos quadris igual Tony fez na vez que tentou preparar um omelete para mim e queimou tanto os ovos quanto a frigideira, até derretendo o cabo. No entanto, confio em Peter após ele fazer pipoca ontem e nem mesmo deixar manchas no fundo da panela, proeza que nem Pepper consegue fazer. — Que tal um sanduíche de peito de frango, pesto, queijo e tomate? E alguma fruta que eu achar aqui?
— Soa uma delícia — Ergo um joinha para ele e Peter logo abre a torneira, lavando suas mãos e os tomates que estavam em uma cestinha de plástico. — Se eu soubesse que iria cozinhar pra mim, já teria dito que gosto de você há um bom tempo, Parker. — Peter dá uma risada gostosa, com a cabeça pendendo um pouco para trás.
— Eu só estou colocando um monte de coisa em duas fatias de pão. Isso não é cozinhar, mas posso fazer um omelete para você, se quiser. — Pete dá de ombros, puxando umas folhas do rolo de papel toalha para enxugar as mãos. Eu balanço a cabeça, a memória de ovos e plástico queimados ainda me deixando incerta com a receita. — Eu sei fazer omelete na caneca, sabia? — Parker refuta minha negativa. — Com tomate e tudo, tá? — Ele vira para mim ao se dirigir para a geladeira outra vez. — E bacon! — Pressiona ao pegar um maço de alface.
— Meus pais te deram cinco fatias de bacon hoje! — Chamo sua atenção para a injustiça que comentei previamente.
— Vai querer bacon no seu sanduíche, pra compensar? — O riso é óbvio na sua voz.
— Acho justo.
Peter começa a preparar a comida; seleciona uma frigideira e alguns utensílios que já vi Pepper usar, mas não imagino ter habilidade suficiente como os dois. Ele já havia mencionado alguma vez que, ainda antes de ser assistente social, May trabalhava no turno da noite em um supermercado e ele precisava preparar seu próprio jantar, então sua capacidade de se virar na cozinha faz sentido. No entanto, em meu caso, não consigo ir muito além de esquentar água ou fazer algo no microondas. E, como sempre, o ver preparando algo para mim incita um sentimento bom dentro de mim – cuidado. Peter sempre foi cuidadoso e prestativo, mas era quase fácil demais enxergar seus atos como um mero traço de sua personalidade (o que não deixa de ser agora), mas que acaba por traduzir-se como a sua forma de demonstrar carinho. Eu molho meus lábios, atenta para a dor que sinto e enfim certa de que ela se aliviou o suficiente, somente assim ousando me levantar da cadeira enquanto ouço Pete fatiar algo na tábua de florzinhas azuis de May.
— Posso te ajudar com alguma coisa? — Me ofereço ao aproximar-me mais do balcão.
— Ei, o que está fazendo em pé? — Peter não briga comigo, não, não. Apenas questiona de uma maneira um pouco surpresa, como se não esperasse me ver fora daquela cadeira tão cedo. Ele está segurando uma faca de cabo verde ao fatiar o bacon
— Já estou me sentindo melhor. — Lhe garanto com a palma em seu braço. — Juro.
Pete me observa por um instante enquanto lava as mãos, olhando para meu jeans úmido onde havíamos colocado as ervilhas congeladas, e então meu rosto que pode ou não pode revelar parte do incômodo que ainda sinto ao me apoiar na perna ferida. Ele estala a língua para minha situação e joga a toalha que usou para enxugar a mão por cima do ombro, balançando a cabeça.
— Vem cá. — Antes que eu possa compreender o intuito do “convite”, suas mãos já estão segurando meus quadris e tudo o que posso fazer é apoiar-me em seus ombros quando me ergue para que sente no balcão. O ato não é novo, pois Tony ja fez isso assim que cheguei e não conseguia dormir a noite inteira e ele se via na obrigação de fazer companhia a mim, nem que isso o obrigasse a me aguentar junto a ele no laboratório. No entanto, é completamente novo ao lado de Peter e demonstra o quão forte ele é e como coisas assim não demandam tanto de sua coluna como fizeram com Tony uns três anos atrás. — Pronto. — Peter dá um tapinha gentil em meu joelho bom, sorrindo satisfeito por eu não estar mais de pé. No entanto, apenas consigo lhe olhar e me questionar o quão sortuda sou. — Se ficar sentadinha aí, eu te deixo me ajudar com os tomates.
— Obrigada, Homem-Aranha. — Agradeço com um sopro ao procurar onde os tomates se esconderam depois que Peter os lavou. Tomo cuidado para não esbarrar nos outros ingredientes, um pouco desconcertada por estar em seu balcão. Do mesmo jeito, isso não é muito diferente de cenas de filmes, então tento engolir o estranhamento com um tomatinho cereja.
Peter lava as mãos de novo e volta a cortar o bacon com cuidado, atento para seus dedos. Não ouso imaginar quantas vezes já pode ter se cortado ao fazer isso. Imaginar Peter ferido é um soco no peito, mesmo em um cenário tão minimamente perigoso como este. Coloco outro tomate cereja na boca, considerando pegar uma bolinha de queijo também, mas não querendo me intrometer demais na cozinha alheia.
— Você conversou com o Osborn? — Saber que Peter propositalmente não me olha é um tanto reconfortante, mas ainda assim, a pergunta é desconfortável de ser respondida ao me lembrar de tudo o que aconteceu hoje. Ele desliza as fatias de bacon para um prato e começa a lavar a faca e a tábua enquanto termino de mastigar.
— Uhum. Ele foi bem compreensivo apesar da situação chata em que coloquei ele. — Eu suspiro e Peter me olha, uma mistura de compreensão e apreensão em seu rosto. Não quero pensar em como eu o fiz se sentir ao ir a um encontro com outra pessoa. MJ estava correta ao dizer que fui cruel. — Não foi certo tentar usar o Harry para tentar te esquecer. Obviamente não iria funcionar e só nos meteu nessa bagunça enorme.
— Eu meio que ouvi vocês. — Ele aperta a boca como faz ao perceber que fez algo errado, mesmo que eu não veja o que fez como um erro. — Desculpa.
— Imaginei que ouviria, estava na sala ao lado… — Peter molha os lábios, parecendo incerto. — Peter?
— Eu posso ser muito babaca e dizer uma coisa mais babaca ainda? — Não ouso negar o pedido, ciente que nem se quisesse, Peter conseguiria ser babaca. Ele é bom demais para isso. Peter respira fundo e segura minha mão livre com as suas, se preparando para o que deseja dizer. Eu o imito, preparada para o que disser. — Eu detestei a parte do "nós seríamos bons namorados" — Trago suas mãos para minha boca em uma tentativa de conter o riso que ameaça me escapar após a sua ridícula tentativa de imitar o sotaque de Harry e, consequentemente, o meu. Peter até mesmo balançou a cabeça em desdém ao falar, o que, ao ser somado com o ciumes que ele não se preocupa em esconder, é adorável. Ele revira os olhos com a minha risada, mordendo o lábio inferior para conter um riso enquanto me inclino e apoio o rosto no seu ombro. É hilário, não só pelo ciúmes quanto a imitação. — De verdade! Qual o problema dele?
Me afasto um pouco, meu rosto quente de tanto rir. A imitação não ajudou a soar babaca como imaginou que faria e isso também o faz rir um pouquinho, balançando a cabeça.
— Acho que você não querer beijar ele no Complexo devia ter erguido uma bandeirinha vermelha na cabeça dele de tipo — Peter suspira profundamente, dramático ao imaginar o que estaria escrito na bandeirinha e a cena fica ainda mais engraçada pois ele também está sorrindo e não aceita que eu veja isso como motivo de piada, ainda que seja isso e não motivo para o considerar um babaca como imaginou que seria. — "Cara, ela não tá tão afim assim de você!" — Peter balança as mãos para intensificar a mensagem que deveria ter sido passada para Harry com minhas atitudes naquela noite. — “Lembra aquele cara que você conversou na aula de marcenaria? Pois é! Ele também tá no jogo!”
Eu observo Peter por alguns segundos, lutando para não o beijar até ficar sem ar.
— Nem sei o que comentar primeiro… — Balanço a cabeça, avaliando seu rubor com um sorriso que deve indicar o quão boba Peter conseguiu me deixar. — Aula de marcenaria? e... Jogo?
— Não no sentido de brincarmos com o seu coração, nunca nesse sentido, — Parker se corrige de imediato e eu solto sua mão para pegar um outro tomatinho com um meio-sorriso, lhe esperando elaborar melhor seu raciocínio. — Mas no sentido de ter uma competição. — Seu elaborar só serve para fazer suas bochechas se ruborizarem mais.
— O Harry pode não ter se atentado de haver competição porque não havia uma. — Dou de ombros, balançando a cabeça. — Não havia. — Repito a afirmação para firmá-la para Peter. Não há dúvidas de que Michelle está certa ao dizer que eu sempre o escolhi e entendo que ela também não exagerou a dizer que talvez sempre seja ele. Peter me olha, as mãos apoiadas na pia e olhos caçando a verdade que espero ter conseguido transmitir por minha boca e olhos e assim que nossos olhares se cruzam, o seu se suaviza com delicadeza. É tenro e vulnerável. — E... Marcenaria?
Peter joga a vulnerabilidade para o ar com um revirar de olhos.
— Eu fiz uma casinha de passarinhos muito legal, tá? — Agora com um baguette em sua mão, ele aponta com o pão para mim, corrigindo a minha suposição errônea quanto à oficina. — E eu até fiz uma colher! — Ele pega o organizador de colheres atrás de mim e segura uma, indicando para mim onde o seu nome está escrito com Sharpie no cabo. Eu assinto, segurando o riso e a colher que não tem farpas ou coisa alguma, demonstrando o quão habilidoso Peter é com as mãos. Pelo bem do meu coração, ignoro o quão fofo é ele me mostrar a colher que fez ou ter escolhido fazer uma casinha de passarinhos.
— Posso contar isso pra MJ? — Questiono de bom-humor enquanto Pete pega uma outra tábua e começa cortar fatias verticais de uma cenoura. Fico atenta para seus dedos, preocupada que acabe se machucando. Pepper já cortou o dedo assim. — Vai fazer ela rir e querer falar comigo outra vez. — Comento e seguro um tomatinho na direção de Peter, quem o joga de imediato na boca para se ajudar e não sorrir como a curva de seus lábios indica que deseja. — Zoar você, o Ned e o Flash foi o que nos uniu.
— Vocês zoavam a gente? — Ele me entrega dois palitinhos de cenoura.
— Não era bullying. — A resposta não é muito convincente enquanto eu lhe ofereço outro tomate, mas nós dois sabemos que não era mesmo e Peter tira uma mordida da fruta miúda. — Era mais eu me irritando com o Flash e a MJ apoiando. — Pete assente, atendendo meu ponto e pegando uma frigideira no armário. — Você me prometeu pedir para o seu amigo Homem-Aranha pendurar o Flash no topo do Empire State, lembra?
Seu riso é contente, uma vez que considero que se lembra do dia que lhe pedi tal coisa.
— Você tem visto o Flash? — Pete questiona depois de um certo silêncio enquanto ligava o cooktop e esperava a frigideira se aquecer bem próxima da pia. Eu balanço a cabeça, incerta acerca da última vez que vi Flash Thompson. — Ele se acalmou esses tempos.
— Isso é uma notícia boa — Nós fazemos um brinde com os palitinhos de cenoura depois de Peter colocar o bacon na frigideira e a tampar, pressionando um botão do sugador acima do fogão. — Acho que a última vez que o Flash dirigiu alguma palavra pra mim foi tentando me convidar para o baile. Ou tentando descobrir se eu tinha algum par, eu sinceramente não lembro. — Peter apoia seus cotovelos no balcão para descansar, revirando os olhos de novo ao ouvir sobre as loucuras de Flash e termina de mastigar o seu palitinho. — A última vez que ouvi os pensamentos dele nos corredores, ele estava eufórico pois os pais estavam na cidade. Os dois de uma vez.
— Vou repetir aquilo que já comentamos de sabermos demais da vida dos outros por causa dos poderes. — O seu sorriso é encantador ao lembrar-se de nossa conversa ao jantarmos no telhado no Complexo há algum tempo.
Me permito o admirar um pouco enquanto Peter desvia a sua atenção para a frigideira que chia ao fritar o bacon. Contemplo o perfil de seu rosto, banhado pela leve luz do pêndulo no teto, agora que a luz do sol não nos alcança no átrio do inverno novaiorquino. Fito o gracioso ângulo de seu nariz, a delicada inclinação de seus lábios e como algumas das adoráveis sardas salpicadas em seu nariz perdem a profundidade da cor ao redor da sua boca. Também observo os inúmeros sinais de em sua pele, assim como as sombras de algumas rugas felizes que iluminam seus olhos apesar da sua expressão amena e nem tão concentrada assim na comida. Algo queima no meu coração, uma vez que talvez eu nunca supere o fato que alguém tão como Peter tenha escolhido ficar ao meu lado.
Toco seu rosto com a costa de minha mão sem considerar mais coisa alguma e apenas sentindo a textura de sua pele e o sorriso que se forma em seu rosto, a bochecha dele se curvando. Os olhos gentis de Peter buscam os meus e eu sinto minha boca se curvar em um sorriso para ele, o que, além de beijar-lhe, parece ser o mais novo intuito de meus lábios. Sorrir para Peter e por causa dele.
— Você é muito bonito, sabia? — Ofereço o elogio sem nem mesmo pensar nele. É a mais pura verdade. Já havia notado isso antes de estarmos juntos, mas não mencionaria de forma alguma. No entanto, o elogio me escapa sem nenhuma restrição ou consideração prévia.
Sinto o sangue correr pro seu rosto, a pele aquecida e o sorriso envergonhado surgindo para substituir o antigo, o tornando mais encantador ainda.
— Do nada assim? — Peter segura minha mão com ambas as suas palmas mornas. Me ocorre quase de imediato que ele não está tão habituado a receber elogios. É óbvio para todos os que o rodeiam que Peter é genial e tem um coração enorme pelo o que faz, sendo o Homem-Aranha ou não, e talvez ele só tenha se habituado a elogios desta espécie.
— Principalmente quando está embaraçado, Pete. — Ele engole em seco e aperta a boca. Seu desconcerto me faz rir um pouco e eu solto sua mão para lhe oferecer um outro tomate. Seu rosto está virado na direção da frigideira, mas sua orelha rubra não me engana e eu seguro o riso. — Pete? — Peter finalmente vira-se para mim e pega o tomatinho que lhe ofereço e me dando um olhar que me implora para não comparar a cor da fruta com seu rosto. Eu assinto rápido, lutando contra a vontade.
— Comemos todos os tomates? — Peter questiona ao colocar a mão no pequeno bowl em que ainda restam quatro ou cinco tomatinhos. Quatro, após ele pegar um.
— Quer ver um truque? — Ofereço, balançando o bowl e Pete não hesita em assentir.
Observo o bowl de tomatinhos por um instante e uso minha mão livre para apoiá-los e a outra para fazê-los girarem no recipiente sem os tocar, o brilho violeta iluminando parte da cozinha ao envolver as esferas vermelhas. Molho os lábios, observando as frutas pequeninas se multiplicarem até uma quantidade satisfatória como estavam antes. Tomo cuidado para as que surgirem não pularem e caírem para fora do bowl, mas meus poderes são bem comportados e em menos de cinco segundos, os cinco tomates se tornaram quinze ou vinte. Segurando o bowl amarelo com ambas as mãos, o seguro na direção de Peter, sendo esta a minha vez de ficar com vergonha.
— São de verdade? — Ele questiona após engolir em seco, olhando do bowl para mim e então para os tomates outra vez. Ao me colocar em sua posição, eu considero que Peter pode imaginar ser uma mera ilusão, mas não é.
É nesse mínimo detalhe onde o abismo entre meus poderes e os de Wanda se encontram. Suas habilidades a permitem criar ilusões convincentes. Wanda projeta ilusões incontestáveis. No entanto, eu altero a realidade. Posso distorcer da maneira que me couber, muito além do reino mental que Wanda utilizava-se ainda com dificuldade alguns meses atrás.
— Mais verdade impossível. — Garanto e Peter volta a me olhar, um pouco cético e sua reação a minha frase não deixa de ser justificável. — Ok. Isso é refutável, mas precisa assumir que é bem legal. — Seleciono um dos perfeitos frutos e o deposito em sua mão, atenta para como Peter já se preparava para que minha pequena criação atravessasse a sua palma. Ele segura o tomate e o encara por um momento, não mais tão cético e sim surpreso. Admiração parece também se adequar para lhe descrever enquanto analisa o fruto. — Eu consigo manipular os átomos. — Explico. — A F.R.I.D.A.Y acredita que meus poderes tenham me tornado uma espécie de interface neuro-elétrica, e que posso modificar a polaridade de partículas. Quanto mais amalgamados os átomos de qualquer objeto seja, quanto mais denso, mais difícil é de os modelar; mas comida é relativamente fácil de manipular.
— Você pode multiplicar o que quiser, então? — A dúvida de Peter é relativa, mas eu lhe confirmo que sim. Na teoria, sou capaz de muitos feitos. — Carros, por exemplo?
— Posso, mas é exaustivo. Criar algo é cansativo. — Volto a lhe explicar e Peter se apoia na pia, me observando com a mesma atenção que daria a um professor genial de física. — Triplicar tomates-cereja é relativamente fácil, mas... Outras coisas são exaustivas. — Ele franze o nariz mas me dá um sorriso, compreendendo a força que produzir algo demanda. — Uma ilusão seria diferente. Não me cansaria tanto, entende? Seria só bagunçar o que há aqui. — Toco sua têmpora.
— Por isso que na noite do baile disse que podia me curar com os seus poderes? — Eu o observo se acomodar ao meu lado novamente, secando a tábua que usou para cortar o alface e ele se inclina além de mim para pegar a baguette. — Tipo, regenerar os tecidos? Mitose e aquela coisa toda? — Concordo e Peter joga o tomatinho na boca. — Quando digo que é brilhante, você prefere acreditar que é coisa da minha cabeça… — Cantarola ao fatiar o pão com cuidado. — E eu não vou me cortar, . Isso se você não parar de me olhar e colocar tanta pressão em mim.
— Lembro de você na Arena tentando jogar uma lâmina e acertando o cabo no alvo ou quase cortando o dedo quando tentou girar ela como nos filmes — Comento e dou de ombros. — É impossível não me preocupar com você segurando uma faca, Peter.
— Eu podia fazer uma piada, mas quase tudo que faz hoje em dia tem me preocupado… — Peter me olha e oferece um sorrisinho irônico em troca de meu franzir de lábios. — Desculpa. Vou segurar as piadas, sei que o Tony vai fazer um monte hoje a noite. — Eu fecho os olhos e me inclino na direção da parede, evitando imaginar o quão certo Peter pode estar. Ou o quão errado e como Tony ficará furioso ao ponto de evitar até mesmo falar comigo. — Desculpa, — Não é preciso muito pra identificar o biquinho formado no lábio de Peter apenas pela forma que sua voz sai um tanto apertada e eu nem ouso abrir os olhos quando segura meu rosto. Ele pressiona alguns beijos no meu rosto enquanto tento fingir não gostar deles. — Não acredito que não fui eu quem pisou na bola dessa vez. É muita novidade pra mim!
Meu riso é comprimido por seus lábios nos meus.
O sanduíche não demora muito para ficar pronto depois que o bacon descansa e o óleo é sugado pelos guardanapos onde Peter os colocou após fritar. Os sanduiches são quatro no total, todos bem recheados e com acompanhamento dos sucos de caixinha que estavam na geladeira e as fatias de maçã que Peter me permite cortar para nós. Nós ficamos na mesma posição de antes, com o quadril de Peter encostado no balcão e em meu joelho bom, sua mão esbarrando em minha coxa ao pegar a mostarda que gosta ou meu braço encostando em sua mão livre enquanto o espero dividir a mostarda comigo.
— Você vai conversar com a MJ sobre o que aconteceu? — Peter questiona ao limpar sua boca com um guardanapo, levando o canudinho de papel do suco para os lábios. Apesar da cena ser adorável, pensar em MJ agora me incomoda. — Com a gente, eu digo.
— Eu queria — Respondo após outra mordida do sanduíche que ficou tão bom como eu imaginei que ficaria. — De alguma forma bem distorcida, é bom que ela não tenha reagido bem. — Eu engulo novamente e seguro a caixinha de suco de uva. — Teria que me afundar em outra mentira de como nós dois nos resolvemos após meu encontro com o Harry. Teria que criar outra história e eu já não consigo acompanhar aquelas que já inventei antes.
— Antes do Ned e da May saberem a verdade sobre esse negócio de Homem-Aranha, era assim também. — Peter suspira com ambas as mãos apoiada na pedra escura da pia. Não consigo imaginar o quão desgastante tenha sido mentir para May sobre sua nova identidade. — Eram tantas mentiras que eu me atropelava. E acho que, num certo ponto, a May já sabia que tinha alguma coisa errada. Talvez piorou depois da Alemanha — Descanso o sanduíche no prato ao lhe olhar, atenta para como ele tentar sorrir apesar da clara tristeza que a memória o envolve e consequentemente lhe força a expulsar. — May dizia que eu estava deslumbrado com o Tony, que não deveria ter aceitado o “estágio” por ser muito novo, que eu vivia distraído e não estava passando mais tempo em casa… Com as notas baixas agora… — Peter vira o rosto na direção geral do quarto de May e meu coração aperta. — Ainda não tive coragem de contar pra ela. — Seguro sua mão, seus dedos cobertos pelos meus e ele me olha, sorrindo um pouco. Consigo identificar o cansaço por trás do sorriso. — Parece que esse negócio de herói fez o trabalho duro dela ir por água abaixo. Quanto mais a gente se afunda nessas mentiras, mais difícil é subir para a superfície.
— A May sabe a verdade, Peter. — Eu lhe lembro, afinal, ela realmente sabe. Ela entende que, apesar de jovem demais e esta ser uma vida perigosa demais, não há como impedir Peter de se manter fazendo o que faz. Já percebi isso na noite em que jantamos nós três. Sua relutância com sua vida de herói é por amá-lo demais e temer perdê-lo. — Ela sabe que quando coloca o uniforme, não é o seu ego que te pede pra fazer. A May sabe que é o completo contrário de uma pessoa egoísta ou má. E agora com as suas notas… — Balanço a cabeça devagar, afagando os seus dedos ainda quentes dos pães que aqueceu na frigideira. — Se não conseguir recuperar as notas, o que eu duvido muito, ela vai entender. É ridículo dizer que eu conheço a May quando você é o sobrinho dela e a conhece há anos, mas pelo o que consigo perceber, ela entende que está tentando fazer o seu melhor.
— Eu sei, é coisa da May… — Peter fecha os olhos e respira fundo, balançando a cabeça e afagando minha mão igual fiz com a sua. — Ela vai tentar ver o aspecto positivo de tudo, mesmo se não tiver um. Mas é algo meu. Eu não quero desapontar ela, . Não quero jogar fora tudo o que ela já fez pra mim desse jeito. — Apoio seu rosto com minha mão livre, pedindo aos céus que as linhas de expressão características de sua apreensão e seriedade se dissipem. O estresse que sente é latente, de maneira que não consigo ignorar o quão exausto está. — Fora que tem toda a questão da faculdade e eles não vão querer um repetente no MIT, a porcentagem de aceitação é de 6,7% e se eu não bater no mínimo do necessário para o crivo deles, é tchau-tchau MIT e eu quero tanto entrar no MIT mas não tenho nem três cartas de recomendação para a pré-inscrição ainda e faltam…
— Shh… — O silencio devagar e com um sopro baixinho, ambas minhas mãos segurando o seu rosto com toda a ternura que consigo demonstrar. Peter está precisando descansar. — Você está muito acelerado. — Afago seu rosto, as sombras das olheiras e as linhas duras de expressão. Peter dá um suspiro cansado, as mãos livres encontrando apoio em meus joelhos que encostam na sua barriga devido a posição que estamos. — Respira um pouquinho.
— Desculpa — Peter respira devagar, apertando a mandíbula com força até que eu toque em seus lábios com meus dedões e consiga distraí-lo ao ponto que ele relaxe a face um pouco. Neste mero momento de silêncio onde tudo parece estar sob controle, meu coração dói por ele. — Desculpa, eu só tô muito cansado, . — Eu assinto devagar, deixando uma mão escorregar para seu peito e o sentindo subir e descer com calma pois Peter tenta controlar a sua respiração. — O acidente de vocês, o treinamento, a escola, esse negócio de ser Homem-Aranha… — Ele balança a cabeça devagar. — Eu tô cansado de tanta coisa de uma vez só. Pensei que o pior dia da minha vida fosse quase morrer na noite do baile, mas nem se compara a ver vocês duas no hospital. — Peter engole em seco e preciso de bastante esforço para não pedir que evite pensar nisso. No entanto, eu entendo que faz parte externar o que está lhe causando tanta dor no momento. — A May cheia de tubos pra conseguir respirar e você sangrando tanto que ficou quase gelada… — O balançar de cabeça se repete, como uma tentativa de se livrar de tais pensamentos. — Eu juro que tô tentando pensar em outra coisa, mas…
Afasto o cabelo de seu rosto de maneira cuidadosa, acariciando seu couro cabeludo ao correr as unhas nele, sentindo outro respirar cansado de Peter ser soprado próximo a mim. Suas mãos que estavam em meus joelhos se apoiam na pedra escura, a distância me incomodando ao ponto que afasto um pouco minhas pernas para que ele se encaixe ali. Peter o faz sem que eu lhe indique, os braços ao meu redor e rosto aconchegado onde o meu ombro e pescoço se encaixam, sua respiração quente me aquecendo também. Ignoro como esta posição é íntima, apenas desejando lhe confortar, e também o abraço com força ao me aproveitar da diferença de altura graças ao balcão. Lhe sentir assim, apesar da situação que levou a tanta proximidade entre nossos corpos, é confortável. Peter respira contra mim, as mãos grandes espalmadas em minha costa e os dedos ora ou outra se flexionando para me sentir melhor.
E é como na noite de seus pesadelos e na noite do Baile de Boas-Vindas, quando eu lhe abracei com toda a força que tinha dentro de mim, apavorada por ele. Por sua saúde e sua mente que ainda hoje se mantém inquieta e traumatizada pelos eventos que se acumulam com cada hora que se passa. Meu nariz encosta em seu cabelo quando respiro, o cheiro de menta e limpeza me invadindo e eu beijo o lado de sua cabeça, uma mão ainda afagando o músculo tenso em sua costa e a outra se dedicando ao seu cabelo como sei que gosta. O toque leva seus dedos a se curvarem em minha blusa, em uma tentativa de agarrar-me e nos aproximar mais ainda, a respiração soprando no meu pescoço um jato de ar quente.
— Acho que seja hora do Homem-Aranha tirar uma folga, Pete.
Finalmente externo o pensamento que tem rondado minha cabeça há uns bons meses e o movimento de Peter é esperado. Ele ergue a cabeça, as mãos escorregando para minha cintura ao se afastar e uma expressão desacreditada estampada em seu rosto. Quando meu coração se aperta não é por Peter, mas por Pepper que tem há anos lutado para que meu pai faça o mesmo. Engulo em seco e toco o rosto de Pete novamente, onde ruguinhas incertas se formaram próximas a sua têmpora e eu a deixo escorregar para o tensionar de sua boca. Entendo que, apesar de tudo o que nos cerca agora, o incitar a tal soe insano para Peter, mas é a única solução que consigo apontar.
— Ele inicia ao dispensar minha ideia com um balançar da cabeça, molhando os lábios com a ponta da língua. — Você sabe que eu…
— A única coisa que eu sei é que você precisa focar nos estudos e na May. — Interrompo suas desculpas esfarrapadas de “dever”, o que tenho certeza que dirá pois já o conheço bem. Peter me olha nos olhos, a batalha que trava por trás de suas irises sendo fácil de ver se materializar. — E, não querendo soar como o meu pai, mas a May está sendo muito bem cuidada. — Inclino um tanto minha cabeça na direção do corredor, onde ainda ouço os pensamentos da Enfermeira Marge. Peter suspira, seus dedões também fazendo pequenos círculos por cima de minha blusa no osso de meu quadril. E eu tento ignorar que isso pode ser uma tentativa de me distrair, principalmente quando encosta sua testa em meu ombro outra vez. Eu respiro fundo e afasto o seu rosto de onde estava escondido, outra vez fingindo não me atentar para sua expressão de leve desapontamento quando o faço me olhar. — Agora o seu foco precisa ser você. —Parker engole em seco, o rubor subindo do seu pescoço para o rosto. — Estudar e melhorar o que falta.
— E quando alguém precisar de mim? — Peter insiste, analisando minha expressão. — Quando tentarem assaltar duas meninas voltando da aula tarde da noite pela Rua Jamaica e a 163? — Eu respiro fundo, entendendo que ele não insiste simplesmente para me contrariar, mas pois é a verdade. — O-ou quando tentarem sequestrar um garotinho na St. Albans igual fizeram na semana retrasada e eu tive que perseguir o carro enquanto ligava pra polícia? — Ele estende a mão para onde eu imagino serem as ruas que menciona. — Fora as áreas “em expansão” lotadas de construções que nunca vão ser finalizadas porque servem de escritório para traficantes?
— Eu não estou dizendo para abandonar tudo, Peter! O seu uniforme vai estar aí quando precisar, mas… — Passo os dedos pelo meu cabelo. É isso que Tony e Pepper sentem? Esse medo? — Chega de patrulhas, treinamentos no Complexo ou aulas com o Tony. Pelo menos por um tempinho enquanto a May se recupera, pode ser? — Não sou contrária a implorar e assim o faço, mãos apoiadas no seu peito e sentindo o ritmo de seu coração. Peter respira fundo, como se eu lhe pedisse por algo impossível. Sei que não estou em posição de lhe pedir que se cuide e atue com responsabilidade por si mesmo, mas eu faço pois não irei suportar o ver no mesmo estado que estava na Arena após mais um pesadelo ou como estava no hospital após o acidente. Não há frieza em mim para vê-lo sofrer e não dar o meu melhor para contornar a situação. Peter está por um fio e eu sinto isso em meu coração. — E eu entendo que se importe e que esse mundo precisa do Homem-Aranha, eu juro que entendo. Mas vou ser egoísta o suficiente e dizer que preciso do Peter.
A confissão o faz me olhar novamente, não focar-se em minhas mãos no seu peito. A face de Peter demonstra toda a incerteza e apreensão que parece o guiar há algum tempo.
— E entre mim e o mundo, espero que me escolha. — Sopro a última parte só para ele.
Ele me pega de surpresa ao me beijar, suas palmas mornas segurando meu rosto junto ao seu. Inclino-me em sua direção, segurando-me na camisa que veste e incorporando no selar todos os sentimentos que guardo em meu peito. Meu medo, carinho e inquietação. Ainda assim, eu sinto sua hesitação, sinto a indecisão que Peter deixa escapar por entre os últimos seláres pressionados em minha boca e o respirar quente que também sopra em meus lábios.
— Você me ganhou com a última parte — Nossos lábios ainda estão tão próximas que eu sinto o seu sorriso fraco encostar-se no meu que não é nada além de aliviado. Peter encosta a testa na minha, olhos fechados quando ouso lhe olhar. Ele balança a cabeça devagar, o nariz roçando no meu ao fazê-lo. — Nunca escolheria o mundo no seu lugar, .


*


Eu acordo com o brilho do celular de Peter em meus olhos.
Preciso de alguns segundos para me situar, um pouco desacostumada com a maciez do seu travesseiro onde meu rosto está enterrado. Sou cuidadosa para não fazer muito barulho ao virar a cabeça na direção do som, onde finalmente encontro Peter. Ele está de costas para mim, apoiado na cama e sentado no chão com sua cabeça encostada no colchão e o celular com a tela trincada erguido ao ler um artigo. Apesar da minha visão ainda um pouco embaçada, posso ler o mesmo que ele.

“Estudo de caso: intoxicação por chumbo devido projétil de arma de fogo em contato com o líquido cefalorraquidiano.
RELATO DE CASO: Paciente masculino, 42 anos, foi baleado durante assalto e teve projéteis que se alojaram no abdômen, perna direita e coluna lombo-sacra. Seis anos depois, desenvolveu intensa lombociatalgia e foi submetido a laminectomia. Nove anos após o acidente, foi submetido a artrodese de L5-S1, quando foi tentada a retirada do projétil, sem sucesso, desenvolvendo no pós-operatório intensa dor abdominal. Foi então feito diagnóstico de intoxicação por chumbo, que foi tratada com gluconato de cálcio, com boa resposta.”


— Oi, Pete. — Cumprimento com o rosto de voz que ainda tenho, minha garganta seca.
Ao ouvir o seu apelido, Peter vira-se para mim e abaixa seu celular, um sorriso satisfeito em seus lábios ao me ver apesar de meu rosto muito possivelmente amassado por seu travesseiro e a umidade que sinto no canto dos lábios. Sempre durmo bem quando estou ao seu lado. A ponta de seu mindinho afasta o cabelo grudado em meu rosto pois, aparentemente, apesar do inverno potente, eu suei enquanto dormia. Peter trocou de roupa depois de se sujar um pouco ao preparar nossos lanches e agora veste uma camiseta verde escura, o que faz as suas sardas saltarem e os olhos se iluminarem.
— Oi, . — Sei, sem precisar de muito, que nunca irei me cansar de ouvir tal apelido deixar os seus lábios. A forma que Peter sorri ao pronunciá-lo e o carinho que demonstra é absurdo. Tento me manter acordada quando afaga meu cabelo, meus olhos pesando uma tonelada. Logo, Peter encosta a costa de sua mão na minha testa, as sobrancelhas um pouco curvadas. — Você tá quente, .
— Tô bem… — Suspiro ao esfregar meus pés por baixo do edredom que cheira a ele. Está tão quentinho aqui embaixo e minha cabeça está tão pesada que só quero dormir mais um pouco. — Só com sono. — Explico ao me acomodar melhor na cama de Peter apesar dele balançar a cabeça e se ajoelhar, a sua mão vindo para em meu pescoço para tentar medir minha temperatura novamente. Eu me encolho, a sua palma um pouco fria. — Eu estou bem.
Aham — É sarcástico e em outro momento eu até poderia reclamar, mas Peter suspira e apoia-se na cama para dar um beijo em minha testa, minha possíveis reclamações indo pelo ralo. — Vou falar com a Pepper para você ir na enfermaria de novo, tem que ter alguma coisa errada. — Digo o seu nome. Não quero que me entregue assim para minha mãe. — Você está fraca, ! — É uma afirmação séria transmitida por meio de um sussurro, seus olhos arregalados. — Está com febre, também. Isso não é normal e você sabe.
— Peter, eu estou tomando os remédios, não há mais nada que nós possamos fazer nesse meio tempo. — Lhe lembro e observo a sua mandíbula se apertar, a situação claramente não lhe agradando. Neste ponto, não consigo julgá-lo. — Eu confio na Dra. Cho e na competência dela. — Pouso minha mão em cima da sua, a afastando de meu pescoço e entrelaçando nossos dedos. — Ela tem cuidado de mim há anos e me ajudou a sobreviver coisas muito piores que um simples tiro. — Engulo em seco e me levanto, meus ossos rangendo e minha perna latejando. Peter apoia minha costa e senta-se no espaço que libero na cama, minha inegável fraqueza lhe agitando.
— Um simples tiro? — Peter esfrega o rosto, o pescoço e a nuca com a mão livre. O estresse que nunca parece despregar-se dele se materializa em sua linguagem corporal. — , não existe “simples tiro”, só existe você ter levado um tiro. Sabe quantas pessoas passam por essa vida sem nem imaginariem levar um tiro enquanto você se refere a isso como bobagem? — Controlo minhas expressões e impeço que meus pensamentos alcancem minha boca e façam um estrago maior se eu as dividir com ele. Peter teve uma vida segura e por isso eu sou grata.. — Olha, eu li uma…
— Balas envenenadas, eu vi. — Coço os olhos, me acomodando melhor na cama.
— Você não acha que tem uma possibilidade? — Balanço a cabeça devagar, incerta. Sim, é uma possibilidade plausível. Haviam projéteis semelhantes na HYDRA, sejam envenenadas ou com neuroestimulantes potentes. Apoio a mão sobre o edredom, considerando as possibilidades que soam absurdamente reais. Balas envenenadas não são novidade. — Acha… — Peter sussurra. O olho e ele assente, convencido. — Está fazendo a cara que faz quando não quer admitir que eu estou certo.
— Essa é a minha cara de “estou considerando”. — O corrijo, apoiando-me na parede.
— Não, é a sua cara de “droga-o-Peter-tá-certo” — Ele aponta com os olhos arregalados.
— Não disse que está certo, Peter. Ou considero que esteja. — Suspiro pesadamente, o ar em meus pulmões é pesado, parecendo que há um elefante sentado em meu peito. — Só estou… — Engulo em seco. Até mesmo conversar tem me cansado. — Eu só estou cansada…
Peter me observa com intensidade suficiente para destrinchar cada detalhe em mim. Ele respira fundo, parecendo pronto para enfrentar um tanque de guerra ao molhar os lábios.
— Eu acabei de, finalmente, conseguir me declarar para a garota mais incrível que eu já conheci. Tenho a sorte de estar ao lado da pessoa mais inteligente, generosa e amável que já pisou na terra e essa sua teimosia não vai arruinar isso pra mim, . — Peter aperta meus dedos e firma o enlaçar de nossas mãos para frisar o que diz. Minha cabeça pende para o lado e eu demonstro certo interesse no travesseiro dele, recusando-me a lhe olhar depois dos elogios que desperdiça. Mas Peter toca em meu queixo com cuidado, pressionando um pouco para o lado ao indicar que deseja que eu o olhe, mas sem forçar nada. — Eu não vou aceitar te perder por teimosia. — Quando eu decido olhá-lo, ele parece genuinamente surpreso de conseguir me convencer a fazê-lo. Ele está inclinado em uma posição que indica que estava tentando olhar meu rosto enquanto eu ignorava o seu. O seu esforço é de apertar meu coração, a culpa que já tinha se instalado em meu peito por minhas falhas prévias só se espalha por mim. — Por isso, vai contar a verdade pro Sr. Stark e a Srta. Potts. Vai na enfermaria de novo e vai se cuidar. — Peter está travando a batalha que eu não ouso participar por medo. Ele é um soldado que se dedica à guerra enquanto os verdadeiros responsáveis por ela observam confortáveis o derramamento de sangue. — Se não quer fazer isso por você, eu não posso mudar a sua opinião torta. Mas posso pedir que faça por mim, pela May, pelo Tony, Pepper, Happy, MJ, Ned… — Ele insiste novamente, apertando minha mão. — Todo mundo que se importa com você.
— Quando meus pais souberem a verdade, talvez isso tudo acabe. — É fútil e tenho uma imensa vergonha de esta ser a minha justificativa para causar tanta frustração nele, mas é com Peter que estou falando e sei que posso lhe confessar a verdade. Ele não se irrita ao me ouvir, não revira os olhos ou faz uma careta. Simplesmente respira devagar, parecendo compreender os motivos do meu medo. — Quarta-feira à tarde no Queens, Midtown como um todo, a possibilidade de sair de casa sem seguranças… Tudo vai acabar! — Minha exclamação é contida pois minha voz não se eleva, é apenas um sussurro cansado e temeroso. — Eu vou voltar a ficar presa no Complexo, igual fiquei anos presa na Torre Stark e da mesma maneira que fiquei confinada a vida inteira! — Eu me agarro na mão de Peter, frisando minhas justificativas da mesma maneira que ele fez com as suas. Mordo meu lábio quando ele toca em meu cabelo, acariciando minha nuca e com a tensão também o dominando ao me olhar. Não só tensão, mas pesar. O que digo lhe entristece. Talvez tanto quanto me entristece. — Eu não quero isso, Peter.
— A gente vai dar um jeito, ! — Sua garantia e o sorriso fraco que sustenta não são convincentes, não tanto como imagino que ele seria para qualquer outra pessoa. Existem situações onde não há como “dar um jeito”, principalmente quando se trata de Tony, que fez promessas de me manter segura custe o que custar. A prisão domiciliar de Clint Barton e a consequente aversão de Tony em me deixar visitá-lo é uma prova de que meus sentimentos e desejos não são tão significativos na balança dele. Meu pai me manterá segura e viva ainda que isto custe minha felicidade. — Não é como se a gente escutasse o Tony, mas se for pra fazer alguma bobagem e fugir pra ir no Delmar comprar refrigerante, no mínimo vamos fazer isso com você saudável, tá? — Tento sorrir um pouco como Peter, meu nariz pinicando pois me recuso a aceitar que essa possa ser a única alternativa, mesmo que me falte a capacidade e as forças para enxergar outra saída. A dor tem me consumido aos poucos e rouba o escasso vigor que eu ainda tinha. — Eu só quero o que é melhor para você e não me convenço que talvez você não queira isso.
Não consigo lhe responder por um número extenso de justificativas, mas sinto o soco no estômago que suas palavras me dão. Minhas forças estão lentamente diminuindo a cada instante e Peter está certo. Muitas pessoas se preocupam comigo, mais pessoas do que um dia imaginei que se importariam com minha existência.
— Nós vamos dar um jeito no que for. — Ele me garante com um beijo em meu rosto.
Pepper chega quase dez minutos depois enquanto estou tomando o resto dos remédios e Peter está segurando um copo de água para mim na cozinha. Ela entra no apartamento com um breve cumprimento a Peter antes de lhe beijar na bochecha e seus olhos pousarem em mim onde me apoio na mesa da cozinha. A sua CEO Attire havia se tornado rara nos últimos tempos, porém, ela ressurge com menos intensidade agora. Ela está vestida em um blazer preto, camisa da Stark Industries que provavelmente é de Tony, jeans e calça scarpins brancos com uma postura que me causa certa inveja. Pepper é linda, mas agora parece ainda mais jovem com seu novo tom de cabelo e as roupas casuais.
— Como você está, meu anjo? — Ela aproxima-se sorridente de mim e eu instintivamente encurto a pequena distância entre nós, a abraçando da maneira que costumo fazer ao chegar em casa após a aula. Pepper está usando um dos seus perfumes mais refrescantes e só lhe sentir tão perto me ajuda a conseguir ignorar um pouco a dor. — Tudo bem na escola? — Eu assinto quando ela se afasta e volto a tomar a água que Peter havia me entregue, recebendo um olhar reprovador dele por mentir. No carro eu posso lhe contar a verdade sobre os eventos de hoje, não precisando me desgastar agora. — Comeram os sanduíches? — A pergunta agora é dirigida a Peter, que está guardando os remédios no bolso de minha mochila enquanto Pepper desliza a mão com carinho por meu cabelo, o assentando após meu cochilo na cama de Peter.
Eu ergo a sobrancelha para Peter, confusa sobre o que ela poderia estar falando.
— Comemos sim, Srta. Potts — Ele responde com um sorriso pequeno ao fechar a minha mochila, sentando-se na costa do sofá e enfiando as mãos nos bolsos dos jeans. — Estavam ótimos, obrigada.
— Que bom! Precisam comer coisas mais saudáveis, crianças. Principalmente você, dona ! — Minha mãe afaga a lateral de meu corpo, indicando que devo me cuidar. Evito olhar para ela ou para Peter enquanto engulo a última pílula. — Peter, como está a May? Está acordada? — Pepper questiona, seu tom um pouco mais baixinho ao lembrar-se que havia alguém enfermo perto. — Posso ver ela, querido?
Quando Pepper se afasta e segue Peter até o fim do corredor para cumprimentar May, eu seguro-me na borda da mesa de madeira, minha visão um pouco turva acima de meu olho esquerdo e indicando-me que terei mais outra enxaqueca para lidar hoje. Elas vêm se tornando costumeiras após o acidente, motivo que até me fez dormir ontem durante a tarde. Esfrego a nuca e me sento, concentrando-me na forma que sinto o agradável surpreender de May daqui onde estou. Elas passam alguns minutos no quarto de May, conversando sobre sua recuperação e os sapatos de Pepper, assunto que se desvia só o suficiente para Peter voltar para mim na sala. Ele me oferece um terceiro copo de água e eu não lhe informo que terei uma viagem de uma hora e meia para o Complexo, apenas bebo o que me serve com uma leve careta que ele retribui de imediato ao se agachar na minha altura novamente igual fez hoje pela manhã, afagando minha panturrilha da mesma maneira.
— Você vai me visitar se o Tony me mandar pra um colégio interno na Suíça?
Peter encosta sua testa nos meus joelhos, mesmo que eu tenha lhe visto sorrir antes.
— Claro que eu vou. — Ele confirma com bom-humor, apoiando o queixo no meu joelho bom para poder me olhar e permitir que eu também o admire de onde estou lhe vendo, provando-me que não somente se refere à Suíça ou colégio interno algum. Peter me assegura de que, não importa o que venha a acontecer após esta noite, nós ainda daremos um jeito. — E você vai mandar chocolate pra mim, certo?
— Certo. — Apesar da dor, eu me inclino o máximo que posso para beijar a testa dele.


*


Tem uma música aleatória do Backstreet Boys tocando no carro enquanto Pepper dirige, algo que pode muito bem ser originaria de uma de suas dezenas de playlists da faculdade e que são o pesadelo de Tony. No entanto, a batida é quase interessante, mesmo que eu não me imagine ouvindo algo assim fora desse carro ou considere sequer questionar o nome da música. Ela está batucando os dedos no volante na mesma batida da música, o que é cômico considerando que meros dois minutos atrás xingava um taxista que lhe cortou, agindo cada vez mais como Happy quando dirige. Enquanto estavamos paradas na fila do Starbucks para comprar café e chá, Pepper mandou uma mensagem pra Tony, o avisando que estariamos chegando no Complexo dentro de uma hora. Considero que talvez eu conseguisse me distrair mais com o trânsito caótico da cidade ou com a música se, de imediato, Tony não houvesse avisado que iria esperar por nós no seu laboratório, como se já estivesse a postos para ouvir o que tínhamos previamente combinado de conversarmos.
Levo o copo de papel para minha boca, engolindo algumas goladas do péssimo chá que já está pela metade, sendo o que bebi para engolir uma pílula de Pepper devido a enxaqueca que não vai passar tão cedo. Meu corpo está quente e eu posso sentir o suor escorrer por minha nuca, grudando o cabelo ali e incomodando a minha sensibilidade sensorial. O chá tem o mesmo gosto que os chás que Tony trouxe para mim da Inglaterra teriam após o sabor ser extraído três vezes. É terrível. Ou talvez a minha língua amarga é o problema. Estou tentando me acomodar melhor no banco quando sinto os olhares avaliativos de Pepper em minha direção, agora que adentramos a estrada e saímos do inferno que é a cidade de Nova Iorque em horário de pico. Eu engulo em seco, preparando-me mentalmente e fisicamente para a conversa que deseja ter comigo sobre Peter e Harry, ciente que ela não vai desviar muito do que já discuti com Harry, Peter e MJ.
— Sobre aquele assunto que íamos conversar… — O seu tom, apesar de descontraído em uma tentativa de soar distraída ao diminuir o volume da música, não consegue disfarçar a tensão que sinto ou o desconforto de Pepper por precisar tocar no assunto.
— Você primeiro. — Eu respiro fundo, molhando os lábios.
— Certo… — Dessa vez, a sua tentativa de soar amena não tem tanto êxito, o som sendo um mero sopro por baixo do som de sua respiração e amparado por um pequeno apertar de lábios. — Hum… — Encosto minha cabeça no encosto, fechando o duto do aquecedor que soprava o ar quente demais em meu rosto. Quando olho para Pepper, suas sobrancelhas estão apertadas ao ponto de uma ruguinha surgir entre elas, assim como costuma acontecer comigo quando me concentro demais com algo. E apesar de estar apreensiva e o sentimento de culpa deixar meu coração pequenininho, gosto de fingir que a ruguinha de concentração é a mesma que a minha. — , eu sei que você e o Peter estão juntos agora — Meu rosto se esquenta e eu me dou um tapinha figurativo no ombro, pois o ar quente não seria tão agradável agora. Mas me foco em meu coração acelerado por ela saber a verdade agora. — E estou muito feliz por você, mas… — O mas também é mentalmente sibilado por mim, uma vez que seu agradar quanto a mim e Peter não podia ser o único motivo da conversa que deseja ter comigo. Pepper engole em seco e balança a cabeça, ambas as mãos subindo e descendo no volante, pois este assunto é igualmente desconfortável para nós duas. — Mas vocês estavam aos beijos na varanda menos de vinte minutos depois do Harry ter te deixado em casa de um encontro…
Por um momento, eu considero se haveria muito estrago em minha perna se eu decidisse me lançar para fora do carro em movimento. Pondero também se, talvez, um carro em alta velocidade acabaria passando por cima de mim e se isso seria muito pior do que lhe ouvir confessar ter nos visto.
— Não acha que foi algo meio… — Pepper respira fundo na busca de palavras corretas e eu admiro o seu esforço desmedido em não tentar me magoar, apesar de acreditar que estamos com a mesma palavra em mente, o mais ridículo e retrógrado que seja pensar dessa forma.
— Vadia? — Evito lhe olhar ao grunhir o termo.
— Não. — Minha mãe é firme ao descartar minha escolha de palavra. A ruga na sua testa retorna com toda a potência e seus lábios se apertam, de maneira que Pepper parece pronta para me colocar de castigo simplesmente por escolher me descrever daquela forma. — Não essa palavra, . — Quando me olha rapidamente, sua expressão se suaviza um pouco e ela balança a cabeça, voltando a se atentar para a estrada adiante. Eu engulo em seco, decidida a me entreter com as árvores e os carros que vejo pela janela blindada. — Se um homem fizesse isso, ninguém o chamaria de vadia. Não é motivo para você se chamar de uma.
Engulo em seco, ainda evitando lhe olhar apesar de Pepper estar correta de certa forma. Talvez seja o fardo que qualquer pessoa sem um cromossomo Y precisa carregar pelo resto da vida: se invalidar por algo que um homem não veria como um problema.
— O que eu quero saber é se você não acha que foi irresponsável. Se não acha que agiu mal com os dois meninos. — Eu assinto devagar, em conformidade com a dor em minha cabeça e com o sentimento de culpa que somente se propaga dentro de mim como um câncer agressivo. Pepper me olha de novo, bem rápido, mas eu repito o gesto. Quero que entenda que reconheço o erro. — Puxa, minha filha… — Ela suspira, ainda incerta de como discutir o assunto enquanto me encolho no banco do passageiro, o cinto de segurança arranhando meu pescoço. — O Peter passou o dia inteiro meio pra baixo com esse seu encontro, você estava lá com o Harry em clima de romance segundo o Happy, e quando chega em casa você beija ele? — Pepper não está irritada, apenas demonstra a confusão crítica e justa que sei que MJ teria demonstrado se soubesse toda verdade. — Vocês dois ao menos conversaram antes? — Seus fios loiros se balançam quando vira-se para me olhar e eu concordo com a cabeça, evitando seus olhos azuis que poderiam invadir minha alma se ela tentar o suficiente. — E quanto ao Harry? Você tem noção do quão emocionalmente envolvido ele estava? Se ele não esperava ao menos uma ligação no fim de semana, ou algo a mais hoje? — Ela se perde em um espiral de perguntas que não somente me afetam, como também preocupam. Eu deveria ter feito algo antes, entendo, mas não havia forma de conversar com Harry sobre algo assim por telefone. Seria mais cruel do que fui hoje. — V-você simplesmente nem pensou nele, pensou? Precisava pensar na outra pessoa que se envolveu nessa bagunça que aparentemente é o aspecto romântico da sua vida, !
— Nos conversamos hoje. — Eu respiro fundo, o ar quente do carro me incomodando mais do que deveria, assim como a conversa e como Pepper deve pensar que sou irresponsável e cruel se nem mesmo considerou que eu poderia já ter conversado com Harry a este ponto. — Ele foi sincero e pensa como você. — Lhe conforto com a verdade. — Todo mundo pensa como você, mãe. — Michele é em quem eu penso, então em Peter e sua vulnerabilidade naquela noite na varanda. Apesar de ter a força necessária para destruir um tanque de guerra, Peter parecia delicado como um dente-de-leão. — Eu já estou me sentindo culpada, mãe. — Minha voz soa mais trêmula do que deveria, tendo em vista que sou a culpada por toda essa confusão. Pepper desacelera um pouco o carro e eu engulo em seco para clarear minha voz. — Ele, a MJ e o próprio Peter concordam com você. Eu tenho noção de que pisei na bola e machuquei pessoas que não mereciam, incluindo a decepção que causei em você com as minhas ações. — Ouço quando ela toma fôlego para falar e me impedir de prosseguir, mas decido que é melhor terminar o que já comecei. — Eu estou ciente de que sou emocionalmente imatura. Entendi isso. Mas ninguém parece entender que eu tenho motivos para ser assim.
A sua mão gentil pousa em minha perna machucada sem saber ser ela a ferida.
— Entendo que pisei muito na bola de forma mais do que é o aceitável para alguém na minha idade — Eu engulo a dor do seu toque que não foi nem próximo de meu ferimento e prossigo apesar de meus dentes estarem apertados pelas faíscas afiadas de dor que percorrem minha perna e se erguem para meu quadril. — Eu sei disso — Sopro o ar que segurava e esfrego a testa com a mão que estava apoiada na porta do carro. A dor irracional e o movimentar do automóvel é desconfortável ao ponto que preciso respirar fundo para ao menos conseguir raciocinar. — E eu não quero que passe a mão na minha cabeça pela conduta que pratiquei. Só quero que entendam que eu me sinto culpada por não saber o que fazia.
Só consigo pensar em Peter enquanto a dor se espalha. Quero ele aqui comigo.
— Eu entendo isso, ! — Pepper me assegura com a voz um pouco elevada, tentando cortar a nuvem densa de meus pensamentos. — Meu Deus, filha — Quando ela toca em meu rosto, eu permito inclinar-me em sua direção. Minha perna protestou, mas sentir seu toque é reconfortante. O carro diminui a velocidade até estarmos paradas no acostamento e Pepper ligar o pisca-pisca, se virando em minha direção com uma expressão apreensiva. Aparentemente este é o único sentimento que consigo causar naqueles que amo: apreensão. É mais dolorido que o tiro lhe ver dessa forma e me olhando desta maneira. Pepper acomoda-se melhor no banco, as mãos finas e delicadas cuidando de meu cabelo, o tirando de meu rosto e permitindo que ela me olhe. Eu temo pela maneira que suas irises se movem de meus olhos para minhas bochechas e boca, parecendo compreender o quão difícil meu dia foi. Mordo meu lábio inferior até sentir o gosto de sangue na boca quando ela beija minhas bochechas, tentando sorrir para mim apesar do quão frustrada a deixei. — , eu entendo que você não sabia como agir e por isso quis conversar com você, meu anjo. Queria te mostrar que havia uma forma de contornar isso e evitar essa bagunça. — Minha mãe afaga as olheiras que se fundiram com minha pele e não têm previsão de saída. — Sei que não tem culpa, mas ainda assim cometeu um erro. Não posso passar a mão na sua cabeça só porque não sabia.
— Eu sei. — Pepper estala a língua com a rispidez com que eu esfrego meus olhos, em uma tentativa de garantir que não estou chorando outra vez. Estou cansada de me pintar de vítima quando todos sabem que sou a culpada dos meus problemas. — Só que.... Eu não queria isso. Não quis machucar ninguém. — Seu massagear em meus ombros me causa dor, mesmo que Pepper não pese a mão. Meu corpo inteiro está doendo, assim como meu sentimentos que estão cada vez mais sensibilizados. — Sei que quando chegarmos em casa vou machucar e decepcionar você e o meu pai ainda mais... Essa noite vai ser um inferno e as próximas semanas provavelmente também vão ser, então… — É dificil assumir o que tenho temido desde esta manhã, principalmente quando Pepper se deixa falhar, seu toque perdendo contato com minha pele por um mero segundo. Tomo isso como uma forma de me ambientar com as próximas horas. Aperto a boca e respiro antes de conseguir lhe pedir as desculpas que lhe devo. — Desculpa. De antemão.
— Foi algo grande assim? — Ela questiona com cautela, bem baixinho.
— Pior. — Eu sopro de volta, forçando um sorriso amargurado. Não com ela. Comigo.
— O que for, nós vamos dar um jeito. — A garantia não abre espaço para protestos, nem o beijo que dá na raiz de meu cabelo permite um questionamento quanto a veracidade da promessa.


*


“A mais abominável contravenção oriunda de uma mentira é a sua falha, seja esta falha objetiva ou subjetiva.” Este foi um dos poucos aprendizados decentes que tive na HYDRA. A princípio, não fui treinada como Bucky Barnes foi treinado, portanto, não toquei arma alguma antes de meus sete anos. Mesmo após ser educada em manuseio de armas de fogo, ainda tive um ensino à parte, estritamente direcionada a aprender a ser invisível. O termo “espião” era punível dentro dos muros da organização. Era considerado americano, o que para os nazistas “que instruíram jovens mentes” era um veneno. Mas treinarmos para agirmos como entes invisíveis dentro dos muros americanos era um fortalecimento do vínculo, de maneira que, quantos mais fortes seus vínculos com o Estados Unidos e outras nações, mais forte a HYDRA estaria. Uma célula ainda ativa da HYDRA dentro da SHIELD até anos atrás era a prova disso que mais havia resistido ao tempo.
A falha objetiva de uma mentira é a sua não adequação com a realidade que foi “criada”. Dizer que houve uma chuva terrível que o impediu de chegar em algum lugar e o receptor da mentira descobrir que nem mesmo choveu em local algum; falha objetiva. Diferentemente, uma falha subjetiva ocorre quando o autor da mentira decide, por livre e espontânea vontade, revelar a mentira. Quando a mentira se desmonta dessa maneira, não há como não sentir-se estúpido. Não havia outra forma dela ser descoberta, então o único motivo para a verdade é fraqueza. Na HYDRA, qualquer ato de fraqueza era uma demonstração de inutilidade à organização e, consequentemente, qualquer demonstração de inutilidade era saneada com um tiro na cabeça. Um soldado, mesmo fraco, consumia recursos.
Lutei por toda a minha vida para não demonstrar resquício sequer da inutilidade que ia lado-a-lado com minha pouca idade, da vulnerabilidade infantil que precisei repelir cedo demais antes de acabar como uma mancha vermelha em uma parede. Talvez seja esse medo das consequências que me impediu, fisicamente, de olhar meus pais enquanto passei cinco longos minutos destrinchando as mentiras que contei para eles, recontando a verdade sem os cortes pontuais e desvios. Seguindo o que me foi ensinado ainda como uma menina, sustento o peso do que digo como um soldado que confessa a verdade para seu superior; olhos apáticos, corpo rígido e coluna reta, a posição de descanso indica a derrota interna que sinto.
Por um momento, um lapso de memória cruel e frio como uma serpente em minha nuca me faz aguardar pelo som de um gatilho. Isso, até o som da televisão no andar de cima emitir algo que soa como um “ding” de microondas ao apresentar um anúncio de comida, pois é isso o que tenho aqui em minha casa. Tenho comida, roupas, água, mãos gentis e palavras e gestos de amor. Muito mais do que jamais me permiti sonhar ter, e talvez mais do que jamais imaginei existir. Mas isso existe e aqui estou eu, jogando tudo por água abaixo por medo de ficar trancafiada em um lugar onde me permitem sentir tanto conforto e paz. Ao colocar tudo na balança, não é uma tarefa impossível compreender que talvez este seja o meu destino, afinal: ser uma prisioneira. Mas é realmente uma prisão quando sou a responsável por ela? Quando sou alimentada, aquecida e amada? Entre a HYDRA e a vida que possuo agora, não há método comparativo. Não é a mesma coisa e sou estúpida e fraca por imaginar haver.
Talvez eu realmente mereça o tiro pela fraqueza. Mas ele não vem e o silêncio se agrava.
Então há um suspiro. Soa tão fundo e carregado que ameaça vir acompanhado de algum outro som, alguma outra palavra ou um mero choramingar. Porém, não há outro som por mais alguns segundos até o primeiro ser o do arrastar da cadeira atrás da mesa digitalizadora. Aperto os dentes de maneira a impedir qualquer barulho de me escapar quando um suspirar trêmulo e delicado soa. Tony e Pepper, respectivamente. Com dentes apertados e olhos cravados no chão, eu os ouço enquanto se movimentam pelo laboratório. Ouço os saltos de Pepper quando ela desce de onde estava sentada sobre a mesa, o som de seu blazer escorregando e caindo no chão. Até mesmo reconheço com nitidez o som de Tony esfregando sua barba ao mover-se pelo laboratório segundos antes de um vento gelado me balançar, afinal, ele precisou abrir a janela em pleno inverno para poder respirar direito depois do que ouviu.
Longos minutos se passam onde o vento que move as folhas de um caderno aberto é só o que ouço. Minha perna está doendo após ficar tanto tempo de pé, uma forma de dor que não deve se comparar com a que os causo, então decido que posso a ignorar. Que não sou quem mais sofre neste cômodo e devo engolir o que sinto, engolir a dor em minha cabeça e falta de ar.
— Eu… — A voz fraca de Pepper some antes que consiga prosseguir e eu fecho os olhos. Eu a ouço soprar o ar que deve ter lhe impedido de continuar, ouço o som dos saltos no piso de metal. — Eu acho que confiamos demais em você, no seu julgamento. — Com minha cabeça ainda baixa, eu assinto, mesmo que Pepper puxe toda a culpa para ela e meu pai quando eu sou a responsável. Sou eu o vínculo fraco entre nós. — Merda, … — Pepper não xinga. Nunca a ouvir xingar, mas eu não emito som algum ou reajo. Não é direito meu, ainda que ouvi-la grunhir meu nome com exaustão dessa forma machuque meu coração. — Merda. — É mais duro dessa vez. — Nos esquecemos que é uma criança e que precisa ser tratada como uma, pois age como uma. Pensa como uma e é estúpida como uma criança. — Aperto ainda mais meus olhos, queixo quase tocando o peito de tão baixo que o meu rosto está, evitando que ela me olhe. As palavras de Pepper são duras, mas não são mentirosas. Ela está correta em tudo o que diz pois realmente fui estúpida e sou merecedora do tratamento que recebo dela. — Quer saber de uma coisa, ? Se você vai agir como uma criança, vai ser tratada como uma. Está de castigo. No mínimo até a próxima semana. É o que ganha por que é o que merece nesse momento. É o que as suas ações indicam que precisa. Porque é uma criança e pisou na bola.
Ela sustenta o silêncio e eu não a interrompo, afinal, há muito a ser ouvido no silêncio.
— Não quero que saia do Complexo pela próxima semana e por mais quantas o seu pai e eu acharmos ser justo. Também não terá acesso ao seu celular. — Inclino mais a cabeça, demonstrando que concordo com tudo o que dita. Não é necessário que eu concorde, eu percebo. Não tenho voz e é o ideal. Não fiz uso de minha voz da maneira correta que deveria, então ela não fará falta agora para eles. — E espero que tenha se divertido hoje com o Peter pois não vai mais para lugar algum além daqui enquanto o castigo durar. Colégio e casa, se você se comportar. E deveria estar muito, muito agradecida por ainda poder ir pra Midtown depois dessa porcaria de mentira e todo o inferno que sobreviveu. — Pepper respira fundo, as unhas batendo na mesa. — Você vai voltar a ir para as consultas com a Dra. Hall, também porque eu, a sua mãe, não aceito que esteja no topo das suas faculdades mentais agindo desse jeito! — O mencionar da terapeuta me arrepia. Não há dúvidas que essa loucura fará a Dra. Hall me prescrever remédios. Pílulas e mais pílulas. Para me acalmar, para os problemas e aqueles que criei. Ela me prescreverá remédios para que eu durma, os mesmos que pioram meus distúrbios de sono e farão os pesadelos durarem ainda mais, não me permitindo me forçar a acordar. — Você poderia ter morrido e nem mesmo se importou. Claramente tem algo errado na sua cabeça.
— Eu não vou tomar os… — A recusa morre em minha boca quando percebo o que fiz.
— Não é uma escolha sua, ! — A voz grave de Tony faz o laboratório vibrar e eu aperto os ombros e os lábios, detestando a maneira que me trata. — Você acha que manda em alguma coisa aqui, menina? Que sai por aí ditando o que faz ou deixa de fazer? — É com muito esforço que eu lhe olho, de onde está segurando a moldura das portas da varanda, como um touro aguardando as cercas se abaixarem e ele poder me atacar. Engulo em seco, afinal, suas palavras doem tanto como as de Pepper, mesmo sendo verdadeiras. — Você claramente perdeu a noção de quantos anos tem ou de quem é, não é possível...
— Por não querer me medicar? — Minha pergunta é um sopro trêmulo.
— Por não querer o que é melhor para você! — Tony ruge ao pisar de volta no laboratório, os olhos enormes e incrédulos e cheios de pena. — Por que você é suicida!
Pepper chama o nome dele, ou talvez chame pelo meu nome, mas estou em choque com a acusação, coração pesando uma tonelada em meu peito e o sangue bombeando de forma agressiva em meu ouvido, então não entendo o que deixa os lábios dela. Contudo, reconheço o olhar apavorado que estampa a face de Pepper, de maneira que o horror causado pelas palavras de seu noivo drena o sangue de seu rosto, a transformando em um fantasma entre nós dois. E não é preciso o conhecer bem para perceber que Tony, apesar da mágoa vibrando no seu rosto, também se repulsa com o que disse. Quando minha visão se turva, percebo o quão estremecida e incrédula tudo me deixou. A Dra. Hall sempre presumiu, entre nós duas, que havia um traço suicida em mim, porém nunca imaginei que ela iria revelar tal informação sensível a um terceiro.
— Por que é isso o que essa mentira é. É suicída. — Tony prossegue mesmo que abalado enquanto viro-me para longe dos seus olhares que atravessam minha pele como uma cama de pregos afiados. Meu corpo está em chamas, mãos suando, pois o calor é embaraçado e surge da vergonha profunda que recobre-me por inteiro. — Diga o que quiser e minta pra quem quiser, mas não ouse negar, não pra mim, que não ligou se morreria ou não com o tiro ou que havia alguém tentando matar você e você não podia ligar menos, . Não e diga que essa negligência não é suicida. — Minhas mãos estão tremendo quando as esfrego em minha bochechas, afastando as lágrimas que escaparam. — Não finja que você faz tudo o que faz por não achar que a sua vida não vale nada. Não minta assim pra mim. Minta para você, para o Peter, para os seus amigos. Mas não pra mim. — A menção de Peter é suficiente para que eu agarre a flor em meu pescoço, lábios tremendo, pois as lágrimas não param e Tony fala com uma propriedade agonizante. — Você tem noção do perigo que correu? Tem alguma ideia do quão destroçados nós, o Happy, Peter, Rhodes… Como ficaríamos se algo acontecesse com você debaixo dos nossos narizes? Se você se matasse em silêncio do nosso lado? Era isso o que estava fazendo. Morrendo calada.
Os únicos sons que ouço são meus fungares e a respiração trêmula de Pepper. Cubro os meus olhos com a palma das mãos, a dor em minha cabeça sendo ainda mais afiada agora e turvando meus pensamentos previamente já distorcidos.
— Quer saber? Desce pra enfermaria, . — Ele não oferece outra possibilidade e eu apenas tento respirar enquanto movo a cabeça. Meu corpo inteiro dói e eu preciso de forças até mesmo para respirar neste ponto. — Vou chamar a doutora Palmer, já que pelo visto você meteu a Cho nessa sua teia de mentiras e nem mesmo posso mais confiar nos meus funcionários por sua culpa. — É difícil registrar as palavras de Tony, mas eu me esforço enquanto tento me manter de pé. — Quero que ela verifique se não há mais nenhum destroço nas sua perna. E verifique se realmente está tomando os remédios certos.
— Eu não quero mais a Cho nas minhas instalações. — Pepper adiciona e enquanto dou um passo para trás, segurando-me na mesa digitalizadora ao meu lado. — Ela já fez o suficiente. E suas credenciais também vão ser suspendidas, . Quando quiser entrar ou sair, fazer o que for, nós vamos saber. — Apesar de engolir em seco, eu somente consigo suspirar o nome da Dra. Cho. — A Cho não pisa mais no Complexo ou na Torre Stark. Não quando sabia que a vida da minha filha esteve e ainda está em risco e não teve culhões pra falar a verdade. — Potts coloca a mão no peito ao respirar fundo, seus olhos vermelhos ao me olhar por trás da fina camada de lágrimas que eu também sinto sobre os meus. — Você claramente não tem amor à sua vida, mas eu tenho — Minha visão está escurecendo quando ela vira o rosto para Tony. — Nos temos.
— Só... Vai pra enfermaria, — Tony manda, sem me olhar. — A Doutora Palmer vai te encontrar lá.
Minha mão dói de tanta força que faço para me apoiar na mesa e as rodinhas rangem.
— Mãe, você está brava comigo? — Questiono com toda coragem que tenho. Pepper está com o celular na mão enquanto Tony se apoia na mesa diante dele, rosto abaixado para não me olhar. Pepper vira de costas para mim, levando o celular ao ouvido.
— Não, eu estou desapontada. — É a resposta dura que me dá, ainda de costas. — E, acredite, eu tenho uma mãe e sei que ouvir isso é bem pior que ouvir um sermão, mas infelizmente é o único jeito de descrever como estou me sentindo em relação a você, .
A mão de Tony se ergue para tocar em Pepper e confortá-la, porém, antes de a alcançar, ele olha para mim de onde está. Seu rosto que estava consumido por frustração e mágoa perde a cor e a sua expressão cai ao me olhar, a palma erguida abaixando-se devagar. Eu sigo seus olhos e observo o chão ao meu redor, este onde meu sangue se alastra lentamente entre os vincos do metal onde piso, um vermelho tão rubro que mesmo assim, com minha visão escurecida e a dor intensa que sinto, não deixa de ser vivo. Quando tudo escurece de vez e a mesa digitalizadora escorrega de minha mão, a última coisa que sinto é o impacto com chão.


Homecoming XXIII (Bônus) — We both made promises 2.0

O primeiro pesadelo é o comum, o ponto-chave e que apenas surge para dar partida aos seguintes, esses que aumentam em quantidade e intensidade ao progredirem, a névoa me sufocando até que eu não mais consiga fisicamente resistir. Consigo ver, pelo lado mais acordado em mim, esse lado que tem resistido para se manter consciente, que isso é uma coisa boa. Como um alerta de furacão tentando me conscientizar que o choque irá vir e que não irei estar preparado, independente dos avisos que os precederam. Então, no momento em que a paralisia se finca, sei que não adianta resistir e que é o fim de uma noite que, outrora, poderia ser boa. As alucinações tendem a mudar com facilidade conforme meu nível de pavor aumenta, em sua maior magnitude enquanto tento — como um idiota — me mover.
É como estar soterrado de novo e, neste ponto, estou sem ar e nem mesmo consigo forçar os olhos abertos. Estou incapacitado de me mover, de mexer as pálpebras, de levantar a cabeça. O som do meu coração é um alerta como um despertador que não consigo desativar de forma alguma, os batimentos semelhantes aos tambores das paradas militares de 4 de Julho quando eu era menor. O pesadelo me lança de volta ao armazém e posso sentir o mesmo peso sobre mim que não esqueço desde aquela noite; acordando após bater a cabeça assim que o quarto pilar caiu e derrubou uma parede sobre mim. Também ouço a água dos canos pingando e formando poças, assim como noto o som da minha respiração entrecortada e o ar quente que a máscara espalha em meu rosto, piorando o suor. Alguns dedos se movem com muito esforço, mas é o mesmo movimento inútil de sempre e eu quero gritar, o estado de intermeio do meu cérebro, pendendo entre consciente e inconsciente, minhas cordas vocais dormentes assim como o resto do meu corpo.
Quando o pânico se instala e as vigas começam a rasgar o uniforme toda vez que respiro, eu tento manter a calma; mas já estou tremendo e, quando minha consciência surge no fim do túnel, me mover e me chutar até acordar de vez não é uma opção. Há uma pressão terrível sobre mim que apenas percebo ao abrir os olhos, o peso que me impede de respirar não tendo se dissipado mesmo quando consigo me ancorar na realidade. Vejo a mobília sofisticada no quarto que é muito diferente do meu, com a luz do computador novo piscando e a luz do despertador (já são quase duas e vinte e me lembro de ser uma e cinquenta antes disso começar), mas além disso não consigo ver mais nada devido a posição de minha cabeça, essa que também não consigo mover, exceto meus olhos embaçados. Ao registrar a fresta da luz que atravessa o vão entre o piso e a porta, tudo se amplifica ao ponto que jamais havia imaginado.
A pressão interna no meu peito aumenta conforme me esforço para respirar e faço força para me manter quieto e calmo pois não me atrevo a despertá-la nesse estado deplorável. Logo, uma segunda força vem ainda mais potente e me afunda no colchão, prendendo contra ao móvel igual ao teto do armazém fez há alguns meses ao me esmagar. Mas, desta vez, não é suor ou umidade que me impede de segurar-me em algo para poder erguer este peso, apenas a inutilidade do meu corpo perante os pesadelos.
Não posso mais discernir entre sonho ou realidade enquanto me afundo mais ao ponto de atravessar o colchão e ser lançado na beira de um fosso. Antes que possa cair, mãos me puxam para trás e registro o choque ao tomar nota que estou vestindo o meu uniforme e sei exatamente onde estou.
O Obelisco de Washington e o elevador em chamas.
É nesse momento que ouço o seu grito, tão brutal e apavorado que meu sangue congela nas veias. O timbre de sua voz é familiar, mas agora soa tão apavorado que toda minha linha de raciocínio escapa de mim e tudo o que tentei controlar perde importância. Apenas sei que preciso alcançá-la. Protegê-la de mim e do que fiz. São policiais que vem até mim outra vez e eu percebo que foram esses que me impediram de cair no fosso do elevador, mas eu os atravesso como uma bala, sem importar-me em lançá-los com força na direção da multidão, ou empurrar seus braços com força suficiente para quebrá-los — destruindo qualquer coisa que me impeça de alcançá-la. Gritos dolorosos das vítimas que fiz se mesclam ao seu, contudo, permaneço lutando contra meus joelhos que viram água, antes que eles me levem ao chão na beira do fosso e enfim me lanço no espiral em chamas.
Não conseguir vê-la é mais cruel do que o salto suicida; pior que o fogo queimando meu uniforme e cozinhando minha pele. É mais agonizante que meus engasgos sem ar. Porém, não é pior que seus gritos atormentados pelo fogo. Quando começo a perder a consciência e o fogo não me permite vê-la, é a minha vez de gritar, implorar e chamar seu nome da mesma forma que faz com o meu. É o meu nome que ela decide chamar enquanto a fumaça azeda está a intoxicando e o fogo está a consumindo na caixa de metal que conduz calor como um forno ao ponto de estar derretendo sua pele, cozinhando os órgãos e a matando de forma tão hedionda e desumana. É um coro de pânico bem orquestrado, os gritos excruciantes dela são tudo o que posso ouvir durante a queda infinita.
— Imploro com cada gota de esperança que consigo, tentando respirar o ar fumegante e seco sem umidade alguma. Talvez eu consiga alcançá-la e o fogo não a consuma por completo. Talvez ela ainda consiga aguentar até a chegada dos paramédicos sem entrar em estado de choque. Talvez eu não tenha a matado. ! — O grito é mais alto agora e ela o responde em berros profundos fazendo tremer as paredes do fosso. A velha dor em meu coração retorna, e imagino fissuras espalhando-se a partir dele por mim. Meu torso, braços e pernas, meu rosto, marcando-o com as rachaduras e eu quero que se cravem e me matem. está morrendo por minha culpa; está gritando pela dor terrível que as chamas causam ao rachar sua pele delicada, queimar seus olhos e a destruir por minha culpa.
O som que emito é áspero, como um náufrago engolido por uma onda sendo finalmente cuspido de volta e tentando respirar antes da próxima. É como reagi após o soco no peito vindo do Capitão Rogers no aeroporto quando nos conhecemos. Mas agora, o golpe foi bem-vindo e minha visão se turva, ondulando para alertar que são lágrimas que estão tomando forma. Encaro o despertador por mais dois minutos, segurando minha respiração pouco a pouco a fim de tomar as rédeas dela, tentando assimilar que estou desperto de vez. Não tenho nenhuma coordenação motora, nenhuma prova de que ainda tenho dedos e os movimentos não me voltam de imediato, um tremor aqui e outro ali enquanto tento, com tudo o que posso, flexionar os músculos. Ainda estou tremendo ao conseguir me sentar e perceber que, mesmo com todo o silêncio que tentei fazer por dois minutos de relógio, não consigo a ouvir.
Não ouço o respirar pesado de e o pavor volta a me consumir.
Os lençóis macios que estavam na cama estão grudados em mim da mesma forma que os meus ficam em casa, o suor os pregando a mim e eu os empurro quando minhas pernas voltam a funcionar, não que a dormência passe de vez e apenas avanço na direção da porta, arrastando os cobertores comigo até arrancá-los de minha costa e imergir no corredor. Sua porta obviamente está fechada e preciso só de um passo até ela antes de ouvi-la respirar. Pressiono minha cabeça contra a porta gigante ao ouvi-la. Então ouço também o coração de batendo camuflado pela camada de sons em seu quarto e o material que nos divide. Há o som da ventilação, baixa o suficiente para ela não notar, o tique-taque de um relógio e o ruído que deve ser seu movimento na cama.
Poderia reconhecer o seu coração de onde estivesse, sempre o mais calmo possível, como o de May durante suas meditações matinais. Prendo a respiração, a testa ainda apoiada na porta e tentando me convencer que, ao contrário de meu pesadelo, eu não a deixei morrer no obelisco. Que a carreguei para fora e me certifiquei que estava viva antes de ir embora. Que troquei de roupa em um banheiro enquanto bombeiros esvaziavam o monumento e a encontrei logo depois. Sei que a carreguei para fora do ônibus e para o carro de Happy quando chegamos em casa e sei que tivemos meses de calmaria após isso. Mas ainda assim, a inquietude é demais e estou sentindo o fomentar de uma das crises terríveis que nem mesmo tia May consegue me ajudar a controlar quando atingem seu ápice.
? — Chamo com a voz embargada e rouca como nunca, mas reconheço como o esforço a deixou assim. Esfrego o rosto úmido contra o meu antebraço nu, fungando ao perceber que já estou neste estágio e meus dedos batem devagar na porta para não a assustar. Prendo a respiração e engulo o choro, aguardando uma resposta que não vem. — ? — Me repito, arfando e fechando os olhos. Ela ainda está respirando devagar e calma como sempre, sem se perder nos seus sonhos horrendos e eu considero isso uma boa notícia. está a salvo. Está respirando e seu coração continua batendo mesmo depois dos meus erros e depois de quase matá-la.
O raciocínio é destrutivo, mas necessário.
Está cada vez mais difícil respirar e há um impulso, no fundo de minha mente, de garantir que o pesadelo não mais me afeta e que, de imediato, bater com a minha cabeça na porta vai me provar que estou no controle. Somente até o sangue sair e me garantir que foi tudo um sonho. Os impulsos se tornaram mais recorrentes e mais intensos desde o primeiro pesadelo com o que aconteceu na noite do Baile de Boas-Vindas no armazém quando Adrian Toomes tentou me matar pela primeira vez. Cortar a ponta do dedo ao montar um sanduíche ou simplesmente apertar meu braço com toda a força possível se tornaram métodos comuns para provar a minha consciência. Me afasto devagar, ainda respirando de forma irregular e decidindo que não acordarei com isso, ciente que as suas poucas noites de sono confortável não merecem interrupção mesmo que eu sinta vontade de esmagar meu crânio pois ainda posso ouvir os seus gritos excruciantes ecoarem em minha cabeça.
Quando consigo me afastar o suficiente do seu quarto, mantendo a segurança e a paz de como a prioridade que tenho sustentado em meu coração há semanas, começo a descer as escadas. E é somente na Arena, na mesma em que eu a vi atirar e lutar com uma habilidade previamente inimaginada, que consigo encontrar uma distração pendurada no teto — um saco de areia. Arranco a camisa pegajosa com meu suor e a jogo no chão enquanto busco luvas de boxe nos armários em uma parede distante, porém minhas mãos pinicam no centro da palma e a ponta de meus dedões estão formigando, logo jogo a busca pelos ares. Corro as mãos por meu rosto, lubrificadas agora com meu suor que se acumula acima de meu lábio superior e escorre pelo meu pescoço e atrás de meus joelhos dentro da calça. É ridículo e May morreria me vendo tão suado, mas esta é minha nova realidade — sujo, banhado de suor e sangue.
O primeiro soco faz o saco de pancada se agitar nas correntes, e é como se todo o Complexo dos Vingadores vibrasse com o choque. É comum o som ricochetear, é um fenômeno físico que qualquer um pode ouvir, mas é mais brutal em meus ouvidos. Ouço meus ossos vibrarem com o impacto e o som de minha pele no couro, seguido do som do golpe. A dor é boa o suficiente para meus olhos lacrimejarem, afastando o medo prévio que meu pesadelo — dentre todos os outros que apenas me mostravam a morte de ou tia May das maneiras mais brutais possíveis — era nada além de um pesadelo. Me perco nos golpes consecutivos que rasgam meus punhos, a dor lancinante sendo recompensadora e eu me concentro nela, não no fato de ver o rosto dos traficantes que auxiliavam Adrian Toomes na venda das armas alienígenas. Toomes também se une a eles em minha imaginação e os socos de tornam mais pesados ao ponto que uso uma perna para me apoiar melhor e forçar ainda mais todo o peso de meu corpo neles. Logo, a face do verdadeiro responsável pelo acidente que quase a matou surge na superfície do saco de areia e a dor em meus punhos é lancinante e crua.
Meus ouvidos estão zumbindo enquanto eu crio mais hematomas no meu rosto imaginário, exatamente o que mereço por ter lhe ferido daquela forma. As lágrimas prévias começam a escorrer e me sinto ainda mais furioso que antes, pesando os socos mesmo que minhas mãos escorreguem devido ao suor e o sangue que molham o couro vermelho.
Me perco nos ecos dos socos e da minha respiração que parece tão alta ao ponto de entupir meus ouvidos. Me perco completamente na dor e no sangue que nunca tinham me atraído e agora parecem reconfortantes quando necessário esquecer de toda dor que causei. Sei que estou ficando sem ar pelo esforço e que há detritos do teto caindo em mim pois o saco de areia está balançando com cada golpe e em algum momento as correntes irão falhar, mas não consigo conter a raiva que sinto, o medo e a dor. Não consigo mais escutar o barulho do sangue pulsando em meu ouvido. Não consigo escutar nada no momento e a realização me faz pesar ainda mais os socos, querendo expulsar qualquer som e pensamento de minha cabeça, a prévia vontade de sentir algo se tornando uma busca por infinita dormência. O último golpe, este que consolida meu desejo de completo torpor, lança o saco de pancadas na parede diante de mim. A força faz o saco se partir em dois com um estrondo ao atingir a parede que racha pelo impacto, os tijolos caindo em pedaços.
Então um segundo som, humano e fragilizado, acompanha a quase destruição da parede. Mínimo, porém não apavorado ou preocupado, apenas surpreso. Quando respiro fundo para tentar regular minha respiração, o perfume fresco que tem me acompanhado há mais de seis meses invade o espaço. Eu consigo sentir sua presença antes de vê-la, com o seu aroma tão forte quanto delicado: flor de laranjeira e âmbar, assim como May havia descrito uma vez ao elogiar o perfume de . O cheiro é reconfortante como o ar quente que entra pela porta aberta, mas não posso olhá-la, não com aquele estúpido saco de areia rasgado, a parede destruída e meus dedos ensanguentados. Me inclino pra frente, tentando evitar que possa ver meu rosto e as lágrimas. Apoio a mão sobre o elástico da calça de pijama, fingindo que a dor não é tão forte como realmente é e tento secar minhas bochechas com a outra mão.
— Desculpa — Forço a voz já rouca pelo nó em minha garganta. — Desculpa, eu...
— Eu conserto! — garante-me com tanta certeza de sua capacidade de solucionar o problema que não ouso me mover ou sequer respirar. É claro que ela será capaz de resolver qualquer coisa, mas um pedaço de mim se questiona se pode me consertar. Se pode apagar meus pesadelos e me fazer esquecer do erro que cometi. Um momento de silêncio me faz perceber que jamais permitirei que ela o faça: preciso me lembrar do perigo que correu por minha culpa para jamais repetir isso outra vez. Ao avançar decidida pela Arena, sinto que ela opta por manter distância como minha mente lhe implorava que não fizesse; quero tocá-la para sentir que está viva e bem. – Não é o primeiro super-humano que racha uma parede aqui, Pete.
O apelido queima, pois além de me ter sido presenteado na primeira vez que nos vimos após o acidente, demonstra acima de tudo como foi capaz de me perdoar com o peito aberto. ainda caminha um pouco letárgica, provavelmente tendo quase caído da cama para estar aqui, o que é mais evidenciado por seu cabelo com volume maior que o normal. A blusa escura também está amarrotada e prevejo May dizendo que estava guardada dentro de uma garrafa, mas não quero que saiba disso, então não lhe contarei sobre este dia. Seus braços estão um pouco marcados pelos lençóis, assim como as pernas, que é exatamente o ponto onde reconheço que não deveria estar observando o seu corpo desse jeito.
Quando alcança a parede, tenho a oportunidade de vê-la usar seus poderes ao vivo apesar dos meus olhos marejados. Me foco na energia que escorre pelas pontas de seus dedos tensionados, surgindo do vácuo e iluminando sua pele em um véu violeta delicado. Eu já a tinha visto utilizar os poderes na Alemanha e algumas outras esparsas vezes desde aquele dia, mas sempre foi tão reservada com suas habilidades que parecia mal-educado pedir que as usasse apenas porque eu as achava brilhantes e estava enfeitiçado com seus poderes. Com minha garganta apertada, consigo me distrair com a restauração da parede de tijolos, ocultando a outra Arena que podia ser vista através do rombo. Ela move os dedos devagar, uma palma se sobrepondo a outra como se a protegesse, mas o movimento não deixa de ser elegante como ela.
Diferente da calmaria de na tempestade, a minha respiração é balançada e frágil como na noite em que fui soterrado por Volture, ao ponto que temo começar a chorar com o pânico de sufocar de novo quando prendo a respiração. Somente havia chorado perto de uma vez e não quero que sua imagem de mim se fragilize, mas meu peito está doendo e vê-la aqui e caminhando em perfeito estado é um alívio tão grande mesmo que tão dolorido por saber o que precisou passar por causa da minha estupidez. aperta os dentes e ouço o som do choque deles, indicando que estava concentrada em algo além da parede perfeitamente igual a como estava antes. Apertar a boca é sua maneira automática de substituir o ato de tocar as pontas dos dedos nos lábios, mas suas mãos ocupadas a impediam de fazer a segunda opção, que não deixava de ser a minha favorita por léguas. No entanto, estou tão temeroso de como ela reagirá que não consigo pensar e me focar em seus pequenos hábitos para me distrair, somente com o leve bater repetitivo de meus dentes pois ainda estou tremendo apesar de estar forçando as mãos em punhos e tensionando meu corpo para controlar o tremor.
— Está tudo bem se eu tocar em você? — Sua voz sempre foi delicada e gentil, apesar de todas as coisas que já passamos, sua voz sempre foi enlaçada de bondade.
caminha descalça pela Arena e vem com calma até mim, atenta aos pingos do meu sangue no tatame enquanto luto contra meu coração acelerado que parece pronto para saltar para fora do peito, a pergunta inocente e preocupada me fazendo querer assentir apesar da falta de ar que me deixa um pouco tonto. Ela já parece mais acordada agora e segura uma caixa plástica branca entreaberta que não a vi pegar, exalando o ar em seus pulmões devagar ao estender a mão para mim, o medo de rejeição sendo óbvio. Detesto como a tristeza mancha o seu rosto, trazendo um franzido discreto para o lábio inferior e um inclinar para baixo das pontas de sua boca. Meu estado não a assusta como me preocupei que faria se invadisse o seu quarto, na verdade, a situação a entristece profundamente.
— Eu só quero limpar os seus dedos, Peter. — me explica com carinho ao me observar com os olhos tão expressivos. Nunca deixei de admirar como se entrega por completo por meio de seus olhos sinceros. Eu percebo então que meu silêncio, o peso de minha língua, indicou uma hesitação que jamais permitiria que me corrompesse quando se tratava de seu conforto, mesmo em momentos que meu mundo parece prestes a entrar em combustão. — Quer que eu faça isso? — Quando ela indaga outra vez, finco meus dentes no interior da bochecha, minha visão ondulando com mais lágrimas pois ela está aqui. Boa e amável e compreensiva.
Concordo devagar.
O sangue inunda minha boca quando mordo a bochecha com força assim que sua palma se vira pra mim ao demonstrar não esconder nada. Então pousa em meu rosto apesar do suor e eu bato os dentes como ela tinha feito. A sua mão, quente e macia, capaz de tamanho efeito e destruição, se acomoda contra minha bochecha e eu escolho a barriga com a força de meu inalar, fechando os olhos quando o perfume fresco em seu pulso domina meu olfato. Quero segurar sua mão e beijar os seus dedos, assim como o ponto onde o sangue corre em seu pulso, agradecido por estar ao meu lado, mas a timidez me vence como sempre tem feito e temo ir rápido demais ao ponto que não terei como suportar se me recusar.
— Certo. — Seus lábios se curvam em um sorriso minúsculo, o seu mero reflexo de alívio. —Vamos nos sentar aqui no chão, ok? — Seu tom é gentil, cheio de calma e cuidado.
Devagar e temendo morrer ao fazê-lo, tenho coragem de me afastar de seu toque e olhar para onde ela aponta, então a obedeço como sempre faço. Ainda tenho um bom equilíbrio apesar de tudo, então mantenho minhas mãos dilaceradas sobre meu colo e evito seus olhos, focado em suas ações e movimentos elegantes apesar da situação. Ela se põe de joelhos diante de mim e abre o kit de primeiros-socorros, tirando uma série de itens dele. A memória da noite do baile é tão vívida quando dolorida, mas eu me mantenho em silêncio ao lembrar-me também de como chorou agarrada em meus ombros quando contei sobre o desmoronamento. Logo, eu prefiro me focar em seus cuidados naquela noite e em como estava radiante enquanto os fazia, seja pela dose de adrenalina em meu sangue ou porque foi a primeira vez que realmente a olhei de verdade: com os o cabelo solto sobre os ombros e a concentração de sua boca apertada e o brilho da lâmpada amarela em seu rosto. Cada aproximar seu me deixava tonto e foi a primeira vez que considerei pressionar meus lábios nos seus.
— Desculpa, , eu... — Forço o pedido de desculpas para fora apesar de tudo, desejando elaborar meu pesar de alguma forma que fique claro, mas eu não consigo. Não com sangue nas minhas mãos e tantos sentimentos conflitantes no meu peito que se embaralham mais a cada instante. foi tão inesperada que posso a comparar como imagino que é ser baleado no peito, o projétil cavando seu caminho até o ponto mais frágil do meu coração. Mas não precisou lutar pelo espaço que ocupa dentro de mim, não precisou me ferir ou forçar coisa alguma. Ela apenas se encolheu contra meu peito e ficou ali, tão inesperada e bem-vinda como chuva de verão.
— Não liga. — Ela descarta minhas desculpas com cuidado para não soar ríspida demais, mas duvido que seria possível ser ríspida ou mal-educada, mesmo que queira. estende a mão para mim e eu sei que quer segurar uma das minhas, mas o mero considerar de fazer isso me causa dor, ainda que eu não tenha coragem de lhe negar coisa alguma. Quando minha mão pousa sobre a sua, meus dedos estão tremendo um pouco pelos espasmos da dor. — Está tudo bem. — Sua voz está tão baixa que quero fechar os olhos para me concentrar nela igual fiz na noite do baile em minha cama, mas busca meus olhos e não consigo desviar de suas irises. — Posso? — Aperto a mandíbula ao me preparar para o desconforto da gaze em sua outra mão e assinto antes que possa desistir, o ardor profundo me fazendo respirar fundo entredentes. O rosto de demonstra o mesmo nível de desconforto com vincos entre suas sobrancelhas apertadas. — Esses sacos estão velhos. Sujos. — Reprova com um suspiro lento e eu concordo, respirando fundo e inflando as bochechas. Assim que ela remove a gaze, sopro o ar que segurei. — Não devia ter se machucado e continuado socando-os. É pedir por uma bactéria.
— Eu queria sentir alguma coisa. — Me justifico com os dentes apertados, afinal, a dor é pior agora. descarta a minha motivação pelo nível de estupidez dela, balançando a cabeça, e suspirando devagar, sem diminuir-me apesar de como sua reação pode soar.
— Te entendo. — Sua resposta segue um momento de silêncio enquanto examina meus dedos, mordendo o canto do lábio rosáceo. — Queria ter certeza de que não estava mais dormindo? — Emito um grunhido para confirmar sua suposição, ciente que ela ainda me reprovaria sobre a escolha mesmo assim. nunca hesitou em me dizer que estou errado. — Ainda assim, é perigoso. Associar medo à violência é errado e pode se tornar viciante.
segura meu dedo indicador entre os seus ao limpar o sangue que escorreu para minhas unhas roídas e molha o lado inferior. Encosto a cabeça na parede e fecho os olhos, o ardor choro e o cansaço das últimas horas gerado pelos pesadelos sendo demais. Sinto o meu corpo aquecido, como estava no fosso do elevador há meses, quente ao ponto do suor acumular no meu cabelo e todo o resto do corpo. Sei que tem aversão a suor e sujeira em geral, mas ela não hesita comigo em momento algum, como se isso não a afetasse tanto. Seu rosto está concentrado quando volta a lhe olhar e ela está usando as próprias unhas envoltas de gaze para limpar as minhas, a boca apertada em preocupação e os ombros encolhidos para olhar melhor o estado de minha mão. Está concentrada apesar da clara inquietação na sua mente que está sempre a mil como o Sr. Stark havia comentado certa vez — está sempre dois passos na nossa frente e isso nunca deixa de ser preocupante.
— Sonhei com você queimando em Washington. — Seus movimentos se estancam quando, mais amargo do que podia esperar, confesso o motivo de minha automutilação. Tenho detestado o termo desde que May me viu saindo do banheiro quase queimado pela temperatura da água em que me banhei na última vez que tive esse pesadelo sobre . — Cheguei tarde demais dessa vez... — Com cuidado e um levíssimo tremor, cobre minha mão direita com um punhado de gaze seca. Apesar de sua presença aqui, seus gritos terríveis ecoam em minha mente, de um lado ao outro do meu crânio, perfurando meus ouvidos. — E te ouvi gritando. — Não há motivos para lhe contar isso exceto o meu desejo de fazê-la entender o quão arrependido estou do que aconteceu, mas minha garganta se aperta de novo e fica difícil respirar.
O arfar dela foi minúsculo, mas poderoso.
— Peter, como assim? — cobre o montante de gaze sobre minha mão com a sua e segura com sua palma livre o inferior da minha apesar do sangue. O apelido que usa pesa em meus ombros. — Não... — suplica com um fio de voz, incrédula pois não sabe que tem dominado meu subconsciente. Todos os meus sonhos e pesadelos igualmente relacionados a ela.
— Foi horrível, . — Continuo olhando para onde nossas mãos se tocam e, apesar da pontada afiada, curvo o indicador para segurar os seus dedos. Não são tão pequenos em comparação aos meus, apenas mais bonitos. Suas unhas são curtas e ovais. Sem pontas afiadas, como resto dela. — E foi tão... Eu só sabia que estava tentando te alcançar, mas não consegui. Só queria te alcançar, mas não consegui e você não parava de gritar e, e... — Meus olhos se enchem d’água, o ar não encontrando os meus pulmões de forma que a minha voz ondula. Detesto chorar, mas rever tudo aquilo, amplificado pela minha preocupação relativa aos constantes pesadelos de ... É demais para mim. — Você parecia estar... Soava sentir tanta dor e estava tão quente e eu acho que, acho que desde que falou aquilo ontem sobre... — Levo a mão livre para o rosto, fingindo secar meu suor quando, na verdade, são as lágrimas que escapam. solta a gaze. — Sobre os seus pesadelos e estar em chamas, acho que...
— Ficou no seu subconsciente, imagino. — Ela completa minha explicação com um sussurrar culpado que me dói nos ossos. Não é sua culpa, nunca foi. Eu entreguei a Pedra Chitauri para Ned e os coloquei naquela situação. Engulo em seco um possível engasgar quando as suas mãos mornas se pousam sobre meus joelhos e se aproxima mais, as irises inundadas de culpa enquanto se junta mais a mim. — Me desculpa, não imaginei que...
— Eu tentei entrar no seu quarto. — Assumo trêmulo e envergonhado ao sentir seu perfume intensificar-se no espaço entre nós. Me sinto nojento dizendo tais coisas no estado em que estou, com suor escorrendo por meu queixo e ficando sem ar com sua mera aproximação. Encosto a cabeça na parede e seguro meu cabelo úmido de suor ao fechar os olhos. Não consigo olhá-la nesse estado. Ela não merece mais esse problema. — Te chamei, mas acho que estava dormindo e eu não sabia a sua senha e não quis quebrar a porta do Tony. — Apesar do peito pesado e a leve dificuldade para respirar, a situação me dá vontade de rir e eu o faço, incerto se é uma risada ou um choro embolado que me escapa. deve me achar patético e eu não a julgo por isso. — E pensei ser outro sonho e vim para cá porque…
— Porque queria sentir alguma coisa. Eu sei. — Seus olhos expõem algo além da pena que imaginei que sentiria por mim ou a preocupação. me entende e seus olhos são o exemplo mais puro de compreensão e carinho. Observo imóvel enquanto ela encara os itens que removeu do kit de primeiro-socorros e simplesmente o empurra para fora de seu caminho, esse tal caminho que é até mim e termina com os seus braços macios ao redor do meu pescoço e seu peito pressionado no meu apesar do suor que outrora seria repulsivo.
Como as rachaduras que o fogo faria em mim em meu pesadelo e enfim me mataria pelo que fiz contra ela, o abraço de é abrasivo como as mais furiosas chamas. Só preciso de um pequeno instante antes de conseguir superar o medo de feri-la de novo; um único segundo sendo necessário para que eu deseje me afundar em como fiz uma vez. Passo os braços por sua costa e a trago em minha direção, querendo ser pequeno e poder me esconder nela. Somente até a dor e o medo passarem, ou até ela não me querer mais. Respiro seu cheiro e sinto seu cabelo grudar em meu rosto, porém não poderia me importar menos quando relaxa contra o mim, seus músculos menos rígidos enquanto pressiona o nariz no meu pescoço.
— Eu sei, Pete. — Minha garganta se fecha quando ela sussurra ao me confortar, me segurando mais próximo dela ao me abraçar com as pernas também ao encontrar pouso em meu colo. Nunca segurei uma garota dessa forma, mas não é de teor sexual algum, não com sendo tão gentil e não nesta exata situação. O seu peso é confortável e sinto meus olhos lacrimejarem quando a seguro com mais afinco e ela retribui a intensidade, respirando em meu ouvido. — Mas já passou e você precisa respirar, ok?
Meu concordar é arrastado na coluna morna de sua garganta, enquanto lhe sinto engolir em seco ao intensificar o abraço para me acomodar melhor. Tentar controlar o choro e o pânico que sinto é difícil, mesmo com o infinito conforto que encontro na presença de e no seu respirar regulado, assim como seu afagar no meu cabelo enquanto minhas lágrimas e suor se unem e formam uma poça no seu pijama. Apesar do estrago que causo, se mantém presente e mantém o seu coração cheio de carinho ainda que eu não o mereça, diferente do que ela se convenceu. Seu convencimento me atinge no alterar no ritmo de sua respiração, assim como o leve tremular se suas mãos em mim, uma única lágrima sua pingando na minha nuca. Detesto com todas minhas forças vê-la chorar. É uma dor física brutal, principalmente sabendo que sou o culpado por suas emoções ruins. Em retribuição, a seguro com mais força, meus braços que se cruzaram em sua costa lhe amparando quando me agarro na sua camiseta.
— Peter? — Sinto seu braço se desvencilhar de mim e as unhas curtas se cravam em meu ombro. Não ouso me mover além de um leve assentir, temeroso em estragar o momento como sempre acabo por fazer. — Vamos fazer uma coisa, ok? — Sua proposta é delicada, dando espaço para uma recusa que também jamais deixaria minha boca. pode me arrastar para o inferno se desejar. Engulo em seco enquanto ela se move em meu colo e eu me mantenho imóvel, preocupado que, se a ajudar, posso tocá-la de forma imprópria apesar do seu ajoelhar colocar seu peito em minha linha direta de visão. Lutando contra o embaraço, eu fecho os olhos ao sentir suas mãos em meu rosto e o beijo casto que pousa em minha testa ao direcionar minha face para o espaço morno acima de seus seios, suficientemente à esquerda, de forma que seu coração soa mais alto. Minhas mãos começam a tremer. — Sei que é estranho — Agora ela também soa temerosa pela situação. — Porém eu quero que tente ouvir o meu coração, pode ser? — As suas carícias cuidadosas atrás de minhas orelhas, os dedões fazendo o mesmo em minha mandíbula são tudo o que preciso para nunca discordar dela. — E tenta se concentrar no ritmo, tá bom?
Consigo entender sua intenção pois é exatamente como tio Ben me segurou no dia que enterramos meus pais e depois de duas semanas, eu enfim entendi o que havia acontecido. Mamãe e papai foram enterrados no Cemitério Calvary onze anos atrás, perto de onde minha avó Martha foi enterrada e eles me levaram para a visitar. Lembro de ter feito perguntas sobre ela e meu pai dizer que ela havia ido descansar e eu não poderia mais a visitar. Quando a ficha caiu, lembro de chorar o caminho inteiro para o apartamento e durante a noite inteira. Meus pais só tinham ido para uma convenção e agora estavam sete palmos abaixo da terra. Então, da mesma forma amorosa que me segura em seus braços, tio Ben me abraçou naquela noite e pediu pra que eu ouvisse seu coração. E da mesma maneira que faz, ele conseguiu me acalmar no meio da tempestade.


é o mais próximo que consigo ter de um nível de normalidade desde que a picada me deu tantos poderes que “normalidade” se tornou um conceito tão volátil. Antes dela, sentia que estava vivendo com um pé em cada mundo com as mentiras, mas não há nada disso mais. se tornou um ponto de equilíbrio ao encontrar pouso em mim da mesma forma que também encontrei paz em sua presença. Não preciso mentir para ela, afinal ela está ali em todos os lugares. Em Midtown, no Queens e aqui. O exato ponto de equilíbrio que me puxou para um estado de paz. Ainda assim, sua presença se torna mais preocupante agora, seja com todos os sentimentos que seu mero respirar faz borbulhar em meu peito, ou com os seus pesadelos que ameaçam lhe tirar de nós. Eu temo da mesma forma que o Sr. Stark pela sua segurança. Temo que um dia ela vá longe demais ou seus pesadelos, suas visões, a arrastem para longe.
Temo um dia não mais lhe alcançar.
— Pete, preciso cuidar das suas mãos. — me lembra e desperta com gentileza.
Não — E eu considero o quão ridículo é me negar a lhe deixar se afastar de mim, mas minha vontade de a ter perto é maior que qualquer embaraço. Não sou contra implorar, principalmente quando se trata dela e seguro sua camisa com a outra mão, evitando tocar em seu corpo e acabar lhe machucando com minha ansiedade. — Fica. — Sussurro com o rosto soterrado no tecido macio que cheira a e o chocolate que dividimos antes de irmos para nossos respectivos quartos. — Por favor, fica. Por favor, , não vai embora. Não. — Está além de mim a compreensão do que estou lhe implorando agora, o pedido sendo muito mais profundo do que eu havia imaginado que seria. Estou incerto se estou me referindo a afastar-se momentaneamente agora ou deixar-me algum dia. — Fica.
— Tudo bem. — não hesita em assentir. — Vou ficar mais um pouco. — Ela volta a ocupar meu colo, as pernas relaxando após ter ficado tanto tempo de joelhos e eu recebo seu peso com o mesmo cuidado de antes, somente segurando a sua cintura para lhe equilibrar e evitando me distrair em como o camisetão esconde seu corpo. Inclino-me para tentar encostar a testa em seu ombro, no entanto suas mãos cuidadosas me impedem e erguem meu rosto para ela. Mantenho os olhos fechados por uns instantes, contemplando se irei suportar olhar para o seu rosto. Então percebo que olhá-la é tudo o que desejo e afasto minhas pálpebras devagar, a longa cortina que o seu cabelo forma me protegendo da luz forte da Arena.
Nova Iorque é a cidade e o ponto de partida de grandes modelos, a grande maioria se mudando ou surgindo daqui para as passarelas mundiais. Muitas atrizes também passam pela cidade. É um ponto-alto de morar em uma cidade mundial. No entanto, não me recordo de nenhuma ter alcançado a mesma beleza de ou sequer chegar perto.
é alta e seu corpo entrega os anos de treinamento que deve ter feito, sem permitir que seja tão magra como as modelos que Ned e eu vimos serem fotografadas no Central Park há umas semanas. E o seu rosto não é tão feroz como os das modelos, também, mas é o mais lindo. Com declives e ângulos marcados abaixo de suas bochechas e lábios com rugas engraçadas nos cantos. possui um forte ar de autoridade que é difícil, em uma primeira interação como as que tivemos antes de tudo, considerar que nós temos a mesma idade. A natureza disso se torna mais evidente ainda em seus olhos sérios, que não escondem a luz da genialidade voraz. Isso até ela sorrir, como faz levemente para mim agora como um anjo. O seu rosto inteiro se ilumina com o mais tímido sorriso, como o Sol saindo de trás de uma nuvem.
— Ei, está tudo bem! — Me esforço para não fechar os olhos ao sentir seus dedões acariciarem minhas bochechas. A ver dessa maneira tão serena, senti-la tão perto e com a forma que me trata agora… É tortura. — Eu estou aqui. Você me salvou, lembra? — O esforço duplica pois não quero dizer que me lembro de lhe salvar em Washington e como sentei do seu lado no ônibus de volta porque tinha medo que iria desmaiar como fez ao chegarmos em Nova Iorque. Não conto que Happy estava apavorado no telefone com a Srta. Potts enquanto a carreguei para o carro de luxo. Não conto que, se fosse escolha minha, ela jamais teria ido na viagem se soubesse que acabaria daquela forma. — Lembra o que disse mais cedo? Que ia me proteger? — A sua voz é doce como o sorriso que usa para me convencer. parece quase angelical em meus braços. Eu assinto. — Você vai me proteger igual fez em Washington e eu vou te proteger, ok? Sempre vamos estar lá um pelo outro, não é? — Neste ponto, não sei qual de nós precisa desta confirmação. Seu rosto não oculta sua preocupação. — Eu estou aqui com você, Pete.
Sopro o ar que havia segurado assim que sorriu para mim, inclinando-me de novo para frente somente para sentir sua respiração soprar de volta em meu rosto quando deixo minha testa encostar na sua, seu nariz roçando minha bochecha ao respirarmos e tentarmos manter o controle de nossas emoções. Então, há um toque delicado de uma superfície molhada em meus lábios quando respiro fundo e me arrependo ainda mais de tudo o que fiz, suas lágrimas queimando em meus lábios quando enfim descansa em meus braços e deita sua cabeça em meu ombro. Pressiono a palma de minha mão em sua coluna para a apoiar e a outra mão em sua nuca, sentindo os fios de seu cabelo pinicarem minha mão ferida, mas não me importo com o incomodo quando ela encosta o nariz em meu pomo-de-Adão e posiciona sua mão em meu coração.
— Nós vamos ficar bem. — promete uma última vez.


Homecoming XXIV — As It Was

(Dez meses desde a queda dos Vingadores)


Em meu estado de semiconsciência, começo a entrar em pânico quando não consigo erguer minha mão. Então tento me mover, reconhecendo a maca onde estou deitada e o papel abaixo de mim, peito apertado por uma tala para impedir meus movimentos. Ranjo meus dentes com força ao sentir uma pontada dura em minha cabeça, assim como a dor afiada em meu lado esquerdo. Estou totalmente incapaz de me mover, mas não é uma incapacidade medicada como os sedativos que usavam na HYDRA, apenas por pura falta de forças e vontade. Com a respiração entalada, começo a tentar me inteirar dos meus arredores. Tem dois tubos conectados ao meu braço, diversos líquidos ardendo em minhas veias e eu estou de volta no quarto da enfermaria onde havia estado há pouquíssimos dias.
— E está tomando anticoagulantes.
Reconheço a voz da Doutora Palmer daqui onde estou, soando do lado esquerdo onde há uma janela de vidro para o corredor. Sem poder me mover muito, olho devagar na direção onde o som vem, a dor em minha cabeça lembrando-me que havia caído e deveria ir devagar. Apesar do turvar da visão, encontro a Dra. Palmer exatamente onde imaginei que estaria, segurando as caixas dos meus remédios enquanto lê um prontuário. No entanto, foco apenas nos meus pais diante dela, atentos para cada respirar tenso seu ao analisar as caixas quase vazias em menos de quatro dias. Engulo em seco, incerta se a ouvi direito e eu realmente tomava anticoagulantes este tempo todo.
— Fora isso, sem motivo algum relacionado ao acidente, a estava fazendo uso de um antidepressivo tricíclico — Tento, uma segunda vez, me movimentar para poder ouvir melhor, no entanto, a tala ainda me impede de fazer tal. — E esse é um dos antidepressivos pesados, sabe? — Palmer balança a caixinha. — Um dos primeiros do mundo, muito rudimentar para alguém na condição e idade dela. A tem dezesseis anos, não é? — “Vai fazer dezessete esse ano.” A intervenção de Pepper é miúda, a voz aérea. — Ela é muito jovem para um medicamento desse e não vejo motivo nenhum para a Dra. Helen ter prescrito ele. Os efeitos colaterais são muito pesados. Tremores, aumento da frequência cardíaca, queda da pressão, confusão mental, e ainda dificulta o funcionamento do coração...
Tony surge em cena, de forma que não mais vejo apenas as costas de Pepper, mas a sua mão na coluna dela quando ela pende a cabeça para trás e corre os dedos pelo cabelo. O rosto dele se firmou em uma expressão congelante, lábios tortos e mandíbula flexionada. Eu já havia visto Tony em situação de extremo estresse e reconhecido que ele tem uma habilidade surpreendente de transformar tudo em uma grande piada antes de deixar as preocupações o devorarem por dentro depois. Contudo, ele não parece inclinado a seguir a mesma rota de sempre; pois a sua expressão me indica que ele não tem o mínimo interesse em deixar este deslize escapar, se é que podemos considerar o ato da Dra. Cho um deslize.
— Os remédios receitados pela Dra. Cho são completamente contrários ao que a sua filha deveria estar tomando. — Palmer prossegue e eu encosto minha cabeça no travesseiro. — Não estão a ajudando a se recuperar do acidente e ajudando na cicatrização, mas enfraquecendo e prolongando o processo de cicatrização. Ela está tomando heparina e as plaquetas então caindo pelo segundo, então vamos precisar manter ela em observação por mais ou menos um dia e de algumas transfusões, além de questionar a quantas vezes ela se medicou hoje. — Respiro lentamente, começando a fazer as contas, ciente que Tony irá querer as informações assim que possível. — Se a tomou uma superdose, também vamos precisar neutralizar a heparina com outro medicamento. Foi muito difícil estancar o sangramento e remover a bala, fora que a pressão dela estava caindo. — Fecho meus olhos. — Está além de mim como conseguiu ficar consciente até agora. Esses remédios já deviam ter derrubado ela há uns dias. Fora o envenenamento.
A última frase me assusta o suficiente para eu olhar novamente para os três.
— A Cho fez isso com a minha filha? — Pepper sussurra, como se a ideia lhe assustasse. E talvez lhe assuste como me assusta. Cho não faria isso propositalmente. Ela esteve aqui conosco há anos, trabalhou para Tony por séculos antes de Sokovia e é praticamente chefe-interina de um setor inteiro da Stark Industries.
— Não tenho como responder isso, Srta. Potts. — Dra. Palmer toca no braço de Pepper e sua calma me surpreende, mesmo que seus olhos não consigam mentir. — A bala era o reservatório onde a cápsula com o veneno estava armazenada. Ela começou a vazar só com a segunda intervenção, que foi feita pela Dra. Cho na manhã de sexta-feira. E aqueles medicamentos estavam acelerando o espalhar na corrente sanguínea da .
May Parker surge em minha mente no mesmo instante e o meu possível envenenamento não é minha única preocupação, em vista que Cho também auxiliou no seu tratamento. No desespero de mover meus pés, grunho de dor ao esbarrar em minha coxa. O som alto é o suficiente para chamar atenção dos três, mas eu já estou com as mãos pressionadas na tala e ela se desmaterializa em minha palma enquanto me forço para cima, sentando-me com um arfar apertado de dor. De imediato, mãos me alcançam no exato momento que considero que minha cabeça vai explodir, o latejar acima do meu olho tão forte que minha visão se embaça.
Deixo meu corpo recair na maca, a dor intensa forçando um respirar apertado para fora de meus pulmões, assim como o franzir de minha testa, o que só parece aumentar a dor. É como uma das terríveis dores de cabeça que sentia diversas vezes na HYDRA, mas duvido que seja a inanição e a desnutrição típica de todos os objetos de teste da organização terrorista. Os fios em minha mão não me deixam tocar onde a dor emana, mas eu permito que me ajudem a deitar e descansar novamente, olhos bem fechados ao tentar respirar fundo até a dor diminuir, o que acontece rápido devido a minha inevitável perda da consciência. Eu permaneço no mesmo limbo de consciência e inconsciência pelo o que parece horas até finalmente despertar de vez, o sorriso aliviado de minha mãe sendo a primeira visão que tenho.
Respondo uma série de perguntas detalhadas até a Doutora Palmer considerar que estou no meu melhor estado e posso passar algumas horas sem uma enfermeira no quarto. Assim que o que imaginei ser o questionário chegou ao fim e Pepper já estava sentada ao meu lado em uma poltrona, os seus dedos nunca deixando meus ombros e olhos atentos para o vai e vém de Tony no quarto, é Maria Hill que inicia a sua rodada de perguntas. Ela interroga-me por longos minutos sobre a Dra. Cho, os medicamentos que havia me indicado e as quantidades que tomei, me forçando a repetir as informações que dei para Palmer e que me foi recompensado com mais medicamentos para neutralizar aqueles que me matavam.
Conto à Hill sobre Cho e tudo o que consigo me lembrar de nosso encontro, assim como o que ela havia dito a Tony, Pepper e Peter na mesma noite. Conto sobre a óbvia preocupação que Helen demonstrou ao me atender na manhã seguinte ao acidente e encontrar a bala, a maneira que temia que nos ouvissem e como eu imaginei ser um medo justificável das informações escaparem para alguém que não poderíamos confiar quando ela mesma era a serpente no jardim e havia permitido que eu passasse dias com um veneno alojado em minha perna. Maria revisa toda a história, já ciente de que Cho havia selado o laboratório enquanto me atendia naquela manhã e como foi a minha senha utilizada para desativar FRIDAY e não a da geneticista, uma vez que ela não tinha as credenciais necessárias para tal.
— Encontraram o Cross? — Meu pai questiona ao digitar algo na tela de seu relógio.
— Adrian Malick — Prendo a respiração quando a Agente Hill o corrige diligentemente, dando o StarkPad para Tony enquanto olha para o corredor onde seus oficiais aguardam instruções. Pelo que contei, são uns dez militares nesse corredor, mas não tenho dúvidas de que devem haver mais algumas dezenas espalhadas pelo Complexo. — Nós o localizamos em uma das propriedades do pai da África do Sul, mas ele conseguiu fugir. Ele será transferido para o Complexo assim que o encontrarmos e o CMS decidir como será feito o desligamento do pai dele.
— Não. — Tony e Pepper decretam no mesmo instante, vozes potentes e capazes de fazer a própria Maria Hill pender e erguer os olhos para eles, mais precisamente, para Pepper. — Leve-o para Torre e o interrogue lá. — Meu pai prossegue, devolvendo-lhe o StarkPad. — Quanto ao Conselho não saber o que fazer com o Gideon, quero que enviem todas as informações que o Agente Coulson e a Agente Peggy Carter recolheram sobre Gideon e o Wilfred Malick nas últimas décadas para o resto do Conselho de Segurança. Se não removerem a imunidade diplomática dos Malick, terão que admitir o erro de não saberem sobre eles terem laços com a Hydra desde a Segunda Guerra e a ONU vai ter de pender.
— Sim, chefe. — Maria assente, prestes a prosseguir quando batidas na porta do quarto soam junto a voz de um dos seus oficiais. O homem que está coberto dos pés à cabeça com kevlar e o rosto está oculto por uma máscara que mais se assemelha a uma focinheira adentra o quarto, rosto e corpo virados na direção de Maria e Tony como se eu e Pepper fossemos personificações da Medusa. — A encontraram?
— Ela está na Coréia, Agente Hill. — O militar aponta para o StarkPad. — Sr. Stark, foi acordado na reunião em Zurique que o ideal para viagens de longa distância como essa seria a Legião de Ferro a acompanhar meia dúzia de oficiais locais e aqueles sediados no exterior. — Após a menção da Legião de Ferro que há pouco foi confiada a mim, eu me forço a sentar-me e deixo que Pepper me ajude, o ato mais fácil uma vez que a tala foi removida e posso me movimentar melhor. — Precisamos do aval para mobilização de parte da Legião.
— Tem o meu aval para mobilizar a Legião — Minha voz é rouca e não nega a exaustão que se enlaçou em meu corpo e mente nas últimas horas, porém não deixa de soar dura e autoritária. Ainda são duas da manhã, então não é uma surpresa grande que tenham vários militares dispostos a cruzar o oceano em nome de Tony Stark para localizarem Cho. O oficial vira-se até mim com cautela, sem erguer a cabeça de onde encara o chão e somente assentindo em aceite de minha orientação. Se ele desconfia que a palavra final não é a minha, não demonstra hesitar. — Contudo, não quero que usem força bruta com a Dra. Cho. — Ouço o respirar de Pepper e prossigo antes de ela dizer alguma palavra. — Acredito que aparecerem no laboratório dela com armas até os dentes, o Quinjet e a Legião de Ferro seja o suficiente para a intimidar e forçar uma confissão. — Engulo em seco quando minha garganta range. — Ela não usou a força comigo vez alguma, então acho justo sermos tão diplomáticos quanto, ainda que tenhamos intenções semelhantes.
Não é de conhecimento meu que Tony tenha apresentado-me aos seus funcionários como uma figura de autoridade, portanto, eu aguardo que ele me apoie e libere o oficial para fazer o que lhe instruí. No entanto, meu pai não diz palavra alguma de suporte e, ainda assim, o homem assentiu e se retirou do quarto com a mesma agilidade e eficiência que entrou. Com o seu distanciar, relaxo a mandíbula o suficiente para meus dentes não doerem tanto por eu os ter cerrado, assim como volto a me apoiar nos travesseiros, olhando para Tony ou Hill enquanto me acomodo apesar da dor em minha cabeça.
— Hill, quero que você transfira todos os funcionários não essenciais para a Torre Stark o mais rápido possível ainda essa noite. — Tony comanda com um toque no braço de Maria Hill, a sua expressão rígida ao encarar as informações no tablet sobre Cho. Quero saber o que vê, mas não ouso a indagar coisa alguma ou me meter nos planos de Tony. — Quero somente militares de confiança e a minha família aqui. — Pepper se levanta da poltrona devagar, espanando as mãos no seu jeans. Maria a olha e minha mãe consente à ordem do noivo. — Antes de sair, organize uma frota armada com patrulha vinte e quatro horas dentro do Complexo exceto nas instalações residenciais onde a FRIDAY fará a vigília. Programe varreduras de duas em duas horas desse mesmo grupo. E reative os postos avançados nos arredores da estrada principal e no raio de cinco quilômetros. O que sobrou da Legião de Ferro também ficará a postos.
— Estamos nos preparando para um ataque? — A dúvida de Hill reflete as minhas.
Pepper encosta-se ao lado de minha maca, segurando a barra protetora.
— Estamos nos preparando para manter a segura, agora que sabemos que não estamos conseguindo fazer isso nem mesmo debaixo de nosso teto. — Reconheço, então, que não há possibilidade de reconciliação com Cho. Ou que ela se livrará das consequências do que fez comigo em um instante de tamanha fragilidade. — Não me importo o quão precipitado e ridículo pareça.
— Não parece. — Hill descarta a ideia de Pepper com um balançar da cabeça, os seus olhos refletindo a veracidade do que garante a minha mãe. — Parecem pais preocupados e isso eu não posso julgar de maneira nenhuma. — Quando nossos olhares se encontram, consigo conceber seus pensamentos, as semelhanças entre nós sendo profundas como as raízes de uma árvore centenária. Ela também esteve sob as garras da Hydra por quase toda a vida, de forma que não é surpreendente que possamos estar pressupondo a mesma possibilidade agora que o atentado lhe foi informado. Não há outra justificativa para tentarem me matar exceto um acerto de pontas soltas. Maria olha de mim para meus pais ao corrigir sua postura já perfeita, e a prévia expressão de compadecimento se desfaz. — Se houver necessidade, gostaria de me oferecer como segurança pessoal da . — Tony olha para ela com a oferta feita, a estudando rapidamente. — Estou disposta a ajudar o quanto precisar.
— Obrigado. — Pela primeira vez desde que acordei, meu pai soa calmo e genuinamente satisfeito com a situação que o cerca por minha causa. Outra vez, ele toca no braço dela antes de dar alguns passos na direção de minha cama. — Vamos organizar isso assim que ela estiver melhor, Hill.
Desta vez, eu busco o rosto dele, atenta e aguardando um deprimir de sua expressão ao me olhar. Ele não reage como eu esperava, em ambos os extremos de minha mente enevoada. Não há raiva em sua face ou pesar no ar ao nosso redor, assim como não há o abundante carinho intenso que me habituei. Há apenas certo alívio estampado em seu rosto, equilibrado com o esgotamento que eu vi no laboratório no início da noite. Tony olha para Pepper quando ela encosta em sua mão ao passar na direção da porta onde uma enfermeira aguarda autorização para entrar, segurando uma bandeja com o que imagino ser comida. Pepper a impede de entrar, mas ainda assim recebe o copo de isopor com o que pode ser sopa ou mingau. Ambas as opções me enjoam.
— Chefe? Preciso que veja uma coisa…
Outra vez, Hill segura o StarkPad para Tony, porém ele está ocupado demais abrindo uma garrafa de água do frigobar para aproximar-se, então eu observo a tela quando Maria o segura como uma pequena televisão em nossa direção. Engulo minha respiração nervosa quando observo, como ontem, a movimentação próxima à Ponte do Brooklyn e em determinadas partes de Nova Iorque pelas lentes de uma câmera. Apesar da visão um tanto turva, leio as legendas do que possivelmente é um noticiário noturno, informando sobre as muitas paralisações na cidade em razão dos dois acidentes gravíssimos ocorridos há alguns dias, principalmente o acidente no porto onde o número de vítimas ainda não foi estimado mesmo após quase uma semana inteira. No entanto, muitos também são os cartazes e banners com as mesmas imagens minhas que Peter e eu vimos no Queens, com suas mensagens de agradecimento diante da Torre Stark e em diversas localizações.
— Estão espalhados pela cidade. — Os informo e me sento ao receber a garrafa de água que Tony abria, confortada que, apesar de meus atos que lhe causaram tanta tristeza e irritação, meu pai se importa com o meu bem-estar. — Peter e eu os vimos no Queens enquanto voltávamos da aula.
— Na HYDRA já conheciam os seus poderes, ? — Engulo a água com a pergunta justificável que é direcionada a mim, concordando lentamente com a cabeça devido à dor dura.
— Somente um pequeno número de oficiais que estavam em Sokovia ou já morreram no ataque ou pelas mãos do Ultron como o Barão von Strucker. — Quando termino de responder, Tony inclina minha garrafa novamente para que eu beba mais água. Por não estar em posição de negar-lhe coisa alguma, faço uma tarefa pessoal de beber tudo. — Posso perguntar uma coisa?
— Sim, podem ter sido armadilhas para chamar sua atenção e te atrair para os lugares dos acidentes. — Tony respira fundo, apertando os dentes pois ele rapidamente fez a conexão que me recusei a fazer até agora. Não é difícil perceber o quanto errei por não lhe contar a verdade antes. — Termina a água, — Ele aponta para mim ao voltar a caminhar pelo quarto com seus braços cruzados como sempre faz em momentos de tensão e preocupação. Natasha havia apontado este seu hábito para mim assim que cheguei na Torre dos Vingadores e Ultron fez seu pequeno show para nós. — Não sabemos se os experimentos que fizeram nela passaram por entes superiores na HYDRA. Muitos devem estar vivos e ter a reconhecido nas imagens que vazaram na Alemanha. Era questão de tempo a "localizarem" assim e por isso todo o esquema de segurança. — Tony gesticula para os homens do lado de fora do quarto e para a própria Hill ao sentar-se no pé da cama. — Sabem que, não importa de que forma, ela está aliada comigo, mas isso não significa que vão colocar as patas na menina.
Pensar em Cho faz minha temperatura subir como lava em meu interior, o que justifica o fato de dizerem que amor e ódio são duas faces da mesma moeda. A mesma ansiedade que sinto para estar junto a Peter queima como esta que sinto agora ao pensar em Cho, mas não é sufocante como a saudade que sinto de Natasha, Bucky Barnes e Sam Wilson. É uma forma de calor explosivo que me faz imaginar minhas mãos na garganta pálida de Cho, assim como faz meu rosto pinicar com a raiva brutal que somente uma traição pode gerar.
— Em quanto tempo eu posso sair daqui?
— Você realmente não tem muito pra onde ir considerando que está de castigo. — Tony vira-se na minha direção, braços cruzados e a sombra de um sorriso clássico. — Mas vai, me conta os teus planos.
— Só quero conversar com a Cho — Eu dou de ombros. — Ainda não sabemos quantas pessoas precisaram morrer no porto por uma bala que nem mesmo foi eficiente ou conseguiu me matar a tempo. — Respiro fundo outra vez, cansada da situação. — A May está ferida, centenas de pessoas estão internadas e mais de quinhentas devem ter morrido no Porto. Cho se deslocou de Londres para Nova Iorque somente para ativar o veneno e eu somente quero entender o motivo. — Ergo os ombros, sentindo minha boca amargar. — Se ela está trabalhando para a HYDRA, sabe exatamente onde eu estou e sabe também que não vou voltar. — Meu pai permite que a sua fachada se desfaça momentaneamente. — Viva ou morta, não vou voltar para a HYDRA. Ela precisa ouvir isso de mim.
A Dra. Palmer é a responsável por nossa conversa não prosseguir, entrando no quarto com um sorriso gentil e cumprimentando a Agente Hill que sai assim que Tony a autoriza. Mordo a língua e aceno com o queixo para Maria.
— Por hoje, você vai ficar sendo examinada hora em hora, certo? — Palmer segura um copo que cheira a chá de mel igual aos que Pepper costuma tomar. — O seu hemograma não está muito bom, mas não como devia estar em razão de tudo o que aconteceu e eu só posso considerar isso uma resposta positiva do seu sistema imune devido a um motivo X que não é problema meu no momento. — O seu sorriso é quase hesitante pois é óbvio que ela foi informada de meus poderes ou qualquer detalhe sobre meu metabolismo que indique que há algo diferente em mim. Pepper dá um riso sem-graça enquanto Tony pisca para ela. — A sua perna ainda está sensível apesar de, novamente, o seu corpo estar sendo incrível ao antecipar a sua recuperação. Eu temo que você vá ficar com uma cicatriz no local, já que foram feitas três intervenções. — Concordo com a cabeça, certa de que posso corrigir isso. — Mas, no momento, nosso foco é controlar as reações causadas pelos velhos medicamentos e manter o desmame deles, principalmente do antidepressivo.
— Eu não fazia ideia de que estava tomando antidepressivo, principalmente um com tantos efeitos adversos como o que foi receitado pela Cho. — Já faz algumas horas desde que eu acordei, logo, me sinto mais confortável para conversar. Pepper está sentada no sofá abaixo da televisão do quarto e balança a sua cabeça ao ouvir-me. — A Dra. Cho era de confiança, então eu apenas segui as indicações.
— Nós estamos completamente cientes disso, Srta. Stark — Palmer prossegue, afastando o cabelo de seu rosto enquanto tento respirar após ouvi-la utilizar-se do nome de Tony para referir-se a mim. — Expliquei para os seus pais mais cedo que esse medicamento maluco pode ser o motivo de ter ficado tanto tempo com a bala alojada mesmo sabendo da existência dela. A dose que tomava era absurda e apesar do metabolismo acelerado, a confusão mental é grave. — Desta vez, é para meus pais que ela olha, tomando a iniciativa de defender-me. — Já vi pessoas chegarem em emergências com casos semelhantes. Acidentes graves de carro por dormir no volante, alucinações de estarem sendo perseguidos, agressividade, automutilação…
— Estamos fazendo os testes para identificar o veneno que estava na bala. — Tony me avisa de onde está sentado próximo a minha cama e a Dra. Palmer concorda, bebendo mais do chá. — Pode ter te deixado mais confusa e mais ansiosa ainda, o que mexeu com o seu raciocínio. Não que você não seja meio tan-tan da cabeça, mas… Vocês já têm uma previsão de quando ela vai começar a receber as bolsas?
— Os bioquímicos já estão terminando os últimos testes, então a possivelmente vai receber as transfusões até às quatro da manhã. — Palmer toca em meu ombro. — Se precisar de qualquer informação, eu vou estar no descanso médico.
Nós três ficamos em silêncio após a saída da médica, perdidos nos próprios pensamentos e infelicidades, a maioria causadas por mim e que fazem meu peito pesar. Não ouso falar muito, nem mesmo quando Pepper diz que é bom diminuirmos as luzes para que eu possa descansar antes da transfusão. Ela se aproxima para desligar as luzes no painel atrás de mim e sinto meu corpo se tensionar com a sua presença, essa sendo a primeira vez que temo não receber um beijo de boa noite dela, porém, Pepper não deixa a tradição para trás apesar de tudo e se inclina sobre mim para beijar minha bochecha. Sua palma delicada segura minha bochecha e toco sua mão com meus dedos frios, engolindo em seco quando ela se afasta no mesmo silêncio de antes e segue na direção do sofá onde precisará dormir por minha culpa.
Me mantenho imóvel por uns minutos, ociosa até ouvir o som de sua respiração pesada.
— Pai? — Sussurro baixinho, virando meu rosto na direção da poltrona de Tony.
Uma vez ocupado com o celular, minha voz lhe estimula a deixar o aparelho de lado e mover-se para frente no assento até estar mais perto de mim na cama, seu rosto oculto nas sombras onde as luzes dos aparelhos não o alcançam.
Engulo em seco, processando o questionamento que está entalado em minha garganta como um cubo de gelo.
— Eu sou suicida? — A dúvida é trêmula. Eu sinto a destra dele em minha testa, afastando o cabelo grudado em meu rosto pelo suor.
— Um pouco. — Papai sussurra de volta e meu peito dói, a pressão em minha garganta é mais forte que um mata-leão. — Eu também fui. — Ele sopra delicadamente para mim, os nós dos dedos secando meu rosto e respirando fundo como se também estivesse com o mesmo peso de minha pergunta sobre seu peito. — Quando alguém passa por muita coisa, acho que isso acontece. — Meus ombros tremem quando Tony beija um ponto acima de minha sobrancelha, afagando minha testa com o dedo pressionado na pele úmida. Ele beija exatamente onde me feri ao cair quando cheguei no Complexo com May. — Você vai pra terapia de novo, ok? — Tony balança a cabeça e eu repito o gesto dele. — Vai ser chato e vergonhoso, mesmo que não precise ser. Mesmo que não seja. — Garante-me, ainda que nós dois não acreditemos tanto nisso, mas a sua mentira confusa é reconfortante. Ele tenta com todas as suas forças acreditar para que eu também o faça. — Mas você vai. — Meus olhos estão ardendo quando os fecho. — Nós não queremos te perder, .
Quando estou mais calma e Tony volta a se deitar, eu finjo dormir pelo resto da noite.
Passo quatro dias no hospital para garantir que estou me recuperando de verdade desta vez. Os dias são longos e cansativos com as trocas de curativo, a fisioterapia dolorosa e as consultas e visitas de psicólogos e psiquiatras. Pepper havia se levantado de onde estava ao meu lado quando um deles entrou no quarto, questionando-os se Tony havia os enviado sem consulta e autorização prévia dela. Então, quando me sentei na cama com dificuldade e pedi que o psicólogo entrasse, precisei a avisar que foi um pedido meu para uma das enfermeiras o enviasse. Incertos com a decisão tomada por mim, meus pais permaneceram no quarto durante a consulta introdutória a pedido meu. Estou certa de que passamos quase duas horas conversando, enquanto apenas quarenta minutos com o psiquiatra foram o suficiente para a renovação de receitas médicas como as que tomei em meus primeiros meses na Torre Stark. Os nomes são semelhantes e nós decidimos manter público os diagnósticos que já haviam sido feitos três anos atrás.
O diagnóstico de depressão maior em grau moderado não é surpresa, sendo unânime entre os psicólogos que me avaliaram assim que retornamos de Sokovia e o Capitão Rogers insistia em terapia para mim e Wanda. Lembro-me de quando contei o diagnóstico para Bucky em uma de nossas conversas ele ficou em silêncio por longos minutos antes de sussurrar que eu sou "só uma criança". A ansiedade foi o segundo diagnóstico que dividimos com o psicólogo, apontada por Tony algumas vezes durante a conversa, assim como minhas tendências de deixar meu bem-estar de lado sem atentar-me ou importar-me com as consequências. No fim da primeira noite, Pepper entra no quarto com uma garrafa de água e um pequeno copo de papel com algumas pílulas. E eu engulo as pílulas amargas com a água e mais um pequeno copo do que imagino ser água com um pouco de citalopram.
No segundo dia de internação, nós recebemos as notícias sobre a trágica morte da Dra. Cho e outros sete geneticistas sul-coreanos em um laboratório em Seoul. A explosão ocorreu em uma sala que estava em reparo no laboratório, e o incêndio se espalhou pelo sistema de ventilação do edifício. O laboratório sediou pesquisas secretas de armas biológicas durante a Segunda Guerra e era o principal centro de pesquisa de doenças no continente, armazenando cepas altamente contagiosas. Os jornalistas sensacionalistas discutiam sobre se o fogo teria sido quente o suficiente para destruir os vírus ou a explosão ajudaria na contaminação nas redondezas enquanto tentei acalmar o meu coração acelerado com a notícia e meu quarto de hospital tornou-se centro de operações do Complexo. Em poucas horas, Maria Hill e seus oficiais retornaram após a caçada pelos corpos, mãos abanando e sem informação alguma relativa a identidade de Cho entre os corpos carbonizados.
Tony segurou o meu cabelo enquanto eu vomitava durante minha caminhada diária logo após a notícia que a família de Cho havia sido vítima de um acidente de carro horas antes da morte dela. Ele me guiou de volta para o quarto quando as lágrimas começaram a cair sem parar, garantindo-me que tudo seria resolvido em breve. Passei o resto do dia considerando a possibilidade de ser uma queima de arquivo clássica da HYDRA, o que por fim torna-se a posição adotada por todos ao discutirmos em meio a quinta transfusão sanguínea antes de meu jantar ser servido. Passei longas horas dormindo e os remédios se revelaram velhos conhecidos, uma vez que meus sonhos não passaram de borrões acinzentados. Quando acordei e meus pais discutiam com Hill no corredor, eu temi o que fariam com as informações e a situação que não negava a participação da HYDRA no atentado.
Quando faltava apenas um dia para que eu recebesse a alta previamente prometida pela Dra. Palmer e meu pai se juntou a Hill na caça por quem acreditávamos ser “Alexander Cross”, Adrian Malick foi rendido por militares em rede nacional em seu esconderijo em Zurique, acusado de praticar atos concretos e atividades de planejamento de terrorismo doméstico, sendo considerado o responsável pelos ataques ocorridos em Nova Iorque e culpado por 489 mortes, os acidentes ganhando o título de caso de terrorismo doméstico com maior taxa de causalidades na história dos Estados Unidos. É somente quando reconheço o rosto de Rhodey, ou melhor, do Coronel Rhodes durante a coletiva de imprensa sediada na Casa Branca pelo Presidente Matthew Ellis, que entendo a ausência de Tony e o constante checar de Pepper em seu relógio. Ela segura a minha mão quando o Presidente revela como as informações repassadas pela Legião de Ferro e o “Grande Herói Americano”, que não pôde estar em pessoa para celebrar uma nova vitória na “Guerra ao Terrorismo”, foram essenciais para a prisão de Malick.
Tony retorna enquanto estou fazendo mais alguns minutos de fisioterapia no corredor e a primeira coisa que consigo pensar é como voltamos a estaca zero tão rápido, pois, dez ou nove meses atrás, a mesma cena se repetia após o fim dos Vingadores. E assim como foi após a Alemanha e eu me recuperava no hospital, Tony me dá um abraço sufocante ao me ver de pé. Contudo, com toda a ameaça da HYDRA e Cho, Adrian Malick e a situação ainda a ser resolvida quanto a Ross; não me sinto tão temerosa e afetada quanto estive quase um ano atrás. Quando meu pai me abraça e suspira aliviado ao me ver andar, eu sei que estarei segura enquanto ele estiver aqui.


*


— Você está roubando! — Pepper urrou ao dar um tapa na mesa de centro. — Eu sabia!
Mordo o lábio para conter uma risada com a revolta justificável dela ao precisar pegar mais oito cartas no monte, sendo sua quarta vez ao fazer isso nessa rodada; dezesseis. Estamos todos sentados no chão perto do sofá, da mesma maneira que estávamos na manhã de Natal e como fazemos nas raras vezes em que os jantares não acontecem no laboratório. Minha mãe remove os óculos ao observar o noivo que está encolhido no outro lado da mesa, com um pacote de blueberries secos na mão esquerda e com um número suspeito de cartas na mão direita. Ele veste um tracksuit e uma camiseta do Aerosmith, o cabelo um pouco bagunçado após perder tantas vezes no Monopoly. E eu respiro fundo, uma vez que não é uma acusação nova para alguém que escondia duas cédulas de quinhentos dólares do jogo no bolso duas horas atrás.
— Eu estou roubando?! — Tony reclama de onde está, olhos arregalados por trás dos óculos.
— É realmente estranho que você tenha cinco cartas “+4”... — Murmuro ao organizar as minhas cartas, insatisfeita com quantidade que ainda tenho e a variedade de cores e números que não ajudam para que eu consiga vencer como fiz na última vez. Lembro-me que certa vez Ned conseguiu vencer após colocar três números seguidos na mesma cor e conto quantas cartas azuis eu tenho.
— Parabéns, Virginia! — Papai bate palmas, a ironia evidente na lentidão do ato. — Virou a menina contra o próprio pai! — Ele aponta para mim e eu reviro os olhos, talvez ao mesmo tempo no qual Pepper também o faz. — Não é culpa minha que você não sabe misturar as cartas e elas saem no mesmo padrão toda vez! — A acusação é péssima e nós estamos cientes, no entanto, aproveito-me da distração para selecionar uma carta vermelha com o número nove.
— Como eu vou misturar se a cada dez segundos você fica falando que “tem um truque de Vegas” que é mais rápido? — Mamãe retruca ao começar a pegar as oito cartas a contragosto. — E nós três sabemos que é seu jeito de pegar nas cartas e roubar igual quando “organizou” o dinheiro do Monopoly! — Minha mão atingindo a mesa ao depositar a carta é o suficiente para chamar a atenção dos dois e Tony rapidamente cobre minha mão com a sua, seguido de perto por Pepper um milésimo de segundo depois que acaba lhe condenando a precisar pegar uma outra carta da pilha. — !
— O jogo havia parado? — Faço questão de forçar a expressão mais inocente possível quando a gargalhada de meu pai quase me faz rir também e encolho os lábios para sustentar a farsa. — Ninguém disse nada, eu pensei que era pra seguirmos em frente, mãe.
Et tu, Brute? — Pepper empurra meu ombro com pouca força e eu lhe dou um sorriso. Ela balança a cabeça ao pegar a nona carta, erguendo os joelhos e começando a organizar suas cartas que já devem passar de duas dezenas neste ponto. Cada vez que chegamos perto de dizer “UNO”, Tony nos faz pegar mais. — Ainda não entendi o que nove tem a ver com pegar uma carta e não está nas regras oficiais. — Entorto a boca ao perceber como meu pai se apoia nos braços e se inclina para trás, olhando por cima do ombro dela. Definitivamente não iremos ganhar. Finjo não perceber as duas “4+” debaixo de seu pé. — Vou perguntar isso pro Peter, não faz o menor sentido!
— E bloquear os outros jogadores por três rodadas também não, mas quer refrescar pra mim como você ganhou na primeira partida, Potts? — Stark questiona ao espreguiçar os braços e consequentemente dar uma nova olhadela para as cartas que minha mãe organiza. Com a distração dos dois, aproveito para pegar dois amendoins em um potinho de vidro na mesa. — O que também me faz lembrar que: ou você as misturou muito mal ou estava roubando.
— Não tá na hora do meu remédio? — Indago quando Pepper parece prestes a agredi-lo.
— Não, Monstrinha. É só daqui há meia hora. — Tony descarta a dúvida e cutuca a noiva com o dedo, um sorrisinho cínico brincando no rosto. — Você está roubando, Madame Potts.
Devolvo minhas cartas para a pilha na mesa quando Pepper o atinge com uma almofada e decide que nunca mais teremos uma noite de jogos pois certas pessoas não sabem jogar limpo. Tony e eu nos entreolhamos antes de cair na gargalhada pois, para todos os efeitos, não vimos três cartas e duzentos dólares em dinheiro de Monopoly escondidos debaixo do tapete após minha mãe se levantar. Tony controla sua risada com um punhado de amendoins salgados e eu encosto a cabeça no sofá, um leve incômodo em meu pescoço que, mesmo assim, não desfaz meu sorriso por estarmos em casa. Não suportava mais ficar confinada no quarto de hospital, mesmo que minha perna esteja, enfim, curando no ritmo adequado para mim. As noites ainda são terrivelmente desconfortáveis por não poder mover um músculo sequer, mas consigo dormir melhor em meu quarto com os óleos de lavanda que Pepper coloca no travesseiro por recomendação do psicólogo. A Dra. Hall havia conversado com os meus pais enquanto eu ainda estava na enfermaria, avisando que estaria de volta em Nova Iorque dentro de duas semanas e poderíamos manter o mesmo regime de consultas que havíamos decidido antes, contudo, aumentando o número de sessões semanais para três ou quatro conforme fosse necessário.
E, pela primeira vez em minha vida, reconheço o quanto preciso conversar com ela. Após anos de longas e extenuantes tentativas suas para que eu fizesse o certo e utilizasse os medicamentos recomendados pelos médicos, enfim seguirei as recomendações da psicóloga. Ela havia passado pelas mesmas dificuldades com Bucky e meu pai, ambos teimosos demais para admitirem a necessidade do tratamento, o que consequentemente a preparou para lidar com minhas recusas. Faço a lista mental de tudo que precisarei lhe contar desde nossos últimos encontros, sentindo minha face se aquecer por saber que receberei uma repreensão sua. Hall, apesar de minha recusa em comparecer às nossas consultas semanais nos últimos meses, esteve no Complexo todas as quinta-feiras, sem exceção. E a lista cresce conforme lembro-me de tudo o que aconteceu.
Eu prendo a respiração por um instante ao pensar em Peter.
Por quase três meses, nós passamos quase todos os dias juntos, seja em Midtown, ou no Complexo treinando. É absurdo considerar que não o vejo há cinco dias ou ouvi o som de sua voz esse tempo todo. Meu coração também se aperta quando penso em MJ e nossa discussão, pela maneira em que a tratei da última vez que conversamos e como nem mesmo me dei o trabalho de tentar conversar com ela o dia inteiro. Então, minha mente me leva de volta a Peter e como ele tomou minhas dores em relação a nossa briga. Cruzo minhas mãos sobre o colo, tentando não pensar em Peter, porém é quase impossível não fazê-lo. É difícil me desvencilhar do sentimento em meu peito igual o que o seu sorriso enorme fez brotar enquanto pedia por um poster meu no Queens, ou na delicadeza com que me toca, e é particularmente difícil ignorar que sinto falta do som de sua voz, e da maneira que me chama de . Tento pensar no que deve estar fazendo agora e sei que está na reunião do Decatlo assim como eu deveria estar, preparando-se para as regionais em dois meses.
Também em alguns meses, acontecerá a Feira de Ciências e Engenharia de Nova Iorque, evento esse que o Professor Walsh está há semanas nos incitando a participar. Evito pensar nas palavras de Peter há alguns dias sobre o MIT, sobre a importância das cartas de recomendação e estar preparado para o crivo deles. Quando enumero as minhas conquistas acadêmicas, meu estômago se revira. Peter, ao contrário, já venceu inúmeras feiras de ciências, está há quatro anos no Decatlo e fez inúmeros trabalhos voluntários, além de clubes, a orquestra da escola e foi assistente de laboratório. Para meu bem, decido nem mesmo listar tudo o que MJ já fez ou faz. Não imagino um cenário sequer onde possa alcançá-los, principalmente pois nunca considerei uma faculdade. Nunca nem imaginei que um dia pisaria em uma escola ou teria a chance de escapar da HYDRA. Não fui tão direcionada como eles ou como o resto dos alunos de Midtown que matariam por uma vaga em Yale, MIT ou Harvard. Nem mesmo sei para onde quero ir.
Mas não é difícil decidir que MIT ou Harvard sejam as únicas escolhas possíveis.
Preciso de notas excelentes no SAT, apesar de meu GPA atual ser um dos mais altos de Midtown. Na última avaliação que fiz com Michele, minha média era 4.85 de 4.95, o que não é nada mal e não afeta negativamente o crivo do MIT. Notas não são um problema, nunca foram e é possível que jamais serão algo com que devo me preocupar. No entanto, ao considerar as turmas aplicadas, apenas estou em uma, o que começa a complicar a situação. Ned e MJ fazem História Americana Aplicada e Teoria da Música, que soa insuportável para mim, uma vez que diferente dos dois, não faço parte da Orquestra da Escola. Ainda não tivemos a oportunidade de fazer as inscrições para turmas aplicadas deste ano, então faço uma nota mental para tentar uma vaga na classe de estatística. Possivelmente precisarei de cinco ou seis classes aplicadas até o último ano.
— Está sentindo dor? — Abro meus olhos para meu pai, que mistura as cartas sobre a mesa e olha-me através dos óculos de lentes com brilho ciano, indicando que ele o usa para avaliar minha saúde apesar da pergunta. Balanço a cabeça devagar, segurando uma almofada no colo ao me acomodar melhor. — Que cara é essa, então?
— Estou pensando na faculdade. — Confesso com um suspiro. — Se vou passar.
— Que besteira, . — A dúvida não o agrada e Tony faz uma careta chateada ao empilhar as cartas, me olhando como se eu fosse uma louca. — É óbvio que vai passar. — Balança a cabeça, agindo como se eu tivesse lhe dito que maçãs são azuis. Eu molho os lábios, sentindo o sabor salgado do amendoim cobrir minha língua enquanto lhe observo guardar as cartas na caixa e a enfiar na gaveta da mesa de centro. Ainda que Tony esteja seguro com minha capacidade de entrar em uma faculdade, sua confiança não consegue me convencer. — E, não me leve a mal, mas já sabe para qual faculdade você quer ir? — Ele cruza as mãos sobre a mesa, cotovelos apoiados na madeira e olhos fixos em mim. Não é um interrogatório, mas uma nivelação. Tony soa quase satisfeito com o interesse que demonstro. — Ou o que pretende cursar?
— MIT. — A resposta é fraca e um reflexo de minha confiança. Vejo nos olhos de meu pai a sua reação se transformar de uma prévia satisfação com meu interesse de entrar em uma faculdade para um aquecer orgulhoso com a escolha. O Instituto de Tecnologia de Massachusetts é a sua Alma mater, assim como foi a de seu pai antes dele. — Não sei qual curso, ainda. — Engulo em seco quando Pepper retorna para a sala, um pequeno prato com frutas e torradas sendo depositado diante de mim na mesa. — Obrigada.
— O Peter e a MJ irão para o MIT, então? — Pepper questiona, um sorriso brincando em seus lábios ao sentar-se conosco e colocar um garfinho em meu prato. Assim que nossos olhares se cruzam, percebo que não há nada em sua expressão além de ternura.
— MJ quer cursar Direito em Harvard, mas os pais querem que estude na Columbia. — Seleciono um cubo de melão com o garfo ao balançar a cabeça. — Eles insistem que ela fique aqui. — Levo a fruta para a boca, sem ter me cansado de comê-la, mesmo que seja uma das poucas frutas que comi nos últimos dias. Após uma vida na HYDRA, não considero que um dia me cansarei de sabor algum. — Os pais do Peter eram do MIT, então ele é um Legado. Não é como se “aceitassem” um termo como esse, mas a Michelle disse que não deixa de importar no processo de análise curricular.
— O MIT realmente jura não considerar Legados e relações familiares, mas não significa que não tenha um peso absurdo, principalmente depois da aprovação. — Tony se aproxima mais, um balançar da cabeça indicando que é algo a ser considerado. — Professores costumam escolher alunos com alto potencial para programas de extensão e pesquisa, ainda que o alto potencial seja financeiro. A iniciação científica tem custos altíssimos, ainda mais em uma área prática, como a que o MIT foca. — Pepper respira fundo e empurra uma torrada para mim, ainda que atenta para a explicação alheia. — Exceto, se você quiser se focar em áreas teóricas e me matar de desgosto. — O sorriso de meu pai é tão afetuoso quanto o de Pepper ao lhe dar um tapinha no braço. — O que exatamente te preocupa?
Eu respiro fundo, segurando minha fatia de torrada com ambas as mãos. Muita coisa.
— Às vezes sinto que estou cinco passos atrás de todo mundo em Midtown. — Suspiro e observo como Tony concorda devagar, e Pepper apoia as mãos na mesa, me observando com cuidado. — E entendo que estou em desvantagem. Nunca passou pela minha cabeça a ideia de que um dia eu teria a chance de ingressar em uma faculdade, ou estaria em uma escola. Mas, graças a vocês dois me dando o apoio necessário, aconteceu o inesperado. — Passo o dedo na torrada, provando o mel que sei ser apenas para adoçar o terrível pão integral. — As notas não são um problema. Eu costumo fazer as provas do SAT com a MJ toda terça-feira à tarde e nas somas sempre acabo entre 1590 e 1600 pontos no total. — Mordo a torrada e percebo como o sorriso orgulhoso de Tony se alarga. — As atividades extracurriculares são o que mais tem me preocupado recentemente. Só estou em uma turma aplicada e o Decatlo.
, você acabou de iniciar o segundo ano, é uma junior, não uma senior. Esse é o ano ideal pra ingressar nas turmas aplicadas e melhorar o currículo. — Pepper incentiva. — Fora que nós não podemos negar que você, infelizmente, começou tarde. É claro! Você passou por tanta coisa, … Mas se quer entrar em uma faculdade como o MIT, precisa começar a juntar as pontas soltas. — Concordo com a cabeça, a tensão que sentia se dissipando ao reconhecer que compreendem que minhas dificuldades não são fruto de falta de esforço, só um reflexo de condições externas. — E você é tão inteligente, também!
— Inteligência não é o único ponto que o MIT vai cobrar, Pep — Meu pai intervém em um desviar longe de maldoso, apenas atento para todas as barreiras que devem ser ultrapassadas. — Se notas não são um problema, precisa usar isso ao seu favor. — Me indica. — Comece a participar dos clubes de extensão da escola, se matricule pra, pelo menos, umas cinco turmas aplicadas… E não me diga que não vê a May como uma chance enorme de conseguir trabalhos voluntários e horas extracurriculares — Pepper bate no braço do noivo algumas vezes, mas não de maneira a lhe repreender, mas lhd incentivar. Ingressar em uma das ações beneficentes da organização de May é a opção mais fácil atualmente. — Fora que você não precisa só participar de atividades dentro da escola para elas contarem.
— Como ficou a situação do Rhodey? — Pepper questiona, erguendo as mangas. — A Dra. Marjorie Cross da Columbia que estava ajudando você com o exoesqueleto? Sei que o Adrian Malick fingiu ser o irmão falecido dela, mas ela é uma médica genial. Será que não poderia ajudar com uma carta de recomendação?
— Um exoesqueleto totalmente funcional é uma carta de recomendação por si só. — Tony dá de ombros com um punhado de amendoins a caminho de sua boca. — Você soube sobre a Feira de Engenharia e Ciências em março? — Assinto devagar. — Monte outro protótipo do esqueleto, igual ao que repassou para a Columbia. Faça um artigo e convide a Cross para dar um parecer técnico sobre ele, igual o que ela fez pro resto dos neurocientistas e cirurgiões no caso do Rhodes.
— E aquilo que você estava falando com a Dra. Palmer sobre o seu uniforme, ? — É a vez de Pepper intervir e ela dá um sorriso satisfeito quando Tony a olha confuso. — A Dra. Palmer se surpreendeu muito com ela, sabia? — Enfio outro cubo de melão na boca, meu rosto se aquecendo. — A perguntou se havia alguma possibilidade do ouro no uniforme dela funcionar para estancar o sangue. E falou também um monte sobre cascata de coagulação e um outro monte de coisa sobre as nanopartículas de ouro e trombose e coagulação.
— O MIT não fez uma pesquisa falida sobre isso uns doze anos atrás? — Tony questiona e eu assinto, o calor em meu rosto e pescoço se intensificando.
— E acharam que havia mais efeitos pró-coagulantes do que anticoagulantes, porém, e com muitas reservas, eu acho que não é tão impossível determinar onde esses efeitos anticoagulantes estão falhando. — Justifico as reservas com um dar de ombros. — E, na época, a nanoengenharia não tinha evoluído ao ponto de sintetizar nanopartículas de organização controlada para ativar a proteína certa. Meu uniforme é prova que já chegamos nesse nível.
Meu pai me observa por alguns instantes antes de trocar um olhar secreto com Pepper.
— Vou reduzir uma semana do seu castigo se usar o seu laboratório e o tempo livre para começar a escrever um artigo para a feira e pesquisar sobre esse negócio de coagulação. — Minha mãe apresenta sua proposta.
— E se me entregar o artigo em uma formatação decente até o dia… — Tony massageia o seu pescoço com uma careta. — Se me entregar um pré-artigo decente até sexta, o seu castigo vai ser diminuído em duas semanas.
Tiro outra mordida de minha torrada, balançando a cabeça.
— Entrego um pré-artigo até a quinta-feira, mas meu castigo permanece o mesmo. — As expressões de meus pais parecem falhar com minha proposta e eu engulo a comida antes de prosseguir. — Pisei na bola com vocês. Não quero esquecer disso, então o castigo fica igual exceto o uso do laboratório.
— Tem certeza? — Para minha surpresa, é Tony que cobra a confirmação que não hesito em lhe dar. Pepper suspira com meu assentir, mas me imita. — Pelo menos sabemos que os remédios estão funcionando, né? — Ele provoca a noiva com um sorrisinho. — Ela já está até usando a cabeça.


*


Em meu sexto dia trancada no Complexo, começo a escrever meu artigo sobre Rhodes.
Uso tudo o que aprendi em Midtown sobre artigos científicos em uma das matérias eletivas que MJ me recomendou ingressar bem no começo e hoje faz mais sentido do que nunca. Faço alguns parágrafos sobre o potencial de tecnologias assistivas na reabilitação de pacientes paraplégicos antes de pedir que FRIDAY recupere dos arquivos o protótipo que fiz há quase um ano, o mantendo da mesma maneira como o criei e entreguei aos neurocientistas do Hospital Universitário da Columbia. É um trabalho bruto, sem o refinamento como o que me foi devolvido e sem a sofisticação que o atual exoesqueleto de Rhodey tem, mas o ideal para ser apresentado para a feira. Não iniciar a pesquisa do zero como costumo fazer nos laboratórios de Midtown é um ponto alto, afinal, a seleção de materiais já foi previamente feita e eu sei exatamente o que funciona e como o projeto mecânico será estruturado.
Após sete horas, as inconsistências em meu projeto inicial se tornam mais óbvias e noto como Midtown e as experiências que tive em sala de aula são divisores de água para que melhorias no exoesqueleto sejam óbvias para olhos mais atentos, como a substituição de atuadores hidráulicos por elétricos assim como foi feito no projeto final. Estou começando a elaboração dos desenhos técnicos e com o notebook desligado (não aguento mais ver tantas letras e os erros ortográficos já haviam se multiplicado após tanto tempo escrevendo) quando minha mãe me visita no laboratório. Solto a caneta e estico minhas costas quando a vejo entrar, vestindo jeans e uma camisa social, sem sapatos e com o cabelo preso. Tony havia se despedido pela manhã junto a ela, em razão de uma reunião com Rhodes e o Presidente Ellis em Washington, assim como meu temido Thaddeus Ross.
— Como o artigo está saindo? — Ela questiona ao sentar-se na cadeira diante de mim.
— Escrevi “associação” como “assossiação”, então decidi dar uma pausa na escrita e não fritar todos os meus neurônios pois posso precisar depois. — Meu nariz franze com o erro ortográfico, mesmo que Pepper ria de minha confusão. — Estou fazendo o desenho técnico, mas só refinando tudo que vou manter do protótipo original — Viro o desenho na mesa digitalizadora para ela, mostrando-lhe a haste de ligação que estou corrigindo. — As hastes antigas, essa parte aqui — Circulo o desenho. — Ela liga as articulações. Mas, no desenho original — Também indico o modelo que uso. — Usei hastes idênticas para a ligação da coxa e da perna e eles não tinham ajuste, então vou refazer com ajuste e tamanhos diferentes, assim como ligamentos de tamanhos diferentes. Assim, se um dia esses meus exoesqueletos forem parar em clínicas de reabilitação, eles vão poder ser ajustados para pessoas com massas corporais e estaturas diferentes.
— É muito lindo ver o que o carinho que sente pelo Rhodey pode fazer, . — Pepp sorri para mim, observando primeiramente o desenho e então a mim. — Algo que criou para facilitar a vida dele muito possivelmente vai ajudar muitas pessoas na mesma situação. Tudo isso porque se colocou para ajudar alguém que ama. — Abaixo o rosto, envergonhada que pense nisto agora enquanto trabalho em maneiras de melhorar o exoesqueleto desenvolvido para Rhodey. — Você pode não ter o sangue do seu pai, mas ninguém pode negar que é igualzinha a ele. De tantos anos conhecendo o Tony, não tenho dúvidas que isso foi motivo de muito orgulho pra ele, assim como foi pra mim.
— Acho que somente por ter ajudado o Rhodes eu já estou satisfeita. — Mudo um pouco de tema, sentindo minhas orelhas se aquecerem. Fico nervosa em fazer qualquer coisa que seja com alguém me olhando, então finjo voltar a analisar o meu desenho. FRIDAY pode refinar os rascunhos depois. — Até mesmo se a banca avaliativa do MIT não gostar, já valeu a pena para mim. Para nós, na verdade.
— E de onde essa ansiedade toda com faculdade veio? — É uma pergunta justificável e, ainda assim, me vejo incerta quanto a resposta. — Teve feira-da-carreira na escola ou os seus amigos que estão comentando mais sobre isso?
— O Peter estava comentando sobre o MIT na última vez que nos vimos, sabe? — Passo a mão pelo rosto, lembrando-me de nossa conversa e percebendo como minha saudade dele aumentou em tão pouco tempo. Pepper solta um “Ah…” compreensivo e eu aperto os lábios. — Sobre a seleção e toda a questão da taxa de aceitação, as pré-inscrições e cartas de recomendação. Mas, fora isso, acho que a escola inteira começou a se preocupar com isso desde o final do ano passado. Estamos indo pro segundo ano, então acho que faz sentido o pânico coletivo.
— Nós temos um prédio em Boston, sabia? — Ela sorri para mim. — Era base de operações da SHIELD há alguns anos, mas sempre pertenceu à Família Stark. — Não consigo relevar como Pepper não hesita em considerar-me uma Stark, usando o termo “nós” ao se dirigir à família. — Talvez, se a minha filha decidisse me contar o que está realmente acontecendo entre ela e um tal Peter, eu até podia dizer que seria uma ótima ideia que os dois fossem morar lá quando passassem pro MIT daqui há dois anos… — Ela me dá um sorrisinho cínico antes de tomar um outro gole de sua água, forçando um sorriso meu a se abrir.
Então, sentindo que todo o sangue do meu corpo está aquecendo as minhas bochechas, eu conto tudo para ela como tenho desejado fazer há semanas. Perpasso o que aconteceu na noite do acidente, sobre o beijo e as confissões, assim como Peter e eu nos desencontramos e interpretamos mal na manhã seguinte. Conto sobre ter decidido sair com Harry devido a forma que ele me confortou, e não por ter e imaginar poder ter algum sentimento por ele enquanto ainda estava com meu coração partido devido ao desencontro que Peter e eu tivemos. Também retifico tudo o que havia levado a Pepp nos flagrar na varanda, principalmente sobre eu não ter conseguido beijar Harry e o medo de Peter de que eu houvesse o feito.
— Mas vocês conversaram direitinho no sábado, certo? — Ela questiona para se situar na confusão que fizemos.
— Exato. — Confirmo que sim, satisfeita com a sua expressão aliviada. — E eu conversei com o Harry, também. A situação vai ficar um tanto complicada esses tempos, mas eu estou feliz com o Peter. — Meu peito se enche de carinho ao pensar em Peter, a minha memória favorita da última vez que o vi sendo enquanto comíamos os sanduíches que ele preparou e sua mão estava apoiada em meu joelho. — Ele disse ter esperado por isso há certo tempo e acho que também estive. — Confesso com um encolher de ombros, sentindo o calor voltar a subir para meu rosto. As palavras dele na cozinha ainda estão cravadas em minha mente. A forma que sussurrou ter “esperado por mim por tanto tempo” não falha em atiçar as borboletas em minha barriga. — Só acho não tinha entendido o que estava sentindo.
— No começo é realmente difícil saber o que é esse sentimento. Ainda mais por essa ser a sua primeira vez ao se interessar por um rapaz e vocês dois já tendo sido amigos antes. — Pepper me conforta, a mão alcançando a minha sobre a mesa ao apertar meus dedos. Ela e Tony também foram e são amigos. Ele comentou algumas vezes sobre como Pepper era a única coisa constante em sua vida, com tantas pessoas apenas desejando sugar mais e mais de tudo o que tinha, ela era a única que nunca o tratou como mercadoria. Reconheço como ela entende bem disso, também. — Porém, lembrando que vocês eram amigos, é ridículo que a má-comunicação tenha sido responsável por esse circo todo.
— Tem isso também… — Com orgulho me recordo de como conversamos abertamente na noite em que colocamos as cartas na mesa, seja da forma que assumi não ter ideia para onde nós iríamos após o beijo na varanda, ou da maneira que Peter acolheu meus medos e expôs os seus. — Eu tenho somente o Peter e a MJ como amigos, sabe? Eu e o Ned mal conversamos, mas somos colegas e ele é um bom amigo pro Peter e está sempre me fazendo rir. — Não quero descartar Ned da lista, porém, o único contato que temos é quando estamos junto a Peter e MJ, o que é quase sempre, logo, não tivemos chances de nos aproximarmos tanto. Pensar em MJ é angustiante. — E como a MJ não sabe de tudo; como o que ela ainda sabe sobre mim está revestido em uma grande mentira, sinto que o Peter era o meu único amigo verdadeiro. Sabe? — Pepper assente, apertando a boca ainda que o seu sorriso não se oculte por muito tempo. — E agora eu o perdi.
— Vou deixar você perceber sozinha que saiu no lucro, ok? — Balanço a cabeça devido a sua risada que não é humilhante, mas sim cheia de zelo. — Mas, por falar no Peter, eu gostei da casa dos Parker, sabia? Tem um ar de... — Pepper respira fundo em busca das palavras corretas. — Lar. — Apesar do tempo que demorou para indicar uma palavra ideal, ainda me surpreendo um pouco com a que escolhe. — Sinto que o Complexo parece tanto um catálogo de loja de decoração que esquecemos de o tornar mais aconchegante.
Ao entender o seu raciocínio, não posso evitar assentir.
— Eu também gosto do Queens. É um dos poucos lugares onde me sinto segura. — Lhe confesso com um tanto de timidez. — Sempre que vou pra lá, eu acabo cochilando na cama do Peter. — “A cama é tão boa assim?” Minha mãe indaga ao ficar de pé, erguendo mais as mangas da blusa. — Aham. — Molho os lábios e acabo sorrindo também. Não demorei muito para notar que o colchão dele é bem mais macio que o meu. Imagino que seja o momento de trocar o meu, afinal, de dormir no chão pois a cama era muito macia, já até mesmo aceitei um colchão “duro” segundo Tony. Talvez esteja na hora de escolher um mais macio. — É muito macia e é o Peter que lava a roupa de cama, então ele coloca amaciante suficiente pra eu sentir que estou dormindo num jardim.
— A pergunta foi retórica. — Pepp me avisa por cima do ombro ao caminhar na direção da mesa na extremidade do laboratório. Abaixo a cabeça para meus desenhos ao notar que realmente era uma provocação. Ela se aproxima da janela, ignorando a mesa de escritório intacta que me sinto uma idiota ao imaginar sentar-me. — Foi mais no sentido de se sentir tão segura ao lado do Peter que abaixa a guarda ao ponto de dormir no meio do dia. — Ela segura as mãos atrás da costa, observando o jardim coberto de neve apesar de ser meio-dia e o sol brilhar um pouco no gelo. — Lembro que você mal dormia durante a noite assim que chegou, ou até começar a frequentar Midtown. Temos muito o que agradecer ao Peter, muito mais que havia imaginado antes. — Minha mãe apoia-se na mesa ao se virar para mim, um sorriso genuíno em seu rosto ao olhar-me com claro afeto. Saber que Pepper gosta de Peter e está feliz por nós, apesar de todas as falhas, é uma sensação de euforia imaculada. — Fico feliz que tenha encontrado descanso nele.
— Eu também. — Sussurro de volta, a saudade crescendo em meu peito.
Nós subimos para a cozinha não muito depois, onde sacolas de comida nos aguardam. É do restaurante do Baccarat Hotel, um dos meus restaurantes favoritos e o chef é um amigo de Tony que está sempre disposto a vagar uma mesa para nós e servir-nos ele mesmo. Pepper emprata o filé e a marmelada de cebola, assim como batatas ao murro e legumes que não me lembro de provar em outras visitas ao Baccarat. Ela também me entrega uma lata onde, sem dúvida alguma, há o mais saboroso chá gelado de Nova Iorque que é do The Blue Box. Comemos na cozinha, com minha perna e a sua apoiada em um banco livre, uma vez que ela me mostra as bolhas responsáveis por ter tirado os saltos.
— Você precisa cortar o cabelo, meu bem. — A sua indicação me surpreende em meio a uma garfada do filé suculento, diferente do seu que é bem-passado pois detesta “sangue na comida”. “Está tão longo assim?” Questiono com a boca um pouco cheia e recebo um olhar sério em retorno. O chá gelado me ajuda a engolir a comida e eu repito a pergunta com um sorrisinho amarelo. Pepp dá de ombros após um suspiro e corta um pedaço de sua carne borrachuda ao concordar. — Sei que não corta desde que ele cresceu de volta — Ela se refere aos meus primeiros meses na companhia dos Vingadores após ser resgatada duas semanas depois de um oficial da HYDRA raspar minha cabeça. — Mas ele está começando a ficar sem forma e como você não gosta de modelar ele, precisamos pensar em um corte mais moderninho.
— O Peter está constantemente tirando ele do meu rosto esses dias. — Comento após um outro gole do chá de pêssego com abacaxi. — Da última vez que tentei usar a chapinha me queimei e o Tony pensou que havia sido um garoto.
Pepper sorri com a lembrança ao limpar a boca com o guardanapo.
— Nós podemos chamar as meninas do salão que eu gosto, o que acha? — A proposta é o reflexo de sua tentativa doce de me ajudar, mas só consigo pensar em como terei de lidar com pessoas segurando tesouras afiadas próximas ao meu rosto. — Umas camadas longas para não perder muito o volume, mas deixar o formato mais estreito — Ela indica com as mãos, animada com a ideia. — Porém eu não quero que tirem muito o volume, o seu rosto fica muito mais destacado com o volume. Igual ao da Angelina Jolie em Sr. & Sra. Smith. — A comparação me faz rir, ainda mais pelo bico exagerado de Pepper, mas acabo assentindo pois não tenho coragem de recusar algo que vai a deixar tão satisfeita. E a Angelina Jolie não soa nada mal. — Um corte também vai cair bem. — Ela me analisa, uma mão vindo até mim para as pontas de seus dedos erguem o meu rosto. Seu sorriso é afetuoso. — Vai fazer dezessete anos este ano, uma aparência mais madura vai cair muito bem. Não é mais uma menininha assustada se já está até namorando.
Afasto meus lábios, sentindo o típico aquecer pinicar meu rosto.
— O Peter não fez um pedido. — Deixo escapar, mesmo que não consiga imaginar como a minha mente traiçoeira reagirá com a informação que externei para Pepper. Nem mesmo imagino como iria reagir se ele o fizesse.
— Ele pode ficar com outras garotas? — O termo e pergunta erguida por ela me deixam doente.
— Essa pergunta revirou o meu estômago. — Suspiro ao cutucar a batata ao murro.
— Você pode ficar com outros rapazes? — A nova pergunta para análise é tão revoltante e enjoativa como a primeira, então opto por somente negar com a cabeça e bufar quando ela ri. — Então estão namorando. Seja prática. — Ela revira os olhos ao remover o celular do bolso. — Vou ligar para a Jen Atkin vir cortar o seu cabelo.


*


Na manhã que completo uma semana de castigo no Complexo, uso os produtos da marca de Jen Atkin para manter o volume que meu cabelo teve no dia da sua visita. Surpreendo-me e a Pepper em como o corte de cabelo ficou bom, mesmo que grande parte tenha sido cortada e a pessoa que me encara no reflexo do espelho ainda pareça uma estranha. Jen sorria como o Coringa enquanto conversava com Pepper e buscava meu favoritismo com elogios direcionados a mim, tudo de maneira a continuar a sendo convidada para cuidar de nossos cabelos, mesmo com o termo de confidencialidade onde concordou legalmente em não divulgar que está trabalhando para a Pepper, com a possibilidade de multa no valor de dez milhões de dólares no caso de quebra. Ainda assim, tive de me distrair muito para não perder a cabeça pela maneira que ela e seus funcionários nos viam como potes de ouro. “Um novo ramo, no mínimo” ela computava ao conversar com Pepper enquanto uma moça removia minhas cutículas e outra massageava meu cabelo com óleos “a era das filhas de grandes hoteleiros chegou ao fim” ao lembrar-me de Nick Hilton, seguro um sorriso “talvez o novo posto de filhinha de papai mimada pertença às filhas de Vingadores”.
— Ergui o rosto para ela enquanto sentou-se na cadeira perto da minha. Seu sorriso foi tão forçado ao ponto de ser engraçado, assim como a postura que tentava ser despojada e o mais próximo possível de amigável que um interesseiro consegue fingir. — Imagino que vá assistir aos desfiles da Semana da Moda de Nova Iorque em fevereiro, certo? — Não respondi, apenas lhe dei um sorriso apesar do desconforto em minhas unhas. — Estarei no backstage da Carolina Herrera e se você se interessar, tenho certeza de que o Wes Gordon vai ficar ansioso para conhecê-la. — Ainda sem se dar o trabalho de aguardar uma resposta, Jen prosseguiu enquanto Pepper bebia um pouco de água, piscando para mim. — Spoilers de lado, ele está com a coleção nova lotada de vestidos floridos em fundo escuro assim como o seu — Indicou o meu vestido, sorrindo satisfeita. — Sei que vai amar a coleção!
— A diz que não tem muito interesse em moda, mas tem alguns modelos assinados pelo Gordon, Jen… — Pepper comentou, aproximando-se para analisar o trabalho em minhas unhas.
— Realmente não sou muito atraída por moda, mas da última vez que fui às compras, foi Alexander McQueen quem saiu a frente. — Suspirei quando a mulher que cuidava do meu cabelo começou a massagear minha cabeça. — Porém, muito obrigada pelo convite, Srta. Atkin.
— Claro! — Seu sorriso ficou um pouco mais afetado. “Mimadinha ingrata” ela pensou. — Sempre que precisar pode entrar em contato. Também trabalhei com as modelos da Sarah Burton por muitos anos, então se precisar de uma peça exclusiva… — Ela somente se satisfez quando lhe dei um sorriso em que forcei um ar de agrado. — Srta. Potts, como estão os preparativos do casamento da década?

Ao sair do meu quarto quase às dez da manhã após algumas horas escrevendo em minha cama, me arrisco a descer as escadas em vez de usar o elevador como fiz nos últimos dias. Os meus passos ainda são lentos e calculados, porém, é apenas medo pois não sinto dor ou coisa alguma além da fricção do vestido de verão da Zimmerman e o curativo que fiz antes de descer, sem qualquer sinal das dores terríveis que sentia uma semana atrás. Estou segurando-me firmemente no corrimão e em uma cartela de antidepressivos, atenta para cada passo até ouvir uma movimentação no andar acima e o som de passos corridos na escadaria até sentir a mão de meu pai ao redor de meu braço e apenas ter de virar um pouco meu rosto para dar de cara com a careta atônita dele.
— Qual a dificuldade de chamar o elevador? — Resmunga ao passar um braço por minha cintura e descer um degrau a mais até estar na minha frente. Ele segura a minha mão que está com o amontoado de remédios, ainda insistindo em ajudar-me a descer mesmo que não seja necessário.
— Não estou mais sentindo dor nenhuma — Explico-me ao apoiar-me no corrimão ainda, um sorriso ameaçando me escapar. Após duas semanas com constantes pontadas afiadas de dor, não é fácil prender um sorriso de alívio. — Nem ao trocar o curativo. — Tony me olha e, por um momento, entendo o motivo de olhar no fundo de meus olhos como garantia. Não sou merecedora de confiança e tanto crédito depois de minhas omissões. — A pele ao redor não está mais cianótica e eu já posso ver que o hematoma está ficando mais amarelado, o que é bom.
O alívio de seu exalar é expressivo e eu dou mais um passo.
— Que bom. — É uma reação mínima para meus avanços, contudo, eu não o culpo e ela é significativa apesar de como pode soar. Tony nunca foi um para reações exageradas, sempre contido com um sorriso verdadeiro e piadas. Agora, a maneira que respira e assente devagar ao assimilar meu estado atual e recuperação ágil, é reflexo de como o alívio recobre. — Que bom, filha.
O choque me impede de o acompanhar nos dois degraus que desce.
— Não me chamava de filha desde que contei a verdade.
Ele se vira para mim de novo com o prévio reflexo de alívio no seu rosto sucumbindo para uma expressão de reconhecimento ao olhar para os meus olhos. Tony Stark, com toda sua arrogância e dificuldades em se expressar, é o reflexo das partes em mim que são difíceis de manter sob controle. Nos últimos tempos, tenho percebido mais e mais de sua personalidade em mim e não sei discernir se é algo que me deixa feliz ou temerosa.
— Não importa quanta besteira você faça, , ainda vai ser a minha filha — Mais uma vez, não é uma fala cheia de afeto na sua forma de se expressar, com um apertar rabugento da boca de Tony, mas seus olhos não mentiam no mísero segundo que permaneceram direcionados para o meu rosto antes que ele os revirasse. — Não é porque não estou gritando isso para os quatro ventos que você deixou de ser a minha prioridade. — Nunca acostumado a manter-se perto ou demonstrar-se muito apegado após falas semelhantes, principalmente ao considerarmos a situação em que estamos, ele indica com um puxar gentil em minha mão que devo lhe seguir. Com um assentir, eu vou. — Você só tá se saindo muito mais parecida comigo do que eu esperava e eu tô tentando entender como a minha mãe sobreviveu à minha adolescência.
— É meu maior exemplo — Minha voz é suave como seu toque que me ajuda a descer as escadas até chegar à sala e com minha confissão, que nunca foi um segredo, sinto seu aperto nos meus dedos. — Fico feliz por estar parecida com você, pai.
Me surpreendo com a forma que decide segurar minha mão com as suas, mesmo a escolhida ser aquela que segura os remédios. Papai me olha por um momento, um sorriso lutando ferozmente para ser contido pelo franzir de seus lábios quando aperta minha destra outra vez.
— E eu fazia piada pelo meu pai estar com o cabelo todo branco aos quarenta…
O seu sorriso incrédulo me faz rir também. No mural de Midtown, Howard tem cabelos brancos e uma carranca, algo que apenas vi refletido em seu filho nos últimos dias. E, apesar de já ter alguns fios grisalhos perto de suas orelhas e no topete, Tony não parece ser muito interessado em envelhecer como o pai; meu avô. Estou tentando superar outra vez o fato de ser neta de Howard Stark, mas o som do celular de Tony tocando me distrai, afinal, são pouquíssimos aqueles que merecem algo além de um vibrar de seu telefone, segundo ele. Seu rosto se contrai em confusão assim como o meu deve estar, mas então ele revira os olhos com toda a força possível quando remove o telefone do bolso de seu tracksuit. Me apoio no corrimão, mesmo já estando no último degrau da escada, ciente que há uma altíssima possibilidade de ser Hill ou o próprio Rhodes com mais informações sobre a prisão de Adrian Malick, informações essas que nunca chegaram aos meus ouvidos apesar de tudo.
Apenas sei que Adrian Malick é um ex-piloto de guerra da Marinha, condecorado por feitos heróicos a favor da “Guerra ao Terrorismo” no Oriente e que hoje, assim como a sua ligação preocupante com organizações terroristas "não identificadas" pelo Governo, é considerado o novo Inimígo Público Nº 01 dos Estados Unidos. A família de Malick, que Tony mencionou por cima nas vezes que seu nome verdadeiro (não o personagem que teve inspiração no falecido Dr. Alexander Cross, irmão de Marjorie Cross) era levantado, é chefiada por Gideon Malick, membro do Conselho Mundial de Segurança. A sua posição de destaque lhe colocou no caminho do próprio Nick Fury, seja desde a criação dos Vingadores quanto na Batalha de Nova Iorque. Gideon também fez parte do corpo de políticos que votou a favor e defendeu com unhas e dentes os Acordos de Sokovia. Segundo as últimas notícias, Gideon Malick teve seus direitos diplomáticos revogados, mas isso não é empecilho.
A exposição de farsas civis nunca foi problemática para a HYDRA.
— No episódio de hoje da mini-série: Ligações Diárias do Peter…— O cantarolar de Tony no celular faz o meu coração saltar. — Tá atrás da , né, garoto? — O sorriso divertido de Tony é enorme e é uma provocação maior ainda. Há quanto tempo não ouço a voz de Peter e quando foi a última vez que passei tantos dias sem lhe ver? Meu pai está apoiando-se com uma expressão satisfeita no outro corrimão enquanto considero roubar o seu celular e fugir, porém, a minha perna ainda não está curada e temo que ele me alcance rápido demais. — Lembra na manhã de quarta-feira que ela queria conversar com a gente? — Aperto a boca ao engolir em seco, decidindo em dar um único passo na direção de meu pai para tentar, somente tentar, ouvir a voz de Peter. A minha tentativa é contida pelo indicador que Tony pressiona em minha testa, mantendo-me, pelo menos, uns dois passos de distância. Fecho os olhos com o claro aviso de que ele não me dará uma folga. — Isso aí… Nós conversamos e a sua namorada doida está de castigo.
Sou eu quem decido, após o termo utilizado para mencionarem a mim, que a distância é a melhor ideia. Faço isso dando alguns passos para trás e recebendo um arregalar de olhos sarcástico de Tony enquanto meu rosto parece ter sido ateado em chamas. O som do elevador abrindo é o que me distrai minimamente. Quando Pepper joga os seus saltos no sofá junto com a bolsa, Tony se vira para ela com um sorriso gigante, o que a faz erguer suas sobrancelhas em questionamento. Outra vez, pondero roubar o celular dele e só o jogar pela janela.
— É, né, Parker? — Apesar de seu sorriso ter diminuído, meu pai não parece insatisfeito, apenas entretido. Há afeto na sua linguagem corporal ao falar com Peter. — Não… Não se preocupa que eu tô ligado que você não se deu o trabalho de vir falar comigo depois daquela reunião nossa. — A mão de Pepper em meu ombro é o que me distrai minimamente da referida reunião. Molho os lábios, a confusão da conversa sendo demais. — Eu sei, catarrento, relaxa. — “Tony” minha mãe reprova com o braço ao redor de mim e usando o outro para dar um tapa no ombro alheio. — , quer dar um oi pro Peter?
— Oi, Pete. — Levo a mão para meu rosto, coçando os olhos para evitar perceberem como meu rosto deve estar ruborizado.
— Ele não vai... — Pepper sussurra preocupada.
— Tá. Ele ouviu. — Ouço o “Uau” de Pepp quando seu noivo ergue um “joinha” para nós. É a minha vez de sorrir um pouco. — Não ouviu, Piti? — Tony leva outro tapa de Pepper, ainda que ela esteja rindo um pouco ao afagar meu braço e ele sorri satisfeito também. — Tá, semana que vem você se vira com ela. Dentro da escola o problema é seu. — Suspiro quando Pepper me vira na direção da cozinha, uma vez que já deve passar do meio-dia e ela se recusa a arruinar o planejamento alimentar que segui durante a internação. — Como está a May? — Papai questiona enquanto me sento no banco da ilha. — Vocês estão precisando de alguma coisa?
A conversa continua na sala de estar durante meu almoço. Os vegetais pré-cozidos ficam frios antes que Tony se junte a nós, mesmo Pepper o chamando duas vezes, então roubo as cenouras e o purê de couve-flor que deveria ser dele. Antes dos funcionários do Complexo serem despachados, a cozinheira, que eu raramente via exceto pela manhã e nunca na nossa cozinha, deixou várias refeições prontas, incluindo este almoço. Ainda é estranho almoçar sem fazer contato visual com MJ, seu rosto sendo escondido por um livros, sem ouvir Peter e Ned conversando sobre os filmes ou jogos favoritos da semana ou suas aulas juntos, e até me pego sentindo falta do vozerio na cafeteria. Eu raramente estou entretida demais com as conversas, sempre assistindo algo no YouTube ou Netflix, mas ainda assim sinto falta de pelo menos estarmos todos juntos.
— Tô indo na casa do Peter. — O aviso é dado por Tony com uma batidinha na mesa.
— Seria estupidez imaginar que você gostaria de me levar junto? — Indago, esperançosa.
— Seria muita cara de pau, isso sim. — Ele provoca ao roubar um brócolis de meu prato. Pepper faz uma careta, apontando para a refeição dele como quem diz para não roubar comida alheia. — Você ainda tá de castigo até nós decidirmos que aprendeu a lição e precisa ficar em repouso.
— Nisso eu concordo. — Pepper aponta para o noivo com um garfo, mesmo que volte a ler algo em seu StarkPad. Através da logo inconfundível da Stark Industries, imagino ainda ser trabalho. Ela sempre almoça em seu escritório nos dias de semana, no entanto, desde meu acidente e o afastar dos funcionários para a Torre Stark, Pepper decidiu utilizar o seu escritório no prédio da assessoria do Complexo. Não consigo evitar sentir que estou lhe atrapalhando como nunca. — O que está indo fazer lá?
— A May vai usar o carro da ONG agora que o antigo tá enferrujando no Hudson — Me entretenho com uma rodela de cenoura para não pensar na camionete destruída. — Por isso, eu vou ajudar o Peter a consertar a lata-velha que repassaram pra eles. — Olho para Tony, este que apenas decidiu passar o resto do seu dia ajudando Peter com o carro antigo. Não sou boa com carros, ao ponto que até mesmo não sou muito interessada em dirigir algum, porém, saber que Tony deseja ajudar me faz sentir menos inútil com minha pouca habilidade. Peter não vai precisar fazer isso sozinho e é o suficiente para mim. — E não é como se eu já tivesse comprado um carro novo pra eles — “Mesmo o Peter dizendo que você não devia…” Mamãe comenta com os olhos vidrados na tela. — Pensei que ele ainda estava em choque com o negócio da morrendo — Ele revira os olhos. — Não que realmente não ia aceitar um carro.
— Os Parker são orgulhosos — Suspiro ao ignorar a ideia de Peter em estado de choque por minha culpa. — Não iriam aceitar de forma alguma.
— E chegar com um carro novo poderia ser meio chato… — Pepp intervém novamente, seu almoço abandonado a favor do relatório.
— Por isso eu vou ajudar o garoto com aquele lá — Ele pega uma tira de frango da salada que Pepper come, o que é a gota d’água para mim. Me levanto impaciente e pego um tupperware nos armários. — , eu conto pro teu namorado a tua gracinha? — A pergunta é feita de boca cheia.
— Vai contar de qualquer jeito, não vai? — Resmungo ao pegar o prato que seria de Tony, colocando todo o conteúdo no pote que apanhei nos armários, aproveitando para juntar meus brócolis.
— Verdade, mas nós somos uma família que conversa e vou ouvir a sua opinião antes de descartar. — Recompenso o tapinha em minha costa com o pote de comida que deposito em sua mão. Aproveitando a sua distração, entrego um garfo na mão de Pepper e arrisco-me a desligar a tela do seu aparelho ao colocá-lo na outra extremidade da ilha apesar da careta que é direcionada para mim em troca. “Justo” Pepper dá de ombros quando me sento novamente, rindo ao colocar um tomate na boca. Tony, pelo contrário, ainda está procurando um garfo. — Volto assim que acabar com o carro. — Ele sorri arrogante para mim quando lhe entrego uma colher para que possa comer no carro. — E, olha, já que o Peter não tem me dado trabalho recentemente, acho que até vou levar ele pra comer pizza…
— Mãe… — Pendo a cabeça para trás, arrasada com a ideia de comerem pizza sem mim.
— Nós também vamos comer pizza, calma — Ela promete entre uma risada engasgada. — Tony, tadinha!
— Se comportem. — Ele se despede enquanto tento lembrar se tem pizza no freezer.


*


Os desenhos técnicos que FRIDAY faz durante a tarde não se comparam com os meus, as linhas muito mais limpas e a estética é muito mais agradável que os que fiz. Com o aproximar do fim do prazo de inscrição na feira, começo a organizar o short-paper, com índices e lista de abreviações, a minha vontade de estar em bons termos com MJ aumentando a cada hora que passa. Os seus artigos sempre são os preferidos dos professores, de forma que estou certa de que teria muito a comentar sobre o meu, em sua maioria, não sendo críticas construtivas, mas seria bom ouvi-la. No entanto, pensar em Michelle é o suficiente para que eu sinta um frio ansioso na barriga, afinal, seus pensamentos acerca de mim ainda são como lâminas afiadas em minha pele. Tento imaginar que, talvez, a distância tenha a afetado de forma que pudesse se arrepender, de maneira a mudar sua opinião ou, ao menos, sentir a necessidade de ser menos abrasiva, contudo, eu a conheço bem demais para saber que MJ detesta estar errada, de maneira que odeia corrigir-se apesar de reconhecer o erro.
Então, ela enterrará a culpa, pois a sua sede por sinceridade não reconhece erros. Falha em reconhecer que certas coisas devem ser contidas.
Consigo passar algumas horas sem pensar nisso, a maioria gastada reescrevendo o artigo e tentando me convencer que meus pais realmente me permitirão retornar a Midtown na semana e eu poderei ver Peter. Por outro lado, também luto para me convencer que o retorno será tranquilo apesar de minha situação complicada com MJ. Ainda que reconheça que seus pensamentos são apenas seus e não algo que eu sequer deveria conceber, meu peito se aperta pela forma que pensa tão pouco sobre meu caráter e como não é culpada disso. Minhas ações foram reprováveis este tempo inteiro, como as mentiras que lhe contei sobre quem sou e tudo o que evitei lhe contar, tudo culminando para que ela forme sua opinião sobre mim, mesmo que seja uma opinião tão cruel. Mesmo que eu não possa cobrar que tenha outra. Infelizmente, como imaginei que seria, eu sou responsável pelo abismo entre nós. Com a mesma infelicidade, não sei se conseguirei saltar para ela.
— Tenho uma coisa que vai gostar de ver, Srta. Escritora!
Com os cotovelos apoiados na mesa e rosto encostado nas mãos dadas, viro a face para a direção de onde Pepper adentra o laboratório, ainda com os óculos de leitura que usa no escritório. Eu corrijo minha postura com um pequeno sorriso para ela, pois, apesar de minhas falhas e mentiras, sei que Pepper não deixou de cuidar de mim e talvez não deixará nunca. Com um short de pijama e blusa social, imagino que tenha abandonado uma reunião virtual para estar aqui, logo, lhe dou toda atenção mesmo quando demora alguns segundos para localizar o que gostaria de me mostrar no seu celular. A conversa que me mostra é com a enfermeira responsável por acompanhar o tratamento de May, mas na fotografia enviada por Margareth, não é May que aparece, mas sim, meu pai e Peter.
Pete está segurando algo na foto, mas não imagino o que seja, pois carros não são o meu forte, mas é pesado o suficiente para as veias de seu braço saltarem apesar do sorriso adorável em seu rosto úmido de suor. Sua camisa vermelha está com manchas escuras de graxa, assim como os jeans, um rastro de mesma tonalidade brilhando em cima da sobrancelha pois deve ter tentado secar o rosto com a mão suja. Tony, pelo outro lado, não está tão coberto de graxa, mas com uma mancha de óleo escuro na sua camisa branca e, para minha maior surpresa, usando um boné de Midtown e o broche com minha imagem que estava sendo distribuído. Meu pai não está sorrindo, mas revirando os olhos, porém, não ignoro que o broche é a única parte de sua roupa que não está suja ou que está sentado e emburrado em um pneu. A iluminação não é muito boa devido a neve ainda ser pesada na capital e a porta da garagem precisar estar fechada por Tony Stark estar consertando um carro no Queens ser o prato cheio para paparazzis, mas estou certa de que farão um ótimo trabalho de qualquer forma.
Ou, ao menos, que ambos se divertiram.
— O Peter sabe dirigir? — Pepper pergunta depois de um momento, passando para a foto seguinte onde, sem surpreender ninguém, meu pai cumpriu a promessa e há uma pizza enorme sobre a toalha quadriculada da mesa de May. — Ele vai precisar aprender agora que a May vai ficar de cama por um tempo.
Quando a luz reflete na tela do celular, percebo como eu estava sorrindo para as fotos.
— A May ensinou umas coisas pra ele — Lhe conto enquanto ela se senta no banco com um suspiro cansado, afinal, este deve ser o seu momento de descanso. — Tipo, no estacionamento da Target. — As tecnicalidades nos fazem sorrir. — E ele "dirigiu" o carro do Flash na noite do baile, porém foi só. — As aspas são extremamente necessárias, segundo o que Ned me contou e os relatos de Peter enquanto eu ainda estava na sua casa após cuidar dos seus ferimentos naquela noite. Era impossível não reparar no seu sorrisinho ao comentar como o carro de luxo estava destruído. Anos de bullying se compensaram naquela noite. — Não cheguei a ver o carro, mas soube que ficou destruído depois que o pessoal do Toomes atacou.
Pepper toca em meu cabelo, onde ele se curva atrás de minha orelha.
— Vou ver com o Tony a questão de algumas aulas de direção para vocês.
Vocês? — Repito e ela assenta meu cabelo com um sorriso surpreso.
— Você já tem quase dezessete anos, . — Ela ri incrédula. — Está praticamente um ano atrasada, meu bem.
— Eu não quero dirigir. — Balanço a cabeça para maior ênfase. — De verdade.
Dirigir significa que não terei sua companhia, a de Happy ou, nas raras ocasiões, de Tony todas as manhãs no trajeto até a escola ou para qualquer outro lugar.
— E no caso de uma emergência? — Pepper propõe desafiadora.
— Piloto automático. — Dou de ombros. — Nós temos Teslas, mãe.
— EMP? — O desafio me surpreende, mas me recuso a ceder.
— Telecinese.
— Você vai aprender a dirigir. — Há poucos meses de adotar o sobrenome de Tony, o seu revirar de olhos a deixa ainda mais semelhante a ele. O tapinha no meu braço de encerrar a discussão também. — O seu pai avisou que saiu do Queens faz umas meia-hora com a nossa pizza, então… Dou uns vinte minutos pra ele chegar, então você tem dez. — Concordo com a cabeça. Somente preciso finalizar a formatação do texto descritivo. — Você entendeu o que eu disse, ? — O humor em sua voz me confunde e termino por balançar a cabeça devagar até que Pepper desliza o seu celular sobre a mesa para mim. Oh… — Liga pro Peter, pra MJ, pra quem quiser. Você tem dez minutos.
Ela se levanta em seguida, passando a mão com carinho em minha cabeça antes de ir na direção da porta como se não houvesse me oferecido algo que tenho desejado desde que saí do Queens há uma semana e simplesmente eu fosse lhe deixar fazer isso sem um agradecimento. “Mãe?” O chamado a faz parar e Pepper se vira para mim de onde estava cruzando a porta automática.
— Obrigada. — O seu sorriso é a última coisa que vejo antes da porta se fechar.
Eu seguro o celular por uns segundos, encarando o relógio digital antes de notar que não tenho muito tempo para gastar sentindo-me ansiosa. Na lista de contatos, pesquiso pelo nome que eu desejo e logo encontro “Peter Parker – da ” na listagem. Fecho o notebook ao encostar o telefone no ouvido, a ligação chamando algumas vezes enquanto as borboletas em meu estômago se animam. Cubro minha boca com a mão, beliscando o lábio com os dentes quando após um terceiro toque, Peter não atende o telefone. No entanto, antes do quarto, ouço o som de uma movimentação intensa e um sorriso é quase impossível de ser contido no momento que sua voz me alcança.
Srta. Potts! — É um chamado engasgado e quase trêmulo, seu tom obviamente mais direcionado para um reflexo da surpresa de uma ligação vinda de minha mãe. Entreabro meus lábios para lhe dizer quem realmente está lhe ligando, mas ouço seu engolir em seco e sua respiração funda do outro lado. — A-Aconteceu alguma coisa com a ? — Fecho meus olhos, detestando sua preocupação imediata comigo.
— Sim — Noto a ironia de minha voz também estar um tanto trêmula, porém reconheço ser um mero reflexo de toda a felicidade por finalmente poder conversar com Peter. — Ela está de castigo.
! — Apoio meu rosto na mão após o seu suspirar aliviado que não faz nada para esconder o sorriso transparente em sua voz, meu coração cantando ao ouvi-lo pronunciar meu apelido que é um privilégio único seu. É ridículo que meu rosto se esquente apenas com isso, mas inevitável. Ouço mais alguma movimentação e a sua risada adorável, indicando-me que, semelhante como foi pra mim, ele também considerou a sua reação engraçada. — C-Como v-você está? O que aconteceu?
— Muita coisa — Eu o acompanho na risada, fechando os olhos com mais força. Tenho certeza de que, se me concentrar o suficiente, posso imaginar o seu sorriso. — Eu prometo que vou contar tudo para você na segunda-feira, mas a Pepper só me deu dez minutos. — Explico-lhe o mais rápido que posso, sentindo um peso escorregar pelas minhas costas por poder conversar com ele. — Só queria dizer que está tudo bem agora, Pete. Voltei na enfermaria e falei com a Dra. Palmer. Tudo está sob controle e meus pais estão sabendo de tudo. — Corro os dedos pelo meu cabelo ao respirar. — E você? Senti a sua falta. — Não é uma confissão, é um mero externar do que sinto e ele saberia assim que nos víssemos. Uma semana é absurda, principalmente por estarmos grudados por meses a fio.
Fora a preocupação de não ter tido notícias sobre você? — Apesar de como poderia ter soado, Peter não consegue disfarçar o sorriso em sua voz que a deixa mais ampla e nítida na ligação. — Tô legal, obrigado. E eu também senti a sua falta. Me acostumei mal te vendo todo dia a hora que quisesse. — Engulo em seco, deixando os dedos escorregarem para minha orelha que está queimando e empurro alguns fios para trás dela. É satisfatório saber que a distância também o afetou e como os dias que passamos juntos também foram significantes para Peter. Meu coração está acelerado. — A May tá perguntando direto de você e eu — Sua voz é cortada pelo estalar das molas de seu colchão que conheço muito bem. Imagino que deve estar exausto após ficar longas horas cuidando do carro novo com Tony. — Eu voltei no metrô hoje pela manhã pra pegar outro botton seu, sabia?
— Verdade? — Tenho completa certeza de que MJ tiraria sarro do quão boba devo soar. Pete faz um som de concordância, e estou certa de que empinou um pouco o nariz e está sorrindo convencido. Sinto meus lábios se entortarem em estima. — Então você tem três souvenirs da Fênix e eu tenho um total de zero do Homem-Aranha? — Engulo em seco, beliscando meu lábio ao ouvir seu riso contente. — Não acho justo, Parker.
Você literalmente tem o Homem-Aranha, Stark. — Peter reforça e meu coração salta. E isso é revoltante ao ponto que perco o ar. Peter Parker é revoltante e eu quero fugir daqui. Quero estar nos seus braços de novo e com seu cheiro impregnado em mim assim como estava na roupa que usei na última vez que nos vimos. A situação é tão absurda que deixo escapar uma risada pois ele faz tudo soar ainda mais injusto pra mim. — E sabe o que eu não acho justo? — Sorrindo como uma idiota, eu emito um som questionador por não confiar em minha voz. — Eu tenho toda certeza do mundo de que você está vermelha e não posso te dar um beijo agora. Essa é a minha concepção de injustiça.
— Aqueles dez minutos estão demorando… — Engulo em seco, tentando soar firme. Sem sucesso pois Peter ri abertamente como uma criança do outro lado da linha, somente aumentando a vontade que tenho de estar próxima dele, de pressionar um beijo nos seus lábios macios para garantir que ele saiba que não estou falando a verdade e poderia passar horas lhe ouvindo. Dias, semanas, meses ou anos se necessário. Não imagino um cenário onde me cansaria de Peter. O sentimento é egoísta, como a maioria dos que sinto por ele são. Meus lábios praticamente formigam de vontade.
O silêncio se prolonga, mas não me incomoda. Eu posso ouvir a sua respiração e tento imaginar o seu rosto.
É um alívio saber que está bem. — É com mais suavidade que Peter suspira, seu tom e as palavras que deixam sua boca com cuidado tocando fundo no meu peito. — Quando você sumiu, eu fiquei preocupado que já fosse tarde demais. — A confissão parte o meu coração. Ouço seu suspirar e prendo a respiração, não querendo lhe interromper. — Tentei ficar cuidando da May e até fazer dever de casa, mas parecia que alguma coisa estava muito errada, então eu liguei pro Tony e ele me contou. — Minha mandíbula dói pela força que ponho ao apertar os dentes. — É bom saber que está bem. — Ele repete, com mais confiança agora apesar de não deixar que o afeto em sua voz se suavize.
— Como a May está? — Eu falho e não consigo soar confiante como ele. Forte como Peter é. May também foi minha preocupação nesses últimos dias, e que só se desfez minimamente quando a Dra. Palmer me contou sobre a visita que fez para ela um dia após meu incidente. — E você? — Quero saber sobre Peter mais que qualquer outra coisa. Querendo ou não, o machuquei. Não posso imaginar como ficaria se fosse ele em meu lugar. Descarto a ideia macabra de vez. — A verdade, Pete. Por favor.
A May está tomando os medicamentos e fazendo a fisioterapia. — Peter escolhe a rota mais fácil: May ao invés dele. Mas com minha consciência de volta, eu me recuso a lhe interromper. O tempo dado por Pepper é suficiente para ouvir sobre ele depois. — Só tô um pouco preocupado ainda com a costela que ela quebrou, sabe? Fora a clavícula. — Assinto mesmo que ele não me veja, então, ao lembrar-me disso, faço um som com a garganta. — A Enfermeira Marge tá ajudando muito, , mas a May ainda parece meio desconfortável. Quer se cuidar, mas não tem como. — Toco no colar em meu pescoço. — Até ofereci chamar uma das amigas dela do salão pra fazer as unhas dela, mas ela não gosta muito de outra pessoa fazendo isso.
— Você poderia tentar fazer as unhas dela, Pete. Ou, se o problema for o cabelo, não é muito diferente de cuidar do seu. — Há uma possível discussão sobre a similaridade, mas nós não nos damos o trabalho de travá-la. — Posso te passar o guia que a Pepper fez para mim. A May vai se sentir muito querida.
A May tem um monte de cremes pro rosto. A Srta. Potts entende disso também, né?
— Ontem estávamos assistindo Modern Family, eu estava com uma máscara de argila e ela foi receber nosso jantar com uma de gosma de lesma — Franzo o nariz. — Então sim.
Eu tô tentando imaginar a cena — Peter ri e ouço o som de sua mão atingindo a testa. Meu peito se aquece por conseguir lhe distrair, fora outras coisas como o fato que ele está disposto a fazer o necessário por May. Ou como tentar me imaginar com a infame máscara de argila que meu pai adora fazer piadas sobre. — A máscara era a verde ou a branca?
— Rosa. — Balanço a cabeça quando o ouço, ou o que deixa escapar por entre os dedos. — Hilário, Parker. — Detesto como realmente é engraçado e como quase sempre Pepper e eu evitamos o contato visual para não acabarmos em uma crise de riso. Meu pai nunca ajudou muito nesse ponto. Ou Peter ajudou, agora que também está rindo. — A ELENA vai enviar para o seu celular o guia e, enquanto isso, por que você não para de rir da minha máscara incrível de argila e me diz como está? Só falou da May.
Peter suspira e eu desejo sentir o ar ser soprado em minha bochecha. Eu lhe quero perto de mim.
Eu estou bem, de verdade. — Ele está se repetindo, garantindo-me que está “bem” pela segunda ou terceira vez, mesmo que meu instinto me indique o contrário. No entanto, já passou uma semana inteira sem que eu estivesse praticamente desfalecendo em seus braços ou o incomodando, de maneira que acredito nele desta vez, seja pelo tom de sinceridade em sua voz ou como acredito que ele esteja sorrindo um pouco apesar de tudo. — Tenho falado com o Sr. Stark todos os dias, mas ainda estava meio preocupado com você e com saudade. — Agora, a confiança de garantir-me seu bem-estar parece ter diminuído um pouco para abrir espaço para a timidez. Mordo meu lábio. — Eu sei que você vai falar que a gente se falou ontem, mas… — Ele cantarola o “mas”, prolongando um pouco. Peter se demonstra de bom-humor e isso me deixa feliz. — Antes disso, a única coisa que me garantia que estava tudo bem era que o seu pai sempre respondia as minhas mensagens.
— Não sabia que estava conversando com ele. — Confesso. Devia ter estado mais atenta.
Todo dia — Apesar de não lhe ver, tenho certeza de que Peter dá ênfase na afirmação com um assentir veemente. Não desconfio dele de forma alguma. — Quando você estava no hospital, o Sr. Stark sempre me repassava como foi a noite. Aí mandava outra mensagem depois que você dormia. — Lembro-me da minha primeira noite e como Tony estava tão concentrado digitando algo no celular que já podia muito bem ser uma mensagem para Peter. Aperto a boca, incerta se ele fez o correto. Peter não estava mais conosco e não precisava lidar comigo mesmo com a distância. — Ele me disse que em dois dias você já estava andando e querendo comer porcaria. — É impossível não rir com a insinuação que, no fundo, é verdade. Eu havia pedido por uma porção de batatas-fritas junto ao almoço e Pepper quase perdeu a paciência quando Happy contrabandeou um McLanche Feliz para a ala hospitalar. — A Srta. Potts também tem ligado pra conversar com a May, então eu sei que você está bem.
— Quero voltar para a rotina antiga. — Contive um suspiro. — Quero ver você. — Deixo o tal suspiro contido escapar. — Sinto a sua falta, por mais exagerado e clichê que seja, não mentiu em dizer que nos acostumamos mal. — A respiração de Peter soa na ligação, mas eu o quero mais pertinho de mim. — Não faço ideia de quando o Tony vai me liberar desse castigo.
A gente conversou hoje. — Peter comenta, a voz mais próxima, como se o celular fosse aproximado ainda mais do rosto. — Ele está preocupado com você. Não posso mentir e dizer que também não estou. — Me encolho. — Ele falou sobre medicamentos. Que não tomou mais os que devia ter tomado. Não sabe se parou antes ou depois da Alemanha e se sente culpado por não ter percebido.
— Eu parei depois da Alemanha. Antes de Midtown. — Digo, corrigindo a suposição.
Peter me aguarda em silêncio, mas não deixa que dure muito antes de sussurrar:
Por quê?
Eu fecho os olhos e minha covardia não me agrada.
— Eu me sentia andando em uma cadeira de rodas — Esclareço, notando que nós nunca embarcamos neste assunto antes. Talvez, por um golpe de sorte, este seja o momento ideal. Peter não pode me ver e me olhar com os seus olhos cor de chocolate cheios de carinho por mim. — Não é justo que eu precise de medicamentos para ter uma vida minimamente decente quando outras pessoas não precisam. — É uma justificativa triste para um tópico deprimente. — Me dava raiva.
Olha, eu também tomei um monte de remédios, sabia? Primeiro que eu tinha asma e você sabe como funciona. E sinusite. E a May jurava que eu tinha intolerância a lactose, mas acho que era alergia ao glúten... — Pete me faz sorrir mesmo que eu me questione para onde deseja seguir com as informações. — A lista é longa, mas o negócio é o seguinte: continuava sendo um remédio igual ao seu. — Identifico a sua intenção e como Pepper tentou me fazer adotar a mesma linha de raciocínio um ano atrás. — Não é nada demais precisar de remédios. É chato, mas ajuda. — Belisco meu lábio com o dente. — Você toma remédios quando tem dor de cabeça, né? Então? Mesma coisa.
— Nem todo mundo pensa a mesma coisa. — Retruco com calma e Peter respira fundo.
Evito pensar em como o som de sua respiração perto do meu ouvido me deixa tensa.
Quem? — Peter exige em um tom firme. Ele leva o assunto muito a sério, pelo visto. Na lista de coisas que não quero pensar no momento, incluo a forma que minhas pernas se apertam uma na outra com o seu tom autoritário.
— Não sei, Pete — Vacilo de forma óbvia. — As pessoas…
Que pessoas? — Ele insiste, respirando fundo de novo e eu o acompanho.
— Eu não sei. — Eu quero grunhir. — Tem gente que acha que usar medicamentos assim deixa a pessoa automaticamente louca. — É um pouco mais fácil confessar quando não estou olhando nos olhos dele. — Não confiável. — Completo.
Você está falando de si mesma na terceira pessoa. — Tem um humor não bem-vindo na sua voz, como se estivesse finalmente satisfeito com a resposta que o ofereço. Fecho meus olhos e balanço a cabeça. Não. Não sou hipócrita a este ponto, eu espero. Finco os dentes no lábio inferior. — Viu? O clássico silêncio de "o Peter tá certo". — A pele do meu lábio dói mais. — Fora isso, você não conseguiu dizer o nome de ninguém que ache loucura tomar remédios. Então não tem ninguém assim no seu ciclo de convivência, e então não tem pra que se preocupar. — Tenho certeza de que Peter deu de ombros. Detesto o silêncio. — Toma os remédios, , por favor.
Como pela primeiríssima vez respirando ar puro e recobrando a consciência que havia há muito perdido, seja pelos traumas que os dedos das minhas mãos não são o suficiente para enumerar, eu engulo em seco e abaixo a cabeça. Meus pais, Peter, Natasha e a Dra. Hall. Todos desejam que eu me renda enfim aos medicamentos, que tente viver com eles e não somente sobreviver sem eles. Mas, com suas súplicas e o que for, a situação não deixa de ser injusta. Já sobrevivi tantos horrores, qual o motivo de ter minha mente enfraquecida dessa forma? Apenas sobreviver não é o suficiente? Por que mais tristeza assim? Por que também mereço a humilhação de precisar de estabilizadores para viver a vida que nunca devia ter sido arrancada de mim? É injusto e triste. Porém, poderia ser bem pior.
Não vejo razões além de uma sorte gigantesca para ter conseguido estar onde estou agora e não nas patas dos animais que me extirparam de uma infância. Havia sido removida das instalações nos andares superiores junto aos Maximoff dois dias antes do ataque dos Vingadores no Castelo. Uma reação agressiva minha havia sido responsável pelo castigo que salvou a minha vida, assim como foi a responsável por matar a oficial que tentou enfiar as mãos em meu uniforme após perceber que havia escondido um pedaço de ferro entre a calça e meu quadril. Quando me eletrocutaram através do chão de metal projetado unicamente para nos fritar de fora para dentro, eu bati com o rosto na poça de seu sangue, a lasca de ferro tendo penetrado seu olho e saído pela parte posterior do crânio estava caída há cinco metros de nós pela força do lançamento auxiliado por meus poderes.
Se não tivesse lhe matado por tentar tirar a minha chance de enfiar o mesmo pedaço de ferro em meu próprio olho ou o usado para rasgar minha garganta, não teria sido movida para a cela dois andares abaixo e não teria sido esmagada pelos escombros. Se houvesse nevado mais, Natasha e Tony não teriam me encontrado sangrando e agonizando na neve. Dentre tantos os cenários possíveis, como é justo que eu precise me medicar para conseguir viver bem? Não ser usada até hoje como uma arma para a HYDRA é viver bem. Me alimentar, limpar meu corpo e ter colo é viver bem. Por que minha mente doente não enxerga isso?
— Você é bem prático, sabia? — Digo em um sussurro, a clareza amarga em minha voz.
A gente tem cinco minutos, eu tô correndo contra o tempo, aqui! — Peter ri e o mundo não é mais tão maldoso comigo.
Minha mente ainda está doente, ainda está me enlouquecendo e irritando aqueles que eu amo com toda a minha vida. Eu ainda sinto a tristeza avassaladora e doente de tempos em tempos, meus medos continuam tendo os dentes afiados e a carnificina dos meus traumas não se encerram. A ansiedade permanece afundada em meu peito e o ódio rubro e ardente também se mantém com ela ali onde deveria ter amor guardado. Mas a sua voz, o toque da minha mãe e as palavras do meu pai são o que me permite acreditar que posso sobreviver a isso também; sobreviver pois o inferno não acabou, no entanto, o fim dele está cada segundo mais próximo.
— Desculpa por isso. — Suplico entristecida. Não por mim, mas por Peter. — Por colocar sobre você esse peso de aguentar o meu segredo. Não estava certo. Sei que não faria isso comigo.
É pra isso que eu estou aqui, não é? — Pela primeira vez na vida, temo que ele esteja sorrindo por isso.
— Não, não é. Eu não deveria ter colocado essa pressão sobre você. — Eu me recuso a concordar com Peter. — Você está sempre cuidando de mim e quando tenho a chance de retribuir sua bondade e te poupar disso tudo, eu não faço.
, esquece isso — Peter pede com a voz suave de afeto, mas quero bater o pé. É repugnante que dê tanto de si a mim e eu não faça o mínimo por ele e lhe poupe de tantos problemas. — Você está bem e isso é tudo o que importa pra mim. — É uma garantia tanto quanto uma promessa. Meu coração bate mais forte. — Você e a May estando seguras é o suficiente pra me fazer feliz.
— Além de não querer que a sua felicidade dependa de mim, não quero que seja por algo tão mínimo. — Intervenho novamente e ouço uma movimentação do outro lado da linha, assim como o som das molas de seu colchão. Se precisar criar alguma hipótese, seria que Pete se sentou. — Quero que seja feliz, Peter. — Tão feliz quanto me faz sentir, também desejo acrescentar. — Eu quero te fazer feliz, mas não assim. — Balanço a cabeça, ouvindo sua respiração. O silêncio me garante que está tão atento no que digo quando eu gostaria. Decido prosseguir após engolir minha vergonha. — Não sinto que estou fazendo o suficiente. Não queria que você tivesse tanta preocupação assim comigo.
, a gente vive em um mundo horrível. — Peter lamenta com a voz muito mais séria que havia soado posteriormente. Ele não precisa brincar com isso. Todos sabemos o quão horrendo o mundo ao nosso redor é. O quão cruel e imprevisível é. — Isso que pra você pode soar uma loucura, é o suficiente pra mim. — Eu sinto sua hesitação, mas ele a sustenta. Então o ouço soprar uma risada suave, quase no nível nivelado de sua respiração. — E você me faz feliz simplesmente por respirar o mesmo ar que eu. Imaginei que soubesse disso, mas acho que vou precisar te lembrar disso quando nos vermos de novo, não é? — Ele não verdadeiramente me cobra uma resposta e isso me acalma. Nunca poderia dizer algo para lhe contrariar após isso. — Sei que está cansada e está tudo complicado agora, mas prometo que tudo vai melhorar, ok? — Eu desejo estar ao seu alcance mais do que nunca, pois ele poderia facilmente me abraçar como preciso que faça agora. Quero acreditar em Peter. E prometo a mim mesma e por ele que irei acreditar nisso. — Nós vamos ter um pouco de normalidade nesses tempos agora, eu juro. Tá tudo uma bagunça, mas vamos ficar bem.
— Normalidade soa incrível. — Sussurrei devagar. Normalidade. Isso sequer existe?
Não é?
— Só quero voltar para Midtown. Estar com você e os nossos amigos. — Confesso com o peito apertado de quem sabe que pode cair no choro. — E ir para o Queens dormir na sua cama confortável e comer sanduíche. E fazer carinho no seu cabelo também. — Esfrego a testa com a última adição, ciente que estou choramingando como faço quando MJ não quer ir comprar chá comigo no jardim em pleno inverno.
A última parte me deixa muito feliz, obrigado. — Ele ri e meu coração canta. — A gente pode tentar ser um casal adolescente normal agora, não é? Só por um tempinho enquanto o Homem-Aranha está em hiatus e a Phoenix se recuperando de um acidente. — Engulo em seco com o termo escolhido. — Já estamos burlando o seu castigo, então acho que estamos indo no caminho certo.
— Então somos um casal, Sr. Parker?
Pepper, está ouvindo isso? Estou sendo prática!
Ouvi falar na escola que sim. — Eu sinto que ele dá de ombros, soando descontraído ainda que eu tenha certeza que está sorrindo intensamente. Ao menos, eu estou. — E a May já disse isso pra todas as amigas que vem visitar ela, então ia pegar mal dizer que não. — Ouvir a opinião dela, apesar de tudo, é incrível. Temos o seu apoio em conjunto com o de meus pais, então ainda não aceito que as palavras maldosas de MJ tenham me feito duvidar. — E não é como se você fosse conseguir se livrar de mim. Sinto muito, mas eu não sou reembolsável.
— Realmente estava pensando em te devolver pra May, sabia? — Provoco como se a ansiedade de o ver de novo não estivesse me devorando viva. Meu sorriso diminuiu um pouco ao ouvir batidinhas na porta do laboratório e encontrar Pepper com uma expressão agridoce através do vidro. — O Tony chegou. — Suspiro ao erguer uma joinha para ela. — Preciso ir.
Tudo bem. — O suspiro pesado que Peter deixa escapar revela a insatisfação na sua fala. — Na verdade, não está nada bem, mas acho que consigo sobreviver mais dois dias sem você. — Meu rosto se aquece. — Promete que vai se cuidar?
— Prometo contanto que faça o mesmo. — Respondo.
Vou procurar uma máscara de argila cor-de-rosa agora mesmo.
— Tchau, Pete. — Me despeço com um revirar de olhos que chega a doer.
Tchau, .


*



Ned Leeds
visto por último hoje às 08:37

Ned, você tem uma missão muito importante de nerd da cadeira: onde está o Peter? OBS: Não diz pra ele que eu estou em Midtown, é uma surpresa.

Minha primeira missão de nerd da cadeira para a grande Fênix! Isso é inédito! Maaaaaaas… Pra te responder, informo que o Homem-Aranha está trabalhando em um projeto secreto no laboratório de marcenaria.



— Você fica uma graça nesse vestido, . — Pepper comenta e eu desvio minha atenção do celular, buscando os seus olhos através do retrovisor. Ela sorri mesmo não estando mais me olhando, tendo voltado sua atenção para o trânsito.
É um vestido verdadeiramente adorável, que chamou minha atenção na loja virtual da Moncler e pedi para que a assistente de compras pegasse para mim no dia que visitei a loja. É cor de chocolate amargo e na altura de minha panturrilha, um ajuste em minha cintura sendo o suficiente para me ajudar a ter alguma forma através do tecido grosso, ideal para o inverno. Com uma meia-calça quase transparente e botas, preciso admitir que minha mãe é boa com roupas. Ainda devido a minha recusa de remover os brincos de pérola que foram presente de Peter, ela comentou mais cedo sobre um "segundo furo" enquanto eu colocava meu bracelete em que posso me comunicar com ELENA e convocar minha armadura. Pepper havia me ajudado a escolher as roupas que usarei durante a semana, algo que tem feito desde meu acidente, de forma a me ajudar da melhor maneira possível para ter o mínimo de coisas possíveis para pensar durante o dia.
Ai, mas eu tenho toda a certeza do mundo que o Piti vai gostar! — É necessário certa força de vontade para não deixar um sorriso escapar com a terrível imitação que meu pai faz dela, esvoaçando as mãos de onde me olha no banco do passageiro, a voz fina e nasalada que usa o fazendo rir também.
— Ele vai gostar sim! — Mamãe o repreendeu com uma cotovelada enquanto me entreti com os dois. — E não é como se a estivesse se vestido unicamente para o Peter. Olha como ela está linda, Tony — Viro o rosto para as janelas blindadas, evitando-os. — Toda animada pra ver o namorado de novo...
— Nós vamos ter uma conversa sobre essa história de namoro, Monstrinha. — Tony adverte sem severidade alguma.
— Aham — Pigarreio. — Se eu não me jogar para fora do carro, teremos sim.
"Quanto foi esse pedaço de pano?" Ouço Tony questionar e volto a me encostar no banco, já reconhecendo as ruas próximas à Midtown e sentindo um alívio imediato. Meus pais estarão na Torre Stark até o fim do dia, lidando com o problema de segurança que resultou em inúmeras consequências. Sejam estas tais “medidas” um projeto de pavimentação diante de Midtown onde noventa por cento dos funcionários municipais são agentes disfarçados, ou seja os três carros que estão nos acompanhando desde que saímos do Complexo há quase uma hora. Tento desviar minha atenção do fato de, mesmo distante, identificar a Agente Hill entre alguns pedestres próximos à escola assim que adentramos a rua.
— Isso é realmente necessário? — Detesto a pergunta e como posso soar mal-agradecida ou que demonstre não ter entendido até que ponto estão dispostos a ir para minha segurança. — Somente a Hill não basta?
— Você deveria estar feliz por eu não estar entrando naquela escola do seu lado, sabia? — Tony me olha pelo retrovisor. Ele está falando sério. — Eu e a sua mãe, um do lado do outro espantando macho. — A expressão me faz rir. Pepper também o faz, rosto apoiado no volante enquanto aguarda que algumas crianças atravessem a faixa de pedestres. Se elas olham para o interior do carro, não conseguem ver nada além de seu próprio reflexo no fumê potente. — Não sei do que as duas estão rindo. Eu tenho treinado pra isso a minha vida toda. Viram quanto tempo o Parker demorou pra virar macho e tomar iniciativa?
— Não usa o termo "virou macho" com o Peter. Ele é um amor de menino e qualquer frase que use o termo "macho" soa machista e retrógrado. — Pepper comenta com o rosto erguido ao passar um pouco da fachada de Midtown, parando no local exato onde gosto de descer.
— Concordo com a Pepper. — Sopro ao apanhar minha mochila, limpando meu colo onde há migalhas dos biscoitos que dividi com Tony.
Nossa, que surpresa!
Eu desço do carro após receber um tapinha no joelho vindo de Tony. Andar na grama fofa e úmida não é mais tão doloroso como foi na última vez enquanto ainda estava muito ferida, e posso atravessar o gramado sem maiores problemas apesar da neve escorregadia, finalmente alcançando as portas duplas para a entrada sem dificuldades, o que já se torna um grande avanço. Um amontoado de alunos se espreme nos corredores, porém, somente me mantenho focada em conseguir chegar o mais rápido possível no laboratório de marcenaria antes que Peter termine o que estiver fazendo. Em minha pressa, nem me dou o trabalho de colocar meus materiais no armário, então apenas guardo minha mochila no cubículo do lado de fora do laboratório, reconhecendo o som dos equipamentos mesmo com uma porta entre nós.
Com o crachá de identificação em meu pescoço, libero minha entrada e cumprimento baixinho o Sr. Killian, mesmo que ele não se importe muito com minha chegada e esteja mais interessado em sua revista sobre caça e pesca. Apesar da displicência do professor, lembro-me de qual era o foco da minha visita e imediatamente começo a procurar Peter no meio dos alunos que carregam chapas de madeira, metal e equipamentos maiores que meu braço. Entre os alunos, o localizo com a mesma facilidade de sempre; seja por seu porte físico se sobressair entre nossos colegas, ou pela camisa de flanela. Passo por algumas mesas para o alcançar, as borboletas em meu estômago perdendo todo o controle prévio conforme eu me aproximo. Afasto o cabelo do rosto, empurrando os fios mais curtos para trás de minha orelha e me preparando para que ele perceba a minha aproximação a qualquer minuto; isso é, até notar que seu celular está no bolso de trás do jeans e Peter usa seus fones de ouvido. É a primeira vez que Peter usa fones perto de mim, obviamente sem saber que eu estou aqui. Aproveito-me de sua distração com a peça, a ausência de algo afiado que possa lhe machucar e os fones, para lentamente me aproximar e colocar as minhas mãos sobre os seus olhos.
Aperto a boca para conter uma risada quando o rápido contato e privação de visão o faz saltar, as ferramentas que usava para gravar algo escorregando de sua mão. No entanto, um sorriso gigante toma conta de meu rosto quando, apesar de sua surpresa e óbvio susto que lhe causei, sou engolida em um abraço de urso que tira os meus pés do chão e embola o fio do seu fone em minha mão graças ao enlace desengonçado que me faz rir. Fecho os olhos com força e aperto ainda mais os meus braços ao redor de seu pescoço, firmando-me no momento precioso. Respiro seu perfume, me aqueço no calor de seu corpo que me envolve, mantenho-me focada no som da sua respiração e retribuo o claro sorriso que sinto pressionado na minha bochecha. Peter me segura com uma combinação de cuidado e anseio — braços apertados para me manter perto e mãos suaves ao segurar-me onde seus dedos alcançam.
— Você voltou! — Peter suspira quente contra minha mandíbula, enterrando o nariz abaixo de minha orelha.
Ele soa tão aliviado que me surpreendo.
— Oi — Desenredo os fios de meus dedos e seguro em sua nuca afastando meu rosto devagar. Peter sorri pra mim quando enfim conseguimos nos olhar, seus olhos agilmente analisando meu rosto com atenção, parecendo temer que eu vá sumir. Não reconheço como ainda tenho o bom senso e respeito com meus colegas que é necessário para não lhe beijar. — Eu voltei — Arfo quando tento dar para trás e percebo que meus pés nem sequer triscam no chão. Peter me segura próxima a ele, estando tão agitado com meu retorno que precisa de um momento para atentar-se para o que faz e me colocar de volta no chão. Poder me afastar não significa que o farei, ou que seus braços se afastaram o suficiente para permitir tal coisa. As suas bochechas estão coradas, assim como a pontinha de suas orelhas onde um fone está pendurado. — Oi. — Repito.
— Oi? É isso o que me diz? Oi? — Peter reclama apesar do seu sorriso e eu assinto só porque tenho vontade. Então os seus olhos avelãs se arregalaram. — Você cortou o cabelo? — Ele indaga atenciosamente, sua atenção desviando-se para meu cabelo, um pequeno movimento de sua mão removendo os fios que ficaram embaixo da gola do meu casaco.
O seu sorriso ainda é tímido, porém surpreso de forma que me agrada. Meu cabelo está mais curto do que eu gostaria. Um pouco abaixo dos meus ombros. Na verdade, está curto ao ponto que não me sinto como antes. Ontem fiquei algum tempo na frente do espelho após o banho, brincando com as pontas recém-cortadas, buscando por um ângulo bom nas esperanças que poderia gostar mais. E eu quero lhe perguntar se gostou do corte ou ainda me pareço comigo, mas Peter é mais rápido.
— Você está linda, ! — Quase suspiro quando beija minha têmpora. Tem algumas pessoas nos olhando, então tento conter minhas reações. — Agora eu consigo ver o seu rosto inteiro sem tanto cabelo te escondendo de mim. Você gostou do corte? — Engulo em seco ao concordar. Os seus olhos se estreitam, sem confiar muito, mas balanço a cabeça, não querendo que se prenda muito em minha falta de confiança. — Tá tudo bem, não é? — Peter respira, rosto baixo como se pudesse ver minha perna através do vestido. — Já está melhor? — Suas sobrancelhas se frisam, questionadoras e receosas.
— Aham — Sussurro, pois tem uma garota tirando os próprios fones para ouvir a comoção que fizemos. — A resposta é sim, para tudo. — Assevero a resposta com um apertar em seu ombro, o músculo tensionado. Engulo em seco, um enorme desejo de não ter tantos alunos nos olhando e podermos conversar normalmente. — Senti a sua falta — Sussurro a mesmíssima coisa que repeti diversas vezes no telefone da última vez que conversamos. Peter afaga minha cintura, sua boca ainda apertada pois alguém passa ao nosso lado. Estamos em público, o que esperávamos? — E obrigada por notar o cabelo.
— Eu também senti — Pete afirma com certeza e segurança, quase manhoso ao dar alguns passinhos que eu acompanho até ele acariciar minha mandíbula com a mão que brincava com meu cabelo novo. Um beicinho rápido se forma no seu rosto, quase birrento pela quantidade de alunos e barulho no laboratório. Alguém ligou uma esmerilhadeira. — Eu também, eu, eu… — Seu rosto dispara na direção do pequeno deque onde o professor está sentado atrás de nós. Ele já foi generoso o suficiente para permitir que nós nos abraçássemos desta maneira em público; não devemos abusar demais. — Eu vou ser suspenso se o Sr. Killian nos pegar assim.
Viro-me para olhar o homem mais velho que foi momentaneamente distraído por um aluno segurando dois pedaços enormes de madeira e fios desencapados.
— Vem cá — Ergo a sobrancelha quando me solta antes de segurar a minha mão com firmeza, começando a dar pequenos passos para trás enquanto mantém-se atento ao professor, até esbarrando na mesa ao nos afastar de onde o resto dos alunos estão e longe do campo de visão do Sr. Killian. — Tenho que te mostrar uma coisa bem legal naquele canto escuro — Encolho os lábios para evitar rir enquanto Peter nos guia para um espaço onde os alunos guardam os equipamentos atrás de uma parede distante. Ele já está sorrindo travesso e eu acabo cedendo, meu coração acelerado. — Onde o professor não pode ver a gente — Passamos por cima de alguns fios antes de desembocar no local ideal. — E eu posso beijar você.
Sua boca está na minha no instante seguinte e nossos dentes quase se chocam pois estamos sorrindo como os dois idiotas que somos; os braços de Peter retornando para acomodarem-se ao redor de minha cintura e minhas mãos em seu rosto. Posso sentir indícios do café que deve ter tomado, assim como o comum sabor de menta das pastilhas que sempre tem nos bolsos. Afago sua bochecha e nuca quando Peter inclina-se mais sobre mim, intensificando o selar que havia iniciado de maneira inocente e agora serve para afogar a saudade que sentíamos. Encolho-me ainda mais próxima dele quando sua língua toca a minha gentilmente, espalhando uma onda de calor por meu rosto e pescoço, onda que sinto também agir sobre ele, seu nariz se pressionando mais em minha bochecha ao mover o rosto e investir mais no beijo que devia ser curto. Curvo os dedos no cabelo na base de sua nuca, minhas unhas recém coloridas de um cor-de-rosa pálido arrastando-se por seu couro cabeludo e presenteando-me com um suspiro vindo de Peter.
Como tornou-se costumeiro, conforme o ar se faz necessário, Peter planta adoráveis beijos de despedida nos meus lábios assim que nos afastamos o máximo que conseguimos. Estou sorrindo de novo quando ele nos embala de um lado para o outro, pequeninos passos para permitir-me respirar, sem nem ousar afastar-nos. Cruzo meus braços ao redor de seu pescoço, na ponta de meus pés para beijar a sua bochecha erguida pelo sorriso estampado em seu rosto e que reflete o meu.
— Senti tanto a sua falta. — Peter segreda para mim, bochecha encostada na minha.
— Foi só uma semana. — Tento atenuar a situação, mesmo que tenha parecido uma eternidade para mim.
— Pareceu muito mais tempo — Sussurra bem baixinho para descartar minha tentativa, como se não fosse possível que houvesse passado apenas uma semana. Ele torna uma semana em algo imortal, faz soar como o espaço de tempo verdadeiramente insuportável que foi. — Tipo três ou vinte. — Seu exagero me faz afastar meu rosto para evitar rir em seu ouvido, ciente de sua audição sensível.
Suas mãos não se afastam de meu corpo apesar da mínima distância entre nós, se movendo do ponto ao sul de minha coluna para meus ombros e de lá para minha nuca e rosto; suaves cheias de carinho por onde passam. Peter é tão gentil que dói, segurando meu rosto entre suas mãos grandes. Ele sorri gigante, seus olhos se apertando até as ruguinhas que eu gosto se formarem intensas. Pete me observa por um longo instante e então me arrebata em um outro abraço de urso. Não contenho minha risada, tentando me convencer que estou me agarrando nele por necessidade; rosto escondido na lateral de sua garganta e pés lutando para encontrar apoio no chão abaixo de mim. Não porque senti tanta falta dele que pensei que iria perder a cabeça. Pete respira com o nariz enterrado em minha pele e todo meu corpo se aquece.
— Não esconde mais nada dos seus pais de novo — Ele pede através de uma risada e eu afago seu cabelo. — Pensei que ia ter um treco se não te visse tão cedo.
— Eu ainda estou de castigo, mas posso continuar vindo para a escola. — Lhe explico quando Peter deixa um espacinho entre nós para poder me olhar.
— Faz sentido. — Não me surpreendo por sua óbvia concordância com o castigo que foi imposto por meus pais, afinal, Peter foi um dos maiores incentivadores para que fosse sincera com eles e já esperávamos por tal resultado. “Eu sei” Dou de ombros ao me apoiar em uma mesa com parafusadeiras, Peter ainda próximo de mim. — Quanto tempo?
— Período indeterminado. — Dou de ombros de novo, afinal, não me importo mais tanto. — Sem Queens. Ou qualquer lugar exceto a escola e o Complexo. — Peter aperta meus dedos. — E terapia.
— Terapia soa muito bem. — Ele repete o que antes e balança nossas mãos entre nossos corpos. Novamente, ergo a sobrancelha para ele e Pete revira os olhos, dando mais um passo até mim e acariciando minha mão com seu dedão. — Sabe muito bem o que quero dizer com isso. — Eu sei bem e por isso lhe ofereço um meio sorriso. Dentre todas as restrições e essas mudanças, é a terapia a que mais me incomoda, assim como os remédios que tomei depois do café da manhã. Peter então ergue a sua sobrancelha, genuinamente confuso. — E sem Queens?
— Sem Queens. — Repito. — O que, por um lado, é mais… — Perco as palavras ao pensar em Hill do lado de fora de Midtown com sua equipe militar. — Por mais insuportável que for, Tony e Hill montaram um time de elite para vigiar o percurso do Complexo pra cá, assim como os oficiais do lado de fora. — Peter assente, pois é óbvio que ele reparou isso. O carinho em minha mão retorna. — Esse circo vai levantar uma suspeita absurda. Não quero que precisem lidar com mais isso no Queens. Não quero arranjar mais problemas, é o que quero dizer. Como está a May?
— Bem. — Seu sorriso genuíno acalenta meu coração ansioso. — A Enfermeira Marge está ajudando muito a manter a May ocupada, já que ela se recusa a ficar quieta e não inventar alguma coisa pra resolver em casa. — Sinto o meu próprio sorriso formar-se com a inquietação dela que se assemelha à minha. — A Dra. Palmer também está fazendo visitas à May de dois em dois dias, o que eu não tenho como agradecer o suficiente ao Sr. Stark. — Balanço a cabeça, pois sei que ele não aceitaria agradecimento algum. Os Parker são nossos amigos, portanto, meu pai não deve imaginar estar fazendo nada além do óbvio para ajudar, assim como também não vejo tanta grandiosidade se temos os meios necessários para tal. — Você tem algum interesse em conversar sobre o que aconteceu em Busan?
A pergunta me pega pelo pescoço, afinal, a morte da Dra. Cho não é um tópico que esperava ser incitado por Peter. Contudo, entendo o motivo dela por discutirmos o estado de saúde de May. Felizmente, Cho não foi responsável pelos cuidados que May precisou após o acidente e sim, a Dra. Palmer. Eu respiro fundo, segurando os dedos de Peter ao fazê-lo, a incerteza entre embarcar nesse assunto ou ignorá-lo por um momento sendo grande. Tive vontade de torcer o pescoço de Cho quando percebi a sua parte na tentativa de me assassinarem; todos os momentos que dividimos sendo resumidos a mais uma mentira e que deveriam ser punidos com minhas mãos em sua garganta e seu sangue nas minhas mãos. Mas agora que tive o tempo necessário para respirar fundo e pensar, para entender que sua falha em acelerar a minha morte foi a responsável pelo seu assassinato, não consigo pensar claramente em como me sinto em relação a isso.
— Ainda não. — Decido-me e Peter concorda de imediato, sem mais questionamentos acerca da posição que adoto sobre o assunto. Considero muito bem as minhas próximas palavras. — Quando pudermos estar sozinhos em um lugar seguro para conversarmos, quero ouvir o que pensa sobre isso.
— Meu posicionamento é o mesmo que o do seu pai, — Não há hesitação no que certifica-me, uma prova do amargor que ele e meu pai compartilham em relação às ações de Helen Cho. Peter aperta os dentes e sua mandíbula salta devido a tensão. — Tive um contato mínimo com ela, mas ainda me lembro do que o Malick fez. — Uma sombra cruza seus olhos, o tom de avelãs tornando-se mais umbroso. — Eu estava lá e não pude fazer nada no momento, mas poderia fazer agora e — Peter respira fundo, abaixando a cabeça com um breve balançar dela. Meu coração se aperta pois, em sua posição, não imagino que tipo de decisão tomaria se soubesse que alguém tentou matá-lo em minha presença e não pude reagir apenas por não reconhecer de imediato a ameaça diante de mim. — E o Tony estava certo em não me convocar para ir com todos os outros para Zurique.
— O Malick vai definhar em Guantánamo Bay, Peter. É suficiente. — Repito as mesmas palavras que Pepper deixou escapar assim que meu pai enfureceu-se após ser informado que Malick cumpriria sua pena em qualquer lugar exceto a Raft, uma prisão no meio do oceano elaborada por ele para o Governo e que foi especialmente criada para para detentos de altíssima periculosidade. — Acabou.
— Não enquanto não localizarem o atirador. — Peter relembra-me.
— A Legião de Ferro está trabalhando nisso. — Informo-lhe da nova demanda designada à Legião por meu pai através de mim. Peter inclina o queixo, consentindo com a decisão tomada. Lamento o rápido desmonte de sua animação que foi demonstrada por meu retorno antes de entrarmos neste assunto. Todas as problemáticas foram solucionadas, seja pela retaliação da HYDRA ou a justiça feita por meu pai, portanto, não quero demorar-me neste tema. — Por favor, Pete — Peço com calma, entrelaçando nossos dedos e utilizando minha mão livre para tocar em seu ombro. O uso do apelido atrai os seus olhos diretamente para os meus e eu folgo minha expressão semelhante a como ele descansa a sua. Suas sobrancelhas, que já haviam se apertado ao pensar nos problemas que havia nos rodeado, relaxam e voltam a posição antiga. — Está tudo bem agora e eu só quero focar nisso. — Ele aperta a boca. — Entendo que temos mais algumas coisas para serem resolvidas, mas já demos passos largos o suficiente para respirarmos.
Seguro na gola de sua camisa quando Peter inclina-se para beijar minha testa.
— Desculpa — Sussurro que não precisa se desculpar, mas, ainda assim, ele repete. — Não estou ajudando na nossa meta de “casal adolescente normal”, tô? — Balanço a cabeça um pouquinho antes de dar um pequeno beijo no queixo dele.
— Tudo bem — Asseguro-lhe. — Ainda temos nossa pior provação pela frente, Parker. — Seguro seu pulso, angulando-o com cuidado para poder olhar as horas. Apesar de precisar passar longas horas em uma sala de aula, fico feliz ao ver que em breve o alarme tocará. Peter também vê as horas e pende a cabeça para trás quando o sino toca. — Aula de Física II, Homem-Aranha.


*


MJ mantém-se quieta durante toda a aula, atenta para as explicações e os exercícios que somos pedidos para resolvermos; tudo isso sem sequer olhar-me ou ter respondido meu “bom dia”, mesmo que estejamos sentadas lado a lado. A mantenho muda em minha mente, evitando qualquer possibilidade de ouvir o que tenha decidido ser verdade sobre mim hoje. A aula não é rápida de forma alguma, sendo quase 120 minutos seguidos de exercícios e teoria extremamente trabalhosa que parece se estender mais na ausência de qualquer som vindo de Michelle ou meu celular para passar o tempo, ou olhares rápidos para Peter pois ele e mais dois alunos precisaram se retirar para a reunião do Clube de Jornalismo. Assim que ele sai, toco em minhas bochechas aquecidas pelo sorriso que me direcionou e o papelzinho que deixou sobre minha mesa avisando que me esperaria em meu armário após a aula.
Mantenho-me atenta às informações na tela de meu notebook enquanto o tempo passa após a primeira onda de exercícios que termino mais cedo, quase entretida com as notícias que ainda abordam os atentados há semanas, assim como a explosão em Busan. As investigações ainda não finalizadas apontam que seria um navio cargueiro contendo cerca de três toneladas de nitrato de amônio que estava atracado no porto há alguns dias. Somam-se cerca de cinco mil feridos até o momento. Logo abaixo, amontoam-se reportagens acerca do “acidente” na Coréia do Sul que matou Helen Cho, assim como inúmeros tributos e mensagens sobre seus incríveis feitos na medicina. Engulo em seco ao ver informações sobre o Berço de Regeneração criado por ela e que foi “responsável por salvar a vida do Vingador Clint Barton” segundo um dos artigos feitos por Helen para uma revista onde explicava os próximos passos de sua pesquisa.
Somente quando me recordo que o Berço de Regeneração ainda é propriedade da Stark Industries e está na posse de meu pai, sinto alguma forma de alívio. A tecnologia criada por Cho é mais valiosa que sua vida, o que me conforta saber que está segura no Complexo ou na Torre Stark. A funcionalidade nanomolecular dos tecidos criados pelo Berço não é passível de deterioração, uma vez que Helen Cho foi capaz de construir um mecanismo que impossibilita as células de sequer reconhecerem os simulacros que são utilizados para criar o novo tecido. Aperto minha boca ao reconhecer que, após a falha tentativa de assassinato e da propriedade intelectual pertencer a Tony, não há coisa alguma me impossibilitando de “herdar” o Berço; entender seu funcionamento e multiplicar a tecnologia para enfim distribuí-la.
Quando chegamos ao fim da aula, envio uma mensagem para Tony através do servidor do celular que ainda está conectado em meu computador e lhe aviso que quero ir na Torre antes de voltar para casa após a aula. Guardo o computador e mais algumas folhas em minha bolsa, evitando fazer qualquer tipo de contato visual com Michelle, focada em sair da sala e fingir que está tudo bem entre nós, mesmo com a tensão que posso sentir ter formado um muro entre nós.
— Que bom que voltou — Seu comentário inesperado me espanta e é o motivo de eu não ter ido embora com tanta agilidade. Olho para MJ com olhar mais questionador possível. Ela certamente não se importa tanto com o meu retorno se ficou quase duas horas calada e evitando até mesmo pegar a folha de exercício que lhe passei. Michele suspira ao guardar o seu caderno de anotações e garrafa de água com um adesivo escrito “Salve os Oceanos”. — O Pateta tem estado miserável desde a última semana — Aperto minha boca. — Sinceramente é patético.
— Não fale assim do Peter. — Exijo ao chamar sua atenção.
Quando estávamos em uma situação amigável, o seu modo de tratar Peter era tolerável e cômico, porém, não o vejo mais da mesma forma pois ela sabe estar fazendo isso de propósito para me atingir. Minha reclamação mudou a sua expressão que se sobressaltou antes de endurecer também, assim como o velho sorriso que MJ mantinha guardado no caso de eu cair nas suas graças e simplesmente esquecer o que havia acontecido entre nós.
— Ainda estamos brigadas, então? — Suas sobrancelhas se erguem e queixo abaixa. Seguro a alça de minha mochila, mas não a coloco sobre meu ombro. Não posso lhe responder; ela diz não me conhecer mais, porém posso lhe dizer o mesmo. — Pensei que já teria superado aquilo tudo depois de uma semana.
— Eu gostaria. — Lhe certifico. — Porém você foi rude e cruel sem motivação alguma. — Tenho certeza de que a minha expressão é um claro reflexo de como ainda sinto o mesmo amargor que senti naquele dia. — Eu sei que você está passando por um momento complicado, mas não quero ser o seu saco de pancada. — Opto pela verdade, mesmo que ela não tenha me dito coisa alguma sobre a situação em sua casa. Talvez Michele reconsidere que eu sou uma boca amiga, afinal, não preciso saber para realmente saber. Ela respira ao apertar a garrafa desbotada, a unha do indicador brincando com a ponta levantada de um outro adesivo sobre oceanos ou tartarugas ou a Amazônia. — As suas analogias incorretas não levam em consideração nem metade das coisas que podem ter acontecido entre mim, o Peter e o Harry. E é loucura que eu precise me defender da minha própria amiga.
— Você está ciente do que fala? — Prendo a respiração para tentar manter-me sã quando MJ me censura com um sussurro quase gritado. — "Não leva em consideração nem metade"? Talvez seja porque você não me fala nada, .
Olho para trás, mas felizmente não há mais ninguém aqui para a ouvir. Michele ainda está me observando na espera de uma resposta que me recuso a lhe dar. MJ não me conhece, não como deveria, e eu não posso me culpar por isso. A vida que levo é a responsável pelas mentiras necessárias para manter a minha segurança e também a sua. São pouquíssimas as pessoas que sabem quem verdadeiramente sou, mas, ainda assim, sofri um atentado há menos de um mês. E talvez isso seja o certo para mantê-la segura: distância.
— Por favor, Michelle. — Respiro fundo, esfregando o corte acima de minha sobrancelha que está quase cicatrizado por completo. — Se tinha tanto interesse em me ouvir, por que decidiu apontar o dedo para mim? Por que não me ouviu antes de dizer quão maldosa eu fui? — A dúvida me escapa e é como jogar sal na ferida. Não quero ser cruel como foram comigo por mais de uma década. Me recuso a ser como as pessoas que me feriram e saber que me considera uma pessoa maldosa me machuca e preocupa. MJ afasta os lábios e respira, porém, os fecha quando nenhuma palavra sai. Mordo o interior de minha bochecha, magoada ao colocar a alça de minha mochila sobre o ombro. — Quando souber, por favor, me procura. — Enfio minhas mãos no bolso do vestido, lutando para que os seus pensamentos não me alcancem. — Não gosto de brigar com você, mas também não quero mais levar tapas na cara porque não sabe se comunicar.
Michele fica para trás quando deixo a sala de aula, meus punhos firmemente fechados dentro dos bolsos pois tento me concentrar em não deixar os seus pensamentos serem decifrados por meus poderes, por mais difícil que for manter a minha mente sob controle. Os pensamentos dela são tão sinceros como as suas palavras e me parece justo fugir deles. Busco por Peter nos corredores, seja utilizando minha visão ou a dos outros alunos, saltando de mente em mente até o localizar por meio dos olhos de Mike Crowley no corredor central onde fica o meu armário. Mike passou rápido por Peter, somente dando mais atenção à ele enquanto desvia de mais algumas pessoas.
Sigo na mesma direção e o encontro de imediato, encostado em meu armário e com o rosto franzido ao olhar algo no seu celular, possivelmente tendo dificuldade em ler devido a tela destroçada e que ele jura o dar mais personalidade. O rosto de Peter se ergue assim que me aproximo um pouco mais e ele me oferece um sorriso compreensivo, pois é claro que ele ouviu minha conversa com MJ e eu suspiro ao me aproximar, o imitando ao apoiar meu ombro no armário e roubar um pouco de seu calor corporal. Peter segura minha mão que está mais perto da sua, lhe dando um aperto gentil.
— Ela perguntou sobre você a semana inteira — A informação me faz grunhir insatisfeita e, ainda segurando a sua mão, abro o armário com um bufar cansado. — Se isso te conforta. — “Conforta e irrita” respondo ao guardar todo o conteúdo de minha mochila lá dentro, incluindo o sanduíche que Pepper fez. — — Mordo a língua para evitar derreter, o apelido usado por Peter e o tom amável de sua voz podendo muito bem fazer minhas pernas enfraquecerem. Somando isso à sua mão gentilmente encostada em minha cintura, uso a caça pelo sanduíche como uma distração da distração que Peter é. — A MJ deve estar arrependida, mas só não sabe como falar isso.
— Não vai doer aprender a pedir desculpas — Resmungo apesar do afagar em minha mão. Encontro o lanche e o guardo de volta no bolso de minha mochila, assim como meu notebook e o livro de literatura. — Sei que está passando por um momento complicado em casa, mas eu não quero ser tratada desta forma por alguém que é tão importante para mim.
— Não quer e nem tem para quê ser tratada assim — Peter me conforta e eu o olho, meu queixo apoiado na porta de metal que escondeu seu rosto de mim. Ele toca, como se acostumou a fazer, na ruga entre minhas sobrancelhas e lhe dissolve. Aperto a sua mão de volta. — Só precisa ter paciência enquanto ela percebe que precisa se desculpar e não deixar a água rolar.
— Já cheguei a mencionar o quão prático você é? — Indago apenas para o ver sorrir. — Como foi a reunião?
— Foi muito legal, ! — Ele exclama e eu fecho o armário, direcionando toda a minha atenção a ele. Pete ergue seu celular para mim, onde posso ver o grupo intitulado “Midtown High News”. — A Betty é a nova chefe da redação e vão voltar a passar os boletins diários assim que recolocarem os monitores nos corredores. O Sr. Cole me ofereceu a minha posição antiga de volta, já que o cara que fazia as fotografias dos jogos se formou ano passado e era ele que tinha assumido. — O seu entusiasmo é palpável, os olhos de Peter brilhando enquanto me dispara as novidades que tanto o alegram. — E eu trouxe a minha câmera nova, certo? — Assinto para que prossiga, feliz que esteja tão animado por algo que lhe ajudei. — E o Sr. Cole me disse que eu podia fotografar mais coisas além dos jogos. E eu posso ter mostrado umas fotos que tirei de uma certa “manifestação” no Queens a favor de uma tal Phoenix…
Arregalo os olhos, claramente surpresa por Peter ter gostado tanto dos "agradecimentos" feitos a mim ao ponto de até os fotografar. Balanço a cabeça devagar, encostando o armário ao gravitar para ele. Suas mãos mornas apoiam meus cotovelos enquanto minhas palmas encostam em seu peito, seja por querer congratulá-lo pelo retorno ao jornal, ou por ser Peter. Ser Peter e eu poder enfim tocá-lo e desejá-lo sem medo de represálias. Somos um casal como ele próprio disse, logo, que mal há nisso se não passarmos dos limites do bom convívio com os nossos colegas? Além disso, é refrescante o ver tão animado com algo como está com o jornal, o que me deixa ainda mais feliz por ter lhe presenteado com a câmera que tornou isso possível, além de reconhecer o quão talentoso e esforçado ele é. Após o acidente de May, senti quando uma aura escura o dominou, sendo o ponto onde toda a sua inocência havia acabado de uma vez.
? — Travo ao ouvir uma voz terrivelmente conhecida.
Ainda incrédula que isso tenha realmente acontecido, dentre todos os alunos de Midtown e meus esforços em manter-me o mais atenta possível a tudo nas últimas vezes que vim para a escola após meu encontro com Harry, viro-me para a pessoa que chama meu nome como a devida estranha que é.
— Gwendolyn! — Me surpreendo por não me engasgar ao soprar o nome dela apesar do choque.
Gwendolyn Stacy talvez seja uma das pessoas mais bem-vestidas que conheço, o que se aplica até mesmo na roupa que usa para vir para a escola. No lugar de um belíssimo vestido como o que usou na festa, ela calça um par de botas da mesma cor de sua calça, que certamente foi feita a sua medida pois lhe cai tão bem. Stacy também veste um cardigã em tom semelhante, assim como uma camisa de lã. Com o cabelo dourado e muito menos maquiagem do que usava na última vez que nos vimos, Gwendolyn parece radiante como o sol, apesar de todo o calor dela não ser nada comparado com a frieza interior que carrega ao se aproximar, exibindo um sorriso contente para mim, apesar do veneno escorrer entre os seus dentes. Gwendolyn estuda em Midtown, é claro; como eu pude me esquecer disso?
Sinto meu coração acelerar por pura ânsia e apreensão, afinal, estou ainda muito longe de ter finalizado tudo o que iniciei naquele encontro com Harry Osborn e Gwendolyn caminhando sorridente para mim com seus braços abertos é a garantia de que não cheguei ao fim. As mãos de Peter que me seguravam acabam por permitir que eu me afaste para receber o abraço apertado vindo dela, de forma que batalho com meus instintos para manter minha expressão amena e não dar para trás, retribuindo o gesto que não carrega nada além de repugnância de ambos os extremos. “Como você é fujona, !” Posso sentir o seu sorriso soprar em meu ouvido quando Gwendolyn nos balança um pouco, fingindo estar realmente feliz ao me reencontrar. “Duas semanas sem aparecer na escola só por medo de me ver de novo?” Afago sua costa, querendo rir.
Só pode ser brincadeira…
— Querida! — Respiro quando Stacy se afasta, colocando o cabelo curto atrás das orelhas ao me analisar de cima a baixo, como fez assim que nos conhecemos na propriedade dos Mittal. — Ugh, como você tem estado? — É fácil crer nas suas expressões e no tom de voz, de maneira que, se não tivesse meus poderes como apoio, imagino que acreditaria que ela realmente tem interesse em me ouvir. — Faz tanto tempo que eu não vejo você por aqui!
— Estive afastada alguns dias por um probleminha. — Minha justificativa é amparada pela palma quente de Peter em minha coluna, o que enfim empurra o ar para fora de meus pulmões e me permite dar um passo para trás, ainda que aparente ser uma ação amedrontada e a faça sorrir, apesar da cara de preocupação que forçou. Peter está aqui, então tudo está bem. Ele desliza a mão para meu ombro e então meu braço, onde toco nela. Espero que Gwendolyn entenda o que significa; que não estou mais em seu caminho. — É bom vê-la outra vez.
Stacy sorri para mim. “Você não faz ideia” Sua mente vibra quando seu sorriso torna-se mais maldoso. “Será que agora é uma boa hora?” Gwendolyn se questiona com agilidade. “Nós três já estamos aqui, então por que não? Isso vai ser tão divertido!”
— Eu sei que avisei que não iria mais incomodar enquanto não me devolvesse a sua redação corrigida, mas é óbvio que eu não podia perder a chance de cumprimentar uma conhecida, Peter! — Não compreendo como me mantenho tão inexpressiva quando Stacy estica a mão para dar um tapinha no braço de Peter e sua pulseira arranha meu ombro; talvez seja pelo choque ou pelo fato de saber que, o que quer que seja isso, é nada além de um joguinho para ela. — Não fazia ideia de que vocês dois se conheciam!
“Não foi assim tão difícil perceber, é claro; porém não é algo que a queridinha dos Osborn precise saber. Ambos convivem no mesmo ciclo de alunos, com o gordinho asiático com os interesses mais clichês do mundinho dos nerds e a garota esquisita com síndrome de ‘não ser como as outras garotas’.”
— E não é como se eu estivesse fugindo de espanhol depois da última semana de provas — Peter deu uma risada descontraída, seu dedão afagando meu braço. O som alegre e despreocupado de sua risada para Gwendolyn esvaziou meu peito mesmo que eu tenha escutado, com um extremo excesso de atenção, cada palavra inocente que disse. — Como as minhas obrigações diminuíram nesses tempos, acho que consigo mandar ela para você na quarta-feira antes da aula. E, — Peter não consegue disfarçar o sorriso em sua voz, o que me conforta mesmo quando Gwendolyn o imita. — A Gwen é a tutora de espanhol que o professor Gutierrez recomendou. E que me ajudou a tirar um 9,8 na prova dele.
— Claro! — Engulo em seco, apertando os dedos de Peter ao enfim fazer alguma conexão entre eles que não me enfureça. Gwendolyn, ou melhor, Gwen, está fazendo um circo para me dar o troco, mas a inerente “ajuda” do professor em os juntar ameniza minhas preocupações. Gwen. — Não havia feito a conexão. — Viro-me um pouco para Peter e lhe dou um sorriso breve antes de me voltar para a loira. — Obrigada pela ajuda, Gwendolyn.
— Gwen, essa é a , lembra que te falei sobre ela? — Stacy assentiu e me olhou suspeita, rindo como se nós tivéssemos um segredinho. “Difícil me esquecer, Petey. Você ficava mais tempo no celular com ela do que estudando na biblioteca. Ou dizendo o quão inteligente o brinquedinho novo do Harry é e como seu espanhol é ótimo ao ponto de poder ser ela a dar aulas para ele se estivesse matriculada na turma do Gutierrez.” — Acho que comentei com você sobre ela, não foi? — A pergunta é direcionada para mim e eu engulo em seco ao assentir. Claramente, Peter não deu a importância certa para Gwendolyn em nossas vidas e eu não posso culpá-lo. Para ele, ela é só a tutora de espanhol, o que me acalma.
— Comentou sobre espanhol e uma tutora, sim. — No telhado enquanto comíamos pizza e você segurava a minha mão. — E eu tenho certeza que a Gwen é uma professora muito boa, afinal, 9,8 significa que não precisará fazer prova substitutiva. — Apesar da vontade que sinto de pender a cabeça para trás e encostá-la em seu ombro para olhar Peter, evito o ato e apenas direciono outro sorriso até ele. Peter sorri gigante para mim, afinal, uma nota como essa o livra de muitos outros problemas em espanhol e lhe deixa apenas com mínimos débitos em outras matérias. “Eu vou vomitar, que ridículo” Volto a minha atenção para Gwendolyn quando ela considera revirar os olhos, aproveitando que estamos distraídos. — Gwendolyn e eu nos conhecemos antes daquele acidente no Brooklyn e nos vimos de novo no sábado.
— Claro, aquele sábado — A pontada de ciúmes na voz de Peter me deixa na beira, mas não reajo além de assentir. — Que bom que já se conhecem.
— Ah, você precisava ver a na festa de fusão dos Mittal, Peter! — Gwen ataca de novo e eu rogo aos céus que se abstenha de mencionar Harry, mesmo ciente que ela talvez não seja gentil ou falsa comigo a este ponto. — Estava linda! — Ela elogia com um sorriso enorme.
— É, eu sei, nós nos vimos naquela noite, também. — Apesar da situação intimidadora, não há possibilidade alguma de impedir o sorriso que força espaço em meu rosto com o comentário de Peter. A situação é revoltante ao ponto que chega a ser cômica e preocupante ao mesmo tempo. Me surpreendo com meu bom-senso de fingir afastar o cabelo do rosto para disfarçar meu sorriso, o que parece ser o suficiente para Gwendolyn despertar-se.
— Bem, eu vou deixar os pombinhos conversarem — Ela despede-se após olhar o relógio na parede atrás de si, dando um sorriso amarelo ao comprovar o horário em seu relógio de pulso. “Dois encontros no mesmo dia, Black… Nada promíscuo da sua parte, certo?” — Te vejo na aula de economia, Peter. — Gwendolyn nos dá as costas e o movimento lança uma brisa adocicada de seu perfume em meu rosto. — Beijinhos, !
Mantenho minha mão no rosto, mas dessa vez deixo escorregar para meus lábios ao tentar controlar o acesso de riso que promete se formar. Não entendo o motivo da risada, talvez pelo absurdo da situação ou por minha prévia crença de que tudo estava enfim se encaixando e teríamos um minúsculo momento de paz. Contudo, percebo que Gwendolyn não é um problema, pelo menos não é um problema tão grande ao ponto de ofuscar os outros em minha vida. Ela não é nada além de um contratempo irritante, principalmente se eu me entregar demais a reconhecer a sua “amizade” com Peter e como ela está se divertindo tanto com a situação.
— O que tá acontecendo? — Mordo meu lábio superior, balançando a cabeça para Peter após ele mover-se e ficar na minha frente, um ombro apoiado nos armários e uma expressão confusa adorável. — Eu perdi alguns capítulos, acho.
— Eu poderia perguntar a mesma coisa, Petey. — Dou de ombros, o apelido usado por ela me irritando ainda assim. As sobrancelhas de Peter franzem ainda mais, revelando que está tão incrédulo e balançado com a situação como eu.
— Bom, eu te disse tudo o que eu sei. É você quem parece saber mais aqui, querida. — Encolho meu lábio, tentando não rir com a ênfase que Peter dá na expressão usada por Gwen para referir-se a mim. Isso só pode ser piada. O sorriso vindo dele, igualmente interessado e divertido com a situação me faz rir também.
Gwendolyn não é um problema, é apenas uma versão feminina e mais astuta de Flash Thompson.
— Tenho aula de francês agora. — Aceno para a direção geral do corredor de linguística.
— Tudo bem — Peter assente e segura meu rosto, inclinando-se rapidamente para dar um beijo na ponta do meu nariz. Toco seu braço na mesma velocidade, preocupada que algum professor nos veja assim. — A gente se fala no intervalo. Me encontra na escadaria pra estufa, tá?
— Tá bom, Petey! — O grunhido enjoado vindo dele me faz rir.


*


Estou terminando de comer minha metade do sanduíche de manteiga de amendoim e geleia de Peter quando ele pega mais algumas das cenourinhas que Pepper colocou em meu almoço, mas ignorando o potinho de iogurte temperado, pegando uma mãozada de pretzels que comprou na máquina da lanchonete e colocando no pote onde eu trouxe a comida.
— Bom, nós costumamos nos encontrar na biblioteca pra estudar. Até no dia do acidente na ponte, nós tínhamos nos encontrado aqui de manhã — Pete prossegue sua apresentação sobre Gwendolyn, testando a cenoura no molho de iogurte ao falar. Como dois pretzels cheio de sal para conter uma careta. — Mas ela nunca me deu sinais de ser como está descrevendo dela, então deve ser uma daquelas pessoas que age diferente dependendo de quem está por perto.
Assinto devagar, ainda mastigando e sentindo um certo incômodo com toda a situação. Na festa de Tony, foi a madrasta de Harry que requisitou que Pepper mudasse o lugar de Harry, o que fez com que nos sentássemos juntos e foi ali que as suspeitas de Gwendolyn se iniciaram sobre o que poderia estar acontecendo entre nós, assim como foi ali que as irmãs Kwon nos fotografaram e minha imagem se espalhou pelo seleto ciclo deles. Logo, ela nos viu em Midtown em algum ponto e toda a sua ilusão tornou-se mais real; ela acreditou que eu havia sido a responsável pelo término e agora, está me fazendo pagar ao se aproximar de Peter. É insanidade, mas há lógica no que faz.
— Ela foi difícil de lidar — Franzi o nariz quando ele fez uma careta após provar a cenoura e o iogurte. Pepper usou iogurte natural, então obviamente está azedo e, com toda certeza, péssimo. Coloco um dos meus morangos no seu guardanapo e ele não hesita em tirar uma mordida. Tomo um gole de água antes de prosseguir com a história após lhe por a par da situação e contextualizar tudo sobre Stacy e Osborn. — Não pelo Harry, somente. Mas parecia estar procurando todos os motivos possíveis para tentar me colocar para baixo. E o Louis disse que o relacionamento deles era conturbado, o que não posso só colocar nas costas dela, mas consigo imaginar como a Gwendolyn deve ter sua parte. — Eu os ouvi conversar na vez que fui ao banheiro, e não posso acreditar que Harry não cumpriu a sua parte no término. — Cheguei a comentar sobre ela com a Pepper e aparentemente a mãe da Gwen é a mesma coisa.
— Não sabia que a Gwen era assim, mas agora que sei e — Peter limpa os cantos da boca com os nós dos dedos, balançando a cabeça ao desaprovar a nova face de Gwendolyn que lhe apresentei. — Principalmente agora que eu sei que ela tratou você assim, vou ficar mais atento perto dela. — Mordo minha bochecha, mas não assinto. Não sei se gosto de como me sinto nesta situação. Não quero que pareça que estou desenhando uma imagem falsa de Gwen apenas para os distanciar, mas é mais pura verdade sobre ela. — Só tenho mais uma prova de espanhol e acho que tenho uma ideia de uma nova tutora para me ajudar. — Peter dá de ombros, sorrindo um pouco pra mim e eu balanço a cabeça, mesmo gostando da ideia de poder lhe ensinar algo. — Sinto muito por ela ter te magoado, . — Seguro os seus dedos quando ele toca no meu joelho, sendo o mais perto que pode me alcançar já que estamos apoiados em paredes diferentes da escadaria e sentados em degraus diferentes.
— Não me magoou, só incomodou. — Lhe corrijo e tento amenizar a situação. Stacy é dificilmente a pessoa mais terrível que precisei lidar em termos de mágoas. — E, no momento, preciso admitir que chega até a ser engraçado.
— Você ficou bem séria falando com ela. — Ele comenta, um sorrisinho se formando e o carinho em minha perna se focando em minha panturrilha a voltar a se encostar no corrimão. — Me lembrou daquela vez que falou da minha namorada no Canadá.
Fecho meus olhos e encosto a cabeça no corrimão, ouvindo a sua risada ecoar pelas escadas.
— Jesus — Sussurro ao lembrar-me de minha exata reação no dia que confessou ser o Homem-Aranha. “Você é realmente hilário, Peter. Vai me dizer que a sua namoradinha no Canadá também é real?” Meu rosto se aquece com a memória. — Desculpa, eu entrei em pânico.
— Eu sei — Ele responde ainda rindo. Quando abro os olhos, Peter está sorrindo ao olhar para suas mãos. — Devia ter te explicado direito. Antes, sabe?
— Acho que se você chegasse de fininho pra me explicar eu teria ficado mais assustada, no mínimo. Daquela vez só me deixou nervosa. — Explico ao limpar minha mão que ainda está um pouco grudenta pela geleia. Fecho o pote com os restos da comida antes de me levantar e dar apenas dois passos antes de me sentar ao lado de Peter nos degraus que está.
Quero ficar próxima dele, ainda mais agora com a situação que Gwen instigou e minha necessidade de falar o que havia acontecido com Harry e lhe recontar tudo. Sei que não gostaria tanto de ouvi-lo comentar sobre algo que aconteceu em um encontro com outra pessoa, então somente posso imaginar o quão incomodado pode ter ficado. Assim que me sento, a sua primeira reação é abrir os braços, então me aninho na lateral de seu corpo igual fiz ao assistirmos Orgulho, Preconceito e Zumbis no Complexo, mesmo sem relaxar muito por não ter onde me apoiar e não querer colocar todo o meu peso sobre ele.
— Não sei se ia ser mais fácil acreditar que o cara que sofre bullying do insuportável do Flash Thompson é o Homem-Aranha. — Parker encosta o nariz em meu cabelo ao mencionar Flash, sua mão que havia apoiado-se em meu braço começando a subir e descer em um ritmo calmo. Apoio minhas mãos em seu joelho, encolhendo os meus e evitando colocar muito peso em minha perna ainda em recuperação. Quero evitar ao máximo sensibilizar a área. — Eu ainda lembro da nossa conversa na casa da Liz sobre pendurar ele no Empire State, mas acho que destruir o carro dele já valeu pelo trauma. — Não ouso considerar o estrago no carro de luxo, imaginando que Flash certamente ficou mais arrasado com isso do que com o fato de ter sido o seu herói favorito a fazê-lo. Fecho um pouco os olhos outra vez, respirando fundo e sentindo o perfume de Peter agora que estou mais perto. — Por falar no Flash, a gente tem reunião do Decatlo amanhã. Com os novos membros.
— Depois da aula? — Precisarei falar com meus pais sobre o Decatlo agora que estou de castigo.
— Aham. — Com a mão livre, ele toca em meus dedos, testando o quão afiadas minhas unhas são. Respiro fundo, lutando contra um bocejo que não iria ser bem-vindo pois ainda temos algumas aulas. — Não tem dormido pelos seus pesadelos ou são os remédios que estão te dando sono? — Curvo os dedos para segurar sua mão. Peter me conhece bem. Me contento em murmurar algo sobre os os remédios e enfim abro os olhos. Não posso dormir. — Então meu discurso deu certo?
— Por enquanto. — Retruco apesar de saber que acabarei mantendo os medicamentos até não aguentar mais. Peter beija minha têmpora, sorrindo ao afagar meus dedos. — Contei para você que estou escrevendo um artigo? — Não sei se Peter repara em como minha voz tremula um pouco. Estou ao seu lado de novo e isso é o suficiente para o meu cérebro ter um curto-circuito com cada demonstração de afeto. “Ah, é? Sobre o que?” A pergunta é sussurrada, quase como se quisesse que eu dormisse. — Sobre o exoesqueleto desenvolvido para o Rhodey. — Sonolenta, fica mais difícil pronunciar a palavra certa, mas consigo. — Vou me inscrever na feira de ciência, a NYCSEF.
— Biomecânica, Srta. Stark? — Sinto meu sorriso se formar. Pete sussurra o último termo, obviamente com um sorriso semelhante em seu rosto. — Vou me inscrever também, até comentei com o Sr. Stark.
— No que tem pensado? — Imagino que se fosse outra pessoa, eu faria essa mesma pergunta, mas é diferente com Peter. Quero lhe ouvir para conhecer mais e mais dele; saber cada detalhe do que o interessa e rememorar-me do quão inteligente ele é, mesmo que eu nunca tenha erguido dúvidas quanto a isso.
— Os efeitos do revestimento de sílica na agregação de nanopartículas de ouro. — Ele me conta. — Quando o seu pai ensinou a gente sobre as nanopartículas, lembra que falou sobre instabilidade? — Eu concordo, mas aperto minhas sobrancelhas. — A instabilidade térmica diminuiria com a sílica.
— Mas a estabilidade física também, não?
— Não no uso médico. — Peter explica melhor o uso de sua pesquisa. — São biocompatíveis e podem servir para transportar medicamentos em terapias-alvo. — “Câncer?” Sussurro tão baixo que me questiono se ele pode ouvir. A palavra me apavora. — Exato. Somente iam dispersar as drogas no tecido cancerígeno, ao em vez de dispersar radiação que mata todas as células de rápida proliferação sem diferenciar as cancerígenas das outras. — Como esperado, a ideia de Peter é grandiosa. — É bem mais saudável do que quimioterapia.
Ao reconsiderar sua pesquisa, não tenho dúvida alguma do quão valioso Peter é; seja por pensar em algo tão imponente em um futuro que, infelizmente, aponta para uma progressiva incidência de doenças no mesmo aspecto que o câncer, tanto por perceber o quão inestimável Peter será para o futuro da Stark Industries e até mesmo para a sua própria empresa. Por meio século, a Stark Industries focou-se na produção de armas e automóveis, somente se tornando a atual gigante em energia e tecnologia de ponta nos últimos dez anos. Genética e biomecânica não parecem um futuro impossível, assim como manter o que já foi útil previamente.
— Já considerou mandar o seu currículo para um estágio de meio-período na Stark Industries, Sr. Parker? — A sua risada me faz rir também, talvez por sabermos o quão ridículo o convite é. O Homem-Aranha somente não é um dos Vingadores em nome da proteção da identidade de Peter, assim como também não faço parte da equipe em caráter oficial em nome de minha privacidade e o pavor da aplicabilidade dos Acordos de Sokovia. — Conheço alguém que pode te ajudar.
Beijo o queixo de Peter enquanto ele ri.


*


A quantidade de neve nas portas de Midtown não parece impedir que os alunos se sentem em banquinhos ou na grama com livros e bebidas quentes enquanto aguardam seus pais os buscarem. Meus dentes estão batendo quando Peter se aproxima com Ned, ambos cobertos de neve e com copos fumegantes em mãos, um sendo colocado de imediato entre as minhas palmas frias apesar da luva de couro que Pepper me presenteou no Natal. Puxo o cachecol que cobria meu nariz e respiro o vapor quente do café, isso meio segundo antes de Peter trocar o copo e eu ser apresentada a um chocolate-quente. Em nome de meus remédios, eu o agradeço me esgueirando entre ele e a árvore acima de nós, roubando uma rosquinha do copo que Ned trouxe. “O Peter não está acreditando que eu acertei a questão sobre a densidade nuclear para o pelo raio de 30Zn 64 Ned explica ao se aproximar. “Defende o seu cunhado, por favor!
— Hoje Sr. Carlsen focou muito em modelos atômicos, não pensei que caia muita coisa assim no SAT — Bebo um gole fervente de chocolate-quente para não rir pelo implorar de Ned ou se engasgar com a palavra pela qual se define. — O Ned foi um dos únicos que acertaram uma questão enorme sobre densidade. — Comento para Peter, observando a sua expressão antes dele abaixar a cabeça e mexer o café com um palito de picolé. — Você errou essa questão, Parker?
— Ele ficou dez minutos encarando o caderno de prova ano passado só por essa questão — Ned acusou e eu ri. — Ninguém mandou você pagar de gênio e fazer Química III antes de todo mundo só pra fazer uma aula com a Liz.
— Essa questão foi desnecessária e não levou a absolutamente nada, pra ser sincero — Pete se justifica após um gole de café. Sua expressão de derrota me faz sorrir um pouco. Liz. Há quantos meses não penso nela? Espero que esteja bem. — É só uma forma de testar se a gente tá decorando fórmulas.
— Que questão de prova não é desnecessária e baseada em memorização? — Questiono, ainda um tanto fria após meu A- em História Americana no ano anterior. Os dois rapazes brindam seus copos de isopor no meu, concordando.
— Você sempre acerta todas as questões de prova, — Peter comenta com o copo a caminho dos lábios. Eu dou de ombros, sentindo minhas orelhas se aquecerem, assim como peito e rosto. — Não lembro de ter tirado nenhuma nota abaixo de A. — Abro a boca para lhe refutar. — Exceto em História Americana. — Pete me dá um olhar querido, se permitindo sorrir um pouco.
— Vocês vão me dar diabetes. — Ned resmunga, tomando um gole enorme do seu café.
Aperto a boca, segurando um sorriso. Pete toca em meu braço, um sorriso entretido e também tímido em seus lábios, dedos escorregando para minha mão e eu prontamente entrelaço nossos dedos. Ned revira os olhos, segurando o café contra o seu peito com uma carinha quase triste, mas Peter aperta minha mão e eu dou um passo para ele, desencostando-me da árvore. Ned está prestes a reclamar novamente por estarmos "grudentos" quando algumas buzinadinhas soam, um ritmo musical que me faz virar a cabeça na direção do som assim como uma boa parte dos alunos faz. O arfar de Ned e o som de alguns cochichos um pouco distantes desviam minha atenção, muito mais que o carro de luxo de meu pai. Antes que eu possa virar-me para saber se alguém está perto o suficiente para ver quem dirige o carro apesar do vidro completamente refletivo, Peter estica o braço e aponta com o seu copo para o final da rua, longe dos alunos e onde ninguém poderá nos ver.
— É o Tony — Ele avisa, indicando o carro com o queixo ainda que não seja necessário.
A grande maioria dos alunos de Midtown estão muito acima da palavra “ricos”, exceto pequeninas exceções, estes sendo bolsistas como Peter, Ned, MJ e pouquíssimos outros. No entanto, mesmo que quase todos possuam condições mais que suficiente para arcar com as custas altíssimas de Midtown através de seus pais juízes, médicos e até os cientistas de sucesso; não há como alcançarem o patamar estabelecido por Tony e seus carros de luxo que são incontáveis, acumulando-se na garagem do Complexo assim como carrinhos de brinquedo fariam no quarto de uma criança que gosta de os colecionar. E, mesmo sem entender minimamente de carros, tenho certeza que este é um dos seus quarenta modelos de luxo que poderiam pagar por décadas e décadas da anuidade astronômica de Midtown para meia dúzia de filhos. — Tinha muita gente olhando.
— Tudo bem. — Aperto a mão de Peter, percebendo como Ned ainda encara o carro com os lábios abertos em um formato circular perfeito. Eu respiro fundo, tensa. — Quer vir conhecer ele, Ned?
— Eu posso? — Sua pergunta me faz sorrir verdadeiramente apesar de minha timidez, mas passo meu braço por seu ombro enquanto permaneço segurando a mão de Peter.
Quando o olho, ele está sorrindo para mim.


*


Minha visita à Torre Stark é um segredo para os funcionários assim como a minha existência é; motivo pelo qual Tony me contrabandeia pelo elevador privativo de maneira que não preciso de um crachá ou me aproximar da mesa da administração no primeiro andar. Meu pai me mantém perto de si quando passamos pelos inúmeros seguranças na garagem, a maioria sendo rostos conhecidos do Complexo que foram evacuados após a descoberta do atentado de Adrian Malick. Algum momento enquanto atravessamos o hall para os escritórios, ouço alguém questionar quem sou eu, porém, quando me viro para trás, ninguém se atreve a fazer contato visual, todos preocupados com outros assuntos quando meu pai passa o braço por meu ombro e questiona-me como foi na escola. Lhe conto sobre as aulas e sobre o projeto de Peter, mas me atento principalmente o que significa estar aqui junto com ele, a importância de estar fora do Complexo e dentro da administração da Stark Industries ao seu lado sem precisar que todos os outros Vingadores (estes que não mais são Vingadores) estejam em nossa companhia.
Stark, Peter havia me chamado há uma semana.
— Avisa pro moleque que você tem acesso àquela plataforma de artigos científicos, e que eu vou liberar para ele também. — Não é uma oferta, é um simples aviso. “Vou liberar para ele também” quer dizer que meu pai não abrirá deixa para Peter rejeitar a oferta, muito diferente de como ele agiu em relação ao carro novo. É a educação de Peter, então entendo o motivo de meu pai se recusar a ouvi-lo dizer que não precisa. — Vocês têm laboratórios onde podem trabalhar na escola? E materiais? — Ele prossegue ao virarmos em um corredor. — Essas pesquisas de vocês envolvem materiais muito caros. Sabe que podem usar a Torre e o Complexo, certo?
— Pensei que somente Vingadores tinham laboratórios próprios — Finjo confusão ao passarmos por algumas portas fechadas, mas todas de vidro onde posso ver inúmeras pessoas ao redor de mesas, com gráficos holográficos e ternos. É assim que percebo como parte das coisas funcionam. — Os caras de terno e que mexem com o dinheiro ficam aqui? — A pergunta faz meu pai rir, assentindo um pouco.
— A Torre Stark é a sede administrativa — Ele me explica, o que se torna mais fácil quando um pequeno mapa holográfico fica apenas há vinte metros de nós no final do corredor das salas de reunião. — Vem aqui, Monstrinha. — Tony chama e se alguém acha minha visita estranha, sejam as pessoas que passam por nós com café ou os homens de negócios nas salas de vidro, não demonstram.
Ao nos aproximarmos do mapa, Tony o lança para cima, forma na qual posso ver toda a planta.
— Na Ala Norte, que é onde nós estamos, ficam as assessorias e a diretoria executiva, mais conhecida como sua mãe — Cruzo meus braços quando ele me guia virtualmente com o token vermelho que mostra onde nós estamos. Pensar em Pepper em um escritório não é novo para mim. — É a parte mais segura da Torre, com fácil acesso ao hangar. Na Ala Sul, fica a secretaria adjunta de logística — Ele me apresenta o outro lado da Torre, onde há cubículos e nem perto de tanto espaço como tem na outra parte. — Os contratos, as oficinas, empreiteiras; tudo passa por eles. A Ala Sul faz toda Stark Industries existir, sem eles não temos fornecimento e sem fornecimento não temos material. Sem material, não há produção.
— Os materiais que vão para o Complexo são comprados aqui, então? — Ele assente, atento para as minhas perguntas. — A Pepper solicita os materiais?
— Os funcionários solicitam os materiais, seja para as oficinas, para os laboratórios… Nós temos filiais em todo canto do mundo, então a solicitação passa pelo setor de logística de cada local — Tony prossegue a explicação. — Eles demandam o material dos fornecedores. O Serviço de Material e Patrimônio é quem faz a distribuição. Ao menos aqui. — Eu respiro, mas assinto. A empresa é interligada, com cada núcleo tendo sua responsabilidade e área de atuação para fazer esse todo funcionar. Tony segura meu ombro e diminui a projeção, apertando meu braço para aliviar a leve tensão que senti estar se formando. É muita informação. — Vou trazer você mais vezes para a Torre, ok? — Diferente dos artigos para Peter, essa é uma oferta e ele aguarda o meu aceite. Eu concordo de imediato. — Não adianta te ensinar sobre a parte laboral e esquecer de que isso aqui é tão importante quanto.
— Por isso colocou a Pepper como CEO? — Questiono ao continuarmos a caminhar. Há muita coisa em minha cabeça. — Para focar na tecnologia e não deixar a papelada atrapalhar você?
— Ser o herói, o CEO e o cientista não dá certo. Não tudo junto. — Tony confessa, respirando fundo. — Essa vontade de fazer tudo e precisar fazer tudo muito bem não é funcional, não nessas condições. — Ele toca no dispositivo em seu peito e eu engulo em seco. — A sua mãe foi a minha assessora por quinze anos por ser a única pessoa, aqui dentro, em que eu podia confiar de olhos fechados. E isso, na posição que eu ocupava e ainda ocupo por trás dela quando me permite, é perigoso. — Há mais um elevador na frente e eu imagino ser o que nos direcionará até Pepper. — Eu não conhecia a minha equipe e não tinha tempo pra isso, mas a sua mãe sim. A sua mãe — Ele suspira ao apertar o botão do elevador. “A sua mãe é outra coisa, imagino que falará. — A sua mãe é outra coisa, — Aperto a boca em um sorriso, minhas mãos no bolso do vestido. Alguém pegou o meu casaco e eu não faço ideia de quem foi. — Assim que ela assumiu, metade dos funcionários foi pro olho da rua e com justificativa, e ela começou do zero a Ala Norte. — Mordo o interior da boca ao entrarmos no elevador. Tony digita uma senha e usa a impressão digital no painel na esquerda. — Quando chegar a sua vez, vai precisar de pessoas de confiança. Amigos e, acima de tudo, família no controle disso tudo.
Ele faz um movimento circular com o dedo, como se indicasse a empresa apesar de estarmos sozinhos.
— Mas vocês estarão aqui pra me ajudar, não estarão? — A pergunta o faz me olhar. Com um sorriso gentil, meu pai pressiona um beijo em minha cabeça, a barba pinicando um pouco minha pele, porém não ouso reclamar.
— Claro que sim. — Ele afaga meu braço, sorrindo mais um pouco ao me olhar no reflexo do espelho. — E agora que estamos aqui, você já pode me falar qual o motivo de ter vindo para pegar os livros do Thor? — Tony ergue a sua sobrancelha para mim e eu friso o nariz, considerando se devo lhe contar a verdade.
No entanto, em luz dos últimos eventos, é fácil reconhecer que a verdade é a melhor opção para nós.
— Quero entender o que está acontecendo. — Confesso com um suspiro. Desde o acidente de May e minha projeção astral onde pude ver e ouvir Peter apesar de estar desacordada, minha curiosidade tem crescido. Em minhas leituras sobre o assunto, poucas coisas foram realmente explicadas de maneira lógica, apenas simples teorias de meu corpo astral sair do campo físico e vagar pelo campo astral. — Tem muita coisa confusa na minha cabeça, muito além do que os remédios podem me ajudar a ajustar e a terapia pode me ajudar a entender. — Encosto-me na parede logo atrás de mim, buscando seu apoio pois é algo difícil de explicar, mesmo que Tony esteja me olhando com toda a atenção do mundo. — Os meus poderes estão — Aperto minhas mãos, sentindo uma leve dormência nas extremidades dos dedos. — Mudando.
Evoluindo. — Tony me imita e também se apoia no elevador, braços cruzados ao me corrigir sem hesitar. Apesar de sua expressão ser a mesma de calmaria que tenta manter em qualquer outra situação, os seus olhos lhe entregam. Ele está compadecido por mim. Meu pai sente pena do que o futuro está trazendo até mim. Assinto devagar, miserável. — Eles eram azul ciano antes. Hoje estão violeta. Em breve vermelhos — Engulo em seco. Vermelhos como Wanda. Amargos como os de Wanda. — Se continuarem assim, é possível. — O seu remendar da suposição é bem-vindo, mesmo que eu saiba a verdade. Ele está certo. — Em menos de um ano, você aprendeu a controlar o teletransporte.
— E projeção astral. — Revelo ao fechar os olhos.
— Você é muito estranha, menina. — Meu pai suspira após alguns segundos em silêncio. Quero acreditar que ele fez uma careta ao ouvir sobre a mais nova habilidade, mas sei que no fundo, isso somente o entristeceu mais e foi uma boa decisão fechar os meus olhos. — Acha que esses livros têm as respostas que quer?
— Não todas. Apenas o suficiente. — As portas do elevador se abrem e eu abro os olhos, encarando mais um longo corredor, todo em tons de concreto, preto e branco, iluminado com luzes azuis claras e amarelo. — Eu quero aprender sobre a Joia da Mente. Entender o que pode estar acontecendo e o que pode acontecer. — Lhe revelo minhas intenções ao deixarmos o elevador e meu pai encostar a mão em minha costa, guiando-me na direção correta. — Eu gostaria de conversar com alguém mais experiente que eu. Fazer todas as minhas perguntas.
Ainda que eu me esforce para lhe contar a verdade, mantenho minhas dúvidas mais profundas em segredo, as guardando no fundo de minha mente pois temo preocupá-lo ao torná-las públicas. A princípio, a maior é no revés da minha longevidade, pois gostaria de saber quantos anos de vida ainda terei ao abrigar tantos poderes voláteis em meu interior. Logo, surgem as mais técnicas, como a dúvida de como meus poderes interagem com o soro do supersoldado que me injetaram quando era uma menina? A última, mais preocupante, é saber quão catastrófica uma perda de controle pode ser? Gostaria de ouvir, seja de quem for, que há algo capaz de me destruir por completo e impedir o estrago.
— Thor disse que a Joia nunca havia transferido seus poderes pra um outro receptáculo. Você foi a primeira que tivemos informações, isso inclui a rede de informações de Asgard, não somente a nossa. Por isso teve uma reação maior e absorveu mais poderes e, por esse mesmo motivo, acho difícil que encontre as respostas que quer. — Sou grata por meu pai não me poupar da verdade que eu já havia previsto. O próprio Thor Odinson havia dito que não entendia a força da Joia. Não acreditava que seu irmão, que a guardou em um cetro por eons, também conhecia. — Isso o que faz é muito além do que dá pra ser medido, . A jóia que te deu os poderes depositou tudo em você; Maximoff ficou com os seus restos. — Abaixo a cabeça pois entendo onde ele deseja chegar. — Pietro
Ouvir o nome de Pietro é angustiante.
— Não me arrependo do que fiz. — Também não me arrependo de como as minhas palavras soam duras.
— Não tô dizendo que precisa se arrepender — Tony me interrompe, balançando a cabeça ao passarmos por uma passarela que leva até onde imagino ser o escritório de minha mãe, mesmo que eu esteja meio zonza com a lembrança de Pietro. Ele teria 22 anos agora, assim como Wanda. — Permitiu que ele vivesse por mais tempo. Não vou culpar você. — Papai para de andar e eu o imito, virando-me em sua direção e evitando olhar como a cidade de Nova Iorque é gigantesca na parede de vidro logo atrás dele. Tony respira com as mãos nos quadris e sobrancelhas apertadas; somente agora percebo que ele não usa óculos de sol. — Você alterou por completo a maneira que o cérebro dele funcionava apenas por querer que ele sobrevivesse. Sobrevivência essa que dependia dos poderes que você permitiu que o cérebro do Pietro despertasse. — Eu matei Pietro. Seus poderes o mataram e eu, em consequência, o matei. — Você salvou a vida do seu amigo. Isso não tem preço, .
Engulo em seco, respirando fundo e tentando assentir. Eu não salvei a vida dele. Posterguei a sua morte.
— Escuta — Tony toca em meu ombro e eu o olho, novamente sendo confrontada por uma expressão cheia de pena. Me questiono se um dia deixarei de ser olhada dessa forma por alguém. — Escuta bem — Ele segura em mim com as duas mãos em meus ombros, afagando os ossos protuberantes com os dedos. Tony balança a cabeça devagar. — Aquilo lá, Sokovia, já passou. Já era, . — Eu concordo. — Essa é a realidade agora, ok? Nova Iorque, Midtown, eu, a sua mãe, o Peter, seus amigos — Mordo minha língua e assinto de novo. — O que for acontecer, seja com os poderes ou o que for, nós vamos resolver, ok? — Repito o gesto e seguro em ambos os pulsos dele. Estou infinitamente cansada. Ele se aproxima e dá um beijo apertado no centro da minha testa antes de me puxar para mais perto e nós continuarmos a caminhar na passarela. — Nós vamos buscar a sua mãe, comer uma pizza cheia de óleo e ouvir ela brigar com a gente. — A proposta é um alívio. — Então nós vamos pegar os seus livros e o pai vai te deixar na Plataforma 9 ¾. Você pode até levar o Parker como bichinho de estimação pra Hogwarts!


Continua...

Voltar Capítulos | Página Inicial | Avançar Capítulos


Nota da autora: Sem nota.



Outras Fanfics:
Phoenix — Civil War [Heróis – Marvel – Finalizada]
All I Want [Restritas — BTS – Em Andamento]
Cotton Candy Clouds [BTS – Shortfic]
Four Seasons [Restritas — Heróis/Marvel – Em Andamento]
Trick & Tease [Restritas – Livros/Harry Potter – Shortfics]
When the Darkness Come [Harry Potter – Em Andamento]
WIRED Autocomplete Interview [Atores/Tom Holland – Shortfic]


QUER FAZER UMA AUTORA FELIZ? DEIXE SEU COMENTÁRIO AQUI.

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
Para saber quando essa fanfic vai atualizar, acompanhe aqui.


comments powered by Disqus