Contador:
Finalizada em: 21/10/2021

Capítulo Único

Meu olhar estava vidrado na televisão há bons minutos, mas eu não saberia dizer o que estava passando. Alguma coisa sensacionalista sobre o número de mortes da Covid-19 naquele dia – como se o problema já não fosse sério o bastante. Suspirei e desliguei a televisão. Tomei um longo gole do meu whiskey, terminando o que já deveria ser minha quinta ou sexta dose. Minha mãe estava certa: eu simplesmente não sabia a hora de parar.
Mas quem é que realmente sabe nos dias de hoje? Eu não aguentava mais ficar preso nesse apartamento vendo as pessoas por câmeras e fingindo que estou rendendo em um trabalho remoto que eu não gostava. Suspirei pela terceira vez em menos de 20 minutos e levantei, indo em direção à cozinha. Desviei de um enorme caco de vidro no chão – resultado do terceiro prato que eu tinha quebrado só aquela semana – e peguei a garrafa de whiskey, me servindo mais uma vez. Eu estava fodido mesmo. Olhei para o meu celular e resolvi ligar para Tracy, minha melhor amiga.
- Fala, mala! Você já viu que horas são?
- Eu realmente não aguento mais. – falei com raiva, a ignorando e recebendo uma risada anasalada como resposta.
- Bebe que passa! – Tracy falou simplesmente e eu mostrei o meu copo na câmera.
- Whiskey? Apelou?
- Eu preciso beber para parar de ouvir as pessoas falando “novo normal” sem querer me matar.
- Hey, respira. Sei que está difícil, mas agradeça por estar com saúd...
- Saúde, minha família, eu sei, Tracy. Não quero parecer ingrato, é só que... Está foda. – falei triste. Sentia saudade da minha amiga, não a via desde o início da pandemia.
- Fica calmo. Você está aí sozinho, eu também estou por aqui presa com meus pais e assim está mais da metade da população que tem alguma consciência social. Para de beber, pelo amor de Deus, toma um banho e vai dormir. Amanhã é um novo dia.
Despedi e desliguei o telefone. Realmente amava Tracy, mas se eu continuasse ouvindo aquele papo positivo no meio dessa merda toda eu iria acabar falando o que eu não queria. Joguei o celular em cima da mesa e olhei para o relógio: 4h58. Sorri em descrença. Estava fazendo mais uma vez o que tinha prometido não fazer no dia anterior.
Larguei o meu copo onde tinha acabado de jogar o meu celular e deixei meu corpo cair sem nenhum cuidado no sofá. Minha cabeça rodou e eu me xinguei por ter bebido tanto. Amanhã as consequências disso com certeza viriam. Comecei a pensar em como tínhamos chegado até ali, em tudo que estava acontecendo na minha vida, e claro, nela. O que será que ela estava fazendo agora? Sorri irônico.
- Dormindo, coisa que você deveria estar fazendo. – falei alto sozinho, sentindo meu corpo cada vez mais dormente. Minhas pálpebras foram ficando pesadas e, sem perceber, peguei no sono.
Acordei assustado com o barulho estridente do celular em cima da mesa de centro, que tocava uma música assustadoramente aguda para meu gosto. Alcancei o aparelho com dificuldade e desliguei o despertador. Já era nove horas e eu precisava me arrumar da cintura para cima para mais um dia estressante numa sala de bate-papo virtual em que eu fingia estar trabalhando e meus chefes fingiam que acreditavam.
Levantei com dificuldade, lavei o rosto e escovei os meus dentes. Tomei um banho rápido e coloquei a primeira blusa social que encontrei na minha frente enquanto ainda trajava minha boxer preta. Sorri sozinho lembrando das piadas que faziam com os apresentadores de jornais sobre não usarem calça social. Isso nunca foi tão verdadeiro como atualmente.
O dia passou devagar – como todos os outros passavam – e eu comemorei quando o relógio marcou 18:00. Hoje era sexta e eu iria aproveitar. Não que eu já não estivesse tratando todos os dias da semana como grandes sextas-feiras, mas isso é só um detalhe. Pedi uma pizza por aplicativo e abracei minha boa e velha garrafa de whiskey. Hoje tínhamos combinado uma “festa virtual” entre amigos e tínhamos prometido nos embriagar juntos. Patético, eu sei, mas era o que tinha disponível.
- Fala comigo! – cumprimentei meus amigos sorrindo verdadeiramente pela primeira vez no dia.
- Eu estou seriamente preocupada com o seu fígado. Troca de bebida pelo menos! – Tracy respondeu rindo.
- É verdade, cara. O whiskey está virando tipo uma água para você, aposto que nem deve ficar bêbado mais. – Adam, meu melhor amigo de infância, completou.
- Vocês devem estar realmente à toa para ficarem se preocupando com o que eu bebo ou deixo de beber. Mas, para vocês não encherem muito o meu saco, hoje eu posso tomar uma cerveja. –
- Claro que estamos à toa, home office para mim está sendo como um feriado prolongado. Eu simplesmente odeio trabalhar remotamente. – Adam respondeu e suspirou.
- O QUE?! – Tracy abriu a boca, surpresa. – Pois, se eu pudesse, trabalharia em casa até o fim dos meus dias. É libertador!
E assim iniciamos uma discussão sobre o home office, que emendou em uma conversa sobre viagens, que virou uma votação sobre o melhor delivery de pizza da cidade e assim por diante. Quando assustamos, já era por volta de meia noite.
- Meninos, isso foi ótimo, mas eu realmente preciso ir. Falo com vocês depois! – Tracy despediu, sendo seguida por Adam.
Sorri satisfeito por falar com meus amigos e peguei mais uma cerveja na geladeira. Eles realmente tinham me convencido a trocar de veneno hoje e eu agradeci por isso. Não que o resultado fosse muito diferente... Eu já estava completamente chapado. Sentei no sofá e abri o Instagram. Era uma verdadeira divisão: alguns reclamavam do lockdown, outros postavam fotos das saídas clandestinas (me fazendo querer agredi-los) e uma pequena parcela formada por apenas uma pessoa fazia meu coração disparar só por postar uma foto segurando uma cerveja. Por coincidência, a mesma que eu estava tomando.
Respirei fundo... Será que eu respondia? Melhor não. Eu já estava bêbado. Coloquei o celular de lado e tentei focar em qualquer coisa que não fosse ela. Mas eu sentia tanta saudade... Quer saber? Foda-se. Qualquer coisa eu culpo o álcool amanhã. Peguei meu celular novamente, tirei uma foto segurando a minha garrafa e enviei para ela.
“Coincidência, estou fazendo o mesmo por aqui. Um brinde!”
Apertei o enter e bufei quase que instantaneamente. “Um brinde”. Meu Deus, eu era mais patético que festas virtuais. Achei que precisaria ficar nervoso esperando uma resposta, mas ela veio mais rápido do que eu esperava.
“Não sou de acreditar em coincidências. Você comprou uma cerveja igual e está fingindo só para puxar papo comigo.”
Sorri largamente e olhei com carinho para o celular. era minha vizinha e ficávamos sempre que era possível antes da pandemia, mas nunca rolou nada sério. Não por mim... Se ela quisessel eu já estaria casado. Mas ela era uma grande e complexa incógnita, que se afastava sempre que tentávamos qualquer coisa mais séria. Durante toda a confusão ela foi ficar um tempo com os pais no interior e desde então eu não a vi mais. Eu tinha prometido que não me iludiria com nada que fosse relacionado a ela, mas era a ... E eu nunca cansava da .
“Você me pegou. Realmente. Quando vi a sua foto, corri para comprar uma cerveja igual a sua para poder conversar com você, rainha do universo.”
Respondi rindo e me assustei com o telefone vibrando. O nome na tela me deixou nervoso. Atendi e me deliciei quando ouvi a sua voz.
- Fala isso na minha cara, ! – ela falou sorrindo, sem nem me cumprimentar.
- Na sua cara? Meu sonho. – respondi deixando a bebida falar por mim. Eu sentia falta demais dela, da sua boca, do seu cheiro, do nosso sexo.
- Seu sonho não está lá tão longe, sabia? – ela disse com uma voz divertida e eu podia jurar que ela estava mordendo o seu lábio nesse momento. Fazia isso com frequência.
- Por quê? Consegue se teletransportar agora?
- Voltei para a cidade. Estamos há uns metros de distância. Como eu transformo a distância de andares em metros? A gente mede isso pela altura? Se formos considerar que eu estou no quinto andar e você no décimo segundo, eu...
- ! Você está brincando comigo? – interrompi o seu papo prolixo de distância com o coração na boca. Eu tinha prometido que não me iludiria mais.
- Não estou. Mas não se anime, estamos em uma pandemia. Não podemos nos ver. – ela completou.
- Eu estou preso em casa há meses, só vejo os milhares de entregadores que vem na minha casa todos os dias. Estou seguro. – ouvi ela rindo baixo.
- Eu também. Não saio do apartamento há quase 20 dias e está um tédio, se você quer saber. – Vinte dias. Então ela já tinha chegado há quase um mês e não pensou em me avisar em nenhum momento... Eu era realmente um otário. Respirei fundo e tentei ignorar meus sentimentos que estavam à flor da pele. Nós não éramos namorados, não conversávamos há meses, ela não tinha obrigação nenhuma comigo. Tomei um longo gole da minha cerveja, fazendo minha cabeça rodar.
- A pandemia pode ser bastante solitária, sabia, ? – falei de uma vez. Eu definitivamente culparia o álcool amanhã se isso não desse certo.
- É mesmo?
- Sim... E acho um desperdício duas pessoas que se dão tão bem estarem sozinhas estando tão perto. Você pode ser minha companheira de quarentena, o que acha?
- Desce logo, . Antes que eu me arrependa. – e desligou o telefone.
Sorri abertamente e peguei duas cervejas – as mesmas das fotos – e me olhei no espelho. Não dava para ser melhor que isso. Abri a porta e chamei o elevador, que decidiu demorar mais que o normal para chegar. Para o inferno o elevador! Abri a pesada porta que dava acesso às escadas e desci rápido, tropeçando nos meus pés. Cheguei em seu andar e meu coração acelerou. Como era possível um ser humano ter tanto efeito sob o outro? Toquei a campainha e me escorei no batente da porta.
- Você deve estar realmente desesperado. – ela brincou.
- Desesperado não. Com saudade. E muito bêbado. – levantei as garrafas para que ficassem em seu campo de visão e ela pegou uma delas, sorrindo e brindando comigo.
Pela primeira vez em meses eu não iria achar tão ruim assim ficar preso em casa.




Fim.



Nota da autora: Oi, gente! <3 Espero que tenham gostado dessa história que é curtinha, mas intensa! hahaha
Eu amei participar desse ficstape, o álbum é incrível assim como todas as histórias dele. <3

Ei, leitoras, vem cá! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso para você deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI.


Outras Fanfics:
  • Lettres Roses
  • 02. Wanna Play
  • 08. Keep It Down Low
  • 05. Delicious


    Nota da beta: Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


  • comments powered by Disqus