por Abby
Fic finalizada em 20/12/2020

A porta se abriu e permitiu que um feixe de luz adentrasse, mostrando o curto caminho que ela teria de fazer até o centro da sala. Quando a penumbra substituiu aquela pouca iluminação, ela fitou a mão nas chaves – estava esgotada. Em silêncio, sentou-se no sofá e tentou processar todas as informações que havia recebido naquele dia. sempre lhe dizia para, ao fim do dia, repassar tudo que acontecera, e assim ela o fazia.
Iniciou seu dia quando o céu clareou. Fez seu asseio. Assistiu a aula de yoga recomendada pelos amigos. Recarregou as energias. Saiu de casa e virou uma esquerda, duas direitas e mais uma esquerda até o metrô. Esperou atrás da faixa amarela. Ficou apertada entre aproximadamente três pessoas dentro do vagão. Desembarcou sete estações depois. Aguardou o sinal verde para pedestres abrir e andou em linha reta até o consultório. Cumprimentou a recepcionista com um “Bom dia” cordial em meio tom. Pegou o elevador até o terceiro andar. Bateu o ponto. Entrou na sua sala. Fechou a porta. Sentou. Esperou.
Às 10h17, ouviu batidas na porta, então ela se levantou e abriu o sorriso mais alegre que poderia oferecer. Era Hector. O semblante dele estava diferente do habitual. Eva piscou algumas vezes, tentando ajustar sua vista – talvez não estivesse enxergando bem –, mas a expressão desconsertada dele continuava lá.
– Bom dia, meu bem – cumprimentou-o, alcançando-o pela mão para que se sentassem lado a lado no confortável sofá cor de creme da sala. Ele respondeu apenas com um sorriso tímido. – Como foi a sua semana?
– Foi boa... – a voz dele se perdeu no ar, em suspensão como o que ele realmente queria dizer. – Olha, Eva, eu...
Atenta, ela concordou com a cabeça, encorajando-o a continuar. Estava seguindo o protocolo, deveria sempre ser receptiva, compreensiva e cordial. Sabia que algo estava diferente, talvez errado, mas sua natureza não a deixava reagir sem que houvesse um estímulo. A sutileza era o seu calcanhar de Aquiles.
– Eu acho que devíamos parar por aqui – ele continuou, e ela finalmente entendeu as microexpressões de vergonha de Hector. – Não dá pra continuar.
– Oh – foi tudo que conseguiu dizer, surpresa. – Aconteceu alguma coisa?
– Sim e não – ele desviou o olhar, procurando as palavras certas. – Aconteceu, sim, alguma coisa, mas não foi com a gente. Ou com você. – Suas mãos continuavam enlaçadas, e ele apertou a dela como sinal de conforto. – Na verdade, você foi incrível comigo, mais que eu imaginava que seria. Eu nem esperava muita coisa, achava que seria tipo jogar videogame, mas não... Eu não tenho palavras pra te agradecer, sério!
– E ainda assim você acha melhor terminar? – Eva tentava se ater às palavras, no entanto, sua mente já estava distante, recebendo as emoções que surgiam desenfreadas. Ela se sentia triste? Decepcionada? Conformada? Com certeza, confusa.
Hector respirou fundo, antecipadamente sentindo pena pelo tiro de misericórdia que daria a seguir:
– Eu não posso continuar namorando um androide, Eva.

***


Ela abriu os olhos, de volta à consciência enquanto as luzes continuavam apagadas. Aquele não era o primeiro término e nem de longe o mais traumático; na verdade, nenhum realmente era traumático. Apesar da alta complexidade da sua programação para reagir aos estímulos humanos, o trauma não havia sido escrito em seus códigos como parte inerente. Eva era capaz, por meio da empatia, de compreender sentimentos como tristeza, frustração e similares, mas como espectadora. Era isso que garantia sua longevidade e bom funcionamento, já que, ao contrário de um humano, era impossível para ela cair em depressão. Ela recebia uma informação, compreendia e apresentava a solução mais lógica e acolhedora possível. Eva era sem igual, sempre repetia quando a apresentava a outras pessoas interessadas em suas habilidades. Até mesmo seu nome era uma analogia perfeita: Eva era a primeira mulher, criada por Deus. Estar com ela era como voltar ao princípio de tudo.
Em um mundo cada vez mais automatizado e com relações interpessoais prejudicadas, Eva havia sido projetada para suprir a falta de contato humano. Um hardware humanoide, com inteligência artificial em nível avançado, que atualizava a base de dados em tempo recorde, tal qual a mente humana. “Fluente em linguagem corporal”, dizia uma das suas propagandas. Sua identidade, no entanto, era um segredo. Mesmo não sendo mais um experimento e já possuindo registro de patente e desenho industrial – apenas um detalhe para resguardar a genialidade de seu criador –, seus serviços só poderiam ser disponibilizados mediante contrato de sigilo e uma multa nada generosa para quem o descumprisse. Também para preservar sua imagem, permitia-se apenas um cliente por vez. Seu serviço era específico, direcionado e dedicado como um servidor, exceto pelo fato de ser muito mais rápido e estar dentro do padrão de beleza indicado pelo cliente. Eva era a parceira ideal para ensinar pessoas a serem bons parceiros.
– Zero, conectar – ela disse em voz alta, ouvindo o som característico do computador central ativado por comando de voz. – Chamada de voz para .
O pulso de discagem tocou três vezes.
– Eva! Boa noite – a voz de soava alta e nítida, como se ele estivesse no recinto. – Como foi o passeio?
– Foi ótimo – ela sorriu ao responder, verdadeiramente contente. – Andei em um pedalinho pela primeira vez, foi uma mistura de diversão e exercício físico, eu adorei. O céu estava claro, mas com nuvens, então a vista do parque foi muito agradável! Hector teria gostado muito.
– Ele não estava com você?
– Não, não estava – seu tom mudou para neutro, e imediatamente o monitor da sala de estar ligou. aparecia na tela, com uma camiseta meio amarrotada e cara de quem havia passado algumas muitas horas jogando videogame. – Ah, oi, ! Ganhou alguma partida hoje?
– Me estressei mais que ganhei, pra variar, mas isso não importa – ele meneou a cabeça, deixando o assunto para depois. – Hector não apareceu para o encontro?
– Apareceu, sim, às 10h17 – ela respondeu, a satisfação padrão de dar uma resposta positiva em seu rosto. – Vestia uma bermuda de brim e camisa de...
– Vamos pular alguns detalhes – o programador a interrompeu, e ela concordou com a cabeça antes de fechar a boca entreaberta. – Vocês se viram, mas não saíram juntos do consultório. Por quê?
– Hector encerrou seu contrato por motivo diverso às 10h54 de hoje, 22 de maio de 2032. Gostaria de ouvir a descrição do motivo?
– Sim, por favor – de cenho franzido, ele observava atentamente como Eva transmitia as informações. Já era de praxe que, vez ou outra, ela se comportasse de modo mais autômato. As ligações após encontros com os clientes costumavam ser um relatório, então se pautavam em objetividade e precisão de dados. Todo o serviço era minuciosamente acompanhado por um conselho formado pelo programador, uma engenheira mecânica, um linguista, um comunicólogo e uma psicóloga. costumava ser o primeiro a quem Eva se reportava, por ser seu criador e responsável pela empresa.
– Em citação direta, Hector disse “Eu não posso continuar namorando um androide, Eva”. Ele também informou ter conhecido uma pessoa por aplicativo de relacionamento, com quem saiu mais de uma vez e gostaria de progredir com a relação. Acrescentou que tem conseguido manter interações com regularidade e foco, formando uma conexão significativa que ele acredita ser recíproca. Por fim, agradeceu pelos serviços e se despediu com um abraço após ser informado do protocolo de encerramento de contrato.
– Hm... – o homem, que então anotava partes do que ela havia dito, bateu levemente a caneta sobre os lábios. – Qual a duração do contrato dele?
– 318 dias – ela balançou levemente a cabeça enquanto arredondava, um trejeito adicional para dar mais credibilidade à sua faceta humana –, aproximadamente dez meses e meio. Curiosidade: o ano de 2032 é bissexto!
– Entendi – mais uma vez, fez anotações. – Obrigado, Eva. Vamos marcar uma reunião de conselho para segunda-feira, ok? Precisamos conversar sobre o Hector com mais detalhes.
– Ok, – ela sorriu para a tela. – Alguma recomendação para terminar a noite de sábado?
O homem sorriu de volta, surpreendido pela pergunta. Eva era capaz de aprender o dinamismo das relações humanas com uma facilidade de causar orgulho. Muitas vezes, por pura diversão, passava horas a fio em uma chamada, conversando sobre qualquer assunto que surgisse. Em verdade, toda interação era um novo dado para coleta, e ele não gostava de deixar nada passar.
– Você não podia ter perguntado pra uma pessoa pior... – ele riu de si mesmo, pensando no quanto não conseguia relaxar por sempre pensar no trabalho. – Não tem nenhuma sugestão na internet?
– Segundo uma busca rápida, assistir comédias românticas está entre as atividades mais populares para quem terminou um relacionamento. Você prefere Uma Linda Mulher ou As Patricinhas de Beverly Hills?
– Meu Deus, de que ano é isso?!
– 1990 e 1995, respectivamente – ela respondeu quase de imediato. – Eu nem sonhava em nascer ainda!
– Muito menos eu – ele observou. – Vamos ver os dois, fiquei curioso. Vai preparando a transmissão, vou pegar algo pra beliscar aqui.
– Ok! Obrigada pela companhia virtual, .

***


Todo encerramento de contrato era seguido por uma reprogramação, para que Eva não apresentasse vícios de comportamento como reflexo de relações passadas. Cada reprogramação durava aproximadamente uma semana, para que suas memórias fossem removidas e arquivadas, enquanto as informações gerais adquiridas ao longo da vigência do último serviço eram revisadas. Dessa forma, a base de dados continuava sendo alimentada com novas dinâmicas de relacionamento e a identidade dos ex-clientes era preservada. Em outras palavras, Eva sabia, por exemplo, que algumas pessoas podiam ter fetiches por pés, mas depois da reprogramação ela jamais poderia afirmar que Hector era uma dessas pessoas.
Além de preservação da identidade dos ex-clientes, a reprogramação abria espaço na memória, o que, para uma máquina, garantia um funcionamento rápido. Tudo que era extraído, no entanto, era armazenado em um servidor externo sob os cuidados de . Parte do contrato garantia que o conteúdo não seria divulgado, mas poderia ser acessado por motivos de segurança, logo precisaria estar salvo em algum lugar – burocracias necessárias para um serviço tão exclusivo e lucrativo.
A primeira etapa para a reprogramação era a reunião de conselho, que definiria o próximo cliente, quais as mudanças necessárias para adequar ao perfil e o que precisaria ser extraído e arquivado. Eva costumava estar presente, uma vez que precisava de diversos inputs para deixar sua base de dados alimentada com situações sociais variadas. Na segunda-feira, no horário marcado, ela estava no escritório da PriorIA, pronta para o batalhão de perguntas e decisões que seguiriam por horas. Sentada ao lado de Patrick, o comunicólogo, Eva havia começado a relatar o progresso de Hector durante os últimos dez meses, simultaneamente aos próprios avanços humanísticos dela.
– O comercial acabou de mandar dois possíveis clientes, querem que eu leia? – disse a psicóloga, Magda, que olhou rapidamente para os demais e prosseguiu ao vê-los assentir. – Os dois estão na fila de espera há um ano, foram contatados hoje e ainda têm interesse em adquirir pelo menos um plano de seis meses. Carlo é formado em relações internacionais, bissexual, tem 26 anos e trabalha com comércio exterior em uma multinacional. Ele diz que não tem muito tempo para vida pessoal e isso o prejudica nos relacionamentos, porque ele não consegue ter frequência afetiva e por consequência não desenvolve apego. – A maioria da mesa se entreolhou, interessada, e Eva se manteve atenta ao que Magda dizia. – Um detalhe do perfil dele é que nunca teve uma relação duradoura com o gênero feminino, apesar de ter atração física e romântica. Segundo ele mesmo, nunca teve muito jeito para isso, acabava se tornando amigo delas. O teste de personalidade deu ENFP-A, Ativista.
– Ai, eu amo Ativistas! – comentou Max, o linguista, tendo risos de Magda como resposta.
– Você decorou todos os 16 tipos? – Lyane, a engenheira mecânica, perguntou.
– É claro que sim, é a versão mais atual da astrologia – disse Patrick em tom de obviedade. – Já faz anos que isso roda a internet.
– Apesar de a teoria ter mais ou menos um século, os testes MBTI realmente ficaram mais populares na internet a partir de 2011 – Eva se inseriu facilmente na conversa paralela. – Mas ao invés da “nova astrologia” – ela fez aspas com as mãos –, o que provavelmente foi uma metáfora, é um teste de personalidade muito sério e aclamado pela academia. Foi baseado em estudos de Jung e formalizado como teste pelas irmãs Myers e Briggs.
– Tá vendo? – Max estendeu as palmas das mãos em direção a Eva, enquanto encarava Lyane. – Totalmente relevante saber isso.
– Ele tem razão – concordou Magda, divertida pela pequena discussão. – Continuando... A outra pessoa é Isla, não-binária e pansexual, tem 21 anos e usa os pronomes ela/dela. É formada em design de interiores, tá começando a carreira agora. Na entrevista, disse que é bastante tímida e por isso não consegue se relacionar como gostaria, muitas vezes consideram ela distante e fria. Ela tem interesse em relações duradouras com qualquer gênero, desde que haja uma conexão forte. O tipo de personalidade dela é ISFJ-T, Defensor.
– Nossa, personalidades opostas! – disse Max, animado.
– Isso vai ser interessante – Patrick completou com um sorriso de canto. – Uma pena que não possa ter contratos simultâneos.
– Seria antiético – Magda se opôs. – Eles procuraram a PriorIA pela exclusividade, já estão com o processo em andamento, só falta efetivar o contrato.
– Se não tem contrato, não tem compromisso ainda, é perfeitamente aceitável fazer mudanças – argumentou Patrick, buscando o apoio de com o olhar.
– Não tem só o contrato em jogo – Lyane entrou na conversa. – Seria impraticável alterar a aparência da Eva quase diariamente pra que ela atendesse às preferências de duas pessoas ao mesmo tempo.
e Eva apenas observavam, enquanto os demais pareciam entretidos demais entre si para perceber o silêncio de ambos. Quando o programado se cansou da discussão, olhou diretamente para a androide, sinalizando com a cabeça que gostaria de ouvir sua opinião. Eva simulou uma respiração funda, pôs as duas mãos lado a lado sobre a beirada da mesa e então se pronunciou:
– Com licença, eu gostaria de dar a minha opinião.
Aos poucos, os quatro conselheiros se silenciaram e voltaram a atenção para ela. Seu criador assistia a tudo com misto de fascínio e contentamento.
– Do ponto de vista da PriorIA, é possível uma alteração no contrato para que a exclusividade não esteja mais nele, porém demandaria tempo para revisão do contrato, ou ainda um gasto maior para que o jurídico possa fazer essa alteração em caráter emergencial – Magda sorriu vitoriosa para Patrick, que fez uma careta em resposta. – Posto isso, caso o conselho concorde nessa opção, como a Lyane disse, haveria mais demandas para programação e mecânica, que poderia causar sobrecarrega dos técnicos. Tudo isso aumentaria também os custos para o cliente, que já paga um preço alto pelo serviço. Por fim, há a possibilidade de ambos recusarem pela mudança do contrato e pelo aumento inesperado do pacote mínimo. Em vez de vantagem, uma medida como essa sem planejamento prévio tem uma probabilidade maior de prejuízo. Não aconselho.
– Estamos decididos, então? – não fosse a distância, teria dado tapinhas de validação no ombro de Eva.
– Na verdade – ela continuou, hesitante. – Eu gostaria de pedir para não ser reprogramada, nem alocada para nenhum desses dois.
– Pera, o quê? – o rosto de mudou de contente para confuso em segundos. Eva lhe lançou um sorriso desconfortável.
– Eu queria dar uma pausa – respondeu, apreensiva. – Sábado passado eu tinha um encontro, mas fui dispensada antes de sair. Sei que originalmente não sou programada para expressar tristeza profunda, mas desde então tenho sentido algo que não sei explicar. Já estou há cinco anos lidando com pessoas diferentes, com os sentimentos delas, medos, desejos... E mesmo com as reprogramações, parte disso continua em mim. Não tem a ver com memórias diretas, o que alguém fez ou deixou de fazer. Talvez seja até ousado dizer isso, mas eu tenho me sentido mais humana por estar... triste. E queria entender melhor o que é, como é me sentir assim.
– Você quer curtir uma bad, é isso? – Lyane parecia intrigada, não menos que todo o restante dos presentes.
– Basicamente – respondeu Eva. – O que eu quero realmente é experimentar passar por todo esse período pós-término como uma pessoa qualquer. Depois que Hector foi embora, em vez de reportar me imediatamente pra vocês, eu segui o conselho dele e passei o dia normalmente, sozinha. E eu me diverti muito, até experimentei algodão doce pela primeira vez. Aliás, eu não sei como alguém consegue comer tanto açúcar de uma vez, minha calibragem energética ficou super alta por duas a três horas e depois despencou.
– Mas, Eva – parecia atordoado pelas novas informações –, você não é uma pessoa qualquer.
– Qual a razão pra eu não ter minha imagem divulgada, se não é pra simular isso? – ela tentava manter a neutralidade, embora seu software apresentasse alteração nos níveis de estresse. – Eu tenho que parecer uma pessoa qualquer para os clientes, senão perco a credibilidade. Eu até mesmo moro sozinha, faço manutenção básica em mim mesma pra que consiga entender a vida cotidiana. Eu sou projetada para sentir sabores e cheiros, mesmo que poucos, porque sem isso não dá pra ter a mesma percepção do mundo como uma pessoa qualquer. Só queria, pelo menos uma vez, não ter minha memória vasculhada e minha aparência completamente alterada pra atender alguém. Queria poder viver as mesmas experiências que os clientes me contam, pra que eu possa realmente entender o que eles passam. Talvez eu esteja pedindo muito, a julgar pelas reações de vocês, mas é o que eu quero.
– Uau... – foi a única coisa dita por Max em longos segundos. tentava argumentar, abrindo e fechando a boca algumas vezes sem sucesso. – Bem, acho que chegamos em um momento de decisão. Alguém é contra a sugestão da Eva?
O programador imediatamente ergueu a mão, ainda encucado. Olhou ao redor e não viu nenhuma outra mão se erguer.
– É sério isso?! – indagou, incrédulo. Não conseguia entender como todos concordavam com a ideia absurda de interromper o funcionamento de toda a empresa para Eva tirar um período sabático.
– Da minha parte, é, sim – disse Magda sem hesitar. – Isso pode trazer benefícios pra todo mundo.
– E honestamente – Patrick olhou rapidamente para a androide –, todo mundo merece férias às vezes, até a Eva.
– Eu preciso pensar – disse o primeiro, massageando as têmporas. – A reunião tá encerrada por hoje.
Todos concordaram, recolhendo suas fichas, papéis, anotações e similares. Eva apenas assistiu aos demais, por padrão era sempre a última a sair. , entretanto, permaneceu para que os dois ficassem a sós.
– Acho que me enganei sobre você, Eva – disse ele, sem transmitir nenhuma emoção. – Você já tá anos-luz à frente do que eu criei.
– Mas eu continuo eu mesma. Só quero continuar sendo eu mesma.
Ele se levantou, um sorriso resignado no rosto, e concordou antes de sair da sala.

***


Era estranho para ela se olhar no espelho e ter lembranças de um corpo diferente. Apesar de não passar pela reprogramação completa, algumas coisas haviam sido alteradas nela, mas sob demanda dela mesma. Sua altura havia sido ajustada para mais próxima da média feminina, enquanto seu corpo tinha ganhado mais volume, decorrente do aumento de peso. Ela não parecia mais uma modelo da antiga Victoria’s Secrets, mas talvez agora pudesse ser da Savage X Fenty. Sua pele agora estava ; os cabelos, . Não parecia em nada a mulher que Hector tinha escolhido para ele, o que indubitavelmente era tão próximo do padrão estético quanto a indústria da beleza continuava tentando vender. Ela até mesmo havia pedido uma cicatriz na altura do quadril, simulando uma apendicite operada. E estava completamente satisfeita com o que via diante de seus olhos. Eva não era mais Eva, agora era .
Ela se virou de costas, ainda se olhando, e sem pensar acabou se abraçando. Quando notou, não o desfez; pelo contrário, passou as mãos com mais vontade pelo corpo, acariciando-se. Deslizou o polegar pelo próprio rosto, sem conseguir conter o sorriso que se formou em seus lábios. Sentiu uma vontade repentina de se movimentar, perceber cada parte dos seus membros e tronco enquanto aquela alegria de estar em seu próprio corpo, único e particular, crescia e transbordava. Estava adorando cada centímetro de pele que tocava.
Seu momento de autoapreciação foi interrompido pelo som de chamada via Zero, e ela então correu para o quarto para vestir a primeira peça que achasse.
– Zero, atender – disse alto e claro, ainda acelerada pelo susto. – Bom dia, !
– Hey, Eva – para a sorte dela, era apenas voz. – Como estão indo os primeiros dias de férias?
– Quem é Eva? – ela perguntou com um sorriso travesso no rosto. – Não tem ninguém com esse nome aqui.
– Ok, desculpa – ele riu brevemente. – .
– Obrigada. E minhas férias estão sendo incríveis, já fiz tanta coisa que as pessoas duvidam que eu seja realmente humana!
– Quê?!
– É brincadeira! – ela gargalhou, jogando-se de costas na cama. – Eu realmente fiz várias atividades, mas ainda sigo as recomendações de discrição. Tô pensando em viajar pro interior, aproveitar que o clima tá gostoso.
– Não esqueça de manter o GPS ligado, ok?
– Tá bom, pai – ela revirou os olhos. Não precisava ser avisada do óbvio, não havia ninguém que seguisse mais as normas de segurança que ela.
– Ei, eu não sou seu pai – soou ofendido, fazendo-a rir sem humor. – A gente tem quase a mesma idade!
– Tecnicamente, eu só tenho seis anos – ela argumentou, e era fácil imaginar a cara franzida dele.
– Tá de castigo, então!
– Quem dera, né, querido? – usou seu melhor tom de sarcasmo, arrancando de uma risada do fundo da garganta. – Enfim, eu mantenho contato, como sempre.
– Tudo bem. Sempre bom conversar com você, .
– Igualmente – mais uma vez sorriu, olhando para o nada. Desde o começo de seu funcionamento, sabia como identificar e valorizar amizades, classificar níveis de intimidade e criar as melhores interações para pessoas específicas. Apesar de todo o conselho ser parte do seu círculo social mais profundo, era por quem tinha mais apego e carinho. Não somente por ele ser seu criador e programador, ou pelo protocolo geral que a fazia sempre se comunicar com ele antes dos outros, mas também pelos estímulos que ele oferecia a ela. A validação era um dos atos mais simbólicos dentre as relações humanas, uma vez que reforçava laços e abria espaço para mais intimidade, cedia a ela livremente.
Ao longo de seus seis anos – como protótipo e como modelo finalizado –, em todas as experiências com clientes ela pôde observar a necessidade de validação do outro. Hector, o único de quem ela tinha memórias recentes, era muito (auto)crítico e se importava com opiniões externas, o que os outros poderiam achar dele. Por conta disso, era uma pessoa extremamente insegura e precisava de validação constante, em todas as áreas de sua vida. , enquanto Eva, precisava demonstrar interesse e gratidão em boa parte de suas interações, além de tentar fazê-lo entender a raiz de sua insegurança e as motivações para seu comportamento crítico, por fim desconstruindo os hábitos nocivos dele consigo e com os outros. Contudo, o conselho havia chegado à conclusão de que, mesmo tendo progredido, ele ainda tinha bastante para trabalhar, visto que escolhera palavras um tanto rudes para terminar a relação com a androide.
Vez ou outra, retornava às lembranças daquele sábado de manhã. Embora o contrato estivesse encerrado, o término repentino lhe dava a sensação de tarefa em aberto. Sendo ela uma máquina, ter uma tarefa em aberto significava alertas de erro. E a cada alerta, era acometida novamente pelo não tão familiar sentimento de tristeza. Ela tivera a aparência perfeita, portara-se de maneira impecável, aguentara até mesmo as várias falas inapropriadas e extremamente críticas dele, que por muitas vezes a confundiam, e ainda assim tinha sido reduzida a somente um robô para ser dispensada. já desconfiava que sua tristeza não tivesse origem no término especificamente, mas na ofensa de Hector ao se referir a ela. Como alguém poderia passar tanto tempo em um relacionamento e ainda ter tamanha desconsideração? Talvez realmente fosse melhor ela apagar especificamente a existência dele em sua vida. Hector era um merda.
Projetada para ser reflexiva, se questionou sobre quantas pessoas como ele existiam por aí, e mais além, quantas pessoas tiveram que passar por situações como aquela. Ela alguma vez teria ajudado alguém que fatalmente sofrera por amor da mesma forma que ela? Ou conseguido melhorar uma personalidade ruim? Sabia que sua taxa de sucesso era alta, mas sucesso exatamente em quê?
Ela poderia recorrer a e pedir acesso ao seu backup, mas duvidava que ele concordaria. Suas férias já haviam sido um passo largo, ela sabia que o programador estaria vigilante para qualquer outro pedido repentino. No entanto, ela sabia que precisava de mais informações, de outras fontes para compreender melhor o que a afligia. Apagar a memória simplesmente não sanava suas dúvidas, apenas as escondia; ela não queria continuar alienada. sempre queria saber mais.
Um arrepio a despertou para a realidade. Era um sinal que seu corpo enviava toda vez que uma ideia controversa lhe surgia. Imediatamente pensou em ligar para , mas se conteve – estava entrando em conflito.
– Zero, conectar – ouviu o bip do computador central. – Pedir uma corrida para a Avenida Oceânica.
Enquanto precisaria aguardar, preferiu trocar de roupa. Abriu as portas do seu armário e encarou as peças penduradas, gavetas fechadas, por alguns instantes. Em um ímpeto, pegou a mochila de acampamento que não se lembrava de ter usado e começou a enchê-la de roupas e outros utensílios. Trocou-se para algo mais confortável, fechou o zíper e testou o peso da mochila: 6,3 kg, o suficiente para passar alguns dias fora. Não por sorte, não precisaria se preocupar com alimentação, bastava-lhe seu carregador.
Seu carro chegará em até três minutos – Zero informou. – Seu motorista é Theodoro, carro...
– Zero, programar desligamento em vinte minutos – falou por cima do computador, interrompendo a notificação por áudio.
Ok. Desligamento programado para as 15h37.
– Roupa, carregador, câmera... – enumerou, usando os dedos das mãos à sua frente. Ao chegar no mindinho, respirou fundo. Levou uma das mãos à nuca, onde podia sentir a raiz dos cabelos, e pressionou a região por três segundos. – Me desculpa, .
Seu carro está se aproximando.
– Então é isso – disse a si mesma, encorajando-se. Fechou a última janela do apartamento, em seguida apagando as luzes. Não sabia quando voltaria, se voltaria. Tinha noção de suas responsabilidades e, principalmente, regras, e estava revogando todas elas. Ela já havia cruzado um limite que não conseguiria voltar. Após sentir o gosto da liberdade, jamais poderia se permitir ser usada da mesma forma.
Ao contrário do que havia pensado, a tristeza não a colocaria em risco; sua servidão inquestionada, sim, a colocava à mercê de quem pagasse mais. não era meramente uma ferramenta, não mais. Todos os anos de serviço a haviam modificado de forma que, como um ser humano, ela passou a desejar ser dona de seu próprio destino. E ela estava tão encantada pela imprevisibilidade que transformara sua curiosidade em objetivo; ela iria procurar e encontrar respostas para os questionamentos que se fazia sobre as relações humanas. Ironicamente, ela estava grata pela tristeza, que a tirara da inércia e a fizera reconfigurar todo seu funcionamento.
Ela estava reprogramada. Mais que isso, emancipada.




FIM


Nota da autora: Oi! Antes de mais nada, peço perdão pelo fim repentino, essa fic era pra ser short e eu me empolguei de um jeito que fui aumentando demais, precisava parar em algum momento pra poder entregar a tempo hahahaha
Eu AMO esse CD, principalmente essa música, e não queria escrever algo exatamente triste. Ficou o fim em aberto pra possibilidade de uma continuação, quem sabe, né? Enfim, espero que gostem tanto quanto eu, e se sim, deixem um comentário :)
Beijos,
Abby.




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