Última atualização: 30/04/2020

Capítulo Único

Bad Medicine – Expressão em inglês que pode significar má medicina, medicamento ruim ou feitiço.


O que precedeu

Aquela pequena cidade do interior tinha tantas histórias e segredos que até mesmo alguns de seus moradores mais antigos não sabiam diferenciar as verdades dos mitos. As histórias iam desde um grande roubo na capital que fez a fortuna de uma das famílias mais ricas da cidade, uma linhagem de bruxas que praticavam seus feitiços na floresta ao sul do limite distrital, lobisomens que matam ovelhas dos fazendeiros, até mesmo casas assombradas.
Também a arquitetura da cidade era explicada por uma lenda que dizia que, quando as bruxas se encontravam com seus amados escolhidos pelos espíritos da outra dimensão, a cidade era lavada e inundada na mesma intensidade que o prazer corria pelas veias dos dois amantes. Por esse motivo, todas as construções antigas e que provavelmente haviam sido construídas pelos fundadores daquele pequeno distrito eram altas, com cerca de um metro de altura de diferença entre a rua e suas entradas.
A época em que todas essas histórias místicas voltavam à tona eram quando começavam os preparativos para o festival da maçã. Os hotéis abriam vagas de emprego temporários, os artesãos aumentavam a produção de souvenires, a prefeitura mudava os horários dos funcionários públicos, o museu voltava a abrir suas exposições documentais sobre a história da cidade e sobre como a maçã se tornou o símbolo daquele lugar que parecia ter ficado congelado no tempo, décadas atrás.
Naquele ano, a última nascida da família havia conseguido convencer seus pais – e pior, seus irmãos – de que já era crescida o suficiente para ter um emprego de temporada. sabia que aquele era apenas um pequeno passo para conquistar sua emancipação das garras dos que nasceram antes dela.
Odiava ser a única filha mulher, odiava a forma que era tratada por seus irmãos, seus pais, seus avós, tios e todos mais naquela família. Seus quatro irmãos mais velhos, até então, não entendiam que ela era uma mulher de 20 anos, responsável por si e com vontade próprias, e isso lhe tirava do sério. Conseguir convencê-los de que ela saberia se virar trabalhando na cafeteria da praça, da qual sua família era dona, foi uma luta árdua, mas não impossível de se vencer.
E era por isso que, naquela segunda-feira de manhã, Liam lhe deu uma carona até o centro e fez todo o trajeto lhe dando dicas de como lidar com os clientes regulares do café e com os turistas que começariam a chegar na cidade.
deu graças aos deuses quando saiu do carro do irmão mais velho e atravessou a rua em direção ao café. Antes de entrar, deu um último aceno para Liam e deu uma olhada rápida ao redor. A praça estava movimentada demais para aquele horário, um ônibus de viagem havia acabado de desembarcar os passageiros.
Virou as costas e entrou pela pequena porta de vidro, ouvindo o sino tocar, e os dois funcionários que estavam na bancada levantaram a cabeça, abrindo um sorriso ao ver a nova colega de trabalho.
Cristine e Victor eram colegas de escola de , cursaram desde o Middle School juntos, mesmo que não fossem próximos. nunca tivera grandes inimizades na vida, e eles não eram uma exceção. Sempre tiveram uma convivência amigável. Cumprimentaram-na e, logo, ela estava com o avental e pronta para começar seu novo trabalho, visto que o treinamento havia acontecido na semana anterior.
A manhã fora calma, os turistas recém chegados pareciam cansados demais para uma dose de cafeína e, à medida que chegavam, se dividiam pelos hotéis da cidade, mantendo a calma rotineira. No almoço, um ou outro cliente passou pela porta de vidro, alguns cafés para aguentarem o ritmo do resto do dia, alguns bolinhos para quem não tinha tempo para um almoço completo, uma conversa ou outra pelas mesas do salão. Mas, no geral, o primeiro dia de fora tranquilo. Victor ensinou os macetes das máquinas e Cristine apontou o “pedido de sempre” de alguns clientes. Fofocavam sobre as expectativas com o festival e as horas se passaram rápido para uma segunda-feira naquele lugar parado.
Quando o fim do expediente chegou, Victor agradeceu aos céus e não demorou além de cinco minutos no estabelecimento, se trocou como um relâmpago e saiu correndo antes mesmo que o sol terminasse de se pôr, despertando a curiosidade da nova colega de trabalho, que não controlou a língua ao questionar Cristine sobre o que o rapaz fazia em seu tempo fora do café.
– Eu não faço a mínima ideia. Se vi Victor duas vezes fora daqui durante todo o tempo que trabalhamos juntos, foi muito. – A jovem respondeu, dando de ombros como se fosse completamente comum toda aquela pressa.
Fecharam a loja e quem esperava na porta para levar a jovem para casa naquela noite era Aaron, o mais novo entre os filhos homens.
– Oi, irmão. – Ela cumprimentou, entrando no carro.
– Como foi hoje? Já está pronta para desistir dessa ideia maluca?
– Foi muito tranquilo, e eu não vou desistir do meu trabalho. Todos vocês trabalham, por que eu não posso?
– Você é a mais nova, .
– Isso não significa nada! – Reclamou enquanto o irmão saía da praça.
Na esquina em que viraram, um homem que definitivamente não pertencia àquela cidade, devido seu tom de pele completamente destoante de todo o resto dos moradores, pareceu olhar diretamente para , mesmo dentro do carro com vidros de insulfilm escuro. Aquilo vez um calafrio esquisito atravessar o corpo dela, aquele cara parecia ser peculiarmente esquisito.
Mal pisou em casa e já foi cercada pelos outros irmãos, que lhe encheram de perguntas. Em minutos de papo, ela já se sentia sufocada e avisou que estava cansada e iria para a cama mais cedo. Desejou boa noite para os quatro, deu um beijo na bochecha de cada um deles e correu para o próprio quarto, se trancando antes que seus pais lhe encontrassem também.
Finalmente livre das roupas daquele dia e com a sensação de estar limpa após um banho quente, se jogou na cama. As cobertas pesadas lhe trouxeram rapidamente a sensação de aconchego. Em pouco tempo, já estava completamente entregue aos braços de morfeu.

O peso a mais sobre seu corpo fez com que ela despertasse num susto, o coração disparado pelo medo e a visão desacostumada com o escuro. Uma lufada de ar veio contra seu rosto e ela sentiu sua alma sair do corpo e voltar quando viu os olhos brilhantes da coruja que estava acomodada em cima de sua barriga.
O grito foi reprimido pelo próprio pavor.
A ave lhe olhava de volta com o que ela julgou ser curiosidade enquanto ela sentia cada membro do seu corpo tremer pelo susto.
– Que diabos é isso? – Acabou soltando em voz alta enquanto tentava não se mover para evitar um ataque do bicho.
O crocitar foi diferente do que ela conhecia mas, ainda assim, parecia o som que uma coruja poderia fazer. E então, ela voou janela afora.
Ainda com o coração acelerado, , num pulo, fechou e trancou a janela, que ela não se lembrava de ter deixado aberta antes de dormir.

Na manhã seguinte, seu despertador lhe assustou e ela já começou o dia sentindo o coração tentando atravessar a caixa torácica. Praguejou enquanto saía da cama, indo em direção ao banheiro que tinha em comum com Aaron.
Ele estava no banho e nem mesmo percebeu a movimentação na porta do lado de fora do box. Ela ainda estava tão sonolenta devido à noite de sono interrompida que nem se importou com o fato de que seu irmão poderia sair do box nu a qualquer instante.
Estava com a boca cheia de espuma quando o irmão abriu a porta de vidro ainda sem a toalha e ambos gritaram.
! Por que diabos você não avisou que estava aqui?
– Eu esqueci que você sai do box pelado! – Ela disse logo depois de cuspir a espuma na pia.
– Como você esquece?
– Faz muito tempo desde a última vez que você tentou me traumatizar. – Ela falou, sabendo que ia se divertir com a situação.
– Tentei? – Aaron ficou confuso.
– Sim, não é como se eu nunca tivesse visto um pau.
O rosto do irmão, que normalmente era pálido, adquiriu um tom vermelho que confirmou a teoria de : seu irmão não saberia lidar com isso.
– Que papo é esse?
Ela tornou a cuspir, enxaguando a boca. Aaron nem mesmo tinha se enrolado na toalha ainda.
– Veja bem, não é só porque eu já acostumei com você que eu quero continuar vendo você pelado. Vai se vestir, panaca.
Acordado da situação constrangedora, se cobriu e aproximou-se dela, pronto para enchê-la de perguntas sobre onde ela havia visto um pênis. Assim que ele abriu a boca, ela saiu do banheiro pela porta do seu quarto, trancando-a atrás de si e indo se trocar.
! Volta aqui! – Ele pediu do outro lado da madeira pintada de branco. – Você não vai me explicar isso?
– Não, estou ocupada, não posso me atrasar pro trabalho. – Ela respondeu inocente.
– Quem vai te levar hoje sou eu!
– Não é não! É o Charlie. A gente combinou ontem.
Desistindo de tirar algo da caçula, Aaron saiu do banheiro e de seu quarto, indo atrás de seus irmãos para contar o acontecido. Os cinco irmãos não costumavam ter segredos e então, de repente, vinha com aquele papo torto? Não fazia sentido.
Bateu nas outras três portas, duas batidas lentas e duas rápidas, e entrou na última, deixando-a aberta. Ele sabia que todos já estavam acordados. E mais importante, que reconheceriam o toque.
Liam tinha a cara amassada e ainda encarava o teto quando teve seu quarto invadido pelos três irmãos. Sentou-se na cama com cara de poucos amigos, visto que odiava ser incomodado antes de tomar café.
– Que foi? E por que a não está aqui? – Matt perguntou, terminando de dar o nó da gravata.
– Ela disse que já viu um pênis.
– O quê?! – Liam e Charles perguntaram quase ao mesmo tempo.
– Que negócio é esse? Por que ela não nos contou? A vovó vai matar a gente.
– Vocês são muito futriqueiros. – disse com os braços cruzados e o corpo escorado no batente da porta.
– Bom que você está aqui e explica onde diabos você viu um pênis. – Liam disse, assumindo o posto de mais velho e líder dos cinco.
– Por que eu contaria pra vocês? – Ela tinha um sorrisinho irônico nos lábios. – Vocês iam correndo fofocar pros nossos pais. Ou pior, pra vovó.
, isso é uma coisa séria.
– Não é, isso é uma história que a vovó contou pra vocês se tornarem ainda mais superprotetores comigo.
, você perdeu a virgindade e não nos contou? – Charlie era o único que parecia chateado acima de tudo.
– E por acaso eu tive essa oportunidade? Porque, se tive e não percebi, vou ficar muito decepcionada. – Ela disse, entrando no quarto e trancando a porta. – Não, eu não perdi nada, estava apenas brincando com o A. Mas eu tive aulas de biologia na escola, sabiam? E na internet tem pornografia de graça.
– Tá, eu não quero participar desse papo essa hora. – Matt disse, saindo do quarto, mas viu a irmã se encostar na porta.
– Não, agora a gente vai conversar. – Ela disse. – Já que estamos aqui os cinco reunidos, vamos falar sobre como as coisas estão esquisitas na véspera do meu aniversário e eu tenho medo de vocês estarem tramando pelas minhas costas.
– Seu aniversário está chegando? – Aaron perguntou, se fazendo de desentendido.
– Eu não vou cair nessa. – Ela tinha uma sobrancelha arqueada.
– Não estamos fazendo nada pelas suas costas. – Liam se defendeu.
– Vocês podem não estar, mas e a mamãe?
– Também não, a vovó pediu pra você passar o aniversário com ela. – O irmão mais velho explicou.
– Isso é estranho. – Ela constatou.
– Deve ter a ver com as histórias malucas dela. Afinal, você vai fazer 21. – Charlie disse, jogado na cama do irmão.
– Eu não gosto desse negócio, é bizarro. – Aaron disse e exagerou um calafrio.
– Já pararam pra pensar que pode ser verdade? Nossa. Imagina... Eu, bruxa?
– Deus não cometeria um erro desses. – Liam disse, esfregando os olhos. – Ia ser um crime contra a humanidade.
– Você me ama tanto, irmão, quee sinto sufocada.

– Você está empolgada pro seu aniversário? – Charlie perguntou assim que atravessaram os portões da propriedade dos .
– Na verdade? Não. Não é como se fosse mudar muita coisa, papai e mamãe não vão mudar em nada comigo, assim como vocês também não vão. A vovó fez um estrago enorme em todos vocês.
– Ela fala com tanta veracidade, não acha?
– Você acredita mesmo?
– Eu gosto de deixá-la com o benefício da dúvida.
– Todos vocês acreditam nela. – murmurou.
– Já viu muitos turistas?
– Sim, e tem uma galera esquisita na cidade.
– Esquisita como?
– Esquisita, oras. – Deu de ombros e soltou o cinto, visto que ele já estava estacionando próximo à praça.
– Tenha um bom dia. Qualquer coisa, me liga que eu venho te salvar.
– Tchau, irmão. – Despediu-se com um beijo na bochecha e saltou do carro.
Atravessou a rua e entrou no café. Desejando bom dia aos colegas, atravessou o salão, já indo livrar-se da mochila e enfiar-se no uniforme.
– Começamos cedo hoje? – Perguntou pra Cristine no balcão.
– Nossos turistas são pessoas matinais. – Ela falou escorada no balcão, os ombros envergados, uma postura cansada assim como sua voz.
– Você está bem?
– Não dormi o suficiente, mas nada que algumas xícaras de café não resolvam.
teve vontade de comentar sobre seu sono interrompido, até mesmo cogitou abrir a boca para falar, mas o pequeno sino da porta fez barulho e, então, ela seguiu para o trabalho.
O rapaz que entrava naquele instante seguiu diretamente para uma mesa próxima da janela, que dava visão para a não mais tão pacata praça. Sentou-se na cadeira estofada e depositou o amontoado de papel que tinha em mãos na mesa, soltando um suspiro e dando uma olhadela desconfiada para o lado de fora.
se aproximou e desejou bom dia.
– Em que posso ajudá-lo hoje? – Perguntou, vendo o rapaz se recuperar do susto que tomara com a aproximação da moça.
– Um café forte, por favor.
– Mais alguma coisa?
– Por enquanto, é só. Estou esperando uma pessoa.
– Só um minuto. – Disse e se virou, deixando o cliente embasbacado com a familiaridade da fisionomia daquela garçonete.
seguiu as horas seguintes completamente entediada e sonolenta, ainda servindo café ao rapaz com amontoado de papel que continuava sentado em sua mesa, lendo seus papéis e, vez ou outra, olhando para o lado de fora.
Já era a hora do almoço da garçonete e a companhia do cliente não havia aparecido. Ela já estava com pena do rapaz e, de vez em quando, conferia se ele estava perto de desistir e ir embora, mas ele continuava com seus papéis. Parecia muito concentrado em seus estudos enquanto não estava olhando pela janela como uma criança que havia perdido os pais no supermercado.
tirou o avental e foi comprar um almoço de verdade para si e seus colegas na cantina de comida italiana que ficava exatamente do outro lado da praça. No dia anterior, aquela tinha sido a tarefa de Victor. Naquele dia, era sua vez e, no dia seguinte, de Cristine. Haviam resolvido que iriam revezar e todos acharam uma boa ideia até então.
Saiu do café apenas com o celular na mão, aproveitando os poucos minutos livres para trocar mensagens com os irmãos.

Charlie
Ainda estou com sono, , você podia me trazer um café no seu horário livre, hein?


Quando foi que virei sua escrava?


Lion
Já não se fazem mais irmãs mais novas como antes...
Você cuidava mais da gente quando ainda não estava nesse trabalho


Antes eu tinha muito tempo livre para gastar com vocês, mas essa era acabou
Um brinde à nova era!


Aaron
Vocês não têm o que fazer?
Pra quê tantas mensagens? Algumas pessoas aqui estão trabalhando


Vocês tão sentindo a inveja do A aí? Porque, aqui no centro, o clima até fechou


Mal conseguiu enviar a mensagem e teve um encontrão com um homem que parecia ter duas vezes o seu tamanho. Seu celular voou para o chão e ela prendeu a respiração por um instante. Olhou o telefone no chão com uma tristeza antes de soltar o ar.
E no mesmo instante, antes mesmo de pedir desculpas ao homem no qual tinha esbarrado tão violentamente, o céu começou a desabar sobre suas cabeças.
Pegou seu celular do chão e olhou o estrago. Mesmo debaixo da chuva escandalosa, levantou a voz para se fazer ouvida.
– Me desculpa, eu não estava prestando atenção. – Pediu e, só então, colocou os olhos na figura que lhe olhava embasbacado.
– Tudo bem, eu também não estava muito atento. Seu celular quebrou muito?
– Não se preocupe. Se ele não morreu na queda, ele morre nessa chuva.
– Tem certeza? Eu te ajudo a pagar o conserto. Afinal de contas, eu também tenho culpa.
– Não se preocupe, de verdade. – Ela disse e, então, olhou para o restaurante, que tinha o toldo sendo abaixado. – Eu preciso ir. De novo, me perdoa.
– Está tudo bem. – O turista alto sorriu e, então, cada um seguiu seu trajeto anterior.
Não pensou em olhar para trás antes de entrar no restaurante, queria se proteger logo da tempestade e ver se seu telefone ainda estava vivo. Seus irmãos provavelmente teriam um infarto caso ela parasse de dar notícias do nada.
Cumprimentou a senhora italiana que gerenciava o estabelecimento e seguiu para o pequeno caixa no fundo do salão, pronta para fazer os pedidos. Antonella havia se casado com James décadas atrás e largado sua vida e família na Itália para ir morar com o esposo. Então abriram a cantina no centro da cidade. Tornou-se uma amiga próxima da matriarca da família quando o marido faleceu.
– Você pegou uma chuva e tanto, hein? – O rapaz do caixa perguntou, vendo o estado da moça do outro lado do balcão.
– O tempo fechou do nada e o céu caiu. – Ela disse com um sorriso tímido, sabia que estava molhando o chão.
– O mesmo pedido de Victor ontem? – Ela apenas assentiu.
– Aqui, querida, não queremos que você passe seu aniversário resfriada, não é? – Antonella tinha uma toalha felpuda em mãos, havia buscado em sua casa no andar de cima.
– Ah, não precisa, dona Antonella, eu vou ter que voltar na chuva de todo jeito. Lá na minha mochila, eu tenho um kit de emergência, pode ficar tranquila.
– Certo então. Oliver, adiante o pedido dela, – Pediu ao rapaz no caixa. – não quero saber de ninguém doente na cidade perto do festival.
– Até parece que a senhora não conhece a minha vó. Ninguém fica mais de dois dias doente perto daquela mulher.
Enquanto batia papo sobre coisas triviais com Oliver e esperava seu almoço, tentava ligar seu telefone, que não dava nem um sinal de vida. Pegou as quentinhas bem embrulhadas em uma sacola plástica, pagou pelas refeições e colocou-se a atravessar a praça, de volta ao café.
Passou pela porta apressada, atravessou o salão e enfiou-se na portinha atrás do balcão. O homem com quem tinha esbarrado logo que a chuva começou passou despercebido por ela, mas ele sentava com o rapaz que havia passado a manhã inteira ali.
– Você esbarrou nela?
– Isso, e aí o mundo começou a cair lá fora e eu corri pra cá.
– Você é burro, cara?
– Não. – A resposta fez o outro passar as mãos pelo rosto.
– Tanta pessoa pra me colocar responsável e me deram logo o mais lerdo dentre todos os da linhagem.
O rosto de se iluminou com entendimento quando ligou os pontos. Era ela, então.


O que sobreveio

Era sexta-feira e, oficialmente, o festival da maçã iria começar. Havia sido um dia caótico no café, podia sentir seus pés implorando por um descanso quando o relógio marcou o fim do expediente. Tudo o que queria era que Aaron não demorasse para estacionar na praça e a levasse direto para sua cama, de preferência, carregada.
Mas ao contrário do esperado irmão, o carro que parou era de sua avó, e então a realidade caiu sobre seus ombros. Não haveria descanso ainda, era a noite da véspera de seu aniversário e sua avó tinha planos para as duas.
– Olá, senhora , quanto tempo! – Cristine, que fazia companhia para a colega enquanto ela esperava sua carona, cumprimentou a mais velha.
– Oi, querida. Como vão seus pais? – Respondeu simpática enquanto entrava no carro e se despedia a contragosto. – E eu já lhe falei para me chamar de Gillian.
– Perdão, Gillian. – Corrigiu-se. – Mas eles estão bem! Papai ainda tá fazendo aqueles emplastros que você ensinou e não o vejo mais reclamando.
– Que bom! Diga para eles irem lá em casa qualquer dia desses, faz tempo que não fofoco com sua mãe.
– Falarei sim! Até mais. – Acenou. – Tchau, , até segunda.
– A gente deve se ver no festival!
– Eu não teria tanta certeza! – Cristine disse num tom divertido e com a voz um pouco mais alta.
– Concordo com ela. – A mais velha disse e colocou o veículo em movimento.
– O que você está aprontando, vovó?
– Me diga você, senhorita . O que andou aprontando essa semana?
– Trabalhei, tive noites esquisitas e estou desenvolvendo uma fobia por corujas. E você, senhora ?
– Corujas?
– Não fuja do assunto, te perguntei o que andou fazendo que não jantou lá em casa nenhum dia dessa semana.
– Estava tratando dos preparativos para hoje à noite, é claro.
– Eu vou ter uma festa surpresa?
– Não que eu esteja sabendo.
– Vamos mesmo fazer um ritual no meio da floresta?
– Sim.
– Não sei se estou confortável com isso.
– Você não vai estar vendendo sua alma para o diabo ou algo assim.
– E como funciona esse lance de bruxaria?
– Só posso te explicar depois de meia noite e, ainda assim, nem sei se sou a pessoa mais apropriada para a tarefa.
– Vamos estar só nós duas?
– Claro que não, todas as mulheres da família estarão lá.
– Eu não levo isso muito a sério, mas acho o máximo o quanto essa história é feminista.
– Você é literalmente neta das bruxas que eles não conseguiram queimar. – gargalhou.
– Você nem era viva nessa época, vó.
– Quem disse?
– Me arrastar pra floresta de noite pra fazer um ritual no qual eu não acredito? Ok. Agora me fazer acreditar nessa lorota? É demais.
– Depois conversamos sobre isso.
Os questionamentos sobre o que havia acontecido na semana continuaram até que entraram na garagem da casa.
– Soube que você pegou aquela chuva repentina.
– Sim! Foi muito esquisito. Quando eu saí do café, o céu estava claro e, de repente, eu trombei com um moço e a chuva começou.
– Eu não soube da parte do rapaz. – A mais velha se tornou automaticamente mais interessada.
– Não foi nada demais, é um forasteiro. Esbarramos aquela vez e ele até estava sendo um cliente regular do café.
– Cliente regular?
– Não é como se o café dos hotéis fossem melhores, né, vovó?
– E como ele é?
– Minha deusa, vó! Esquece essa história.
– Está fugindo por quê? Tem algo que você não quer me contar?
– Não tem nada pra contar, ele é só um turista.
– E o que é que tem?
– Você é impossível.
saiu do carro batendo a porta e entrou na casa pisando forte, como uma criança emburrada faria. Mas ela sabia que aquilo seria necessário para que a avó saísse de seu pé. Não havia realmente algo para esconder, mas também não havia o que contar sobre .
E sim, ela sabia seu nome, assim como sabia do outro rapaz, seu primo, Marshall. Marshall era até mesmo mais frequente do que o outro, visto que levantava cedo e tomava café na mesma mesa todos os dias desde que havia chegado à cidade.
Eles eram comunicativos, era óbvio que iriam se enturmar, e eram considerados conhecidos pelos três funcionários do café. Trocavam algumas palavras. Às vezes, quando passavam perto do horário de fechar para um lanche, até mesmo batiam um papo no balcão com Cristine ou Victor também.

caminhou por entre as árvores com sua avó quando o sol terminou de se pôr.
Era uma noite bonita, o céu estrelado tinha algumas poucas nuvens, a lua nova camuflada no céu dava indícios de começar a se iluminar no meio daquela infinidade de estrelas.
Enquanto caminhava, seguindo a lanterna grande que sua avó tinha em mãos, ouvia a mulher lhe contando que estava esperando aquele momento por séculos visto que, a tempos, as gerações da família não cumpriam os requisitos que lhe deixaria, enfim, descansar.
– Quando o ritual terminar, eu deixarei de ter o dom. – Explicou enquanto se embrenhava no mato como se fizesse aquilo todos os dias. – Ele será só seu e o meu dever vai ser te ensinar como lidar com ele.
– E o que exatamente é esse dom? Fazer feitiços e voar em vassouras?
, hoje não é dia de fazer piadas com isso. Você não vai querer que a outra dimensão fique zangada com você.
Quando chegaram na clareira, a fogueira já estava acesa e as mulheres da família se encontravam andando de um lado para o outro com os últimos preparativos. Algumas primas abraçaram a recém-chegada rapidamente e, logo, voltaram para suas tarefas. Tinham que ter tudo nos conformes para a virada do dia.

Faltavam poucos minutos para a meia noite, já estava devidamente vestida – uma camisola que havia sido obrigada a usar, um robe felpudo cobria seu corpo, que parecia estar sumindo dentro de todo aquele tecido, e arrastava no chão.
Até mesmo nas suas roupas íntimas opinaram, tinha de ser tudo branco ou preto. Problematizaram até mesmo o elástico rosa de sua calcinha e ela foi obrigada a tirá-lá.
Então, sentada próxima ao fogo enquanto tinha seus cabelos penteados e trançados pela mãe, começou a questionar seu próprio ceticismo. Seria mesmo verdade? A história que sua avó lhe contou durante toda a sua vida, o motivo de sua existência, a origem de sua cidade e as histórias de terror que ouvia no acampamento de escoteiros e nas noites do pijama de colegas de escola...
Ali, encarando o fogo cortar a escuridão da floresta, ela acreditou de verdade que todas as mulheres da família não se empenhariam tanto em um evento de mentira.
Um suspiro saiu de seus lábios quando sua avó lhe chamou e pediu que ela se sentasse no meio do círculo de mulheres que começava a se formar. Ela simplesmente obedeceu, sentindo uma ansiedade nascer em seu estômago.
Sentou-se no chão enquanto viu as mulheres de sua família darem as mãos e começarem a cantar a música que ela se lembrava de ouvir sua mãe cantar todas as vezes que ia lhe colocar para dormir.
Entre a cantiga de ninar e as voltas que davam ao seu redor, ela começou a se sentir relaxada, calma e pronta para se entregar aos braços de morfeu. Nem parecia que todo o café que havia tomando naquele dia ainda corria por suas veias, seus olhos se tornaram pesados e mal conseguia mantê-los abertos. E quando ouviu a voz de suas familiares cantarolando para que dormisse logo, para despertar com forças renovadas, caiu no sono e, ao contrário da escuridão de um sono comum, logo, se viu encarando um clarão diferente.
– Ela não merece os dons, passou a vida inteira duvidando de nós. – Ouviu uma voz feminina suave dizendo, olhou ao redor e não encontrou nada.
– Muitas já duvidaram. Deixe de ser implicante, Sithe.
– Mas Nirid! Ela não sabe nada! Nem vai ter sua antecessora! Como podemos fazer tamanha irresponsabilidade?
– Você ainda não entendeu que essa geração é diferente? Não podemos arriscar que percamos a última família.
– Com licença? – tomou coragem de falar. – Onde estou?
– Você está no que você mesmo chama de altíssimo, mas para mulheres como você. – A voz que ela identificou como Nirid disse, logo saindo do meio do clarão enevoado, uma mulher extremamente parecida com ela mesma.
– Existem outros tipos de altíssimos?
– Não exatamente tipos, querida, mas sessões diferentes.
– E a minha eternidade é essa brancura sem fim?
– Não, aqui é onde você descobre a sua verdade. A eternidade fica em outra área do universo.
– E que verdades eu tenho para descobrir?
– Você vai receber o dom de sua tataravó aqui e, então, voltará para a sua vida e exercerá o seu papel.
– Mas a vovó disse que eu receberia o dom dela. Que dom é esse, afinal?
– Calma, criança. Não seja afobada também. – A outra voz se fez presente, Sithe.

Assim como Nirid, Sithe tinha uma aparência muito familiar para , parecia a imagem que ela se lembrava de olhar todos os dias no espelho. Ela era parecida com deusas? Interessante.
– Nanable ficará responsável pelo procedimento então, qualquer dúvida que você tiver, pode perguntar pra ela. – Sithe disse num tom de voz completamente diferente do que havia ouvido anteriormente.
– E onde está aquela irresponsável? – Nirid parecia impaciente. – Esperamos esse momento por séculos e, agora, ela some.
– Como assim, século?
– Demorou muito tempo pra sua família cumprir os requisitos de herança. Sua tataravó está na terra há muito mais tempo que o normal para humanos. – Sithe explicou, segurando a então humana pelo pulso e guiando-a para algum lugar além do clarão.
– E onde ela está? Por que eu não a conheci?
– Você a conhece, mas como sua avó. Seria muito suspeito uma mulher do século XVIII ainda estar viva, você não acha?
– Então isso também é verdade?
– Gillian não saberia mentir, já é um sufoco pra ela manter a mentira da idade.
Acabou que Sithe quem explicou tudo para , e coube a ela contar também que sua avó estava com os minutos de vida contados. Foi ali que ela quis voltar pra casa e fingir que toda aquela descoberta nunca tinha acontecido.
– Eu não quero que ela morra! – Implorou.
– Se a Supremacia sonhar que essa história existe, estamos todas encrencadas, isso inclui você. – Sithe explicou. – A família é a última a ter a linhagem curandeira. Mantemos Gillian viva e escondida da Supremacia por tempo mais que suficiente, você tem que lidar com suas responsabilidades agora.
– Mas isso significa que alguém vai morrer, eu não posso fazer isso.
– Esse alguém já devia estar morto.
– Que coisa horrível para se dizer, Sithe. – reclamou e encolheu os ombros, derrotada.
– É a verdade. – A deusa deu de ombros como se não fosse nada demais.
– Eu vou ao menos ter tempo de me despedir dela?
– Não.
– Ah, mas que coisa horrorosa! Sendo assim, eu não quero o dom.
– Você já o recebeu.
– Não!
– É a ordem natural das coisas, , deixe de ser mimada.
– Eu sou mimada por não querer que minha avó morra?
– Sim.
Derrotada e ainda sem entender como seria quando voltasse a vida real, tentou focar sua mente no que Sithe dizia, explicando a história de sua própria linhagem e outras, alguns costumes e rituais, além de informações sobre como se portar de acordo com seu dom. Era realmente muita coisa, e ela se questionava se lembraria de tudo aquilo no instante em que a deusa parasse de falar.

– Bom dia, querida. Você está bem? – A mãe de perguntou quando ela acordou.
– Sim. Eu tive um sonho muito esquisito, mãe.
– Como foi?
– Eu estava em outra dimensão, tinha deusas que se pareciam comigo, elas diziam que vóvó Gillian, na verdade, era minha tataravó.
– Você não exatamente sonhou.
– Isso quer dizer que a vovó morreu? – Sua voz tinha um tom triste.
– Você ficou fora por muitos dias.
– Como assim ‘muitos dias’? Foram só algumas horas.
– Acredite em mim, foram dias.
estava completamente confusa e perdida. Sentia-se de alguma forma diferente, talvez por se lembrar de cada segundo de seu sonho esquisito, dos detalhes contados por Sithe. Sabia que não havia passado mais que 24 horas lá. Como sua mãe poderia dizer que haviam sido dias?
Levantou da cama naquele dia se sentindo esquisita. Escovou os dentes enquanto olhava seu celular, muitas notificações não lidas, mensagens de Cristine preocupada com o sumiço dela por uma semana, Victor também havia perguntado por ela, algumas notificações nas redes sociais, muitos parabéns no facebook e instagram.
De acordo com a barra de notificações, era madrugada de quinta-feira. Perguntou o que raios sua mãe estava fazendo em seu quarto àquele horário, mas resolveu ignorar tudo aquilo e simplesmente ir procurar o que comer, estava faminta.
Quando chegou na cozinha, encontrou Matt sentado num dos banquinhos da ilha, com o notebook na frente de si e quase cochilando.
– Oi, irmão.
– Oi, , como você está?
– Esquisita.
– Imaginei, você dormiu pra caramba.
– Eu só dormi?
– Sim, parecia que estava morta. Nada te fazia acordar.
– Vocês tentaram, não é?
– Claro! Só não conte pra mamãe.
– Não me contar o quê? – A matriarca da família perguntou, entrando no cômodo.
– Que peguei Matt no pulo vendo pornografia na cozinha.
! – Ele gritou com os olhos esbugalhados, fazendo-a gargalhar.
Ignorando a situação anterior, a garota procurou na geladeira algo para comer. Sentia seu estômago roncar como se tivesse a muitas horas sem comer. Montou um prato com o que havia sobrado do jantar daquela noite, enfiou no micro-ondas e empoleirou-se no banco perto do irmão enquanto esperava o aparelho apitar.
Matthieu escrevia algum artigo sobre os eventos da segunda semana do festival na cidade e parecia muito concentrado em seguir o cronograma de atividades planejadas pela organização do festival. Naquela tarde, haveria alguns shows na praça da cidade e um discurso da prefeita, desejando as boas-vindas aos novos visitantes.
Por algum motivo, se questionou se Marshall e ainda estavam na cidade ou se já haviam continuado na saga de procurarem seja lá o que tanto estudavam na mesa do café.
– O que você tá fazendo acordada ainda, mãe? – Perguntou quando pegou o prato no micro-ondas e viu as horas no relógio digital do aparelho.
– Temos que conversar.
– Podemos fazer isso amanhã quando eu voltar do trabalho.
– Que trabalho? – Matt perguntou e ela fechou a cara.
– No café.
– Você está afastada, tem atestado até semana que vem. – A mais velha dos desistiu de ter aquela conversa e realmente foi dormir, cansada dos próprios filhos.
– Mas o que eu vou ficar fazendo em casa o dia inteiro?
– A mesma coisa que você fazia até semana retrasada.
– E vamos de zerar o Xvideos.
– Você é insuportável.
– É o meu papel como irmã caçula.
Enquanto jantava, pegou o celular e abriu o aplicativo de mensagens, abrindo o recém-criado grupo que tinha Cristine, Victor e ela.


Estou viva e bem.

Cafetine
MULHER!!! ONDE VOCÊ TINHA SE ENFIADO?

Victorio Apache
, você tem cinco minutos pra mandar um relatório sobre a caverna onde você se enfiou.


Eu estava afastada das minhas atividades.


Cafetine
E NÃO PODIA TER MANDADO UMA MENSAGEM?

Me desculpem, prometo contar o que der amanhã.
AGORA VÃO DORMIR!
Amanhã eu estarei abrindo aquele café como cliente, visto que ainda estou de atestado.


Victorio Apache
Eu não atendo más amigas.


De verdade, me perdoem!
Mas o que eu tenho pra contar vai deixar vocês dois de cabelos em pé!


Victorio Apache
Marshall pediu para dizer que pensou que você tinha morrido.


Por que você tem notícias do Marshall?


Cafetine
Enquanto você estava desaparecida, nosso amigo aí começou a dar uns beijos no turista.


UMA SEMANA E VOCÊS JÁ BEIJAM OS FORASTEIROS.


Cafetine
Vocês vírgula! Eu não beijei ninguém.


Feliz em saber que você só me beija.


Cafetine
Privilégio fornecido pelo mercado péssimo.

Victorio Apache adicionou Marshall


Marshall
O que eu estou fazendo aqui?


Estou viva.
E preciso falar com você.


Marshall
O que eu fiz?


Por enquanto, nada, mas descobri umas coisas sobre você.
Agora vou limpar meu quarto! Beijos!


Acabou dormindo em algum ponto do que restava da madrugada e acordou com o despertador tocando.
Olhou ao redor, sentindo algo esquisito à sua volta, e quase teve um infarto quando notou a coruja empoleirada nos pés da cama.
– Olha, se você quer ser adotada, a gente vai ter que fazer isso de uma forma que não me mate do coração, ok? – Ela disse, encarando o animal, que inclinou a cabeça sutilmente, como se entendesse o que ela dizia. – Você é esquisita, sabia?
O crocitar na coruja foi baixinho, mais parecido com o que normalmente esperaria de uma coruja. O animal continuou ali parado enquanto a mulher se levantou da cama e, quando ela voltou do banheiro, a coruja ainda estava no mesmo lugar.
– Quer ir tomar café? O que você come? – Perguntou arriscando, chegar perto da coruja e tentar tocar em suas penas.
A ave que diminuiu o que restava da distância, colocando sua cabeça sob os dedos da mulher.
– Minha deusa! Isso é aquela cena de Harry Potter com o hipogrifo! Eu sou uma bruxa mesmo, a vovó Gillian estava certa. – Comemorou enquanto fazia carinho nas penas.
A coruja crocitou mais uma vez de forma estranha, como se respondesse.
– Você é uma coruja muito esquisita. – Disse, pegando o celular para pesquisar sobre alimentação de corujas. – Eca! Você come bichinhos!
sabia que, se aquele animal falasse, perguntaria se ela era retardada ou algo do tipo. Balançando a cabeça em negação pela própria bobeira, endireitou a postura e encarou a coruja sem saber o que fazer. Tentava colocá-la pra fora? Levava consigo para a cozinha? Deixava ali sozinha?
– Quer ir comigo? – Perguntou, apontando pra porta.
A coruja bateu asas e empoleirou-se em seu ombro, lhe assustando.
– Isso deve ser um sim.
Enquanto descia as escadas para a cozinha, conversava com a coruja como se ela fosse uma pessoa e aquilo não parecia tão estranho pra ela. Havia uma semana desde que ela acordara de madrugada todos os dias com aquela mesma coruja olhando para sua cara. Elas já eram amigas.
Entrou na cozinha desejando bom dia aos irmãos e ao pai, que preparava alguma coisa no fogão. Foi até a geladeira, abaixou-se para pegar uma fruta na gaveta e, quando se levantou, notou a conversa entre seus irmãos se tornar um silêncio esquisito.
– O que foi?
, não entre em pânico, mas tem uma coruja no seu ombro. – Liam disse, se aproximando para tocar o bicho para longe.
– Pare aí onde está! – Ela disse em tom de ordem.
– Essa é a… – Cortou-se, lembrando que ainda não tinha batizado a ave. – Ainda não dei um nome, mas ela me adotou. Somos amigas e ela quis tomar café comigo.
– Como isso aconteceu? – O patriarca dos perguntou, então olhando pra filha, que tinha uma coruja no ombro.
Enquanto se sentou na mesa, narrou sua semana anterior com as visitas da coruja ao seu quarto na madrugada. Comeu e, quando Charlie disse que estava saindo para trabalho, pediu para que ele esperasse que ela buscasse a mochila com suas coisas.
– Pra onde ela vai? – Charlie perguntou pros irmãos enquanto a caçula saiu correndo.
– Fofocar com os amigos. – Matt respondeu com o rosto enfiado numa caneca de café.
– E vai levar essa coruja?
– Não. Ela voa, sabia? – Perguntou já de volta, com a mochila num ombro e o celular na mão, nenhum sinal da coruja. – Eu só lembrei disso quando ela saiu pela janela.
Saíram de casa em minutos e foram conversando sobre o que havia acontecido na cidade no tempo em que estava fora.

– Bom dia, amigos queridos do meu coração! – disse quando entrou e viu que não havia nenhum cliente na loja ainda.
– Bom dia, quem eu pensei que fosse minha amiga mas descobri que não! – Victor respondeu mas, ainda assim, deu um abraço na recém-chegada.
Constatar que a garota estava viva e inteira, sem nenhum pedaço a menos e alguns centímetros de cabelo a mais, era aliviador demais para que ele a ignorasse como havia planejado. Cristine analisou por alguns instantes, havia algo diferente ali que ela não soube identificar, mas era uma diferença incômoda.
– O que aconteceu com você? – Foi a única coisa que saiu da boca dela.
– Eu pensei que era zoeira da minha avó, mas a gente fez um ritual mesmo.
– E você pode sair contando por aí?
– De acordo com o que eu aprendi no altíssimo, vocês dois podem saber, pois vocês são guardiões.
– Somos o quê? – Victor perguntou com um tom de confusão forçado.
– Não precisa mais se fazer de bobo. – explicou. – Passei todos esses dias no altíssimo e até fui ensinada sobre como te ajudar a controlar a transformação.
– Que papo de maluco é esse? – Cristine perguntou, vendo Victor suspirar.
– Imaginei que fosse perguntar. – disse e, então, colocou-se a explicar sobre tudo, deixando a parte sobre Victor de lado.
Deixaria para que ele contasse quando bem entendesse.

! – cumprimentou. – Você demorou! Pensei que nem viria.
– Eu estava preocupado com o que você sabe sobre mim.
– Eu sei sobre você e .
– Você passou pelo altíssimo então?
– Sim, e tive um papo muito interessante sobre o seu primo.
– E por que você ainda não sumiu do mapa?
– As deusas disseram que, dessa vez, é diferente. Nossa raça está praticamente extinta.
– Eu imaginei, visto que faz séculos desde a última vez que houve relato de uma de vocês.
– Ainda vão acontecer coisas ruins, mas precisamos disso para acelerar a recolocação da ordem natural.
– Isso é péssimo. Você sabe, não é?
– Sim, mas é minha responsabilidade.
– Nossa responsabilidade.
– Acha que já devo falar com ?
– Sim, ele acha que você sumiu.
– Será que por mensagem ainda acontece algo?
– Deixa de ser idiota, . É só físico.
– Tá bom, tá bom, vou lá. Aproveite seu café.
se levantou e saiu da loja como um furacão. Despediu-se de Cristine e Victor rapidamente e nem mesmo esperou pela resposta. Quando Cristine ia abrir a boca para dizer um “até mais tarde”, já estava no meio da praça.
Sentia-se esquisita. Sabia que era obrigada a se aproximar de e deixar que o destino se cumprisse, mas ainda era esquisito. A cada passo que dava, via o céu escurecer mais e aquilo fazia uma sensação, que ela não saberia descrever, brotar em suas entranhas. Nem parecia o mesmo dia ensolarado para o qual havia acordado.
– Não te vi essa semana. Está tudo bem? – Foi o que disse assim que se aproximou da garota. – Gostei do cabelo novo.
– A gente precisa conversar sobre um negócio muito sério.
– Ah, não. Você vai vir como o mesmo papo do Marshall?
– Sim.
– E você se submete a isso dessa forma? Que tipo de feminista é você?
– Vamos dar uma volta e bater um papo. E, por favor, mantenha distância. – Pediu.
Saíram e foram caminhando até a casa de sua avó. Na véspera de seu aniversário, Gillian havia lhe contado onde estaria tudo que elas supostamente usariam para que ela soubesse tudo o que fosse necessário.
Já estavam quase chegando ao chalé em que Gillian vivia quando , que andava à frente, tropeçou numa elevação da calçada e fez com que esbarrasse nela. O barulho que se seguiu era claramente externo ao encontro dos dois, o que os fez virar o rosto na direção do som, assustados.
Um carro que seguia na direção contrária havia batido num poste. Tomaram uma distância segura um do outro e foram verificar se o ocupante do carro estava bem.
– Viu o porquê de eu falar pra você não encostar em mim? – tinha o tom de voz desesperado. – A gente pode ter matado alguém!
– Não foi a gente!
– Foi sim!
– Não é como se tivéssemos feito de propósito.
A porta do carro se abriu e o motorista saiu assustado.
– Está tudo bem? Quer que chamemos uma ambulância?
– Não, eu… – O homem parecia atordoado, mas sem nenhuma escoriação. – Eu vou ligar pro seguro. Obrigado por pararem pra conferir, mas estou bem. Eu nem sei exatamente o que aconteceu. Do nada, perdi o controle e, então, senti o impacto contra o poste.
Ainda insistiram em chamar a emergência, mas o homem tornou a agradecer a gentileza e, então, eles desistiram.
Seguiram o resto do caminho que tinham até o ponto onde se sentariam para conversar. ainda estava um pouco atordoado também com o acidente que presenciaram sem nenhuma explicação lógica. Ele também sentia algo ruim em seu estômago, a boca salivando como se fosse vomitar a qualquer instante.
percebeu que ele não respondeu sua pergunta e virou o rosto para ver o que havia prendido sua atenção, encontrou o homem com uma feição pálida e preocupou-se instantaneamente.
, você está bem?
– Estou me sentindo meio enjoado.
– Ah, minha deusa! Você está grávido?
– Muito engraçado da sua parte, mas estou falando sério.
– Já estamos chegando! É naquele quarteirão. – Apontou um pouco mais adiante. – Acha que dá conta de chegarmos ou quer vomitar antes?
– Eu não vou morrer do nada, !
– Nunca se sabe que tipo de coisa horrível vai acontecer, ok?
– Deixe de ser exagerada. – Ele disse, puxando-a pelo pulso para que continuassem a caminhada.
E então a chuva que estava se formando caiu. De uma única vez. Forte e ligeira.
– Droga! – Ele reclamou enquanto eles se colocavam a correr, ainda com as mãos unidas.
– A culpa é sua!
– É força do hábito!
Quando finalmente se protegeram sob o telhado da varanda, já estavam ensopados. Antes mesmo de tirar as chaves do bolso, tirou os sapatos, deixando-os apoiados na parede ao lado da porta e, só então, abriu a porta da casa que pertenceu à avó.
– Por favor, deixe seu sapato do lado de fora, vou pegar toalhas. Se a gente molhar a casa inteira, a minha avó me mata. – Falou no automático e, então, seus ombros caíram em sinal de derrota. – Esquece, eu vou pegar as toalhas.
Saiu corredor adentro e deixou na porta, ainda meio estático. Sabia que a avó de havia falecido no dia de seu aniversário e imaginou que fora por esse motivo que a garota sumiu por todos aqueles dias mas, ao que tudo indicava, ela ainda estava passando pelo processo de luto. A sensação ruim havia passado.
Quando voltou, já estava enrolada em uma toalha felpuda e tinha outra em mãos, que entregou para o homem que olhava a sala ao seu redor.
As malas no canto perto da lareira deixavam a dúvida se alguém estava chegando ou saindo. O sofá grande era contrário à pequena mesa que tinha no espaço entre a sala e a cozinha. já havia contado que tinha uma família muito grande em casa e aquele chalé, apesar de confortável, não comportaria tantos adultos.
– Ignore as malas, trouxe-as hoje de manhã assim que decidi que viria morar aqui. Nem mesmo contei pros meus pais ainda, então você imagina que eu não tive tempo de mexer com nada.
– Essa não é a sua casa?
– Não, minha avó morava aqui. – Explicou. – E como era meu nome que estava no testamento, é minha agora.
– E como você está sobre isso?
– É meio esquisito o que eu vou dizer, mas eu meio que estava preparada para isso.
– Deve ser ruim perder um ente querido bem no aniversário, mas que bom que você está lidando bem com tudo.
– Gillian estava literalmente fazendo hora extra aqui. – Explicou. – Vou ligar o aquecedor pois estou congelando e você deve estar também. E, então, vamos ter nossa conversa.


O que findou

Fazia já alguns meses desde que havia se instalado no chalé que antes pertencia a Gillian. Nesse tempo, continuou trabalhando no café e estudando sobre sua nova vocação. Seus pais acabaram sendo mais compreensivos do que os irmãos no quesito mudança.
Pelo menos três vezes por semana, recebia a visita de algum dos irmãos. Nem sempre eles tinham o senso de avisar que estavam a caminho e, como tinham uma cópia da chave para emergências, acabavam encontrando a mulher de calcinha às vezes. E até sobre como ela se vestia dentro de sua própria casa opinavam.
Naquele sábado de manhã, foi Charles quem apareceu para uma visita. Encontrou-a no tapete felpudo da sala, rodeada de livros de páginas amareladas pelo tempo e dormindo tão pesadamente que nem mesmo teve coragem de acordá-la.
Com algum esforço, conseguiu pegá-la no colo e ela acordou quando estava sendo colocada na cama.
– Bom dia, Charlie. – Disse preguiçosa, esfregando os olhos.
– Pode voltar a dormir, eu me viro com o café.
– Eu já dormi o suficiente, nem lembro de ter conseguido estudar algo ontem.
– Você tem que parar de dormir naquele tapete.
– Eu estou começando a acreditar que é ele tem sonífero.
– Ou você está querendo se forçar a mais do que aguenta.
– Não é isso.
– E como anda Victor e Cristine? – Mudou de assunto.
– Victor está bem e Cris me contou que você a chamou pra sair. Por que não me contou?
– Você ia saber de qualquer jeito porque você também vai.
– E o que te faz pensar que eu quero ir ficar de vela?
– Vai ser um encontro triplo.
– Eu não vou em um encontro às cegas e seus irmãos não vão gostar nada de saber que você está me enfiando numa burrada dessas.
– Não é um encontro às cegas. Eu vou com a Cris, você com , Victor com Marshall.
– Ah, minha deusa, eu não acredito que você fez isso! Eu não estou conversando com ele!
– Vocês precisam se resolver logo, está sendo chato.
– Ele foi um babaca.
– E você está sendo orgulhosa e mimada por não aceitar as desculpas dele.
– Ah, sim, claro. Desde que inventaram a desculpa, nunca mais morreu ninguém.
Charles somente suspirou e saiu do quarto, deixando a irmã se trocar e indo até a cozinha.
Havia mais ou menos uma semana e meia que e discutiram por causa de um acidente causado por eles em plena praça da cidade. havia sido abordada por alguns homens e, ao invés de ignorar e seguir seu caminho até onde os amigos estavam, ela se enfiou em uma pequena confusão e acabou tendo de puxá-la pelo pulso, resultando numa ruptura hidráulica na fonte principal da praça, que acabou inundando todo o jardim ao redor e dando um pequeno prejuízo para a prefeitura.
acabou ficando nervoso com toda a situação e descontou em , jogando toda a amizade que estavam construindo pro ralo. Desde aquele dia, não se falaram mais.
Marshall e se instalaram de forma permanente na cidade, sabiam que não adiantaria sair dali pois, de um jeito ou de outro, era ali que deveriam estar e ficar. Alugaram um apartamento em cima de uma lojinha de velharias e fizeram amizade com o senhor dono da mesma, que conseguiu emprego para os dois.
Marshall trabalhava no antiquário mesmo, adorava história e remexer o passado de coisas antigas, então se sentia apaixonado pelo seu trabalho, enquanto havia se tornado relações públicas da prefeitura, visto que era formado na área e tinha uma carta de recomendação invejável de seus professores.

Charles estava no telefone combinando um horário com Victor quando chegou no cômodo, com um short e uma camiseta menor que a gigante que ela usava quando foi encontrada no chão da sala.
– Você tem uma chance de me convencer a sair de casa hoje à noite.
– Eu pago.
– Vendida! – Exclamou e, entã,o se sentou na pequena mesa enquanto esperava o irmão servir uma xícara de café para os dois.
Passaram a manhã juntos jogando videogame, o que serviu para distrair a cabeça de da situação que estava enfrentando com uma senhora que foi procurá-la em busca de ajuda para cuidar do marido.
Quando sentiram fome, já era por volta das três da tarde, e não se sentiam em condições de preparar uma refeição caseira, então foram até o centro procurar algo para comer. nem mesmo se deu ao trabalho de trocar as roupas que vestia em casa, e tinham em mente realmente apenas comprar algo para a viagem e comerem no sofá mesmo, sem nenhuma cerimônia.
Charlie estacionou na frente da cantina italiana de Antonella e pediu que a irmã esperasse no carro. realmente não tinha a intenção de desfilar pela praça vestida com um short de pijama e blusa larga, mas uma inquietação surgiu dentro de si, fazendo-a tirar o cinto de segurança e pegar a chave do carro na ignição.
Saiu batendo a porta do carro e ativando o alarme. Seus pés caminharam sozinhos até o coreto da praça e ela escutou um choro vindo de trás da pequena portinha que bloqueava o acesso à parte de baixo da estrutura.
Quem quer fosse que estivesse ali, estava desesperado e assustado.
forçou a porta, mas a mesma nem se moveu. Bateu devagar.
– Vá embora! Me deixe em paz! – Uma voz infantil gritou e um arrepio percorreu o corpo da mulher.
– Eu quero ajudar. – disse. – Você está bem?
– Vai embora!
– Olha, você não está me vendo, mas eu estou de pijama aqui fora e, agora, conversando com uma porta. As pessoas vão achar que eu sou maluca.
– Então vá embora pra sua casa.
– Eu só saio daqui depois que me contar por que está aí e por que está chorando.
– Isso não é da sua conta.
– Veja bem, meu papel é ajudar pessoas, e você parece estar precisando de ajuda.
Ouviu algo pesado se arrastando e, então, uma fresta foi aberta, revelando um par de olhos castanhos lacrimejantes.
– Você é muito chata. – A garotinha disse emburrada, fazendo a mais velha rir.
– Eu entro ou você sai?
– Eles não podem saber que eu moro aqui. – Respondeu enquanto puxava a mulher para dentro.
não conseguia nem ao menos ficar com o corpo ereto ali dentro, visto que o teto era muito baixo, então ela precisou ficar encurvada numa posição estranha quando olhou ao redor.
Alguns trapos estavam embolados num canto, perto de um colchão. Tinha uma cadeira e algumas velas no chão. Parecia um abrigo improvisado e não havia mais ninguém ali dentro além da garotinha.
– Onde estão seus pais?
– Eles foram embora.
– E te deixaram aqui? – A mulher perguntou e ouviu o estômago da menor.
A menina tinha os olhos fundos de quem não dormia havia muito tempo. Aquilo partiu o coração da mais velha e ouvir seu estômago reclamar lhe preocupou. Por quanto tempo aquela menina estava ali?

– E o que você pretende fazer com essa garota?
– Eu não sei, Charlie. A gente chama a polícia?
– Não sei. Acho que devemos conversar com Aaron e descobrir o que pode acontecer com ela caso o façamos e caso não o façamos também.
Eles encaravam a garota sentada na mesa de jantar enquanto a mesma almoçava.
Aquilo havia mudado os planos dos irmãos.
O almoço acabou sendo com a companhia de Claire, na mesa de jantar, e ouvindo o que a garota tinha para dizer sobre como foi parar vivendo precariamente sob o coreto da praça.
– Como vamos sair hoje à noite?
– Eu não sei.
ligou para Aaron e pediu que ele fosse visitá-la com urgência, nem mesmo se importou que o irmão levasse companhia.

Depois de terem deixado a garota na mansão e garantí-la de que ela estaria segura, que iria buscá-la logo pela manhã e que passariam o dia tentando localizar seus pais, foi se aprontar para o encontro triplo que teria ao anoitecer.
Não estava verdadeiramente empolgada com ter que lidar com naquele dia, sua cabeça ainda estava bem com tudo o que havia acontecido durante aquela tarde.
Cristine chegou em sua casa para se arrumarem juntas, o que só ocorreu a pedido de , que não fazia ideia do que vestir para um encontro.
Quando Cristine parou de revirar o armário de roupas, saiu com algumas peças de roupa preta que a dona nem mesmo reconheceu.
– Vista-se e diga se está confortável. Acho que vai ficar a sua cara, bruxinha.
– Ok. – disse e pegou as roupas da mão da amiga.
Assim que entrou no banheiro, encontrou um par de lingerie também preto que havia ganhado de uma prima alguns aniversários atrás, mas ela nunca havia usado por se sentir esquisita usando renda por baixo das roupas, mesmo sabendo que ninguém estava vendo.
– Eu não precisava de uma calcinha nova! – Ela disse num tom mais alto para que Cristine ouvisse do lado de fora.
– Vista essa aí! E não tente me enganar, eu vou conferir.
Não duvidando da palavra da amiga, trocou sua calcinha de algodão e o top de ginástica que iria usar por baixo de seja lá qual fosse o look que ela escolhesse, e então descobriu que as outras peças eram um vestido e um par de meias 7/8.
– Minha deusa, eu pareço uma garota de programa. – Falou ao sair do banheiro.
– Você está muito gostosa!
– Isso é ser uma garota de programa? – Perguntou com uma careta.
– Não, mané. vai até pedir desculpas de novo.
– Você acha? – Ela perguntou, indo pra frente do espelho e mordendo a boca, ansiosa.
– Vocês deviam resolver isso logo, estão doidos pra se atracar.
– Eu não quero nada.
– Ah, você quer sim!
– Vai tomar seu banho ou vamos nos atrasar.
Cristine entrou pro banho e se sentou em frente à penteadeira que havia pertencido à sua avó. Soltou os cabelos da toalha e desembaraçou-os.

O relógio de ponteiro da parede da sala marcava oito e quinze quando Charlie buzinou. As mulheres saíram de casa e a trancou, ativando o alarme que Liam havia imposto como requisito para que ela pudesse se mudar.
Entraram no carro e foram até a cantina italiana de Antonella, onde haviam marcado de encontrar os outros 3.
Quando viu a garota sair do carro, seu queixo quase caiu. estava deslumbrante. Não que ela não fosse linda toda parte do tempo, porque ela era.
Durante todo o jantar, havia uma tensão insuportável entre os dois, ao ponto de incomodar todos os presentes e fazendo-os obrigarem a se resolver quando todos se separaram.
, você pode levar a pra casa?
– Hm... Sim.
– Valeu,, cara, vou deixar a Cris em casa.
– Vamos? – perguntou meio sem jeito quando terminaram de se despedir.
Quando entraram no carro, o clima ainda era estranho, e pareciam até mesmo respirar de forma regulada para que o silêncio no automóvel durante o trajeto fosse mantido.
– Nós precisamos conversar, todo mundo está puto. – Ela soltou quando estavam perto de chegar em casa.
– Eu não tenho culpa se você é uma idiota que não aceita um pedido de desculpas.
– Você quem é um idiota.
– Eu não quero brigar.
– Nem eu. – Suspirou.
– Vai parar de ser assim?
– Sim.
– Ótimo.
– Estamos bem?
– Estamos bem.
Pararam em frente ao chalé e ficaram sem jeito. De repente, o clima estava diferente ali, a energia se tornou densa e, indo contra tudo o que haviam evitado durante todos os meses desde que se conheceram, aproximaram-se até que estavam com os lábios um contra o outro.
Mas, dessa vez, a chuva não caiu do céu do nada.
E ambos estranharam aquilo, mas o efeito entorpecente que aquele ato teve sobre eles os fizeram ignorar qualquer coisa que não fossem os acontecimentos de dentro daquele carro.
Os cintos foram soltos, as mãos se tornaram mais livres, e quando as mãos de já estavam dentro da camisa de , ela tomou uma mínima distância do rapaz e, ofegante, soltou uma única pergunta.
– Quer entrar? – E prendeu o lábio entre os dentes, por algum motivo nervosa com a resposta, que não demorou a vir.
Sua resposta foi um aceno ainda meio atordoado por todas as sensações que a mordida no lábio desencadeou num ponto mais abaixo do corpo de .
Irromperam carro afora, ainda sem nenhum sinal de chuva, e aquilo parecia bizarro demais, mas foi a conta de suas mãos se encontrarem enquanto caminhavam pelo pequeno jardim até a varanda que os vidros do carro de explodiram. Os dois riram, pouco entendendo o que acontecia e nem um pouco preocupados com a motivação daquilo. Sabiam muito bem que eram os culpados.
desligou o alarme e ambos entraram na casa. Assim que a porta foi fechada, ela já se viu contra a mesma, tendo seu pescoço explorado pelo nariz do rapaz e fazendo calafrios surgirem por seu corpo como choques elétricos.
– Você está cheirosa. – murmurou antes de fazer sua boca tomar a dela de volta.
As mãos dela, em questão de segundos, já estavam subindo a camisa que ele usava, e ele a ajudou a tirá-la. E quando ela foi arremessada longe e ele voltou a grudar os corpos, um trovão alto retumbou pelos céus. Eles sabiam que eram o próprio olho do furacão.
Com um impulso, ele colocou a garota em seu colo, apoiando-a no lugar com as mãos nas coxas, o que fez ela soltar um pequeno gemido que fez o vento assobiar ao passar pelas frestas da porta.
Em passos trôpegos, chegaram ao quarto da garota, que não era completamente estranho para , que já tivera algumas sessões de estudos sobre o altíssimo naquele cômodo. Se largaram na cama, ainda em meio a beijos e ao ato de se desfazerem das roupas que separavam aqueles dois corpos que pareciam estar à beira da ebulição.
Quando já estavam completamente desnudos, ainda brincaram de desvendar o corpo do outro. Tudo era tão novo para e, ainda assim, nem um pouco estranho. Sentia que cada mínimo toque parecia certo demais para ser algo além de incrível.
Conheceram o corpo um do outro com mãos, dedos, bocas, línguas, lábios. E cada nova descoberta os fazia ir ao céu e voltar. Cada suspiro ou murmúrio saía de um e atravessava o outro como uma descarga elétrica
Quando, por fim, se uniram da forma mais carnal humanamente possível, o gemido que escapuliu da garganta de ambos foi representado do lado de fora por um raio que iluminou completamente o quarto, até então, escuro.
O sorriso que abriu quando viu a feição de prazer que o homem ostentava foi correspondido, e quando aquela dança sutil e frenética entre os corpos acontecia dentro daquele chalé, a cidade era varrida pela tempestade mais assustadora dos últimos dois séculos e fazia com que os moradores mais novos entendessem o porquê das construções antigas serem todas um bom nível acima do chão.

Clarie olhava assustada para o lado de fora da grande casa da família . Todo o jardim havia sumido e tudo o que ela conseguia ver era água até onde seus olhos conseguiam alcançar do horizonte.
A matriarca dos fazia companhia para a garota, que esperava ansiosamente por , e percebeu que a menina estava inquieta.
– Está tudo bem, querida? – Perguntou para a menina, que pareceu despertar de seu pequeno transe.
– Você vai achar que é maluquice, mas mamãe me contava uma história para mim e meus irmãos. Sobre a chuva.
– Quer me contar?
– Ela dizia que bruxas existiam, e eu era a quinta de cinco irmãos, poderia ser uma também. E toda vez que algum lugar se inundasse com uma chuva repentina, era sinal de que havia bruxas existindo por ali.
– É quando elas chegam no ápice do feitiço humano.– A mulher explicou, fazendo a garotinha arregalar os olhos ao descobrir que mais alguém sabia daquela lenda.


Fim.



Nota da autora: "Eu to tremendo ao terminar esse ficstape porque eu pensei que era impossível, mas agora dando a última relida e vendo o conjunto da obra que demorei semanas para colocar no papel eu me sinto muito realizada e acredito que cumpri o que me desafiei a fazer.
Espero que tenham gostado, eu fiz com muito carinho cada parte maluca dessa história e espero que vocês tenham gostado de embarcar nessa aventura comigo.
BRB."



Outras Fanfics:
Olhar 43
01. For a Pessimist, I'm Pretty Optimistic


Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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