Finalizada em: 01/06/2020

Capítulo Único

“And if your homesick, give me your hand and I'll hold it // People help the people // And nothing will drag you down”
“Se não eu, quem?”


As luzes piscavam, as cores delas mudavam. Verde, azul, branco, vermelho. Havia fumaça por todo canto e a minha cabeça rodava. Tudo parecia um borrão ou era apenas o ambiente? Onde foi parar todo mundo? Meus amigos estavam aqui um segundo atrás, onde foram parar? Talvez eu bebi demais, penso, rio como se isso fosse a maior piada do mundo.
Alguém segura a minha cintura, será Alex? Ele deve ter voltado de sei lá onde se meteu, não me viro para conferir. O ritmo da música me leva, as coisas estão lentas e rápidas demais. Me sinto bem, mas não pareço que estou aqui. O cara fala alguma coisa, meu cérebro não registra o som direito. Eu não respondo. Tudo está alto demais. Ele fala no meu ouvido, ouço melhor, mas as palavras não fazem sentido, “vamos para casa”? Que casa? Não parece a voz do meu amigo, quem é?
Tento me afastar, mas não consigo fazer força. Meus braços estão pesados demais, o que está acontecendo?
Ele me vira, olho para o seu rosto. Não o reconheço ou será que sim? Será que me o apresentaram mais cedo? Será que sabe onde todo mundo foi parar?
Tento perguntar isso, mas só consigo chamar Alex, minha língua se sente estranha. Rio, não sei porquê.
“Alex, conheço um, quer que eu te leve até ele? Ele tá naquele canto ali”. O desconhecido aponta para a direita, não consigo enxergar direito o que tem lá, então assinto, não sei se consigo achar sozinho.
Ele me arrasta até onde Alex deve estar, meu corpo é levado como numa correnteza, gente empurrando e eu espero sair logo daqui. A mão dele segura minha cintura forte, mais do que antes. Dói um pouco, quero reclamar, mas fico calada, não sei bem porquê. Quero ir para casa, chegamos onde tem menos fumaça. Menos gente.
“Ele está depois dessa porta” diz, eu assinto, quero encontrar alguém conhecido logo, quero ir para casa. Minha cabeça dói, não parece mais divertido.
O lugar que entramos é um corredor mais escuro, aqui as luzes não piscam, minha cabeça gira menos, mas não tem mais ninguém aqui. Cadê todo mundo? Quero ir para casa.
“Não tem ninguém aqui.” Eu digo, ou acho que disse, não sei se saiu esse som exato da minha boca. Por que me sinto tão estranha? Devo ter bebido muito.
“Ele já vem.” Diz e ao mesmo tempo me empurra contra a parede. Segura-me contra ela de uma forma firma, não muito forte, mas estranho. O que ele está fazendo, olha diretamente nos meus olhos, será mesmo que eu o conheço? Não lembro desses olhos. Quero ir para casa.
Linda, acho que escuto essa palavra antes de ele me beijar. Eu deixo, é suave, mas o que está acontecendo? Aqui está escuro, quero ir para casa.
Sinto as mãos deles irem em direção à minha bunda, o beijo fica mais violento e tento me desvencilhar. Consigo soltar um Alex, mas ele continua a me beijar. Tento empurrá-lo, não quero beijar ninguém, quero ir para casa, as coisas estão turvas e o aperto dele começa a doer. Acho que vai deixar uma marca amanhã, não quero, ainda não sei se conheço esse cara. A boca dele vai para o meu pescoço.
“Não, me solta...” tento falar firme, mas minha voz ainda soa estranha, meus braços estão pesados demais para empurrá-lo com força. Ele me ignora e continuo repetindo não, ou será que só estou pensando? Tento colocar a mão no rosto dele para afastá-lo, ele puxa meu braço com força. O que está acontecendo? Por que ele não me escuta? Minha cabeça dói, quero ir para casa.
“Nós já vamos para minha casa.” Ele diz no meu ouvido, acho que falei isso em voz alta, mas ele não entendeu. Quero a minha casa, não a dele e não acho que sabe onde é a minha. Ele continua movendo a mão pelo meu corpo, estou confusa, mas começo a ter medo. Ele não me escuta e quero ir para casa. Ele me beija de novo e empurra a língua fundo, segura a minha cabeça com força não me sinto bem, começo a ter enjoo também. Acho que estou chorando, não tenho certeza. Tento empurrá-lo e falho de novo. Eu só quero ir para casa.
Ele continua com força e sua mão já percorreu toda a lateral da parte superior do meu corpo. Não sei a quanto tempo estamos aqui, sinto um peso em mim esperando algo ruim acontecer, não sei dizer bem o que, acho que já está acontecendo apesar de eu não saber nomeá-lo, estou chorando mesmo agora. E então para. Não o sinto mais. Alguém praticamente caiu em cima de nós dois e de repente ele não está mais em cima de mim. Consigo respirar fundo agora. Ele xinga alto e parece com raiva.
“Desculpa.” Uma menina diz, tem um rapaz do lado dela, estão rindo e olhando para o desconhecido que ainda não sei o nome. “Meu namorado Bernardo não sabe beijar e ter equilíbrio ao mesmo tempo, acho que tropeçamos quase caindo no corredor inteiro até aqui.” Ela ainda está rindo até olhar na minha direção, observa meu rosto e meu corpo e vê algo que a deixa séria.
Ele já está na minha frente de novo, parece com raiva. Xinga e os manda ir embora.
“Ei, ela não parece bem.” Ela diz e praticamente se coloca entre nós dois. Segura a minha mão, nunca me senti tão aliviada com a mão de outra pessoa. Seu namorado a segue e o cara os encara, avaliando a situação e sorri tentando amenizar as coisas.
“Ela está ótima.” Me puxa ao dizer isso, me forçando a soltar a mão dela e me desiquilibrando, caio no chão com força, parece que faço um estrondo, ou pode ser só como me sinto.
As coisas acontecem rápido a partir disso. A mulher grita ei e vai até mim, o namorado dela vai na direção dele, empurrando-o. Eles começam a discutir e ela me abraça forte, pergunta se estou bem, mas não consigo respondê-la. Só olho em sua direção e penso obrigada.
Os dois estão se empurrando e ele grita coisas que não entendo. Ela me ajuda a levantar e vira para ele.
“Acho melhor parar antes que eu chame a polícia, vá embora.” Tira o celular não sei bem de onde e parece pronta para ligar, determinada, calma, seu rosto está fechado e nada nela hesita, acho que nunca vi alguém assim.
Ele fica calado e apenas olha de Bernardo para nós duas, como se avaliando o risco, se vale a pena a briga que ele vai entrar. Ele está em desvantagem agora. Solta um palavrão, empurra Bernardo da sua frente e sai andando rápido.
“Você está bem?” Ela pergunta de novo, quero dizer sim, mas vomito antes de conseguir.

Acordo e abro os olhos, mas existe muita luz. Minha cabeça dói, viro para o outro lado e noto que essa não é a minha cama, na verdade, acho que estou em um sofá, ou quase. Essa constatação me faz sentar rápido demais e quase caio.
“Ei, calma!” ouço uma voz feminina, olho para frente e lá está uma mulher da minha idade de pijama, ela está sorrindo e noto que é a mesma de ontem à noite. A que me salvou. O que ela está fazendo aqui? Na verdade, onde é aqui?
“Desculpa pelo sofá, ele pode ser sofá-cama, mas não é dos mais confortáveis. E só tem uma cama no apartamento.” Ela falou calmamente como se o sofá fosse a maior explicação que eu precisasse no momento. Ainda nem sabei o nome dela, percebi.
“Tudo bem, mas o que aconteceu? O que eu estou fazendo aqui? Na verdade, quem é você, quer dizer... Eu lembro de você ontem à noite, pelo menos em parte, mas eu ainda não tenho ideia de quem é você mesmo.”
“Desculpa, depois de tudo é estranho que você ainda não saiba meu nome. Meu nome é Marina, você é a e antes de pensar que eu sou uma psicopata perseguidora por saber disso, eu vi na sua identidade depois que você apagou ontem. Eu e o Bernardo ficamos um pouco desesperados, você meio que só vomitava ou dizia quero ir para casa e quando eu perguntava onde era, você falava de uma porta, acho que era a porta da sua casa ou de algum lugar que você gosta muito. Não eram descrições ou direções boas o bastante para eu saber onde era. Seu celular estava descarregado, então não tinha como eu ligar para nenhum conhecido seu. Eu não ia te deixar lá para o babaca voltar ou outro da mesma laia aparecer. Então Bernardo nos deixou aqui em casa, me ajudou a te deixar no sofá e aqui estamos.” Marina falava rápido e meu cérebro demorou um pouco para conseguir acompanhar e fazer sentido das palavras dela. Então o pesadelo de ontem foi real. Eu não lembrava de todos os detalhes, mas conseguia recordar do terror que eu sentia antes dela aparecer, sentia arrepios em pensar no que poderia acontecer se ela não tivesse aparecido, quão mais longe poderia ir.
Sinto um misto de alívio, gratidão, confusão e culpa. Por ter ficado nessa situação, eu lembro de ter bebido alguns copos, nada além do normal, mas como eu me senti ontem era tudo menos normal. Minhas memórias não estavam completas, lembro de flashes de luzes, mãos à deriva e sons muito altos. Não sei o que aconteceu entre a última vez que vi meus amigos até o momento em que fiquei sozinha. Não sei se me afastei ou eles se afastaram, não tenho muitas certezas, só de que Marina tinha me salvado. Uma pessoa que ela nunca tinha visto antes, quando ela mal sabia o que estava acontecendo, mas sabia que seja lá como fosse, não era bom. Não só isso, como me trouxe para casa dela quando não existia responsabilidade nenhuma disso, eu era uma completa desconhecida e no meio disso ainda lembro de uma mão segurando meu cabelo e massageando minhas costas enquanto eu vomitava. Lembrava dela segurando minha mão e se metendo na entre mim e o cara sinistro de ontem. Eu não sei se já conheci alguém que fizesse isso por uma desconhecida, na verdade, não sei nem se eu faria.
“É... Tudo bem. Não tem o que se desculpar, eu já estou na sua casa. Obrigada por tudo, por ontem... Por ter me defendido. Eu não sei nem direito como parei naquela situação e na hora não conseguia sair.” Falei nervosa, mexendo nos meus dedos. Marina me olhou com uma expressão suave, aproximou-se e segurou minha mão, acalmando-me. Ela tinha uma capacidade de transmitir paz que eu não sabia colocar em palavras concretas.
“Não tem o que agradecer, seu rosto estava inchado ontem, podia ver que estava chorando. Suas roupas estavam todas fora de lugar. E sem ofensa, mas mesmo quando você olhava diretamente para mim, parecia meio aérea. Parecia bem bêbada, na verdade, talvez até sob influência de outra coisa. Não estava em condições nenhumas de fazer alguma coisa e, bom, sua expressão não parecia bem querer fazer nada também. Eu fiz o que qualquer um faria, nada de espetacular.” Apertou minha mão e disse calmamente, como se fosse simples assim, como se todo mundo realmente fizesse isso e não virasse as costas sem querer problemas para si. A olhei um pouco sem saber muito bem como responder, seja agradecendo ou só aceitando sua fala. Acho que minha lista de admirações para a vida tinha acabado de sair da bolha de corpo de bombeiros e incluir uma menina que segurou minha mão em uma hora necessária, alguém que ainda a segurava passando segurança mesmo agora. Abracei-a forte, Marina não reage imediatamente, surpresa comigo, então passa os braços em minha volta e aperta com força e parece que a situação de ontem realmente me atinge e começo a chorar. A barreira rompe e não consigo controlar. Meu corpo treme, cada parte dele e ela me deixa desmoronar enquanto diz está tudo bem agora, acalma-me e eu repito obrigada e obrigada como um mantra.
Não sei por quanto tempo ficamos assim, mas de algum jeito, melhoro um pouco e as lágrimas ficam mais escassas até que param definitivamente. Marina ainda fica comigo por mais alguns minutos, só me soltando para fazer o café da manhã, diz que um pouco de café tornará tudo melhor e eu realmente acredito nela.

Nas próximas horas, eu conto basicamente como fui parar naquela festa. Era o aniversário de um amigo, eu não era muito de sair e tinha acabado de sair de um plantão como bombeira, mas tentava ir às datas especiais e ser presente. Estava morta e não tinha comido direito, minha ideia genial para aguentar a noite foi beber e depois disso as lembranças perdiam a linearidade. Lembrava de amigos se despedindo e perguntando se eu queria ir embora, mas àquela altura devo ter negado. Contei sobre o cara sinistro, em como naquela nebulosidade de pensamentos, acreditava ir com ele em busca de Alex, o aniversariante. Contei sobre todos os eventos depois disso, pelo menos com os detalhes que eu conseguia lembrar. Marina me ouviu concentradamente, perguntou se eu queria fazer algo a respeito disso, disse-lhe que eu gostaria apenas de apagar o episódio e não ter que revisitá-lo tão cedo.
Nós passamos o dia juntas, contei sobre momentos interessantes da minha profissão, de resgastes bons que eu participei. Em como existiam turnos dos quais eu saía como se pesasse uma tonelada, como se minha roupa fosse recoberta por pesos e cada movimento exigisse uma força gigantesca. Sobre a sensação de dever cumprido nos dias bons. Sobre se sentir útil, de ser necessária para outra pessoa. Ela me disse sobre o escritório onde trabalhava, como seu chefe sempre deixava tanto trabalho que era uma das últimas a sair. Sobre os projetos de informação online que participava. Falamos sobre os meus amigos, os amigos dela, sobre Bernardo.
Eu agradeci muitas vezes mais e ela continuava dizendo que não era nada. Eu lhe disse que não era todo mundo e, na verdade, era capaz de existirem mais pessoas com capacidade para virar o rosto do que para fazer o mesmo. Contra isso, Marina me falou:
“Sim, sempre tem alguém capaz de não fazer nada, de cruzar os braços ou ser cúmplice, mas só uma pessoa tem a capacidade de realmente ajudar outra. E temos que salvar uns aos outros, não é? Quem será o agente transformador, senão cada um? A ação contra a inércia e o descaso, sempre. Ação contra omissão. Você mesmo, não é todo mundo que entre num prédio em chamas ou faz resgaste quando precisa, eu correria para o outro lado numa situação como essa, não tenho coragem para uma situação como essa, mas tenho para outras. E é assim, cada um pode fazer sua parte, de uma forma ou de outra.”
“Eu não sou a exceção no mundo, apesar de as vezes vermos coisas ruins, se avançamos em boas direções é porque existem pessoas fazendo o certo. Sabe, já aconteceu algo parecido comigo e uma amiga minha, que, na época, eu nem conhecia, se meteu e agiu como se fosse a minha irmã. Ou numa festa que uma menina passou mal e não acordava de jeito nenhum que reuniu um monte de gente tentando ajudar, colocar em posição de drenagem para melhorar. Ou saber primeiros socorros e pode fazer um RCP e efetivamente salvar alguém, o Bernardo sabe e me ensinou. Você mesma sabe e ajuda bem mais do que eu mesma. E cuidar de quem gostamos também, cuidar envolve milhões de coisas. Estar presente, ajudar quando as coisas não vão bem, dar as mãos. O Bernardo mesmo ontem, não é como se eu tivesse o empurrado ou dado a ideia de ele intervir, ele quase partiu para cima do outro enquanto eu te ajudava e foi instintivo.”
“Cada um pode ser egoísta, cruel, insensível, indiferente. Podemos ser isso todos os dias ou podemos escolher ser melhores, agir quando o instinto é fugir. Pessoas podem ajudar outras pessoas, elas só precisam escolher isso. Ação contra inércia, sempre.”

Às vezes, ainda penso sobre aqueles dias. Precisei de um pouco de terapia para realmente superar, mas a parte boa realmente me marcou. Lembro de Marina e não sei se já encontrei alguém que me senti tão grata e com quem criasse admiração em tão pouco tempo. Não viramos exatamente melhores amigas, não nos víamos regularmente, mas eu nunca me esqueci dela ou das conversas que tivemos. Essas e muitas outras nos anos seguintes.
Eu lembrava dela cada vez que fazia algo por alguém, sendo agente transformador, como ela diria. Lembrava dela até em resgastes, talvez não exatamente durante, pois era tudo automático. Mas quando acabava e eu olhava para a pessoa que tirei de lá, quem eu ajudei e talvez sentisse o alívio e gratidão que eu senti quando fizeram o mesmo por mim, as palavras dela vinham a mente “Pessoas podem ajudar outras pessoas, elas só precisam escolher isso. Ação contra inércia, sempre”. E eu escolhia, todos os dias.

“Podemos ser violentos, insensíveis, cruéis, egoístas, indiferentes, mas só quem pode salvar a vida de um ser humano é outro ser humano.” Médicos sem fronteiros.





Fim



Nota da autora: Oi, gente, essa música é uma das minhas preferidas de anos, uma das primeiras que ouvi da Birdy. Então ela era a escolha óbvia, mas olha, apesar de essa história ter ficado bem curta foi uma dor de cabeça para conseguir escrever, primeiro porque inicialmente ela não seria nada nesse estilo, desde o enredo e também porque eu queria fazer paralelos de histórias, mas a escrita disso não deu lá muito certo. Preferi ir pelo mais simples dessa vez, espero que tenha dado certo e vocês tenham gostado. O motivo da citação do final foi a quantidade de vídeo testemunho de médicos sem fronteiras que eu vi pensando em fazer algo na linha de trabalho humanitário, apesar de não ter usado muita coisa na história propriamente dita, pra mim ele é a sintase do que a letra dessa música passa. Mas bem, é isso. Espero que tenham gostado e me digam o que acharam. Qualquer coisa, só chamar no Twitter (@natymvr // https://twitter.com/natymvr) ou no Instagram (@natymvr).




Outras Fanfics:
  • 08. For Now
  • 06. Under Pressure
  • 01. Alexandria

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