Capítulo Único
You were right when you said it
Keep my cards to my chest
And I never let no one know me, I pushed you out
Now I get that you needed just a little more love…
(Você estava certo quando disse
Para manter meus segredos no meu peito
E eu nunca deixei ninguém me conhecer, eu te afastei
Agora, entendi que você precisava de um pouco mais de amor...)
Muitas coisas haviam mudado em Oslo nos últimos dez anos. Os prédios estavam mais bonitos e altos, as ruas mais movimentadas, os museus claramente mais cheios e todo mundo parecia inquestionavelmente mais rico. Contudo, de todas as mudanças que haviam acontecido, o que não esperava era encontrar com algo sem o menor traço de mudança nas feições justo em seu primeiro dia de volta à cidade. Quer dizer; é claro que ele esperava esbarrar com ela em algum momento, soubera que não havia deixado a cidade; no entanto, ainda assim, estava sendo absurdamente assustador ter o vislumbre de encontrar em seu primeiro passeio na cidade após tanto tempo. Foi inevitável afundar-se em um mar de distração e lembranças, recordando nos últimos detalhes o último contato que tivera com a, agora, escritora de sucesso mundial.
— Não dá mais! — gritou. — Não dá mais, , nós precisamos terminar. Esse relacionamento já não nos faz mais feliz.
— Esse relacionamento não te faz mais feliz, — rebateu, encarando-a nos olhos sem fazer questão de esconder toda a mágoa que carregava dentro de si; os olhos marejados de , para ele, não passavam de míseras fachadas para fingir que sentia algo com aquele término.
— Nós desconfiamos um do outro o tempo inteiro — retomou a fala, engolindo a vontade de chorar. — Você sequer olha para mim, e eu não me importo mais com isso. Caímos em um limbo de mesmice, briga, medo e desconfiança, acha mesmo que vamos dar certo se continuarmos insistindo nisso? Nosso relacionamento está fadado ao fracasso!
— Faça o que for melhor para você! — secou as próprias lágrimas com rispidez. — Eu só nunca esperei que chegaríamos a esse ponto depois de cinco anos incríveis.
— Você é ingênuo ou simplesmente cego, — ela disse em um tom cansado. — Estava óbvio o último ano inteiro que não aguentaríamos muito mais. Tornamo-nos pessoas muito diferentes, amadurecemos, deixamos certos planos de lado e temos uma vida inteira pela frente; simplesmente não encaixamos mais um na vida do outro.
— Isso é por causa do trabalho na Itália?
— Não, jamais seria. Torço para que sua carreira dê certo; mas eu jamais poderia abandonar tudo o que construí aqui para ir embora com você. Foi apenas um detalhe. O detalhe que precisávamos para percebermos que não existe mais um relacionamento.
— Tudo bem — decretou, sem forças, cansado e cabisbaixo. A raiva ainda estava ali, em algum lugar de seu interior, mas preferiu deixá-la onde estava escondida. — Não esqueça que eu te amei mais do que tudo, , e eu não queria que isso acabasse.
— Eu também te amei, . Mas o amor nem sempre é o suficiente para manter um relacionamento.
— Pappa!¹ — uma voz estridente e alegre ecoou pelos ouvidos de , tirando-o de seu devaneio. Ao seu lado, pendurada em sua perna, estava sua filhinha de apenas quatro anos recém completos: Noëlie.
A garotinha tinha um par de olhos verdes profundos e os cabelinhos tão ruivos quanto os da mãe; era automático olhá-la e lembrar de Gaïa. sorria sempre que notava as semelhanças, fosse fisicamente ou traços na personalidade; ou simplesmente o tom de voz que ficava esganiçado sempre que a garotinha estava empolgada, tal qual a matriarca.
— Oi, meu amor — abaixou-se em frente a menina, finalmente tirando os olhos de cima de , do outro lado do museu.
— Aqui é muito bonito! — Noëlie disse empolgada e embolado, ainda errando algumas palavras. — Mas, agora quero tomar sorvete!
riu da filha e pegou-a no colo com carinho, preparando-se para seguir em direção à saída do museu. Contudo, travou em seu lugar ao perceber que, agora, a mulher que tanto admirou ao longe e o fez perder-se em pensamentos tendo a filha ao seu lado, estava parada tão perto de si. Ela admirava a escultura de algum barco, distraída ao lado de uma outra mulher e uma criança que ele não conhecia; ou apenas não se lembrava. Seu coração palpitou e ele apertou mais as mãos ao redor da filha, pronto para sair daquele torpor e ir embora, porém, como era de se esperar, não teve tempo. Quando estava prestes a dar as costas para e rodar todo o museu para chegar à saída sem passar por ela, ela se virou em sua direção quase como se sentisse o olhar queimando suas costas.
A expressão de surpresa no olhar de foi impagável, , no entanto, seguiu pálido e nervoso. Reconheceram-se imediatamente, é claro que sim; passaram uma vida juntos antes de engatar num relacionamento duradouro — e o qual pensaram que acabaria no altar e iria durar pelo resto de suas vidas.
Antes que pudesse falar alguma coisa — sua boca abria e fechava sem emitir som algum —, pôs-se a caminhar a passos rápidos, passando ao lado da mulher sem sequer olhá-la outra vez; sentia o ar preso no meio do peito, sufocando-o como nunca havia sentido antes; suas mãos tremiam em nervosismo e um filete de suor brotou em sua têmpora, mesmo com a temperatura relativamente baixa naquele dia.
não olhou para trás, mas sabia que a filha, apoiada em seu ombro, encarava a mulher de longe — e tinha certeza que possuía o olhar questionador e curioso no rosto tão bonito e bem desenhado; ainda assim, ele não estava disposto a olhar para trás e confirmar suas suspeitas; preferia fingir que não a conhecia tão bem.
— Cuidado, meu amor, não quero que se suje muito — murmurou rindo para a filha que se lambuzava com a cobertura de chocolate. — Você é igualzinha a sua mãe mesmo…
— Muuuito gostoso, papai — Noëlie resmungou feliz, sorrindo e mostrando a boquinha repleta de sorvete, confetes e cobertura.
— Eu sei — riu outra vez e levou o guardanapo à boca da filha, a fim de limpá-la. — Agora acabe de comer para irmos embora. O papai precisa trabalhar e arrumar a casa nova.
Noëlie apenas sorriu e deitou a cabecinha no peito do pai, terminando de sujar-se com o sorvete. O homem riu do jeitinho da criança, já notando-a bem cansada pelo dia de passeio cultural. Embora observasse a filha com atenção e carinho, sua cabeça ainda estava longe; no interior do museu, lembrando-o de como não havia mudado em nada, como suas feições continuavam perfeitas, como seus cabelos, mesmo que mais curtos, continuavam com a aparência de maciez; seu corpo jazia escultural e perfeito para ele; e a saudade… Ah, a saudade, ela continuava ali, no canto mais obscuro de seu peito, trancada a sete chaves em seu subconsciente, onde fingir que ela não existia era mais fácil do que lidar com sua presença no mundo.
não podia deixar de se questionar sobre qual era a probabilidade de aquilo acontecer logo em seu primeiro dia de volta à cidade. Pensou que jamais veria por acaso nas ruas; ela era uma mulher conhecida, famosa, ele via a quantidade de pessoas indo aos lançamentos de seus livros, sabia que a mulher era próxima de um dos maiores nomes da Noruega atual e estava prestes a lançar uma parceria com Jo Nesbo* em uma antologia com contos inéditos de ambos e alguns outros autores recém lançados. Não que ele ficasse pesquisando sobre , claro que não; mas ele era artista também, então acabava sabendo sobre outros artistas quando recebia um pedido ou outro.
era um ótimo pintor e escultor, teve sua arte apreciada por todo o continente europeu e, nos últimos cinco anos, suas esculturas já estavam atravessando os oceanos três vezes mais do que no início, logo que se mudou para a Itália. Recriou alguns quadros e estátuas antigos, dando um toque original e inovador, o que acabou por chamar a atenção de muitos olheiros e museus contemporâneos. Mas, como nunca havia perdido sua essência de iniciante e artista sonhador, ainda aceitava pedidos pequenos de pinturas comuns ou retratos por preços mais acessíveis ou até mesmo de forma gratuita, como costumava fazer nos cursos que ministrava mundo afora. Em alguma das aulas, uma aluna norueguesa o procurou e disse que ele e eram sua maior inspiração para a arte. Ela era uma escritora e pintora brilhante, possuindo um estilo mais gótico e profundo que logo atraiu a atenção de . Em uma das conversas, acabou descobrindo muito mais sobre a nova e, quando uma amizade já estava firmada com a aluna tão exemplar e querida, decidiu contar o que havia acontecido entre eles. Norah, a aluna, riu e comentou sobre a coincidência, além de finalizar sua sentença dizendo que não sabia disfarçar o que sentia e todo seu sentimento acerca de ainda era visível em seus olhos. Ele não negou.
— Estou dizendo, tenho certeza de que era ele — foi o que disse enquanto fitava a amiga, Leah, à sua frente.
— Tudo bem, mas acha que ele não reconheceu você? — Leah perguntou. — Quero dizer, você é super famosa e tá sempre aparecendo por aí, principalmente depois dos direitos de Corações de Gelo terem sido vendidos. Seu livro está indo para os cinemas, não é possível que ele, que te conhece a vida inteira, não tenha reconhecido.
— Ele reconheceu — suspirou. — É claro que ele reconheceu, Leah, mas não é como se ele fosse falar comigo ou algo assim. O jeito que terminei com ele…
— Não vai começar a se culpar por esse término de novo, vai?
— Claro que não, sei que fiz a coisa certa. Olha onde chegamos estando separados… Nós jamais teríamos conseguido tanto sucesso estando juntos, nossos trabalhos eram empecilhos para o relacionamento. Mas sei que é impossível eu esquecer o olhar que ele me jogou quando dei o veredicto.
— Vamos sair hoje à noite para você relaxar? — Leah perguntou baixinho e com um sorriso compreensivo no rosto, segurando a mão da amiga. apenas sorriu e assentiu levemente, sentindo-se viajar para longe.
Não era segredo para ninguém que o término com havia mexido com de forma indescritível. Era uma vida inteira de companheirismo, amizade e brincadeiras; perder isso foi o que mais lhe doeu. Antes de começarem a namorar, já sabia que era apaixonada pelo melhor amigo. Mas, como todo clichê do tipo, ela sentia medo de estragar a amizade contando-o sobre seus sentimentos avassaladores. Entretanto, fora surpreendida após uma noite de bebedeiras em que simplesmente abrira o jogo e lhe contara tudo o que carregava no peito há tantos anos. Estavam na faculdade, na casa dos vinte anos e moravam juntos em um apartamento pequeno e caro no centro de Oslo, que pagavam com o suor dos trabalhos de meio período em um restaurante e as vendas de suas artes sob encomenda. Naquela madrugada, acabaram juntos no chão da sala completamente nus. Na manhã seguinte, a vergonha os tomava por inteiros, ainda assim, tomou a frente do assunto e contou, sobriamente, tudo o que sentia. sentiu-se incapaz de recusar tantos sentimentos bonitos do pintor — aceitou-o de braços abertos e permitiu-se ser feliz ao lado da pessoa que mais confiava no mundo.
Os anos se passaram e, com eles, chegaram à exaustão de um relacionamento duradouro e a convivência tornou-se insuportável. Os corações estavam partidos, ambos estavam cansados e a vida de artistas iniciantes no mercado e com diplomas nas mãos estava destruindo-os aos poucos. O término, ao ver de , era inevitável; , porém, não pensava dessa forma, para ele tudo seria capaz de ser ajustado quando estivessem menos exaustos. O problema é que não tinham previsão de quando tudo voltaria ao normal e quando a exaustão mental passaria; não estava disposta a esperar, já que seu trabalho dependia de uma saúde mental ao menos mediana para que não afetasse tanto a criatividade e o profissionalismo. Deixar para trás, ou ao menos o relacionamento desgastado que tinham, lhe pareceu a melhor opção. Não se arrependia, claro que não, sua carreira e seu bem estar sempre viriam em primeiro lugar, e não importava se isso soaria egoísta — já tinha tido uma vida baseada em um falso altruísmo por tempo demais. Mas, no silêncio da noite, enquanto narrava seus protagonistas cheio de vida, sentia falta de ao seu lado lhe dando ideias e criando moldes daquelas pessoas que existiam somente em sua imaginação.
Vê-lo naquela tarde amena a fez pensar sobre muitas coisas. Aparentemente, tinha uma criança que só poderia ser sua filha — ele era filho único, logo, não tinha sobrinhos e tampouco contato com os primos que passou a vida inteira brigando; ela tinha certeza que isso jamais mudaria, tinha um orgulho quase impenetrável. Ele parecia mais maduro, com resquícios de barba no rosto anguloso — ele tinha pouquíssimos pelos até os vinte e tantos —, os cabelos estavam mais curtos, quase raspados, e os olhos pareciam mais frios.
Os olhos de sempre foram o ponto fraco de . A forma que eles se expressavam era sua fonte de inspiração para seus personagens que não falavam muito, mas, demonstravam tudo o que sentiam através de olhares e ações meticulosamente pensadas. Após o término, o único olhar que era capaz de lembrar claramente das sensações que assolaram seu corpo era o de mágoa e tristeza. As orbes transbordando lágrimas, a vermelhidão ao redor, as pupilas dilatadas e o rancor que crescia aos poucos na íris brilhante; era isso o que se lembrava, e ter aquele olhar voltado para si outra vez, depois de longos dez anos, mexeu com seus pensamentos e seu coração parecia ainda mais apertado.
Não se arrependia, mas negar que sentia falta de tudo sobre seria uma grande mentira. Sentia falta do amigo, dos abraços, do sexo cheio de conexão, dos olhares bonitos e da boca gostosa sobre a sua; mas aquilo já não fazia mais parte de sua vida, de seu cotidiano; era apenas uma vaga lembrança que seu cérebro fazia questão de esconder nos confins de sua mente até que ela acreditasse que havia se esquecido. Porém, vê-lo trouxe tudo à tona, como se nunca tivesse escondido tais sentimentos. E não pôde deixar de reparar: a garotinha em seu colo tinha seu sorriso.
estava concentrado finalizando um quadro importante. Era uma pintura simples, porém, rica em detalhes para algum senador da Europa, que ele sequer lembrava o nome. Normalmente, quando aceitava trabalhos de pessoas ricas e importantes dessa forma, ele preferia manter distância de toda a burocracia. Deixava que os funcionários de sua empresa recebessem os pedidos e distribuíssem entre os pintores disponíveis; os mais importantes e mais caros ficavam para ele, ele sabia, já que era o fundador da galeria. Mas, ainda assim, preferia não saber quem eram os compradores, não importava nem mudaria nada em sua arte; e as chances de desistir de algum trabalho por questões políticas e ideológicas eram muito grandes caso soubesse para quem era cada encomenda. No momento sensível em que vivia, logo após a perda de sua esposa, não estava podendo dar-se ao luxo de recusar trabalhos por essas questões. Noëlie era sua prioridade e mesmo que tivesse uma boa poupança e um nome muito conhecido no ramo, ainda precisava de mais; os gastos com a garotinha tendiam a crescer já que ela corria risco, mesmo que pequeno, de ter algum tipo de câncer no futuro como a mãe — e avó, e a bisavó. A prioridade era a sua pequena, e não suas questões políticas.
O quadro à sua frente era rico em cores fortes e vibrantes, com esculturas pintadas de branco e contrastando com o vermelho predominante. A pedido do cliente, era para representar toda sua trajetória e sua família que sempre esteve ao seu lado, ele havia enviado uma foto de base e pegou-se rindo da referência; era uma imagem muito fofa para o propósito da pintura. Ainda assim, executou a arte muito bem e o projeto fora aprovado após o envio do rascunho.
estava finalizando os últimos traços do dia quando a porta de seu novo ateliê fora aberta com velocidade. Não demorou muito para os gritos animados de Noëlie ecoarem pelo local acompanhados do riso histérico de Norah, sua atual melhor (e única) amiga.
— Estou trabalhando — murmurou concentrado no pincel fino que segurava, fazendo um contorno complicado que ele sabia que daria merda se alguma das duas o atrapalhasse. Ao olhar de soslaio em direção à filha, vendo-a correr em sua direção, seu sangue gelou. Naquele momento, viu todo seu esforço de semanas ser jogado para o ar, mas, para seu alívio, Norah fora mais rápida e pegou a pequena Noëlie no colo, erguendo-a o mais alto que pôde.
suspirou e finalizou o contorno mais rápido do que gostaria, largando os produtos na mesinha que ficava ao seu lado.
— O que está fazendo aqui e por que trouxe a pestinha da minha filha? — perguntou para Norah, seguindo em direção às duas, dando um beijo no rosto da amiga e na filha em seguida.
— Estava com saudades, professor — Norah brincou e permitiu que Noëlie fosse para o colo do pai, sem importar-se com a sujeira colorida que o tomava das mãos até o peito coberto por um avental azul. — E tenho uma proposta de trabalho para te fazer.
— Não tenho mais espaço para trabalhos novos, Norah — rebateu, seguindo em direção ao sofá pequeno que ficava no ateliê. Sentou-se e apontou para o lugar vago ao seu lado. — Por que não tenta pegar um dos recém contratados? Robert trouxe artistas ótimos da América do Sul semana passada.
— É que eu preciso de um escultor de confiança para recriar algumas obras para um filme novo — Norah explicou. — Eu não sou boa esculpindo, nem com todo o conhecimento que me passou. Já aceitei ser uma das roteiristas e farei algumas das pinturas, mas as esculturas… Bem, só consigo pensar em você.
— Você precisa aprender a aceitar seus próprios trabalhos sem contar comigo — deu um peteleco na testa da mais nova, fazendo-a revirar os olhos. — E que filme é esse? Escolheu sua área literária de vez, é?
— Não, eu ainda não decidi nada. Só descobri que escrever roteiros é genial e me expresso tão bem por eles quanto por pinturas e histórias em livros — Norah deu de ombros e esparramou-se no sofá, quase empurrando e Noëlie para fora dele. — O filme é a adaptação de um livro. Ainda estamos em pré-produção. Não temos nem o elenco completo ainda, mas queremos adiantar ao máximo a equipe interna. Artistas, roteiristas, diretores, produtores, essas coisas.
— Deixe-me adivinhar: Corações de Gelo? — chutou e suspirou, sabendo que em algum momento Norah tentaria fazê-lo cometer um deslize em relação à .
— Não vou mentir para você, sim, é para o Corações de Gelo. Mas, qual o problema? Vocês são dois profissionais incríveis e, se você tivesse lido o livro, saberia que metade das obras citadas e criadas partiram de inspiração sobre você. Não precisa de muito para saber que a tem uma musa inspiradora e esta musa é você.
— Não vai dar certo, Norah, não nos falamos há dez anos e você quer que eu trabalhe internamente no filme dela?
— Não é o filme dela, é um filme adaptando o livro dela.
— Se ela estiver como roteirista, é o filme dela, sim. Assim como o livro. Assim como tudo dentro do set.
— Para de ser chato, pega o trabalho. O pagamento é bom, a produção está grande e com um orçamento incrível.
— Isso não vai dar certo, mas… O que preciso fazer?
Norah sorriu e se aproximou mais de , acariciando os cabelos ruivos de Noëlie com carinho.
— Vou confirmar para o meu chefe que consegui o escultor perfeito e nós vamos marcar um encontro. Qual o melhor dia para você?
— A partir da próxima segunda, essa semana ainda estou atolado de trabalho. Até o sábado.
— Então fica marcado para a próxima segunda. Dá tempo de você se preparar mentalmente para encontrar a novamente. Ela estará na reunião, certamente.
— É claro — suspirou e fitou a amiga. — Eu já encontrei a . Levei a Noëlie no museu marítimo e ela estava lá.
— E vocês se falaram?
— Não.
Norah revirou os olhos e suspirou. Sentia muito pelo amigo, sabia de toda a mágoa que ele carregava e o medo que sentia de encarar e finalmente pôr tudo a pratos limpos. Ainda assim, não conseguia entender totalmente o porquê deles fugirem tanto um do outro. No meio em que viviam, por ambos serem artistas e já terem estado nas mesmas cidades tantas e tantas vezes a trabalho, era natural que se encontrassem e tivessem de manter algum tipo de diálogo quando necessário. No entanto, sempre que sabia que estaria por perto, ele se escondia. Até mesmo em suas próprias exposições, em suas próprias galerias ao redor da Europa; simplesmente se escondia e fingia que não estaria no local se a autora confirmasse presença.
— Eu sei o que você está pensando e tudo que acha sobre isso — tomou a fala novamente, deixando que Noëlie saísse de seu colo e fosse brincar no canto do ateliê com as telas descartadas. — É que… Não sei, Norah. Ainda me abala. Não importa se já se passaram dez anos. Nunca consegui seguir totalmente em frente, nem mesmo quando conheci Gaïa. Não vou mentir, fui apaixonado pela minha esposa durante um tempo. Mas, você sabe, nosso casamento estava fadado ao fracasso antes de descobrirmos sobre a doença dela. Só continuamos juntos porque ela precisava de um amigo e só tinha a mim; porque, no fundo, sempre fomos apenas amigos. Não vai ser fácil encarar e trabalhar com e para ela, caso eu seja contratado. Mas, ainda assim, quero tentar. O problema é que sinto medo.
— Está sofrendo por antecipação. Você, mais do que ninguém, sabe como a é profissionalmente e como pessoa — Norah sorriu docemente. — Ela não vai recusar te ter na equipe só por ser você. Seu trabalho é impecável e ela reconhece tanto isso que usa nas obras dela. Apenas relaxe, pense no convite e veja se está confortável com isso. Se não estiver, eu vou entender e encontrar outro profissional. apenas assentiu, não sabia o que responder. Ao notar o silêncio repentino do amigo, Norah acariciou seu ombro largo rapidamente e se levantou, indo em direção à Noëlie para iniciarem uma brincadeira repleta de tintas e telas descartadas. Ao contrário das outras vezes, não se incomodou com a bagunça em seu ateliê — estava ocupado demais perdido nos próprios devaneios e criando cenários irreais para quando encontrasse outra vez; e todos eles terminavam com a conversa que ele não sabia se queria ter depois de dez anos.
olhou-se no espelho uma última vez. A calça de boca larga e cintura alta caía bem em seu corpo curvilíneo e combinava com a blusa de seda e alças finas, além, é claro, da bota de salto grosso nos pés. Estava até que apresentável para uma reunião com a produção e artistas da adaptação cinematográfica de Corações de Gelo, seu primeiro livro lançado há pouco menos de dez anos atrás. Ver suas palavras e seus personagens tomarem vida nas telinhas era um sonho que sempre lhe pareceu muito distante, mesmo que fosse considerada uma escritora promissora e a sucessora oficial de Jo Nesbo, autor que tanto admirava e tornou-se um grande amigo no universo literário. Agora, tendo algo tão grande e tão próximo, ficava zonza, ansiosa e sem saber o que pensar e esperar. Ela seria uma das roteiristas principais e, ainda assim, sentia-se incapaz de reproduzir tão bem algo que ela mesma já havia escrito. Talvez fosse apenas sua insegurança falando, já que não tinha o hábito de escrever roteiros, mas, era inevitável os pensamentos maldosos que tinha sobre si mesma. No mais, a ansiedade para conhecer toda a equipe com quem trabalharia o resto do ano a deixava ansiosa e animada, bastava lembrar-se de todos que teria consigo naquele meio tempo que esquecia todas as preocupações e focava no aprendizado, na chance enorme que estava tendo profissionalmente.
Outra preocupação que lhe tirara o sono na semana anterior, era o fato de que havia sido o escultor convidado por uma das roteiristas para recriar as obras citadas no livro. sabia que ele faria um trabalho impecável e era a pessoa mais indicada para aquela vaga; ela mesma havia assumido que o conhecia e tinham tido um relacionamento de anos, sendo assim a inspiração para muitos detalhes artísticos no thriller de estreia. Ela só esperava que ele aceitasse o convite, não queria deixar sua obra prima nas mãos de outras pessoas, já que a equipe era composta majoritariamente por pessoas de sua confiança e seu círculo social. Assim como Leah, sua melhor amiga, provavelmente seria a protagonista do filme.
saiu de casa após alguns minutos e dirigiu com cautela até o prédio empresarial onde aconteceria a reunião. Ao chegar no local, encontrou Norah no meio do caminho; a mais nova sorria claramente feliz.
— Ainda não acredito que vou poder finalmente trabalhar com todos os meus ídolos do cenário artístico — ela disse ao encarar assim que entraram no elevador. — Tenho certeza que vai ser tudo incrível, estou ansiosa demais.
— Nada disso seria possível sem você, garota — respondeu com um sorriso sincero, sentindo o peito aquecer. — Sabe dizer se já está todo mundo aí?
— Sim, estão na sala de reuniões — Norah deu de ombros. — Será que um dia nós não seremos as últimas a chegar nos compromissos?
gargalhou e revirou os olhos; era verdade, por mais que não estivessem atrasadas, eram sempre as últimas a chegarem nos locais e davam a desculpa de morarem longe do centro urbano e sempre tão caótico de Oslo.
— Definitivamente, não — finalmente respondeu, saindo do elevador. — É nossa função nessa equipe, Norah. Seremos sempre as últimas.
Norah riu e deu de ombros, guiando a autora pelos corredores extensos da empresa e que ela sempre se perdia. escondeu sua ansiedade enquanto conversava e ria das besteiras da roteirista e pintora, achando graça em absolutamente tudo o que ela dizia. Era como se Norah soubesse de sua tensão mascarada de felicidade e estivesse fazendo de tudo para que ela relaxasse e ficasse em paz; no fim das contas, encontrar não poderia ser tão ruim assim — dez anos haviam se passado e eles precisavam ser maduros o suficiente para lidarem com as diferenças.
Assim que abriram a porta da sala, sentiu-se gelar. No entanto, guardou as emoções apenas para si. Ver entre os outros profissionais foi diferente de vê-lo no museu semanas antes. Ele estava menos abatido — parecia pronto para encontrá-la —, o conjunto de roupa social de cor escura parecia ter sido feito para ele sob medida, os cabelos curtos bem penteados, o rosto limpo e liso, sem qualquer sombra de barba; era um combo perfeito para um reencontro. sentiu-se levitar com a beleza alheia — jamais se acostumaria com o quão bem havia crescido.
— Bom dia — murmurou ao ser recepcionada por todos, com exceção de que manteve-se relativamente afastado e com as mãos nos bolsos. — , seja bem vindo de volta à Oslo — completou educadamente. Ele, porém, limitou-se a apenas assentir e sorrir de maneira suave, tentando parecer tão educado quanto a escritora.
Em questão de segundos, estavam todos sentados ao redor da mesa grande e redonda que havia no meio da sala, já começando a discutir os pontos necessários. Analisaram os currículos dos outros profissionais e, em seguida, o portfólio de — não que fosse necessário, já que ele era conhecido por todos que estavam ali e nem precisava daquela pseudo entrevista de fato. Ele já era basicamente um artista contratado.
— Bom, eu acho que não é segredo para ninguém que e eu nos conhecemos — começou com a voz falhando levemente. Ajustou-se na cadeira confortável e voltou a falar: — Não vejo ninguém além dele recriando as artes que precisaremos para o filme. Fui a algumas exposições dele em Londres e em Roma, saí delas mais apaixonada do que antes pelo trabalho dele. Por mim, já temos um escultor.
Após ouvir palavras tão sinceras e maduras vindo de , finalmente conseguiu sorrir sinceramente naquela manhã. Norah, à sua frente, lhe mandou uma piscadela alegre. Pelos minutos seguintes, não ouviu muito do que foi falado. Apenas agradeceu os elogios em relação às suas pinturas e esculturas e assinou o contrato que firmava aquela parceira com duração de um ano. Dizer que não estava ansioso e apavorado com a dimensão daquilo, e como seu nome seria recolocado nos tablóides, seria uma grande mentira; ainda assim, estava feliz. Não somente pelo dinheiro que receberia, mas também por ter a chance de trabalhar ao lado de Norah novamente, mesmo que eles estivessem em áreas distintas. Além de tudo, ainda tinha para lidar e interagir mais do que imaginou, já que a mulher ficaria responsável por analisar a veracidade das esculturas e como elas deveriam ser feitas de fato. Não sabia como agir ao lado da mulher, claro que não; mas, bem, era seu trabalho, como Norah costumava dizer — e ele precisava deixar de ser covarde pelo menos uma vez na vida.
— — chamou em um tom de voz moderado assim que todos foram saindo da sala de reuniões. — Podemos conversar?
— Claro — respondeu com um sorriso nervoso nos lábios. — Quer tomar um café? Tem uma lanchonete muito boa aqui do lado.
— Ótimo, quero sim.
E o silêncio simplesmente reinou. ajudou a recolher alguns papéis espalhados pela mesa e abriu a porta da sala para ela em seguida. Ainda em silêncio, seguiram em direção ao elevador. Ainda que tivessem liberdade para demonstrarem intimidade ou qualquer traço de conforto entre si, estavam tensos e sem saber para que caminho aquela conversa levaria. Estavam claramente nervosos e com medo de qualquer que fosse o resultado daquele diálogo. Era a primeira vez que se falavam em dez anos, já que havia sumido do mapa após o término — e não havia feito questão de procurá-lo depois do descaso com o qual fora tratada durante a briga; mesmo que o entendesse, jamais daria o braço a torcer sabendo que estava certa em agir como agiu.
— E então, como vai a vida de autora mundialmente reconhecida? — perguntou em um tom baixo, assim que se sentaram em uma mesa afastada com os pedidos em mãos.
— Tão agitada quanto a de um pintor e escultor famoso, creio eu — rebateu com um sorriso doce. — É tudo uma loucura, para falar a verdade. Você entende, não entende?
soltou uma risada fraca e bebericou seu café. Entendia completamente a loucura de ter o rosto estampando revistas, blogs famosos na internet, pessoas em seu encalço, o interesse midiático, a invasão de privacidade… Havia passado por aquilo no início de seu estouro, mas resolvera privar-se ainda mais após descobrir o câncer de Gaïa.
— É bem complicado — comentou. — Para mim foi bem difícil acostumar com isso, até hoje eu acho estranho ser reconhecido na rua ou ter alguma foto minha e das galerias nas revistas famosas. Mas, acho que para minha esposa foi mais difícil do que para mim.
— Ah, esposa? — o encarou surpresa, mesmo que o tivesse visto com uma criança dias antes, era surpreendente. — Imagino o quão bizarro deve ter sido. Ela não é do ramo?
engoliu a seco e suspirou, dando-se conta que citara Gaïa sem nem perceber.
— Bem — pigarreou. — Gaïa era professora de música; ensinava canto, piano, violino e violoncelo. Ela diminuiu as aulas quando tivemos Noëlie e…
— Noëlie creio que seja a garotinha que vi com você no museu — o cortou. — Por que sua esposa não estava junto? Desculpe, estou fazendo muitas perguntas?
riu do jeito da escritora e deu de ombros.
— Eu voltei para Oslo porque perdi Gaïa há alguns meses — explicou, por fim, sentindo um aperto no coração. — Câncer.
— Eu sinto muito — disse rapidamente, sentindo-se uma estúpida por ter enchido o homem de perguntas idiotas. Sem ao menos notar, levou sua mão à de e apertou-a com força, mostrando-se realmente tocada e triste com o que ouvia.
— Eu também sinto — sorriu tristemente. — Fomos amigos acima de qualquer coisa, ela foi uma mulher e uma mãe incrível. Mas, não quero falar sobre isso. Conte-me sobre você, senti sua falta durante esses anos. Sei que pode não parecer, já que sempre fugi dos nossos encontros aleatórios, assim como fugi quando ouvi dizer que você estaria em minhas exposições… Eu não estava pronto, mas acho que agora amadureci de verdade. Já que vamos passar o próximo ano inteiro juntos, eu gostaria de saber mais sobre você e voltar a ter sua amizade, se possível.
— Já se passaram dez anos, , não teria motivo para não aceitar sua amizade de volta — sorriu, sem soltar a mão alheia. — Eu gostaria de me desculpar por ter sido tão dura com você, mas era difícil para mim lidar com todos os nossos empecilhos e nossas vontades profissionais tão diferentes. Sei que fui um pouco egoísta, mas não me arrependo. Acho que acabamos sendo cruéis um com o outro quando só deveríamos ter colocado as cartas na mesa e dito a verdade, que era o momento de focarmos em nossas profissões e não no nosso relacionamento.
— Concordo — bebericou seu café novamente, sentindo um leve desconforto no peito como sempre acontecia quando falava sobre e o relacionamento que tiveram. — Não tínhamos maturidade nenhuma e estávamos ocupados em tentar nos transformar em protagonistas de um conto de fadas. Melhores amigos que descobrem o amor mútuo, namoram e passam o resto da vida juntos… Nem sempre isso dá certo. Na maioria dos casos, na verdade, porque ninguém nunca consegue ser maduro o suficiente para lidar com os problemas corriqueiros que os relacionamentos trazem… Também peço desculpas pelo meu comportamento.
— Uau! — o fitou. — Você finalmente ficou mais sensível e entendeu todos os pontos que eu trazia para as conversas.
— É, o casamento faz isso com a gente — comentou e riu, finalmente sentindo-se mais à vontade. — Ter de lidar com crianças também. Mas, e você, teve filhos, se casou? Sua família, seus pais…?
— Estão todos bem — sorriu. — Não me casei, descobri que relacionamentos não são para mim por enquanto, logo, também não tive filhos. Não sei se saberei ser mãe, então sempre evitei ao máximo e os últimos relacionamentos que tive isso foi motivo para brigas terríveis. Alguns homens ainda não entendem que mulheres nem sempre querem ser mães. Eu só quero ser escritora, por ora, e cuidar dos meus quatro gatos.
— Entendo — riu. — Noëlie veio de surpresa para nós, foi uma bênção, claro, mas… Céus, como ela chorava, você não faz ideia. Os primeiros meses foram insuportáveis, e Gaïa era como você; não queria ser mãe. Aprendeu na marra, junto comigo; que nunca tive jeito com crianças. Mas, hoje, não vejo minha vida sem aquela pestinha.
sorriu e continuou hipnotizada por e seu jeito de falar da filha. Ele sempre fora um homem bom, não muito sensível ou bom entendedor das coisas; mas, ainda assim, bom, responsável e talentoso, sempre muito amoroso e cuidadoso com todos ao seu redor. Portanto, vê-lo sendo um pai tão carinhoso e dedicado fazia com que o coração de se aquecesse em uma felicidade genuína. Embora sempre imaginasse que ela seria a mãe dos filhos dele, não estava sendo diferente ou menos animador vê-lo com uma família que ela não fazia parte. No fundo, ainda permanecia o mesmo. Agora, porém, mais maduro, no auge dos 37 anos e um artista incrível e responsável — sempre lia sobre ele e sabia suas posições políticas, a forma que distribuía suas ideologias independentemente de onde estivesse, as bolsas de estudos que oferecia para o departamento artístico de várias universidades, além de seu próprio curso que era ministrado ao redor do mundo inteiro; ele fazia questão de levar para as regiões mais pobres dos países gratuitamente, para que todos tivessem o alcance a uma aula de artes de qualidade e pudessem desenvolver seus próprios métodos; havia se tornado um homem e tanto, como ela já esperava.
O sentado à sua frente a enchia de orgulho, a ponto de deixar seus olhos marejados. Sabia que tinha uma carreira tão incrível quanto a dele e que fazia as mesmas coisas voltadas para a literatura — e eles fizeram um acordo, uma promessa, quando mais novos de que fariam aquilo tudo caso obtivessem sucesso em suas carreiras —, mas, mesmo assim, sentia-se emocionada ao ver outros artistas fazendo como ela e se importando de verdade com a geração que estava chegando.
e não souberam dizer por quanto tempo ficaram naquele café conversando, bebericando cafés e comendo bolos coloridos, porém, quando olharam para o lado de fora, o sol já começava a baixar. Isso fez com que se lembrassem que ainda eram adultos com prazos para cumprir e responsabilidades para lidar; e aquele dia de conversas seria pago com trabalhos até altas horas da madrugada para que não atrapalhasse o desenvolvimento de seus projetos.
— Foi bom te reencontrar — disse ao saírem da cafeteria. — Eu pensei que você ainda me odiasse, já que naquele dia do museu você simplesmente foi embora e fingiu que não me reconheceu.
— Eu entrei em pânico, confesso — riu envergonhado. — Era meu primeiro dia aqui em Oslo, eu não podia imaginar que esbarraria com você. Mas, sim, foi incrível te reencontrar. Eu senti muito sua falta, .
Sem que esperasse, um arrepio cruzou todo o corpo de , fazendo-a estremecer levemente. Algo no olhar de estava diferente e ela não sabia dizer exatamente o quê. E isso, por alguns instantes, a deixou enlouquecida; o olhar que sempre lhe fora explícito, expressivo e falante, agora estava enigmático, profundo e com tantas coisas escondidas que ela ficou confusa e curiosa; mesmo sabendo que jamais descobriria o que ele queria lhe dizer.
Alguns segundos de silêncio depois, se aproximou e a puxou com cuidado e carinho para seu peito, abraçando-a com força. suspirou e enroscou os braços no tronco dele, puxando-o para si e, finalmente, matando a saudade que sentia do cheiro doce que ele exalava. Seu corpo continuava rígido e forte, maior que o dela e tão aconchegante quanto quando eram adolescentes. sentiu-se em casa depois de longos dez anos deitando-se em corpos diferentes em busca das sensações que sabia que somente aquele era capaz de lhe proporcionar. Apenas completava seu corpo, apenas seus braços a acalentava tão bem, apenas seu cheiro a deixava zonza, apenas ele lhe tirava o ar de maneira deliciosa e apenas ele tinha poder sobre seu corpo e seus pensamentos.
Ao constatar o quão mexida ainda ficava por causa daquele homem, afastou-o devagar, tentando manter um sorriso na boca pintada de vermelho.
— Eu também senti sua falta, — foi o que conseguiu dizer antes de acariciar o rosto alheio e se afastar rapidamente, dando-o às costas e indo em direção ao prédio em que estavam mais cedo.
suspirou e permaneceu ali, de pé na calçada. Havia sentido a intensidade percorrer todo seu corpo, assim como tinha sentido e entendido o que os olhos de quiseram lhe dizer.
Ela ainda o amava, mas jamais diria aquilo com palavras e em voz alta. Ele também.
Durante a semana seguinte, se preocupou em ler o livro de (que ele não teve coragem de ler na época do lançamento) e fazer as anotações necessárias para que as artes saíssem perfeitas nos moldes em miniatura que ele já deveria começar a fazer. O problema estava no fato dele não conseguir se controlar enquanto lia a obra. O livro por inteiro era perfeito, cada palavra, cada capítulo, a estrutura; era um thriller tão agoniante e assustador que ele se sentia maravilhado a cada página virada, quase se esquecendo de prestar atenção nas descrições das esculturas e dos quadros narrados. era perfeita, ele concluía a cada palavra que lia.
Quando mais uma semana correu rapidamente, já tinha dez miniaturas de argila prontas, duas de cada uma das cinco esculturas citadas no livro, com modelos diferentes e pintadas da forma que eram narradas, todas borradas com sangue das vítimas do assassino em série que a protagonista tentava colocar atrás das grades. Eram artes um tanto quanto góticas, medonhas e muito sofisticadas, todas desenhadas e moldadas com muito esmero e dedicação, deixando claro o porquê de ser tão requisitado em seu ramo de atuação.
As miniaturas estavam colocadas dentro de uma caixa grande de vidro, extremamente protegidas, e a carregava como se fosse sua própria filha entre seus braços. Ele andava rápido pelos corredores do prédio onde havia ido para a primeira reunião, passando por cada um deles sem prestar atenção de fato — conhecendo-se como conhecia, sabia que poderia acabar sendo muitíssimo desastrado e derrubar tudo o que carregava. Um suspiro de alívio lhe escapou assim que chegou na sala de reuniões e Norah já estava ali, próxima à porta, e abriu para ele, dando o espaço necessário para caminhar até à mesa sem esbarrar em nada nem ninguém.
— Bom dia — disse com um sorriso animado na boca. — Trouxe o molde das esculturas para vocês verem e aprovarem. Tendo o sim de todos, começo amanhã mesmo a criar cada uma delas em tamanho real.
foi a primeira a levantar de sua cadeira sorrindo e alternando o olhar entre as miniaturas dispostas à mesa e , não sabendo o que admirar primeiro — estava tão bonito naquele dia, sequer parecia que o vira todos os dias anteriores desde que ele assinara o contrato com sua produção.
— Isso está perfeito! — finalmente exclamou, abrindo a caixa com cuidado e pegando uma das miniaturas com cautela. — Eu não tenho nem palavras para descrever tamanha perfeição… — virou-se para , ainda surpresa. — Você é simplesmente genial!
— Obrigado — abriu um sorriso grande e sincero. — Agora preciso que vocês escolham o modelo — aproximou-se de por trás, olhando a caixa sobre seu ombro. — Eu fiz duas miniaturas de cada escultura citada no livro.
focou o olhar nas outras obras dentro da caixa, tentando ignorar o fato de que estava muito perto. Seu coração palpitava fortemente e ela jurava que era por causa de todo seu trabalho estar tomando forma mesmo que ainda estivessem no primeiro mês, quando, na verdade, ela sabia que o motivo de estar tão abalada e mais sensível em relação a tudo era a volta repentina de e o convívio diário que estavam tendo.
Os efeitos que aquele homem causava nela beiravam ao insano. Sentia-se uma adolescente de 17 anos novamente, tendo as mãos suadas, o coração acelerado e a boca seca apenas por vê-lo; a ansiedade por algo que sabia que não aconteceria lhe tomava dos pés à cabeça, o arrepio a cada toque simples ou um beijo no rosto, um abraço apertado era o suficiente para trazê-la ainda mais lembranças; havia voltado e trazido consigo todas as lembranças que ela tanto lutara para esconder e guardar nos confins de sua consciência. Dez anos não foram o suficiente para fazê-la esquecê-lo totalmente — na verdade, nem algo perto de esquecê-lo.
Após ela e o resto da equipe terem escolhido as miniaturas, seguiu para a cafeteria próxima ao prédio a fim de encontrar Leah, sua amiga e protagonista, oficialmente. Ela já estava lá quando cruzou a porta um tanto apressada e de cabelos esvoaçantes. Leah estranhou a afobação da amiga, mas apenas a aguardou silenciosamente, analisando-a de cima abaixo.
— Preciso desabafar — finalmente disse, sentando-se ao lado da amiga para que pudesse falar baixinho. — Estou enlouquecendo, Leah.
— Enlouquecendo, por quê? — Leah a encarou. — Não me diga que trabalhar com o está trazendo de volta todos os sentimentos que você tanto lutou para enterrar? — riu.
, porém, manteve-se em silêncio. O sorriso no rosto de Leah sumiu imediatamente.
— Espera, é isso?
— Eu não sei, amiga — suspirou. — Passamos os últimos dias nos encontrando, conversando sobre arte, o filme, tudo; não sei o que pode estar acontecendo. Mas, desde a primeira vez que ele me abraçou, uma saudade absurda me consumiu. Não sei se isso é carência, falta de sexo ou o sentimento simplesmente voltando. Eu já o tinha esquecido, Leah.
— Amiga, você sabe que isso não é verdade — Leah soou cautelosa. — Você sofreu muito com o término, assim como ele. Mas, principalmente, por não ter tido a conversa que vocês deveriam ter tido. Quem sabe agora não é a hora? Vocês estão maduros, trabalham juntos e conseguem dialogar como antigamente. Pode ser que já esteja no momento de vocês recordarem tudo o que aconteceu para que possam consertar as coisas e enxergar se esse turbilhão de sensações é por conta de sentimentos que nunca foram embora ou apenas um jogo do seu cérebro querendo te fazer criar uma esperança já que não sai com ninguém há um certo tempo.
— Não sei se consigo...
— Claro que consegue. Você consegue tudo.
— Ele acabou de perder a esposa para o câncer, Leah. Sinto-me péssima nutrindo sentimentos e cogitando contá-lo isso.
— E vai fazer o que, esconder por mais dez anos? — Leah bombardeou, por fim. — Não é hora de pestanejar, . Vocês são adultos, logo estarão na cada dos 40 anos. Além do mais, já se encontram todos os dias, trabalham juntos, trocam mensagens e eu vi vocês dois jantando enquanto você escrevia sua parte do roteiro. Como nos velhos tempos. Senti como se estivesse vendo uma fita rebobinando, e eu nem acompanhei de fato o início do relacionamento de vocês por não sermos tão próximas ainda.
— Sabe o que eu preciso? — fitou a amiga com convicção. — Uma bela noite regada a álcool e sexo sem compromisso. É isso que eu preciso.
Leah riu alto da amiga e assentiu negativamente.
— Você precisa conversar com o e pôr as cartas na mesa de forma verdadeira; é isso que você precisa.
sabia que a amiga estava certa, mas, naquele momento, preferia ignorar isso. Sendo assim, deu de ombros e seguiu para sua casa a fim de se arrumar e ir até uma boate qualquer. Ela teria, sim, sua noite regada a álcool e sexo sem compromisso. Os seus sentimentos acerca de ela lidaria depois.
dirigia tranquilamente pelas ruas, com uma música pop ecoando em um volume baixo no rádio do carro, distraindo-a a ponto de sequer prestar atenção em seu caminho. Sua intenção naquela noite era encontrar um bar ou boate aberto, com qualidade, e encontrar uma pessoa solteira que pudesse satisfazê-la durante horas a fio.
No entanto, surpreendeu-se ao perceber que, automaticamente, estava voltando para a área de complexos residenciais da cidade. Não sabia onde estava com a cabeça, mas, não parou de dirigir até encontrar a fachada bonita e bem decorada da casa da última pessoa que ela deveria ver naquela noite: .
estacionou o carro e apoiou a testa no volante, perguntando-se o que diabos estava acontecendo para estar ali de maneira tão automática, sendo que deveria fingir que não tinha visto o endereço do artista em sua ficha na produtora. Era mesmo uma idiota, uma impulsiva e desesperada. Porém, no fundo, sabia que tudo o que precisava era do olhar, agora, enigmático daquele maldito homem; talvez precisasse de seu abraço e de seu ombro amigo outra vez, uma conversa aleatória e uma dose de uísque irlandês para acalmar os ânimos — ela tinha certeza que ainda bebia uísque como se fosse água.
Sem pensar mais, desceu do carro e ativou o alarme. Atravessou a rua com pressa, com medo de desistir daquela ideia maluca e tocou a campainha como quem não queria nada. Foi capaz de ouvir alguns burburinhos ecoando pela casa e sentiu-se uma intrusa chegando de surpresa no início da noite e atrapalhando o que quer que estivesse fazendo. E se ele estivesse trabalhando, cuidando da filha, vendo um filme ou simplesmente dormindo? Em um piscar de olhos, sentiu-se apavorada com a possibilidade de ser vista ali e alguém pensasse que ela o estava perseguindo, mesmo que não conhecessem sua história com ele. Sentiu medo de encarar novamente, desta vez fora da produtora. Sentiu medo de parecer vulnerável demais. Sentiu medo de ser sincera. Sentiu medo de estar ali.
Por isso, deu as costas para a porta e seguiu em direção ao portão, mas sentiu-se gelar e travar os passos ao ouvir o som da enorme porta se abrindo. Tentou não olhar para trás, mas sentia a necessidade de ver novamente — e ela sabia que era ele quem abrira a porta, porque, assim que o fizera, ele deixou que o nome alheio escapasse por seus lábios.
— ?
A mulher virou-se devagar, tentando disfarçar o nervosismo. A imagem que encontrou, porém, foi o suficiente para fazer com que o ar fugisse de seus pulmões. tinha os cabelos curtos levemente bagunçados, vestia uma camiseta branca e suja de tintas das mais diversas cores, uma calça de moletom e tinha os pés descalços. Nas mãos de dedos longos tinha um pano úmido que provavelmente usava para limpá-las no meio tempo que correu do ateliê até à porta.
— Aconteceu alguma coisa? — voltou a falar, notando a amiga desnorteada e em silêncio.
engoliu a seco e suspirou disfarçadamente, voltando alguns passos em direção à casa; agora tão acuada e insegura que sequer conseguia encará-lo nos olhos por mais que dois segundos.
— Não aconteceu nada — respondeu, baixo. — Desculpe vir sem avisar. Eu só… Não sei, precisava conversar um pouco. Sua casa nem era o meu destino final, para falar a verdade, mas não achei nenhum bar ou boate que fosse capaz de me distrair hoje.
— E decidiu pesquisar meu endereço na produtora e me visitar? — provocou, fazendo-a sentir o corpo inteiro borbulhar na mais pura vergonha.
— Eu vi seu endereço sem querer e tenho uma boa memória, na verdade — disfarçou em tom de brincadeira, tentando sorrir.
— Vem, entra — ele pediu solícito, deixando um espaço para que passasse. — Não vou te fazer perder a viagem, só peço um pouquinho de silêncio porque a Noë acabou de dormir e infelizmente ela tem o sono leve nos primeiros minutos.
— Tudo bem — deu alguns passos e parou em seguida. — Eu não quero te atrapalhar, posso ir embora sem problemas. Não faço ideia do porquê ter vindo a essa hora, desculpe.
— Ei, está tudo bem, de verdade, não vai me atrapalhar. Eu estava no ateliê ensinando a Noë fazer esculturas de argila e barro, mas ela pegou no sono no meio da arte — ele riu. — Então tive que cancelar os planos de pintura depois da montagem para dá-la um banho rápido e colocá-la na cama. Você precisa ver, ela ainda tem argila nos cabelos porque se recusou ficar acordada para banhar.
riu e sentiu-se mais aliviada ao ouvir aquilo, não queria mesmo atrapalhar nada e sabia que vivia ocupado, porque tinha também os trabalhos de sua própria empresa para dar conta.
— Eu adoraria conhecê-la — comentou sem pensar, mordendo o lábio inferior em seguida; não sabia se já estavam naquele nível de reconciliação de amizade.
— Ah, acredito que irá conhecê-la em breve. Em alguns dias a babá dela precisa de folga, então preciso levá-la ao trabalho — explicou e apontou o sofá confortável para sentar. — Não repara a bagunça... Mesmo a casa sendo grande, Noë consegue deixá-la toda revirada. Uísque?
— Eu imagino — a mulher riu novamente. — Ela parece ser uma pestinha, pelo que você fala. E sim, aceito o uísque, preciso de algo alcoólico ou vou surtar.
— É, ela é uma pestinha, sim — sorriu. — Escocês ou irlandês?
— Você sabe a resposta, .
Com o lábio inferior entre os dentes para esconder outro sorriso fácil, serviu duas doses de uísque irlandês. E ali, sim, a amizade fora oficialmente retomada.
Algumas horas mais tarde, com uma garrafa inteira de uísque irlandês acabada, decidiu que seria uma boa ideia levar para conhecer seu ateliê e os moldes e rascunhos que tinha por lá. A mulher, empolgada e já levemente alegre por conta do álcool na corrente sanguínea, aceitou na hora e, com os olhos brilhando, saltitou até o local. Ao chegarem lá, acendeu as luzes e fechou a porta para que as vozes não reverberassem pelo corredor.
ficou alguns segundos parada, apenas olhando ao redor. O ateliê nada mais era que um cômodo largo e bem arejado, repleto de cavaletes, quadros, vasos e materiais para criação de esculturas e tintas para as pinturas. Haviam vários quadros cobertos por lençóis brancos e de diversos tamanho, que atiçou a curiosidade da escritora.
— Eu posso ver alguns? — perguntou, apontando para os quadros.
— Fique à vontade — respondeu, dando de ombros.
Como se farejasse coisas voltadas para si e suas obras, descobriu um dos maiores quadros do local — o qual havia finalizado naquele dia, lembrando-o que aquela pintura, especificamente, ela não deveria ver. Quando a pintura moderna ficou à mostra, sentiu-se travar. , porém, abriu a boca em surpresa, sentindo-se hipnotizada pela mistura de cores e as linhas que compunham um par de corpos perfeitamente.
— Eu… — tentou falar.
— Shh — o cortou, olhando-o de relance e logo voltando para o quadro diante de seus olhos.
Bem ali, em sua frente, estava retratado uma das cenas mais intensas que tivera o prazer de escrever em seu terceiro livro. Era um momento íntimo e compartilhado apenas entre os protagonistas da história, uma cena em que todos, inclusive ela, haviam se sentido grandes enxeridos ao lê-la tamanha era a intimidade e complexidade da mesma. Diante de seus olhos, com uma vitalidade jamais vista em qualquer outro tipo de arte, seus protagonistas dividiam um momento de prazer sexual; era a cena do ápice, do orgasmo, o auge do prazer humano. Os corpos estavam nitidamente entrelaçados, sob um lençol azul fino, claramente de seda; os cabelos desgrenhados, as mãos enroladas umas nas outras e os lábios tão juntos que sequer era capaz de distingui-los. Porém, os personagens jaziam sem olhos e sem narizes, pôde notar, quase como se fosse para aguçar a imaginação e criatividade do telespectador. Mesmo assim, a imagem passava emoção, vontade, intimidade e, sobretudo, tesão — ainda que não fosse uma pintura explícita.
— É uma das minhas cenas favoritas de tudo que você já escreveu — murmurou. — Ficou tudo tão vivo em minha mente que não consegui me segurar, eu precisei pintar. A intenção era manter este quadro guardado até o seu aniversário. Queria lhe dar de presente.
— Está perfeito — finalmente falou, ainda estupefata. — Você é incrível, , estou sem palavras. Você retratou exatamente como eu imaginei a cena; é como se a pintura estivesse se movendo e mostrando para mim a forma que eles fizeram amor naquele momento. Porque não foi um sexo qualquer; longe disso; eles estavam conectados, concentrados e tão, tão excitados um com o outro… Não sei, me senti uma intrusa ao narrar aquele momento, mas, ainda assim, foi a melhor cena que já escrevi na vida. E, agora, você a trouxe viva para mim — engoliu a seco, olhando para . — É como se eu pudesse sentir tudo aquilo de novo. É como se fosse eu nesse quadro.
engoliu a seco e passou a língua por entre os lábios, sentindo-se repentinamente tenso e com o coração tão acelerado que, por um segundo, pensou estar passando mal — mas, na verdade, era apenas o efeito , lembrando-o que ela ainda tinha controle sobre ele e todos os seus sentimentos mais profundos.
— É você — praticamente sussurrou a confissão. — Não consegui imaginar a personagem de outra forma a não ser como você. Por isso eles não têm rostos completos, somente traços das bocas juntas. Os cabelos, os ombros, o corpo curvilíneo… Tudo neste quadro é sobre você.
se virou para e o fitou intensamente, sentindo-se queimar ao conseguir enxergar vida em seus olhos e entender o que eles queriam dizer. O momento exalava desejo, saudade e vontade; e não podiam culpar o álcool já que não estavam embriagados a tal ponto. Ainda assim, preocupou-se em perguntar:
— Isso é você ou o álcool falando?
— O álcool jamais seria capaz de falar sobre você em meu lugar, .
Sem pensar muito nas consequências que toda aquela situação traria no dia seguinte, deu um único passo em direção a , colando seus troncos e ainda o encarando no fundo dos olhos, sentindo o corpo ferver e arrepiar ao sentir o cheiro e o contato alheio. Os rostos estavam próximos demais, levando-os de volta há dez anos atrás, quando tiveram o último momento daquele tipo; a tensão predominante, o quase beijo, os cheiros se misturando, o corpo grande e forte de com respingos de tinta, o rosto anguloso rígido e o maxilar trincado, tentando resistir à beleza e sensualidade de , que possuía as bochechas rosadas e os lábios entreabertos, convidando-o para mais perto.
— Nós precisamos conversar — sussurrou ao sentir a mão fria da mulher subir de seu abdômen até sua nuca, arrepiando-o por inteiro e deixando um traço de brasa em seu corpo.
— Nós vamos conversar — soprou já contra seus lábios, fechando os olhos. — Amanhã.
Após o sussurro com a última palavra, não houve mais espaço entre eles; nem suas bocas, nem seus corpos. Colaram-se como se quisessem reproduzir a pintura que jazia descoberta ao lado de ambos; colaram-se com sede e saudade; colaram-se em um beijo que trazia consigo uma enxurrada de lembranças e vontades reprimidas há dez anos. De repente, enquanto as línguas brincavam uma com a outra, sentiram-se emocionados; os olhos, fortemente fechados, encheram-se de lágrimas; os corações, grudados, aceleraram e aqueceram ao mesmo tempo; as bocas, juntas, engoliram os soluços que deixaram escapar em uníssono, numa sincronia que, mesmo adormecida, sabiam que ainda existia. O gosto salgado não demorou a fazer-se presente no beijo intenso e saudoso, mostrando-os que, além de estarem juntos como um só, compartilhavam de sensações e sentimentos sempre tão escondidos. As lágrimas rolaram juntas pelos rostos quentes, misturando-se e mostrando-os que eles também eram arte; também eram pinturas e escritos; também haviam sido esculpidos um pelo outro — um para o outro —; também formavam uma galeria perfeita e repleta de emoção e saudade — com uma pitada de tesão, que jazia escondida no fundo das entranhas, mas que eles certamente fariam questão de deixar dominar seus corpos.
Por fim, sobre o chão frio do ateliê, entre pinturas e esculturas, conectaram-se outra vez.
acordou e levou alguns segundos para abrir os olhos e se situar no ambiente em que se encontrava. A bagunça ao redor era notável, mas, ainda assim, sentia-se mais do que confortável enrolada em um cobertor grosso e com o corpo sobre o sofá macio embora pequeno. Percebeu, ao acordar totalmente, que encontrava-se sozinha no sofá — e nem haveria espaço o suficiente para outra pessoa ali.
O ateliê de era aconchegante, apesar de tudo. Lembrar-se que ainda estava ali e havia passado a noite com o ex-namorado após tanto tempo fez com que seu coração palpitasse e um sorriso arteiro brotasse em seus lábios inchados. Ao erguer o rosto para enxergar melhor o que acontecia ao redor, encontrou sentado em frente à um quadro de médio porte, pintando com a mão direita enquanto, com o braço esquerdo, segurava a pequena Noëlie — sempre balançando-a levemente para que continuasse sonolenta. O olhar concentrado e a expressão de paz em seu rosto fez com que se encantasse um pouco mais por ele, fazendo-a questionar-se por que diabos eram tão imaturos quando estavam juntos. Por um segundo, sentiu saudades daquela época; por outro, entretanto, sentiu-se triste. O sentimento foi inevitável sabendo que poderia ter seguido a vida inteira ao lado de como sempre planejavam; poderia ter sido ela a gerar a pequena Noëlie e, céus, o pensamento fez com que seus olhos lacrimejassem automaticamente.
costumava dizer que não sentia vontade de ser mãe, tampouco de entrar em um casamento àquela altura, tendo em vista que sua vida profissional estava no auge e jamais teria tempo para uma família e lidar com todas as complicações que exigia. Mas, ao ver aquilo; a interação, a dedicação e o cuidado de , queria que fosse por causa dela. Um pensamento egoísta, mesquinho e nojento, ela sabia e assumia, mas, ainda assim, era impossível não pensar daquela forma sabendo que o término partira dela.
Um suspiro lhe escapou, fazendo com que voltasse a si. Não era certo pensar assim; os dez anos que haviam se passado foram necessários para o crescimento de ambos. se tornara um homem incrível, assim como ela se tornara uma mulher incrível. Estavam mais maduros, mais inteligentes, mais propensos a fazerem algo dar certo; ela não precisava comparar a vida que tiveram ao longo do tempo. Cada um seguiu o rumo que quis, conseguiu obter sucesso nas áreas de trabalho e adquiriram autoconhecimento. Aquilo bastava. havia formado uma família linda, Noëlie parecia ser uma garotinha deveras especial e conseguia enxergar isso; a inveja que sentira nos primeiros segundos que a vira no colo do pai fora embora tão rápido quanto viera.
Em um piscar de olhos, estava parado na frente de .
— Com o que está se torturando agora? — perguntou baixinho, ajustando a filha em seu ombro e mostrando que ainda a conhecia tão bem, mesmo que ela não falasse nada. — Espero que não seja se comparando com o que eu acho que está.
sorriu fracamente e sentou-se mantendo o cobertor enrolado no corpo, temendo estar nua — não estava, porém.
— Meus pensamentos seguem caminhos perigosos às vezes — respondeu, abrindo um espaço para que colocasse Noëlie deitada. — Mas, está tudo sob controle, min kjære².
— Senti sua falta, — murmurou, agachando-se entre as pernas da mulher, ainda observando a filha de soslaio; ela ressonava baixinho, cochilando como fazia todas as manhãs que despertava mais cedo que o habitual.
— Eu também senti sua falta — respondeu com a voz forte, mostrando-se claramente emocionada com o que estava acontecendo; mesmo que não fosse nada demais, apenas uma frase simples após uma noite maravilhosa; algo típico de . Ainda assim, seu coração estava acelerado perante o olhar do homem à sua frente; suas mãos suavam como se ela ainda tivesse 20 anos e as pernas jaziam bambas como se fosse uma das primeiras vezes que acordava ouvindo declarações do pintor.
— O que acha de tirar o dia de folga e ficar aqui com a gente? Eu quero que conheça a Noëlie.
sorriu com a proposta e aproximou-se de , puxando-o pela nuca e juntando seus lábios em um selar simples, porém, significativo.
— Eu acho que é uma ideia incrível.
— Ótimo, porque eu já tomei a liberdade de falar com Norah que você está com uma ressaca daquelas e não conseguirá ir até à empresa hoje — riu baixinho contra os lábios alheio. — É a desculpa perfeita. Hoje não tenho nada novo para apresentar em relação ao seu filme, então…
— Você não existe — riu também. — Não vou atrapalhar muito? Sei que você sempre tem coisas pendentes para finalizar.
— Bem, o que eu precisava ajustar hoje já terminei — deu de ombros. — Só preciso pedir para que alguém da galeria venha buscar daqui a algumas horas.
— Por acaso é o quadro que você estava pintando com Noëlie no colo?
— Sim — riu outra vez. — Vida de pai solteiro, . Nem sempre consigo pintar com as duas mãos e na minha santa paz. Às vezes, é preciso pintar segurando Noëlie; outras, é preciso esculpir com os gritos estridentes dela como trilha sonora; outras, porém, basta uma música calma no fundo e uma cadeirinha para ela ao meu lado. Tive que aprender a me adaptar depois que perdemos Gaïa.
— Posso pedir para que me conte sua história com Gaïa? — perguntou baixinho, soando curiosa.
suspirou audivelmente e sentou-se no chão de uma vez, alternando o olhar observador entre e a filha, que jazia quietinha.
— Gaïa também era norueguesa e a responsável pela minha adaptação na Itália; ela já estava lá há alguns anos — começou. — Cheguei em Roma sem saber muita coisa, é claro, e ela me ajudou. Ela lecionava violino na escola de artes que fui contratado, ficamos amigos, nos conhecemos melhor, descobri que ela era uma artista incrível, saímos algumas vezes e, depois de um tempo de namoro, nos casamos. Foi simples, fácil e tranquilo — sorriu. — Ela foi uma amiga e esposa incrível, além da melhor mãe que Noëlie poderia ter tido. Mas o câncer a levou, como já esperávamos. Gosto de acreditar que ela foi em paz, apesar de toda a dor que sentiu ao longo do último ano.
— Você era mesmo apaixonado por ela — falou com um sorriso bonito no rosto. — Fico feliz por ter encontrado uma parceira tão apaixonada pela arte quanto você.
— Fui apaixonado por Gaïa por muito tempo — encarou o teto, tentando segurar as lágrimas. — Mas, no último ano de casamento, éramos apenas amigos. Queríamos o divórcio, seria algo amigável e compartilharíamos a guarda de Noëlie. Então descobrimos a doença. Não tive coragem de fazê-la passar por um processo de divórcio em meio à uma situação tão delicada, e eu queria acompanhá-la de perto. Entramos em um acordo e continuamos amigos até o último segundo de vida que ela teve. Vocês se dariam muito bem — secou as lágrimas, voltando a fitar . — E você teria alguém para criar suas trilhas sonoras repletas de suspense e instrumentos clássicos.
— Teria sido uma honra — falou verdadeiramente emocionada, levando uma das mãos ao rosto de , limpando os resquícios de choro que ainda estavam em suas bochechas. — Eu lamento muito pela perda de vocês, kjære. Sequer consigo imaginar o quanto ainda dói e o quanto ainda deve estar sendo difícil para a pequena Noëlie. Espero que saiba que estou aqui para qualquer coisa; não importa quantos anos ficamos brigados ou não nos falamos, eu ainda o considero um amigo e ofereço meu ombro sempre que precisar chorar; assim como deixo meu colo livre para Noëlie caso ela precise.
— Muito obrigado, min søte³ — sorriu ainda mais emocionado, aproximando-se mais de a fim de outro beijo. Contudo, antes que conseguisse atingir seu objetivo, Noëlie soltou um murmúrio e abriu os olhos de supetão, atraindo a atenção do pai. — Bom dia, datter⁴. Acordou de verdade agora?
— Bom dia, pappa, acordei — Noëlie respondeu baixinho e em um tom rouco, ao mesmo tempo em que coçava os olhinhos.
Após alguns segundos fazendo manha e aproveitando o carinho que o pai lhe fazia, Noëlie finalmente percebeu a presença de e a encarou curiosa. Em um primeiro momento, a garotinha ficou em silêncio apenas observando a mais velha. Depois, alternou o olhar para o pai em busca de respostas. riu da ação da filha, notando-a de bochechas rosadas e um tanto quanto acuada, sabendo que tinham visita — Noëlie sempre ficava tímida na hora de conhecer pessoas novas.
— Noë, essa é a — a apresentou, puxando a garotinha para seus braços novamente. — Ela é uma velha amiga do papai.
— Oi — Noëlie murmurou ainda sem jeito, tentando esconder-se mais nos braços do pai.
— Não precisa ficar com vergonha, meu amor — beijou a testa da menina, afastando-a de si um pouco para que ela pudesse ver . — A cresceu com o papai e, além do mais, ela é artista também, sabia? Ela cria histórias, faz livros e agora está prestes a lançar um filme. Não é legal? O papai está pintando para ela também.
Ao compreender as palavras do pai, Noëlie ergueu o olhar curioso para , finalmente fitando-a nos olhos. sorriu de imediato e esticou a mão para a garotinha que, mesmo hesitante, envolveu-a com a sua própria.
— É muito bom finalmente te conhecer, Noëlie — murmurou. — Você gosta de livros?
— Sim — Noë respondeu baixinho, aceitando o carinho que fazia em sua mãozinha. — Mamma⁵ disse que eu vou ser uma escritora famosa.
— A tia é uma escritora muuuuito famosa — sussurrou para a filha, fazendo-a ficar mais curiosa. — A Noë é ótima criando histórias — falou mais alto, para que o escutasse. — Ela tem vários livrinhos cheios de desenhos que formam histórias incríveis, não é, meu amor?
A garotinha apenas balançou a cabeça afirmativamente, sentindo-se tímida outra vez; ficava assim sempre que o pai citava suas artimanhas.
— Que legal, Noë. Posso te chamar assim? — murmurou, ainda sorrindo. Noëlie confirmou outra vez, aceitando ser chamada pelo apelido. — Você pode me mostrar suas histórias?
— Eu não sei escrever direito — Noë disse um tanto quanto enrolado; ainda ficava confusa na hora de criar frases completas. — Pappa escreve pra mim.
— O que acha de fazermos o dia da arte hoje, meu amor? — perguntou para a filha. — Podemos terminar as esculturas de ontem, criar um livro novo e ensinar a tia a pintar.
Noëlie rapidamente ficou de pé sobre as coxas do pai, começando a pular alegremente sem ao menos se importar se estava machucando o mais velho — e ele também não se importava, já que sorria abertamente para a empolgação da filha.
— Quero! — a menininha gritou e, num rompante, saiu de cima do pai e correu pelo ateliê.
— Mas, primeiro, você vai tomar café da manhã e escovar esses dentes, mocinha — disse alto, levantando-se para ir atrás da filha. — E vai tomar banho também, hoje você não escapa, Noëlie!
E ao observar a cena que desenrolava à sua frente, sentiu-se derreter em doçura.
As horas passaram voando. Quando o início da noite chegou, , e Noëlie estavam pintados com tintas coloridas e argila dos pés à cabeça. Ao observar o caos que se encontravam, sentiu-se cansar apenas por imaginar o quão difícil seria limpar Noëlie completamente — já que a garotinha ficava cansada nos dias de artes e insistia em não tomar banho por pura preguiça; e, depois, também não aceitava que o pai a esfregasse com força para retirar os resquícios de tinta seca de sua pele sensível.
— O pappa ‘tá toooodo sujinho — Noë murmurou no ouvido de como se fosse um segredo, fazendo a mulher rir.
— Nós também estamos, Noë — respondeu. — O que acha de tomar um banho quentinho agora?
— ‘Tô com soninho, tia — Noë fez drama.
— Mas, mesmo assim, tem que tomar banho — insistiu. — Se deixar para depois, a tinta não vai mais sair e você vai ser ‘cor de arco-íris’ para sempre.
— Eu tomo agora, mas só se você me der — Noë disse e se aproximou mais de , tentando sussurrar em seu ouvido: — O pappa é muito bruto!
apenas observava a interação de longe, fingindo não ouvir a conversa entre as duas enquanto arrumava o ateliê. Segurou uma risada ao ouvir o que a filha dizia sobre ele, achando bonitinho que ela havia aprendido a usar a palavra “bruto” e a colocava em todas as suas frases — “pappa, o unicórnio ‘tá sendo bruto!”, era a mais utilizada entre todas, já que ela alegava que seu bichinho de pelúcia em formato de unicórnio era sempre muito bruto ao cair em seu rostinho toda vez que ela o jogava para o alto. Não se importou quando segurou a menina firmemente entre os braços e levou-a em direção a um dos banheiros da casa; ao contrário, sentiu-se aliviado que a filha tinha alguém que lhe desse carinho e cuidado além dele e de Norah — e Gaïa também, é claro; que fazia tanta falta para a garotinha, a ponto de fazê-la acordar durante a noite aos prantos dizendo que sentia saudades da mãe.
Ouvindo os gritos e risadas de Noëlie e , seguiu para o banheiro de seu quarto a fim de limpar-se também. Levou mais tempo do que imaginou para tirar todos os respingos de tinta do próprio corpo, descobrindo que Noë o havia sujado até em lugares que estavam totalmente cobertos. A cada ponto colorido que encontrava no corpo, sentia-se alegre e sorria feito um bobo; a sujeira nada mais era que marcas simples de momentos incríveis ao lado de sua filha, o ser que ele mais amava no mundo. Toda vez que ia para o banho após um “dia de artes” com a pequena Noë, sentia-se aliviado por ver que conseguia distrair a filha o suficiente para que ela não sofresse tanto por falta da mãe. Ele jamais iria suprir o que Gaïa era na vida da filha; era impossível, mas, ainda assim, era bom ver que ele ainda era o suficiente para a garotinha e que iriam passar por aquilo juntos. E agora, aparentemente, tinham .
, céus. nunca imaginou que a filha se daria bem tão rápido com ; ambas tinham muito em comum, e raramente duas pessoas tão parecidas se davam tão bem. Ambas eram teimosas, com alma artística e escandalosas; chegou a pensar que enlouqueceria entre os gritos durante o dia inteiro, mas, pelo contrário; finalizou o dia ainda mais encantado pelas duas — e a paixão que ele tentava esconder que sentia por estava tão acesa em seu interior que ele se sentiu ferver a cada segundo que passou ao seu lado.
Quando menos esperou, distraído e já vestido com um conjunto de moletom confortável, surgiu na porta de seu quarto. Ela usava um vestido longo e florido, com um decote que ia quase até sua barriga. Os pés estavam descalços e ainda possuíam resquícios de tinta rosa, assim como as mãos delicadas e vermelhas — de tanto serem esfregadas, deduziu.
— Eu não trouxe roupas extras e Noëlie me deu esse vestido — explicou um tanto hesitante ao perceber o olhar centrado de em sua direção. — Ela disse que era da mãe e que pegou sem você saber. Espero que não se importe, eu só precisava de algo para vestir e vir até aqui, acho que ficaremos mais confortáveis se eu vestir algo seu, certo? — mordeu o lábio inferior, claramente nervosa; sentia-se tão incomodada por estar vestindo algo de Gaïa àquela altura do campeonato; não queria trazer lembranças para ninguém, tampouco ser comparada à ela ou desrespeitá-la de alguma forma. — Sua filha é bem insistente, acredito que já saiba disso.
— Ela é, sim — riu e se aproximou de , fechando de vez a porta atrás dela com uma das mãos. — E não tem problema algum você usar o vestido, . Eu sempre soube que Noëlie o guardava; minha filha também não é nada discreta nem sabe esconder as coisas. Está tudo bem; Gaïa também não se importaria em te emprestar. Não fique pensando muito sobre isso.
— Eu acho melhor tirar…
— Sinceramente? Eu também acho — sorriu e se aproximou mais, puxando-a pela cintura levemente. — Você nua é mais bonita.
arfou levemente, surpresa e corada pela declaração explícita repentina. No fundo, o corpo estremeceu e as mãos foram automaticamente em direção aos ombros largos de , apertando os dedos ali. Encarou-o nos olhos, mesmo envergonhada, e permitiu que ele passeasse os lábios gelados contra os seus; indo em direção à uma de suas bochechas em seguida, mordendo-a levemente.
— Eu adoraria tê-la da mesma forma de ontem… — voltou a falar. — Desta vez, em minha cama.
— Não sei se é uma boa ideia, Noëlie ainda está acordada — murmurou a contragosto; queria tanto ceder àquela vontade quase insana de sentir aquele homem outra vez, mas, ainda assim, sentia-se um tanto insegura em relação à Noëlie.
— Ela não virá até aqui agora, está muito cansada para isso — rebateu. — Tire o vestido, min søte.
Como se estivesse enfeitiçada, encantada e completamente hipnotizada por , permitiu que as alças do vestido fossem puxadas até deslizarem por seus braços longos. O tecido grande e delicado não demorou chegar aos seus pés, indo de encontro ao chão.
Pela segunda vez em dez anos, encontrou-se nua perante aos olhos famintos e flamejantes de — e não se arrependeu, pelo contrário: excitou-se ainda mais.
Alguns dias se passaram desde o impulso de de dirigir até à casa de . Era um domingo pacífico e estavam todos reunidos no quintal da casa dos pais de — todos, mesmo; os artistas envolvidos na direção, fotografia e pinturas da adaptação cinematográfica de Corações de Gelo; Norah, , a pequena Noë; todos. Não havia nada de especial a ser comemorado, apenas decidiram que um almoço entre família e amigos acalmaria os ânimos tão aflorados e tensos. O resto da semana havia sido difícil, pesado e árduo; muito trabalho, pouco tempo e cobranças em excesso por parte da produtora e do público.
precisava finalizar um novo livro em até um mês, e tinha certeza absoluta de que precisaria de, no mínimo, mais dois. Isso fazia com que a mulher entrasse em pane, sem saber por onde começar a quebrar seu bloqueio; porque, como se não bastasse, tinha o lançamento da antologia para organizar, sendo ela a autora do conto principal da obra ao lado de Jo Nesbo, o roteiro do filme que ainda não estava 100% pronto e do jeito que queriam e, com isso tudo, precisava equilibrar suas reuniões diárias, os problemas pessoais e suas próprias questões — não conseguia parar de pensar na bagunça que estava vivendo com desde sua última ação impensada.
, porém, não era um problema; que tinha mania de fazer com que ele se tornasse o pior de todos os conflitos de sua vida. A verdade é que ela nunca soube bem como lidar com tudo o que o homem a causava; os sentimentos, a necessidade, a saudade, os toques arrepiantes, os pensamentos vidrados de forma automática, a obsessão pelo sorriso grande e bonito, as lembranças, as memórias recentes e a pequena Noëlie e seu sorriso tão parecido com o do pai. Na cabeça de , aquilo não deveria estar acontecendo, não deveria pensar tanto naquele homem e em tudo o que ele a fazia sentir, mas era inevitável; a dominava até quando sequer pensava em ter de fazê-lo — ele jamais tivera a intenção de tê-la e de fazê-la sentir tanto.
Dentre todas as mudanças que aconteceram ao longo daqueles dez anos, uma coisa continuava igual: não sabia lidar com sentimentos. Era como se a mulher ficasse sufocada com tudo o que sentia a ponto de levá-la à loucura. Os dias se passavam e ela continuava remoendo tudo aquilo, guardando para si, tentando matar cada sentimento novo que nascia em seu interior, principalmente quando isso era causado por — ela não conseguia aceitar o fato de ainda amá-lo. Chegar à conclusão de que o amor ainda existia e não era apenas de amizade, como pensou que fosse por muito tempo — quando a mágoa passou e deu lugar à compreensão em relação a tudo o que havia acontecido —, sentiu-se à beira do abismo. A conversa com Leah não havia servido de muita ajuda; a melhor amiga apenas disse que ela deveria simplesmente… Contar. Céus, como ela poderia apenas dizer para tudo o que sentia por ele depois de dez anos batendo o pé e insistindo no fato de que não sentia nada além de um carinho muito forte?
— E o fato de você estar mais na cama dele do que na sua? — Leah questionou em um tom baixo, horas antes. — Ele sabe o que você sente, , só está esperando você dar o primeiro passo. Caso contrário, ele também não dirá nada até que se torne insuportável. Nós duas sabemos que tem mais controle sobre os próprios pensamentos e sentimentos do que você. Sua intensidade não permite que raciocine quando está descobrindo coisas novas dentro de si mesma.
Aquilo fora o suficiente para sentir-se enlouquecer completamente. Ao mesmo tempo em que negava tudo o que acontecia dentro de si, também se perguntava se valia a pena passar por tudo aquilo novamente, como se fosse uma adolescente idiota e que não sabia nada da vida; questionava-se, ainda, onde diabos estava aquela mulher forte e decidida que se tornara e que tivera coragem de bater na porta de numa noite aleatória.
— Ei, estou falando com você — chamou outra vez, com a voz suave e tocando uma mecha do cabelo de , enrolando-a entre os dedos longos. — Está tão distraída hoje. Aconteceu alguma coisa?
— Desculpe — sorriu fracamente, observando as coisas ao seu redor. — Não aconteceu nada, está tudo bem. Só me distraí. O que você estava falando mesmo?
— Não era nada demais… Só perguntei como que aconteceu esse seu encontro e amizade duradoura com o Jo Nesbo.
— Ah — riu. — Foi bem aleatório para falar a verdade… Meu agente acabou enviando um exemplar do Corações de Gelo para ele, e ele se dispôs a fazer um comentário. Este comentário entrou na capa da segunda edição do livro, e ele me chamou para tomarmos um café em um dia terrivelmente frio. Encontramo-nos, tomamos café e comemos torta de ameixa. No fim do dia, tínhamos um segundo encontro marcado e um plot inteiro decidido para uma obra futura, que aconteceu dois anos depois sob um pseudônimo que até hoje ninguém sabe que somos nós dois.
— Incrível — a encarou com encanto. — Conhecer nossos ídolos é sempre uma experiência incrível. Eu posso saber qual o pseudônimo de vocês?
— Ninguém, além dos nossos agentes, óbvio, sabe que somos nós — a escritora o fitou com escárnio, e completou: — E continuará assim, . Ninguém fora os profissionais envolvidos sabem ou virão a saber qual o nosso pseudônimo. Criamos justamente para que ninguém julgasse a obra como um sucesso ou não sucesso por ter nossos nomes verdadeiros; é uma obra um tanto polêmica, também, uma tragédia cheia de suspenses e questões profundas demais. Não condiz com o que escrevemos sob nossos próprios nomes.
— Eu amo tragédias e conheço ambas as escritas, tenho certeza de que encontrarei esse livro e saberei que foi escrito por vocês.
— Recomendo que comece suas pesquisas imediatamente, pois existem muitos livros trágicos e sob pseudônimos noruegueses.
— Isso já é uma dica e tanto, bobinha!
E foi ao ouvir isso, olhando nos olhos e sentindo o coração aquecer ao vê-lo sorrir tão alegre, que percebeu que não precisava esconder tudo o que sentia. O homem à sua frente ainda era o seu melhor amigo de anos, seu ex-namorado, o artista perfeito e um pai maduro e honesto; ainda era pura e simplesmente — também conhecido como o amor de sua vida.
— Eu ainda te amo — soltou, repentinamente, fazendo com que travasse em seu lugar, estupefato. — Passei todos esses dias tentando fingir para mim mesma que tudo o que sinto não passava de carência e saudade de você, uma possível amizade colorida que saberíamos lidar muito melhor do que quando éramos adolescentes. Mas, agora, consigo ver claramente que ainda é amor, nunca deixou de ser mesmo que dez longos anos tenham se passado. Só consigo pensar nesse tempo de distanciamento como um período de aprendizado e amadurecimento. Sei que tivemos outras pessoas ao longo dessa década, mas, me diz, , alguém te fez sentir o que eu fiz? Porque, devo confessar, ninguém me fez sentir metade do que você me faz sentir até hoje.
Antes que pudesse responder, a pequena e saltitante Noëlie surgiu em seu colo, puxando-o pelas roupas com alegria e empolgação. sorriu com a cena diante de seus olhos e sentiu o corpo arrepiar assim que uma brisa fresca cortou o ambiente, lembrando-a de que ela ainda era capaz de sentir, que as pessoas ainda valiam a pena e que nada, nada no mundo era melhor do que o passar do tempo.
Naquele momento, era capaz de perceber coisas que jamais teria percebido com 20 ou 25 anos; as coisas estavam diferentes, porém, mais claras em sua mente, mais fáceis e melhores; ela sabia que poderia lidar com quaisquer situações ou sentimentos que surgissem ao longo de seu caminho, e falar, colocar para fora e deixar que as pessoas ao seu redor tivessem conhecimento disso junto consigo era importante e maravilhoso; não precisava mais ficar só, tampouco sentir como se estivesse. Não estava, jamais estaria e sentia orgulho do que havia se tornado após aqueles dez anos. Assim como sentia orgulho de e o homem que ele havia se transformado; sentia orgulho de vê-lo ser um pai incrível e estava pronta para continuar ao seu lado se assim ele quisesse.
— Não — finalmente respondeu, com a voz rouca e a garganta seca. — Ninguém nunca me fez sentir tanto como você faz, . Eu esperei dez anos para ouvir isso vindo de você, e sequer sei como me sentir em relação a isso agora. Céus, eu ainda te amo muito — a última frase saiu quase como um sussurro abafado pelas palavras aleatórias de Noëlie, mas fora capaz de ouvir.
No segundo seguinte, a escritora já estava de pé ao lado de e não demorou muito a curvar-se o suficiente para colar suas bocas, sem importar-se com as pessoas ao redor e o burburinho que cessou repentinamente — de certo por estarem presenciando uma cena tão bonita ao mesmo tempo que tão inesperada. Noëlie, ainda entre os braços do pai, olhou para cima e deu de cara com a cena, fazendo uma careta automaticamente — não conseguia entender por que adultos faziam aquilo o tempo todo; não era anti higiênico?
A ação da garotinha arrancou algumas risadas tensas das pessoas ao redor e, só então, afastou os lábios dos de e pôde contemplar a careta confusa da menininha, que alternava o olhar de um para o outro.
— Eca! — Noëlie exclamou e, num passe de mágica, uma onda de gargalhadas explodiu pelo quintal.
Contendo lágrimas de emoção e alívio nos olhos, além de um par de corações acelerados, e sentiram-se completos outra vez.
No fim das contas, tudo o que precisavam era de um pouquinho mais de amor.
*Jo Nesbo: Um escritor norueguês (autor de Baratas, Boneco de Neve, O Fantasma e outras obras);
¹ Pappa: Papai em norueguês;
² Min kjære: ‘Meu querido’ em norueguês;
³ Min søte: ‘Meu doce’ em norueguês;
⁴ Datter: ‘Filha’ em norueguês;
⁵ Mamma: ‘Mamãe’ em norueguês.
Fim.
Nota da autora: Nota da autora: Foi isso, espero que tenham gostado! Esse ficstape foi bem fácil de escrever, o que me surpreendeu bastante porque eu estava bem apreensiva em relação ao plot e como desenvolvê-lo (raramente escrevo romances levinhos e de reconciliação assim hahaha), mas, quando vi, já havia escrito 24 páginas em um dia só! Fiquei tão feliz e com o coração bem quentinho hahahaha enfim, eu espero que vocês tenham se sentido da mesma forma e tenham se apaixonado pela pequena Noëlie assim como eu, além desses protagonistas incrivelmente fofos e intensos também. Beijos, até a próxima! <3
Outras Fanfics:
Gone 2 Long – Bandas/PRETTYMUCH/Shortfic/Finalizada;
Pull me in – Originais/Restritas/Finalizadas;
Pull me in 2 – Fire – Originais/Restritas/Em Andamento;
Sombras do Passado – Originais/Restritas/Andamento.
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Sombras do Passado – Originais/Restritas/Andamento.