Finalizada em: 02/08/2020

Capítulo Único

I wanna know what it'd be like
To find perfection in my pride
To see nothing in the light
Or turn it off
In all my spite
In all my spite
I'll turn it off
(Eu quero saber como teria sido
Encontrar perfeição no meu orgulho
Para não ver nada na luz
Mas desligue
Em todo o meu rancor
Em todo o meu rancor
Eu desligarei).


O som de bombas era ensurdecedor. sentia seu corpo tremer de frio e dor, enquanto seu tronco parecia que rasgaria ao meio a qualquer momento. O sangue jorrava do buraco de tamanho mediano logo abaixo de suas costelas e ele podia sentir a bala zapeando em seu interior. Mais bombas, mais gritos, mais zunidos. Sentiu-se ensurdecer outra vez. O corpo tremeu fortemente. O sangue lhe escorreu pelos lábios grossos. Pôde perceber um dos soldados à sua frente, gritando-lhe coisas que não entendia; a dor o estava cegando também. Sentiu seu rosto ser segurado entre mãos calejadas, grossas e sujas, não se importou. Vomitou mais sangue. A tremedeira lhe tomou mais fortemente, fazendo-o revirar os olhos e tentar puxar o ar enquanto pensava em como superaria aquela situação. Não encontrou resposta. Também não enxergou mais o companheiro que o segurava. Seu corpo ficou dormente repentinamente e seus olhos se fecharam por alguns instantes. Por fim, a inconsciência o engoliu.

despertou de mais um pesadelo sentindo o suor lhe escorrer por todo o corpo esguio. A cicatriz longa e grossa que pegava da lateral de suas costas até o começo do abdômen ardia como nunca, incomodando-o e mostrando-o que ainda estava ali, e jamais sairia de sua pele. Sua respiração jazia ofegante e as mãos trêmulas, como se ainda estivesse no campo de guerra, sendo bombardeado e baleado como um fantoche. A sensação de realidade o engolia com fervor, fazendo-o questionar se aquilo era mesmo um sonho ou não. O peito subia e descia dolorosamente, deixando claro que nem mesmo seu quarto-sala era um lugar seguro para suas crises de ansiedade e as recriações de seu cérebro do dia em que quase morrera ao fazer seu trabalho. A cada dia que passava os pesadelos aumentavam e mostravam para ele que jamais se esqueceria de tudo o que havia acontecido, e a riqueza de detalhes que seu subconsciente reproduzia o fazia perceber que a sensação sempre seria a mesma, como se ainda estivesse entre os escombros sangrando até quase a morte; como se nunca tivesse voltado para casa.
Em momentos como aquele, percebia que nunca superaria seu trauma. Nem com todas as terapias do mundo. Ou remédios. Ou quaisquer outras opções que viesse a ter — existiam coisas que eram insuperáveis e incuráveis no interior humano, aquela situação, o ataque em si, era uma delas; não tinha como passar por cima daquilo. Queria poder se desligar do mundo, de sua própria mente e tudo o que ela lhe causava. Queria poder esquecer. Queria poder seguir em frente. No entanto, tudo o que conseguia fazer era reviver e reviver e reviver o pior momento de toda sua vida. Mesmo que fosse um soldado treinado para não sofrer com aquilo e tivesse um acompanhamento médico: não conseguia. Era como se o acontecimento fizesse parte de si, mas não uma parte qualquer e que poderia ser trocada ou substituída após uma evolução psíquica ou espiritual — era parte de seu corpo, sua mente e suas memórias, era uma parte viva e forte que o engolia todas as noites quando dormia, era uma parte quase física de si; um pedaço grande, forte e carnudo que lhe tomava o corpo, uma cicatriz real demais para que fosse esquecida.
Seu despertador tocou, finalmente lembrando-o que era dia de ir até o consultório do doutor Marcel. Levantou sem vontade, sentindo as pernas bambas e com câimbra. O banho, o café e a saída de casa foram automáticos, e ele só se deu conta quando já estava em frente à secretária educada e bonita que sempre lhe oferecia sorrisos e biscoitos, mesmo sabendo que ele recusaria tudo — embora tentasse retribuir o sorriso; não era um ogro, no fim das contas, mas também não sabia lidar com mulheres, principalmente as que chamavam sua atenção, como .
— O doutor Marcel já o aguarda na sala, Sr. — ela murmurou com a voz sempre melódica, aveludada e encantadora.
— Obrigado, . — respondeu tentando manter-se rígido e não derreter diante tamanha doçura que a secretária exalava.
era um homem estranho. Quer dizer, ele era um soldado. Não sabia lidar com pessoas, sentimentos ou quaisquer outras coisas que envolviam ele e alguém sem um fuzil em mãos. Portanto, ver um sorriso bonito daqueles sempre sendo direcionado à sua pessoa problemática e mentalmente afetada fazia com que algo se revirasse em seu interior e o deixasse zonzo. lhe causava sensações diferentes demais todas as vezes que o olhava e lhe direcionava um tom adocicado na fala. Ele queria poder expressar isso, explicar e perguntar se ela gostaria de jantar, mas nunca sentia que era o momento certo — ou, então, sentia a ansiedade lhe atingir de forma errônea, lembrando-o que era um militar recém-chegado de um confronto no Afeganistão e possuía mais traumas do que poderia contar; uma mulher como ela jamais olharia para um homem como ele, as vozes lhe diziam em sua cabeça, ele simplesmente ouvia e acatava.
Ao adentrar a sala bonita e bem decorada do doutor Marcel, se perguntou se não era o momento de abordar um assunto diferente, algo que não fosse seu trauma, a guerra, a precariedade nos campos de guerra, a fome que passavam e os dias frios. Perguntou-se se não era o momento de falar sobre sua introversão e medo de rejeição. Devagar, poderia vir a falar sobre seu desejo de convidar alguém para sair, mais especificamente: .
Após alguns minutos de conversas, enquanto mostrava-se claramente cansado de falar sobre seu passado conturbado sendo bombardeado, decidiu que mesmo que não fosse a hora certa de mudar de assunto, o faria porque não aguentava mais tudo aquilo. Sua cabeça estava uma bagunça e as vozes misturavam-se o tempo inteiro, mandando-o falar sobre tudo e nada ao mesmo tempo. No fundo, queria melhorar e sabia que seu terapeuta percebia isso, então, era, sim, o momento.
— Sabe, Marcel... — começou, informalmente. — Queria ser um homem corajoso.
— Mas você é. — Marcel respondeu, soltando uma risadinha. — Um soldado condecorado, forte, bravo e medalhista. O que o faz pensar que não tem coragem?
— Saber fazer o meu trabalho e ser reconhecido por isso não faz de mim um homem corajoso. — respondeu, sorrindo tristemente. — Eu queria ser diferente. Digo… Não queria sentir medo de arriscar algumas coisas por medo de rejeição, por exemplo.
— Por que acha que será rejeitado caso arrisque apostar em coisas novas?
— Eu não sei, e é isso que me enlouquece.
— E para o que precisa de coragem?
— Existe uma mulher.
— É claro que há uma mulher... Vá em frente.
— Eu quero convidá-la para jantar, mas acho que ela jamais aceitará. Bem, ela me dá sorrisos e fala de um modo dócil toda vez que me vê, mas acredito que seja apenas educação, parte do ofício. O que alguém como ela veria em alguém tão perturbado como eu?
Marcel sorriu e tirou os óculos redondos que usava, colocando-o sobre a mesa ao seu lado junto ao caderno de anotações.
— Você quer minha opinião profissional ou a de um homem como você? — perguntou, soando sincero e olhando o relógio em seu pulso. — Nosso horário já terminou, de qualquer modo.
— Posso optar pelas duas alternativas?
— Certo, minha opinião profissional é: você deve ir devagar e conhecer seus próprios limites. Até onde está disposto a ir por essa mulher? Você a conhece bem, já conversaram sobre coisas pessoais, trocaram telefones? É algo platônico? Você precisa saber o que quer e apostar nisso devagar e no seu próprio ritmo para que saiba quando parar. Dou todo o apoio do mundo para que você consiga convidá-la para sair, mas sem criar um possível gatilho para sua ansiedade.
— E qual sua opinião como um homem?
— Caso esta mulher seja a minha secretária , não, ela não usa o tom pomposo e os sorrisos bonitos para todos. É só com você. O interesse é mútuo e você deveria convidá-la para jantar logo que sair desta sala.
sentiu o rosto esquentar em vergonha, mesmo sabendo que isso passaria despercebido pelo terapeuta. O corpo estava tenso e as mãos, de repente, puseram-se a suar, lembrando-o de sensações da adolescência.
— Eu acho que vou pensar.
— Como quiser, . Apoio qualquer decisão que tomar, mas saiba que jamais negaria um encontro com você. Ela fica corada todas as vezes que você a olha e agradece pelos biscoitos que nunca come.
ponderou, mordeu o lábio inferior e levantou-se do divã de uma vez por todas.
— Obrigado, doutor. Nos vemos semana que vem.
— Até semana que vem, . Ah! — o terapeuta exclamou logo que alcançou a porta, chamando sua atenção. — A duas quadras daqui abriu um restaurante francês excelente. Levei minha esposa e ela ficou encantada. Talvez você queira dar uma olhada nele.
apenas assentiu e abriu a porta, passando por ela às pressas e logo dando de cara com atrás do balcão da recepção. Cumprimentou-a com um aceno fraco e foi retribuído com mais um sorriso doce. Continuou seu caminho, mas sentia algo revirando em suas entranhas e seus pensamentos bagunçaram ainda mais, fazendo-o questionar se não estava sendo idiota e burro. Por fim, concluiu que, sim, estava e deveria aproveitar o surto de coragem e voltar ao consultório para convidar para jantar. O que poderia acontecer de ruim, afinal? O ‘não’ ele já tinha, mas, também, tinha a confirmação de seu terapeuta que a secretária lhe daria uma chance.
Fez o caminho inverso, voltando para o consultório e parou em frente à na recepção, um tanto quanto ofegante.
— Esqueceu alguma coisa, Sr. ? — perguntou, preocupada.
— Por favor, me chame de . — pediu, tomando coragem. — Eu gostaria de te fazer um convite…
— Eu aceito jantar com você, . — o cortou, abrindo mais seu sorriso bonito. queria perguntar como ela sabia daquilo, se havia escutado a conversa, se Marcel havia falado alguma coisa, mas não conseguiu proferir uma só palavra. O sorriso que estava em seu rosto ia de orelha a orelha e seu coração martelava no peito com força, deixando-o estranhamente alegre e tonto.
— No sábado? — perguntou num fio de voz.
— Sábado, às sete. — confirmou. — Nos encontramos em frente ao novo restaurante perto daqui?
— Perfeito. Nos vemos no sábado, .
— Até sábado, .
Trocaram sorrisos tímidos e andou até a porta de saída de costas, sem olhar para trás — apenas a visão de envergonhada o interessava.

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Quando o sábado finalmente chegou, sentia-se ferver de dentro para fora. Não era o tipo de ansiedade que gostava de sentir, não era a vontade de ver outra vez, nem nada do tipo. Era uma crise das mais terríveis se aproximando e tomando-o por inteiro.
Naquela manhã, despertou às cinco e meia após um pesadelo horrível e que pareceu mais real do que todos os outros que tivera desde que havia retornado aos Estados Unidos. Seu corpo inteiro tremia e o barulho das bombas parecia ainda mais alto, o suor lhe banhava dos pés à cabeça e, devido aos sustos, havia ido de encontro ao chão gelado com as mãos contra a cabeça e o corpo encolhido como se tentasse se proteger de algum tipo de ataque. Sentia a dor do impacto, sentia a terra sob o tronco, sentia o peso do rifle nos ombros e a quentura da farda.
Abrir os olhos foi uma tarefa difícil. Quando reconheceu seu apartamento pequeno e aconchegante, as lágrimas foram inevitáveis. Sua cabeça parecia querer torturá-lo cada vez mais, a cada segundo que se passava, a cada dia. Os pensamentos eram bagunçados e maldosos, o ar lhe faltava e a garganta queimava como se ainda estivesse respirando a poluição de restos de bombas e o cheiro de carne queimada e machucada. Os efeitos da guerra ainda estavam entranhados em seu ser, como se nunca tivesse deixado o campo de batalha. Sua cicatriz, grande e grossa, jazia vermelha e ardendo, fazendo com que uma coceira insuportável o tomasse e o deixasse ainda mais nervoso.
Em momentos como aquele, sentia-se sozinho. Na verdade, lembrava de que era um homem solitário. Havia perdido os pais não muito tempo antes de retornar do Afeganistão, era filho único e nunca foi muito próximo dos parentes dos pais. Seus relacionamentos não costumam ser duradouros e os poucos que foram tiveram finais trágicos demais. Ninguém sabia lidar com um homem fechado, duro e guerrilheiro como ele. Nem mesmo sua mãe soubera, quando ele ainda era jovem, por que outra mulher saberia?
Pensamentos assim sempre lhe foram muito perigosos. Eram armadilhas mais medonhas do que as minas embaixo de seus pés nos campos que precisava invadir. Tais pensamentos faziam-no questionar se estava fadado à solidão pelo resto de seus dias, como se nunca fosse ter a chance de mostrar-se como realmente era — não somente para outra pessoa, mas também para si mesmo. Ele era mais do que um soldado, sabia disso, mas, às vezes, os sussurros ficavam altos demais para fingir que não estavam ali. Como naquele momento, em que ele ouvia repetidamente que não deveria seguir com a história de jantar com , uma mulher tão boa e doce que não merecia entrar na bagunça que era sua vida e suas ideias perturbadas. Ela não precisava vê-lo em meio à uma crise de ansiedade, tampouco ter de lidar com seu estresse pós-traumático. Ninguém, na verdade, deveria aceitá-lo naquelas condições; tão quebrado, escangalhado e virado do avesso, com uma mente fraca e doente, pensamentos suicidas e uma bagagem repleta de traumas que jamais conseguiria colocar para fora para tentar superar.
suspirou e fechou os olhos, tentando controlar a respiração e os pensamentos conturbados. Flashes dos combates que travou atravessaram suas memórias em questão de segundos, misturando-se às imagens que tinha guardado para si mesmo de sorrindo durante o expediente, as conversas enquanto doutor Marcel ainda estava ocupado, o convite tão inusitado para jantar; tudo se misturava como se fosse uma coisa só, fazendo com que sua respiração travasse na garganta em um bolo incômodo e sufocante.
Em todo aquele tempo, jamais pensou que seria do tipo de soldado traumatizado e que ficaria remoendo todas as coisas que aconteceram em sua vida depois de uma noite recheada de pesadelos perturbadores. Sempre pensou que passaria dos 30 anos de forma saudável, bem sucedido profissional e financeiramente, formaria uma família e seria feliz, como seus pais foram e mostraram-no que era possível. Contudo, ao ser convocado para a missão do Afeganistão, sentiu-se hesitar pela primeira vez. Era como se os planos que antes estavam nas pontas de seus dedos simplesmente escorregassem e ficassem um pouco mais distantes, tendo um caminho longo e tenso a ser percorrido antes de alcançá-los e poder agarrá-los novamente.
jogou a cabeça para trás, chocando-a contra a parede manchada. A dor não foi o suficiente para tirá-lo daquele limbo que se encontrava, mas o fez acordar um pouco e voltar a respirar. Sabia que não era hora de pensar nas coisas que estava pensando, precisava voltar ao normal e ignorar tudo o que as vozes ruins sussurravam ao pé de seu ouvido. Marcel sempre o dizia que a ansiedade faria aquilo com ele; diria coisas ruins, faria com que pensasse demais e não agisse nunca, o deixaria tonto, fora de si e com maior tendência à uma crise depressiva, como quando ele havia recém chegado ao seu país. Foi uma experiência torturante e conturbada, que chegou a pensar e tentar tirar a própria vida por não saber lidar com os fantasmas que o acompanhavam. Naquela época, o ex-soldado vivia com as mãos machucadas, o ferimento longo causado pela bala não cicatrizava e parecia piorar a cada dia, o corpo sempre cansado e a vontade de continuar ali era mínima. Não tinha quem o ajudasse, não tinha pensamentos bons e fora encontrado desacordado pela moça que cuidava da limpeza do apartamento devido ao seu estado físico comprometido. Ao chegar no hospital e ser identificado como um membro do exército estadunidense, condecorado e recém-chegado do Afeganistão, imediatamente a ala psiquiátrica foi acionada e ele foi enviado para a terapia com Marcel — um doutor calmo, com a fala mansa e cheio de metáforas que costumavam distrair os pensamentos pesados de ao menos duas vezes na semana, no começo.
Lembrar-se de como era estar no fundo do poço fez com que decidisse não voltar até lá, por mais inevitável que fosse — recaídas aconteciam e, querendo ou não, ele ainda fazia visitas mensais até o lugar mais profundo e imundo de sua mente.
forçou-se a abrir os olhos outra vez. Encarou o nada à sua frente, sentindo-se exausto de todas as formas possíveis. Deixou que os pensamentos se acalmassem aos poucos e passou as mãos pelo rosto, sentindo a barba que começava a crescer espetar sua palma como um carinho reconfortante; o único que tinha. Estava mais calmo, embora o coração ainda batesse forte e a cabeça ainda continuasse girando, deixando-o zonzo como se estivesse bêbado.
Ergueu-se do chão com cuidado, percebendo que passara a manhã inteira naquele estado deplorável, como não ficava há algumas semanas. As recaídas eram sempre complicadas, começava a pensar que não valia a pena as horas que gastava durante a semana conversando com Marcel e colocando-o a par de sua vida monótona e fracassada. Ele sabia que era importante continuar o tratamento e não importava quantas vezes precisasse cair até que ficasse 100% bem — ou, ao menos, 70% para que pudesse continuar planejando seu futuro e buscando formas de driblar as crises que eventualmente aconteceriam.
Perto das 11 da manhã, a campainha tocou e o fez suspirar. Como morava em um lugar pequeno, não demorou muito a abrir a porta e encontrar uma mulher baixinha e com um sorriso no rosto parada à sua frente.
— Bom dia, filho. — Serena, sua faxineira, murmurou. — Espero que não tenha te acordado.
— Bom dia, Serena. — sorriu cortês, tentando disfarçar o abatimento em suas feições e deixando a moça adentrar o apartamento. — Eu já estava acordado, pode ficar tranquila. Eu esqueci que tinha marcado com você hoje, tem problema se eu ficar quietinho por aqui? Não tem tanta bagunça de todo jeito…
— A casa é sua, meu amor. — Serena riu. — Fique à vontade, acabo em menos de uma hora para que possa continuar descansando. No mais, está tudo bem com você? Parece tão tristinho.
— Estou bem sim, apenas cansado… E você?
— Estou bem, querido, obrigada. Vou começar o trabalho, vá se deitar. Qualquer coisa me chame.
apenas assentiu e jogou-se na cama outra vez. Dali, conseguia ver a movimentação de Serena, que cuidava de cada cantinho daquele apartamento com carinho e cuidado, além de sempre levar um tempinho a mais ali dentro, apenas para fazer uma comida caseira e gostosa para que conseguisse passar a semana se alimentando bem, até que ela retornasse. Ele até tentava pagar a mais também, mas a mulher nunca aceitava, alegando que ele era como um filho para ela e não custava nada deixá-lo um bocado de comida fresca e saudável, já que as porcarias que ele comia não faziam bem a ele e ao tratamento exaustivo que fazia desde que voltara. O sorriso que tomou seus lábios foi automático logo que ouviu o farfalhar em sua cozinha, logo ao lado de seu ‘quarto-sala’.
A fim de se distrair um pouco, pegou o celular que estava embaixo de seu travesseiro e percebeu algumas notificações diferentes ali. O nome de foi o primeiro que leu ao descer a barra de notificação, sem ao menos se lembrar como a secretária tinha seu número de celular já que, em um ápice de estupidez, sequer lembrou de passar para ela e pedir o dela em troca. Mas, ainda assim, foi bom abrir o aplicativo de mensagens e dar de cara com sua foto bonita — ela sorria e segurava uma menininha encantadora, que ele deduziu ser a filha de quem ela tanto falava. Logo embaixo da conversa de — que ele logo salvou o número —, suspirou ao lê-la sem ao menos abrir.

“Ei, cadê você?”


Era o que a mensagem dizia. O autor dela era ninguém mais, ninguém menos que Carl, o homem que costumava ser seu melhor amigo desde o tempo de escola. Conheceram-se quando tinham por volta dos 15 anos, no início do ensino médio. Ficaram inseparáveis desde então; prestaram vestibular juntos, se alistaram ao mesmo tempo e dividiram o alojamento na universidade. Carl era um cientista brilhante e fora um soldado igualmente brilhante. Era bom em fazer e seguir táticas, atirava como ninguém e entendia de compostos químicos e o que faria ou não algo explodir ao redor deles. Ele também havia sido o responsável por salvar a vida de , quando ele tinha o abdômen aberto e estava coberto de sangue — se fosse ao contrário, teria desmaiado de nervoso por não saber o que fazer ou como agir sob tanta pressão em ver o melhor amigo tão debilitado; mas, Carl, não; ele agiu rápido e salvou sua vida.
havia sido um soldado e tanto, mas era 100% de combate. Uma muralha. Nenhum inimigo passava por ele, ninguém o via chegar nos lugares também. Havia executado mais homens do que poderia contar, era sempre o responsável por fazer o grupo avançar cada vez mais. E Carl sempre esteve em seu encalço, lhe ditando os melhores lugares para passarem, mostrando onde provavelmente os outros inimigos estariam e afins; eram uma dupla imbatível. E, agora, devido a tantos problemas, simplesmente se afastou. Deixou o amigo no escuro, ignorou a saudade que sentia e fechou-se completamente. Não era sua intenção, mas também não se sentia confortável em deixar mais alguém ter acesso àquelas memórias e momentos horríveis que revivia todos os dias. Mesmo que Carl não fosse julgá-lo ou ignorá-lo, ao contrário, o melhor amigo estaria pronto para cuidá-lo com muito zelo e amor. Não costumava haver segredo, medo e mentira entre eles, até o fatídico dia que Serena encontrou desacordado. Ao abrir os olhos dois dias depois, decidiu que não deixaria ninguém mais saber o que acontecia em sua mente, a não ser Marcel — porque era obrigado a falar, e, de certa forma, o ajudava dormir à noite.
Como o esperado, ignorou a mensagem do amigo e clicou na conversa de , finalmente revelando a mensagem por completo:

“Ei, ! É a . Desculpe a intromissão, peguei o seu número na sua ficha do consultório. Mas é que nós não lembramos de trocar telefone... Enfim! Quero saber se está tudo certo para hoje, preciso confirmar a babá da Hayley. Beijos!”


— Serena... — chamou, e a mulher que passava por ali aspirando o cômodo o encarou. — Posso te fazer uma pergunta?
— É claro, querido. — Serena respondeu, desligando o aspirador.
suspirou e mordeu o lábio inferior, tomando coragem para iniciar o assunto. Não deveria fazer aquilo, céus, não deveria mesmo.
— Você acha que um dia eu ainda vou encontrar alguém que consiga ficar ao meu lado? — perguntou, por fim.
Serena franziu o cenho e caminhou até onde a cama ficava. Sentou-se à beira dela e puxou uma das mãos de , entrelaçando seus dedos com carinho.
— E por que não encontraria, filho? Você é um bom homem, foi à guerra e voltou, luta contra seus próprios demônios todos os dias e tem uma força descomunal. Por que não encontraria alguém capaz de estar ao seu lado verdadeiramente?
— Eu não sei. Eu não ficaria comigo mesmo.
— Você diz isso porque está ocupado demais se martirizando por coisas que não tem controle; e isso faz com que se odeie. Mas eu acredito em você e sei que isso tudo irá passar. Você é capaz de amar e ser amado, meu bem.
— Tenho um jantar hoje à noite, mas estou pensando em desistir. É com uma mulher incrível, embora eu não a conheça tão bem quanto gostaria. Mas hoje… Hoje foi difícil, acordei tendo um dia difícil e não me sinto bem. Acho que ela vai acabar me odiando eventualmente. Ou talvez nem apareça hoje e só esteja me fazendo de bobo. Não sou tão interessante assim.
Serena riu e balançou a cabeça negativamente.
— Não seja bobo, . — falou. — Você precisa parar de sentir pena de si mesmo. No fundo sabe que não é nada do que diz ser. Pare de se colocar para baixo apenas para tentar se convencer de que não merece as coisas boas que a vida lhe dá. Você merece, sim. Todos nós merecemos. Vá jantar com essa moça e faça esse dia difícil ser apagado. Passe por cima dele. Tenho certeza que ela não está te usando, nem te fazendo de bobo. Você é bonito e interessante, . Eu certamente te jogaria várias cantadas se tivesse sua idade e não fosse casada.
riu fraco e fitou sua mão entrelaçada à de Serena. Suspirou e puxou-a até à boca, deixando um beijo dócil sobre a mão calejada da mulher. Ela o acalmava como sua mãe costumava fazer.
— Obrigado, você sempre sabe o que dizer para me acalmar.
— Não há de que, meu amor. Apenas continue com seu tratamento e seus remédios que tudo dará certo. Você não precisa temer ou se envergonhar de ser quem é. Se essa mulher vale tão a pena e é tão importante e interessante, ela precisa te conhecer de forma crua. Tenho certeza que é isso que a fará ficar.
— E se ela não ficar?
— Então ela não é tão interessante nem vale tão a pena assim. Você merece coisas boas, garoto. Vá em busca delas.
Após ouvir aquelas palavras que deixaram seu coração mais aquecido e calmo, quase como se não tivesse tido crises intensas horas antes, finalmente respondeu :

“Ei, ! Desculpe a demora… está tudo certo para hoje, sim. Até mais tarde! 🥰”

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estacionou o carro à uma distância segura do restaurante. Ainda sentia um frio na boca do estômago e a dúvida pairava em sua mente, querendo fazê-lo desistir de toda aquela loucura. Não era o momento de tentar se relacionar com alguém, mesmo que sem compromisso algum, ele sabia disso. Na verdade, ficava em dúvida se era seu medo falando mais alto ou sua consciência lhe enviando sinais de senso e responsabilidade. No fundo, sabia que era um pouco dos dois. Não era o momento, claro que não era, mas, ainda assim, sentia a necessidade de conhecer alguém, conversar e falar sobre as besteiras da vida, nada sobre trabalho, sobre guerra, sobre mortes. E, além de tudo, era um homem medroso; o medo passou a ser seu melhor amigo desde que acordou no hospital e foi encaminhado para a ala psiquiátrica. Enquanto esteve no Afeganistão, sentia-se o homem mais forte e corajoso do mundo; o medo era apenas uma palavra engraçada, longe de estar dentro de si novamente, não fazia sequer sentido. Já havia experimentado a morte diversas vezes, então não sentia mais medo dela. Passava dia e noite sob forte pressão, entre escombros, bombas, armas e o risco de ser visto por inimigos; do que poderia sentir medo a não ser aquilo, que sequer o assustava mais?
Contudo, após seu primeiro surto por estar em casa novamente, o medo voltou e o assolou por completo, quase destroçando-o de dentro para fora, feito uma doença incurável. E esse medo o travava para coisas importantes e simples do cotidiano; não sabia mais conversar, se portar perante à sociedade, falar besteiras, rir ou até mesmo se divertir; sentia medo de todas essas coisas. Sentia medo de ter se tornado o monstro que sempre desejou não ser.
— Não seja um covarde, . — sussurrou para si mesmo, apoiando a cabeça sobre o volante.
Um suspiro cansado lhe escapou e decidiu sair do veículo de uma vez por todas; ou acabaria desistindo daquele encontro que tanto ansiou.
Logo que trancou o carro e atravessou a rua, encontrou na calçada. Ela estava bem vestida, com uma saia longa e uma blusa curta que deixava partes de seu tronco à mostra. Os cabelos, sempre presos em um rabo de cavalo no consultório, estavam soltos e caindo em cascatas bonitas e bem penteadas sobre os ombros retos. sentiu o coração martelar contra o peito e o ar lhe faltou por alguns segundos, ficando hipnotizado com a visão bonita que estava diante de seus olhos. Era a porra de um sortudo e ainda chegou a cogitar a desistir de tudo aquilo; céus.
— Boa noite. — murmurou com um sorriso bonito nos lábios vermelhos.
— Boa noite. — respondeu, aproximando-se para deixar um beijo na bochecha corada de . — Espero que não esteja me esperando há muito tempo.
— Não, eu acabei de chegar.
— Ótimo, vamos entrar. Já fiz nossa reserva.
E lado a lado, com os braços se esbarrando timidamente, adentraram o restaurante.
O ambiente era bonito, bem decorado e calmo. Haviam algumas imagens e miniaturas de pontos turísticos franceses, paredes brancas e beges, e as mesas eram cobertas por toalhas em tons pastéis; era muito aconchegante e agradável.
se apresentou à recepcionista e logo foram guiados em direção à mesa reservada, que ficava em um canto mais afastado e reservado do restaurante. Ainda assim, tinham visão de todo o salão e um pouco da rua, já que, logo ao lado, um vidro grande e escuro tomava o espaço. Em um cavalheirismo incomum para , puxou a cadeira para que ela se sentasse e recebeu um agradecimento tímido em seguida, fazendo-o sorrir ainda mais encantado pelos trejeitos da mulher.
— Eu não entendo muito de cultura francesa. — começou um tanto risonho e sem jeito, enquanto analisava o menu. — Espero que você conheça ao menos um bom prato daqui.
— Eu morei na França por um tempo. — comentou, rindo baixinho do jeito do ex-soldado. — Está em boas mãos, soldado. Nós podemos pedir canard à l’orange, que é o prato mais fácil de agradar o paladar. — disse em um sotaque perfeito, que atraiu ainda mais a atenção de . — Ele nada mais é que pato ao molho de laranja. — sussurrou como se contasse um segredo. — Mas acho interessante provarmos gigot d’agneau, que é pernil de cordeiro, e um bom vinho.
— Bem, a especialista é você. — abriu mais seu sorriso, deixando o cardápio sobre a mesa. — Tenho certeza que vou adorar qualquer prato que escolher.
sorriu e fechou o cardápio também, logo acenando para um dos garçons. Fizeram os pedidos e não demorou muito para serem serviços com uma taça generosa de vinho enquanto o jantar, de fato, era preparado.
— Eu não sei se devo beber, estou dirigindo. — murmurou, bebericando o vinho em seguida. O gosto doce do vinho suave lhe tomou o paladar e foi inevitável fechar os olhos e suspirar com algo tão gostoso. — Bom, retiro o que disse, eu vou beber, sim.
riu da fala do outro e bebericou sua própria taça.
— Eu particularmente prefiro vinho seco, mas a noite de hoje realmente combina com este suave. — comentou.
— Você entende bastante de culinária francesa, então? — perguntou, tentando puxar um assunto que a mulher gostasse de falar. Percebeu que havia acertado em cheio ao vê-la sorrir mais abertamente do que antes.
— Sou uma amante de culinária em geral. — respondeu. — Morei um tempo na França com minha mãe, ela era chef em um restaurante bem famoso por lá. Digamos que herdei isso dela, mas nunca quis seguir a carreira. Cozinhar é um hobbie.
— E como você acabou trabalhando com o Marcel? — perguntou em uma curiosidade genuína. O sorriso de , de repente, ficou mais triste. — Desculpe, não quero ser invasivo. Se não quiser falar sobre isso, tudo bem.
— Ah, não, sem problemas. — deu de ombros e virou todo o conteúdo de sua taça de uma vez. — Minha mãe faleceu há algum tempo, e acabei vindo para os Estados Unidos de uma vez por todas. Comecei a frequentar a universidade, mas não deu certo, me sentia muito perdida e decidi trancar até decidir o que queria fazer. Mas, aí, a Hayley veio de surpresa. — sorriu ao lembrar-se da filha. — Eu já trabalhava no consultório do Marcel há um tempo, e acabei ficando sem opção a não ser continuar. Gosto muito do meu trabalho, de todos os pacientes e o Marcel é um anjo na Terra, então… Tudo bem, certo? O salário é bom, consigo dar a melhor educação possível para a Hays e é isso o que importa.
— Entendi. — murmurou logo que o garçom apareceu com o jantar, servindo-os. — E você não pretende voltar para a universidade?
— Sinceramente? Não. — riu. — O mundo acadêmico não é para mim, e não consigo me ver em um curso específico também. Enjoo fácil das coisas. Tenho um emprego fixo, um bom currículo, falo três idiomas fluentemente e tudo bem, sabe? Se acontecer de eu precisar me mudar ou trocar de emprego, sei que terei o privilégio de conseguir rapidamente. E se não conseguir, bom, ainda posso me tornar chef de um restaurante, não é mesmo?
— É claro. — concordou. — Você pode conseguir e se tornar tudo o que quiser, .
Mais um par de sorrisos foi trocado e, sob um silêncio breve e confortável, voltaram a comer.

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A noite estava agradável, tendo a brisa fresca e atípica pelo horário como companhia. Após o jantar, em um impulso, convidou para um passeio a pé em uma praia bem perto dali. Estavam na orla rindo e conversando sobre coisas cotidianas, desfrutando do cheiro salgado e gostoso do mar, que era capaz de acalmá-los ainda mais — principalmente após o torpor causado por uma garrafa inteira de vinho.
— Fale um pouco sobre você, . — pediu com a voz suave. — Você já sabe quase tudo sobre mim em apenas algumas horas, e tudo que sei é que você foi um soldado impecável e se chama .
— Não tenho culpa de você ser muito mais interessante do que eu. — comentou, já mais solto do que no início da noite. — Não tenho muito o que falar sobre mim. Sou apenas isso que disse: , soldado condecorado e tenho 35 anos.
— Ninguém é apenas o próprio nome, profissão e idade, mon amour disse e em um salto simples, saiu da calçada e caiu com os pés enterrados na areia da praia. — Quero te conhecer afundo, . O que gosta de fazer, de onde veio, por que decidiu se alistar, o que estudou…
suspirou e andou até , observando-a com os cabelos e saia esvoaçantes. A beleza da imagem o deixou encantado e paralisado. O mar, parecendo infinito atrás de , trazia ainda mais doçura e encanto para o momento. De repente, encontrou-se sem palavras. Não conseguia raciocinar algo coerente para dizer tendo tamanha beldade diante de seus simples olhos. era linda, a paisagem ao redor era linda; uma combinação perfeita.
— Gosto de muitas coisas, mas, acabei de descobrir que gosto ainda mais de observar você. — murmurou, finalmente, sem nenhum traço de timidez. — Gosto de vir à praia a noite. Gosto de boas companhias. A brisa fresca. O cheiro do mar. Gosto de estar aqui com você.
— Está tentando flertar comigo, soldado? — perguntou ao se aproximar mais de , olhando-o nos olhos.
— Digamos que sim… A noite inteira. — deu de ombros. — Está funcionando?
— O que acha de uma caminhada à beira mar? Lá a gente pode descobrir se seu pseudo-flerte está funcionando.
riu sem jeito e segurou a mão que lhe estendia, não demoraram a entrelaçarem os dedos e seguirem em direção à beira do mar a passadas erradas e tropeços devido aos calçados. Ainda assim, riam e se apoiavam um no outro, aproveitando o clima gostoso que estava instalado ali.
— Ok, acho melhor tirarmos nossos sapatos. — disse enquanto dava pulinhos para fugir das ondas que quebravam próximo aos seus pés. Sem esperar por uma resposta de , tirou as sandálias que calçava e segurou-a entre os dedos livres. Seguindo o exemplo da companheira, arrancou os tênis e meias que vestia e dobrou as barras da calça jeans até quase nos joelhos.
— Eu sou filho único. — começou num tom de voz baixo, atraindo a atenção de . — Meus pais morreram em um acidente enquanto eu estava no Afeganistão, poucas semanas antes do meu retorno.
— Sinto muito. — sussurrou, apertando mais sua mão contra a calejada de . — Não precisamos falar disso.
— Tudo bem. — sorriu para ela. — Eu só soube quando voltei, então foi uma fase complicada, mas, já passou. Não tenho muito o que fazer quanto a isso.
— Não precisava ter me contado.
— Claro que precisava. Eu senti que deveria. a encarou com carinho. — Você me passa muita confiança, . Sei que quase não conversamos no consultório, mas é que estou sempre muito perturbado quando vou lá. Mas sempre que olho para você… Não sei explicar. Eu queria esse encontro há muito tempo, mas não sou tão corajoso quanto costumava ser na guerra. Acho que a ansiedade me fez o maior covarde do mundo, então nunca consegui te convidar. O que quero dizer é que sempre senti que poderia confiar em você.
— Fico feliz por isso. — respondeu baixinho, tocada com a conversa. — O interesse sempre foi recíproco. — esbarrou o ombro no de propositalmente, rindo baixinho. — Mas sempre fiquei receosa. Você não parecia gostar muito de mim… Sempre recusando meus biscoitos, não conversava muito na sala de espera, sempre emburrado…
— Céus, desculpe por isso. — levou uma das mãos à nuca, puxando a pele dali em puro nervosismo. — Eu não sei como agir quando tenho interesse em alguém. Nunca soube, para falar a verdade. E, bom, sabemos que o consultório não é melhor local para iniciar uma conversa e um ‘pseudo-flerte’.
— O local perfeito é um restaurante francês e depois a praia?
riu e parou de andar, puxando consigo. Ficaram em um silêncio gostoso outra vez, observando a imensidão escura logo à frente e sentindo a brisa assobiar em seus ouvidos e acariciar as peles geladas. As mãos juntas, firmes, os braços colados, os corpos arrepiados devido ao contato e ao vento eram o suficiente para mostrá-los que aquilo era real, estava acontecendo e estava sendo perfeito. Ao contrário do que pensaram durante o dia, não estava sendo um encontro esquisito ou desconfortável. Tinham uma boa dinâmica, não faltou assunto em momento algum e o silêncio era sempre bem-vindo e confortável em situações como aquela.
deixou o par de tênis cair sobre a areia e começou a dar passos lentos em direção ao mar. Um tanto quanto confusa, fez o mesmo, seguindo-o curiosa e segurando a barra de sua saia para cima, evitando molhá-la. parou de andar assim que seus pés afundaram no mar, onde a maré alta já alcançava suas canelas. Scarlet estava um pouco atrás, mas ainda segurava sua mão e olhava-o sem saber o que viria a seguir — e o frio de antecipação e excitação que tomava seu corpo fazia com que desejasse mais e mais de toda aquela surpresa que exalava do soldado; ele se mostrava um homem imprevisível.
Decidindo ser tão surpreendente quanto ele, em uma súbita coragem, puxou levemente para trás, fazendo-o olhá-la. Fitaram-se por alguns longos segundos e, automaticamente, levou a mão livre até o rosto anguloso, puxando-o em sua direção. Sabiam o que aconteceria a seguir, mas, ainda assim, sentiam-se nervosos e com as mãos suadas. Entretanto, não havia mais como voltar atrás. Àquela altura, a saia de já se misturava à água gelada e cristalina, encharcando-a aos poucos, conforme a maré subia e as ondas se intensificavam.
deu mais um passo à frente, e sua coragem pareceu aumentar. Não esperou muito mais do que breves segundos para puxar o rosto de em direção ao seu, permitindo que finalmente os lábios se encontrassem. As mãos se soltaram quase imediatamente, sendo usadas para puxar um contra o outro, sem ao menos se preocuparem com o que acontecia ao redor. O som do mar se misturava aos assobios da brisa, e tudo soava como a mais bela canção para ambos — uma trilha sonora natural e impecável, que os deixava cada vez mais imersos naquele momento espetacular e único. As línguas se encontravam lentas e curiosas, desfrutando do gosto do vinho que compartilharam alguns minutos antes, deixando o beijo com um sabor doce e único, tal qual a bebida tão suave e apetitosa.
não pensou quando puxou o corpo de com firmeza e suavidade em direção ao seu, grudando ambos os troncos. Em contrapartida, foi abraçado pelos ombros com vontade e desejo — coisas que não sentia de verdade há tanto tempo, que se encontrou zonzo perante ao toque da mulher em seus braços. Os suspiros eram audíveis e sincronizados, deixando clara a intensidade que os cercava, assim como a reciprocidade de desejo crescente.
Afastaram os lábios devagar e com um estalo baixo, porém intenso. Os rostos permaneceram próximos, assim como os olhos continuaram fechados e os corpos colados em um aperto firme. passou a língua pelos próprios lábios devagar, sentindo falta da boca suave e gostosa de contra eles. Quando abriu os olhos, deparou-se com o mirar intenso da mulher — seus orbes transbordavam vontade, intensidade e um pedido mudo para que pudesse ter mais do contato; era a mulher mais expressiva que já havia encontrado na vida.
Em um tom de voz baixo, rouco e excitado, perguntou:
— O que acha de irmos para o meu apartamento?
Com um sorriso no canto dos lábios e bem pertinho da boca de , respondeu:
— Pensei que nunca fosse perguntar isso.

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A primeira coisa que viu ao acordar na manhã seguinte, foi o belo rosto adormecido e relaxado de contra seu peito. Ela sustentava um sorriso fraco no canto da boca, mostrando que sonhava coisas boas. Os cabelos, agora bagunçados, embolaram entre os dedos de , assim como seus braços e pernas estavam enroscadas no corpo do soldado. Ambos estavam nus, com apenas um lençol embolado em algumas partes dos corpos. não pôde evitar olhar e sorrir ao perceber as coxas grossas da mulher tão à mostra. Assim como seu colo e os seios colados contra seu tronco.
Com muito cuidado, se levantou e vestiu a cueca que encontrou jogada pelo chão. Ainda sorrindo e desacreditado com tudo o que havia acontecido até ali, seguiu para a cozinha e pôs-se a preparar o café da manhã. Sabia que logo acordaria e teria pressa de ir embora, já que ainda era pouco mais de sete da manhã e a babá só ficaria com sua filha até às nove, como comentou na noite anterior.
O cheiro forte e gostoso de café fez com que despertasse quase imediatamente, ouvindo o estômago roncar. Um murmúrio baixo lhe escapou, nem um pouco contente por já ter de acordar depois de uma noite incrível. O sorriso que lhe tomava a boca enquanto dormia aumentou apenas por lembrar-se de cada detalhe das últimas horas, assim como sentiu-se inebriar ao respirar fundo e sentir o cheiro de lhe tomar o olfato. abriu os olhos devagar, temendo ter de lidar com os raios solares, e encontrou a cama vazia e o espaço relativamente escuro. Sentou-se na cama e enrolou melhor o lençol contra o corpo, não demorando para levantar e seguir até onde podia ver o corpo de mover-se de um lado para o outro com rapidez e naturalidade. Enquanto caminhava, permitiu-se observar o espaço. O apartamento não era grande, tinham poucos cômodos e a sala era acoplada à cozinha, assim como também era o quarto — costumava chamá-lo de “quarto-sala”, ele havia contado; lugares grandes deixavam-no desconfortável, então aquele apartamento lhe pareceu perfeito para viver sozinho e ainda ter certo espaço para se locomover tranquilamente e ter algum animal de estimação caso sentisse vontade.
Com as lembranças e informações que lhe foram confidenciadas bombardeando-lhe a mente, chegou à cozinha e não demorou até ir em direção a e abraçá-lo por trás, enterrando um beijo no meio das costas nuas e largas.
— Bom dia. — sussurrou contra a pele quente e cheirosa.
— Bom dia. — respondeu tranquilo, virando-se para ela e colando seus lábios em um selar demorado. — Eu não sabia bem o que preparar para você, então… — apontou para o balcão que tinha uma variedade de comida.
— Sou uma mulher simples de agradar. — murmurou. — Está perfeito, obrigada, mas, não precisava se preocupar. Não vou poder ficar por muito mais tempo.
— Eu sei. — sorriu tranquilo. — Mas achei que seria bom preparar uma boa refeição para que possamos repor as energias.
— Está perfeito, obrigada. — repetiu e sentou-se em um dos bancos dispostos em frente ao balcão.
sentou-se ao seu lado e observou-a dos pés à cabeça; era tão linda que ele não conseguia tirar os olhos dela. O corpo cheio de curvas sob o lençol branco, as pernas grossas, o sorriso bonito e empático, o olhar forte e expressivo, o rosto perfeito e os lábios sempre vermelhos, os cabelos levemente bagunçados… Tudo nela lhe era digno de uma atenção meticulosa.
— O que foi? — perguntou repentinamente tímida, bebericando o café em sua xícara. — Está aí há um tempão me olhando.
— Você é linda. — respondeu, por fim. — Não consigo parar de te olhar.
sorriu e deixou seu café da manhã de lado, logo pondo-se de pé e soltando o tecido que lhe escondia a nudez. O lençol foi parar sob seus pés, no chão. Em apenas um passo, chegou até e colou suas bocas em um beijo lento e intenso, como todos os outros trocados na noite anterior. O arrepio lhe cruzou o corpo e o gemido baixo foi inevitável ao sentir as mãos grandes e fortes de lhe apalparem os glúteos com vontade. Em questão de segundos, ele também não estava mais vestido. E, assim como os tecidos, parte da louça e do café da manhã também foram de encontro ao chão.

Beirava às dez da manhã quando estacionou o carro em frente ao prédio simples que morava com a filha. Com sorte, ela havia conseguido contatar a babá avisando o atraso e que a garota receberia pelo tempo extra em pleno domingo. Depois que ela e rolaram por todos os cantos da cozinha pequena do soldado, tomaram um banho rápido e logo seguiram para a casa de , sabendo que logo a pequena Hayley acordaria chamando pela mãe.
— Tem certeza que não quer entrar? — perguntou uma última vez, já do lado de fora do carro.
— Hoje não, deixamos para a próxima? — respondeu com um sorriso bonito; não queria atrapalhar a interação de mãe e filha naquele domingo bonito, embora quisesse muito conhecer a pequena Hayley; talvez ainda fosse cedo, aquele era o fim do primeiro encontro e já havia sido intenso e revelador demais.
— Então terá mesmo uma próxima? — brincou, já sabendo a resposta.
— Se você não me der um bolo nos próximos dias, haverá várias outras “próximas”.
não respondeu, temendo soar acelerada demais; mas seu coração bombeava rápido e forte, deixando-a sufocada. Entretanto, ainda sorrindo, curvou-se em direção a e selou suas bocas mais uma vez.
— Obrigada pelo encontro maravilhoso. — ela sussurrou. — Você é mais incrível do que eu imaginei.
Foi a vez de ficar sem jeito e apelar para um beijo rápido a fim de esconder a timidez. Despediram-se um tanto quanto sem vontade e, após ver trancar o portão do prédio, deu partida com o carro.
guardou o carro na vaga que era reservada para si e subiu de escadas até seu apartamento. Ele assobiava distraído, repassando as últimas horas tão intensas e maravilhosas que havia passado ao lado de . Sentia-se tão ansioso quanto um adolescente, a fim de chegar em casa apenas para enviá-la um par de mensagens e dizer, outra vez, o quão incrível ela era — e como seu gosto era tão magnífico e ainda estava presente em seu paladar. Seus planos, porém, foram por água abaixo ao perceber que havia uma certa surpresa parada em frente à sua porta. Perguntou-se por que diabos ainda insistia em viver em um prédio pequeno e sem ninguém na portaria para impedir que fosse surpreendido daquela forma.
Com as mãos enfiadas nos bolsos da calça de moletom e uma expressão fechada e claramente chateada, estava Carl, seu melhor amigo — ou ex?
— Finalmente! — Carl saudou , que já segurava a chave firmemente entre os dedos calejados. — Pensei que não voltaria mais para casa.
— Bom dia, Carl. — cumprimentou, ignorando a provocação. — O que faz aqui?
— Nossa, amigo, eu vou muito bem, obrigado! Seu afilhado também está ótimo, enorme, forte e agora decidiu que quer ser piloto de avião. — Carl respondeu de uma só vez, irônico. — Céus, , eu só vim te visitar. Você não atende as ligações, não responde as mensagens, fiquei receoso e com medo de…
— De eu ter tentado me matar? — o cortou, escancarando a porta e deixando-o entrar.
— Fiquei com medo de ter acontecido alguma coisa. — Carl respondeu. — Não necessariamente isso. Pare de ficar na defensiva comigo, o que está acontecendo? Vim em missão de paz, a fim de conversar e fazer um almoço legal, porque ninguém merece ficar diariamente comendo as gororobas que você faz.
suspirou e passou a mão pelo rosto, tentando organizar os pensamentos. Estava exagerando em tratar seu melhor amigo daquela forma; mas era inevitável. Odiava ser pego de surpresa, ainda mais quando não se sentia pronto para conversar com a pessoa. O que era o caso de Carl. Não era nada pessoal; ele apenas não estava pronto para se abrir para outra pessoa além de Marcel, e não via Carl há mais tempo do que poderia se lembrar.
De repente, ao constatar isso, uma saudade quase arrebatadora o tomou por inteiro — sentiu falta de ver o amigo todos os dias, as crianças, seu afilhado, a esposa de Carl que considerava uma grande amiga e irmã, sentiu falta dos velhos tempos. Ainda assim, não moveu um músculo sequer para encarar o amigo ou abraçá-lo como sentia vontade.
— Um furacão passou por aqui? — Carl perguntou ao passar pela cozinha e dar de cara com a bagunça que ela se encontrava. Cacos de vidro, resto de comida e o lençol que usava ainda estavam ali, espalhados e amontoados ao pé do balcão.
— Quase isso. — limitou-se a responder baixo, tentando esconder o sorriso que lhe tomava a boca. Carl, no entanto, não deixou isso passar despercebido.
— Uma mulher? Você estava com uma mulher, é por isso me ignorou esse tempo inteiro? — o amigo perguntou curioso e um tanto quanto risonho.
— Não. — respondeu imediatamente, sentindo o rosto esquentar em vergonha. — Quer dizer, sim, eu estava com uma mulher hoje. Acabei de levá-la em casa. Mas não foi por isso que não te respondi.
— Meu Deus, vocês destruíram sua casa durante a noite?
— Carl, por favor, pare de ser inconveniente.
— Você não me dá outra opção, . Só abre a maldita boca quando eu decido ser um completo babaca. Anda logo, desembucha, o que 'tá rolando?
suspirou ao ouvir a fala do amigo e ignorou o fato de que ele pulara toda a sujeira e seguiu em direção à geladeira, tirando de lá uma garrafa de cerveja.
— Nem meio dia ainda e você já vai beber?
— Hoje é domingo, , eu mereço uma cervejinha gelada independentemente do horário. — Carl respondeu, já arrancando a tampa da cerveja e virando-a com sede, arrotando alto em seguida. fez uma careta e recebeu um segundo arroto em resposta, deixando-o ainda mais enojado. — Ainda estou esperando você me contar o que aconteceu.
continuou em silêncio, apenas arrumando o apartamento como se o amigo não estivesse ali. Odiava ser pressionado, era algo que o fazia ficar irritado e prestes a entrar em uma espiral desesperadora de ansiedade. Ser confrontado daquela forma o fazia pensar que estava falhando como amigo e ser humano, sempre deixando as pessoas ao redor às cegas e por um triz de desistir dele. Sentia-se incapaz de manter contato, ser uma boa pessoa e, principalmente, se abrir para pessoas tão confiáveis quanto Marcel — e, agora, , que também já sabia de grande parte de sua vida obscura e reservada.
— Ei, cara. — Carl chamou em um tom mais manso, fazendo com que o olhasse. — Não estou aqui para te julgar, nem para cobrar nada. Vim para ver como você está. Sei que não acredita nisso porque sua mente não permite, mas ainda te considero um amigo, ainda quero seu bem e quero que volte para nossa família. As crianças sentem sua falta. Quinn sente sua falta. Eu sinto sua falta. Sei que o Afeganistão foi um baque para nós dois, passamos por maus bocados, mas precisamos seguir em frente. Por nós e por quem amamos. Eu ainda estou aqui e não vou a lugar nenhum, a menos que você queira que eu vá.
suspirou outra vez e caminhou até Carl, sentando-se na cadeira ao seu lado. Encarou o amigo, mordeu o lábio inferior e passou as mãos pelo rosto mais uma vez.
— As coisas estão complicadas, Carl, mas está tudo sob controle. — disse, por fim. — Eu acho que o tratamento tem me feito bem. Preciso tomar alguns remédios e isso ajuda bastante. Ainda tenho pesadelos horríveis revivendo aquele dia e acordo assustado, como se estivesse no campo de batalha. Mas… Mas as coisas estão andando.
— Certo… E por que tem me ignorado?
— Desculpa, cara, eu não consigo controlar isso. — revirou os olhos, exausto. — É difícil manter contato, tudo bem? Eu não quero atrapalhar sua vida, ser um peso morto e causar mais susto às crianças. Já basta tudo que aconteceu nos últimos tempos.
— E quem te disse que você é um peso morto e atrapalha, irmão? — Carl o encarou nos olhos. — Não deixe esses pensamentos tomarem conta de você assim. Não se afaste de nós. Somos tudo o que você tem, e você é tudo o que temos. O que preciso fazer para que entenda que não faço nada por você por obrigação e sim porque te considero para um caralho e te amo como a porra de um irmão?
riu fracamente e puxou a garrafa de cerveja da mão de Carl, virando o restante do conteúdo que havia nela de uma só vez. Assim como o amigo, soltou um arroto relativamente forçado, a fim de soar como nos velhos tempos e quebrar o clima pesado que estava instaurado desde a chegada do outro soldado.
— Você não precisa fazer nada. — murmurou. — Eu que preciso, mas nunca consigo. Estou vivendo feito um babaca com o seguro que recebo do exército, vou para a terapia, volto para casa e destruo qualquer resquício de melhora que o Marcel planta em mim. Não tem nada que você ou qualquer outra pessoa possa fazer, cara, eu que preciso me levantar e seguir em frente. Mas é difícil demais. Mesmo que tenha tido uma melhora. Acho que, na verdade, a pior parte é essa: a melhora.
— Por quê?
— Porque a pior parte antes de melhorar, é que parece que estou indo em direção a um penhasco e, quando estou em queda livre, em meio à uma crise ou outra, vejo que já estou melhor. Só que isso acontece quando eu atinjo o fundo. — encarou o nada. — A cada crise vejo que os medos estão diminuindo, assim como os pensamentos ruins, mas, ainda assim, não é o suficiente para me deixar completamente bem. A transição e a autoanálise acabam sendo piores do que estar no escuro e a ponto de… Você sabe.
— Você só precisa ter em mente que não está sozinho. Uma ligação, , apenas uma ligação é o suficiente para fazer com que eu venha direto para cá. — Carl segurou firmemente a mão do amigo. — Não importa onde eu esteja. Basta uma ligação para que eu venha ao seu encontro.
— Eu sei, e não acho isso justo. — encarou o amigo outra vez. — Não é justo com você e a sua família, eles precisam de você mais do que eu.
— Você é minha família também, cara.
sorriu e sentiu o coração aquecer. Era grato por tudo que Carl fazia e por todo apoio que ele dava. Era como se ele fosse seu porto seguro, seu alicerce; a pessoa por quem daria a vida sem pensar duas vezes — e sabia que era recíproco, já haviam estado naquela situação no campo de batalha e um entrava na frente do outro sempre que necessário. E os dois estavam ali, vivos, lado a lado e com o amor intacto. só precisava aceitar aquilo no fundo de sua mente e conseguir calar todas as vozes maldosas que ali habitavam, tentando colocá-lo para baixo ou segundo plano; ele era importante, sua vida era importante, e Carl fazia questão de lembrá-lo aquilo todos os dias. Ele precisava aceitar, entender e fixar.
Sua vida importava.
— Agora — a voz de Carl cortou a cozinha outra vez —, me conte sobre essa mulher misteriosa.
sorriu e mordeu o lábio inferior.
Ah, essa mulher, cara…!

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Os dias se passaram com tranquilidade, apesar dos altos e baixos tão naturais para alguém como . Ainda assim, diferentemente de tudo o que havia imaginado, ele estava feliz. Aos poucos, estava conseguindo voltar a se comunicar com as pessoas; Carl voltou a ser alguém presente em sua vida, assim como os filhos e a esposa dele — que finalmente puderam matar a saudade que sentiam de em um domingo ensolarado e regado a churrasco e suco de maracujá (o favorito das crianças e a pedidos de Quinn, que queria cortar o consumo exagerado de bebida alcoólica do marido). chegou em casa mais sorridente do que se lembrava de já ter sido e, no dia seguinte, encontrou-se com no fim de seu expediente e finalmente conheceu a pequena Hayley. E foi ali que percebeu como as coisas estavam avançando naturalmente ao lado de — ele a buscava no trabalho de vez em quando, assim como alterara seu horário com Marcel para que saíssem do consultório ao mesmo tempo; as idas da secretária até sua casa se tornaram rotineiras e fazia-o sentir saudade se ficasse um dia sem falar com ela.
Estava se apaixonando mais rápido do que imaginou que poderia acontecer. Para falar a verdade, sequer se imaginava apaixonado, em um relacionamento ou qualquer coisa do tipo — envolver-se com alguém não estava em seus planos enquanto tivesse tantos pensamentos ruins em sua mente. Mas, bem, ali estava ele, sempre ansioso para encontrar , sem pensamentos ruins diariamente, seguindo a terapia e se reaproximando de quem realmente importava. Sabia que 95% de toda a melhora era fruto do trabalho árduo e intenso de Marcel em suas consultas durante os últimos tempos, mas, ainda assim, era impossível não pensar o quanto e Carl estavam contribuindo para aquilo, mesmo que não soubessem disso — ainda não conseguia falar sobre sentimentos e tudo o que passava dentro de si; e não que precisasse, de fato, seus olhos sempre foram muito explícitos e sempre deixavam claro para todos ao redor quando estava ou não feliz.
Era uma sexta-feira comum quando recebeu uma mensagem simples de , mas que o havia despertado como um choque.

“Vim buscar Hayley na escola e acabamos comprando pizza. Deixe a porta aberta! <3”


Não era como se houvesse algum problema em receber em sua casa. Ou Hayley. Ou as duas. Aquilo já havia acontecido poucos dias antes, quando precisou ir às pressas até o consultório de Marcel enquanto os três almoçavam alguma receita italiana que inventara. No fim das contas, Hayley acabou sozinha com . Ficaram vendo desenho animado na televisão até que a pequena pegasse no sono — naquele dia ela estava calma, quietinha e preguiçosa; não deu trabalho algum, nunca dava, mas foi o suficiente para passar aquelas três horas em pânico sem saber como agir com a garotinha. Ele não tinha problema com crianças, longe disso; sempre ficava com os meninos de Carl. O problema era que não era a mesma coisa de cuidar de dois meninos filhos do seu melhor amigo e cuidar de uma garotinha que ainda considerava um bebê e era filha de sua quase namorada. Tinha muita coisa em jogo e simplesmente sentia medo de Hayley odiá-lo ou não querer ficar mais perto dele repentinamente, ou que ele fizesse algo errado e sentisse raiva de si. Ou outras milhares de possibilidades nonsenses que sua cabeça fazia questão de criar, como naquele momento em que ele andava de um lado para o outro na cozinha esperando que as duas chegassem em sua casa outra vez — e, agora, para dormirem ao seu lado, provavelmente.
forçou os pensamentos que lhe engatilhavam irem para o fundo de sua mente assim que ouviu as risadas de Hayley explodirem pelo corredor, e logo as mãozinhas nervosas e atrevidas giraram a maçaneta que ficava acima de sua cabeça — ela era baixinha, de perninhas curtas e rechonchudas, assim como suas bochechas gordinhas que contrastavam com a falta dos dentinhos da frente e os cabelinhos num claro de castanho; parecia um anjo. Logo que conseguiu abrir a porta, Hayley invadiu o apartamento feito um furacão, largando a mochila de qualquer jeito no chão e gritando a plenos pulmões pelo nome de , que permaneceu parado e sem reação ao sentir a garotinha grudar em suas pernas feito um filhote de coala. , ainda na porta e totalmente atrapalhada com a pizza, suas bolsas do trabalho e um refrigerante grande quase indo de encontro ao chão, o encarou e deu um sorriso sem jeito, como se pedisse desculpas pela atitude agitada da filha. , no entanto, pareceu acordar naquele momento, logo pegando a garotinha no colo e erguendo-a o mais alto que conseguiu, mostrando que não estava incomodado — apenas surpreso. Hayley gargalhou alto, alegre, e esticou os braços em direção ao rosto de , como se tentasse pegá-lo entre os dedos pequenos e fofinhos.
— Oi, pestinha. — murmurou, trazendo-a de volta para seu peito e aconchegando-a ali com carinho, em um abraço tão paternal que sentiu-se emocionar. — Como foi na escola hoje?
— Foi legal. — Hayley deu de ombros e jogou-se contra outra vez, mas, agora, calminha. — Fiz um desenho muuuuuito legal. — ela completou, apoiando a cabeça no ombro de . — Quer ver?
— Claro que quero, eu amo seus desenhos. — respondeu e colocou-a no chão. Hayley sorriu banguela para ele e saiu correndo em direção à sua mochila em seguida, e só então se aproximou, já de mãos vazias.
— Desculpe. — murmurou enquanto selava os lábios aos de . — Ela está um pouco agitada hoje, não sei se foi uma boa ideia trazê-la.
— Ei, por que está se desculpando? — a encarou. — Hayley é uma criança, é claro que está agitada. Tudo bem. Como você está?
— Bem. Cansada, mas bem. — o abraçou de lado e enterrando o rosto em seu pescoço, inspirando o cheiro que tanto adorava e a acalmava. — E você?
— Melhor agora com vocês aqui. — sorriu. — Vão dormir comigo, certo?
— Só se não for atrapalhar…
— Ei, . — ergueu o rosto da mulher delicadamente com uma das mãos. — Vocês nunca me atrapalham, ok? Estou feliz por terem vindo. É bom que posso conhecer melhor a Hayley, podemos conversar e ver filmes, essas coisas.
Antes que pudesse responder, sua filha veio saltitando em direção a .
— Olha, olha! — a garotinha exclamou feliz, balançando a folha cheia de rabiscos coloridos para .
— Uau! — respondeu. — Que bonito, Hays! Você é muito talentosa.
— Obrigada! — Hayley respondeu com as bochechinhas coradas e levando um dos dedos à boca, sinal de que estava nervosa e envergonhada. riu e se abaixou em frente a menina, beijando-lhe a bochecha com carinho e cuidado.
— Não precisa agradecer, pestinha, seus desenhos sempre ficam muuuuuito bonitos.
— Ok, ok, agora vamos comer. — atraiu a atenção dos dois. — A pizza vai esfriar!

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O bombardeio veio de forma surpreendente. Ainda era madrugada e grande parte dos soldados dormia em um sono leve; mesmo que ali não fosse o lugar propício ao sono. Os responsáveis pela vigília daquela noite não tiveram tempo de alertar os companheiros o que estava acontecendo; a maioria, inclusive, jazia jogada no chão com suas armas em punho e um buraco no meio da testa que jorrava sangue lentamente, espalhando pelo chão lamacento e misturando-se à sujeira como se não fossem nada além de insetos esquecidos pelos arredores do Afeganistão.
A primeira bomba explodiu sobre o esconderijo e fez com que pulasse da cama feita de mato e bambu, caindo diretamente em uma poça funda de água e lama. Rapidamente, visando proteger-se do ataque, embolou-se no próprio corpo, caindo quase em posição fetal e segurando a nuca com força, protegendo as laterais com os braços.
O coração batia forte, os olhos não conseguiam ver nem reconhecer nada ao redor, os pensamentos estavam acelerados e a garganta seca. Como trilha sonora, mais bombas explodiam e o som ensurdecedor misturava-se aos gritos e pedidos de socorro de seus amigos; e ele continuou ali, sob a lama, tentando situar-se do que estava acontecendo, tentando buscar no fundo da memória qualquer coisa que pudesse fazê-lo consertar o erro de tê-los levado até ali, algo que pudesse fazê-lo virar o jogo e mostrar-se um guia capaz de fazer seu trabalho, um soldado real e verdadeiro capaz de agir sob pressão. Contudo, ao ouvir mais gritos e ter certeza que perderia ao menos metade de seus homens, não conseguiu fazer nada — sequer mover um músculo. Precisava fazer alguma coisa, sabia disso, mas estava paralisado. Pela primeira vez em tantos meses imerso naquela base, estava paralisado. O estresse jazia em suas veias, tomando-o pouco a pouco, o medo voltava a existir nas camadas mais profundas de suas entranhas e fazia-o perder o controle de si mesmo, de suas ideias, seus pensamentos, suas táticas sempre tão invasivas e certeiras; seu medo estava retomando e, consigo, trazendo a hesitação e paralisia que todos os soldados recrutados sempre falavam e ele ria, achando que jamais aconteceria consigo — logo ele, medalhista, recordista, fuzileiro, soldado, sargento.
De maneira inédita, as lágrimas tomaram seus olhos e transbordaram de uma só vez, trazendo-lhe a sensação de perda, de medo, de pavor, de desespero. As lágrimas escorreram por seu rosto machucado e marcado, misturaram-se ao sangue seco, à sujeira e à lama, e morreram nos lábios rachados e secos, manchados de preto e de barro, lembrando-o que não comia nem bebia água corretamente há dias, assim como sequer lembrava-se de como era um banho decente, sentir-se limpo e como um ser humano digno da vida.
O som e o cheiro da morte faziam o favor de lembrá-lo de que ainda estava em guerra — e não somente contra o Afeganistão, mas também contra si mesmo, contra seu próprio país que o havia abandonado, contra sua mente perturbada. Não sabia o que fazer, para onde ir, quem chamar, quem proteger. Estava tonto, perdido e sob um ataque surpresa que deveria ter previsto ou, ao menos, cogitado. Era seu dever, seu trabalho; e agora estava ali, jogado às traças, à beira da morte, vendo seus companheiros explodirem e acabando destroçados, como se fossem míseros pedaços de carniça. Havia falhado com seus soldados, com seu país, consigo mesmo. Fitou o caos à sua frente e chorou mais, sentindo o soluço vir do fundo de sua garganta com força, quase sufocando-o. Ainda assim, precisava agir, não podia deixar que aquilo chegasse à base oficial; não podia permitir que o fedor da morte e do fracasso servisse de rastro para os inimigos e seus superiores, embora não soubesse como disfarçá-lo. Não tinha como tirar a inhaca de si mesmo.
Àquela altura, paralisado e banhado de lama e imundices, cheirava à falha.

Os fogos de artifício soaram de repente, sem nenhum motivo especial. Ainda assim, foram o suficiente para que saltasse da cama rapidamente, indo de encontro ao chão com os braços ao redor da cabeça e o corpo encolhido em posição fetal, protegendo-se de um possível ataque. A movimentação fez com que , que estava ao seu lado, acordasse sem entender o que estava acontecendo. Antes que pudesse fazer alguma coisa, agiu rapidamente e, zonzo, empunhou uma pistola que ficava escondida sob seu colchão e ergueu-a em direção à porta, do outro lado do cômodo. Sua respiração era ofegante e o corpo estava totalmente suado, a ponto de pingar e fazer com que as roupas grudassem ao corpo forte. Seus olhos estavam arregalados e as pupilas tão dilatadas que parecia estar sob efeito de drogas. As mãos trêmulas sequer conseguiam manter a arma entre elas de maneira firme, assim como os olhos não eram capazes de enxergar o que estava acontecendo ao redor devido a quantidade exorbitante de lágrimas que os tomava. A cada piscada que dava, uma enxurrada delas caía. Grossas, intensas, dolorosas e marcantes, morrendo sobre os lábios agora secos de pavor.
… — sussurrou, levantando-se com pressa e tocando-o no ombro. — Você está em casa, meu amor. Abaixe a arma.
, assustado, virou-se em direção à mulher, apontando-a a pistola sem ter noção do estava fazendo — deixando claro que o estresse pós-traumático ainda fazia parte de si, assim como a ansiedade e a depressão, que já perturbavam-no o suficiente.
— Sou eu, a . — a mulher insistiu, tentando não temer a arma carregada e apontada para seu rosto. — Por favor, abaixe a arma.
manteve-se irredutível, encarando-a como se não a reconhecesse, com o peito subindo e descendo tão rápido que beirava ao anormal. Entretanto, ao sentir os dedos suaves e macios de sobre suas mãos trêmulas, soltou a pistola de supetão, deixando-a ir de encontro ao chão em um baque alto. apressou-se em chutar a arma para debaixo da cama e correr em direção a , puxando-o para seus braços e acalentando-o de imediato.
Um urro animalesco e doloroso escapou do fundo da garganta de , fazendo-o ficar mole e fraco. Não demorou para que o ex-soldado caísse de joelhos no chão, levando a secretária consigo. , porém, não se importou com nada, apenas prendeu-o em seu próprio peito, permitindo que ele a apertasse e chorasse o quanto precisasse.
soluçava e balbuciava coisas sem sentido, ao mesmo tempo que pedia perdão por tudo o que havia causado — e apenas o acarinhava com amor, deixando claro que não havia com o que se preocupar, embora soubesse perfeitamente o que estava acontecendo.
Shh, está tudo bem. — ela sussurrou contra o ouvido de . — Eu estou aqui. Você vai ficar bem.
— Eu… eu… — murmurou, engolindo a seco. — Perdão… Por favor, me perdoa. — pediu em desespero. — Eu não queria que nada disso acontecesse… Não queria ter perdido a tropa… Eu não fui capaz de traçar uma rota mais responsável… Eu falhei. Perdão, por favor, eu não queria falhar…
... — ergueu o rosto banhado de suor e lágrimas. — Você está em casa. Nos Estados Unidos. Comigo, , e minha filha, a Hayley. Você não está no Afeganistão. Você não precisou traçar rota alguma. A guerra acabou, meu amor.
… — sussurrou. — O que… O que eu fiz? O que estou fazendo?
— Foi um pesadelo. — murmurou. — Está tudo bem agora.
não respondeu, apenas engoliu a seco e sentou-se por completo no chão, olhando o caos que havia instaurado. A arma jogada ao longe ainda era visível e, ao enxergá-la, sentiu os olhos arderem novamente. Sentia-se um fraco, um homem fracassado, perdido e sem rumo para o qual seguir. Mesmo com uma mulher incrível ao seu lado, o tratamento e um amigo como Carl, ele continuava ali, em seu próprio limbo, afundado na lama afegã, como se não tivesse salvação, como se merecesse afundar e afundar e afundar e morrer afogado na própria miséria e solidão, como se não merecesse sequer a chance de tentar superar tudo aquilo e ser feliz. E parando para pensar, não merecia. Havia tirado tantas vidas ao longo dos anos como soldado, perdera tantos companheiros, fizera tantas táticas e estratégias para continuar servindo ao governo imundo e a ideia de que a guerra iria trazer uma espécie de paz… Era um monstro, um animal da pior espécie, um selvagem, sem educação, sem coração; era um homem vazio e imerso no próprio rancor.
— Não faça isso. — sussurrou. — Não deixe os pensamentos ruins vencerem. Você é mais do que isso.
… Por favor, vá embora. — pediu, baixo e rouco, sem coragem de olhá-la nos olhos. — Você não merece alguém como eu, a Hayley não merece. Eu sou só isso, um punhado de miséria e solidão, com o fracasso escorrendo pelos poros… Você não tem que passar por isso, não depois de tudo o que viveu. Você não merece outro homem ruim.
— Você não é um homem ruim, tampouco como o outro. Você merece ter tudo o que almeja, . Merece ter a mim, a Hayley, o Carl e a família dele. — engatinhou até ele, sentando-se ao seu lado. — Você merece coisas boas e nós estamos dispostos a te ajudar a conseguir e superar tudo o que tanto lhe atormenta. Acredite em mim, por favor, não desista agora, não me tire de sua vida justo no momento mais importante dela, quando tudo está caminhando para o melhor lugar possível.
— Eu não mereço. — insistiu, permitindo-se chorar outra vez e deixando à mostra toda sua fraqueza, tão vulnerável quanto era possível. — Eu nunca vou ter algo bom depois de tudo que fiz. Não mereço estar aqui, você não precisa acompanhar minha ruína. Você não merece a dúvida, . — encarou-a nos olhos. — Não merece viver em prol do meu desespero, sem saber se um dia chegará aqui me encontrará vivo ou não. Sinto coisas incríveis por você, mas não posso ser ainda mais egoísta em forçá-la a continuar comigo.
— Estou aqui porque te amo, . — confessou de uma só vez. — Não me importo com seus problemas e estou disposta a ajudá-lo sempre que for preciso. Vou fazer o que estiver ao meu alcance para que você melhore e supere seus medos. Você está doente, e tudo bem; não precisa ficar sozinho só por isso. Sei que só o meu amor e o de Hayley não irá curá-lo; mas sei que podemos ajudá-lo. Mesmo que você não se cure, nós estaremos aqui. Não vamos a lugar algum sem você.
Emocionado, tocado e desesperado, voltou a deitar a cabeça no peito de , pondo-se a chorar como jamais havia feito. Seu coração jazia apertado e o corpo trêmulo, mas, no fundo, estava começando a se aliviar. Apesar de toda a confusão que havia causado, de toda a complicação que era viver consigo, continuava ali, firme e ainda era capaz amá-lo.
— Mamãe… — a voz assustada e baixinha de Hayley ecoou pelo local, fazendo-os levantar a cabeça rapidamente, encarando a menininha que coçava os olhinhos e segurava um ursinho de pelúcia com força. — Por que o panda ‘tá chorando?
tentou se controlar, mas, ao ouvir o apelido carinhoso de Hayley, não conseguiu. Continuou a chorar, porque era tudo o que conseguia fazer diante daquela situação tão perturbadora e traumática — não queria que Hayley presenciasse algo do tipo; ela era apenas uma criança.
Nenhum dos dois adultos teve tempo de fazer alguma coisa, a garotinha já caminhava em direção a eles. Ao se aproximar, fitou com atenção, mesmo que não entendesse o que estava acontecendo. continuou em silêncio, tentando buscar uma forma de sair daquela saia justa e fazer com que a garotinha voltasse a dormir. Hayley, no entanto, apenas sentou-se de frente para e lhe deu um sorriso banguela fraquinho, sem jeito, como se quisesse consolá-lo mesmo que não entendesse absolutamente nada do que estava acontecendo.
— Sempre que eu sinto dor e choro assim — Hayley começou a falar, mexendo na orelha de seu ursinho —, mamãe diz que preciso respirar devagar e abraçar o peludinho que, aí, vai passar. — finalizou embolando-se nas palavras, mas sendo clara. — Toma, panda. — estendeu o ursinho em direção a . — Abraça o peludinho. Você vai ficar bom.
E a fala da pequena foi a gota d’água para , que não segurou as próprias lágrimas e puxou a filha para seu colo, abraçando-a com cuidado e carinho. Ao seu lado, apenas soluçava abraçado ao ursinho da garotinha, fazendo o possível para não fitar a cena ao seu lado. Embora seu coração doesse como o inferno, sabendo que a depressão já fazia parte do seu ser e corria em suas veias como um sangue envenenado, sentiu-se amado. Pela primeira vez desde que havia retornado do Afeganistão, sentiu-se acolhido, amado e merecedor daquilo. A inocência e pureza de Hayley foram capazes de mostrá-lo de que ele estava ali, ainda existia e precisava lutar para que continuasse a viver, para que pudesse vê-la crescer ao lado de . Ele era capaz. Era merecedor. Ele podia e deveria continuar vivendo.
Graças à uma criança, a qual ele já amava com todos os cacos de seu coração quebrado, notou que ainda valia a pena tentar e lutar — ainda valia a pena viver.

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Quando acordou, o sol já estava alto no céu e um calor agradável invadia o apartamento. Seu corpo ainda estava tenso e a cabeça parecia que ia explodir, lembrando-o claramente do porquê daquelas sensações tão incômodas. Apesar da paz momentânea que e Hayley traziam para ele, ainda se sentia culpado e triste pela cena que havia protagonizado durante a madrugada. O autojulgamento era automático, não conseguia evitar. A autopiedade também. E o medo. O desespero. Seus pensamentos estavam a mil e ele sequer havia aberto os olhos direito ainda.
Um suspiro fraco lhe escapou e finalmente jogou as cobertas para o lado, levantando-se devagar. Crises tão intensas como aquela deixavam-no zonzo durante horas, como se tivesse passado toda a noite zoneando e usando todo tipo de entorpecente, resultando em uma ressaca desastrosa — ressaca moral, no caso, que o deixava envergonhado.
Estava próximo à cozinha quando um burburinho e risadinhas baixas invadiram sua audição, lembrando-o que, além de tudo, Hayley ainda estava ali e o havia visto numa situação tão humilhante. Não que ela fosse entender naquele primeiro momento, não iria, era apenas uma criança. Mas, ainda assim, estava tão retraído e envergonhado que não sabia como olharia para a garotinha e .
— Ah, olha ele aí! — a voz de Carl o surpreendeu ao tomar o ambiente; pensou que estava sozinha com Hayley preparando o café.
— Bom dia…? — murmurou confuso, parando ao lado do balcão da cozinha e apoiando-se ali de braços cruzados. — O que faz aqui a essa hora, Carl? Se perdeu pela cidade de novo, é?
O amigo soltou uma risada fraca e deu de ombros, respondendo em seguida:
— Vim ver como você está.
— Eu me dei a liberdade de ligar para ele, . — murmurou de forma doce e compreensiva, aproximando-se do companheiro e selando seus lábios num beijo demorado e cuidadoso. — Acho que você precisa conversar com alguém que te entenda melhor do que eu, pelo menos hoje.
… — tentou argumentar, mas os lábios da mulher grudaram aos seus outra vez e ainda com muito carinho e doçura.
— Eu e Hayley vamos fazer um piquenique no parque. Quando vocês terminarem de conversar, estaremos lá te esperando. Não é, filha? — sorriu abertamente para a garotinha que saltitava ao redor de Carl.
— Sim, mamãe! — a menina exclamou sem sequer prestar atenção com o que concordava e só então notou ali. Com um sorriso bonito e brilhante na boquinha, correu em direção ao ex-soldado, abraçando-o pelas pernas com vontade. — Bom dia, panda! Você vai encontrar a gente, não vai?
— Claro que vou, princesa. — respondeu soltando um suspiro fraco e pegando a garotinha no colo com maestria. — Só espero que você não coma todos os sanduíches antes de eu chegar…
— Prometo que vou guardar um pra você. — Hayley sorriu e beijou o rosto de com vontade. — Você ficou bom?
— Claro que fiquei, não tinha como não ficar depois dos cuidados do peludinho. — respondeu com leveza, beijando a testa da garotinha que riu alto e se derreteu, enterrando o rostinho em seu peito.
— Eu disse, o peludinho cura todooos os machucados!
— Ele cura, sim. Obrigado, princesa. Agora vai com a mamãe, preciso expulsar o tio Carl daqui para poder ir para o piquenique com vocês.
— ‘Tá bom! — Hayley respondeu e correu em direção à mãe assim que foi colocada no chão. — Tchau, tio Carl!
— Te vejo mais tarde. — murmurou baixinho, apenas para . — Não se reprima nem se esconda, tudo bem? Estamos aqui para você.
apenas assentiu em silêncio, permitindo que o beijasse outra vez. Embora não achasse necessário conversar com Carl naquele momento, não poderia negar que admirava o que estava fazendo. No fundo, ela sabia que ele tentaria guardar e esconder todas as emoções conturbadas que carregava dentro de si, e o único, além de Marcel, é claro, que poderia ajudá-lo era Carl. Seu melhor amigo o entendia em proporções incríveis, porque, bem; ele sofria das mesmas inseguranças e dos mesmos medos. A diferença entre eles era que Carl já fazia acompanhamento antes de embarcar para o Afeganistão e, mesmo que possuísse uma parcela grande de traumas também, ele não costumava guardar os sentimentos ruins apenas para si mesmo. E ele tinha Quinn e os filhos ao seu lado, não era fácil, claro que não; mas ajudava e fazia-o manter-se são na maior parte do tempo.
, por outro lado, retornara sozinho e com a cabeça tão bagunçada que não conseguia pôr os fatos em ordem. A solidão simplesmente o engoliu e destruiu em níveis inimagináveis e incuráveis; sentia-se sem conserto, um caso perdido. Contudo, ao encontrar e Hayley e retomar o contato com Carl, esse pensamento estava começando a ser silenciado, mesmo que não completamente e todos os dias; mas estava começando, em passos curtos e lentos. A problemática estava nas recaídas; os altos e baixos das doenças, as crises e a confusão que muitas vezes os remédios causavam. , às vezes, não conseguia distinguir realidade de imaginação; sonhos de lembranças; e assim se seguia até que conseguisse clarear a mente e pô-la em ordem o suficiente para ao menos seguir o dia. Era um processo lento, tão, tão demorado que o fazia querer desistir todos os dias quando encontrava-se sozinho. Não podia, sabia que não, porém, os pensamentos vinham com tanta força que nem sempre ele era capaz de controlar. Em momentos como aquele, costumava enfiar-se debaixo do chuveiro e ficar por longos minutos, quiçá horas, cogitando tentar alguma besteira ou não. E quando negava-se a ouvir as vozes e recair de fato, acabava por machucar-se esmurrando as paredes molhadas com as mãos, pés ou até mesmo com a cabeça, o que o tonteava o suficiente para focar-se na dor física e não na emocional e psicológica.
— A estava bem preocupada com você — Carl comentou com cautela, enchendo uma xícara com café fresco. — Quer falar sobre o que aconteceu?
— Não tem muito o que falar. — deu de ombros e sentou em uma das cadeiras. — Surtei, cara. Tive um pesadelo horrível com o dia que perdi a tropa e…
— Você não perdeu a tropa, — Carl o cortou de uma vez. — Nós não analisamos o território direito, ficamos confiantes demais. Sabe o que a guerra faz com nossa mente; ficamos cegos pelo poder que vamos conseguindo ao longo dela. Isso nos enlouquece. Não tinha como ninguém prever o massacre que aconteceu.
— Eu deveria ter previsto, Carl. — passou a mão pelo rosto. — Era o meu trabalho. A partir dali tudo desandou. A missão se transformou no puro caos, eu me perdi, me rendi pro desespero e…
— E agora está fazendo a mesma coisa por causa de algo que não tem controle. Você tentou falar com o Marcel?
— Não… Nem quero tentar, tenho consulta na segunda. Aumentei as visitas.
Carl assentiu com pesar e fitou sua xícara; não tinha muito o que falar. Só o fato de estar mais aberto e falando claramente sobre o acontecimento já o deixava aliviado. Era sinal de que o amigo estava disposto a tentar melhorar e seguir em frente, mesmo tendo de passar por inúmeros penhascos.
— Só tenha em mente que você não está sozinho, tudo bem? — Carl finalmente ergueu o olhar para o amigo novamente. — me contou como tudo aconteceu e falou sobre a Hayley… Cara, você tem muita sorte por ter uma família dessas. Sei que estou com você há anos, desde que éramos moleques e que minha família é a sua família também, mas com a está tudo diferente, não está? Relacionamentos e amores não curam nada, longe disso, mas nos dão uma força do caralho. Olhe só para você. Essas duas fizeram com que você fosse capaz de enxergar que merece estar aqui e a luta não acabou, e não importa o quão duradoura seja, elas estarão do seu lado e você vai passar por cima disso. Nós vamos.
— Elas são maravilhosas. — sorriu e seus olhos brilharam como Carl não lembrava de ter visto um dia. — Estou apaixonado, cara.
Carl soltou uma risada alegre e levantou, indo em direção a com determinação. Antes que o amigo tivesse a chance de assimilar o que estava acontecendo e pudesse fugir de seu toque, Carl o abraçou com força, puxando-o para si como não faziam há longos meses.
— Estou orgulhoso de você, irmão.
soltou uma risada tímida, mas não tentou soltar-se dos braços fortes do amigo; pelo contrário, retribuiu o carinho com toda a vontade e saudade que sentia, deixando que a cabeça caísse sobre o ombro alheio. Seus olhos encheram de lágrimas inevitavelmente, e sabia que Carl estava na mesma situação. Ainda assim, continuaram em silêncio naquele abraço necessário, compartilhando emoções, lembranças, medos e palavras secretas que jamais seriam o suficiente para descrever a relação e o amor que possuíam.
Carl foi o primeiro a sair do abraço, fungando e fingindo que não havia derramado algumas poucas lágrimas, assim como fingiu não ter sentido algo molhando sua camiseta naqueles segundos de contato — não estava muito diferente do amigo, no fim das contas.
— Não deixe a escapar, cara.
— Não vou deixar, eu prometo.
— Eu sei. Agora vai se arrumar, você tem um piquenique e tanto para ir.

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Ao chegar no parque cercado por árvores, onde as crianças corriam e gritavam umas com as outras, não demorou a encontrar sentada em uma toalha grande estendida na grama. Ela sorria enquanto observava a filha correr de um lado para o outro e usava um par de óculos escuros para proteger os olhos dos raios fortes de sol. Repentinamente acanhado e sem jeito, como um adolescente de 15 anos, caminhou até ela com as mãos enfiadas nos bolsos da bermuda jeans que vestia.
— Ei. — murmurou, sentando-se ao lado da mulher que abriu mais seu sorriso ao vê-lo ali. — Demorei muito?
— Não o suficiente para Hayley acabar com os sanduíches. — respondeu risonha, curvando-se o suficiente para alcançar a boca de . O beijo foi rápido, mas o suficiente para matarem a saudade do gosto um do outro.
— Obrigado. — sussurrou contra os lábios de , olhando-a nos olhos. — Por tudo, . Por ter ficado ao meu lado ontem, por não ter me julgado, por ter chamado o Carl… Foi importante para mim e me trouxe um alívio que jamais conseguirei pôr em palavras.
manteve seu sorriso doce e levou uma das mãos para o rosto de , acariciando-o com todo carinho que sentia.
— Fico feliz por ter ajudado e por te ver bem agora. — respondeu, por fim. — Você não precisa agradecer, meu bem. Fiz tudo o que fiz porque me importo contigo, porque sei que faria o mesmo por mim ou pelo Carl. Você é uma pessoa incrível, , eu queria que conseguisse enxergar isso com mais frequência. Queria que conseguisse se enxergar da forma que eu e Hayley o enxergamos. Como Carl enxerga.
— Eu vou me esforçar para isso, prometo. — falou determinado. — Sei que o caminho vai ser longo e que vou cair muito ao decorrer das tentativas, mas estou disposto a tentar melhorar e ficar estável. Quero deixar meu passado para trás e ser feliz com você e a Hayley. Quero conseguir ver meu melhor amigo com mais frequência sem me sentir um peso para todos ao redor. Quero viver, quero ter vocês comigo pelo resto dos meus dias. Talvez eu não mereça tanto, mas, já que os tenho do meu lado, não vou perdê-los.
limitou-se a apenas juntar suas bocas outra vez. Estava emocionada demais para conseguir falar; era a primeira vez que alguém reconhecia seus esforços dentro de um (quase) relacionamento, e a primeira vez que se sentia tão nas nuvens por alguém — e que os sentimentos eram verdadeiramente recíprocos. Era inevitável acabar por fazer comparações às relações passadas, mesmo que não tivessem sido muitas, sobretudo acerca do pai de Hayley, que a deixara sem nenhuma explicação plausível, simplesmente por não estar pronto para ser pai — assim como ela não estava para ser mãe. Foram tempos difíceis e onde encontrou-se no mesmo fundo de poço que . Não tivera um trauma tão avassalador quanto ele, mas, ainda assim, o término trágico e repentino somado à morte da mãe foi o suficiente para fazê-la perder a vontade de seguir em frente e de ter a criança que era gerada em seu ventre. Foram tempos sombrios e difíceis, onde apenas Marcel fora capaz de ajudá-la com carinho, mais como um amigo do que terapeuta. Desde então, não conseguia virar as costas para ninguém. Ainda tinha seus próprios dias difíceis e dolorosos, onde se afundava numa fossa profunda de lembranças e medos alucinantes que faziam-na chorar por horas à fio. Entretanto, bastava olhar para Hayley e seu sorrisinho banguela para que se sentisse motivada para seguir em frente e tentar fazer o bem para os outros também.
Surpreendeu-se positivamente ao perceber que sua relação com estava caminhando para frente e de forma saudável, além do companheirismo fiel que haviam construído após o primeiro encontro tão intenso e revelador para ambos. conseguia lembrar-se claramente dos momentos após os beijos intensos e transa tão satisfatória; a encarou nos olhos e pediu para ouvir sua história nos mínimos detalhes. E ela, feliz com a curiosidade genuína e o cuidado que o homem exalava consigo, contou. Falou sobre como o pai de Hayley havia sido um crápula, falou sobre sua mãe, falou sobre seus medos, seus pensamentos obscuros em relação à gravidez, falou sobre sua indecisão sobre cursos de graduação, sua vontade de ter um restaurante e tornar-se chef como a mãe, falou sobre suas manias esquisitas e mais centenas de outras coisas que fez questão de ouvir atentamente, encarando-a nos olhos com intensidade e sorrindo a todo tempo, como se estivesse ouvindo a melhor de todas as histórias existentes no universo.
Desde aquela noite que fora mágica para ambos, conversaram durante todos os outros dias, se conheceram e tiveram encontros rápidos fora do consultório. Quando deu por si, estava estranhamente apegada, apaixonada e encantada. tinha uma história de vida pesada, era uma pessoa com sentimentos e emoções conflituosos, mas, ainda assim, era tão encantador, educado e apaixonante que fora impossível não cair de amores pelo ex-soldado. Sua aura até então fechada e tempestuosa não foi o suficiente para mantê-la longe ou com muitas dúvidas; pelo contrário, só quis aproximar-se mais. Mesmo que o relacionamento não desse certo de forma amorosa, o queria por perto como um amigo, uma pessoa querida, tal qual ele havia se tornado ao passar dos dias.
era alguém que valia a pena e bastava olhar em seus olhos para perceber.
— Você me deixa tentar ser alguém melhor para continuar ao seu lado? — perguntou para , encarando-a nos olhos. — Você me deixa tentar te fazer feliz, cuidar de você, ficar do seu lado, tratar Hayley como se fosse minha própria filha e mantê-la protegida? Você me deixa te ajudar com suas questões e cuidar do seu coração como cuida do meu? Você aceita ficar do meu lado mesmo que eu seja uma completa bagunça?
— Você já sabe a resposta para todas essas perguntas, . — respondeu com firmeza. — Ainda estou aqui, não estou? Eu não vou a lugar nenhum sem você.
Antes que pudesse responder, um peso extra caiu sobre seu corpo, fazendo-o desequilibrar e cair para o lado. Uma risada estridente invadiu seus ouvidos e, automaticamente, seu coração aqueceu. Sorrindo, ainda emocionado com o teor da conversa que tinha com , abraçou o corpo miúdo de Hayley com cuidado e carinho, mantendo-a presa em seu peito.
— O panda chegou! — a garotinha exclamou, erguendo o rostinho para fitar o padrasto abaixo de si. — Eu deixei sanduíche pra você!
— Obrigado, meu amor. — sorriu abertamente e sentou-se novamente, ajustando Hayley sobre suas pernas. — Está se divertindo?
Siiiiim! — a pequena gritou. — Só estava te esperando! Vamos brincar, vamooooos!
— Pode ser daqui a pouco? Seu pandinha está cansado. — disse baixinho, arrumando os cabelinhos bagunçados de Hayley.
— Vem, bebê, deixa o descansar um pouquinho, a mamãe brinca com você. — tomou a frente da conversa, percebendo que ainda estava emocionalmente abalado para dispor-se a correr de um lado para o outro com tantas crianças ao redor.
Hayley deixou um beijo estalado na bochecha do mais velho e levantou-se pronta para correr ao lado da mãe. observou a cena e sorriu agradecido, recebendo de bom grado o selar intenso e significativo que deixou em sua boca. Por um segundo, perguntou-se se a felicidade era aquilo: estar em um parque a céu aberto, cercado por árvores e crianças, uma toalha de piquenique sob o corpo e frutas ao redor. Ele podia não ter certeza, mas, algo no fundo de seu peito lhe dizia que sim.
Sob o sol quente do final da manhã, percebeu que estar sozinho não era uma fuga ou forma de proteção; e sim algo que o envenenava cada diz mais, forçando-o a achar que aquilo era o que merecia, como se a solidão lhe fosse a única opção. Não era; ele conseguia ver agora. A solidão era a forma que sua mente encontrava de afastá-lo de coisas boas e, indo contra ela, existia e Hayley, que lhe gritavam e acenavam a cada segundo, sempre sorrindo e brincando, mostrando-o que era possível ser feliz mesmo depois de viver um pesadelo intenso, porque, no fim das contas, pesadelos eram apenas sonhos ruins — e sonhos ruins sempre acabavam.
Era hora de viver a felicidade que existia no mundo real — e a dele estava bem diante de seus olhos, correndo ao ar livre e sorrindo em sua direção.




Fim.



Nota da autora: Eu espero que tenham gostado! Foi uma fiction difícil por causa do conteúdo emocional e psicologicamente forte, mas foi uma delícia escrevê-la e tem muito carinho aqui. Tenham em mente que quem sofre de depressão e ansiedade (ou quaisquer outras doenças psicológicas), tem picos de altos e baixos e isso é bem complicado de lidar, mas precisamos ser pacientes e pensar positivo por mais difícil que seja, além, é claro, de buscar por ajuda. Sendo assim, se alguém aqui passa pelo mesmo que o nosso protagonista: por favor, busque ajuda. Vai fazer bem, vai ajudar a melhorar e, aos poucos, a gente consegue passar por cima daquilo que tanto nos incomoda. Nunca vai sumir completamente, terão dias difíceis e outros muitíssimos tranquilos, mas a vozinha sempre estará lá, então, com ajuda, a gente consegue lidar com essa vozinha até que ela suma por tempo suficiente para percebermos que ela não é verdadeira. Cuidem-se; física, emocional e psicologicamente. Sua vida importa.
No mais, lembrem-se de me contar o que acharam aqui embaixo nos comentários, ficarei muito feliz em ler e responder tudo. Até a próxima!




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    Nota da beta: Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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