Finalizada em: 23/06/2018

Capítulo Único

ATENÇÃO - AVISO DE GATILHO: Essa fanfic aborda assuntos como: Bullying, gordofobia, ansiedade, bulimia, anorexia e tentativa de suicídio, algumas cenas podem causar gatilho em quem é sensível a algum desses temas, se você não se sente confortável em ler sobre algum dos temas citados NÃO PROSSIGA!

O despertador toca e rapidamente desligo aquele barulho irritante — não é como se ele tivesse adiantado de alguma coisa, já que não consegui pregar os olhos à noite inteira. Suspiro e me sento na cama, espreguiçando-me como de costume, pego o uniforme da escola e arrasto o corpo até o banheiro no final do corredor.
Encaro o objeto metálico no chão e suspiro mais uma vez. Lá estava ela, a minha melhor amiga e ao mesmo tempo minha maior inimiga, a balança. Retiro toda a minha roupa e acessórios — porque, afinal, cada grama conta — e subo na superfície gélida. Os números começam a correr e aumentar cada vez mais e mais, até parar em 82,5KG, o que, na minha língua, quer dizer “você precisa mexer essa bunda enorme e emagrecer, sua gorda!”
Entro embaixo do chuveiro e abro-o bem pouco para fazer a água ficar bastante quente, li em algum lugar que banho quente queima mais caloria que uma caminhada. A água fervente deixa minha pele avermelhada, mas não ligo porque já estou acostumada. Demoro mais do que o recomendado para me arrumar, pois assim poderia dar uma desculpa à minha mãe para não tomar café da manhã, então apenas bebo dois copos grandes de água gelada — li em um site que isso ajuda a queimar calorias, jogo a mochila sobre o ombro e dou tchau para minha mãe.
Coloco meus fones de ouvido, onde The Maine tocava no último volume, e começo a caminhar em direção ao ponto de ônibus. Tem um ponto a cinco minutos de distância da minha casa, porém gosto de ir até o ponto a quatro ruas depois da minha, que leva aproximadamente vinte minutos.
Quando estou chegando próximo ao ponto, o ônibus passa ao meu lado e para no ponto, então tenho que correr para alcança-lo, o que quase não dá certo, pois minhas pernas já estavam cansadas devido a caminhada. Entro no ônibus e vou para o fundo, está um pouco cheio e não há lugar para sentar, então apenas me apoio em uma das barras de metal. Devido à correria, tive que desplugar o fone para não perder ou acabar me enrolando, quando estou tirando-o do bolso, escuto uma voz um pouco mais atrás dizer:
— Viu aquela gorda correndo atrás do ônibus? Parecia um terremoto, senti o chão tremer!
— Parecia o Majin Boo correndo! — um garoto responde, fazendo os outros rirem.
— Eu vou te comer, eu vou te comer! — outro diz, fazendo voz aguda e arrancando gargalhadas dos amigos.
Sinto as lágrimas se acumularem nos cantos dos meus olhos e abaixo a cabeça, colocando os fones de novo e me desligando de qualquer som exterior à voz de John O'Callaghan. A garota no banco onde eu me apoiava me olha com pena e sorri, o que só faz eu me sentir ainda pior, porém retribuo o sorriso.
Chego na escola alguns minutos antes do sinal bater e encontro , minha melhor amiga, no corredor, rodeada de garotos. está sempre cercada de pessoas, não importa o lugar em que esteja, ela é extrovertida, divertida e carismática, além de ter um corpo de modelo da Victoria's Secrets que qualquer garota gostaria de ter, e por isso faz sucesso com os garotos. Enquanto isso, eu sou totalmente o contrário, sou o que chamam de “bicho do mato”, não costumo falar com quem não fala comigo, não é por grosseria ou falta de educação, eu só não sei como iniciar ou manter uma conversa com qualquer pessoa que não faça parte do meu convívio social, e por isso só tenho uma amiga. Às vezes fico pensando no quanto somos diferentes, e se nossos nomes não fossem próximos na lista de chamada e a professora não tivesse colocado nós duas sentadas juntas no Jardim de Infância, provavelmente nunca teríamos nem trocado uma palavra uma com a outra.
! — ao me ver e corre até mim para me abraçar.
Esse é um apelido que só me chama. Quando nos conhecemos, ela não conseguia pronunciar direito, então disse que a partir daquele dia me chamaria de , e gostou tanto continua fazendo isso até hoje, chegando ao ponto de brigar com qualquer um que ouse usar o seu apelido exclusivo. Apesar dos pesares, ela é uma boa amiga.
— Por que chegou tarde?
— Perdi a hora — minto.
— Você precisa parar de ficar assistindo Grey's Anatomy até tarde, — ela me repreende. — Vem, vou te apresentar alguns meninos. — Ela agarra a minha mão e me guia até o meio do amontoado de garotos. — Meninos, essa é a , ela é BV, então algum de vocês pode ser o sortudo que vai beijar essa boquinha pela primeira vez!
Alguns fazem caretas e se afastam, outros fingem nem terem visto a minha presença e conversam entre si. Sinto meu rosto esquentar e abaixo a cabeça. está sempre gritando aos ventos o fato de eu nunca ter beijado ninguém e me empurrando pra cima de qualquer garoto, eu sei que ela não faz por mal e suas intenções são boas, mas é sempre constrangedor demais para mim.
... — murmuro, puxando sua mão.
— Sabe, você até que é bonitinha de rosto, se fosse um pouquinho mais magra, eu até te pegava — um dos garotos diz.
— Cala a boca, Thiago! — diz, empurrando o garoto. — Você é um escroto! Minha amiga é muita areia pro seu caminhãozinho.
— E bota areia nisso! — um dos meninos diz, fazendo os outros rirem.
Antes que pudesse dizer qualquer coisa e piorar ainda mais a situação, Daniel, nosso inspetor, chega e manda todos os meninos para suas salas, me entrega um amontoado de folhas e diz que o professor do primeiro tempo tinha faltado, mas deixou trabalho para fazer em dupla.
Entramos na sala e eu vou para a minha habitual carteira no canto e começo a fazer o trabalho. Praticamente faço tudo sozinha porque passa a aula inteira conversando com Diego — o qual ela gosta de chamar de “novo peguete” — do outro lado da sala, então, como sempre, tenho que colocar o nome dela mesmo que ela não tenha feito nada.
As aulas passam se arrastando, quase caio no sono na aula de Física e fico rezando para o sinal bater logo e chegar a hora do almoço. Como estudamos em uma escola técnica, também temos aula na parte da tarde, então precisamos almoçar no colégio mesmo.
Pego um prato e peço para a merendeira colocar apenas arroz e couve — Não que eu realmente vá comer alguma coisa, mas preciso pelo menos ter um prato comida para que as pessoas achem que eu comi. Nos sentamos no canto junto com outras garotas da nossa sala e entra na conversa com elas enquanto eu apenas remexo o garfo no prato, sentindo o estômago roncar, porém me negando a colocar a comida na boca.
— Nossa, eu tô tão gorda! — ouço a voz de e levanto o olhar, encontrando-a puxando a pele do braço. — Olha só isso!
Tenho vontade de rir ironicamente. Às vezes eu tenho vontade de estapeá-la quando faz isso, como agora. Ela diz estar gorda e puxa as “pelancas” do braço e aperta os “pneuzinhos” da barriga praticamente inexistentes como se fosse a pior coisa do mundo. Ela precisa inclinar muito o corpo para que as dobras de sua barriga apareçam, enquanto eu tenho as minhas bem aparentes todo o tempo para que todos possam ver e sentir nojo. Se ela é gorda com aquele corpo, então o que eu sou?
Você é uma baleia fracassada, diz a voz em minha mente.
Sinto o estômago embrulhar e o gosto amargo da bile em minha língua, me fazendo querer vomitar. Empurro o prato para longe de mim.
— Não vai comer? — ela pergunta.
— Não tô com fome — sussurro e cubro o rosto.
, isso é por causa do que o Thiago disse? Não liga pra isso, ele é um idiota. — Sua mão alcança a minha sobre a mesa. — Mas é bom você pensar um pouco nisso, porque ele tem um pouco de razão, sabe? Você até pode encontrar alguém que goste de você do jeitinho que é, mas vai demorar bastante. Os garotos não gostam de meninas muito... Fofinhas, pega mal pra eles. É uma idiotice, mas infelizmente é a verdade, você tem um rosto lindo, só precisa se esforçar mais um pouco, fazer uma dieta, entrar numa academia, sei lá.
Tenho vontade de rir, chorar e gritar ao mesmo. Eu já tenho me esforçado desde criança, já fiz todos os tipos de dietas possíveis, já fiz academia, dança, luta e natação, mas nada adianta, eu sempre continuo a mesma gorda fracassada.
— Ei, você sabe que eu tô falando isso pro seu bem, não é? — ela pergunta e eu balanço a cabeça em concordância. — Eu quero ver você feliz, .
Engulo o bolo que se formava na minha garganta e levanto a cabeça, sorrindo para minha melhor amiga. Ela sorri de volta e se levanta, circulando a mesa, e me envolve com seus braços. Não ligo que provavelmente todos estavam olhando para nós porque ela estava me dando exatamente o que eu precisava.

●●●


Durante a aula de Contabilidade, começo a me sentir zonza e meu estômago dói tanto que começa a fazer barulho. Peço à professora para ir ao banheiro e bebo dois copos grandes de água, aproveitando que o local estava vazio para comer a barrinha de cereais que trouxe na mochila, porém logo em seguida coloco tudo para fora. Lavo a boca e olho meu reflexo no espelho, percebendo minha pele pálida, ponho as mãos em forma de concha sob a água corrente da torneira e jogo no rosto, esfregando-o em seguida. Prendo o cabelo em um rabo de cavalo e volto para a sala devagarinho porque ainda me sentia tonta. Não consigo mais prestar atenção na aula porque minha cabeça girava e toda vez que alguém falava alguma coisa, eu só ouvia a voz ao longe, como quando o ouvido fica entupido depois de entrar na piscina.
Eu estava determinada a voltar a pé da escola — o que levaria uns cinquenta minutos de caminhada —, no entanto, me sinto muito fraca e decido pegar o ônibus, saltar no mesmo ponto em que fui e caminhar até minha casa. Não consigo cumprir o mesmo tempo da ida porque não tenho mais o mesmo ritmo e preciso me apoiar nos muros para não cair, mas felizmente chego em casa sã e salva.
Vou direto até a geladeira em busca de água e uma embalagem de plástico endereçado ao meu nome me chama a atenção. Pego o pote e examino seu conteúdo, era um grande pedaço de torta holandesa, minha favorita, que minha mãe havia trazido da festa na empresa. Largo o objeto sobre a mesa, me recusando a encara-lo por nem mais um segundo. Até parece que eu iria comer essa bomba calórica.
COMA!, grita uma voz dentro da minha cabeça.
Pego a garrafa d’água e bebo diretamente do gargalo, tentando me distrair dos meus pensamentos.
COMA!, a voz ecoa mais uma vez em minha mente.
Encaro o pote sobre a mesa e engulo em seco, abraçando o corpo e contraindo o rosto quando sinto uma dor muito forte no estômago.
Eu estou com tanta fome, será que não posso comer só um pedacinho?
Retiro uma colher de dentro da gaveta e estico as mãos até o recipiente, tendo um pouco de dificuldade para mantê-lo na palma devido a tremedeira. Abro a tampa, sentindo o aroma achocolatado invadir minhas narinas, e suspiro. Vai ser só um pedacinho.
Não faça isso!, grita outra voz dentro da minha cabeça, porém já era tarde demais e eu já tinha enfiado uma a colher cheia na boca.
E então enfio outra, e outra, e outra, e outra, ignorando todos os alertas do meu cérebro para que eu parasse, até que em menos de um minuto o pote já está vazio. Olho para a vasilha em minhas mãos e então a culpa cai sobre mim, eu havia perdido o controle de novo.
Viu o que você fez, sua gorda inútil? Não adiantou nada tentar parar de comer porque você sempre será essa gorda comilona e fracassada!, a segunda voz diz.
Sinto o estômago embrulhar e a bile amarga na boca, e não demoro a correr para o banheiro, me ajoelhar no chão, pegar a escova de dente e colocar tudo pra fora.
Sento no chão, ao lado do vaso sanitário, e abraço as pernas contra o peito, deixando as lágrimas escorrerem pelo meu rosto e os soluços tomarem meu corpo. Não sei por quanto tempo fico ali, se foram apenas alguns minutos ou chegou a completar uma hora ou mais, não sei se dormi ou apenas me desliguei do mundo exterior, mas me parece tempo o suficiente até que meu corpo pare de tremer e não tenha mais uma gota de lágrima para chorar.
Apoio as mãos na parede e me levanto com muita dificuldade, meu corpo está fraco e minhas pernas quase cedem, mas consigo me manter em pé. Tiro toda a roupa e vou até a balança, os números começam a subir novamente, parando em 82, 2KG e me fazendo querer gritar.
Trezentos gramas. Todo esse esforço para só perde trezentos gramas. Um dia inteiro sem comer para só perder trezentos gramas.
Você é uma inútil! Nem emagrecer consegue, só sabe comer igual uma porca!, a voz na minha cabeça diz de novo.
Ela tem razão, eu sou uma inútil. Não sirvo nem para tentar emagrecer, então qual é o ponto disso tudo? Por que continuar vivendo? Ninguém vai sentir falta de uma gorda inútil como eu mesmo.
Abro o armário e retiro de lá uma lâmina velha e enferrujada, tenho um pouco de dificuldade de posicioná-la sobre o braço porque minhas mãos tremem e minha visão fica embaçada devido às lágrimas.
NÃO!, uma voz grita na minha cabeça, me assustando e fazendo a lâmina cair da minha mão.
NÃO, NÃO, NÃO, NÃO!
A voz começa a aumentar a cada palavra dita, e então eu a reconheço. É a minha voz.
Todas as vozes dentro da minha cabeça são minhas, de alguma maneira, porém as outras são um tanto diferente, são exigentes e ameaçadoras. Mas essa, essa soa como um grito desesperado, um grito de socorro.
FAÇA! VOCÊ SABE QUE ESSA É A ÚNICA SOLUÇÃO!, a outra voz volta a dizer.
NÃO, NÃO FAÇA ISSO!, rebate a minha voz.
— Vão embora e me deixem em paz! — vocifero, agachada e segurando a cabeça entre as mãos.
Permaneço nessa posição por alguns instantes e as vozes não voltam a dizer mais nada. Suspiro e me levanto, caminhando até a pia para me olhar no espelho, e quando encaro meu reflexo, fico horrorizada.
Meus olhos estão avermelhados, fundos e com bolsas enormes de olheiras, o rosto pálido e manchado pelas lágrimas tem um aspecto doentio, e os cabelos estão completamente desgrenhados.
Toco o meu rosto para ver se o reflexo faria o mesmo, porque não consigo acreditar que aquela pessoa que estou encarando no espelho seja eu. Quem é essa garota? Eu não me reconheço mais.
Apoio as mãos sobre a pia e encaro fixamente os meus olhos opacos no espelho.
O que estou fazendo? Por que estou fazendo isso comigo mesma? Eu realmente considerei tirar a minha vida por causa de um errinho bobo?
Abro a torneira e encho as mãos com a água, jogando-a no rosto em seguida. Começo a esfregar minha pele, para tirar os rastros de lágrimas e me deixar com um ar menos caótico, e sorrio para o meu reflexo. É um sorriso estranho, totalmente falso e mecânico. Eu costumava ter um sorriso bonito, as pessoas me diziam isso, costumava ser feliz, então o que aconteceu? Quando me tornei essa pessoa? Quando foi que me perdi dentro de mim mesma?
Seja sincera com quem você é!, diz a voz em minha cabeça.
Ela tem razão, eu tenho razão. Preciso parar com isso, preciso parar de tentar uma coisa inalcançável, preciso parar de tentar ser alguém que eu não sou, preciso ser sincera com quem eu sou. Preciso de ajuda.

●●●


10 anos depois

Finalmente chegou o dia mais esperado de toda a minha vida. Depois de dez anos de trabalho duro, terapia, duas formações acadêmicas e muita pesquisa, o dia do lançamento do meu livro havia chegado.
Começo a andar de um lado para o outro, esperando me chamarem para o palco. Além do lançamento do livro, eu também faria uma palestra e um jogo de perguntas e respostas, em plena Bienal do Livro. O público estimado é de dez mil pessoas, então estou bastante ansiosa, mas dessa vez é uma ansiedade boa.
Ao meu lado está minha mãe, a pessoa que mais me ajudou durante toda a minha jornada, desde o momento em que eu disse a ela tudo que estava acontecendo comigo no dia em que pensei em me suicidar, ela me abraçou, chorou comigo e disse que iria me apoiar não importa o que acontecesse. Ela é e sempre foi minha verdadeira melhor amiga.
Ela se vira para mim e me abraça, afagando meus cabelos como sempre faz. Me sinto um pouco mais tranquila, porque não há nada mais acolhedor que os braços de minha mãe. Ela se afasta um pouco de mim, segura minhas mãos entre as dela e sorri.
— Ah, minha filha, você passou por tanta coisa pra chegar até aqui, eu estou tão orgulhosa de você. — Ela toca meu rosto e sinto lágrimas nos meus olhos. — Quero que saiba que aconteça o que acontecer, eu sempre, sempre, sempre terei orgulho de você. Você sempre será a minha estrela.
— Obrigada por tudo, eu não seria quem sou hoje e não estaria aqui se não fosse por você — digo em meio as lágrimas.
— Ah, não, não. Nada de lágrimas, hoje eu quero só sorrisos — ela diz e eu sorrio. — Além disso, você não quer borrar a maquiagem, né? Deu um trabalhão!
Emito uma risada e concordo com a cabeça. Meu nome é anunciado e eu lhe dou mais um abraço e um beijo no rosto.
— Vai lá e arrasa! — minha mãe diz, me fazendo gargalhar. — Eu amo você.
— Também amo você.
Me viro e começo a caminhar em direção ao cômodo ao lado, alguém me da um microfone e indica o lugar para onde devo seguir. Quando entro no auditório, todas as pessoas começam a gritar, e eu sorrio.
— Boa tarde! — Um coro de “boa tarde” vem da plateia. — Uau! Realmente tem bastante gente aqui — digo, arrancando uma risada de todos na sala. — Bem, antes de mais nada eu queria agradecer a presença de todos vocês aqui, esse livro é muito importante pra mim, então é muito bom ver essa quantidade de gente interessada em algo que eu escrevi. Eu estou um pouco nervosa, então me desculpem se eu disser algo errado ou tagarelar. — Caminho até o púlpito, onde meu livro estava, passeio a mão pela capa e suspiro. — Eu comecei a escrever “Seja Sincero Com Quem Você É” há dez anos, eu era uma adolescente gorda que não tinha amigos, sofria bullying, tinha crises de ansiedade e estava desenvolvendo transtornos alimentares. Um dia eu não aguentei todo o peso que carregava e cheguei ao ponto de quase tentar me matar, mas antes disso tive um momento de epifania, a minha própria voz gritou dentro de mim que aquilo que eu estava fazendo comigo, aquela tortura, não era certo, não era saudável.
“Eu passava dias sem comer, e vomitava tudo que comia, o máximo que eu ingeria era água. Fazia exercícios sem ter energia alguma e desmaiava na maioria das vezes, eu me pesava o dia inteiro, só para descobrir que estava algumas poucas gramas mais magra, e me torturava, me xingando de todos os nomes possíveis, porque para mim era tudo culpa minha, eu não estava me esforçando o suficiente. E tudo para quê? Para tentar me encaixar em um padrão inalcançável? Para ser aceita pelas pessoas que confundem estética com saúde? Eu não era saudável, mas não por ser gorda e sim porque eu tinha uma mente doente e não me alimentava da forma que deveria. Hoje eu peso 120KG e não tenho vergonha de dizer que sou feliz assim, sou mais saudável do que eu era na adolescência porque parei de me torturar, parei de me restringir, hoje tenho um bom psicológico, me alimento de forma saudável e faço uma bateria de exercícios que meu corpo é capaz de aguentar.”
Pigarreio e bebo um pouco da água porque sinto minha garganta seca e minha voz começa a falha. A plateia permanece em silêncio, vidrada em expectativa do que mais eu iria falar.
— Quando comecei a escrever esse livro, era para ser só um diário, para me lembrar todos os dias de tudo que eu enfrentei e como foi apenas uma fase ruim. Minha mãe me deu a ideia de publicar como livro, e eu gostei da ideia, mas não queria só contar a minha história, eu queria fazer diferença e realmente ajudar as pessoas que passaram pelo mesmo que eu, então além de publicar o livro, eu resolvi fundar uma ONG para ajudar crianças e adolescentes que passam por transtornos alimentares. A Who You Are hoje é um sucesso não só no Brasil, como eu vários outros países pelo mundo, e eu me orgulho muito de tudo que eu construí e todas as pessoas que eu ajudei com essa fundação. Se algum de vocês está passando por qualquer transtorno psicológico ou alimentar, saiba que há sim uma saída e você pode vencer isso se pedir ajuda, pode nos procurar e iremos te ajudar, não problema pedir ajuda, não tem problema não estar bem às vezes, apenas seja sincero com quem você é.
Termino o meu discurso e toda a plateia se levanta e começa a aplaudir e gritar. Sinto as lágrimas da emoção em meus olhos e não faço um mínimo esforço para segurá-las, pois eu sabia que merecia ser um tanto emocional naquele momento. Após alguns minutos de alvoroço, alguém me informa que eu poderia abrir para algumas perguntas.
— Obrigada, muito obrigada. Agora eu gostaria de responder algumas perguntas, vocês podem me dizer qualquer dúvida que tiverem sobre o livro, a minha jornada, a ONG ou qualquer outra coisa que eu tentarei responder da melhor maneira possível.
Uma garota no fundo levanta a mão, aponto para ela e alguém leva um microfone.
— Oi, meu nome é Heloísa e eu queria dizer que você me inspirou demais no meu processo de autoaceitação, eu já li o seu livro, venho assistindo alguns canais no Youtube que falam sobre isso e me sinto muito bem comigo mesma na maior parte do tempo, mas sempre que alguém faz um comentário ruim sobre a minha aparência, eu me sinto horrível de novo e tudo que eu construí acaba em menos de um minuto, o que eu faço pra resolver isso?
— Essa é uma pergunta bem difícil, Heloísa. O processo de autoaceitação é algo interno, é algo que fazemos com nós mesmos para mudar a forma em que nos vemos, mas infelizmente mesmo que você se aceite o mundo continua o mesmo, ainda há preconceito e gordofobia, então a única coisa que nos resta é parar de ligar para o que os outros pensam de nós. Não vou mentir, não é fácil, mas tendo um bom acompanhamento psicológico você vai aprender a lidar melhor com esses sentimentos. Você vai ter recaídas, mas com o tempo as coisas se tornarão melhores, você só precisa ter em mente que o que as pessoas pensam de você não é quem você é, é alguém que eles imaginam, e o que eles pensam ou deixam de pensar não é problema seu.
Concluo e mais uma salva de palmas se inicia. Outra garota acena no canto e eu aponto para ela.
— Oi, meu nome é Bruna e eu queria dizer que tenho uma melhor amiga que sempre quando eu tento melhorar minha autoestima, ela diz que não vai adiantar porque nunca vou ser ninguém enquanto não emagrecer e faz eu me sentir muito mal, gostaria de saber como lidar com isso.
— Bem, Bruna, eu já estive no seu lugar e sei como isso é doloroso. Infelizmente há pessoas em nossas vidas que são tóxicas para nós e o melhor a fazer é se afastar, essas pessoas são como âncoras e não importa o que a gente faça, elas sempre irão nos prender no lugar ou nos fazer afundar, então eu recomendo que você se afaste dessa amiga e procure pessoas que sejam mais parecidas com você e que gostem de você do jeito que é. Vai ser doloroso, mas quando você estiver rodeada de pessoas que realmente te amam, você vai ver que valeu a pena.
A menina agradece e mais uma vez a plateia agradece. No canto inferior, outra menina levanta a mão sinalizo em sua direção.
— Meu nome é Raquel e eu gostaria de saber como uma pessoa gorda pode ter transtorno alimentar? A pessoa não precisa ser super magra?
— Essa é uma boa pergunta, Raquel, e não, não são só as pessoas magras que tem transtorno alimentar. Na verdade, esse é um mito que precisa ser quebrado, pois muitas pessoas não buscam ajuda porque não acreditam que a doença possa afetá-las. Apesar das consequências da bulimia e anorexia serem a magreza excessiva, nem todas as pessoas conseguem emagrecer facilmente devido ao seu biotipo genético. Os transtornos alimentares não estão no corpo em si e sim na mente, distorcendo imagem e manipulando pensamentos, então qualquer pessoa com qualquer corpo pode ser atingida por essas doenças.
A garota balança a cabeça em agradecimento e uma mulher bem a minha frente gesticula em minha direção e peço para que lhe deem um microfone.
— Meu nome é Maria e eu queria dizer que sou a favor dessa coisa de aceitação e tudo o mais, mas obesidade é uma doença, dizer pra pessoas obesas se conformarem do jeito que são não seria romantizar uma doença?
Dou uma rápida risada, pois já esperava que esse tipo de pergunta fosse acontecer porque, afinal, sempre tem um preconceituoso em algum lugar esperando para dar o bote.
— Bem, Maria, eu sou formada em Psicologia e Nutrição e até hoje não conheci nenhum método que diz se uma pessoa gorda não é saudável só olhando para ela, acho que a tecnologia ainda não está avançada o suficiente para isso — digo, ácida, e algumas pessoas riem. — É necessário que haja exames médicos porque são eles que comprovam saúde, não os olhos. Existem muitas pessoas gordas que são perfeitamente saudáveis, enquanto outras que são magras têm diversos problemas de saúde, o que define a pessoa como saudável ou não são os seus hábitos, se ela tiver bons exames, uma boa alimentação, se exercitar regularmente, não fumar ou ingerir bebida alcoólica, não há porque não dizer que é uma pessoa saudável.
Finalizo e dessa vez as palmas vem bem mais forte do que a anterior, o que me deixa bem feliz e satisfeita.
— Alguém tem mais alguma pergunta? — questiono e ninguém se manifesta. — Sendo assim, muito obrigada a todos pela presença e aguardo vocês na sessão de autógrafos.
Sorrio e saio do palco, me sentindo mais feliz do que jamais estive em toda a minha vida.

●●●


Após centenas de fotos e livros autografados, conversas, e um pouco de choradeira, eu já estava completamente exausta, porém não conseguia tirar o sorriso do meu rosto. Felizmente faltava apenas mais uma livro para autografar e poderia descansar.
— A quem devo dedicar? — questiono, com a cabeça baixa.
.
Ao ouvir sua voz, automaticamente levanto a cabeça para encará-la e comprovar que eu realmente não estava ouvindo coisas. Ali, bem na minha frente, estava a minha ex-melhor amiga.
— Oi — ela diz, sorrindo acanhada.
— Oi — retribuo, ainda em choque.
Eu não a via desde a formatura do ensino médio, há quase dez anos, porém ela continua a mesma pessoa, só que um tanto mais madura, bem vestida e ainda mais bonita.
Autógrafo o seu livro, tentando não parecer tão nervosa e tremula como eu me sentia, e entrego-o a ela.
— Prontinho. Obrigada por comprar meu livro, .
— Eu posso falar com você rapidinho? — ela pergunta, parecendo apreensiva.
Olho para minha mãe atrás de mim e ela acena com a cabeça dizendo que estava tudo bem.
— Claro, o que acha de tomarmos um café? — respondo, me levantando da mesa e dela assente.
Caminhamos em silêncio até a praça de alimentação, acho que ambas ainda não nos recuperamos do impacto desse reencontro um tanto bizarro. Finalmente chegamos a tenda e peço uma xícara grande de café com croissant, enquanto ela opta apenas por um suco sem açúcar. Nos sentamos à mesa, ainda em silêncio, e dou um gole na minha bebida, esperando ela se manifestar.
— Eu ensaiei tanta coisa antes de sair de casa e agora que estou aqui não sei lembro nem por onde começar. — ela ri, nervosa. — Eu sei que não importa o que eu diga, nada irá mudar as coisas horríveis que eu disse a você e a amiga escrota que eu fui, mas eu queria te pedir desculpa, ou melhor, perdão. Perdão por não saber o mal que eu estava te causando, perdão por nunca ter percebido o que você estava passando, perdão por simplesmente não ter sido a amiga que você merecia. Eu entendo se você não quiser me perdoar, porque eu também não me perdoo, mas sei que ao menos precisava tentar.
Tomo mais um gole do meu café calmamente e fixo os olhos nela.
, eu já te perdoei há anos. Uma das coisas que aprendi durante o meu processo de autoaceitação foi a não guardar sentimentos de rancor ou mágoa dentro de mim. O que passou, passou, então não tem porque eu ou você ficar se martirizando por isso. Eu fico feliz que esteja tudo bem entre a gente, mas se você veio dizer que quer voltar a ser minha amiga, me desculpe, mas terei que dizer não.
A garota fica boquiaberta com a minha resposta, não sei se pelo conteúdo ou pela forma tranquila e direta que eu disse.
— Uau, eu realmente não esperava essa resposta, mas fico aliviada que você tenha me perdoado.
— Não é nada pessoal, eu só acho que mesmo que as coisas estejam resolvidas, estamos em páginas diferentes. Eu não guardo mágoas, mas você ainda parece atormentada com o passado e isso seria um empecilho para termos uma amizade saudável, porque você sempre iria achar que tem alguma dívida comigo. — Finalizo o meu café, me levanto e retiro um cartão da bolsa e empurro em sua direção. — Se algum dia você quiser lidar com seus demônios, pode me ligar, eu tenho um ótimo grupo de profissionais que podem te ajudar. Tchau, , espero que você fique bem e tenha uma ótima vida.
Viro-me e começo a caminhar para longe, sem sequer olhar para trás.


Fim.









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