Finalizada em: 17/12/2020

Capítulo Único


— Fico feliz que tenha decidido dar início ao tratamento. — a doutora Margareth sorria, maternal, do outro lado da mesa do consultório rosé.
— Eu também… Eu acho. — sorriu de maneira torta.
Não sabia muito bem como reagir a todas aquelas mudanças, mas não podia negar que estava feliz e minimamente confiante consigo mesmo depois de tanto tempo.
— Vamos começar com uma dosagem pequena, tudo bem? — ela explicou de forma didática, pegando algumas caixas de remédios na gaveta. — Para ver como seu organismo vai reagir.
automaticamente fez uma careta, o que fez Margareth dirigir a ele um olhar compreensivo.
— Sei que não gosta de medicamentos, tivemos alguns problemas com você no começo, não é? — ela perguntou de forma retórica, referindo-se aos primeiros meses do tratamento de leucemia. — Tenho certeza que percebeu como eles te ajudaram. Algumas coisas você não pode resolver sozinho. — falou calma enquanto espalhava as caixas pela mesa. — Mas, desta vez, diferente das outras, a escolha é sua.
O rapaz repassou os últimos meses em sua cabeça como em um flash, encarando a psiquiatra à sua frente, e a resposta não poderia ter sido diferente.

[...]


O terno que a mãe de havia alugado para ele estava estendido sobre os lençóis azuis da cama. As paredes do quarto, ainda brancas, estavam agora lotadas de pôsteres e fotos de sua nova vida. Na maioria delas, se não em todas, a protagonista brilhava por entre as lentes da câmera que seu pai havia lhe dado de presente de aniversário.
O rapaz se pegou com um sorriso no rosto encarando o olhar de no jardim ensolarado, com um pote de sorvete de pistache nas mãos delicadas. Sua vida definitivamente tinha mudado. Se há um ano lhe falassem que em seu senior year ele estaria internado em um hospital infantil tratando uma leucemia, e que estaria pronto para se arrumar para o baile de formatura, ao qual levaria uma menina de sua sala com quem sequer havia conversado e sequer sabia da existência, ele riria tanto que lhe doeria a barriga.
? — ele perguntaria. — Quem é essa?
Os idiotas que ele chamava de amigos mesmo sequer sabendo seus nomes e constantemente confundindo seus rostos ririam alto apenas para chamar atenção do resto da escola, que teria naturalmente todos os olhos voltados para o seleto grupo.
— Não vou a esse baile idiota. — ele retornaria a dizer, confiante, achando-se tão importante que poderia pisar na cabeça de todos à sua volta. — Eu e Madison já teremos outros planos.
Mais risadas vazias e um sentimento vazio de solidão quase perceptível no fundo de seu estômago.

balançou a cabeça, tentando eliminar os pensamentos. Eles tornaram-se constantes à medida que o rapaz passava a se conhecer mais e mais. O remorso e a culpa por um dia ter sido tão cruel com os outros, com seus pais, o remoíam dia e noite, fazendo com que ele ainda se sentisse como o babaca de um ano atrás e fosse se sentir assim sua vida inteira.
Sentia como se não merecesse a segunda chance que estava tendo, o carinho dos pais e, principalmente, a atenção e a amizade de . Passava horas durante a madrugada sem dormir, pensando em como a garota podia ser tão boa e perdoá-lo por todas as coisas ruins que havia feito, uma vez que ele mesmo não se via perdoando-se tão cedo.
A caixinha do remédio que Margareth o havia dado permanecia na mesa onde a tinha deixado desde que havia retornado ao quarto pela manhã, depois da consulta. Ele respirou fundo antes de pegá-la e andar até o pequeno banheiro.
O espelho quadrado sobre a pia, que costumava ser seu maior inimigo nas primeiras semanas, refletia agora o de um ano atrás. Sua massa muscular havia voltado aos poucos, claro que não como antes, mas suas roupas antigas já estavam voltando a servir — embora ele se recusasse a vesti-las, até mesmo a jaqueta de couro que sempre fora sua favorita. Seu rosto não tinha mais a feição de alguém que já havia morrido e tinha esquecido de cair. Devia isso à quimioterapia e a todas as outras medicações que estava tomando por exatos sete meses, sim, mas sabia que devia principalmente à , que não havia deixado o rapaz desanimar por nem um segundo e cuidava dele como se ela mesma não estivesse sofrendo as piores dores e as piores provações.
Fechou uma das mãos em concha e com a outra abriu a torneira, permitindo que um pouco de água ficasse parada entre seus dedos enquanto abria a caixa com os comprimidos. Colocou um deles na boca e o engoliu com a ajuda do líquido em sua mão. A doutora estava certa, algumas coisas ele não conseguiria resolver sozinho.
A imagem no espelho ria dele.
— Não vou tomar esse remédio idiota. — o de um ano atrás empurrava o copo com água que a mãe lhe trazia no quarto de paredes verdes. — Eu já disse, devem ter trocado meus exames com o de outra pessoa doente. Eu estou perfeitamente bem.
Num impulso, pegou o barbeador na pia e ligou-o na tomada, passando-o pelos cabelos loiros que começavam a encaracolar nas pontas. Lembrou-se da vez que o contou que cortara o próprio cabelo, quando estavam esperando que a mãe do garoto saísse bem da cirurgia. Não queria ser seu eu de ontem. Suas lembranças já o torturavam o suficiente, por isso, quando viu os cachos amarelos sobre a pia, meio molhados, permitiu-se dar um sorriso discreto.

[...]


sorriu para si mesma no espelho quadrado assim que colocou duas presilhas no cabelo que finalmente voltava a crescer, tão curto e ralo quanto se podia ser. Um de seus maiores sonhos se tornaria realidade em algumas horas e seu coração palpitava de emoção e de medo. Uma foto de pendia grudada no reflexo, quase caindo. Ela ajustou-a antes de sair do pequeno banheiro.
Sentou na cama com o maior cuidado do mundo, para não amarrotar o vestido amarelo, e seus lábios se abriram involuntariamente em um sorriso de novo. Tinha desenhado o vestido de seus sonhos e a mãe de Gary tinha conseguido costurá-lo ainda mais bonito do que ela imaginara. Duas lágrimas de gratidão caíram de seus olhos enquanto sua vida passava em sua mente como um flash.
Seus pais, seus animais de estimação, sua melhor amiga de infância, seus anos invisíveis na escola, seus sonhos inalcançáveis, seu cabelo longo, Gary e sua mãe, seus medos, a solidão, .
Seu coração batia forte. Não se sentia mais sozinha. Se sentia amada pela primeira vez na vida. O vestido amarelo parecia aquecer muito mais do que apenas seu corpo. Sua alma estava quente como se a estivessem abraçando pela primeira vez depois de anos esperando que alguém notasse que ela estava ali.
Batidas na porta a acordaram do transe. Seu estômago revirava de uma maneira boa quando ela abriu e viu parado em um terno azul marinho e uma gravata amarela, do exato tom de seu vestido e do corsage de flores que segurava na mão esquerda. Seu cabelo estava tão curto que quase conseguia ver o formato de sua cabeça.
— Foi aqui que pediram um acompanhante para o baile de formatura?
Ele não percebeu, mas os olhos de ainda brilhavam das lágrimas de gratidão. Ela apenas assentiu com a cabeça, com medo de começar a chorar caso abrisse a boca para falar alguma coisa.
A mão direita do rapaz estava escondida atrás de seu corpo e, quando o olhar de desceu até ela, ele deu uma risadinha antes de completar:
— Um acompanhante e… — ele revelou o que a mão escondia atrás do terno azul. — Um par de botas.
A menina colocou as mãos na boca, abafando a gargalhada que saíra de sua garganta úmida. Botinhas pretas pendiam das mãos de .
— Você… — ela começou.
— Sim, vi o seu desenho. — respondeu, antes que ela pudesse finalizar. — E você me disse que sempre quis usar botas, mas que nunca teve um par.
Ela assentiu, fechando os olhos e sorrindo involuntariamente.
— Obrigada, . — ela falou, as botas sendo o último dos motivos.
A sinceridade em sua voz era tão profunda e nobre que o rapaz estremeceu.
— Você não tem que me agradecer nada.
Ela sorriu, tirando delicadamente os sapatos que calçava e pegando as botas pretas da mão do amigo.
— Você não precisa colocá-las agora. — ele falou, balançando a cabeça.
— É claro que preciso. — ela respondeu rindo, caminhando para sentar-se na cama. — É um dos meus sonhos, esqueceu?
riu, negando com a cabeça e acompanhando-a quarto a dentro. Não tinha esquecido sequer uma palavra que ela havia dito desde que se tornaram amigos.
— Aliás — ela olhou para ele enquanto abria os zíperes dos novos calçados. —, adorei o cabelo.
O rapaz ficou escarlate involuntariamente e passou a mão livre pela cabeça, envergonhado. Tinha noção de que não era um dos melhores cortes do mundo. Nem da Pensilvânia, ou do hospital. Na verdade, estava bem ruim mesmo.
— Foi um impulso. — ele se justificou.
— São nossas melhores decisões.
Ele assentiu e ela levantou-se.
— Pronto? — perguntou.
— Mais do que nunca.

[...]


A quadra interna da Schenley High School estava iluminada com a luz de diversos holofotes e decorada com centenas de estrelas de papel machê. Para , era a mais bonita e mais brilhante de todas elas.
Era possível perceber o olhar assustado das pessoas e os cochichos ao longo de todo o salão, quase como se os dois fossem fantasmas ressurgindo depois de terem morrido há muito tempo. Só que eles não tinham morrido.
Estavam vivos e estavam se divertindo com as mais inesperadas expressões que observavam. viu Jeff Hemming, que estava acompanhando Madison, ficar sem ar depois de se engasgar com a bebida que tomava e não pôde evitar esconder uma risada, pela qual recebeu um tapa discreto de .
— Estou vendo em um baile de formatura? É isso mesmo? — Earl, seu melhor amigo, perguntou ao se aproximar, e, virando-se para a garota ao lado dele, continuou. — , né?
A menina sorriu abertamente, confirmando com a cabeça.
— Mudanças, cara. — bateu duas vezes no ombro do amigo.
Realmente, apenas essa palavra poderia resumir os últimos meses e a atual vida de . Mudanças. Continuar o mesmo estava o matando aos poucos, mais ainda do que a leucemia. Tudo o que ele precisava era se reinventar. E mostrar a todos o quão diferente ele estava era um bom começo para que os pensamentos que o atormentavam de noite começassem a dar lugar a bons sonhos. havia mudado da água para o vinho — ou do vinho para a água. E devia isso a .
Por isso estava com o sorriso mais sincero que já dera em sua vida quando a conduziu até a pista de dança, no meio da quadra, e rodopiou seu vestido amarelo antes de beijá-la pela primeira vez, depois de sete meses e dois dias da amizade mais profunda que já tivera e na frente de todos os olhares curiosos. Todos saberiam agora que ele havia mudado por ela.


Fim.



Nota da autora: Sem nota.


Outras Fanfics:
04. Fuck It, I Love You
05. Used To Be
12. A Little Bit Longer
I think we best just get The Balance right
You're Still My Direction


Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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