Cena 1
Eu andava a passos rápidos, quase tropeçando em meus próprios pés. Meu coração batia freneticamente, esmurrando meu peito já completamente tomado pela dor. Tinha dificuldade em respirar e minha mente não conseguia pensar, meu corpo não conseguia sentir, meus olhos não conseguiam focar. Tudo à minha volta parecia irreal, como se de repente eu houvesse sido jogado em um mundo paralelo. Tudo era distante, vago, sem sentido. A única coisa que me dizia que eu ainda estava vivo era aquela dor cruciante que agora me consumia por inteiro.
Um buraco começou a se abrir sob meus pés e meus joelhos vacilaram por um momento, me fazendo parar. Respirei fundo, ignorando o nó que queimava minha garganta. Eu não sabia onde estava e nem por quanto tempo havia andado, embora não achasse que por muito. Minha cabeça estava tonta e senti que, se não sentasse, seria capaz de desmoronar ali mesmo. E depois de encontrar um lugar relativamente isolado aquele buraco tomou meu corpo, minha mente e minha alma.
Por um minuto.
Por cinco minutos.
Por nove minutos.
- ?
Não me movi. Meus olhos estavam presos à paisagem escura à minha frente enquanto minha mente dava voltas. Meu corpo estava jogado em um dos bancos da praça vazia e permanecia na mesma posição há pelo menos dez minutos. Senti-a sentar-se ao meu lado e por alguns segundos tudo o que ouvi foi o barulho suave das folhas movendo-se com o vento.
- Eu sinto muito... – a voz doce entrou em meus ouvidos quase que em um sussurro, transbordando sinceridade. Eu sabia que era verdadeiro, mas não me importava. Meu silêncio se prolongou, dando a abertura necessária para a mão dela encontrar a minha – , por favor...
Era uma súplica. O toque dela causava choque em mim, mas agora também fazia meu peito doer. Não queria olhá-la nos olhos, então baixei meu olhar até nossas mãos. Estava petrificado havia tempo demais e me permiti um suspiro. Os dedos dela entrelaçaram quase que timidamente os meus e eu os apertei bem de leve, acariciando sua pele com o polegar.
- Como você pôde fazer isso? – minha voz saíra baixa e sem vida e não sabia dizer ao certo se havia feito uma pergunta ou apenas uma lamentação. Ela beijou meu ombro e sua mão livre subiu por meu peito para acariciar as pontas dos meus cabelos. Meu coração errou uma batida.
- Eu sinto muito, meu menino, eu...
- Eu acho que não – interrompi-a abruptamente. Os dedos dela tremeram em minha nuca.
- Não diga isso.
- Eu acho que você nunca sentiu nada.
- , não diga isso.
- Eu acho que... – meus olhos se fecharam e o nó queimou ainda mais minha garganta. A mão dela apertou a minha com força. A angústia e a dor dilaceravam meu peito e eu não pude evitar que meus olhos marejassem. Ergui a cabeça e olhei para o céu, mas as estrelas não passaram de um borrão cintilante.
- Olha pra mim – as palavras dela soaram como uma ordem, que eu não cumpri. Voltei a encarar o horizonte, respirando fundo e desviando os pensamentos para qualquer coisa que pudesse me acalmar. Eu não sabia como lidar com ela, muito menos com aquilo – Você... você não consegue me olhar?
- Eu não quero te olhar – sussurrei. A pele dela congelou na minha e, por segundos que pareceram infinitos, tudo o que eu ouvi foi a respiração dela aumentar.
- Eu quero te explicar.
- Aquilo já explicou bastante, não quero te ouvir.
- Por favor, não faça isso, eu preciso...
- Eu disse que não quero te ouvir.
- Mas você vai.
- Chega – tornei a fechar os olhos com força e respirei fundo em uma tentativa inútil de diminuir os socos no meu peito.
- Eu o encontrei...
- Cala a boca – as palavras saíram frias da minha e eu a olhei com o cenho franzido em um ato mecânico. Os olhos dela abriram-se em espanto e, mesmo com a baixa luminosidade, eu pude ver que estavam vermelhos. Seu rosto havia sido molhado por algumas lágrimas, mas aquilo não aliviou em nada minha expressão. Eu estava com o coração partido em trinta mil pedaços e nada do que ela dissesse naquele momento seria capaz de fazê-lo inteiro novamente.
Ela baixou o olhar e só então percebi o quão doloroso havia sido encará-la. Quando seus olhos tiveram coragem suficiente para penetrarem os meus, marejados e refletindo uma dor que eu sabia ser real, ela assentiu.
- Me desculpa, .
Foi a minha vez de baixar o olhar. Pude ver que ela usava um vestido claro, algo parecido com rosa e acima do joelho. O calor da pele dela chegou antes da sensação de ter sua testa grudada à minha e meus olhos se fecharam novamente quando, pela primeira vez na noite, eu senti seu cheiro. Suave, adocicado, único. Convidativo.
- Eu acho que você deveria ir agora.
Ela ficou em silêncio por longos segundos, a respiração quente castigando meus lábios.
- Não vou te deixar aqui sozinho.
- Não se preocupe com isso.
- Está muito tarde, me deixa te levar para casa.
- Não.
- Então eu vou ficar.
- Vá embora - disse em um sussurro cansado. Ela não respondeu. Eu abri meus olhos e vi os dela tão próximos aos meus. Aquilo era tudo o que eu mais gostava na vida, e pela primeira vez tudo o que eu quis foi que estivessem longe de mim.
- ...
- Eu não consigo mais ficar perto de você.
Ela tirou a testa da minha e passou a me encarar com um misto de medo, tristeza e espanto. Os dedos afrouxaram-se nos meus e, quando a coragem veio, a voz dela não passou de um fio rouco.
- Como?
- Dói. Não pode doer mais do que isso essa noite, .
O nome dela não passou de um sussurro. Então eu aumentei a distância entre nossos rostos, tirei a mão dela da minha e a deixei sozinha.
Um buraco começou a se abrir sob meus pés e meus joelhos vacilaram por um momento, me fazendo parar. Respirei fundo, ignorando o nó que queimava minha garganta. Eu não sabia onde estava e nem por quanto tempo havia andado, embora não achasse que por muito. Minha cabeça estava tonta e senti que, se não sentasse, seria capaz de desmoronar ali mesmo. E depois de encontrar um lugar relativamente isolado aquele buraco tomou meu corpo, minha mente e minha alma.
Por um minuto.
Por cinco minutos.
Por nove minutos.
- ?
Não me movi. Meus olhos estavam presos à paisagem escura à minha frente enquanto minha mente dava voltas. Meu corpo estava jogado em um dos bancos da praça vazia e permanecia na mesma posição há pelo menos dez minutos. Senti-a sentar-se ao meu lado e por alguns segundos tudo o que ouvi foi o barulho suave das folhas movendo-se com o vento.
- Eu sinto muito... – a voz doce entrou em meus ouvidos quase que em um sussurro, transbordando sinceridade. Eu sabia que era verdadeiro, mas não me importava. Meu silêncio se prolongou, dando a abertura necessária para a mão dela encontrar a minha – , por favor...
Era uma súplica. O toque dela causava choque em mim, mas agora também fazia meu peito doer. Não queria olhá-la nos olhos, então baixei meu olhar até nossas mãos. Estava petrificado havia tempo demais e me permiti um suspiro. Os dedos dela entrelaçaram quase que timidamente os meus e eu os apertei bem de leve, acariciando sua pele com o polegar.
- Como você pôde fazer isso? – minha voz saíra baixa e sem vida e não sabia dizer ao certo se havia feito uma pergunta ou apenas uma lamentação. Ela beijou meu ombro e sua mão livre subiu por meu peito para acariciar as pontas dos meus cabelos. Meu coração errou uma batida.
- Eu sinto muito, meu menino, eu...
- Eu acho que não – interrompi-a abruptamente. Os dedos dela tremeram em minha nuca.
- Não diga isso.
- Eu acho que você nunca sentiu nada.
- , não diga isso.
- Eu acho que... – meus olhos se fecharam e o nó queimou ainda mais minha garganta. A mão dela apertou a minha com força. A angústia e a dor dilaceravam meu peito e eu não pude evitar que meus olhos marejassem. Ergui a cabeça e olhei para o céu, mas as estrelas não passaram de um borrão cintilante.
- Olha pra mim – as palavras dela soaram como uma ordem, que eu não cumpri. Voltei a encarar o horizonte, respirando fundo e desviando os pensamentos para qualquer coisa que pudesse me acalmar. Eu não sabia como lidar com ela, muito menos com aquilo – Você... você não consegue me olhar?
- Eu não quero te olhar – sussurrei. A pele dela congelou na minha e, por segundos que pareceram infinitos, tudo o que eu ouvi foi a respiração dela aumentar.
- Eu quero te explicar.
- Aquilo já explicou bastante, não quero te ouvir.
- Por favor, não faça isso, eu preciso...
- Eu disse que não quero te ouvir.
- Mas você vai.
- Chega – tornei a fechar os olhos com força e respirei fundo em uma tentativa inútil de diminuir os socos no meu peito.
- Eu o encontrei...
- Cala a boca – as palavras saíram frias da minha e eu a olhei com o cenho franzido em um ato mecânico. Os olhos dela abriram-se em espanto e, mesmo com a baixa luminosidade, eu pude ver que estavam vermelhos. Seu rosto havia sido molhado por algumas lágrimas, mas aquilo não aliviou em nada minha expressão. Eu estava com o coração partido em trinta mil pedaços e nada do que ela dissesse naquele momento seria capaz de fazê-lo inteiro novamente.
Ela baixou o olhar e só então percebi o quão doloroso havia sido encará-la. Quando seus olhos tiveram coragem suficiente para penetrarem os meus, marejados e refletindo uma dor que eu sabia ser real, ela assentiu.
- Me desculpa, .
Foi a minha vez de baixar o olhar. Pude ver que ela usava um vestido claro, algo parecido com rosa e acima do joelho. O calor da pele dela chegou antes da sensação de ter sua testa grudada à minha e meus olhos se fecharam novamente quando, pela primeira vez na noite, eu senti seu cheiro. Suave, adocicado, único. Convidativo.
- Eu acho que você deveria ir agora.
Ela ficou em silêncio por longos segundos, a respiração quente castigando meus lábios.
- Não vou te deixar aqui sozinho.
- Não se preocupe com isso.
- Está muito tarde, me deixa te levar para casa.
- Não.
- Então eu vou ficar.
- Vá embora - disse em um sussurro cansado. Ela não respondeu. Eu abri meus olhos e vi os dela tão próximos aos meus. Aquilo era tudo o que eu mais gostava na vida, e pela primeira vez tudo o que eu quis foi que estivessem longe de mim.
- ...
- Eu não consigo mais ficar perto de você.
Ela tirou a testa da minha e passou a me encarar com um misto de medo, tristeza e espanto. Os dedos afrouxaram-se nos meus e, quando a coragem veio, a voz dela não passou de um fio rouco.
- Como?
- Dói. Não pode doer mais do que isso essa noite, .
O nome dela não passou de um sussurro. Então eu aumentei a distância entre nossos rostos, tirei a mão dela da minha e a deixei sozinha.
Cena 2
As pessoas escolhem palavras para começar uma história por razões diferentes. Eu escolho as minhas como uma forma de aliviar a tensão. Às vezes elas vêm em peso porque eu tenho muita coisa a dizer. Às vezes elas não vêm. Mas isso não significa que eu não tenha nada.
Pausa.
A caneta estava pronta para tocar o papel, mas eu não tinha nada. Nem agora, nem nos últimos quarenta e cinco minutos. Respirei fundo. Olhei o relógio.
Quinze minutos para minha aula começar. Larguei a caneta em cima da carteira e passei os dedos com força nos meus olhos. Meu corpo pedia por algumas horas de repouso, mas minha mente estava cheia demais para permiti-lo. Confusa demais. Entorpecida demais.
Eu estava sozinho. A sala à minha volta era ainda maior quando vazia e o único ruído audível era o do motor do ar condicionado. Passei os olhos mais uma vez pelas linhas do meu caderno, sem inspiração. Eu precisava de mais uma única frase, mas aquelas palavras agora não faziam mais muito sentido em minha cabeça. Talvez um ar fresco ou um gole de água me ajudasse. Andei para fora da sala e entrei no banheiro. Abri a torneira e senti a temperatura com as costas da mão. Joguei um pouco da água fria no rosto, sentindo-a refrescar tudo, menos meus pensamentos. Por isso, eu joguei mais um pouco e mais um pouco e mais um pouco até sentir minha pele anestesiar. Eu não sabia por que estava fazendo aquilo, mas, de algum modo, pareceu funcionar. Para quê, eu também não sei.
Enxuguei-me com um pedaço de papel e voltei para a sala, mas agora eu já não era o único lá.
- Nada mal... Nada mal mesmo.
- É toda sua, se quiser.
- Não sou muito bom em compor em cima de sentimentos alheios – colocou meu caderno em cima da carteira novamente, sentando-se ao meu lado. Voltei ao meu lugar.
- Mas, pelo visto, não tem nada contra bisbilhotar a vida alheia.
Ele deu de ombros, se afundando no assento e colocando os pés na cadeira da frente.
- Intimidade é uma merda.
Sorri de leve e me ajeitei.
- O que faz aqui? Não deveria estar na sua sala?
- Quis ver como você está. Obrigado por retribuir o carinho.
Dessa vez eu ri baixo. A caneta voltou para minha mão.
- O que vem depois?
- Eu não sei – respondi em voz baixa, encarando a linha em branco.
- O que veio depois?
Eu virei o rosto. me olhava com um misto de tristeza e sono.
- Ela me encontrou.
Nenhum de nós disse nada depois disso. Ele, porque sabia que não deveria. Eu, porque não sabia o que falar. Meus olhos voltaram a se fixar no papel e minha mão levou a caneta a ele, rabiscando qualquer coisa em um canto.
- Ela me encontrou e me disse que sentia muito. Ela só disse que sentia muito e que queria me explicar.
- E o que ela disse?
- Eu não a deixei falar.
Ele fez um silêncio.
- Eu acho que ela está dizendo a verdade – opinou em voz baixa. Eu suspirei. – , você sabe que a explicação é bastante óbvia. Ela sabe que errou feio com você e eu não acredito que tenha sido na maldade. Ela é sua melhor amiga, cara.
- Não, não é. Eu nunca faria com ela o que ela fez comigo. Nunca.
- Ela tem medo de te perder.
- Você não sabe disso.
- Eu sei – ele disse convicto. Eu o encarei. – Encontrei com a na portaria. Ela acabou de me dizer.
Suspirei. O rabisco na página ficava cada vez mais escuro e mais confuso. Eram assim que as coisas estavam em minha cabeça.
- Bem... – fechei meu caderno quando algumas pessoas começaram a entrar e sentar ao nosso redor. O relógio marcava oito horas. Meus olhos encontraram os de . Era hora de esquecer. – Ela deveria.
Ele me encarou por segundos, os lábios entreabertos, e então assentiu, se levantando e caminhando para fora da sala. Eu enchi meus pulmões de ar até senti-los doer e o soltei com força, me afundando na cadeira. E passei a manhã inteira tentando entender meus próprios sentimentos.
No intervalo, eu desci a escada e andei pelos corredores com passos calmos até chegar à área de alimentação. Não estava sentindo a menor fome, então continuei andando até a parte descoberta, mais afastada das lanchonetes. estava sentado em uma mureta com uma loira entre as pernas. Eu não interromperia o momento, apesar de saber que ele - e ela - não durariam. O pátio não estava muito cheio e avistar em uma das mesas não foi difícil.
- Não, não, aí não – ele balançou o indicador no ar, me indicando a cadeira ao lado da dele. – Aqui, querido.
Franzi o cenho.
- Qual a diferença?
- Bloqueio de visão.
Balancei levemente a cabeça em negação, me sentando na cadeira ao lado dele, a contragosto. Então eu reparei que além dos óculos escuros ele usava uma camisa social xadrez e uma gravata borboleta na cor preta.
- Bela gravata.
- Ela é minha e eu a uso onde quiser.
Minhas sobrancelhas arquearam-se levemente e um pequeno sorriso se formou em meus lábios. Eu não era o primeiro e nem seria o último a fazer o mesmo comentário.
Depois de alguns minutos em silêncio, tirou os óculos e me olhou.
- Como você está?
- Quebrado. E você?
- Eu gostaria de quebrar a .
Dei um sorriso torto, sentindo uma pontada no estômago.
- Valeu, , mas eu realmente não quero falar sobre ela agora.
assentiu, se ajeitando.
- Tudo bem. Sabe onde estão os meninos?
- Ainda não vi o e o estava enfiando a língua na garganta de alguém.
- Grande novidade. E, falando nele, aí vem.
caminhava com seu jeito pegador de ser até nossa mesa, esbanjando cafajestagem e arrancando suspiros inocentes por onde passava. Infelizmente, cometeu o mesmo erro que eu.
- Não, não, meu amor, nessa cadeira não! – repetiu o gesto com o dedo, puxando a cadeira à minha frente para ele. – Sente-se aqui.
- Tá de olho em quem, ?
- Não é da sua conta.
- É no Pablo – disse para mim. disfarçou com um suspiro indiferente. - E aí, o que vão comer?
- Eu quero um lanche natural – disse.
- Nada – respondi. Eles me olharam.
- Nem começa, você não vai deixar de comer – disse autoritário.
- Não estou com fome.
- Não interessa, tem que comer de qualquer jeito. Vou pedir para fazerem três sanduíches – se levantou e andou para longe antes mesmo que eu pudesse abrir minha boca, que permaneceu fechada por aproximadamente cinco minutos depois disso, o tempo que levou para decidir se tocaria no assunto ou não.
- Você falou sério?
- Sobre o quê?
- Sobre a te perder.
Respirei fundo pela centésima vez no dia.
- Eu não sei.
- Cara, ela tá mui...
- Por que você a está defendendo tanto, ? – eu o cortei abruptamente, alterando meu tom de voz. Ele se assustou.
- Eu não estou a defendendo, cara, eu só... – ele se interrompeu, cruzando os braços sobre a mesa – Eu apenas acho que ela não fez por mal. Eu sei que não foi por mal. Foi, sim, errado, mas ela não queria te machucar... Não desse jeito.
- Eu não sei o que pensar, essa é a verdade.
- , eu sinto muito que você esteja passando por isso. Sei o quanto você a ama e como deve estar sendo doloroso, mas tente entender o lado dela. Não é tão difícil assim.
- Ele não sabia - eu disse com o olhar perdido. - Eu sei que não é difícil de entender, mas ela não contou, e isso me faz achar que... - as palavras ficaram presas em minha garganta e eu mordi o interior da boca.
- Que o quê? - ele forçou. Respirei fundo e o olhei.
- Que eu não quero pensar nisso agora.
comprimiu os lábios, assentindo.
- Tá certo. Só uma última coisa...
- , sério, agora não.
- , ela...
- Minha cabeça tá cheia, cara, agora não.
- Cara, ela...
- Eu não quero saber – elevei mais uma vez o tom, rispidamente. Ele me encarou com os lábios entreabertos por um momento e relaxou o corpo na cadeira, assentindo. Eu desviei o olhar para a multidão que começava a se formar, passando os dedos entre meus cabelos de qualquer jeito. E a última coisa que eu desejava ouvir naquele momento era a voz dela.
- ?
Foi como levar um soco no estômago. O sangue pareceu estacionar em minhas veias e o ar fugiu dos meus pulmões. Fisicamente, eu sabia dizer o que estava acontecendo, mas meu coração e minha mente só fabricavam conflitos. Ela se sentou na cadeira de , e depois de uma breve hesitação eu consegui olhá-la. Ao contrário do usual, ela usava uma blusa básica, cabelos presos e nenhuma maquiagem. Seus olhos estavam inchados e com olheiras. Apesar das dúvidas geradas durante a noite toda, aquilo não me surpreendeu. Eu sabia, bem no fundo, que ela estava tão quebrada quanto eu.
- Eu sei que sou a última pessoa no mundo a quem você gostaria de ver – ela começou baixinho, os braços cruzados e um medo estampado no rosto -, mas eu preciso muito falar com você.
- Não é a hora nem o lugar – soltei com certa frieza, me arrependendo em seguida. Ela ficou sem reação por um segundo.
- Eu sei, eu só... só queria que...
- , não agora – meus olhos penetraram fundo nos dela, que me olhavam de um jeito que fez meu estômago revirar.
- , eu sei que não devo me meter, mas pelo menos escu...
- Você tem razão, – novamente, o cortei, dessa vez mantendo o tom baixo. – Não deve se meter.
- Mas ela...
- Tudo bem, , ele está certo – ela o interrompeu gentilmente, olhando para baixo antes de voltar a me olhar com esperança. – Por favor, , nós podemos conversar mais tarde?
- Com licença, , você está no meu lugar – disse grosseiramente, despertando para a conversa.
- Não fale assim com ela, .
Eu cravei os olhos nele.
- , por favor, eu preciso falar com o – ela pediu quase em uma súplica.
- Você deveria ter pensado em falar com ele antes. Ops, desculpe, você deveria ter falado com o outro antes.
- , fica na sua – alterou o tom.
- Fica na sua você, . O que pensa que está fazendo?
- Estou tentando não piorar a situação.
- Me poupe. Saia do meu lugar, garota.
- , por favor, não faça assim...
Eu subi meu olhar até o dela, vendo seus olhos marejarem.
- Faço, porque você já fez demais. Ou seria de menos?
- Caramba, , cala a boca – ficava cada vez mais nervoso. Eu apertei os olhos, sentindo uma leve falta de ar.
- , por...
- Saia daqui, .
Ela congelou. Seus olhos fixaram-se aos meus e eu quase pude ver neles o que ela estava sentindo. Me perguntei se ela poderia ver através dos meus, mas talvez eles estivessem cobertos por uma dureza que até eu desconhecia.
- Não, , você fica – , abruptamente, se levantou – Quem sai somos eu e o , você fica.
- Eu não vou a lugar algum – arrumou os óculos sem a menor pressa.
- Não complique as coisas, merda!
- Complico, complico o quanto eu quiser. Sabe por quê, ? – ele colocou as mãos na cintura, despejando as palavras de uma maneira que chamou a atenção. – Porque alguém nessa história toda realmente deveria ser o melhor amigo.
Aquilo foi o suficiente para que saísse apressada da mesa. Eu senti minha cabeça pesar e me fazer querer desesperadamente sair dali.
- Tá feliz agora? – perguntou com agressividade.
- Você quer o quê, que eu a defenda?
Então eu peguei minha mochila e me levantei, olhando diretamente para .
- Não se preocupe com isso, . Ela já tem um excelente advogado.
Mas só me deixe ficar aqui/
Por mais uma hora ou duas/
Então só me deixe te fazer sentir/
Tudo aquilo que eu não consigo explicar/
E do qual não consigo fugir/
Então só me peça para ficar/
Por mais uma noite ou duas/
E aí você descobrirá/
A razão pela qual fiz de você/
Pausa.
A caneta estava pronta para tocar o papel, mas eu não tinha nada. Nem agora, nem nos últimos quarenta e cinco minutos. Respirei fundo. Olhei o relógio.
Quinze minutos para minha aula começar. Larguei a caneta em cima da carteira e passei os dedos com força nos meus olhos. Meu corpo pedia por algumas horas de repouso, mas minha mente estava cheia demais para permiti-lo. Confusa demais. Entorpecida demais.
Eu estava sozinho. A sala à minha volta era ainda maior quando vazia e o único ruído audível era o do motor do ar condicionado. Passei os olhos mais uma vez pelas linhas do meu caderno, sem inspiração. Eu precisava de mais uma única frase, mas aquelas palavras agora não faziam mais muito sentido em minha cabeça. Talvez um ar fresco ou um gole de água me ajudasse. Andei para fora da sala e entrei no banheiro. Abri a torneira e senti a temperatura com as costas da mão. Joguei um pouco da água fria no rosto, sentindo-a refrescar tudo, menos meus pensamentos. Por isso, eu joguei mais um pouco e mais um pouco e mais um pouco até sentir minha pele anestesiar. Eu não sabia por que estava fazendo aquilo, mas, de algum modo, pareceu funcionar. Para quê, eu também não sei.
Enxuguei-me com um pedaço de papel e voltei para a sala, mas agora eu já não era o único lá.
- Nada mal... Nada mal mesmo.
- É toda sua, se quiser.
- Não sou muito bom em compor em cima de sentimentos alheios – colocou meu caderno em cima da carteira novamente, sentando-se ao meu lado. Voltei ao meu lugar.
- Mas, pelo visto, não tem nada contra bisbilhotar a vida alheia.
Ele deu de ombros, se afundando no assento e colocando os pés na cadeira da frente.
- Intimidade é uma merda.
Sorri de leve e me ajeitei.
- O que faz aqui? Não deveria estar na sua sala?
- Quis ver como você está. Obrigado por retribuir o carinho.
Dessa vez eu ri baixo. A caneta voltou para minha mão.
- O que vem depois?
- Eu não sei – respondi em voz baixa, encarando a linha em branco.
- O que veio depois?
Eu virei o rosto. me olhava com um misto de tristeza e sono.
- Ela me encontrou.
Nenhum de nós disse nada depois disso. Ele, porque sabia que não deveria. Eu, porque não sabia o que falar. Meus olhos voltaram a se fixar no papel e minha mão levou a caneta a ele, rabiscando qualquer coisa em um canto.
- Ela me encontrou e me disse que sentia muito. Ela só disse que sentia muito e que queria me explicar.
- E o que ela disse?
- Eu não a deixei falar.
Ele fez um silêncio.
- Eu acho que ela está dizendo a verdade – opinou em voz baixa. Eu suspirei. – , você sabe que a explicação é bastante óbvia. Ela sabe que errou feio com você e eu não acredito que tenha sido na maldade. Ela é sua melhor amiga, cara.
- Não, não é. Eu nunca faria com ela o que ela fez comigo. Nunca.
- Ela tem medo de te perder.
- Você não sabe disso.
- Eu sei – ele disse convicto. Eu o encarei. – Encontrei com a na portaria. Ela acabou de me dizer.
Suspirei. O rabisco na página ficava cada vez mais escuro e mais confuso. Eram assim que as coisas estavam em minha cabeça.
- Bem... – fechei meu caderno quando algumas pessoas começaram a entrar e sentar ao nosso redor. O relógio marcava oito horas. Meus olhos encontraram os de . Era hora de esquecer. – Ela deveria.
Ele me encarou por segundos, os lábios entreabertos, e então assentiu, se levantando e caminhando para fora da sala. Eu enchi meus pulmões de ar até senti-los doer e o soltei com força, me afundando na cadeira. E passei a manhã inteira tentando entender meus próprios sentimentos.
No intervalo, eu desci a escada e andei pelos corredores com passos calmos até chegar à área de alimentação. Não estava sentindo a menor fome, então continuei andando até a parte descoberta, mais afastada das lanchonetes. estava sentado em uma mureta com uma loira entre as pernas. Eu não interromperia o momento, apesar de saber que ele - e ela - não durariam. O pátio não estava muito cheio e avistar em uma das mesas não foi difícil.
- Não, não, aí não – ele balançou o indicador no ar, me indicando a cadeira ao lado da dele. – Aqui, querido.
Franzi o cenho.
- Qual a diferença?
- Bloqueio de visão.
Balancei levemente a cabeça em negação, me sentando na cadeira ao lado dele, a contragosto. Então eu reparei que além dos óculos escuros ele usava uma camisa social xadrez e uma gravata borboleta na cor preta.
- Bela gravata.
- Ela é minha e eu a uso onde quiser.
Minhas sobrancelhas arquearam-se levemente e um pequeno sorriso se formou em meus lábios. Eu não era o primeiro e nem seria o último a fazer o mesmo comentário.
Depois de alguns minutos em silêncio, tirou os óculos e me olhou.
- Como você está?
- Quebrado. E você?
- Eu gostaria de quebrar a .
Dei um sorriso torto, sentindo uma pontada no estômago.
- Valeu, , mas eu realmente não quero falar sobre ela agora.
assentiu, se ajeitando.
- Tudo bem. Sabe onde estão os meninos?
- Ainda não vi o e o estava enfiando a língua na garganta de alguém.
- Grande novidade. E, falando nele, aí vem.
caminhava com seu jeito pegador de ser até nossa mesa, esbanjando cafajestagem e arrancando suspiros inocentes por onde passava. Infelizmente, cometeu o mesmo erro que eu.
- Não, não, meu amor, nessa cadeira não! – repetiu o gesto com o dedo, puxando a cadeira à minha frente para ele. – Sente-se aqui.
- Tá de olho em quem, ?
- Não é da sua conta.
- É no Pablo – disse para mim. disfarçou com um suspiro indiferente. - E aí, o que vão comer?
- Eu quero um lanche natural – disse.
- Nada – respondi. Eles me olharam.
- Nem começa, você não vai deixar de comer – disse autoritário.
- Não estou com fome.
- Não interessa, tem que comer de qualquer jeito. Vou pedir para fazerem três sanduíches – se levantou e andou para longe antes mesmo que eu pudesse abrir minha boca, que permaneceu fechada por aproximadamente cinco minutos depois disso, o tempo que levou para decidir se tocaria no assunto ou não.
- Você falou sério?
- Sobre o quê?
- Sobre a te perder.
Respirei fundo pela centésima vez no dia.
- Eu não sei.
- Cara, ela tá mui...
- Por que você a está defendendo tanto, ? – eu o cortei abruptamente, alterando meu tom de voz. Ele se assustou.
- Eu não estou a defendendo, cara, eu só... – ele se interrompeu, cruzando os braços sobre a mesa – Eu apenas acho que ela não fez por mal. Eu sei que não foi por mal. Foi, sim, errado, mas ela não queria te machucar... Não desse jeito.
- Eu não sei o que pensar, essa é a verdade.
- , eu sinto muito que você esteja passando por isso. Sei o quanto você a ama e como deve estar sendo doloroso, mas tente entender o lado dela. Não é tão difícil assim.
- Ele não sabia - eu disse com o olhar perdido. - Eu sei que não é difícil de entender, mas ela não contou, e isso me faz achar que... - as palavras ficaram presas em minha garganta e eu mordi o interior da boca.
- Que o quê? - ele forçou. Respirei fundo e o olhei.
- Que eu não quero pensar nisso agora.
comprimiu os lábios, assentindo.
- Tá certo. Só uma última coisa...
- , sério, agora não.
- , ela...
- Minha cabeça tá cheia, cara, agora não.
- Cara, ela...
- Eu não quero saber – elevei mais uma vez o tom, rispidamente. Ele me encarou com os lábios entreabertos por um momento e relaxou o corpo na cadeira, assentindo. Eu desviei o olhar para a multidão que começava a se formar, passando os dedos entre meus cabelos de qualquer jeito. E a última coisa que eu desejava ouvir naquele momento era a voz dela.
- ?
Foi como levar um soco no estômago. O sangue pareceu estacionar em minhas veias e o ar fugiu dos meus pulmões. Fisicamente, eu sabia dizer o que estava acontecendo, mas meu coração e minha mente só fabricavam conflitos. Ela se sentou na cadeira de , e depois de uma breve hesitação eu consegui olhá-la. Ao contrário do usual, ela usava uma blusa básica, cabelos presos e nenhuma maquiagem. Seus olhos estavam inchados e com olheiras. Apesar das dúvidas geradas durante a noite toda, aquilo não me surpreendeu. Eu sabia, bem no fundo, que ela estava tão quebrada quanto eu.
- Eu sei que sou a última pessoa no mundo a quem você gostaria de ver – ela começou baixinho, os braços cruzados e um medo estampado no rosto -, mas eu preciso muito falar com você.
- Não é a hora nem o lugar – soltei com certa frieza, me arrependendo em seguida. Ela ficou sem reação por um segundo.
- Eu sei, eu só... só queria que...
- , não agora – meus olhos penetraram fundo nos dela, que me olhavam de um jeito que fez meu estômago revirar.
- , eu sei que não devo me meter, mas pelo menos escu...
- Você tem razão, – novamente, o cortei, dessa vez mantendo o tom baixo. – Não deve se meter.
- Mas ela...
- Tudo bem, , ele está certo – ela o interrompeu gentilmente, olhando para baixo antes de voltar a me olhar com esperança. – Por favor, , nós podemos conversar mais tarde?
- Com licença, , você está no meu lugar – disse grosseiramente, despertando para a conversa.
- Não fale assim com ela, .
Eu cravei os olhos nele.
- , por favor, eu preciso falar com o – ela pediu quase em uma súplica.
- Você deveria ter pensado em falar com ele antes. Ops, desculpe, você deveria ter falado com o outro antes.
- , fica na sua – alterou o tom.
- Fica na sua você, . O que pensa que está fazendo?
- Estou tentando não piorar a situação.
- Me poupe. Saia do meu lugar, garota.
- , por favor, não faça assim...
Eu subi meu olhar até o dela, vendo seus olhos marejarem.
- Faço, porque você já fez demais. Ou seria de menos?
- Caramba, , cala a boca – ficava cada vez mais nervoso. Eu apertei os olhos, sentindo uma leve falta de ar.
- , por...
- Saia daqui, .
Ela congelou. Seus olhos fixaram-se aos meus e eu quase pude ver neles o que ela estava sentindo. Me perguntei se ela poderia ver através dos meus, mas talvez eles estivessem cobertos por uma dureza que até eu desconhecia.
- Não, , você fica – , abruptamente, se levantou – Quem sai somos eu e o , você fica.
- Eu não vou a lugar algum – arrumou os óculos sem a menor pressa.
- Não complique as coisas, merda!
- Complico, complico o quanto eu quiser. Sabe por quê, ? – ele colocou as mãos na cintura, despejando as palavras de uma maneira que chamou a atenção. – Porque alguém nessa história toda realmente deveria ser o melhor amigo.
Aquilo foi o suficiente para que saísse apressada da mesa. Eu senti minha cabeça pesar e me fazer querer desesperadamente sair dali.
- Tá feliz agora? – perguntou com agressividade.
- Você quer o quê, que eu a defenda?
Então eu peguei minha mochila e me levantei, olhando diretamente para .
- Não se preocupe com isso, . Ela já tem um excelente advogado.
Cena 3
Eu acordei com um susto. O som estridente da campainha me tirou de um sonho confuso e me trouxe de volta à consciência abruptamente. Respirei fundo, piscando por algumas vezes, e espreguicei o corpo antes de levantar, descer a escada, andar até a porta, abri-la e...
Eu me senti frio. E me senti quente.
Ela usava jeans escuros, regata branca, chinelos e tinha os cabelos soltos. Estranhei os chinelos. Aquela não era ela, mas, céus, ela estava... ela estava ainda mais linda.
- Me desculpe por aparecer desse jeito, mas eu preciso falar com você. Eu preciso muito falar com você. Por favor, não me mande embora – ela disparou as palavras como uma bala, a voz dividida entre a súplica e o medo. Eu ainda estava surpreso em vê-la parada à minha porta e, sem saber o porquê, cedi. Dei espaço para que ela entrasse e me arrependi por não segurar a respiração quando ela passou por mim. O perfume dela me atingiu como um soco. Antes de fechar a porta por completo, notei a casa da frente completamente escura, assim como o céu. Por quanto tempo eu havia dormido?
- Você está bem? – ela perguntou com a voz doce. Me virei, encarando-a por um momento. O que diabos ela esperava que eu respondesse? Talvez minha pergunta interna tivesse se estampado em meu rosto, porque ela acrescentou, sem jeito – Desculpe, pergunta idiota.
Não soube o que dizer, e o silêncio se instalou. Por um bom tempo.
Os olhos castanhos dela penetravam fundo nos meus como se eu pudesse lê-los, como se aquilo bastasse para que eu entendesse o que se passava na mente dela. Havia tantas coisas que eu queria saber, que eu precisava descobrir, mas, mais uma vez, eu só fiquei lá, parado como o idiota que me sentia. E ela também. Até que suas mãos percorreram seu rosto e seus dedos entrelaçaram os cabelos, puxando-os com desespero, impaciência, cansaço. Seus pés deram alguns passos desnorteados e no, segundo seguinte, andaram apressados até mim, parando a apenas alguns centímetros dos meus. Suas mãos espalmaram-se em meu peito e apertaram com certa força minha camiseta, fazendo meu corpo tremer. Ela me olhou e engoli em seco quando sua respiração bateu contra meus lábios. Então, seus olhos marejaram.
- Eu não estou bem... – ela disse baixinho, a voz embargada. – Eu não consigo... não consigo me perdoar, eu não consigo... – seus lábios se comprimiram e eu vi a dor tomar conta de sua expressão. As lágrimas agora escorriam sem timidez enquanto as mãos dela apertavam minha camiseta com mais força. Depois disso, ela me abraçou.
Eu fiquei sem reação. Os braços envolveram meu pescoço sem medo e ela se permitiu chorar como apenas uma vez eu havia visto. O peito pulsava contra o meu e aquilo quase me fez chorar junto. Em vez disso, levei uma das mãos às costas dela suavemente. Ergui minha cabeça, olhando para o lado oposto, e minha mão livre fez menção em tocá-la também, mas acabei levando-a à minha própria cintura. Um nó fechou minha garganta.
Ela respirou fundo por algumas vezes, tentando se controlar.
- Você me odeia, ? – ela perguntou em um sussurro, mantendo o rosto escondido em meu pescoço. Voltei o meu na direção dela, sentindo meu cenho franzir. – Você me odeia, não é?
Pensei naquilo. Eu a odiava? Estava magoado, machucado, acabado, mas odiá-la? Não... Ódio era uma palavra muito forte.
- Não, eu não te odeio, .
- Jura pra mim?
- Juro.
Seus braços afrouxaram-se e ela se afastou devagar, deslizando as mãos até minha nuca. Fechei os olhos automaticamente, obrigando-me a abri-los quando o arrepio que tremeu meu corpo durou mais do que deveria.
- Eu ia te contar, . Nunca quis que você descobrisse daquele jeito, eu nunca...
- Por que você fez aquilo, ? – eu finalmente perguntei, aliviando a pressão em minha garganta e contendo os pensamentos em minha mente. Ela deu um suspiro longo e escorregou as mãos às minhas, me guiando ao centro da sala. Eu me sentei à mesa de centro e ela, no sofá, e esperei-a se recompor.
- Eu o encontrei em uma cafeteria naquela noite. Você tinha saído com os meninos, meus pais estavam em um casamento, e então eu resolvi dar uma volta também. Ele estava sentado ao lado de fora e nós nos vimos quando eu passei. Foi uma surpresa muito grande pra mim, eu não sabia que ele tinha voltado – ela fez uma pausa e eu assenti – Então, ele me convidou pra um café. Nós conversamos por um longo tempo e ele se ofereceu para me levar para casa. Na primeira vez, recusei, mas ele insistiu – baixou o olhar nesse momento e eu apenas esperei. Mas eu realmente não esperava pelo que ela diria em seguida. – Eu amo o , .
O mundo pareceu girar mais devagar para mim. Lágrimas começaram a escorrer dos olhos dela novamente. Eu só consegui dizer alguma coisa no minuto seguinte.
- Você o quê?
Ela não respondeu, apenas balançou a cabeça enquanto limpava o rosto. Senti meu estômago revirar. Meu peito doeu como se estivesse pegando fogo.
- Eu sempre o amei, . Achei que o tivesse esquecido, eu realmente achei, mas quando eu o vi... Quando ele me beijou... , eu...
Ela mesma se interrompeu quando eu me levantei e andei para o lado oposto da sala, em um ato mecânico, parando de costas a ela. Se meus pensamentos estavam confusos antes, agora eles estavam queimando meu cérebro. Eu não sabia o que falar, ela não tinha mais o que falar, então nós ficamos em silêncio até ela se levantar e tocar com ambas as mãos minhas costas. Eu me afastei na mesma hora, ficando de frente para ela novamente e sentindo minha expressão endurecer.
- Você disse que me amava. Quando disse eu te amo, você disse que também me amava. Você mentiu.
- Eu não menti.
- Ah, não? – eu me exaltei – Você diz que ama o e quer que eu acredite que não mentiu pra mim? Me diga, , como alguém é capaz de amar duas pessoas ao mesmo tempo?
- , por favor, se acalme.
- Você brincou comigo, .
- Não, eu nunca brinqu...
- Eu abri meu coração pra você, eu disse tudo o que sentia há anos por você, arrisquei a nossa amizade, eu te quis como nunca quis a ninguém, eu te... – um nó apertou minha garganta e precisei de um tempo antes de conseguir falar novamente. – Você deveria ter me dito a verdade em vez de me dizer aquilo de volta.
- Foi verdade, , mas nunca foi minha intenção te machucar. E nem poderia ser. Você é meu melhor amigo, droga! Eu te vi crescer, eu conheço cada mania sua, cada expressão sua, cada gesto seu. Você sabe o que eu sou e o que eu quero melhor do que eu e eu amo isso. Nunca abriria uma ferida no seu peito intencionalmente, nunca, então, por favor, não diga que eu brinquei com você, porque não é verdade. Não é verdade – ela levou uma das mãos à boca, tapando-a por um instante. Seus olhos marejaram de novo, mas ela conteve as lágrimas.
- Por que você nunca me contou que ainda gostava dele, ?
- Porque nem eu mesma sabia.
Eu não soube como processar aquilo. Ela umedeceu os lábios, respirou fundo e se virou, voltando para o sofá e me indicando o espaço vazio ao lado dela com a mão. Hesitei, mas acabei por sentar, apoiando os braços nos joelhos. Ela me olhou bem nos olhos e começou a falar, baixinho.
- Já fazia quase três anos, , e eu sabia que ele não ia voltar. Eu tinha certeza disso. Mas, mesmo assim, eu pensava nele. Era uma coisa automática, sabe? Quando eu percebia, ele já tinha invadido meus pensamentos. No começo, era normal, nós havíamos acabado de nos separar, mas então o primeiro ano se passou e o que eu sentia por ele não foi junto. Eu quis te contar naquela época, quis dizer a você que eu ainda gostava do , mas para quê? Eu não o teria novamente. E dizer isso a você ou a qualquer outra pessoa só serviria para eu lembrar ainda mais dele. E aquilo doía demais, me machucava demais... Eu não aguentava mais sentir aquilo. Então, enterrei. Eu me forcei a parar de pensar. Joguei tudo o que ele havia me dado fora, apaguei todas as fotos, queimei todas as cartas, tirei-o de todos os meus contatos. Eu nunca mais falei com ele de novo. Aos poucos o que eu sentia por ele foi diminuindo, e por um tempo eu fiquei bem. E aí... – um pequeno sorriso brotou nos lábios dela e, de repente, seu rosto se iluminou – Aí veio você. Eu nunca te imaginei dizendo as coisas que você disse logo para mim, mas aquilo me fez bem. Você disse que era apaixonado por mim e senti coisas que não sentia desde então. Me deu medo, é claro, pensar em você desse jeito era uma coisa nova para mim, mas aí eu parei e pensei 'ei, esse menino é perfeito.' E eu sempre achei isso. Você é lindo, inteligente, divertido, faz eu me sentir bem... Eu nunca fiquei triste quando você estava ao meu lado, . Quando você me beijou, meu Deus, aquilo foi tão fácil e tão... tão gostoso – ela aumentou o sorriso, mordendo discretamente o lábio inferior em seguida. Eu percebi que havia sorrido também. – Tudo com você era fácil.
Por um momento, fiquei calado, então senti meu sorriso diminuir.
- Você ficou comigo como uma forma de esquecê-lo?
Ela suspirou.
- De certa forma, sim. Mas eu também fiquei com você porque o que me disse naquela noite me tocou. Você estava tão nervoso, parecia um garotinho, e o jeito como você me olhou... Aquilo me derreteu. Como disse, foi a primeira vez que senti algo diferente desde . Não foi certo te colocar no meio de tudo isso sem te deixar saber, mas a verdade é que nem eu sabia mais e nunca imaginaria que, no minuto seguinte, eu te faria sofrer.
- E agora que ele voltou, o que você sentia voltou também – concluí em um sussurro, vendo-a assentir levemente. Eu não sabia o que fazer. Respirei fundo e ergui o tronco, jogando meu corpo contra o encosto do sofá. Apoiei as pernas na mesa de centro e fiquei assim, quase deitado. permaneceu na mesma posição, com as mãos entrelaçadas entre as pernas. Eu comecei a repassar mentalmente as coisas que ela havia me dito. Vi-a sair de casa e passar pela cafeteria, vi sentado e os dois conversando, vi-a recusar a carona e os braços dele envolvendo a cintura dela. Vi-me parado em frente à casa dela, vendo-a beijá-lo com vontade. Vi-a me ver. Tudo aquilo passava como um filme em minha mente. Imaginei se as coisas teriam sido diferentes se eu tivesse saído com ela naquela noite. Esse pensamento me fez raciocinar por um momento. Ela estava com o olhar perdido em algum canto da sala e eu deslizei meu braço pelo sofá até encontrar o dela. Seu rosto virou-se sem demora. Segurei firme em seu cotovelo e o puxei para mim, fazendo com que ela se aproximasse. Seu corpo deslizou pelo estofado e ela encostou a cabeça em meu peito, se aninhando.
- Você acha que um dia vai conseguir me perdoar, ?
Eu subi uma das mãos até os cabelos dela, entrelaçando meus dedos.
- Eu consigo te perdoar, .
Aquilo não significava que eu estava bem. Não significava que eu não me sentia perdido ou que não precisaria de um tempo para absorver tudo o que estava acontecendo, ou que não havia uma sombra de ressentimento.
Juntos, nós permanecemos assim por mais de uma hora.
Durante esse tempo, eu me coloquei no lugar dela. Me imaginei sentindo tudo aquilo por outra garota e se declarando para mim. Imaginei descobrir que poderia ter novamente tudo aquilo que eu nunca queria ter perdido e então comecei a entender as atitudes dela. Eu teria feito diferente? Não a culpava por tê-lo beijado. Sentia as dores disso, mas não a julgava. Não mais. Se ela aparecesse na minha frente do nada e me beijasse, eu... Bom, eu retribuiria. Eu entendia.
Meus olhos se abriram e viram a sala completamente escura. Minha mão agora acariciava o ombro dela e eu só sabia que ela estava acordada porque seus dedos brincavam em meu pulso. Eu ainda estava magoado, é lógico que eu estava, mas ela era minha melhor amiga desde que eu me entendia por gente e colocar uma das coisas mais valiosas que eu tinha na vida havia sido uma decisão somente minha. Isso, por si só, já bastava.
- Cadê seus pais? – ela perguntou baixinho. Ergui as sobrancelhas, tirando a cabeça do estofado.
- Não sei.
Ela tirou a dela de meu peito para me olhar.
- Como não sabe?
- Eu estava dormindo desde a tarde.
- Não sei como consegue – ela disse entre uma risada baixa. Eu respirei fundo e desviei o olhar. – Você não dormiu noite passada, não é?
Meus dedos saíram dos cabelos dela e tocaram de leve seu ombro. Foram necessários alguns segundos para que eu a olhasse novamente.
- Não.
deslizou os dedos de meu pulso até minha mão, entrelaçando-os aos meus.
- Eu também não. Pensei em você a noite toda, . E o dia todo. Aquilo que você disse sobre não poder mais ficar perto de mim e... – um nó na garganta a interrompeu e seus olhos marejaram, o que fez com que meus dedos limpassem a lágrima solitária que escorreu.
- Eu estava triste, . E bravo.
- Eu sei. Estava morrendo de medo de vir aqui hoje. Não queria que... – ela desviou o olhar por um segundo, sentida – Não queria que fosse tão frio comigo de novo.
- Eu não queria...
- Tudo bem – ela me cortou com um meio sorriso – Você não fez nada errado, eu mereci. Não posso voltar no tempo para te privar de toda essa dor, mas eu quero demais que consiga achar um jeito de me desculpar por ser a causa dela, porque eu te amo. E isso é incontestável.
Aquilo deixou escapar uma onda de calor do meu peito, que se espalhou por todo meu corpo. Eu não soube o que dizer, então apenas fiquei olhando-a como um cara apaixonado olha para a garota que ama, mas não pode ter.
- Estou com fome – disse após um tempo, me livrando da tensão. riu baixinho, passando uma das mãos rapidamente pelo meu rosto.
- Eu posso fazer aquela panqueca que você adora.
- Isso seria muito bom.
Nós nos levantamos e andamos até a cozinha. Eu me sentei em uma das cadeiras enquanto ela ia em direção à geladeira.
- Seus pais foram a um restaurante – ela disse e eu franzi o cenho.
- Como sabe?
- Tem um bilhete grudado aqui. Diz meu amor, fomos jantar fora. O macarrão está na geladeira.
Assenti, de repente me preocupando com o tempo.
- Que horas são?
Ela tirou o celular do bolso e o consultou.
- Meia noite e quinze. Minhas panquecas ou o macarrão?
- O que você acha?
sorriu e colocou o leite em cima da pia. Tirou a frigideira de um dos armários, colocando-a sobre uma das bocas do fogão. Comecei a brincar com uma das maçãs que havia na fruteira, deixando os pensamentos afastados. Subitamente, tirou-a de minhas mãos, sentando-se à minha frente.
- Me desculpe por não ter contado sobre nós a ele, . Foi egoísmo. Não queria correr o risco de perdê-lo novamente e isso foi puro egoísmo. Eu queria que você entendesse o quão difícil e confuso isso foi pra mim. Desculpas não são o suficiente, mas eu realmente sinto muito por isso. Sinto muito por tudo.
Pela primeira vez na noite, meus olhos marejaram. Desviei, contendo a vontade de desabar ali mesmo, na frente dela, mas uma lágrima solitária escorreu pelo meu rosto. Ouvi-a suspirar e olhei para nossas mãos quando senti a dela tocar a minha. E aquilo doeu e fez doer. E ela entendeu isso quando meus olhos vermelhos encontraram os olhos vermelhos dela.
Quis beijá-la, mas não podia.
Eu entendia, mas não aceitava.
E engoli.
- Eu me sinto estúpido – confessei.
- Estúpido? – ela questionou com um leve estranhamento na voz.
- Você foi louca por ele durante tantos anos. Você falou para mim sobre ele durante tanto tempo, eu... eu fui estúpido em achar que você sentiria por mim o mesmo que...
Eu não consegui terminar a frase. As lágrimas se formavam com mais densidade e escorriam livremente pelo meu rosto, me deixando exposto. As mãos dela apertaram fortemente a minha em uma demonstração de urgência.
- Olha para mim – disse em uma ordem. Eu o fiz, vendo-a me encarar com seriedade. - , você não tem que se sentir assim, você não foi estúpido. Você foi lindo. Tudo o que nós passamos nesses últimos três meses foi lindo, e mesmo não sendo capaz de retribuir seus sentimentos com tanta intensidade eu senti por você o que você sente por mim. Em todo esse tempo que eu passei longe dele, você foi a única pessoa com quem consegui ficar.
Aquela última frase teve efeito em mim, porque era verdade. Durante os anos em que estivera longe, não havia sentido vontade de ficar com mais ninguém, e isso pareceu acalmar alguma coisa dentro de mim.
- Tudo bem, vamos esquecer isso por agora – eu falei enquanto limpava meu rosto. apertou minha mão mais uma vez e me sorriu triste. Retribuí da mesma maneira. O fato era que o jogo tinha acabado para mim, mas eu não queria perdê-la. Eu aprenderia a conviver com isso.
Ela voltou para os ingredientes depois de se certificar de que eu estava melhor.
- Vou jogar um pouco de água no rosto - disse antes de me levantar e apenas assentiu sorrindo. Eu subi a escada e fui até o banheiro. Meus olhos ardiam e as pálpebras estavam um pouco inchadas, então enxaguei o rosto com água fria. Ao passar pelo quarto, ouvi meu celular apitar. Peguei-o em cima da escrivaninha: duas mensagens de minha mãe e uma de . Respondi a ela primeiro, dizendo que estava bem e que estava aqui. Isso os manteria fora por mais algum tempo. Em seguida, li a de .
Desculpe por mais cedo, .
Pensei em responder, mas acabei ligando para ele. Ouvi três chamadas antes de atender.
- Ei, .
- Tá tudo certo, cara.
- Pô, eu fiquei mal o dia inteiro.
- Desencana, tá tudo bem. O forçou também.
- Como você tá?
- Nesse momento, confuso.
- Como assim?
Eu respirei fundo antes de responder.
- A está aqui.
ficou alguns segundos em silêncio.
- A tá aí?
- Há algumas horas.
- Isso é bom?
Eu pensei sobre aquilo por um momento.
- Não sei, acho que sim. Digo, a gente conversou e... - me interrompi, sem saber ao certo como completar aquilo.
- E? Vocês se entenderam? O que ela disse?
- Ela se explicou. Você tinha razão, era o óbvio.
- Eu sabia, cara. Foi o momento, ela não faria de propósito.
- Ela ama o - soltei rapidamente, me sentindo ainda mais idiota depois de dizer aquilo em voz alta.
- Você não sabe disso, cara. Ela pode ter...
- Ela disse. Com todas as letras.
A respiração dele sumiu ao telefone. Eu coloquei minha mão livre no bolso e olhei para o chão, ignorando a pressão em meu peito enquanto esperava pela reação dele.
- Cacete.
- É.
- Cara, eu...
- Tudo bem.
- Onde ela está?
- Na cozinha.
- Na cozinha? - ele estranhou.
- Fazendo panquecas.
- Panquecas?
- Eu estou com fome.
puxou o ar com a boca, mas não disse nenhuma palavra. Me peguei rindo mentalmente.
- Cara, que porra acabou de acontecer aí?
Eu caminhei para fora do quarto e parei junto à escada. A sala lá embaixo continuava escura, iluminada apenas pela luz que vinha da cozinha, e eu me sentei em um dos degraus.
- Ela bateu na minha porta, disse que precisava se explicar e me abraçou. Me contou que o encontrou em uma cafeteria e que ele a ofereceu carona. Ela não aceitou, mas é claro que ele insistiu, então ele a levou até a casa dela. O resto você já sabe.
Eu senti uma queimação no peito quando a imagem dela nos braços de invadiu meus pensamentos. Foi em um canto afastado da varanda dela. Eu apareci do nada. Na porta dela. E ela estava com ele. Na varanda.
- Você sabe que ela está arrependida de verdade, não sabe?
- É, eu sei. Ela disse que ia me contar, que não queria que... - me interrompi, confuso sobre o que ela havia dito mais cedo.
- Não queria o quê?
- Não sei ao certo, mas ela disse alguma coisa sobre não querer alguma coisa.
- Te magoar, talvez.
- Não, não era isso...
- Tanto faz, não importa. Depois você descobre. O importante é que...
- Descobrir - eu o cortei quando meu cérebro desfez o nó - É isso, ela disse que não queria que eu tivesse descoberto daquele jeito.
- Descoberto o quê? - a voz grave de me perguntou do outro lado. Senti meu cenho franzir, e uma onda gelada se espalhou do meu peito para o resto do corpo. Meu coração bateu um pouco mais acelerado.
- Ela disse que não era para eu ter descoberto daquele jeito - repeti aquelas palavras em um sussurro.
Não era para você ter descoberto daquele jeito.
Não era para eu ter descoberto.
Descoberto.
Descoberto o quê?
Um clique em minha mente carregou uma ideia que me fez estremecer. Me senti ainda mais frio. Só frio.
- , você não tá achando que...
- Eu te ligo depois - o cortei novamente e desliguei o celular, colocando-o no bolso ao me levantar. Meus pés passavam pelos degraus com pressa, mas ficaram presos ao chão assim que parei junto à porta. colocava pratos sobre a mesa e me olhou sorrindo.
- O que não era para eu ter descoberto?
Ela parou. O ar faltou em meus pulmões. A voz arranhou a garganta dela.
- Como?
- O que não era para eu ter descoberto?
Pude sentir o sangue pulsando em minhas veias quando os olhos dela gastaram tempo demais fixos aos meus. Eu não me movia. Eu não respirava. Eu não...
- C-como assim? – sua voz não passou de um sussurro gago, seguida por uma risada curta e nervosa.
- Você disse que não era para eu ter descoberto daquele jeito. Do que você estava falando, ?
Os olhos dela continuaram presos aos meus e eu tinha certeza de que apenas meus lábios se moveram naquele momento. Meu coração batia forte no peito com a possibilidade que cruzava minha mente. Ela desviou o olhar e eu tremi quando as mãos dela tremeram em volta do prato.
- Eu não quis dizer nada, – ela voltou a atenção ao que estava fazendo, mas atenção era o que ela menos tinha. Senti um buraco se abrir gradativamente sob meus pés.
- Você não está escondendo nada de mim, está? – perguntei em um fio de voz. Pude jurar que ela havia engolido em seco.
- Por que eu esconderia alguma coisa de você? – ela soltou outra risada nervosa, ficando de costas para mim por um momento. Um nó fechou minha garganta.
- Ninguém diz que não quer ser descoberto se não tem algo a esconder, .
- Não seja bobo, , foi só uma expressão – sua voz tremeu. Me vi inquieto. E fiquei calado pelos minutos seguintes, vendo-a terminar de arrumar a mesa com uma tensão no maxilar. Dei alguns passos em sua direção e, juntando a coragem de que eu precisava, arrisquei a pergunta que me assustava.
- Há quanto tempo vocês estão juntos?
O barulho dos ponteiros circulando o relógio parecia ficar mais alto conforme os segundos em silêncio se passavam. Eu não me movi e ela não se moveu. Eu encarava seu perfil sem expressão enquanto ela encarava o nada.
Ela fechou os olhos.
- Olha pra mim – ordenei. hesitou. Minha voz cortou o ar com a precisão de uma navalha. – Olha pra mim.
Seu peito subiu quando ela inspirou fundo e, mesmo com a expressão tomada pela dor, ela obedeceu. Ou seria culpa?
- ... – meu nome deixou os lábios dela em um sussurro praticamente inaudível. Eu conhecia aquela voz, conhecia aquela postura e, definitivamente, conhecia aquele olhar. Aquele silêncio. Ele me deixou extremamente nervoso.
- Há quanto tempo você e ele estão juntos, ? – os olhos dela mais uma vez ficaram vermelhos e eu, mais uma vez, sem respostas.
- , por favor, me deixa...
- Responde – interrompi, me assustando com a frieza em minha voz.
- Me deixa explicar... – ela juntou as mãos frente à boca em uma súplica enquanto seu rosto perdia cada vez mais a cor. Eu a cortei novamente, sentindo o sangue esquentar nas veias.
- Responde, .
- Por favor, , por favor, me deixa dizer o porquê de...
- Responde! – gritei, batendo com a mão fechada em punho na mesa, as cordas vocais ardendo em minha garganta enquanto o calor do sangue preenchia meu rosto. tremeu com o susto e arregalou os olhos, me encarando com surpresa e... medo.
- Dois meses.
O que havia em meu corpo se esvaiu, o que havia em meu peito se contorceu, o que havia em minha mente me entorpeceu. O tempo parou. O buraco sob meus pés se abriu. E eu caí.
- Feche a porta quando sair.
Eu me senti frio. E me senti quente.
Ela usava jeans escuros, regata branca, chinelos e tinha os cabelos soltos. Estranhei os chinelos. Aquela não era ela, mas, céus, ela estava... ela estava ainda mais linda.
- Me desculpe por aparecer desse jeito, mas eu preciso falar com você. Eu preciso muito falar com você. Por favor, não me mande embora – ela disparou as palavras como uma bala, a voz dividida entre a súplica e o medo. Eu ainda estava surpreso em vê-la parada à minha porta e, sem saber o porquê, cedi. Dei espaço para que ela entrasse e me arrependi por não segurar a respiração quando ela passou por mim. O perfume dela me atingiu como um soco. Antes de fechar a porta por completo, notei a casa da frente completamente escura, assim como o céu. Por quanto tempo eu havia dormido?
- Você está bem? – ela perguntou com a voz doce. Me virei, encarando-a por um momento. O que diabos ela esperava que eu respondesse? Talvez minha pergunta interna tivesse se estampado em meu rosto, porque ela acrescentou, sem jeito – Desculpe, pergunta idiota.
Não soube o que dizer, e o silêncio se instalou. Por um bom tempo.
Os olhos castanhos dela penetravam fundo nos meus como se eu pudesse lê-los, como se aquilo bastasse para que eu entendesse o que se passava na mente dela. Havia tantas coisas que eu queria saber, que eu precisava descobrir, mas, mais uma vez, eu só fiquei lá, parado como o idiota que me sentia. E ela também. Até que suas mãos percorreram seu rosto e seus dedos entrelaçaram os cabelos, puxando-os com desespero, impaciência, cansaço. Seus pés deram alguns passos desnorteados e no, segundo seguinte, andaram apressados até mim, parando a apenas alguns centímetros dos meus. Suas mãos espalmaram-se em meu peito e apertaram com certa força minha camiseta, fazendo meu corpo tremer. Ela me olhou e engoli em seco quando sua respiração bateu contra meus lábios. Então, seus olhos marejaram.
- Eu não estou bem... – ela disse baixinho, a voz embargada. – Eu não consigo... não consigo me perdoar, eu não consigo... – seus lábios se comprimiram e eu vi a dor tomar conta de sua expressão. As lágrimas agora escorriam sem timidez enquanto as mãos dela apertavam minha camiseta com mais força. Depois disso, ela me abraçou.
Eu fiquei sem reação. Os braços envolveram meu pescoço sem medo e ela se permitiu chorar como apenas uma vez eu havia visto. O peito pulsava contra o meu e aquilo quase me fez chorar junto. Em vez disso, levei uma das mãos às costas dela suavemente. Ergui minha cabeça, olhando para o lado oposto, e minha mão livre fez menção em tocá-la também, mas acabei levando-a à minha própria cintura. Um nó fechou minha garganta.
Ela respirou fundo por algumas vezes, tentando se controlar.
- Você me odeia, ? – ela perguntou em um sussurro, mantendo o rosto escondido em meu pescoço. Voltei o meu na direção dela, sentindo meu cenho franzir. – Você me odeia, não é?
Pensei naquilo. Eu a odiava? Estava magoado, machucado, acabado, mas odiá-la? Não... Ódio era uma palavra muito forte.
- Não, eu não te odeio, .
- Jura pra mim?
- Juro.
Seus braços afrouxaram-se e ela se afastou devagar, deslizando as mãos até minha nuca. Fechei os olhos automaticamente, obrigando-me a abri-los quando o arrepio que tremeu meu corpo durou mais do que deveria.
- Eu ia te contar, . Nunca quis que você descobrisse daquele jeito, eu nunca...
- Por que você fez aquilo, ? – eu finalmente perguntei, aliviando a pressão em minha garganta e contendo os pensamentos em minha mente. Ela deu um suspiro longo e escorregou as mãos às minhas, me guiando ao centro da sala. Eu me sentei à mesa de centro e ela, no sofá, e esperei-a se recompor.
- Eu o encontrei em uma cafeteria naquela noite. Você tinha saído com os meninos, meus pais estavam em um casamento, e então eu resolvi dar uma volta também. Ele estava sentado ao lado de fora e nós nos vimos quando eu passei. Foi uma surpresa muito grande pra mim, eu não sabia que ele tinha voltado – ela fez uma pausa e eu assenti – Então, ele me convidou pra um café. Nós conversamos por um longo tempo e ele se ofereceu para me levar para casa. Na primeira vez, recusei, mas ele insistiu – baixou o olhar nesse momento e eu apenas esperei. Mas eu realmente não esperava pelo que ela diria em seguida. – Eu amo o , .
O mundo pareceu girar mais devagar para mim. Lágrimas começaram a escorrer dos olhos dela novamente. Eu só consegui dizer alguma coisa no minuto seguinte.
- Você o quê?
Ela não respondeu, apenas balançou a cabeça enquanto limpava o rosto. Senti meu estômago revirar. Meu peito doeu como se estivesse pegando fogo.
- Eu sempre o amei, . Achei que o tivesse esquecido, eu realmente achei, mas quando eu o vi... Quando ele me beijou... , eu...
Ela mesma se interrompeu quando eu me levantei e andei para o lado oposto da sala, em um ato mecânico, parando de costas a ela. Se meus pensamentos estavam confusos antes, agora eles estavam queimando meu cérebro. Eu não sabia o que falar, ela não tinha mais o que falar, então nós ficamos em silêncio até ela se levantar e tocar com ambas as mãos minhas costas. Eu me afastei na mesma hora, ficando de frente para ela novamente e sentindo minha expressão endurecer.
- Você disse que me amava. Quando disse eu te amo, você disse que também me amava. Você mentiu.
- Eu não menti.
- Ah, não? – eu me exaltei – Você diz que ama o e quer que eu acredite que não mentiu pra mim? Me diga, , como alguém é capaz de amar duas pessoas ao mesmo tempo?
- , por favor, se acalme.
- Você brincou comigo, .
- Não, eu nunca brinqu...
- Eu abri meu coração pra você, eu disse tudo o que sentia há anos por você, arrisquei a nossa amizade, eu te quis como nunca quis a ninguém, eu te... – um nó apertou minha garganta e precisei de um tempo antes de conseguir falar novamente. – Você deveria ter me dito a verdade em vez de me dizer aquilo de volta.
- Foi verdade, , mas nunca foi minha intenção te machucar. E nem poderia ser. Você é meu melhor amigo, droga! Eu te vi crescer, eu conheço cada mania sua, cada expressão sua, cada gesto seu. Você sabe o que eu sou e o que eu quero melhor do que eu e eu amo isso. Nunca abriria uma ferida no seu peito intencionalmente, nunca, então, por favor, não diga que eu brinquei com você, porque não é verdade. Não é verdade – ela levou uma das mãos à boca, tapando-a por um instante. Seus olhos marejaram de novo, mas ela conteve as lágrimas.
- Por que você nunca me contou que ainda gostava dele, ?
- Porque nem eu mesma sabia.
Eu não soube como processar aquilo. Ela umedeceu os lábios, respirou fundo e se virou, voltando para o sofá e me indicando o espaço vazio ao lado dela com a mão. Hesitei, mas acabei por sentar, apoiando os braços nos joelhos. Ela me olhou bem nos olhos e começou a falar, baixinho.
- Já fazia quase três anos, , e eu sabia que ele não ia voltar. Eu tinha certeza disso. Mas, mesmo assim, eu pensava nele. Era uma coisa automática, sabe? Quando eu percebia, ele já tinha invadido meus pensamentos. No começo, era normal, nós havíamos acabado de nos separar, mas então o primeiro ano se passou e o que eu sentia por ele não foi junto. Eu quis te contar naquela época, quis dizer a você que eu ainda gostava do , mas para quê? Eu não o teria novamente. E dizer isso a você ou a qualquer outra pessoa só serviria para eu lembrar ainda mais dele. E aquilo doía demais, me machucava demais... Eu não aguentava mais sentir aquilo. Então, enterrei. Eu me forcei a parar de pensar. Joguei tudo o que ele havia me dado fora, apaguei todas as fotos, queimei todas as cartas, tirei-o de todos os meus contatos. Eu nunca mais falei com ele de novo. Aos poucos o que eu sentia por ele foi diminuindo, e por um tempo eu fiquei bem. E aí... – um pequeno sorriso brotou nos lábios dela e, de repente, seu rosto se iluminou – Aí veio você. Eu nunca te imaginei dizendo as coisas que você disse logo para mim, mas aquilo me fez bem. Você disse que era apaixonado por mim e senti coisas que não sentia desde então. Me deu medo, é claro, pensar em você desse jeito era uma coisa nova para mim, mas aí eu parei e pensei 'ei, esse menino é perfeito.' E eu sempre achei isso. Você é lindo, inteligente, divertido, faz eu me sentir bem... Eu nunca fiquei triste quando você estava ao meu lado, . Quando você me beijou, meu Deus, aquilo foi tão fácil e tão... tão gostoso – ela aumentou o sorriso, mordendo discretamente o lábio inferior em seguida. Eu percebi que havia sorrido também. – Tudo com você era fácil.
Por um momento, fiquei calado, então senti meu sorriso diminuir.
- Você ficou comigo como uma forma de esquecê-lo?
Ela suspirou.
- De certa forma, sim. Mas eu também fiquei com você porque o que me disse naquela noite me tocou. Você estava tão nervoso, parecia um garotinho, e o jeito como você me olhou... Aquilo me derreteu. Como disse, foi a primeira vez que senti algo diferente desde . Não foi certo te colocar no meio de tudo isso sem te deixar saber, mas a verdade é que nem eu sabia mais e nunca imaginaria que, no minuto seguinte, eu te faria sofrer.
- E agora que ele voltou, o que você sentia voltou também – concluí em um sussurro, vendo-a assentir levemente. Eu não sabia o que fazer. Respirei fundo e ergui o tronco, jogando meu corpo contra o encosto do sofá. Apoiei as pernas na mesa de centro e fiquei assim, quase deitado. permaneceu na mesma posição, com as mãos entrelaçadas entre as pernas. Eu comecei a repassar mentalmente as coisas que ela havia me dito. Vi-a sair de casa e passar pela cafeteria, vi sentado e os dois conversando, vi-a recusar a carona e os braços dele envolvendo a cintura dela. Vi-me parado em frente à casa dela, vendo-a beijá-lo com vontade. Vi-a me ver. Tudo aquilo passava como um filme em minha mente. Imaginei se as coisas teriam sido diferentes se eu tivesse saído com ela naquela noite. Esse pensamento me fez raciocinar por um momento. Ela estava com o olhar perdido em algum canto da sala e eu deslizei meu braço pelo sofá até encontrar o dela. Seu rosto virou-se sem demora. Segurei firme em seu cotovelo e o puxei para mim, fazendo com que ela se aproximasse. Seu corpo deslizou pelo estofado e ela encostou a cabeça em meu peito, se aninhando.
- Você acha que um dia vai conseguir me perdoar, ?
Eu subi uma das mãos até os cabelos dela, entrelaçando meus dedos.
- Eu consigo te perdoar, .
Aquilo não significava que eu estava bem. Não significava que eu não me sentia perdido ou que não precisaria de um tempo para absorver tudo o que estava acontecendo, ou que não havia uma sombra de ressentimento.
Juntos, nós permanecemos assim por mais de uma hora.
Durante esse tempo, eu me coloquei no lugar dela. Me imaginei sentindo tudo aquilo por outra garota e se declarando para mim. Imaginei descobrir que poderia ter novamente tudo aquilo que eu nunca queria ter perdido e então comecei a entender as atitudes dela. Eu teria feito diferente? Não a culpava por tê-lo beijado. Sentia as dores disso, mas não a julgava. Não mais. Se ela aparecesse na minha frente do nada e me beijasse, eu... Bom, eu retribuiria. Eu entendia.
Meus olhos se abriram e viram a sala completamente escura. Minha mão agora acariciava o ombro dela e eu só sabia que ela estava acordada porque seus dedos brincavam em meu pulso. Eu ainda estava magoado, é lógico que eu estava, mas ela era minha melhor amiga desde que eu me entendia por gente e colocar uma das coisas mais valiosas que eu tinha na vida havia sido uma decisão somente minha. Isso, por si só, já bastava.
- Cadê seus pais? – ela perguntou baixinho. Ergui as sobrancelhas, tirando a cabeça do estofado.
- Não sei.
Ela tirou a dela de meu peito para me olhar.
- Como não sabe?
- Eu estava dormindo desde a tarde.
- Não sei como consegue – ela disse entre uma risada baixa. Eu respirei fundo e desviei o olhar. – Você não dormiu noite passada, não é?
Meus dedos saíram dos cabelos dela e tocaram de leve seu ombro. Foram necessários alguns segundos para que eu a olhasse novamente.
- Não.
deslizou os dedos de meu pulso até minha mão, entrelaçando-os aos meus.
- Eu também não. Pensei em você a noite toda, . E o dia todo. Aquilo que você disse sobre não poder mais ficar perto de mim e... – um nó na garganta a interrompeu e seus olhos marejaram, o que fez com que meus dedos limpassem a lágrima solitária que escorreu.
- Eu estava triste, . E bravo.
- Eu sei. Estava morrendo de medo de vir aqui hoje. Não queria que... – ela desviou o olhar por um segundo, sentida – Não queria que fosse tão frio comigo de novo.
- Eu não queria...
- Tudo bem – ela me cortou com um meio sorriso – Você não fez nada errado, eu mereci. Não posso voltar no tempo para te privar de toda essa dor, mas eu quero demais que consiga achar um jeito de me desculpar por ser a causa dela, porque eu te amo. E isso é incontestável.
Aquilo deixou escapar uma onda de calor do meu peito, que se espalhou por todo meu corpo. Eu não soube o que dizer, então apenas fiquei olhando-a como um cara apaixonado olha para a garota que ama, mas não pode ter.
- Estou com fome – disse após um tempo, me livrando da tensão. riu baixinho, passando uma das mãos rapidamente pelo meu rosto.
- Eu posso fazer aquela panqueca que você adora.
- Isso seria muito bom.
Nós nos levantamos e andamos até a cozinha. Eu me sentei em uma das cadeiras enquanto ela ia em direção à geladeira.
- Seus pais foram a um restaurante – ela disse e eu franzi o cenho.
- Como sabe?
- Tem um bilhete grudado aqui. Diz meu amor, fomos jantar fora. O macarrão está na geladeira.
Assenti, de repente me preocupando com o tempo.
- Que horas são?
Ela tirou o celular do bolso e o consultou.
- Meia noite e quinze. Minhas panquecas ou o macarrão?
- O que você acha?
sorriu e colocou o leite em cima da pia. Tirou a frigideira de um dos armários, colocando-a sobre uma das bocas do fogão. Comecei a brincar com uma das maçãs que havia na fruteira, deixando os pensamentos afastados. Subitamente, tirou-a de minhas mãos, sentando-se à minha frente.
- Me desculpe por não ter contado sobre nós a ele, . Foi egoísmo. Não queria correr o risco de perdê-lo novamente e isso foi puro egoísmo. Eu queria que você entendesse o quão difícil e confuso isso foi pra mim. Desculpas não são o suficiente, mas eu realmente sinto muito por isso. Sinto muito por tudo.
Pela primeira vez na noite, meus olhos marejaram. Desviei, contendo a vontade de desabar ali mesmo, na frente dela, mas uma lágrima solitária escorreu pelo meu rosto. Ouvi-a suspirar e olhei para nossas mãos quando senti a dela tocar a minha. E aquilo doeu e fez doer. E ela entendeu isso quando meus olhos vermelhos encontraram os olhos vermelhos dela.
Quis beijá-la, mas não podia.
Eu entendia, mas não aceitava.
E engoli.
- Eu me sinto estúpido – confessei.
- Estúpido? – ela questionou com um leve estranhamento na voz.
- Você foi louca por ele durante tantos anos. Você falou para mim sobre ele durante tanto tempo, eu... eu fui estúpido em achar que você sentiria por mim o mesmo que...
Eu não consegui terminar a frase. As lágrimas se formavam com mais densidade e escorriam livremente pelo meu rosto, me deixando exposto. As mãos dela apertaram fortemente a minha em uma demonstração de urgência.
- Olha para mim – disse em uma ordem. Eu o fiz, vendo-a me encarar com seriedade. - , você não tem que se sentir assim, você não foi estúpido. Você foi lindo. Tudo o que nós passamos nesses últimos três meses foi lindo, e mesmo não sendo capaz de retribuir seus sentimentos com tanta intensidade eu senti por você o que você sente por mim. Em todo esse tempo que eu passei longe dele, você foi a única pessoa com quem consegui ficar.
Aquela última frase teve efeito em mim, porque era verdade. Durante os anos em que estivera longe, não havia sentido vontade de ficar com mais ninguém, e isso pareceu acalmar alguma coisa dentro de mim.
- Tudo bem, vamos esquecer isso por agora – eu falei enquanto limpava meu rosto. apertou minha mão mais uma vez e me sorriu triste. Retribuí da mesma maneira. O fato era que o jogo tinha acabado para mim, mas eu não queria perdê-la. Eu aprenderia a conviver com isso.
Ela voltou para os ingredientes depois de se certificar de que eu estava melhor.
- Vou jogar um pouco de água no rosto - disse antes de me levantar e apenas assentiu sorrindo. Eu subi a escada e fui até o banheiro. Meus olhos ardiam e as pálpebras estavam um pouco inchadas, então enxaguei o rosto com água fria. Ao passar pelo quarto, ouvi meu celular apitar. Peguei-o em cima da escrivaninha: duas mensagens de minha mãe e uma de . Respondi a ela primeiro, dizendo que estava bem e que estava aqui. Isso os manteria fora por mais algum tempo. Em seguida, li a de .
Desculpe por mais cedo, .
Pensei em responder, mas acabei ligando para ele. Ouvi três chamadas antes de atender.
- Ei, .
- Tá tudo certo, cara.
- Pô, eu fiquei mal o dia inteiro.
- Desencana, tá tudo bem. O forçou também.
- Como você tá?
- Nesse momento, confuso.
- Como assim?
Eu respirei fundo antes de responder.
- A está aqui.
ficou alguns segundos em silêncio.
- A tá aí?
- Há algumas horas.
- Isso é bom?
Eu pensei sobre aquilo por um momento.
- Não sei, acho que sim. Digo, a gente conversou e... - me interrompi, sem saber ao certo como completar aquilo.
- E? Vocês se entenderam? O que ela disse?
- Ela se explicou. Você tinha razão, era o óbvio.
- Eu sabia, cara. Foi o momento, ela não faria de propósito.
- Ela ama o - soltei rapidamente, me sentindo ainda mais idiota depois de dizer aquilo em voz alta.
- Você não sabe disso, cara. Ela pode ter...
- Ela disse. Com todas as letras.
A respiração dele sumiu ao telefone. Eu coloquei minha mão livre no bolso e olhei para o chão, ignorando a pressão em meu peito enquanto esperava pela reação dele.
- Cacete.
- É.
- Cara, eu...
- Tudo bem.
- Onde ela está?
- Na cozinha.
- Na cozinha? - ele estranhou.
- Fazendo panquecas.
- Panquecas?
- Eu estou com fome.
puxou o ar com a boca, mas não disse nenhuma palavra. Me peguei rindo mentalmente.
- Cara, que porra acabou de acontecer aí?
Eu caminhei para fora do quarto e parei junto à escada. A sala lá embaixo continuava escura, iluminada apenas pela luz que vinha da cozinha, e eu me sentei em um dos degraus.
- Ela bateu na minha porta, disse que precisava se explicar e me abraçou. Me contou que o encontrou em uma cafeteria e que ele a ofereceu carona. Ela não aceitou, mas é claro que ele insistiu, então ele a levou até a casa dela. O resto você já sabe.
Eu senti uma queimação no peito quando a imagem dela nos braços de invadiu meus pensamentos. Foi em um canto afastado da varanda dela. Eu apareci do nada. Na porta dela. E ela estava com ele. Na varanda.
- Você sabe que ela está arrependida de verdade, não sabe?
- É, eu sei. Ela disse que ia me contar, que não queria que... - me interrompi, confuso sobre o que ela havia dito mais cedo.
- Não queria o quê?
- Não sei ao certo, mas ela disse alguma coisa sobre não querer alguma coisa.
- Te magoar, talvez.
- Não, não era isso...
- Tanto faz, não importa. Depois você descobre. O importante é que...
- Descobrir - eu o cortei quando meu cérebro desfez o nó - É isso, ela disse que não queria que eu tivesse descoberto daquele jeito.
- Descoberto o quê? - a voz grave de me perguntou do outro lado. Senti meu cenho franzir, e uma onda gelada se espalhou do meu peito para o resto do corpo. Meu coração bateu um pouco mais acelerado.
- Ela disse que não era para eu ter descoberto daquele jeito - repeti aquelas palavras em um sussurro.
Não era para você ter descoberto daquele jeito.
Não era para eu ter descoberto.
Descoberto.
Descoberto o quê?
Um clique em minha mente carregou uma ideia que me fez estremecer. Me senti ainda mais frio. Só frio.
- , você não tá achando que...
- Eu te ligo depois - o cortei novamente e desliguei o celular, colocando-o no bolso ao me levantar. Meus pés passavam pelos degraus com pressa, mas ficaram presos ao chão assim que parei junto à porta. colocava pratos sobre a mesa e me olhou sorrindo.
- O que não era para eu ter descoberto?
Ela parou. O ar faltou em meus pulmões. A voz arranhou a garganta dela.
- Como?
- O que não era para eu ter descoberto?
Pude sentir o sangue pulsando em minhas veias quando os olhos dela gastaram tempo demais fixos aos meus. Eu não me movia. Eu não respirava. Eu não...
- C-como assim? – sua voz não passou de um sussurro gago, seguida por uma risada curta e nervosa.
- Você disse que não era para eu ter descoberto daquele jeito. Do que você estava falando, ?
Os olhos dela continuaram presos aos meus e eu tinha certeza de que apenas meus lábios se moveram naquele momento. Meu coração batia forte no peito com a possibilidade que cruzava minha mente. Ela desviou o olhar e eu tremi quando as mãos dela tremeram em volta do prato.
- Eu não quis dizer nada, – ela voltou a atenção ao que estava fazendo, mas atenção era o que ela menos tinha. Senti um buraco se abrir gradativamente sob meus pés.
- Você não está escondendo nada de mim, está? – perguntei em um fio de voz. Pude jurar que ela havia engolido em seco.
- Por que eu esconderia alguma coisa de você? – ela soltou outra risada nervosa, ficando de costas para mim por um momento. Um nó fechou minha garganta.
- Ninguém diz que não quer ser descoberto se não tem algo a esconder, .
- Não seja bobo, , foi só uma expressão – sua voz tremeu. Me vi inquieto. E fiquei calado pelos minutos seguintes, vendo-a terminar de arrumar a mesa com uma tensão no maxilar. Dei alguns passos em sua direção e, juntando a coragem de que eu precisava, arrisquei a pergunta que me assustava.
- Há quanto tempo vocês estão juntos?
O barulho dos ponteiros circulando o relógio parecia ficar mais alto conforme os segundos em silêncio se passavam. Eu não me movi e ela não se moveu. Eu encarava seu perfil sem expressão enquanto ela encarava o nada.
Ela fechou os olhos.
- Olha pra mim – ordenei. hesitou. Minha voz cortou o ar com a precisão de uma navalha. – Olha pra mim.
Seu peito subiu quando ela inspirou fundo e, mesmo com a expressão tomada pela dor, ela obedeceu. Ou seria culpa?
- ... – meu nome deixou os lábios dela em um sussurro praticamente inaudível. Eu conhecia aquela voz, conhecia aquela postura e, definitivamente, conhecia aquele olhar. Aquele silêncio. Ele me deixou extremamente nervoso.
- Há quanto tempo você e ele estão juntos, ? – os olhos dela mais uma vez ficaram vermelhos e eu, mais uma vez, sem respostas.
- , por favor, me deixa...
- Responde – interrompi, me assustando com a frieza em minha voz.
- Me deixa explicar... – ela juntou as mãos frente à boca em uma súplica enquanto seu rosto perdia cada vez mais a cor. Eu a cortei novamente, sentindo o sangue esquentar nas veias.
- Responde, .
- Por favor, , por favor, me deixa dizer o porquê de...
- Responde! – gritei, batendo com a mão fechada em punho na mesa, as cordas vocais ardendo em minha garganta enquanto o calor do sangue preenchia meu rosto. tremeu com o susto e arregalou os olhos, me encarando com surpresa e... medo.
- Dois meses.
O que havia em meu corpo se esvaiu, o que havia em meu peito se contorceu, o que havia em minha mente me entorpeceu. O tempo parou. O buraco sob meus pés se abriu. E eu caí.
- Feche a porta quando sair.
Fim
Nota da autora: Esse é o terceiro conto, embora não exista ordem. Obrigada por ler! =)
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