Uma Carta Para Alessa

Última atualização: 05/10/2017

Capítulo 1

Narrada por Carl.

Como psicólogo, sou acostumado a escutar muitas histórias. Muitas delas são realmente tristes, que te fazem pensar e repensar nelas em algum momento antes de você finalmente pegar no sono. Mas são poucas que te tocam profundamente quanto a história da Alessa.

Alessa, ou Al, como ela gostava que eu a chamasse, chegou repentinamente ao consultório com toda a sua personalidade forte. De início achei que estava com algum problema com o início das aulas, mas a partir do momento em que ela passou a realmente confiar em mim, pude ver que ela era apenas uma menina com medo. Medo de ser esquecida, medo de não ser suficiente para os próprios pais, medo de não conseguir a amizade da única pessoa na qual ela julgava ser sua amiga e principalmente medo de ir embora de uma vez.

Al era uma menina que infelizmente descobriu tarde demais a doença, o que a fez querer desistir logo de cara. Ela sabia que sofreria com tudo que os médicos receitassem, sabia que seu corpo seria agredido ainda mais de dentro para fora. Sabia que não adiantava mais lutar com garras e dentes.

Por um momento, decidi que não seria seu psicólogo. Ela precisava de um amigo, e por maior que fosse a nossa diferença de idade, Alessa era uma criança com alma de gente velha. Gostava de sentar à mesa para tomar um café e ler o jornal, gostava de ficar em casa e passar horas na frente da televisão, gostava de muitas coisas que não eram "apropriadas" para a idade dela. O que me encantou ainda mais é que ela era fascinada pela física. Que garota de dezessete anos gosta de física? Ela era simplesmente encantadora.

Passamos bons momentos juntos. Mesmo que fossem apenas algumas horas por dia. Nós nos tornamos verdadeiros amigos. Nós compartilhávamos acontecimentos diários, e mesmo que não nos víssemos, ela me ligava, ou eu acabava ligando.

Minha esposa foi a primeira a notar a mudança no meu comportamento. Donna certa vez me chamou e disse que jamais havia visto eu me envolver com um caso do jeito que estava envolvido com o de Alessa, mas assim que tentei lhe explicar e quando elas finalmente se conheceram, Donna pôde notar por si mesma o quão aquela garota era especial.

Minha família a acolheu de braços abertos. Ela fazia parte de todos nós.

Mesmo que fôssemos amigos, não deixei meu lado profissional para trás. Ainda precisava relatar como ela estava, o quão forte foi o abalo da doença para o psicológico dela.

Certo dia tive uma conversa demorada e cheia de lágrimas nos olhos com os pais dela. A mãe não admitia que a filha estava doente e queria fazer de tudo e mais um pouco para que a menina melhorasse, o que já era de se esperar. Mas vi seu pai abatido quando conversamos sobre a vontade dela ir embora dali. Sheboygan não era mais o lugar de Alessa e por mais que doesse neles, o pai entendia que ela precisava sair dali.

- As férias de verão estão quase chegando. - Ele disse com a voz embargada e as lágrimas brilhando nos olhos. - Sei o porquê dela querer ir para longe. Sei que ela precisa desse momento sozinha e também sei que ela está fazendo isso para nos poupar de vê-la indo embora de vez.

Depois que ele terminou de dizer aquelas palavras, vi sua esposa arregalar os olhos e depois soluçar alto em seu ombro. Eu mesmo quase não me contive ao ouvir aquilo. Sei que ele não estava se livrando da menina, ao contrário, queria que a própria filha tivesse um momento de felicidade antes de partir.

Ele já tinha aceitado a escolha dela, mas a esposa estava com muita dificuldade em ver a filha morrer. Que pai acha isso fácil? Que tipo de ser humano aceita que alguém se isole para morrer sozinho?

- Sei que a Alessa confia em você. - Ella, a mãe, começou a falar baixinho, limpando as lágrimas derramadas. - Eu ainda não quero que ela se vá mas ela quer muito isso e talvez com o tempo eu consiga entender o porquê, não agora, mas um dia... Carl, você deve dar o sim para ela. A Al vai gostar de ter uma boa notícia vindo de você.

- Não sei se essa é uma boa ideia. - Comentei, vendo a dúvida cruzar os olhos deles. - Com a Alessa longe, vocês não poderão saber quando ela irá.

A mulher conseguiu conter as lágrimas e o homem abaixou a cabeça. Eles pareciam derrotados, mas precisava continuar.

- A Alessa querendo ou não, está doente. Ela não pode fugir disso! Ela sabe os riscos que corre com a viagem.

- Ela entende tudo isso doutor, mas ao menos esse desejo dela eu quero ser capaz de cumprir. - o pai de Alessa se levantou ao terminar de falar, sem ao menos olhar para trás. Sabia que ele estava sofrendo e mal podia sentir o tamanho da dor que ele estava sentindo. Eu jamais me imaginei nessa situação com meus filhos de sangue, mas estava sofrendo quase tanto como se a própria Alessa fosse minha filha.

- Por favor, avise a ela que está tudo bem se ela ainda quiser viajar. - Ella disse e levantou-se, me cumprimentou e deixou o consultório.

Ainda não foi naquele dia que dei a tão esperada novidade para ela. Para falar a verdade, eu ainda não estava preparado para que ela se fosse. Sabia o quanto ela esperava que os pais a dessem carta branca para viajar, mas quando a incumbência caiu em minhas mãos, decidi esperar e conversar com Al.

Depois de dois dias seguidos com Alessa vindo se consultar e eu tentando persuadi-la a ficar, a menina chegou sorridente ao consultório. Naquele momento eu soube que precisava dizer tudo de uma vez em vez de prolongar a sua angústia.

Tive sorte de meu cérebro inventar uma história sobre uma ligação de seus pais, mas ela ficou tão entusiasmada que pude ter certeza que ela acreditou no que disse.

- Isso não está fazendo um mínimo de sentido na minha cabeça, mas aceitava essa notícia até do diretor da Madison! - Foi o que ela disse, toda sorridente e feliz como não via a vários dias.

Voltei a perguntar sobre a escola, sobre a amiga Greta para ver se Alessa pensava mais uma vez antes de sair correndo, mas a reação que tive foi o oposto. Ela e Greta andavam discutindo demais, tudo em questão de uma conversa entre a amiga e a mãe. As duas concordavam que a menina deveria ficar e se tratar. Mas Al sabia que de nada adiantaria.

Mesmo depois que a autorização dos pais de Alessa, ela continuava a frequentar o consultório, mesmo quando não era mais preciso. Ela vinha todas as tardes e sempre derramava suas emoções para mim. Ela dizia que as coisas em casa estavam com o clima pesado e depois se lamentava por compartilhar aquilo comigo, mas apenas pedia que ela respirasse fundo e se acalmasse, o que acabava deixando-a com um pouco de raiva.

Na noite anterior a sua viagem, Alessa me ligou para informar o horário de seu vôo, pediu muitas vezes que eu fosse me despedir. Disse que iria em todas as vezes que ela pedia, mas eu sabia que não conseguiria chegar lá e dizer tchau a alguém que era tão querido.

Na manhã seguinte eu continuei com a minha rotina normalmente. Sabia que Alessa estaria no aeroporto às três da tarde e que ela estaria me esperando. Donna e Junior estavam em casa e disseram para ir me despedir da garota, mas estava sem coragem.

- Vamos. - Junior disse ao adentrar a sala. - Nós vamos juntos dizer tchau para ela.

- Não precisamos fazer isso.

- Precisamos sim. Você pode ser amigo da Al, mas todos nós a acolhemos como se fosse da família.

Depois de procurar argumentos e continuar sentado no sofá, me convenci de que queria ao menos dar um abraço nela e por isso fomos dirigindo ao aeroporto.

Chegamos pouco antes de anunciarem seu vôo, eu a vi de longe enquanto era abraçada pelos pais e por uma jovem moça que imaginei ser Greta. Sentei-me aonde estava e Junior me encarava.

- Não posso fazer isso. - Sentia uma bola de lágrimas não derramadas presa em minha garganta. - Não posso me despedir da Al.

- Pai... - Meu filho sentou-se ao meu lado e passou o braço pelo meu ombro. - A Al deve estar apenas lhe esperando.

- Mas eu não quero que ela me veja assim. - Limpei uma lágrima teimosa que desceu pela minha face. - Estou parecendo um velho idiota chorando.

- Você passou muitos anos preso ao consultório, tentando ajudar várias pessoas e se esquecendo de si mesmo. Não lembro de ter visto você conversando com nenhum amigo como conversava com a Alessa.

- Ela é uma menina muito especial. Como se fosse uma filha para mim, por isso é difícil.

Junior esperou que as lágrimas cessassem e seguimos na direção que antes Alessa se encontrava, mas ela já havia embarcado, sobrando apenas seus pais e Greta ali.

Eles ficaram surpresos ao me ver e a amiga de Al começou a chorar quando me apresentei. Ela me abraçou e disse que Alessa havia sentido a minha falta ali, mas que ela se lembraria de mim enquanto estivesse viajando. Retribui o abraço mas me contive. Acenei com a cabeça e me despedi deles brevemente. Junior me seguia calado e cabisbaixo. Talvez ele também quisesse ter se despedido dela.

Passado um tempo, Alessa voltou a me ligar diariamente. Me contava como Los Angeles era um lugar lindo, com paisagens maravilhosas e pessoas bonitas. Na maior parte das ligações eu ficava apenas escutando o que ela tinha para falar e vez ou outra a atualização sobre o que estava acontecendo em Sheboygan. Podia imaginar sua expressão quando tocava nos assuntos da cidade.

Numa das ligações ela disse que quando chegou havia conhecido um rapaz, neto do namorado da sua avó. Ele se chamava Caleb e que eles logo tornaram-se inseparáveis.

Comentou certa vez que ele tinha ciúmes da nossa amizade, o que para ela aquilo era simplesmente hilário.

Me disse das vezes que saia, das vezes que bebeu e das inúmeras vezes que ia a praia.

- Você deveria ver como aqui é lindo! Deveria trazer a Donna para um passeio a dois. É muito romântico! - Disse, me fazendo rir com o comentário ao final de sua frase.

- Não sei se Donna gostaria. Ela é do Alasca e é alucinada por frio e neve. - Ouvi sua gargalhada do outro lado da linha.

Sentia pela sua voz que ela estava feliz naquele lugar, e por esse motivo meu coração começou a relaxar com a ideia de que ela estava longe.

Mas com o tempo passando, percebia Alessa piorando. Eu podia sentir na voz dela, que ela estava enfraquecendo mais rápido do que poderia imaginar.

Até que recebi sua ligação naquele dia. Atendi como sempre fiz, perguntando como ela estava e pela primeira vez ela disse não sentir dores, a princípio, um alívio. Mas Alessa decidiu trazer um assunto à tona:

- Você se lembra da carta?

Há poucos dias ela havia me enviado uma carta. Pedindo incessantemente que eu só abrisse caso as coisas ficassem fora do controle. Logo me preocupei. Desde que havia chegado a Los Angeles, Al jamais havia falado comido do jeito que estava naquele momento.

- Talvez eu esteja sentindo alguma coisa tomando conta de mim... É uma sensação ambígua de alívio e medo.

Pensei que ali, enquanto estávamos conversando ela iria finalmente embora e com isso as lágrimas invadiram meu rosto, descendo num turbilhão e sem que eu as pudesse controlá-las. Mesmo chorando, consegui manter minha voz firme, eu não queria deixá-la triste.

Alessa foi quem pediu para desligar, e mesmo fazendo um último trocadilho, fazendo-a sorrir, eu não pude impedir que as lágrimas continuassem seu rumo.

Na manhã seguinte acordei no mesmo horário de sempre e estranhei a ausência de Donna na cama. Assim que cheguei à cozinha, encontrei minha esposa em lágrimas. Seu rosto estava vermelho e inchado. Nunca tinha visto Donna daquele jeito, nem mesmo no dia que seu pai havia falecido.

- O que aconteceu? - Me prontifiquei a ver como ela estava e saber do que se tratava. Ela permaneceu calada, soluçando uma vez mais antes de me abraçar.

- A Alessa… - Foi o que ela consegui dizer antes de voltar a chora em meu ombro.

***

- Nem sei como começar a descrever o que estou sentindo nesse momento... - Minha voz estava trêmula e baixa, mas ainda não estava chorando. - Eu sabia que esse dia chegaria, claro... mas não imaginei que seria tão rápido.

Olhei ao redor e vi as pessoas deixando o gramado, entrando em seus carros, outros sentando em bancos olhando ao redor. O vento estava gelado e o céu nublado, indicando que logo menos choveria.

- Eu fiquei com muita raiva de você quando a Donna me disse. Raiva era melhor do que a tristeza que se apoderou de mim nesses últimos dias. - Respirei profundamente, congelando minha narina por breves segundos. - Sei como você estava se sentindo naquela noite, você me ligou e disse que não sentia nenhuma dor e que nem precisou dos remédios para isso. Me diga, você já sabia o que estava acontecendo, não sabia? - Olhei para a pedra de mármore a minha frente. - Sei que você não vai me responder Al, mas...

Mais uma vez me vi sem palavras. A dor que sentia era como se eu estivesse perdendo um filho, ou um braço meu estivesse sendo arrancado a sangue frio, eu não sabia definir bem a intensidade daquilo. Nunca havia sentido tamanha dor.

- Minha família inteira está assim. Você conquistou a todos... - Sorri fraco ao lembrar-me das vezes que havíamos feito alguns programas juntos. - Você chegou com uma alegria totalmente diferente da qual nós estávamos acostumados e isso simplesmente nos deu uma nova, hm, atitude? Eu nem sei se atitude é a palavra certa. Mas nós começamos a nos comportar como você. Despreocupada com as coisas fúteis e valorizando as coisas pequenas. Eu nem lembrava qual tinha sido a última vez que a Janet e o Junior tinham saído para comer uma pizza comigo e com a Donna.

Olhei mais uma vez ao redor, só encontrando Donna e as crianças. Eles estavam sentados em um bando próximo a onde estacionei o carro.

- Vamos falar da carta que você tão gentilmente me enviou... - Peguei o papel dobrado do bolso da minha jaqueta e comecei a ler mais uma vez. - Bem, você me pediu para ficar com a carta e ela está comigo. Eu não sei se vou conseguir deixá-la de lado. - Senti meus olhos marejando e funguei. - Também não sei como vou fazer para ler tudo o que você escreveu aqui... eu quero dizer, você não sabe como a sua mãe está. O seu pai continua sério, mas é um jeito sério que é capaz de fazer qualquer um entrar em depressão. Eles estão acabados. Isso sem mencionar a sua amiga Greta, que não parou de chorar um só minuto, ela fica abraçada com a sua avó a maior parte do tempo. Conheci o namorado dela e o Caleb também. Ele ficou surpreendentemente espantado quando fomos apresentados. Você disse que ele tinha ciúme da nossa amizade e eu o entendo... percebi o quanto ele gosta de você. Aliás, o que há para não gostar? - Sorri mais uma vez, mas agora rindo para espantar o nervosismo, vindo não sei de onde. - Al, eu não vou conseguir ler a sua carta para eles sem chorar. - Sussurrei a última parte. - Eu não vou conseguir fazer isso porque aquela é a sua carta de despedida dessa vida e isso é uma coisa tão... - Minha voz foi saindo cada vez mais fraca a medida que o choro se apossava de mim. - Mas tão horrível que eu não tenho coragem. Eu não queria me despedir de você porque você se tornou uma filha para mim e eu sei o que é perder um filho! - Solucei, tentando me acalmar, mas sem sucesso. - Eu nunca lhe disse isso, mas Donna e eu já tivemos uma garotinha linda e esperta assim como você, mas ela se foi tão cedo e aquilo foi tão ruim... agora eu estou passando por tudo aquilo de novo e me dói tanto te dizer adeus. É uma coisa indescritível. Eu não queria ter que me despedir de você nunca. Você me trouxe tanta coisa de volta... eu jamais, jamais vou poder vê-la outra vez e jamais vou poder te dar um abraço, jamais vamos conversar sobre física... - Respirei fundo na última esperança de me tranquilizar. - Eu jamais vou poder te agradecer por você ter me dado esses sentimentos de volta...

Senti uma mão apertando meu ombro. Era Donna, que ainda estava com o rosto vermelho de tanto chorar.

Apertei minha mão na sua e ela sorriu gentilmente para mim, num simples pedido para que eu a seguisse até o carro. Levantei-me e a abracei. Sabia que Donna estava sentindo o mesmo que eu, sabia das lembranças que a morte de Alessa nos trazia. Nossa Juliet foi-se nova demais, e ela e Alessa eram muito parecidas. Eram engraçadas, teimosas, gentis e principalmente carinhosas. Elas seriam muito amigas se tudo não tivesse acontecido.

Donna limpou algumas lágrimas que ainda desciam pela minha face e disse que estaria no carro a minha espera. Fui caminhando a passos lentos, mas lembrei-me de algo e voltei brevemente para sussurrar:

- Adeus Al!



FIM



Nota da autora: Sempre achei que Uma Carta Para Carl precisava de uma continuação. E espero que essa fic tenha ficado a altura! Obrigada quem tirou um tempinho para ler!





Outras Fanfics:
Uma Carta Para Carl, Between Law & Crime, 13. Una Canción, 10. All I Ask, A Loira do Biquini Azul, A Final do Vôlei e Five Months of Love.


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