Enviada em Março de 2021

Capítulo Único

Os dias dela na Corporação de Treinamento para Heróis (CTH) estavam sendo tediosos e difíceis. Não havia muito que fazer. Como uma ex-agente, apenas de passagem pelo local, não podia receber missões diretamente dos superiores. lembrava-se da existência dela vez ou outra, convidando-a para alguma tarefa nada arriscada ou importante, mas inda não era o que ela queria.
A verdade é que não sabia ao certo o que queria.
era o único da Base com quem ela se comunicava decentemente, além dos médicos que faziam acompanhamento de seu quadro clínico. Com as pernas ainda sentindo o estrago da última missão, não havia muito mais que poderia fazer além de caminhadas matinais ao redor do campo de treinamento aberto.

- Não tinha que ter contado à Savannah – reclamava, acompanhando as passadas lentas dela.
- Ela me perguntou e eu fui honesta.

- Você é uma celebridade, . Todo mundo só fala de você nos últimos dias – a aprendiz de contou e nessa parte, se obrigou a arquear as sobrancelhas. – Mas se era tão boa assim, o que aconteceu que te fez sair?

encarou a mais nova com um olhar de dor.
foi quem precisou prender a respiração agora.

- Por que escolheu sair? – Savannah insistiu por uma resposta.
- Pelo mesmo motivo que a minha equipe nunca voltará a ser a mesma – deu uma pausa, mirando as costas largas do ex-companheiro mais à frente. – Eu matei meu outro colega de time.


- Sabe que não foi totalmente sincera. As coisas não foram como insinuou para a aluna do . O que aconteceu entre o time de vocês cabe somente a vocês. A perda do Austin é uma dor que todos sentem, mas é você e que guardam as cicatrizes mais profundas. Deveriam conversar.

Ainda era cedo. O local estava quase vazio, com exceção deles e outra meia dúzia de agentes que se preparavam para as missões do dia. ficava mais aliviada assim.

- Se ele não está disposto a entender os meus motivos, eu não quero ouvir os dele, – respondeu de volta, com o olhar vago sobre a pista de corrida.
- Parecem duas crianças – o homem constatou, balançando a cabeça.

não reagiu.
O reencontro com nunca deveria ter acontecido. Era para ser uma missão extraordinária entre e ela. O primeiro como líder e ela servindo de apoio. não era uma agente especial há seis anos, então sua convocação foi uma exceção, pois acreditaram que poderia ajudar a ferrar os caras que foram responsáveis, em parte, por tirar a vida de Austin.
No entanto, os contratempos em campo de batalha levaram a cruzar com o grupo de . Depois, ela se feriu e agora estava passando um tempo na Base até se recuperar por inteira para poder voltar à vida de civil que optara por seguir.
“Idiotas”, era só o que se passava na cabeça de .
e ainda não se falavam.
Os olhares furtivos de um para o outro eram notáveis há quilômetros, mas o casal queria insistir no teatro de que não existiam para o outro.
passara quase uma semana presa em uma cama, consciente, mas imóvel e em nenhum desses dias, o ex-colega de time deu as caras para dizer um “oi”, ou checar se ela ainda estava viva. Para a mulher, essa ausência deixava escancarado que ela não havia sido perdoada.
Austin.
Ela estava quase certa de que esse era o motivo para fingir que ela não existia. Não reclamaria. Se estivesse do outro lado, faria a mesma coisa. Aquele tratamento de gelo era justo. Considerava-se uma assassina.
Com ou sem intenção, ela ainda havia matado uma pessoa.
De um amigo.
De um quase irmão.
Eles três eram uma família.

- Está pensando demais, Princesa . Guarde seus neurônios para a nossa missão mais tarde – piscou.

Como um espectador, sabia o que se passava entre os amigos de geração, dos dilemas e traumas que cada um carregava. Entretanto, ele não se meteria mais do que o necessário. Não era uma briga dele. Da turma deles, restou apenas os três ali, a maioria estava servindo em outras Bases.

- Odeio ter que dizer isso, mas não sei o que seria de mim sem você nessa última semana. Estaria acumulando pó e apodrecendo em um quarto.
- Não vá contando vitória. Vamos apenas fazer um breve reconhecimento de campo e coletar provas.

deu os ombros.

- Já está ótimo!
- Mal posso esperar para que você volte aos eixos. Precisamos trocar uns socos sem perder a amizade, como nos velhos tempos.

A mulher riu.

- Não sabia que tinha virado masoquista. Está doido para levar uns chutes na bunda. Pois bem, está marcado. Só não pode chorar, frangote.
- Esse frangote aprendeu uns truques – colocou o dedo em riste no rosto dela. – Você vai se foder, .

Ela apenas envolveu o indicador dele e jogou para o lado.

- Vou adorar ver você tentar colocar um dedo em mim – deu um risinho convencido.
- Lembre-se que o mesmo vale para você, Princesa .
- Cara, a gente precisa apostar alguma coisa.

gargalhou estrondosamente.

- Claro que os seus vícios em jogo teriam que aparecer em algum momento.

A ex-agente rosnou.

- Hipocrisia rolando solta. É tão competitivo quanto eu, – afirmou.
- Ah, sim! – ainda sustentava um sorriso. – Será que agora podemos aumentar um pouco a velocidade? – entrelaçou os dedos das duas mãos para em seguida colocá-los atrás da cabeça. – Nesse ritmo de caminhada, uma tartaruga já fugiu e outra conseguiu engravidar antes de terminarmos a volta.
- Filho da puta – resmungou, ranzinza.

Depois da conversa na atividade matinal, a dupla só voltou a se encontrar nos portões de saída da corporação, de mochilas feitas e com uniformes postos, prontos para a missão. Com as mãos nas alças da mochila, observava o lado externo da Base com ansiedade. Enquanto esperava acabar com os últimos ajustes no colete e nas botas, ela reparou que mesmo seis anos afastada, o amor por uma aventura nunca diminuiu.

- Então, vamos? – o homem chamou, assim que deu o último nó transpassado nos próprios cadarços.
- Não tão rápido.

Uma terceira voz os obrigou a virar o rosto para encarar quem estava chegando. seguia na frente, sendo seguido pelos três alunos que compunham sua equipe atual, como se fossem sua sombra. De onde estava estacada, percebeu que o recém-chegado estava se direcionando apenas a . Em nenhum momento, os olhos do homem pousaram nela ou tremeram, pelo ímpeto de dar uma espiada em sua figura.
Ela era uma ninguém.
sentiu sua irritação, que estava adormecida, ser cutucada.

- Precisa de alguma coisa, ? – franziu o cenho, colocando as luvas de couro. – Estamos de saída.
- fica.

O sobrenome dela foi proferido, mas mais uma vez nenhuma atenção foi dirigida e ela.

- O quê? Por quê?

Apesar do questionamento ter partido dos dois encarregados para a tarefa, a resposta foi dada diretamente ao outro agente.

- Primeiro: não está cadastrada como uma agente ativa, portanto não pode sair assumindo as missões que bem entende. Segundo: não está recuperada cem por cento. Terceiro: os médicos não autorizaram.

Conforme ele ia avançando com as palavras, o interior de se questionava do que poderia acontecer a seguir, se ela decidisse por esmurrar o rostinho bonito dele de repente. “Pelo menos, calaria a boca”, concluiu. Aquela postura ereta, a fisionomia séria e os traços inexpressivos, todo o conjunto de pedia para ser tocado... Por uma dança de punhos.

- Tudo bem – deu os ombros. O que ele menos queria naquele momento era problema com e os superiores.
- Como assim “tudo bem”? – quis tirar satisfação. – Eu ia ser a sua parceira!
- Princesa ... – suspirou, fechando os olhos com pesar. – Quando voltar, a gente conversa.

Assim, foi deixada para trás. não virou a cabeça em nenhum momento para encará-los, avançou sozinho, sem hesitar, deixando-a ainda mais brava. Com o recado dado, também não tinha mais o que fazer ali. Virou as costas imediatamente, ainda com os três mais novos em seu encalço.

- Seu grandíssimo filho da puta! – escutou esbravejar sem filtros. – O que você ganha com isso?

O homem semicerrou os olhos pela afronta, no entanto continuou seguindo o próprio caminho com o trio para a sala de treinamento, obrigando-a a segui-los, se quisesse se fazer ouvida. Demorou um pouco mais do que esperava, contudo os ultrapassou, colocando-se de frente para o grupo. Os mais novos que seguiam atrás não souberam o que fazer, era a primeira vez que lidavam com uma cena daquelas, onde o tutor estava envolvido em seus próprios dramas. Antes que pudesse ser contornada pelo quarteto, a mão de pareceu adquirir vida própria, cortando o ar como um raio, espalmando no rosto de sem piedade.
O contato dos dedos nervosos contra a pele sensível pela barba recém-feita causou um ruído que até a ex-agente se surpreendeu, tendo os orbes quase saltando da órbita. Ainda assim, não era arrependimento, apenas surpresa. Fora um tapa recheado de frustrações que acumulava desde que pisou na Base outra vez.

- Você me bateu? – estava incrédulo. – E na frente dos meus alunos? – viu o olhar dele endurecer e ficar nublado.
- Agora você está me ouvindo? E falando comigo? – replicou no mesmo tom nervoso, sem se intimidar pela energia ameaçadora que o outro emanava. – Deveria ter ficado na sua, ao invés de se intrometer nos meus assuntos.

A região aonde os dedos haviam o atingido ainda formigava. O líder podia sentir a própria pele esquentando. Aquilo ficaria marcado. As mãos coçaram para massagear aonde havia sido acertado, mas não demonstraria que ficou afetado pelo golpe da mulher. James, Luke e Savannah estavam horrorizados e cada vez mais certos de que apresentava um parafuso a menos na cabeça.

- Saiba que estou fazendo meu trabalho e tratando de garantir que a ordem na Base prevaleça – e quando ela pensou que ele tinha terminado, ele prosseguiu. – Você escolheu sair, – havia um teor de maldade em seu tom. – Não deveria se esforçar tanto por uma coisa que não quer para a vida.
- Você... – precisou apertar os dedos contra as palmas das mãos para conter o ímpeto de acertar o homem diante de si outra vez. – Eu te odeio tanto – falou, entredentes, arrancando um sorriso mínimo de satisfação dele. – Sabe melhor que qualquer um nessa Base que eu tive os meus motivos, mas finge não saber.
- Sei mesmo? – replicou. - Você foi embora e só. Fomos tão insignificantes que nem se deu ao trabalho de grudar um bilhetinho na geladeira avisando que estava saindo e não voltava mais – zombou, sem achar graça.

Atrás dele, James e Luke trocavam olhares significativos, sentindo que a tensão no ar não era para eles. Os mais velhos estavam tão ocupados em trocar farpas, que se esqueceram de que havia gente assistindo. Por gestos sutis, a atenção de Savannah foi desviada da discussão para os colegas de equipe.

- Vamos sair daqui! – James sibilou exageradamente sem emitir nenhum som, recebendo apoio de Luke, que gesticulava com os dedos para que se afastassem dali discretamente.

Todavia, Savannah negou. Ela queria saber mais sobre o que se passava com os outros dois. Visto que não estava disposto a explanar, ela permaneceria até compreender todo o drama.

- Eu tive meus motivos para pedir para sair! Para de insinuar que foi mais fácil para mim! – sentiu o controle que tinha se esvair. - Dá próxima vez, ao invés de um bilhete, eu desenho para você.

A menção de uma possível nova partida foi como um balde de água fria nele. Embora tivesse proferido aquilo sem pensar muito, os sentidos de apitaram, alertando que ele deveria levantar a guarda. Se em algum momento dos últimos dias ele vacilou, acreditando que poderia estar sendo duro demais com o tratamento de gelo que estava dando na ex-colega de time, aquela era a hora dele ver que não estava.
Era proteção.
Algum dia, alguma hora, em algum momento, ela daria a notícia de que estava partindo outra vez e estava exausto de tantas perdas, de ser deixado para trás. O agente não queria se apegar outra vez, por mais que o peito gritasse para que ouvisse o que ela tinha a dizer. Se viveu seis anos sem notícias dela, continuar fingindo que não a sentia por perto não seria um problema.

- Poupe seus esforços, . Preocupe-se em melhorar logo para que possa pisar fora daqui.

não escolhera voltar, não queria, e mesmo assim aquelas palavras machucaram.

Ele queria se livrar dela o quanto antes.
A memória de Austin a atingiu.
A história deveria ter sido diferente. Se tivesse sido ela a receber o golpe fatal, o time deles estaria unido até hoje. Diferente dela, Austin jamais teria desistido da corporação. e ele teriam permanecido unidos, sem esse desgaste emocional. A constatação, que não era nova, a fez titubear pela primeira vez.

- Então pare de me privar de todas as tentativas de recuperar o meu ritmo – limpou a garganta.

O tom dela havia mudado, notou. estava mais na defensiva.

- Se quer fazer alguma atividade, deveria participar dos treinos saudáveis juntamente com os demais recrutas – o cortou com um riso fraco, mas debochado. – Ficar se arriscando a toa com pode só agravar o seu quadro.
- Não era uma missão perigosa – contestou. – E só nos sonhos que vou para os treinos para me servir de capacho seu.

Naquele instante, o trio de recrutas se ofendeu. Os treinos faziam parte da rotina de qualquer um que almejasse reconhecimento e uma boa posição dentro da CTH. A fala da mulher soara arrogante.

- Retire o que disse!

Todas as cabeças se voltaram para Luke, finalmente os lembrando que eles ainda estavam ali. Apesar de sustentar poderes da natureza de gelo, o garoto era o mais esquentado do trio que liderava.

- Nós aprendemos e devemos muito ao professor. Não somos capachos de ninguém aqui dentro. Peça desculpas por ter ofendido . Agora!

Os outros dois assistiram à explosão repentina, assustados.

- Não vou discutir com uma criança – disse simplesmente, dando as costas a eles e no mesmo instante, um bastão de gelo se formou entre os dedos do mais novo.
- Luke... – Savannah ainda tentou freá-lo.
- Você se acha muito por ser uma agente de elite, não é? Pois não parece. Vamos ver o que você sabe fazer.

Ao compreenderem o que estava prestes a acontecer, James se multiplicou, criando outras duas cópias de si para conter o colega que parecia ter perdido a razão, mas Luke ainda foi mais rápido.
A lança de gelo foi atirada com força na direção da mulher. Embora tenha se movido rapidamente para conter o objeto, ele viu que não chegaria a tempo. Amaldiçoou-se. Todavia, para a surpresa de todos, se virou no exato momento, erguendo um campo de energia para se proteger, antes que o objeto pontiagudo avançasse uns milímetros a mais e a causasse algum dano.
Ela sempre fora reconhecida pelos bons reflexos.
Os poderes e ela tinham uma boa conexão. Era como se as barreiras tivessem vida própria para defende-la.
As respirações que haviam sido prendidas soltaram o ar com força.

- Perdeu a noção, cara? – James gritou, mas foi ignorado.

Então, outra barreira criada por surgiu, dessa vez ainda maior, empurrando todos que não tinham relação com o desenrolar da discussão para fora. Naquele momento, seria só Luke e ela.

- Baixa essa porra agora, ! – esmurrou o campo, em vão, inúmeras vezes, furioso com a situação que havia saído do controle. – !

O líder estava irado com a infantilidade dos dois, que coincidentemente tinham os pavios mais curtos. O temperamento de Luke era complicado e desde que conhecera , percebeu que ela não sustentava sangue de barata. Aquela combinação era explosiva em qualquer circunstância.

- Parece que temos alguém aqui tentando se mostrar um homenzinho – zombou, alheia aos gritos dos demais. – deve ter te ensinado muito mal para ter esse atrevimento de atacar uma agente da CTH pelas costas.

O garoto de gelo tremia, incitado pelas provocações, assustado pelo o que os impulsos o motivaram a fazer. Era tarde demais para mostrar algum arrependimento. Não permitiria que ninguém caçoasse dos amigos, ou do professor, jamais. Foi sustentado por essa ideia, que ele decidiu ir para cima.

- Luke, ignora as provocações!
- !
- Luke!

Os espectadores se debatiam para ser ouvidos.

- Mostre o que sabe fazer, homenzinho – sorriu com confiança, atirando a mochila para um canto sem importância.

Aquilo seria como brincadeira de criança. Eles poderiam achar tudo dela, dizer todos os tipos de absurdos, mas um ataque pelas costas a um aliado era desleal e imperdoável. Por isso, Luke merecia uma lição.
Da mesma forma que James e Savannah, Luke aprendeu bem sobre golpes de ataque e defesa pessoal. Fora ensinado a não temer, independente da força e das vantagens do inimigo. Sem hesitar, correu em direção de com os punhos posicionados no ar.
“Previsível“ era o que a agente poderia dizer. O garoto se movimentava bem... Para um novato. Porém, independente da vontade e dos esforços, ainda saía na frente, pela fácil leitura de jogo que carregava na bagagem de experiências. Era difícil de explicar com palavras, mas conseguia ler os movimentos do corpo do mais novo. Cada impulso que ele tomava, soco ou chute que disparava, acabava por denunciar o golpe que viria a seguir pela falta de postura, restando a ela a única tarefa de se esquivar.
Quando Luke mirou mais uma vez em seu estômago, se limitou a agarrar os pulsos dele e o arremessar para trás.

- Precisa treinar um pouco mais, homenzinho.

O sentimento de humilhação foi esmagador. A facilidade com que ela havia o jogado trazia um sentimento de ira, obrigando-o a reivindicar mais alguns minutos para se vingar. o fizera cair e escorregar pelo chão da sala de treinamento, como se fosse um saco de bosta.
Ele era mais do que aquilo.
Contrariando suas vontades de continuar, a barreira que os separava dos outros desceu e Luke pôde acompanhar os dois amigos dispararem ao seu encontro, para oferecer amparo. Com o tombo, os antebraços um pouco ralados pelo atrito da pele contra o chão.

- Você é idiota? – Savannah xingava com os olhos cheios de lágrima. – O que estava pensando quando decidiu enfrentar , sozinho?
- Sav... – James a freou, ajudando Luke a se recompor. – Acho que esse não é o melhor momento.
- Nunca mais se atreva a me atacar pelas costas – ainda ousou finalizar.

No entanto, o foco dela não deveria mais ser o recruta. ia ao seu encontro, possesso.

- Levem Luke para a enfermaria – ordenou, duro, voltando-se para em seguida. – Eu e você vamos ter uma conversinha agora.

Quando ficaram a sós, começou:

- O que deu em você?
- Oh, resolveu falar comigo para valer?
- Não mude de assunto, ! Como agente de mais experiência, não deveria ficar incitando os mais novos a brigar. Coisa infantil!
- Seu aluno pediu por isso. Desrespeitou o código de ética entre colegas. Ou será que você não ensina mais isso?

Os olhares deles se cruzaram e as faíscas quase se faziam visíveis.

- Luke teria a punição merecida. Você não deveria ter entrado na onda.
- Chato como sempre, querendo ditar tudo o que todos devem ou não fazer – fez careta. – Não sou mais uma criança.
- Mas está se comportando como uma.
- Está cobrando postura alheia, quando não teve colhão para me olhar nos olhos nos últimos dias e começar uma conversa decente? – contraiu o maxilar.
- Bom... – sério, deu um passo à frente, chegando mais perto dela. – Estou fazendo isso agora, não?

Ambos se encararam em silêncio. precisou prender a respiração. Apesar de estar constantemente cobrando atenção, não cogitou que pudesse não estar preparada quando chegasse a hora. Dessa vez, não existia ódio ou ressentimentos transbordando pelas íris. Era apenas a face mais transparente de e que eles já mostraram um dia.
foi a primeira a desviar do contato, desconfortável. Precisou recuar um passo e engolir seco.

- Você não estava cheia de si, ? Disparando aos quatro ventos que eu estava fugindo? Pois bem, estou aqui. O que tanto queria conversar? – foi a cercando, até que estivessem contra a parede.

engoliu seco de novo.
A dupla tinha uma bagagem de seis anos afastados para compartilhar, um turbilhão de cargas emocionais para dividir e mesmo assim, a mulher não sabia por onde e nem como começar. Ela olhava para baixo, mirando as próprias botas, recordando-se de que poderia estar com , rindo de alguma besteira naquele instante.
“O que aconteceu entre o time de vocês cabe somente a vocês. A perda do Austin é uma dor que todos sentem, mas é você e que guardam as cicatrizes mais profundas. Deveriam conversar”.

- Nunca foi sobre um assunto específico – revelou com a voz por um fio. – Eu só queria saber como você estava, se tudo aqui estava bem...

O tom vulnerável fez os músculos dele relaxarem. Já não estavam mais brigando para ver quem conseguia ser o mais indiferente. estava tomando o primeiro passo para se abrir e o fazendo um convite para essa jornada.

- Essa não me parece uma curiosidade genuína de alguém que deixou os amigos para trás sem pensar duas vezes.

Outra vez aquela acusação.
perdeu um pouco do ar.

- E você continua não me entendendo, não é?

No momento que ela ergueu a cabeça para fitá-lo, precisou engolir todas as palavras. Os orbes da mulher estavam brilhantes e levemente avermelhados, mas o pior era a expressão no rosto que retratava dor.

- Eu não conseguia mais ficar na Base – confessou, fazendo força contra os lábios que teimavam em crispar para o começo do que seria um choro. – Não poderia viver assim. Depois da morte de Austin, passar por qualquer hospital ou respirar em qualquer canto da CTH, se tornou asfixiante para mim. É como se houvesse um pedaço dele em tudo – o olhar vago dela se fixou em um ponto qualquer do chão. – E talvez tenha mesmo. Sou covarde e não consigo lidar. Então, a fita dele perdendo a cor e nos deixando começa a ser repassada no meu cérebro, só parando quando todo o ar se esvai dos meus pulmões – completou, pressionando as laterais da cabeça com as mãos, como se estivesse passando por tortura naquele exato momento. – Eu não sei viver com isso, não sei viver com essa culpa! – encurvou-se até conseguir abraçar os próprios joelhos, melancólica. – Por isso, saí.

também se agachou, removendo as mãos da cabeça dela para oferecer um carinho e conforto.

- Poderia ter conversado com alguém, aí teríamos evitado sua saída precipitada – ponderou em tom baixinho, mas ela negou com a cabeça freneticamente. – Não foi sua culpa e nunca será. Poderia ter sido tudo diferente, . Não precisava ter assumido esse fardo, sozinha. Se alguém precisa carregar a culpa, esse alguém sou eu, que levou a equipe para o fracasso. Perdi um integrante e a outra escolheu me deixar... – ele riu triste, dobrando as pernas para se sentar. – Esse é o reflexo perfeito de uma liderança falha. Eu não fui capaz de evitar tudo e peço desculpas por isso.

O coração dilacerado falhou em uma batida. Então, as emoções que aprendera a selar nas sessões de terapia transbordaram. finalmente conseguiu soltar o choro que estava entalado. A mulher soluçava tanto e ficou assistindo, permitindo que ela tivesse o próprio espaço e momento.

- Foi ridículo! – as palavras saíam distorcidas e abafadas pelos soluços. – Não teve um dia nesses seis... Seis anos infernais que eu não parei de pensar que era para ter... Ter sido eu – limpava as lágrimas grossas que escorriam de forma desajeitada com as costas das mãos. – Não é idiota isso, ? – ela levantou o olhar, enxergando tudo turvo. – Que a única agente com poderes de proteção não tenha conseguido se proteger? – fungou, abraçando os joelhos mais uma vez. – O Austin... O Austin... – os soluços vieram fortes.

Então, decidiu que já havia cedido espaço suficiente a ela. Dobrou as próprias pernas, de modo que ficasse ajoelhado e projetou o tronco para frente, envolvendo a cabeça da mulher em um abraço forte.
Eles enfrentaram uma missão difícil. Havia um homem bomba causando o terror em uma das principais linhas de trem da capital. Os três foram convocados como um time de elite para ajudar na linha de frente. Caso o pior viesse a acontecer, deveria tomar a responsabilidade de abafar o poder destrutivo da arma com os próprios poderes. Ao mesmo tempo que negociavam com o autor da ação, outros times removiam os civis, para evitar o máximo de estragos.
A bomba explodiu. Junto dela, mais outras duas postadas em pontos estratégicos que pegaram todos de surpresa. O caos tomou conta do local. Algumas estruturas da estação começaram a desabar, quando ainda havia gente nos trens. O trio se separou. Para piorar, um grupo de homens mascarados entrou pelos quatro lados, atirando sem distinção, que mais tarde se descobriu serem da Organização, grupo liderado por uma entidade misteriosa que pregava a supremacia dos superdotados. Pessoas como eles, com poderes inumanos. Como a portadora dos campos de energia, tentou cobrir todas as áreas. Lutou contra mascarados, ajudou civis a encontrar uma saída e ainda afastou destroços que ainda cediam das estruturas com as barreiras. Duas mulheres presas em escombros a distraíram. Enquanto ajudava a puxar uma delas, se esqueceu de que estava em campo de batalha. O tiro foi para ela, mas de algum modo, Austin surgiu de algum canto e se jogou na frente.
Era aquele dia que não conseguia superar.



- Princesa , está horrorosa – foi a primeira coisa que disse ao enfiar metade do tronco dentro do dormitório dela.

Sem forças para revidar, só riu. O rosto estava inchado e irritado, de tanto que passou a mão para limpar o choro dos últimos dias. e ela finalmente estavam colocando as cartas na mesa, usando de noites e manhãs inteiras para colocar a conversa em dia. Ela, como a manteiga derretida que havia se transformado, chorava sempre que tinha oportunidade, acarretando no rosto sensível que exibia agora. Por outro lado, sentia-se muito mais leve para seguir em frente e como se o universo estivesse decidido, por fim, agir a favor, os médicos a liberaram da supervisão, considerando-a apta para retornar às atividades normais.

- Minha aparência não é nada comparada com a vergonha que eu acho que passei – mordeu o lábio, retomando a organização da mochila.

Ela tinha chorado tanto nos braços de , após o breve desentendimento com Luke, que aparentemente caíra no sono. Era para ser uma conversa de dois, entretanto só ela tinha falado. Ao relembrar disso, quis se descabelar. Nem ela sabia por que insistia em se colocar naquele tipo de situação.

- Ah, sim... contou. Chorou, falou um pouco, chorou e chorou mais, para no final dormir – brincou, jogando verde, assistindo o rosto da amiga adquirir um tom avermelhado mais forte. – Então, é sério? – colocou a mão sobre a boca para tampar a risada.

fincou os dedos na camisa que dobrava.

- Só queria te lembrar de que minhas pernas estão novinhas em folha, precisando apenas de uma bunda flácida para serem testadas.

arqueou as sobrancelhas, levando os braços para cruzar na altura do peito.

- Precisamos dar um jeito nesse seu temperamento violento. Brigou com , brigou com Luke... Quando sai a nossa luta mesmo?
- Napró.
- Napró? – dois vincos surgiram na testa do agente devido à expressão de quem não compreendeu nada.
- Na próxima vida, quem sabe, otário – completou.

Apesar do baixo nível, ficou se sentindo a pessoa mais engraçada do universo com a própria piada. Mesclando a risada dela, surgiu um terceiro timbre.

- Ia implorar de joelhos para que ficasse. Depois dessa, já vai tarde, sua fodida.
- Ai... – posicionou as mãos sobre o peito. – Suas palavras são sempre tão profundas, que até me emociono.

Ao se dar conta de quem era a terceira pessoa no recinto, não pôde esconder a cara feia.

- Garoto, se o descobre que estamos há menos de dez metros de distância, ele me esgana de novo.
- Mas você não deixaria barato – ergueu os braços para mostrar os curativos ainda presentes pelo estrago que ela causou.
- Não deixaria mesmo. O que você quer, Luke?

fitou o portador do dom de criar gelo com suspeitas. O fato do aprendiz de estar lhe dirigindo a palavra por si só era de deixar qualquer um em alerta, principalmente quando estava sendo jurada de morte até dias atrás.

- Quero que você me ensine.

Ela o encarou sem expressão.

- Quero que me ensine a lutar melhor, para que um dia possa encarar o professor de frente. Você também, é claro.

A mulher não conseguiu evitar a risada pela presunção dele.

- Essas coisas não acontecem do dia para a noite. Está pedindo para a pessoa errada, homenzinho. Sem mencionar que gosto de permanecer como uma das poucas que sabem dobrar . Não costumo compartilhar esse tipo de técnica.
- Cara, isso soou muito estranho.

Obviamente, apenas abria a boca para fazer comentários irrelevantes.

- Não devem ter te contado ainda, mas estou só de passagem – optou por ignorar o colega. – Com a missão contra a Nebula dada como encerrada e minha recuperação confirmada, não tem mais nada que me prenda aqui – foi sincera. – Estão no caminho certo para se tornarem bons agentes. Representem bem a corporação! E por mais que eu odeie assumir, sabe o que está fazendo. Não existe cara mais chato e persistente para fazer alguém se esforçar e alcançar os objetivos na base do ódio do que ele – riu. – É isso.
- O meu pedido de treinamento não se torna automaticamente um motivo para te fazer ficar?
- Eu sei o que estão tentando fazer, mas não vai funcionar.
- Usou o plural, por que, Princesa ? Esqueceu-se de que desisti de você faz um minuto e meio atrás?

revirou os olhos.

- Era só isso mesmo? Preciso terminar de arrumar as minhas coisas.

e Luke trocaram um olhar cúmplice.

- Anda, Luke... Fizemos a nossa parte.
- Já que não tem nada que a faça ficar...

Com o som da porta sendo encostada, finalmente deixou os ombros caírem e a arrumação de lado. Sentia-se horrível por ter que enganar a todos a respeito de estar certa de que o lugar dela não era ali. Além de mentir para os que a cercavam, tentava pregar uma peça em si mesma. Repetira tantas vezes que não queria a CTH em sua vida, que tinha medo de voltar atrás. Estava confusa, mas não se sentia no direito de pedir para ficar, após tantas batidas na mesma tecla de que a vida dela estava melhor fora de uma Base.
Suspirou.
A porta se abriu mais uma vez da mesma maneira que antes. Sem batidas. Não precisou de muito para concluir que a dupla dinâmica estava de volta para tentar convencê-la. merecia um prêmio, por tanta insistência com quem não valia tanto. Sem perceber, um sorriso discreto nasceu. Ela tinha conquistado um amigo importante.

- O que vocês querem agora? – fingiu um tom de descaso, virando-se, pronta para encarar a próxima que inventariam. Sua surpresa foi não encontrar nenhum dos dois.
- chamou, sustentando um sorriso bonito.

A mulher tremeu, sentindo as entranhas se agitarem. As conversas que tiveram serviram para aproximá-los outra vez. Eles ainda não chegavam nem perto do que foram um dia, mas ela não poderia exigir que seis anos fossem compensados em poucas semanas.

- – devolveu com um sorriso fino, sem mostrar os dentes.

Havia um clima de ansiedade no cômodo que a deixava nervosa. Só isso era o suficiente para torná-la suscetível a passar outras vergonhas.

- O que está fazendo? – o homem adentrou ainda mais o quarto, aproximando-se perigosamente.
- Pode concluir com os seus próprios olhos – deu as costas, ficando de frente para a cama, voltando para as roupas.
- Achei que estivéssemos conversados sobre esse assunto – ele fez bico, arrancando a peça que ela tinha em mãos para atirar do outro lado do dormitório.
- ! – repreendeu, batendo o pé. Buscaria aquela camisa depois. Por ora, alcançou outra na pilha de desdobradas para repetir as dobras robóticas mais uma vez.

Insistente, tentou usar a mesma técnica outra vez. Contudo, estava ligada. Os dedos compridos apertaram o tecido com mais força. Ambos se entreolharam fuzilantes, competindo pelo tecido.

- O que pensa que está fazendo?

Ele não respondeu.
Ela poderia ficar com aquela peça.
Atrevido, soltou a roupa que disputavam para alcançar a pilha sobre a cama. Abraçou o máximo de peças que conseguiu e as arremessou para todos os lados.

- Você só pode ter perdido a noção da realidade! – ela esbravejou, ultrajada com a bagunça.
- Não vai.

O pedido curto e sincero em um tom rouco a fez fraquejar.

- O que disse?

A respiração ficou entrecortada e coração bateu mais forte simultaneamente.

- Eu disse para não ir.

molhou os lábios que pareceram secar.

- te pediu para vir aqui?
- Talvez sim, talvez não.
- Ele esteve aqui um pouco antes de você chegar.
- Eu sei.
- Hm. Então, ele te contou a minha resposta, certo?
- Sim.
- Então, é isso – deu os ombros.
- Você quer um motivo para ficar, . Além de todos os que nossos amigos já apontaram, vou te dar só mais um.

só teve tempo para arquear as sobrancelhas. No segundo seguinte, fora envolvida pela nuca com uma das mãos dele, sentindo-o puxá-la para perto, até que as bocas estivessem próximas o suficiente para que as respirações se mesclassem. estava imóvel, com os olhos entreabertos. Qualquer movimento mínimo que fizessem acarretaria nos lábios dos dois se encostando e depois daquilo, não teria volta.




Fim.



Nota da autora: Crises à vista! Sabe, não sei nem por onde começar. Essa era uma das histórias que eu mais estava ansiosa em compartilhar, mas um bloqueio desgraçado me atingiu. Espero que ao menos tenha conseguido passar um pouco da essência do universo da Corporação de Treinamento para Heróis <3 Deixa um comentário com o que achou de tudo para me ajudar a melhorar, por favor <3
Para conferir os acontecimentos que levaram nossos personagens a estarem onde estão, acesse: 12. Bigger Than Me [Ficstape Witness/KatyPerry].
Obrigada por ler!





Outras Fanfics:
Felicitatem Momentaneum [Harry Potter/Shortfic] – principais interativos.
Finally Champion [Harry Potter/Shortfic] – Olívio Wood é o principal.
Finally the Refreshments [Harry Potter/Shortfic – Restrita] – Sequência de Finally Champion.
04. Bigger [Ficstapes Perdidos #06]
05. Mobile [Ficstapes Perdidos #06]

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