Última atualização: 22/05/2021

Capítulo Único

Domingo de manhã costumava ser meu momento favorito. O cheiro de café que vinha da cozinha, Lucy, a labrador chocolate que me esperava deitado no chão e a camisa de flanela dele sempre pendurada atrás da porta. Eu levantava, ainda usando meias e calcinha, vestia a camisa e prendia meu cabelo em um rabo de cavalo enquanto seguia pelo corredor atrás dele.
Mas naquele dia, não senti o cheiro de café. A camiseta cinza que vestia não era a dele. E até a labrador não estava ao lado da cama. Lucy havia passado a noite na porta de entrada, esperando-o chegar. Quis rir da traidora. Era eu quem cuidava dela todos os dias e, ainda assim, ela o preferia.
Porém eu também preferia.
No dia em que entrou na minha vida, eu sabia que ia terminar machucada. A merda do sotaque britânico, o charme europeu e o senso de humor que apenas o queridinho da Marvel poderia ter.
Mas caí na sua conversa. O sorriso maroto, os olhos castanhos doces e aquele cabelo suave que eu adorava bagunçar quando ele estava entre minhas pernas.
Mordi o lábio ao lembrar da nossa última vez. Eu sabia que não seria para sempre, mas não queria que acabasse.
Levantei e resolvi lavar o rosto, trocar de roupa e sair com Lucy para passear. Era março, mas ainda fazia frio em Londres. Em dias como aquele, eu sentia saudade de casa. O calor do Rio de Janeiro, uma praia, minha mãe.
Porém eu havia feito uma escolha: desbravar o mundo sozinha. Assim que surgiu uma oportunidade de emprego fora do país, eu aceitei. E estávamos ali, cinco anos depois, morando em Londres, longe de tudo e todos que eu conhecia.
– Bom dia, princesa! Vamos passear? – Lucy levantou do chão e latiu, sempre animada quando pegava a sua guia.
Meu coração doeu quando percebi que ela esperou por ele, rodando pela sala em busca do seu cheiro.
– Eu sei, Lucy, mas ele não está mais aqui.
A labrador colocou o rabo entre as pernas e aceitou meu carinho. Ajustei o gorro no meu cabelo castanho ao sair de casa, já sentindo o frio irritar o meu nariz. Tinha um parque a poucos quarteirões do meu prédio e onde caminhávamos todos os dias. Eu, Lucy e . Ele sempre trajando um boné e óculos escuros como se esse disfarce fosse o suficiente para não o reconhecerem.
Sorri comigo mesma ao lembrar que eu não o havia reconhecido. Fazia três anos e, ainda assim, parecia muito mais. Parecia uma vida inteira.
Era o primeiro dia do estágio em que consegui em um set de filmagens. Entenda, trabalhar com cinema nunca foi meu sonho. Mas eu também nunca tive um sonho específico. Quando era criança e perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, apenas respondia que ia ser grande. Já tive minha fase de querer ser cantora, modelo, astronauta, atriz... Nenhuma carreira promissora ou algo que, de fato, levasse a sério.
Quando terminei o ensino médio, resolvi que iria fazer intercâmbio e, enquanto minhas amigas se matavam para passar no ENEM, eu entrei em um avião com uma passagem só de ida para Inglaterra. Na época, eu achava que iria sentir saudades de casa e voltar com um mês.
Fazia cinco anos e voltar para o Brasil não era uma opção. No dia em que conheci , eu estava perdida. Entrei no prédio errado, tropecei em um cabo e quase derrubei o café que segurava. Era um dia claro de julho e, por sorte, a única pessoa que havia presenciado essa cena tinha sido justamente .
– Opa! Cuidado. – Ele segurou o meu café enquanto eu ajustava minha bota no pé.
– Obrigada. – Peguei meu café de volta, ainda desorientada para entender quem estava à minha frente.
– Você é nova aqui, né? Precisa de ajuda? – Ele franziu o cenho, ajustando os óculos escuro que usava.
Mais tarde, eu iria descobrir que aqueles óculos eram a marca registrada dele.
– Hm, eu preciso chegar no estúdio B12 mas, claramente, estou indo na direção errada.
– Para sua sorte, tenho uma gravação lá em meia hora e pretendia chegar mais cedo. Vamos, ele fica para o outro lado. Qual o seu nome, mesmo?
– Ah, . E você?
. – Ele sorriu sem graça, quase como se ele não precisasse de apresentações.
E provavelmente não precisava.
Porém foi apenas quando o diretor gritou "ação" que eu fiquei sem voz ao entender que quase derrubei café em . Ele havia acabado de ser anunciado como o novo Homem Aranha e eu precisava confessar que não era a maior fã de filmes de super-herói. Era sendo a palavra-chave da frase.
Mais tarde naquela semana, me chamou para comer um sanduiche no McDonald’s mais próximo. Não era um encontro. Nem eu nem ele pensamos que seria. Eu ainda estava assustada pelo novo mundo em que havia sido jogada e ele só estava feliz em ter alguém da idade dele por perto.
Ficamos amigos e, por alguns meses, isso foi o suficiente. Até então, não sabia quem beijou quem ou como ele foi parar na minha cama em um sábado de manhã. Saímos com alguns amigos para um show e, quando dei conta, e eu havíamos ultrapassado a linha que prometi que jamais passaria.
Então uma noite se tornou duas, que virou uma semana e, quando demos conta, fazia seis meses que só dormíamos um com o outro, dividíamos o café da manhã e ele era o primeiro contato do meu telefone. Nesse tempo, aquele filme que apresentou-nos já estava em pós-produção, eu havia deixado o estágio por um emprego em um escritório de arquitetura e ele estava com as malas prontas para Los Angeles, onde filmaria o sucesso que alavancou a sua carreira.
Pensei que aquele seria o fim, mas não deixou que fosse. Estava no aeroporto, minutos antes de ele embarcar, e eu só conseguia sentir minhas lágrimas caindo. Eu já havia me despedido de tantas pessoas, mas dele parecia ser o mais difícil. era parte da minha rotina e saber que ele estaria tão longe não era fácil.
– Não fica assim, babe. – Ele passou o dedo na minha bochecha, pegando uma lágrima que havia sido teimosa. – Em três meses, eu estarei de volta.
, a gente não pode ficar junto com tanta distância. Não é assim que as coisas funcionam?
, meu amor, – Ele segurou meu rosto em suas mãos de forma que tudo que eu via eram seus olhos castanhos. – isso não é um adeus. Eu não vejo minha vida sem você. Eu te amo. Você está entendendo? Eu te amo.
Ele me beijou sem dar tempo para que eu respondesse de volta que também amava-o. Eu nunca havia apaixonado-me e, ainda assim, tinha feito tudo fazer sentido.
– Eu te amo! – Ele gritou enquanto entrava na sala de embarque, e eu só sabia rir e chorar ao mesmo tempo.
E ele estava certo.
Facetime foi meu melhor amigo por alguns meses, mas conseguimos fazer funcionar. E era exatamente por isso que nada daquilo fazia sentido.
– Vem, Lucy. – Ainda estava cedo para voltarmos, mas começou a chover e a última coisa que eu precisava era pegar uma gripe.
No caminho para casa, a noite anterior passou pela minha mente. Deveria ter sido a noite mais especial da minha vida, a noite em que comemoraríamos três anos juntos. Três anos de e . Três anos em que eu tinha escolhido não viver mais sozinha.
Porém ele tinha uma gravação até as duas da manhã e eu tinha um deadline para as onze. Então combinamos que nós nos encontraríamos mais cedo no set de filmagens. Assim, não o atrapalharia e, depois, eu poderia voltar para meu apartamento e terminar o trabalho. Quando acabassem as filmagens, ele iria para minha casa.
Mas tudo começou a dar errado assim que saí de casa. A chuva não parava e um carro levantou água, encharcando-me no caminho para o set. Cheguei com a calça jeans molhada, o cabelo despenteado, e eu tinha certeza de que minha maquiagem também já era coisa do passado.
E ao invés de encontrar conforto nos braços do meu namorado, eu o vi dando atenção para atriz com quem ele contracenava. É claro que eu sabia que ele precisava beijá-la em cena. Para namorar um ator, era preciso saber separar seu namorado do papel que ele estava fazendo, e eu sempre consegui fazer isso muito bem.
Mas, naquela hora, não tinha nenhuma câmera ligada. Ele apenas deixava-a tocá-lo e eu o vi colocando uma mecha do cabelo loiro brilhante atrás da orelha dela. Sempre fazia isso antes de el me beijar. E foi assim que eu soube que havia acabado.
havia cansado-se de uma garota que não queria saber do showbiz e, enfim, envolveria-se em um relacionamento que iria atrair a mídia para ele. Tudo bem. Era melhor para ele.
Não faço ideia se ele me viu. Recebi algumas mensagens dele perguntando se eu ainda iria. E outras pedindo desculpas porque teria que voltar a gravar. Não respondi nenhuma delas, abraçada a Lucy e a uma panela de brigadeiro. Eu ainda estava acordada no horário em que ele deveria ter chegado, mas ele não havia aparecido, não havia ligado. Era como se três anos não significassem nada para ele.
E agora ele estava ali, parado na porta do meu prédio, debaixo da chuva que havia engrossado consideravelmente. Meu coração deu algumas piruetas como sempre acontecia quando eu o via, mas as lágrimas começaram a juntar nos meus olhos. Lucy, aquela traidora, latiu e puxou-me para ele. Se não fosse ela, eu teria entrado em casa sem olhar na cara dele.
– Me desculpa. – Ele falou depois de acariciar meu cachorro. – Eu deveria ter te ligado ontem, mas a gravação acabou tão tarde que acabei dormindo no trailer. Quando me dei conta, já era de manhã e, quando você não atendeu, vim direto para cá.
O cabelo dele estava mesmo amassado, como se tivesse acabo de acordar. As roupas eram as mesmas do dia anterior e foi exatamente isso que lembrou a dor que senti. Lucy estava sentada, encarando-me, quase como se ela soubesse que tinha acontecido algo e aguardando se a gente o perdoaria ou não. Aquela traidorazinha não via a hora de pular no colo dele de novo.
– Eu fui para o set, sabe?
– Foi? – Ele arregalou os olhos e colocou as duas mãos na calça jeans.
– É. Eu vi você com ela. Faz um favor para nós dois e só vai embora, .
Ele franziu o cenho sem entender.
– Me viu com quem, ?
– Ah, pronto! – Falei em português, pouco ligando se ele estava entendendo ou não. – Se faz de sonso mesmo, garoto, isso mesmo.
Dei as costas e girei a porta do meu prédio. Ele hesitou, mas seguiu em silêncio, aguardando estarmos dentro do meu apartamento para perguntar.
– Puta merda! , o que quer que você tenha visto, eu tenho certeza de que não é o que você está pensando.
– É claro que não, . Nunca é, não é verdade? É sempre um mal entendido, sempre a pessoa que foi traída abaixando a cabeça e aceitando que o outro destrua seu coração. Eu vi você com a Sabrina, . Eu vi, porra. – Gritei.
Ele apertou o nariz, tentando controlar sua raiva. Eu quem deveria estar jogando em sua cabeça a caneca do Homem Aranha que ele me deu de presente quando conseguiu o papel. Ou talvez indo até a minha mesa de cabeceira buscar o porta retrato com uma foto nossa para jogá-lo no chão, rasgando a foto da mesma forma como ele rasgara nossas memórias.
, eu não sou seu pai.
Era baixo. Jogar todo o trauma de infância que eu tive com o divórcio dos meus pais e o quanto eu vi minha mãe sofrendo com a traição. O quanto a outra mulher, mesmo depois de ter destruído a minha família, continuava importunando a gente. Meu pai havia feito uma escolha e eu havia ido embora de casa na primeira oportunidade que eu tive. Em busca de uma vida nova, um mundo novo, talvez um amor mas, sem dúvidas, em busca de mim mesma.
– Você não falou isso. – Tinha lágrimas nos olhos dele também, mas diferente de mim, ele falava em um tom calmo e sereno.
– Sabrina queria passar uma fala e pedi para ela me acompanhar até a entrada porque eu estava te esperando. Quando você não apareceu, ela ficou preocupada. Queria cancelar o dia de gravações para que eu pudesse vir atrás de você, mas eu tinha certeza de que, se fosse algo grave, você teria me ligado.
– Uma fala? Sério, ? Você acha que vou cair nisso.
– Que merda você viu, ? Hein? Me diz exatamente o que você viu.
– Você. Colocando uma mecha de cabelo dela na orelha da mesma forma que sempre faz antes de me beijar.
Ele se aproximou e eu quis recuar, mas meus pés haviam se juntado à Lucy e também resolveram trair-me, mantendo-me parada, imóvel, disponível para o toque dele. Seus dedos roçaram minha bochecha antes de pegar uma mecha de cabelo que havia saído do gorro.
– Assim? – Seus olhos estavam grudados nos meus e foi impossível não ceder.
Senti seus lábios tocando os meus lentamente e fechei os olhos, permitindo-me deixar todas as dúvidas do dia anterior irem embora. Eu amava aquele homem, mesmo quando tudo que eu queria era odiá-lo. Ele se afastou mais rápido do que imaginava.
– Eu jamais faria algo assim com você, . Eu sei a sua história. Eu te conheço melhor do que eu mesmo. E, acima de tudo, eu te amo. Tudo que você viu foi uma cena e eu posso te mostrar o roteiro. Nada além.
Ele pegou o celular e abriu o aplicativo de fotos. Uma imagem borrada do roteiro estava ali, escrito exatamente o que eu vi: a personagem de Sabrina deveria segurar seu braço e ele teria uma fala enquanto colocava uma mecha do seu cabelo atrás da orelha. Tentei puxar na memória e, se eu tivesse prestado atenção mais dois segundo antes de sair correndo, eu teria visto o celular dele aberto na sua mão, uma posição estranha quando conversamos com outra pessoa de forma tão intima como eles pareciam estar.
De forma tão intima como nós dois estávamos naquele momento.
– Eu sinto muito que você tenha visto a cena sem saber do roteiro. E me desculpa não ter ligado para você antes. Eu deveria saber que algo assim poderia acontecer e a última coisa que eu quero é que você pense que eu não mereço seu amor. É você quem me faz acordar todos os dias e ver o dia mais bonito. É você quem me ensina todos os dias a ser uma pessoa melhor. Mais aberto, mais paciente. Talvez não o mais esperto. – Eu ri. – Mas, sem dúvidas, é você quem me dá um sentido de vida.
...
– Me desculpa. De verdade. Eu amo você e apenas você. – Ele segurava meu rosto entre suas mãos e foi a minha vez de puxá-lo para um beijo.
Dessa vez, mais intenso, mais profundo. Levei a mão até seus cabelos macios e ele me puxou pela cintura, colando ainda mais nossos corpos.
E eu esqueci tudo. A mágoa, a dor, o medo. Eu sabia quem ele era da mesma forma que ele sabia quem eu era. E, mesmo tão longe de casa, eu ainda tinha um amor para manter minha cabeça no lugar.


Fim.



Nota da autora: Sem nota.



Longfics em andamento:
From the Dust (Restrita/Original)
Illicit Affairs (Restrita/Livros - Harry Potter)
Malfeito Refeito (Livros - Harry Potter)
Where the Demons Hide (Restrita/Livros - Harry Potter)


Outras Fanfics:
I Found Peace in Your Violence (Shortfic/Harry Potter)
Perfeita Simetria (Restrita/Original - Finalizada)
The Last Malfoy's Christmas (Shortfic/Harry Potter)


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