Capítulo Único
Olhei para o cursor piscando na tela do notebook e bufei mais uma vez, abaixando a tela com força, ouvindo-o estralar. Franzi a testa ao pensar que ele poderia ter quebrado e o abri novamente, vendo o maldito cursor piscando novamente para mim.
- E aqui estamos de novo! – Ouvi a voz de Amir e virei o corpo, encontrando-o entrando na nossa casa, ou seja, no quarto reservado para nós dois e Sophie depois de todo aquele rolo em Malibu.
- Já chegou? – Perguntei, checando o relógio e percebendo que já passava das sete da noite.
- Já sim! – Ele suspirou. – Não conseguiu começar ainda?
- Eu não sei como fazer isso, amor. – Me virei para a tela novamente.
- Já faz três semanas que você está com isso, amor, seu prazo está acabando e aposto que não vai querer dar mais. – Suspirei.
- Isso já está demorando demais, você sabe, ela queria dar duas semanas para cada um, mas sabíamos que seria impossível e...
- E você está demorando bastante.
- Jack escreveu nos últimos três dias, nem vem... – Ele me encarou enquanto tirava o paletó e eu suspirei.
- Não é tão difícil assim, amor.
- Como não, Amir? – Falei firme. – Eu tenho a pior história! Eu tive a pior infância, até Jack que sofreu abuso teve uma vida melhor do que a minha. – Senti as lágrimas começarem a aparecer e respirei fundo.
- Não, não é assim! Sua vida pode não ter seguido o curso da maioria das pessoas, dos seus companheiros de banda, mas teve seus encantos.
- Que encantos? – Perguntei irônica e ele colocou as mãos em meu rosto, acariciando minhas bochechas.
- Nós! – Ele falou firme. – Nós fomos os encantos um do outro. – Suspirei. – Olha para nossa infância e olha onde estamos agora! – Ri fracamente. – Pense nos grandes campos de terra que a gente cresceu e olhe o tamanho da mansão que estamos. – Assenti com a cabeça. – Qual é, somos quase em 20 morando em uma casa só! E ninguém precisa brigar por causa de banheiro!
- Você é muito espirituoso! – Falei e ele riu, dando um beijo na ponta do meu nariz.
- É por isso que você se casou comigo. Você é uma âncora e se joga para baixo, eu sou seu leme que preciso te manter em curso.
- E eu agradeço todos os dias por isso! Há 37 anos! – Sorrimos juntos.
- Viu?! Não existe pessoa que te conheça há mais tempo do que eu. – Assenti com a cabeça, suspirando.
- Eu sei! E somos muito mais do que marido e mulher, você é o melhor amigo que eu poderia ter na vida! – Ele sorriu.
- Eu ouvi isso! – gritou ao passar pela porta e rimos juntos, dando de ombros.
- Tá se achando! – Amir gritou de volta e rimos novamente. – Vamos começar isso?
- Como? – Perguntei, cruzando os braços.
- Como uma história começa: do começo! – Ele girou meus ombros e eu voltei para a cadeira, me sentando e encarando a tela do computador. – Volte para Thamaga há 40 anos, respire fundo e comece! – Suspirei, colocando os dedos nas teclas. – Eu vou te pegar um chá e algo para comer.
- Ok! – Suspirei, estralando os dedos. – Cadê Sophie? – Perguntei.
- Com as crianças, não se preocupe! Agora vai. – Suspirei e ele se sentou na cama, atrás de mim.
- Você pode não ficar aqui? – Pedi.
- Mas eu vou ler do mesmo jeito.
- É, mas depois, não agora! – Falei e ele riu, se levantando.
- Já volto! – Ele falou e eu suspirei.
“Ok, vamos voltar para Thamaga, uma grande aldeia no distrito de Kweneng, Botsuana, há 40 anos, quando eu estava nascendo! Não que eu me lembre muito daqueles primeiros anos, mas eu sei do que me falaram.
Para os que não sabem ou não se lembram, Botswana, o país em que eu nasci, é um dos mais, se não o maior, com incidência de HIV do mundo, existe uma estimativa atual que diz que 17 milhões de pessoas vivem com a doença e recebem tratamento, sem contar com tantas outras que não tem acesso.
Na África Subsaariana, tem um total de 25 milhões de infectados, isso são quase dois terços do total de pessoas infectadas no planeta. Tanto que meu país de origem possui um projeto com a intenção de circuncidar meio milhão de homens para tentar diminuir os casos de Aids no país. Isso poderia evitar mais de três milhões de mortes em 20 anos. Vocês sabem o que é isso?
Pois é, gente! Para ajudar bastante, Botswana é um dos países mais pobres do mundo, então não temos acesso a remédios, hospitais, saúde, nem tratamentos bons, ficamos à mercê do governo e a doações como Cruz Vermelho, Médicos Sem Fronteiras e afins. Atualmente, com a ajuda de , da Orbi e da fundação do Elton John, conseguimos arrecadar e entregar remédios de uso contínuo para 75 por cento da população afetada de Botswana, remédios que eu uso diariamente. Algo que hoje eu compro facilmente em qualquer lugar que eu vou e que não era fácil de conseguir quando eu era mais nova.
É por isso que até hoje eu sou muito grata à . Ela não é só aquela cantora sensacional que conhecemos, ela tem bondade em cada fibra de seu corpo e, mesmo assim, o mundo insiste em fazer mal a ela... Enfim, isso é coisa para outra hora, eu não vim dar aula de história para vocês e sim contar um pouco da minha vida.
Mas só recapitulando, muitas pessoas não sabem, mas tem uma grande diferença entre HIV e Aids, eu, por exemplo, tenho HIV que quer dizer vírus imunodeficiência humana, ele é o causador da Aids, ataca o sistema imunológico, destruindo os glóbulos brancos (linfócitos T CD4+). A falta desses linfócitos diminui a capacidade do organismo de se defender de doenças oportunistas, causadas por micro-organismos que normalmente não são capazes de desencadear males em pessoas com sistema imune normal.
O HIV é apresentado inicialmente por sintomas de gripe, além de um longo período assintomático, conforme progride, torna a pessoa cada vez mais vulnerável a doenças. Ou seja, é como se o sistema de proteção do meu corpo fosse bem mais deficiente do que a maioria das pessoas.
Agora a Aids é a evolução do HIV. Como o HIV ataca as células de defesa do corpo, qualquer resfriado pode virar uma tuberculose, então o corpo fica aberto para várias coisas, incluindo cânceres, problemas cardiovasculares e neurológicos por causa da inflamação crônica.
Como sabe, a Aids não tem cura, mas felizmente existem remédios que controlam essa doença e não deixam com que o HIV se torne uma Aids e nem que a pessoa morra por causa da Aids. São os antirretrovirais e medicações que previnem infecções bacterianas, virais, fúngicas, dependendo de cada caso. Claro que o sistema imunológico da pessoa e características genéticas ajudam e muito a não evolução da doença, mas isso é necessário análise de cada caso.
Obviamente, isso é um tratamento para a vida inteira. Eu tomo diversos remédios diariamente, tenho consultas com minha médica uma vez por mês, tento me manter saudável, faço atividades físicas, não exagero em besteiras e dificilmente tenho relações sexuais. Apesar de saber tudo isso, não quero passar isso para o meu marido e por isso decidi não ter filhos do modo convencional. Essa doença é cruel e eu já vi muita morte por causa dela.
Agora, o que me ajudou mesmo a sair dessa, não foram os tratamentos escassos em Botswana, foi minha vinda para os EUA, que fez com que eu tivesse mais acesso a saúde, aos tratamentos e a bons hospitais, mas vamos voltar um pouco.”
“Eu sou uma pessoa que nasci com HIV, minha mãe era prostituta. Como o tratamento da doença não era bom, pode imaginar que proteção também não era, então boa parte das prostitutas do país tinham ou tem a doença. Elas já eram infectadas de nascença ou por algum parceiro e aquilo ia passando de pessoa para pessoa. Minha mãe engravidou quando já tinha a doença, mas ela não descobriu sobre mim até a hora do parto praticamente.
Ela era magra, mirradinha e tinha seus problemas com drogas, então ela realmente não estava pensando em fazer um aborto ou algo assim, imagino que ela só pensava em conseguir dinheiro para viver aquele dia, conseguir remédios para aquele dia.
Eu nasci prematura de seis meses e ela morreu no parto com 19 anos. Ela faria 60 esse ano. Seu nome era Urbi Lizarde e, apesar de tudo, eu agradeço a ela todos os dias pela vida que eu tenho hoje. Meu pai? Eu realmente não sei quem ele era, nunca soube, para falar a verdade. Imagino que tenha sido um dos clientes dela, mas isso é algo que eu nunca vou saber e prefiro deixar para lá.
Enfim, voltando à história, eu nasci prematura, acabei sobrevivendo, mas poucos dias depois, já descobriram que eu era portadora da doença também, então, apesar das poucas condições, eles tentam ajudar a todos, mesmo que temos que dividir remédios, intercalar dias, ficar sem comer, enfim, a regra principal era sobreviver.
Quando eu saí do hospital, eu fui direto para o orfanato de Thamaga, junto de outras tantas crianças que perderam seus pais por causa dessa maldita doença. Mas não pense que era igual os orfanatos daqui dos Estados Unidos com boas condições e afins, não, eram três crianças dividindo uma cama, chão de terra, roupas sujas e rasgadas, muita doença e condições quase inexistentes.
As mulheres que cuidam desses orfanatos até hoje merecem céus e terras para tudo o que elas fazem e se esforçam para fazer, elas não ganham nada com isso e ainda convivem diariamente com uma doença que pode matá-las.
Eu não lembro de muitas coisas, mas foi nesse orfanato que eu conheci o homem da minha vida. Amir não era grande e musculoso quando o conheci, ele era só outro menino órfão e magrinho em meio a tantas pessoas, mas diferente de outros, ele sempre foi bondoso comigo. Ou melhor, ele é bondoso com todos. Já viram ele ser ruim com alguma pessoa?”
“Eu o conheci aos seis anos, na época eu tinha os cabelos cacheados raspados quase no talo, me fazendo uma carequinha de vestido surrado, a pele escura misturada no barro tiravam o brilho quase imperceptível de meus olhos.
Apesar da doença triste e complicada, crianças são crianças e sempre serão, então elas são malvadas, encrenqueiras e fazem bullying como todas as outras e eu era muito pequena para tentar me defender delas.
Quando chegava a hora de dormir, eu e todas as crianças arranjávamos rapidamente um espaço no colchão, nem se fosse com os pés da pessoa na sua cara ou o que fosse, como eu era pequenininha, eu sempre era jogada no chão, sempre! Seja da cama, do colchão, da altura que fosse.
- Ei! – Reclamei quando fizeram isso de novo e passei a mão na testa, me sentando no chão.
- Sai daqui! – O garoto reclamou e eu bufei, me levantando.
- Vocês são idiotas! – Foi quando Amir apareceu. – Deixe um espaço para a menina, não estão vendo? – Ele veio pomposo, apesar de ser pequenino, eu o achei muito fofinho.
- Sai daqui, Amir! – A menina reclamou e eu bufei, vendo-o esticar a mão para mim.
- Vem, tem lugar no meu colchão! – Ele disse e eu sorri, segurando sua mão e me levantando.
Ele me levou até seu colchão que ele dividia com mais uma pessoa, Tebogo, o único albino de toda aldeia. Foi aí que eu percebi que Amir era legal, ele era amigo do único garoto albino de toda aldeia! Amigo do garoto que todos evitavam só por ele ser diferente, mas não éramos todos?
- Pode deitar perto da parede, ninguém vai te derrubar, a gente promete. – Tebogo falou e eu sorri, me sentando na beirada da cama.
- Qual é seu nome? – Perguntei para os dois.
- Amir. – Meu futuro marido falou.
- Tebogo. – O outro falou.
- Eu sou Emni. – Dei um pequeno sorriso.
- É um prazer te conhecer, Emni. – Amir falou sorridente e eu assenti com a cabeça, me deitando no espaço.
A partir desse dia, por menor que tenha sido o ato de Amir, eu nunca mais tive problemas ao dormir. Nunca precisei brigar com ninguém, nunca fui jogada para fora da cama e ainda tinha dois amigos para rir e contar histórias antes de dormir. Não era a vida perfeita, claro que não, mas era melhor do que a de antes.”
“Eu não tenho muitas lembranças até meus 10, 12 anos, as regras eram realmente sobreviver, então cada dia evitando ser mais uma cruz na terra seca de Thamaga, era uma vitória. Uma imagem vívida em minha mente, que aparece em meus pensamentos até hoje, são as cruzes que tomavam boa parte de um terreno vazio, era o nosso cemitério.
Toda pessoa que morria em Thamaga era cremada, claro que não da forma chique como acontece atualmente, eles a embalava num saco e ateiam fogo, depois enterram as cinzas e, em cima dessas cinzas, ficam as cruzes. Feitas de madeira, bambu, pedaços de árvore e enterradas na terra com um pouco de argila para mantê-las em pé.
Lembro que sempre brincávamos nos campos abertos da aldeia, mas as cruzes estavam lá, então, apesar de sabermos a realidade e vivermos diariamente com ela, ver aquele mar de cruzes sempre me deixava triste. Até hoje, quando vamos fazer missões em Botswana para levar suprimentos. Até hoje.
- Está com você! – Tebogo encostou em mim e eu olhei assustada para ele, saindo correndo em direção a ele ou Amir.
Nós três ríamos como se aquilo fosse nosso castelo da Cinderela, batíamos os pés na terra seca, fazendo com que um pouco de poeira erguesse pelos ares.
- Volta aqui, Amir! – Falei rindo, vendo-o se esconder atrás de uma árvore.
- Você não me pega! – Ele gritou e eu desviei da árvore, pegando-o do outro lado.
- Peguei! – Falei e saí correndo, mas parando rapidamente quando percebi que cheguei ao limite das cruzes, me fazendo parar bruscamente.
- Peguei! – Amir falou, mas parou logo em seguida ao meu lado. – O que foi, Emi? – Ele me perguntou e eu respirei fundo.
- Eu não gosto daqui. – Falei, respirando fundo.
- Sua mãe está aqui? – Ele perguntou e eu somente assenti com a cabeça.
- Você nunca nos falou dela, Emi. – Tebogo apareceu ao meu lado e eu suspirei.
- Eu não lembro dela, nunca a conheci. – Suspirei.
- Você vem com frequência aqui, aposto que conversa com ela. – Amir falou e eu virei o rosto para ele, vendo sua mão estendida. – Vamos! Apresente seus novos amigos a ela.
Naquela época já tínhamos cerca de 12 anos, e eu não lembrava um dia que eu havia contado para eles sobre minha mãe, nenhuma vez. Não sei. A história dela não era diferente da de muitas pessoas aqui, mas Amir não tinha a doença, seus pais o abandonaram por falta de condições, Tebogo era saudável também, mas seus pais o abandonaram por ser diferente.
Todos tínhamos nossos problemas, mas nenhum deles entendia o que eu passava. Não precisavam ficar na fila de remédios todos os dias, não precisavam se preocupar com qualquer corte que era feito na sola do pé, então eu nunca mencionava isso para eles, mas eles queriam saber.
- Ela fica embaixo dessa cruz. – Apontei para uma. – Eu sei que é ela, pois é a única com um pouco de grama do lado. – Apontei para os três ou quatro fios de grama que secavam na terra.
- Como aconteceu? – Amir perguntou.
- Ela tinha a doença. – Falei suspirando e ambos me olharam. – Ela me passou.
- Ah, Emi! – Amir apertou minha mão. – Não precisa ficar pensando nisso, você está bem.
- Mais ou menos. – Suspirei. – É difícil! – Dei de ombros. – Eu preciso tomar muito mais cuidado do que vocês.
- Nós cuidaremos de você, então! – Tebogo disse e eu sorri.
- Vocês são ótimos. – Sorri e eles assentiram com a cabeça.
- E então, o que você conversa com ela? – Amir perguntou acenando para a cruz.
- Eu tento entender quem eu sou. Rezo todas as noites para que ela me mande uma luz sobre quem eu sou ou quem eu devo ser. – Suspirei. – Não imagino que seja só isso. Que toda nossa vida será isso, barro, sujeira, doença. – Abri os braços. – Isso não é viver.
- Não acho que seja só isso. – Amir suspirou. – Tem mais, você vai ver.
- Quando? – Perguntei rindo debochadamente.
- Um dia, você vai ver, as coisas serão diferentes. – Suspirei, assentindo com a cabeça.
- Crianças, hora do remédio! – Uma das cuidadoras do orfanato gritou e eu suspirei.
- Eu vou lá, a gente se vê no jantar? – Perguntei e eles assentiram com a cabeça.
- Claro! – Eles falaram juntos e suspirei, andando de cabeça baixa até o prédio novamente.”
“Para uma criança pobre, doente e totalmente sem condições, a gente não entendia muito o que acontecia, tínhamos uma rotina de ajudar dentro do orfanato, brincar, correr, tomar remédio e dormir, era basicamente isso.
Às vezes recebíamos uma visita importante de alguma pessoa que queria cuidar da gente, Médicos Sem Fronteiras, Cruz Vermelha, enfim, alguma organização médica que nos descobria no mundo. Esse era o momento de melhorar todas as nossas energias, eles faziam diversos testes, nos enchiam de remédios e nossa imunidade melhorava significativamente por um mês, mas depois a vida voltava ao normal.
Então, fora disso, nós tentávamos a todo custo achar algo para fazer. O grupo de anciões da cidade precisavam de bastante ajuda, então quando cheguei aos meus 14 anos, eu fui ajudá-los. Acabei aprendendo como jogar Xadrez e Damas, isso tudo antes de saber ler e escrever. Era divertido ficar com eles, eles nos ensinavam algumas coisas, nós os entretínhamos com nossa sabedoria jovem e acabávamos recebendo alguns conselhos.
O melhor conselho que recebi da minha vida foi de uma senhora, ela tinha 87 anos na época, mas tinha uma energia que eu não tenho nem em grandes shows, mas ela foi muito importante para mim. Além de que ela era minha esperança de que eu nunca morreria de HIV, sua doença era idêntica à minha e nunca progrediu. Já era algo.
Naquela época, com 14, 15 anos, eu já era uma menina mais bonita. Ainda mirradinha e pequenininha, foi quando cheguei aos EUA que eu comecei a encorpar mais, tinha os cabelos curtos cacheados presos sempre por uma pequena tiara, e tentava me arrumar melhor, da forma que podíamos, sabe como é, minha amizade com Amir já tinha progredido e eu já gostava dele de outra forma.
- Olá, Emni! – Ela sempre me cumprimentava com um largo sorriso no rosto e eu me acomodava na poltrona surrada à sua frente.
- Oi, senhora Goit. – Ela sorria. Seu nome era Goitsemedime, mas quem lembrava disso tudo, não é? Ironicamente, seu nome significava “Deus sabe”, acho que ela era meu deus.
- Como você está hoje, minha menina?
- Tudo certo. Infelizmente, nada de novo. – Suspirei e ela riu.
- Como não? – Franzi a testa com ela. – Não me diga que ainda não se declarou para Amir.
- E nem vou! – Falei rapidamente. – Ele não gosta de mim dessa forma, Goit. Prefiro tê-lo como amigo do que não o ter.
- Então, por que ele nunca para de olhar para você? – Virei para trás rapidamente, vendo que Amir nos encarava enquanto varria a sala. Seu olhar se encontrou com o meu e ele virou o rosto rapidamente para o lado contrário. – E ainda desvia o rosto como se tivesse fazendo algo errado.
- Não sei, Goit. – Suspirei.
- Amir já é seu amigo para a vida toda, minha jovem. Por que não tê-lo realmente para a vida toda? – Bufei.
- Pessoas como eu e você crescemos sabendo que não deveríamos nos relacionar nunca, que nossa doença era perigosa para os outros e que não deveria ser passada. – Era riu fracamente.
- Não é assim, minha querida. – Ela falou. – Você tem tratamento, falhos, mas constantes, vai se proteger, além de que um relacionamento não é só beijo na boca e sexo. – Ela riu fracamente e eu fiquei envergonhada.
- Não? – Franzi a testa.
- Claro que não, um relacionamento é ter um amigo para o resto da vida. Um confidente, alguém para rir e chorar, dividir alegrias e tristezas...
- Mas eu já faço isso com ele. – Ela sorriu.
- Então, o que diferenciaria você falar para ele que gosta dele? Que quer ter algo diferente dele?
- Tenho medo dele não sentir o mesmo. – Suspirei, observando-o conversar com senhor Makori e ambos também olhavam para nós.
- Eu duvido que ele não sinta nada diferente por você.
- Você nunca vai saber se não tentar. – Suspirei.
- Mas eu não quero perdê-lo, Goit. – Ela assentiu com a cabeça.
- Eu te garanto que você não vai. – Ela sorriu. – Só precisa ter um pouco de coragem.
- Eu vou tentar. – Suspirei.
- Além de que, se Tebogo conseguiu falar com a Ashia que gosta dela e estão juntos, por quê você não merece também?
- Isso foi engraçado, quem diria que Tebogo estaria namorando. – Rimos juntas.
- Tente, minha jovem! Você nunca vai saber se não tentar. – Ela disse. – Além de que vá logo, Amir se tornou um jovem muito bonito e outras meninas da aldeia estão de olho nele. – Suspirei.
- Não diga isso, Goit, me deixa mais nervosa. – Falei e ela segurou minha mão.
- Não, apesar de outras meninas olharem para ele, ele só tem olhos para você. – Suspirei.
- Eu vou ver o que eu vou fazer, ok?!
- Fique à vontade, minha jovem. Te espero na semana que vem para saber novidades de vocês dois. – Ri fraco.
- Até semana que vem, senhora Goit. Quer um chá antes de eu ir embora?
- Ah, vou aceitar, por favor. – Sorri para a senhora e me levantei da poltrona, seguindo para a pia que ficava na lateral, começando a preparar o chá para ela.
- Mokari está empolgado hoje. – Amir falou, apoiando na pia.
- Goit também! Deve ser o chá que eles tanto bebem. – Falei e ele riu, me ajudando a preparar as coisas.
- Pode fazer um pouco mais para ele?
- Claro! É só ferver mais água. – Disse e rimos juntos com largos sorrisos no rosto.”
“Depois de toda conversa com Goit, eu estava pronta para revelar para Amir que gostava dele. Eu precisava fazer isso, mas ainda tinha um sentimento aqui dentro que tinha medo de não ser retribuído e perdê-lo para sempre.
Mas algo que notei foi que Amir nunca deu bola para outras meninas, nunca. Quando não era comigo ou com Tebogo, normalmente ele estava sozinho. Diferente de mim, algumas meninas até se aproximavam dele na tentativa de chamá-lo para sair, mas sua resposta era sempre a mesma:
- Agradeço muito, mas não, obrigado. Meu coração já está tomado.
Amir sempre foi muito cordial e educado, não é à toa que advocacia caiu muito bem para ele depois que viemos para os Estados Unidos. Mas toda vez que ele falava “meu coração já está tomado”, eu me perguntava por quem. Afinal, ele nunca namorou alguém, da mesma forma que eu e também nunca dava um primeiro passo.
Para uma garota de 15 anos, era a maior confusão da vida. Não importa em que lugar do mundo você vive, você cria imagens loucas na sua cabeça e pensa em todas as suposições das ações do cara que você gosta. Acredite, eu fui muito assim, mas eu era na minha, como eu tinha minhas limitações nesse departamento, eu nunca dei o primeiro passo.
Até falar com Goit.
Eu já tinha uma sentença nas minhas costas pelo resto da minha vida, porque eu também não poderia ser feliz em outro departamento? Goit estava certa, namoro não era só beijo e sexo, tinha muito mais que isso, e eu sabia que, com Amir, eu já tinha muito dessas coisas, era para ele que eu chorava quando a doença regredia, era para ele que eu corria quando alguma coisa legal acontecia. Era sempre ele... E Tebogo, é claro. Mas com Tebogo era algo mais de irmão, aquela cumplicidade que até hoje eu não entendo como se transformava, mas Amir... Eu queria que ele sentisse orgulho de mim, me protegesse embaixo de suas asas e curasse todas as minhas cicatrizes.
Quando eu finalmente notei essas coisas, percebi que tudo que eu mais queria era que Amir gostasse de mim, que ele ficasse comigo para sempre, que ele também me amasse. Eu nunca tive uma representação de amor na minha vida, mas eu sabia que sentia algo diferente por Amir.
Com isso, eu decidi nessa semana que se seguiu da conversa com Goit que eu falaria para ele, que eu contaria para ele o que se passava no meu coração e esperaria as consequências, sempre pensando em boas consequências.
Como eu e Amir (e Tebogo e Ashia, além de outras crianças) trabalhávamos no mesmo turno do refeitório depois das refeições, tirando os pratos e separando o que era resto dos pratos e talheres, eu pensei que seria a oportunidade perfeita para ter alguns minutos com ele.
- E aí, o que faremos hoje mais tarde? – Tebogo perguntou enquanto me passava os pratos um por um.
- Que tal irmos pro lago mais tarde? Vai ter uma competição de Xadrez, Makori disse que vai jogar. – Amir falou e rimos juntos.
- É engraçado que nossos grandes amigos são pessoas 70 anos mais velho que nós? – Ashia comentou e rimos.
- Eles são legais, vai! – Falei. – Eu adoro a Goit. – Amir sorriu para mim, assentindo com a cabeça.
- Então, combinado? Lago hoje à noite? – Tebogo perguntou e nos entreolhamos.
- Combinado! – Falamos quase juntos.
- Bom, falta só isso... – Ashia disse finalizando de separar os talheres.
- Por que vocês não vão? – Olhei para ambos. – Eu e Amir terminamos aqui. – Virei para ele. – Se não tiver problema.
- Podem ir! – Ele falou prontamente e eu sorri para Tebogo que parece que entendeu a deixa.
- Nos vemos mais tarde! – Ele disse e saiu com Ashia.
- O que queria falar comigo? – Me assustei com a pergunta de Amir e virei para ele.
- Como sabia que eu queria falar contigo? – Falei rapidamente, sacudindo as mãos da água gelada.
- Eu te conheço há 10 anos, Emni! Eu sei quando você precisa de qualquer coisa. – Rimos juntos e ele segurou minha mão, me puxando mais para o final da longa mesa, nos afastando das outras crianças. – O que te aflige?
- Por que você fala tão formal? – Falei e ele riu. – Nem parece que você tem 16 anos. – Ele deu de ombros.
- Não enrole, Emni! O que é? – Suspirei.
- Ok, ok! – Suspirei. – Tenho algo para te falar há algum tempo já, mas foi a Goit que me fez falar...
- Ah, Goit, se mete em tudo. – Sorri.
- Ela é como uma mãe para mim. – Ele sorriu.
- E Makori como um pai. – Rimos juntos. – Você pode confiar em mim, Emi! Estamos juntos nessa, lembra? Sempre. – Mordi meu lábio inferior, respirando fundo. – Não precisa ter medo de mim.
- Eu gosto de você, Amir. – Falei rapidamente, engolindo em seco em seguida. – Não só como amigo, como algo a mais.
E o que ele fez? Ele abriu um lindo sorriso, aquele sorriso que me acorda todos os dias.
- Por que você demorou tanto para me dizer? – Ele falou e fiquei mais confusa ainda.
- Como assim? – Perguntei.
- Eu sempre gostei de você, Emni. Desde que eu te conheci. Você é incrível, bonita, inteligente, leal... – Sorri.
- Então, por que você nunca disse? – Perguntei, sentindo-o acariciar minhas mãos.
- Por causa da sua doença. Você nunca demonstrou que queria ter algo, que queria tentar, nem comigo ou com ninguém. Você se fecha na sua bolha e fica difícil entrar.
- Provavelmente é por causa dela mesmo, eu não sabia que era possível eu me relacionar com alguém e viver com essa doença.
- Mas um relacionamento não é só beijo e outras coisas...
- Foi o que Goit me mostrou. – Suspirei. – Não é porque eu tenha que tomar mais cuidado, que eu precise perder tudo. – Ele sorriu. – Eu gosto de você, Amir, e quero ter um futuro contigo.
- Eu também gosto de você, Emi! Eu vou adorar ter esse futuro contigo! – Ele me abraçou fortemente e eu apoiei meu rosto em seu ombro, sentindo-o me apertar fortemente.
- E como faremos isso? – Cochichei e ele olhou para mim.
- Aos poucos, um dia de cada vez! – Ele disse e segurou meu rosto com as mãos.
Delicadamente ele tocou meus lábios com os seus e nos separou. Foi um leve selinho, mas foi muito importante para mim aquilo. Eu sabia que teria Amir para o resto da minha vida.”
- Agora eu entendo o que você quer dizer com “o meu amor e o de Amir é diferente”. – falou e eu sorri, assentindo com a cabeça.
- Sim, é algo diferente de você e do , Jack e Scott, Mike e Lacey... – Dei de ombros. – É mais que amor, é amizade, confraternização, carinho... – Suspirei. – É cumplicidade sempre.
- Isso é demais! – sorriu e me abraçou de lado. – Vamos continuar.
“Bom, eu e Amir nos tornamos o casal mais querido pelos idosos de Thamaga! Era legal como as pessoas celebravam nosso amor e nos davam várias dicas de como ficar juntos para sempre. Parecia besteira lá com 15, 16 anos, mas parece que em alguns momentos mais tensos em nosso relacionamento eu ouço a voz de Goit e de Makori nos aconselhando, além de outros anciões, obviamente, mas esses dois eram sensacionais.
Eu e Amir ainda achamos que em algum momento esses dois ficariam juntos. Nunca soube se isso aconteceu. Goit morreu alguns anos depois que eu fui embora em decorrência de uma gripe e Makori ainda estava lá da primeira vez que eu voltei com , mas ele faleceu alguns anos depois de velhice.
Falando em “voltar”, acho que depois que eu e Amir nos ajustamos, não aconteceu nada muito interessante, em nossas vidas, apesar de termos um ao outro, a regra ainda era sobreviver e esperar por coisas milagrosas acontecerem.
E elas aconteceram quando eu tinha 16 anos, prestes a completar 17. Os Estados Unidos, junto das Organizações das Nações Unidas, colocaram os olhos em nós. Eles fizeram um projeto com a intenção de dissipar os contraídos de HIV e Aids e ajudar no tratamento. Não sei exatamente qual era o foco, provavelmente político, na época eu era muito nova, só sei que um dia eu estava vivendo minha vida normal e no outro sendo entrevistado por médicos americanos para me levar aos EUA. Claro que a conversa foi feita com tradutores de tswana para inglês, mas vamos improvisar.
- Então, Emily...
- Emni! – O corrigi.
- Emni, você é uma boa candidata para ir morar nos Estados Unidos, você gostaria disso? – Ele me perguntou e eu suspirei.
- Seria ótimo! – Falei. – Ter a chance de fazer algo diferente, outras oportunidades... Não sei.
- Acho que você se daria bem, você é uma pessoa especial. – Ponderei com a cabeça.
- Há quem diga que sim. – Falei e ele riu.
- Quais seriam suas condições? – Ele perguntou e eu franzi a testa.
- Como assim?
- Você sabe que morando nos Estados Unidos terá condições melhores do que as oferecidas aqui, mas que também não serão perfeitas, certo?
- Imagino que sim. – Falei.
- E então, qual seria uma condição para que aceitasse fazer parte desse projeto?
- Levar meu namorado. – Falei. – Se for para eu enfrentar um país novo sozinha, que seja com alguém para me acompanhar.
- Ele também tem a doença?
- Não, ainda bem. – Ele suspirou.
- Bom, Emily...
- Emni.
- ... Veremos o que podemos fazer. – Assenti com a cabeça, me levantando e saindo de lá.”
“Encurtando um pouco do caminho, ele forjou que Amir tinha HIV para que pudesse ir comigo. Eu nem conhecia aquele cara e ele me ajudou a não vir desacompanhada para os Estados Unidos. Eu sou muito grata a ele. Se não fosse essa simples mentira, eu não iria, porque Amir não iria também, e não seria tudo o que sou hoje, mas com essa decisão, eu faço parte da melhor banda do século 21.
Enfim, não queremos nos gabar, não é?!
Eles prepararam tudo para a nossa viagem, nos colocaram em um hotel por dois meses para que passássemos por uma quarentena para ter certeza que não tínhamos outras doenças, depois cuidaram de nós fisicamente e só depois fomos para os Estados Unidos.
Foi difícil me despedir, apesar de tudo, era difícil isso, sabe? A gente vive 16 anos em um mesmo lugar, com as mesmas pessoas, acaba formando uma família. Eles foram minha família pelo tempo que precisaram e me proveram tudo que eu precisava. Me despedir de Goit foi o pior, aquela mulher gostava de mim e tratava de mim com muito carinho, não tinha palavras para identificar.
Despedir de Tebogo também foi difícil, mas ele era dois anos mais velho que eu, já tinha 18 anos e disse que sairia do orfanato e tentaria fazer algo para a vida dele. Ele acabou chegando na capital, Gaborone, estudou e se tornou médico. Hoje ele é do Médicos Sem Fronteiras, credenciado à Orbi, sempre que fazemos missões em países da África Subsaariana, entramos em contato com ele para saber se quer nos acompanhar.
Não parece e eu também não comento muito, mas eu ainda mantenho minhas raízes e ainda sou grata a tudo o que me foi feito e oferecido lá, mas não posso negar que minha vida nos Estados Unidos foi muito mais estável e menos preocupante.
Quando chegamos aos Estados Unidos, inicialmente o presidente nos expôs como se estivesse fazendo uma grande caridade, nos colocou em rede nacional, falou sobre suas intenções políticas e de interesse da saúde e mais um monte de besteiras, pois logo depois ele nos distribuiu pelos estados dos Estados Unidos, nos deram roupas, sapatos e materiais de higiene e nos colocaram em orfanatos.
Eu dei sorte de vir parar em Los Angeles, Califórnia, é bem menos quente do que Thamaga, mas tem longos espaços de calor, então é até que “parecido”. Claro que quando eu cheguei aqui eu me senti nas nuvens. Eu morava em aldeias, mal sabia o que eram prédios, vivia em uma imensa bolha, com chãos de terra, casas feitos de barro e tudo mais, então, viajar de ônibus, avião, chegar em Los Angeles, ah, foi um sonho imenso.
Mas logo depois nos trancaram em um orfanato e não era tão diferente de Thamaga, tínhamos nossas tarefas a cumprir, coisas para fazer e tudo mais. A diferença é que aqui tivemos estudo. Foi somente aqui nos Estados Unidos que eu aprendi a ler e a escrever, o que foi engraçado, pois eu sabia ler e escrever em inglês, mas não sabia no tswana.
Além disso, sofremos muito preconceito quando chegamos, por causa da diferença racial, de não sabermos ler ou escrever e também por causa da doença. Passamos bons momentos de tristeza no começo, me lembro que eu desejava voltar para Thamaga só para ter pessoas que me entendiam à minha volta novamente, mas superamos. O colo de Amir foi bem usado por muito tempo, até o meu foi usado por ele e por outras crianças que foram conosco.
Era tudo diferente, era algo que a gente não estava nada acostumado. Mas sobrevivemos.”
“Uma das coisas boas de Los Angeles foi quando eu conheci a minha médica. Eles sabiam que ao trazer-nos para cá, cuidados médicos eram essenciais, tanto remédios para oferecer e consultas constantes como médicos para qualquer problema que fosse. Como nosso sistema imunológico é bem frágil, qualquer coisa nos levava ao médico.
Depois de Goit, Marie Adams foi quem se tornou minha segunda mãe, tanto que ela é minha médica até hoje. Ela trabalhava num posto de saúde público próximo ao orfanato. Eu a conheci poucas semanas depois que nos ajeitamos.
Ela sempre foi um amor de pessoa, afinal, ela estava lidando com uma menina de 16 anos com HIV, que vivia em um dos países mais pobres do mundo. Estar em Los Angeles para mim era surreal. Eu estava num parque de diversões.
Depois que nos ajeitamos, ela fez todos os exames necessários, eu ia a cada duas semanas no postinho para pegar minha leva de remédios e vamos dizer que ficamos mais próximas e eu acabei me abrindo mais com ela. Afinal, vocês sabem, eu não tinha família, eu ainda sofria preconceitos com o pessoal do orfanato, não dava para falar tudo com Amir, e as mulheres do orfanato não eram tão boazinhas como o pessoal de Thamaga.
- Oi, Emi! – Ela sorriu quando abriu a porta do seu consultório. – Vamos entrar? – Me levantei da sala de espera e segui até ela, entrando na sala e ela me abraçou rapidamente. – Como está?
- Tudo bem e contigo?
- Tudo bem, não sentiu nenhuma diferença com o remédio novo? – Me sentei em uma poltrona e ela se sentou atrás da mesa.
- Deu uma soltada no intestino nos primeiros três dias, mas você disse que podia acontecer. – Falei.
- Sim, exatamente, mas agora normalizou? – Ela foi anotando na minha ficha.
- Sim, tudo certo!
- Defecando normalmente?
- Normalmente! – Falei, rindo em seguida e ela saiu para pegar meus remédios.
- Aqui, Emi! Eu coloquei paracetamol dessa vez, você disse que tem sentido bastante dor de cabeça.
- Sim, incomoda bastante.
- Vamos ver se ele vai ajudar antes de seguir para algo mais forte. – Assenti com a cabeça, pegando meu saco de remédios.
- Tomara! Parece que estão enfiando um prego na minha cabeça. – Ela assentiu com a cabeça.
- Vamos ajustar isso. O que mais eu posso fazer por ti? – Ela me encarou.
- Tem uma coisa. – Suspirei franzindo a testa e ela me olhou.
- Sim, Emni... – Derrubei os ombros.
- Eu nunca falei isso com ninguém, então é complicado.
- Você sabe que pode falar comigo, certo? Estamos juntas há o quê? Três meses?
- Mais ou menos. – Dei de ombros.
- O que é? – Ela perguntou.
- É Amir...
- Vocês dois estão bem?
- Sim, estamos, não é... Eu não sei, sabe? Ele é homem, eu penso que ele sente falta no departamento S-E-X-O, sabe? – Falei um pouco baixo e ela deu uma risada fraca. – E eu nunca transei na minha vida, não quero morrer sem saber como é. – Ela sorriu e esticou a mão sobre a mesa e segurou a minha.
- Ah, minha querida, vocês nunca...? – Neguei com a cabeça.
- Nunca! E o corpo pede, sabe? Ele é lindo, você o conhece. – Suspirei.
- Sim, seu namorado é muito bonito mesmo e entendo que uma garota e um garoto têm suas necessidades. – Ela deu um sorriso.
- Eu queria saber o que eu faço.
- Para começar, eu vou te dar uma aulinha, HIV não é um vírus tão fácil de ser transmitido assim, não existem casos documentados de vírus que foram passados por meio de saliva, suor ou lágrimas. – Assenti com a cabeça. – Ele pode sim ser transmitido no sexo, em compartilhamento de agulhas e na gestação.
- Ok. – Ela assentiu com a cabeça.
- Agora sobre o sexo, uma relação sexual sem camisinha não é 100 por cento de chances de que o Amir vá contrair o vírus, é até baixa, mas as chances aumentam a cada relação, então sempre se proteja, ok?! Sempre! Camisinha é regra para todos, mas para você principalmente. E não use duas ou mais, uma só, borracha com borracha rasga, e vocês ficarão mais vulneráveis. – Assenti com a cabeça. – Além de outras doenças sexualmente transitiveis que protege.
- O que mais? – Perguntei.
- Você nasceu com HIV, mas nem toda criança com HIV passa para o filho.
- Mesmo? – Ela assentiu com a cabeça.
- Mesmo! – Ela sorriu. – O risco é de 17 por cento, se as mães tomam as precauções necessárias, isso cai para menos de um por cento, sua mãe era pobre, não tinha cuidados, mas você não precisa ter o mesmo destino. Seu parto foi normal em um lugar supercontaminado, feito em um centro cirúrgico preparado e uma cesárea, dificilmente existe essa transmissão.
- Eu prefiro não pagar para ver.
- E acho que está certa, mas caso queira, há opções. – Assenti com a cabeça.
- Tem algo que o Amir pode fazer? Caso a gente queira...
- Após o ato, ele pode tomar um antirretroviral, quase como uma “pílula do dia seguinte”, para reduzir as chances de contaminação. Com cuidado, dá certo. – Ela esticou um cesto com várias camisinhas e eu ri, pegando algumas.
- É só que... – Suspirei. – É tão difícil ter que sempre pensar no que eu vou fazer, se eu vou me machucar, me cortar, se eu vou transmitir para o meu próprio namorado. – Passei a mão na cabeça. – Eu queria só ter uma vida normal. – Marie sorriu.
- E você pode ter. – Ela falou. – Estude, trabalhe, descubra algo que você goste de fazer e não deixa ninguém te afastar disso. Não é uma sentença de morte, as coisas estão evoluindo cada dia mais, você não precisa ter medo sempre, viva sua vida, se cuide em caso de machucados ou relações sexuais, mas não pare de viver por causa disso. – Suspirei.
- Eu vou tentar! – Ela assentiu com a cabeça e me entregou mais algumas camisinhas.
- Quer que eu te ensine a colocar?
- Ah não! Acho que isso eu sei! – Fiquei vermelha e ela gargalhou.
- Vem aqui, vai! – Ela abriu os braços para mim. – Vai dar tudo certo. – A abracei sorrindo.”
“Vamos agilizar um pouco isso que eu não sabia que teria pique para escrever tanto ou que lembrasse de tantos detalhes da minha história, mas depois daquele papo com Marie, eu e Amir sentamos para conversar sobre isso. Eu não sou uma tarada por sexo, mas aposto que todo mundo já quis saber como era.
- Ei, como foi com Marie? – Ele perguntou quando cheguei e eu me sentei ao seu lado em seu beliche.
- Tudo certo, remédios, remédios e aulas. – Rimos juntos. – Precisamos conversar.
- O que foi? – Suspirei, olhando em volta.
- Eu quero fazer sexo. – Cochichei para ele que sorriu.
- Eu também quero. – Sorri. – Não que eu sinta falta, mas...
- Nunca aconteceu. – Falei antes que ele. - Marie me deu uma longa aula sobre isso, é possível fazer, mas nós dois precisamos tomar as medidas necessárias, não abusar e tudo mais. Além de que não, podemos nos beijar bastante, pois não pega por saliva. – Ele sorriu.
- Ei, gostei disso. – Rimos juntos. – Mas então? Você quer tentar?
- Você que tem que me responder isso, Amir. Você que é o saudável aqui. – Ele assentiu com a cabeça.
- Quero sim! Eu te amo, Emi! Quero descobrir isso contigo. – Sorri.
- Você promete que vai se cuidar?
- Sim e vou cuidar de você também. – Suspirei.
- Ok, vamos tentar, então, mas aqui? – Franzi a testa.
- Não, vamos fazer isso do jeito certo. Eu vou organizar bonitinho. – Confirmei.
Encurtando o caminho, ele ajeitou. Na real, ele mandou a real com o pessoal do orfanato, conseguiu juntar uma graninha, reservou um quarto num hotel mais ou menos para gente, preparou um jantar lindo e fofinho e tivemos nossa primeira vez. Foi bem travado, devo ser honesta, afinal, nenhuma primeira vez é boa, ainda mais quando na sua cabeça só passa o letreiro “não infectar seu namorado” durante todo o ato.
Obviamente deu tudo certo, ele não se infectou e faz testes constantes por precaução até hoje. Também não transamos tanto quanto queremos, a prevenção sempre vem em primeiro lugar comigo. Amir sabe e me ama, respeita e cuida com essa informação na cabeça desde o dia em que nos conhecemos. Mas vamos dizer que a taxa de sexo entre idosos é maior que entre mim e ele. Nos divertimos de outras formas.”
“Bom, quando fizemos 18 anos, precisamos sair do orfanato. Amir completou a idade seis meses antes do que eu, então ele saiu primeiro dizendo que arranjaria um lugar para morarmos e procurar um emprego para estar tudo ajeitado quando eu fosse. O governo dá um valor para ajudar durante os primeiros meses, mas depois estamos por conta.
Amir acabou encontrando uma quitinete em Burbank, no entorno de Los Angeles. Era pequena, mas não estávamos podendo gastar muito quando não entrava nada. Era um quarto só, divisão para cozinha, banheiro e só, nada mais. Inicialmente, compramos um colchão e depois fomos arrumando o espaço.
Pouco antes de eu dar meu tempo para sair do orfanato, ele conseguiu um emprego de garçom no The Ritz-Carlton em Los Angeles. Demorava cerca de 40 minutos de ônibus, mas pagava bem, pelo menos, e podia fazer hora extra quando precisávamos de alguma grana a mais.
Quando eu saí do orfanato, ele acabou conseguindo para mim um emprego nesse mesmo hotel, mas como camareira. A parte mais desconfortável foi sobre as perguntas da minha doença e de todos os cuidados que eu deveria ter com tudo isso, pelo menos não existia o preconceito, pelo menos não visivelmente. Todos eram muito simpáticos com a gente e até fizemos algumas amizades lá.
Foi lá que eu cheguei no nome Emily. O porteiro noturno tinha língua presa, coitado. Então todos faziam questão de zoá-lo pelas palavras que ele falava errado, e ele não conseguia de jeito nenhum falar o nome Emni, ele se confundia bastante e ficava muito incomodado por isso, inicialmente eu o corrigia incansavelmente, até que um dia eu parei de me importar e fiz a felicidade de um senhor de 77 anos.
- Boa noite, Emily! – Ele falou e ele parou. – Errei de novo, não é?! – Rimos juntos.
- Não, senhor Watson, serei Emily para o senhor! – Falei, abrindo um largo sorriso. – Que tal?
- Muito obrigado! – Ele falou e eu o abracei rapidamente, passando pelas portas de serviço.
- Até amanhã. – Sorri.
Eventualmente acabou pegando. Em nenhum momento que eu sou chamada de Emily eu me sinto menos Emni, somos a mesma pessoa, então, para que me incomodar? Para irritar metade do mundo e viver sozinha em uma bolha? Não, obrigada! Eu estava começando a ter uma vida boa, com motivos para me sentir feliz, então, para que me incomodar?
Claro que eu não era a pessoa mais aberta do mundo, ainda tinha o preconceito, ainda tinha a doença e eu ainda tentava esconder algumas partes das pessoas de volta para tentar ao máximo não perder minha identidade, mas parece que com Amir, Marie, alguns colegas que eu fiz no orfanato e no hotel, eu fiquei mais confiante, menos medrosa e com vontade de realmente dominar o mundo.
Mas claro que não era fácil assim. Eu tinha minhas limitações, de todas as formas, mas não precisava ser sempre a menina doente que eu era em Thamaga, eu poderia ser mais Emily “Emni” Lizarde, qualquer dia e qualquer hora.”
“Bom, uma das vantagens de se trabalhar no hotel, foi que pudemos ter uma melhor educação. Eu não sabia o que fazer da vida, então foquei em aprender mais o inglês propriamente dito e fazer alguns cursos aleatórios como cozinhar, costurar e afins, já Amir começou se interessar pelo Direito. Em um dia, ele acordou com o sonho em ser advogado.
Podíamos tudo, certo? Então fizemos as contas, ele viu uma faculdade que coubesse no nosso orçamento, o hotel arcou com 50 por cento dos gastos e Amir pode finalmente se tornar advogado. Tínhamos 22 anos na época, mais ou menos, isso foi dois anos antes da minha vida mudar completamente...
Diferente das outras histórias que eu li, eu não tinha inclinação nenhuma para música, eu nunca cantei no chuveiro para descobrir se eu tinha uma voz boa, durante minha vida em Botswana, eu sobrevivia, e aqui em Los Angeles eu tentava ao máximo fazer com que minha vida seguisse em frente da melhor forma possível.
Mas, apesar da vida boa que eu tive, e sim, quando você sai de uma aldeia sem asfalto e condições dignas e vive de camareira em um hotel ótimo em Los Angeles, com um salário justo e não precisando depender de ninguém, sim, é uma vida boa! Agora a vida é um sonho, é outro nível. Tem nem o que comparar, é como a dos hóspedes que eu servia no The Ritz...
Enfim, voltando ao assunto, apesar da vida boa que eu tive, eu também tive meus pontos baixos, minhas decaídas, e elas acontecem até hoje. Eu nasci com a doença, vivo com ela e a entendo desde sempre, mas existem algumas coisas que elas não me permitem ter e antes de casamento, Sophie e tudo mais, me incomodavam bastante e isso era criar uma família e a quantidade de remédios.
Apesar de eu aceitar bem minha doença, eu sei que ainda existe o preconceito, acho que só falo disso bem hoje, pois me permitiu isso, a família The Fucking Stone me recebeu para isso, então a situação mudou de figura, mas eu nunca falava propriamente sobre ela. Eu não chegava nas pessoas e falava: “eu tenho HIV positivo”, como fui honesta com desde o primeiro dia. Primeiro porque não me identifica. Eu não sou Emily doente ou saudável, somos uma só. E segundo que não é o tipo de papo que você fala em uma conversa civilizada.
Então, quando os anos foram passando no hotel e nas nossas vidas, as pessoas começaram a perguntar quando eu traria um bebê ao mundo. Quando eu e Amir oficializaríamos nossa união, quando nosso amor se tornaria uma terceira pessoa, entre outras coisas.
Repetindo, eu sempre soube da minha realidade e da minha condição, mas era difícil não me perguntar: e se, sabe? Era difícil pensar, inicialmente, que aquilo nunca iria acontecer. Que eu e Amir, apesar de seu amor incondicional por mim, sempre seríamos só Emily e Amir.
Além do mais, eu tomo, até hoje, muitos remédios, e para meu corpo não se acostumar com eles, eu preciso alterá-los frequentemente, nem que seja um miligrama a menos ou uma marca diferente, para não causar vícios também e, quando acontece de eu precisar alterar um dos medicamentos, eu sinto essa diferença de diversas formas.
Às vezes eu fico com aspecto doente, dores no estômago, febre, ataca meu sistema nervoso nas primeiras semanas, enjoos e vômitos, enfim, são vários efeitos colaterais dependendo de qual medicamento foi alterado, mas o que me dava com mais constância era um estado depressivo.
Eu digo no passado, pois atualmente os experimentos de trocas de remédios são muito menores do que anteriormente para que não afete muito a minha vida pública e nem da banda. Atualmente estamos em hiato de novo, mas quando estamos em produção de CD, eventos, turnês, videoclipes e filmes, além de cuidar das nossas vidas pessoais e de nossos filhos, eu não posso pensar em ficar mal.
Mas antes de entrar na banda era muito comum. Eu tinha todos os sintomas de uma depressão, todos mesmo, incluindo pensamentos ruins, o que diferia meus sentimentos de uma depressão real, é que em no máximo uma semana tudo passava e eu me acostumava, mas eu passava por poucas e boas, além de preocupar todos à minha volta: Amir, Marie, colegas e superiores do trabalho. Era realmente complicado.
Por isso digo que devo tudo a Amir, ele é realmente meu anjo. Sempre ficou muito na dele, me apoiou e amou incondicionalmente desde o começo. Faz questão de me fazer sorrir até nos piores momentos e sempre está comigo. Atualmente estamos vivendo em outra crise, sabendo que sairemos dela em breve, já é possível ver a luz do fim do túnel, mas Amir sempre esteve conosco. Comigo, com , com minha banda. Além de ter se mostrado um pai incrível. Apesar dos percalços, eu realmente não poderia ter uma vida melhor. O HIV são só três letrinhas que gostam de atrapalhar a minha vida, mas enquanto ele não virar quatro, me sentirei sortuda.”
“Bom, vamos recapitular: Amir está cursando Direito à noite, eu trabalho de dia e de tarde com ele no hotel e faço cursos aleatórios algumas vezes na semana. Isso durou dois anos, até que chegamos no fatídico ano de 2004, sim, chegamos ao ano em que eu entrei para a maior banda da atualidade e eu ainda não tinha tido nenhuma experiência com a música. Para você ver como são as coisas!
Apesar de não ter contato com a música, eu realmente gostava de ouvir música, então acabei conhecendo muito da cultura pop americana e também aprendi a cantar algumas músicas, mesmo que não fosse a rainha do karaokê ou de cantar no chuveiro, mas eu tinha costume em cantar em um lugar: enquanto arrumava os quartos dos hóspedes.
Minha rotina de trabalho era a seguinte: a partir das nove da manhã estava liberado para que arrumássemos os quartos dos hóspedes, mas tínhamos algumas condições. A primeira era checar se ele estava lá dentro, caso estivesse, perguntar se gostaria que limpasse, caso ele não estivesse lá, limpar sempre, menos se tivesse deixado o aviso de “não perturbe” na porta. Vocês nem imaginavam as zonas que eu encontrava nesses quartos, se elas agiam assim num hotel cinco estrelas, imagino como eram as casas delas. Era tudo jogado, uma nojeira, uma bagunça que hoje em dia faço questão de fechar e guardar minha mala quando estamos em hotéis.
Após checar a disponibilidade do quarto para limpeza, checamos quem é o hóspede, caso ele queira algum pedido especial, alguns hóspedes trazem seus animais de estimação, outros precisam de serviços de lavanderia, e de vez em quando nós só gostamos de fazer um agrado a eles com detalhes que sabemos que eles vão gostar.
Tinha uma hóspede em especial, Jules Jones, ela era uma candidata ao senado ou algo assim naquela época, nem me lembro se ela conseguiu entrar ou não, mas eu teria votado nela se pudesse votar naquela época, porque foi ela que me trouxe para esse mundo, mas eu gostava de agradá-la sempre que ela vinha, ela adorava essências, então deixava seu quarto sempre perfumado.
Após fazer a organização convencional, eu trazia o aspirador de pó para dentro do quarto e começava a passá-lo, era nessa hora em especial que eu começava a cantar. E naquela época os aspiradores não eram silenciosos como esses que temos hoje ou aqueles portáteis que não precisamos fazer nada que eles limpam a casa inteira. Não, aquilo ensurdecia qualquer um. E a senhora Jones me pegou com a guarda baixa.
- ...I don't really need to look very much further. I don't want to have to go where you don't follow. – Eu ainda movimentava as mãos e o corpo como se realmente estivesse interpretando a música. - I will hold it back again this passion inside, can't run from myself, there's nowhere to hide... – Segurei firme o fio como se fosse um microfone e abaixei-o novamente. - Don't make me close one more door, I don't want to hurt anymore. – Balancei a cabeça negativamente. - Stay in my arms if you dare or must I imagine you there. Don't walk away from me... – Minha voz se perdia no som do aspirador. - I have nothing, nothing, nothing, If I don't have you, you, you, you, you... – Fiz um biquinho com o alongamento, girando meu corpo. - You see through right to the heart of me... – Parei imediatamente quando a vi parada atrás de mim e me desesperei em desligar o aspirador.
- Oi, senhorita Lizarde. – Ela falou.
- Ah, senhora Jones, me desculpe, eu não vi a senhora. Já estou quase finalizando. Não sabia que a senhora voltaria tão rápido.
- Meu compromisso foi cancelado de última hora, mas não precisa ter pressa, Emily! Não tenho mais nada por agora e realmente gostei da cantoria.
- Senhora? – Franzi a testa.
- Você canta muito bem. – Olhei assustada. – Claro que o aspirador não é o melhor acompanhante, mas você é boa, minha jovem.
- Como assim? – Foi sua vez de franzir a testa.
- Então, você não sabe? Você tem um talento escondido e ele é escondido até para você?
- Eu não quero parecer rude, mas eu realmente não sei do que a senhora está falando. – Respirei fundo.
- Cante, minha jovem. – Ela tirou o aspirador da minha mão e o encostou na parede. – Whitney Houston, como estava cantando. - Respirei fundo e comecei devagar como estava fazendo antes.
- I don't really need to look very much further. – Comecei mais devagar. - I don't want to have to go where you don't follow... – Ela movimentava a mão para cima.
- Mais alto.
- I will hold it back again this passion inside, can't run from myself, there's nowhere to hide, your love I’ll remember forever... – Alonguei a voz, sentindo os pelos do meu braço arrepiarem e parei, vendo-a sorrir.
- Continue! – Ela falou e eu respirei fundo, soltando o ar devagar. – É isso mesmo!
- Don't make me close one more door... I don't want to hurt anymore. – Suspirei. - Stay in my arms if you dare or must I imagine you there. Don't walk away from me, I have nothing, nothing, nothing... – Respirei fundo, seguindo para o fim da música. - Don't make me close one more door, I don't want to hurt anymore. Stay in my arms if you dare or must I imagine you there. Don't walk away from me. No, don't walk away from me. Don't you dare walk away from me, I have nothing, nothing, nothing. If I don't have you, you. – Finalizei a música sentindo as lágrimas em meus olhos e soltei a respiração devagar, olhando os pelos de meus braços arrepiados.
- Você realmente não sabia. – Senhora Jones sorria e eu estava abismada.
- Eu... – Engoli em seco. – Eu nunca soube. – Ela se aproximou de mim e colocou as mãos em meus ombros.
- Você tem um talento que pouquíssimas pessoas têm, Emily! Você canta e você canta bem!
- Eu nunca... – Neguei com a cabeça e ela mantinha um largo sorriso para mim.
- Vá atrás disso, garota! Você tem um talento. Lute por isso que eu tenho certeza que você não precisará limpar um chão mais na sua vida. – Ri fracamente com um largo sorriso no rosto.
- Obrigada por me mostrar isso, senhora Jones, eu não sabia. – Ela riu fracamente, acariciando meu rosto.
- Espero grandes feitos de você, senhorita Lizarde. – Assenti com a cabeça.
- Pode deixar que eu cuidarei muito bem desse talento. – Ela sorriu e eu suspirei, feliz por ter finalmente descoberto algo que eu gostava.”
“Aquela descoberta me deixou feliz de uma forma que eu não sei nem explicar. Eu finalmente era boa em algo. Não vou dizer que era a própria Whitney Houston, faltava lapidar um pouco, mas eu cantava bem! Eu tinha uma potência vocal incrível e isso já era surreal! Essas coisas não acontecem comigo assim, certo?
Errado! Estamos tão acostumados com as coisas convencionais da vida, de sermos simples e ordinários que esquecemos de olhar para o brilho que tem dentro da gente. Naquele dia de janeiro eu descobri uma chama dentro de mim e, naquele momento eu não sabia, mas ela se transformaria em uma fogueira maravilhosa.
Ok, ainda não é adequado brincar com fogo, faísca e afins, mas vocês entenderam o que eu quis dizer, tinha algo pronto para sair. E eu fui atrás, obviamente que eu fui contar primeiro para Amir. O que foi até legal, pois eu acabei virando o entretenimento do almoço.
Assim que finalizei o momento emoção com Jules, guardei meus materiais e saí correndo atrás de Amir no restaurante. Literalmente, recebi até alguns “está tudo bem?” Estava perto da hora do almoço, então estava começando a encher com os hóspedes.
Desacelerei o passo e entrei um pouco mais tímida no restaurante, procurando Amir. O encontrei servindo alguma mesa e me aproximei do bar enquanto esperava ele terminar. Ele abaixou a bandeja e seguiu em minha direção e eu abri um largo sorriso quando ele me viu.
- Ei, o que aconteceu? – Ele falou rindo fracamente. – Parece que descobriu Atlantis.
- Atlantis não, mas eu descobri algo incrível, meu amor! – Falei animada.
- O quê? Você está me deixando empolgado. – Ri fracamente.
- Eu posso cantar, Amir! – Falei rindo e ele franziu a testa.
- Todo mundo pode cantar, Emi! – Ele falou e eu suspirei, sabendo que seria um pouco mais difícil.
- Sim, mas eu sei! – Falei firme. – E eu sou boa. – Ele arregalou os olhos.
- Como assim?
- Eu tenho um dom, Amir! E eu acho que sou boa! – Ri fracamente.
- Mas como? Eu já te vi cantar, você... – Ele parou.
- Não, você nunca me viu cantar! – Falei rindo. – Eu nunca cantei para você, Amir. Eu nunca cantei nem para mim. Eu canto normalmente arrumando os quartos, mas eu nunca me ouvi, sempre estava com o aspirador ligado. – Suspirei.
- Isso é verdade... – Ele falou se tocando. – Você nunca cantou.
- Nunca! – Ri fracamente. – E hoje eu descobri. Eu sou boa, Amir.
- Me mostre! – Ele falou animado. – Vamos!
- Aqui? – Olhei em volta, vendo as pessoas conversando, distraídas de nós dois, mas ainda sim.
- É! – Ele falou animado e eu respirei fundo, soltando o ar devagar.
- I'm a survivor, I'm not gon' give up. – Comecei a cantar forte. - I'm not gon' stop, I'm gon' work harder. I'm a survivor, I'm gonna make it. I will survive, keep on survivin'... – Amir arregalou os olhos e eu ri fracamente, ouvindo alguns aplausos por perto.
Desviei o rosto de Amir para algumas mesas ali em volta que sorriam e aplaudiam para mim e ri fracamente, agradecendo com um movimento de cabeça, sentindo meu rosto esquentar e voltei a olhar para Amir, vendo-o rir.
- Você tem um dom, meu amor! – Ele me segurou pelos ombros, me fazendo rir. – Você precisa mostrar isso para o mundo. Vá atrás disso.
- Como? – Perguntei rindo.
- Nós vamos procurar! Fala com a banda que toca aqui de noite, eles podem saber. – Ri fracamente, assentindo com a cabeça e o abracei rapidamente.
- Agora vamos, melhor voltarmos ao trabalho! – Falei e ele riu, dando meia volta e seguindo para os clientes.”
“Eu fiz exatamente o que Amir indicou, falei com a banda que tocava no hotel à noite e eles indicaram que eu gravasse uma demografia e distribuísse pelas gravadoras de Los Angeles. Perguntei quanto sairia essa brincadeira de demografia e eles me contaram que tinha estúdios de gravação que eu podia alugar por dia para gravar e podia levar meus próprios CDs para que a gravação fosse concluída.
E foi o que eu fiz. Pelo mês que se seguiu, eu procurei por várias músicas que combinassem com a minha voz: forte, de entonações graves, e treinei em casa para quando chegasse no dia da gravação, estar perfeito, afinal, não tínhamos muito dinheiro para gastar com futilidades. Tinha as despesas básicas e a faculdade de Amir, era cerca de 75 por cento da nossa renda total.
Optei por gravar Whitney Houston, Destiny’s Child e Evanescence, músicas que combinavam com a minha voz, além de tocar um pouco com o emocional, não sei, eu ficava emotiva quando ouvia essas músicas e podia apelar um pouco para esse lado.
Gravei e distribuí cerca de 50 demografias, gravadoras grandes, pequenas, estúdios de gravação, de TV e de cinema e nada. Parece que não seria tão fácil como eu pensei. Sendo bem honesta, eu não fazia a mínima ideia do que estava pensando quando fiz essa decisão. Era uma oportunidade de mudar, trazer novos ares da minha vida, não sei. Eu só realmente achava que podia ter mais.
Acabei entrando novamente naquele sentimento de que eu era uma pessoa normal e que nada de extraordinário aconteceria comigo. Juntamos a mudanças de remédios e tive um momento depressivo novamente, mas eu podia ter desistido disso, mas a guerra não tinha acabado ainda.
Mas só para variar, Amir chegou com a salvação.
Bem, em partes!
- Emni! – Ele falou animado enquanto abria a porta de nosso apartamento em um dia que estávamos de folga.
- Na cozinha! – Falei mexendo o ensopado da panela.
- Olha o que eu encontrei no chão hoje! – Ele me estendeu um panfleto e eu sequei as mãos no guardanapo de pano antes de segurar o papel.
- O que é? – Passei os olhos pelo papel: “Audição Virgin Records – Procuramos novos talentos para fazerem parte de uma nova banda”. – Oh, meu Deus! – Falei animada. – Você realmente acha?
- Claro! Por que não? Vá, dê uma chance. – Desci o olhar.
- Isso era no começo do mês, Amir. – Falei, esticando o papel para ele. – Já faz três semanas. – Suspirei.
- Putz! Eu nem me toquei disso. – Ele suspirou, pegando o papel de volta. – Sinto muito, amor. – Suspirei.
- Tudo bem, você tentou! – Dei um rápido beijo em sua bochecha e voltei a focar em minha panela.
Eu sempre fui teimosa, então aquele papel ali não era à toa, era um destino. Eu fiquei matutando com ele quase o dia inteiro, encarando aquele papel e aquele papel me encarando de volta. Eu estava quase surtando com ele ali, então, peguei minha bolsa e saí correndo em direção à gravadora Virgin Records. Correndo, no caso, era alguns ônibus e ainda andar a pé pela parte rica de Los Angeles.”
“Assim que eu cheguei na gravadora, fiquei um pouco intimidada com aquilo tudo. Eu estava em um lugar que só os ricos transitavam, paparazzi estavam na rua, limusines no recuo na rua e eu desci de ônibus. Foi um tanto difícil, mas eu respirei fundo e me coloquei no elevador, clicando o botão para o andar desejado. Suspirei quando a porta se abriu e encontrei uma morena na recepção lá na frente.
- Olá, boa tarde! – Ela abriu um largo sorriso para mim.
- Oi, eu sou Emni. Eu vi o anúncio de vocês, quero fazer o teste para a audição. – Falei, obviamente tentando dar o golpe, eu sabia que os testes já tinham acabado.
- Ah, desculpe, senhorita. Os testes acabaram há algumas semanas. – Suspirei.
- Ah, por favor, moça. Tem que ter alguém que possa fazer essa audição comigo.
- Sinto muito, não tem ninguém que possa te receber agora, os testes acabaram!
- Me deixe entrar, por favor. Eu preciso disso... – Falei suspirando.
- Não, senhorita, me desculpe, mas não posso permitir sua entrada. – Minha voz se bagunçou com a abertura do elevador novamente e olhei para trás rapidamente, vendo um grupo de jovens entrando, mas os ignorei.
- Tem que ter alguém aqui para me receber. – Falei mais firme, respirando firme.
- Algum problema aqui, Megan? – A menina entre os três homens se apoiou no balcão, me olhando. Ela era jovem, não deveria ter mais que 20 anos.
- Essa mulher quer entrar e falar com alguém, mas não posso permitir sua entrada sem que ela tenha horário marcado. – Ela suspirou, visivelmente irritada.
- Por que você quer falar com alguém? – Ela me perguntou e eu respirei fundo.
- Eu ouvi falar sobre testes para uma nova banda, eu quero fazer esse teste.
- Mas o teste acabou há semanas, você chegou atrasada. – A assistente falou e eu suspirei.
- Eu estou livre agora, eu cuido dela. – Ela falou e eu abri um largo sorriso.
- Obrigada! – Falei empolgada.
- Sério? – A assistente perguntou e a menina olhou para a assistente.
- Se ver Jessica, peça para me encontrar na sala de música. – Ela pegou um bloco de papel e caneta atrás do balcão e seguiu
- Pode deixar! – Ela afirmou.
- Vamos! – Ela falou e segui atrás dela. - Já volto! – Ela falou para os meninos que estavam com ela e eles só afirmaram com a cabeça. – Pode entrar. – Ela abriu a porta de uma sala e passei em sua frente antes de fechar a mesma.
- Quem é você? – Perguntei, curiosa com aquela menina tão jovem.
- Eu sou , a vocalista da banda que estavam procurando por pessoas. – Arregalei os olhos e ela assentiu com a cabeça, rindo fracamente.
- Nossa! – Falei surpresa.
- Pode ficar onde se sentir mais confortável. – Ela falou e se sentou em uma das cadeiras, me colocando em sua frente. – Qual seu nome, idade, de onde você é, e o que te traz aqui?
- Meu nome é Emni, tenho 24 anos. – Falei.
- Eni? – Anotei.
- E-M-N-I. – Soletrei, suspirando. – Mas pode me chamar de Emily Lizarde. – Ela falou, suspirando.
- Por quê?
- É o nome que eu me dei quando me mudei para os Estados Unidos. – Falei, encurtando a história.
- O que veio fazer aqui nos Estados Unidos? – Ela perguntou e eu engoli em seco.
- Acho que deveria mostrar meu talento, antes de mostrar a parte ruim. – Falei fracamente e ela respirou fundo.
- Eu realmente não ligo o quão ruim sua vida foi, se você for alguém que vale a pena, você vai ficar, é assim que funciona comigo. – Senti o corte rapidamente e me senti intimidada, mas abri um sorriso de leve, afirmando com a cabeça. Talento eu tenho.
- Eu sou de Botswana, um país da África. Teve uma infestação de HIV e AIDS no país e para ajudar, os Estados Unidos tirou diversas crianças do continente, incluindo a mim. – Suspirei. – Eu não conhecia meu pai e minha mãe morreu de AIDS pouco depois que eu nasci. – Prensei os lábios. – Eu morei em um orfanato até completar 18 anos e depois tenho me virado bem sozinha.
- Desculpe. – Ela falou visivelmente arrependida. – Não era a coisas assim que eu me referia. – Afirmei com a cabeça.
- Sem problemas, as pessoas não esperam. – Falei e ela me deu um olhar curioso.
- Você tem...?
- Sim, eu sou HIV positivo. – Falei. – Faço exames regularmente e ainda não desenvolvi a doença.
- Espero que nunca desenvolva. – Senti que ela foi honesta e suspirei. – Só faltou uma pergunta, o que veio fazer aqui?
- Eu quero uma chance, eu sempre tive uma vida mediana, sendo jogada de um lado para outro, então quando notei que tinha uma voz boa, achei que pudesse fazer alguma diferença.
- Você pode! – Ela falou. – O que vai cantar?
- Vou cantar My Immortal do Evanescence. – Ela ponderou com a cabeça.
- Música difícil.
- Sim, mas combina comigo. – Sorri.
- Quando quiser. – Ela me falou e pensei se teria acompanhamento musical, quando percebi que não, comecei simplesmente.
- I'm so tired of being here. – Comecei devagar. - Suppressed by all my childish fears. And if you have to leave, I wish that you would just leave, because your presence still lingers here, and it won't leave me alone. – Coloquei maior entonação na voz. - These wounds won't seem to heal. – Alongava no final. - This pain is just too real. There's just too much that time cannot erase. – Movimentava as mãos conforme a música tocava e abri os olhos ao notar que ela me acompanhou, mostrando uma voz magnífica.
- When you cried I'd wipe away all of your tears. – Sua voz era incrível, tinha uma entonação juvenil, mas era de arrepiar. - When you'd scream I'd fight away all of your fears. – Sorri largamente, acompanhando-a. - And I held your hand through all of these years. But you still have... – Paramos juntas, nos entreolhando. - All of me. – Reduzi minha entonação, mas ela olhou sugestivamente para mim.
- I've tried so hard to tell myself that you're gone. – Ela continuou cantando e eu peguei a deixa de que ela tinha pulado para o fim da música.
- But though you're still with me. – Forcei minha voz com ela, vendo-a sorrir. - I've been alone...
- All along. – Cantamos juntas e eu abri um largo sorriso, vendo-a dar pulos pela sala.
- O que está acontecendo aqui? – Ouvi outra voz e pulei de susto, vendo os amigos de e outros dois adultos entrarem na sala.
- O que você acha? – perguntou animada.
- Foi um espetáculo. – O gordo falou com um sorriso no rosto.
- Essa é Emily, minha nova backing vocal. – Passei as mãos no rosto, arregalando os olhos para ela. – É o que eu posso oferecer por agora. – Suspirei, um tanto travada com o anúncio repentino.
- É mais que o suficiente. – Abri os braços, apertando-a fortemente contra mim, sentindo as lágrimas deslizarem pelo meu rosto.
- Vamos cuidar de você agora, Emily, ou melhor, Emni. – Ela falou em meu ouvido e soltei um suspiro alto, eu tinha uma alegria imensa em meu peito.”
“Daí em diante o resto é história! Naquele dia rolou uma longa conversa de Jessica com , provavelmente por ela não poder simplesmente sair oferecendo emprego para as pessoas, mas no final deu tudo certo. Eu recebi um longo contrato, mais do que eu esperava e fui jantar com ela, Jack, Louis e Mike, os outros membros da banda que, se você está aqui, obviamente já conhece.
O melhor de tudo foi que ali, entre conversas, risadas e curiosidades, entre aquelas pessoas, eu não me senti um peixe fora d’água, nunca me prejudicaram ou me diminuíram pela minha doença ou pela minha cor de pele, entre eles, eu era só mais um membro da família Stone com o mesmo propósito: fazer parte da maior banda do mundo.
Além de tudo, eles me acolheram como um deles, não importava de onde eu vinha ou quem eu era, desde o primeiro dia eu fiz parte daquela família. E somos isso até hoje. Eu sou uma pessoa feliz demais só em ter essas pessoas na minha vida. Acredito que a música veio para mim em um momento que eu realmente precisava e que o sucesso foi consequência.
Mas eu sabia que, eventualmente, aquelas pessoas fariam parte da minha vida. Sendo Emni Lizarde ou Emily Lizarde, membro da The Fucking Stone. É loucura pensar nisso, mas é muito bom fazer parte de algo, disso. Aqui é meu lar e essa é minha família.
Hoje eu posso dizer com todas as palavras que sei quem sou e tudo isso por causa dessas pessoas que fazem parte da minha vida há 15 anos. Eles são tudo para mim e eu sei que sou tudo para eles. Estamos sempre juntos, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença até que a sorte nos separe.
É mais que um casamento, é mais que uma família, são as vantagens de fazer parte da maior e melhor banda da atualidade que tem a capacidade de se manter no topo em todas as situações, mesmo passando por alguns percalços pela vida. Somos muitos, mas somos um só e eu sou grata por tudo isso. Por causa deles, eu sou alguém muito menos neurótica e mais relaxada, menos fechada.
Eventualmente eu acabei perdendo um pouco o medo, ao invés de ficar depressiva pelo o que eu não poderia ter, eu achei alternativas. Sophia foi uma dessas alternativas. Quando eu vi que era a hora de eu achar uma família, ao invés de ir pelos meios convencionais, eu fui para Botswana e fiz todo o processo de adoção dessa joia em minha vida.
Eu sei, minha história não é um mar de rosas, mas depois de 24 anos, 40 agora, eu posso dizer que realmente podemos ser quem quisermos, não precisamos depender de pessoas ou de doenças em nossa vida. Podemos fazer o que quisermos. E espero ter muita saúde, pois ainda pretendo fazer muito mais!”
- Ah, como você é incrível, Emi! – falou me abraçando de lado e eu gargalhei. – Acho que foi uma das melhores!
- Obrigada! – Suspirei. – Acho que eu acabei tirando forças de um lugar bom e consegui.
- E ficou demais! Sua história, seu passado, sua doença, você e o Amir. Eu já gostava muito de vocês dois, agora gosto muito mais. – Ri fracamente, abraçando-a pelos ombros. – Nem foi tão difícil, né?!
- Por causa de vocês! – Apoiei meu queixo em sua cabeça. – Vocês me dão uma liberdade que eu não preciso ser ninguém diferente, então, falar da minha doença nem é tão mais depressivo assim. – Ela assentiu com a cabeça.
- É assim que eu gosto. – Ela falou. – Está ótimo, Emi, obrigada!
- Que isso! – Me afastei dela, vendo-a fechar o notebook. – Foi bom, tirou alguns antigos demônios de dentro de mim. – Ela sorriu. – Para quem agora?
- Mackenzie! – Ela falou e eu ri debochadamente.
- Ah! – Externalizei e ela riu. - Mal vejo a hora de saber o que se passa na cabecinha dele.
- Depois de eu ler a história do Mike, acho que eu mudei minha visão dele quando mais novo, ele tinha as vontades dele, mas fez como um bom pai e priorizou a Melanie. – Assenti com a cabeça.
- Deve ser, ele nem é tão pancada assim! – Rimos juntas e eu peguei o notebook. – A gente se vê depois?
- Na hora da janta! – Ela falou e eu sorri, saindo de seu quarto e encontrando no corredor.
- Ei, olha quem está aqui. – Gritei e virou o rosto, abrindo um largo sorriso ao encontrar e eu voltei a andar antes que fosse atropelada por ela.
Vi ambos se abraçarem e fiquei feliz por ter voltado de suas gravações, ficava um pouco depressiva quando ele estava fora, principalmente dos últimos acontecimentos. Ella já tinha idade para ir para a escolinha e ela fazia questão de se isolar, então tudo era mais complicado. Cheguei na porta do quarto de Mack e Delilah e bati à porta.
- Entra! – Ouvi e empurrei a porta, encontrando-o com Delilah na cama, claramente nus embaixo do lençol.
- Ah, que visão do inferno! – Falei e ambos riram.
- Oi, Emi! – Mack falou e eu revirei os olhos.
- Trouxe um presente para ti! – Estiquei o notebook e o coloquei na beirada da cama.
- Ah, meu Deus! Eu não preparei nada ainda. – Ele se sentou.
- Acredite, ninguém preparou nada. – Falei suspirando.
- Sobre o que você escreveu? – Ele perguntou.
- Minha vida em Thamaga, a doença, Amir, a mudança para Los Angeles... – Deu de ombros. – Cobri o básico. – Ele bufou.
- Me deseje sorte, sou péssimo para escrever. – Ri fracamente.
- Boa sorte! – Falei e acenei para Delilah que ria e puxei a porta novamente, rindo comigo mesma da cara de desespero que ele fez.
- E aqui estamos de novo! – Ouvi a voz de Amir e virei o corpo, encontrando-o entrando na nossa casa, ou seja, no quarto reservado para nós dois e Sophie depois de todo aquele rolo em Malibu.
- Já chegou? – Perguntei, checando o relógio e percebendo que já passava das sete da noite.
- Já sim! – Ele suspirou. – Não conseguiu começar ainda?
- Eu não sei como fazer isso, amor. – Me virei para a tela novamente.
- Já faz três semanas que você está com isso, amor, seu prazo está acabando e aposto que não vai querer dar mais. – Suspirei.
- Isso já está demorando demais, você sabe, ela queria dar duas semanas para cada um, mas sabíamos que seria impossível e...
- E você está demorando bastante.
- Jack escreveu nos últimos três dias, nem vem... – Ele me encarou enquanto tirava o paletó e eu suspirei.
- Não é tão difícil assim, amor.
- Como não, Amir? – Falei firme. – Eu tenho a pior história! Eu tive a pior infância, até Jack que sofreu abuso teve uma vida melhor do que a minha. – Senti as lágrimas começarem a aparecer e respirei fundo.
- Não, não é assim! Sua vida pode não ter seguido o curso da maioria das pessoas, dos seus companheiros de banda, mas teve seus encantos.
- Que encantos? – Perguntei irônica e ele colocou as mãos em meu rosto, acariciando minhas bochechas.
- Nós! – Ele falou firme. – Nós fomos os encantos um do outro. – Suspirei. – Olha para nossa infância e olha onde estamos agora! – Ri fracamente. – Pense nos grandes campos de terra que a gente cresceu e olhe o tamanho da mansão que estamos. – Assenti com a cabeça. – Qual é, somos quase em 20 morando em uma casa só! E ninguém precisa brigar por causa de banheiro!
- Você é muito espirituoso! – Falei e ele riu, dando um beijo na ponta do meu nariz.
- É por isso que você se casou comigo. Você é uma âncora e se joga para baixo, eu sou seu leme que preciso te manter em curso.
- E eu agradeço todos os dias por isso! Há 37 anos! – Sorrimos juntos.
- Viu?! Não existe pessoa que te conheça há mais tempo do que eu. – Assenti com a cabeça, suspirando.
- Eu sei! E somos muito mais do que marido e mulher, você é o melhor amigo que eu poderia ter na vida! – Ele sorriu.
- Eu ouvi isso! – gritou ao passar pela porta e rimos juntos, dando de ombros.
- Tá se achando! – Amir gritou de volta e rimos novamente. – Vamos começar isso?
- Como? – Perguntei, cruzando os braços.
- Como uma história começa: do começo! – Ele girou meus ombros e eu voltei para a cadeira, me sentando e encarando a tela do computador. – Volte para Thamaga há 40 anos, respire fundo e comece! – Suspirei, colocando os dedos nas teclas. – Eu vou te pegar um chá e algo para comer.
- Ok! – Suspirei, estralando os dedos. – Cadê Sophie? – Perguntei.
- Com as crianças, não se preocupe! Agora vai. – Suspirei e ele se sentou na cama, atrás de mim.
- Você pode não ficar aqui? – Pedi.
- Mas eu vou ler do mesmo jeito.
- É, mas depois, não agora! – Falei e ele riu, se levantando.
- Já volto! – Ele falou e eu suspirei.
“Ok, vamos voltar para Thamaga, uma grande aldeia no distrito de Kweneng, Botsuana, há 40 anos, quando eu estava nascendo! Não que eu me lembre muito daqueles primeiros anos, mas eu sei do que me falaram.
Para os que não sabem ou não se lembram, Botswana, o país em que eu nasci, é um dos mais, se não o maior, com incidência de HIV do mundo, existe uma estimativa atual que diz que 17 milhões de pessoas vivem com a doença e recebem tratamento, sem contar com tantas outras que não tem acesso.
Na África Subsaariana, tem um total de 25 milhões de infectados, isso são quase dois terços do total de pessoas infectadas no planeta. Tanto que meu país de origem possui um projeto com a intenção de circuncidar meio milhão de homens para tentar diminuir os casos de Aids no país. Isso poderia evitar mais de três milhões de mortes em 20 anos. Vocês sabem o que é isso?
Pois é, gente! Para ajudar bastante, Botswana é um dos países mais pobres do mundo, então não temos acesso a remédios, hospitais, saúde, nem tratamentos bons, ficamos à mercê do governo e a doações como Cruz Vermelho, Médicos Sem Fronteiras e afins. Atualmente, com a ajuda de , da Orbi e da fundação do Elton John, conseguimos arrecadar e entregar remédios de uso contínuo para 75 por cento da população afetada de Botswana, remédios que eu uso diariamente. Algo que hoje eu compro facilmente em qualquer lugar que eu vou e que não era fácil de conseguir quando eu era mais nova.
É por isso que até hoje eu sou muito grata à . Ela não é só aquela cantora sensacional que conhecemos, ela tem bondade em cada fibra de seu corpo e, mesmo assim, o mundo insiste em fazer mal a ela... Enfim, isso é coisa para outra hora, eu não vim dar aula de história para vocês e sim contar um pouco da minha vida.
Mas só recapitulando, muitas pessoas não sabem, mas tem uma grande diferença entre HIV e Aids, eu, por exemplo, tenho HIV que quer dizer vírus imunodeficiência humana, ele é o causador da Aids, ataca o sistema imunológico, destruindo os glóbulos brancos (linfócitos T CD4+). A falta desses linfócitos diminui a capacidade do organismo de se defender de doenças oportunistas, causadas por micro-organismos que normalmente não são capazes de desencadear males em pessoas com sistema imune normal.
O HIV é apresentado inicialmente por sintomas de gripe, além de um longo período assintomático, conforme progride, torna a pessoa cada vez mais vulnerável a doenças. Ou seja, é como se o sistema de proteção do meu corpo fosse bem mais deficiente do que a maioria das pessoas.
Agora a Aids é a evolução do HIV. Como o HIV ataca as células de defesa do corpo, qualquer resfriado pode virar uma tuberculose, então o corpo fica aberto para várias coisas, incluindo cânceres, problemas cardiovasculares e neurológicos por causa da inflamação crônica.
Como sabe, a Aids não tem cura, mas felizmente existem remédios que controlam essa doença e não deixam com que o HIV se torne uma Aids e nem que a pessoa morra por causa da Aids. São os antirretrovirais e medicações que previnem infecções bacterianas, virais, fúngicas, dependendo de cada caso. Claro que o sistema imunológico da pessoa e características genéticas ajudam e muito a não evolução da doença, mas isso é necessário análise de cada caso.
Obviamente, isso é um tratamento para a vida inteira. Eu tomo diversos remédios diariamente, tenho consultas com minha médica uma vez por mês, tento me manter saudável, faço atividades físicas, não exagero em besteiras e dificilmente tenho relações sexuais. Apesar de saber tudo isso, não quero passar isso para o meu marido e por isso decidi não ter filhos do modo convencional. Essa doença é cruel e eu já vi muita morte por causa dela.
Agora, o que me ajudou mesmo a sair dessa, não foram os tratamentos escassos em Botswana, foi minha vinda para os EUA, que fez com que eu tivesse mais acesso a saúde, aos tratamentos e a bons hospitais, mas vamos voltar um pouco.”
“Eu sou uma pessoa que nasci com HIV, minha mãe era prostituta. Como o tratamento da doença não era bom, pode imaginar que proteção também não era, então boa parte das prostitutas do país tinham ou tem a doença. Elas já eram infectadas de nascença ou por algum parceiro e aquilo ia passando de pessoa para pessoa. Minha mãe engravidou quando já tinha a doença, mas ela não descobriu sobre mim até a hora do parto praticamente.
Ela era magra, mirradinha e tinha seus problemas com drogas, então ela realmente não estava pensando em fazer um aborto ou algo assim, imagino que ela só pensava em conseguir dinheiro para viver aquele dia, conseguir remédios para aquele dia.
Eu nasci prematura de seis meses e ela morreu no parto com 19 anos. Ela faria 60 esse ano. Seu nome era Urbi Lizarde e, apesar de tudo, eu agradeço a ela todos os dias pela vida que eu tenho hoje. Meu pai? Eu realmente não sei quem ele era, nunca soube, para falar a verdade. Imagino que tenha sido um dos clientes dela, mas isso é algo que eu nunca vou saber e prefiro deixar para lá.
Enfim, voltando à história, eu nasci prematura, acabei sobrevivendo, mas poucos dias depois, já descobriram que eu era portadora da doença também, então, apesar das poucas condições, eles tentam ajudar a todos, mesmo que temos que dividir remédios, intercalar dias, ficar sem comer, enfim, a regra principal era sobreviver.
Quando eu saí do hospital, eu fui direto para o orfanato de Thamaga, junto de outras tantas crianças que perderam seus pais por causa dessa maldita doença. Mas não pense que era igual os orfanatos daqui dos Estados Unidos com boas condições e afins, não, eram três crianças dividindo uma cama, chão de terra, roupas sujas e rasgadas, muita doença e condições quase inexistentes.
As mulheres que cuidam desses orfanatos até hoje merecem céus e terras para tudo o que elas fazem e se esforçam para fazer, elas não ganham nada com isso e ainda convivem diariamente com uma doença que pode matá-las.
Eu não lembro de muitas coisas, mas foi nesse orfanato que eu conheci o homem da minha vida. Amir não era grande e musculoso quando o conheci, ele era só outro menino órfão e magrinho em meio a tantas pessoas, mas diferente de outros, ele sempre foi bondoso comigo. Ou melhor, ele é bondoso com todos. Já viram ele ser ruim com alguma pessoa?”
“Eu o conheci aos seis anos, na época eu tinha os cabelos cacheados raspados quase no talo, me fazendo uma carequinha de vestido surrado, a pele escura misturada no barro tiravam o brilho quase imperceptível de meus olhos.
Apesar da doença triste e complicada, crianças são crianças e sempre serão, então elas são malvadas, encrenqueiras e fazem bullying como todas as outras e eu era muito pequena para tentar me defender delas.
Quando chegava a hora de dormir, eu e todas as crianças arranjávamos rapidamente um espaço no colchão, nem se fosse com os pés da pessoa na sua cara ou o que fosse, como eu era pequenininha, eu sempre era jogada no chão, sempre! Seja da cama, do colchão, da altura que fosse.
- Ei! – Reclamei quando fizeram isso de novo e passei a mão na testa, me sentando no chão.
- Sai daqui! – O garoto reclamou e eu bufei, me levantando.
- Vocês são idiotas! – Foi quando Amir apareceu. – Deixe um espaço para a menina, não estão vendo? – Ele veio pomposo, apesar de ser pequenino, eu o achei muito fofinho.
- Sai daqui, Amir! – A menina reclamou e eu bufei, vendo-o esticar a mão para mim.
- Vem, tem lugar no meu colchão! – Ele disse e eu sorri, segurando sua mão e me levantando.
Ele me levou até seu colchão que ele dividia com mais uma pessoa, Tebogo, o único albino de toda aldeia. Foi aí que eu percebi que Amir era legal, ele era amigo do único garoto albino de toda aldeia! Amigo do garoto que todos evitavam só por ele ser diferente, mas não éramos todos?
- Pode deitar perto da parede, ninguém vai te derrubar, a gente promete. – Tebogo falou e eu sorri, me sentando na beirada da cama.
- Qual é seu nome? – Perguntei para os dois.
- Amir. – Meu futuro marido falou.
- Tebogo. – O outro falou.
- Eu sou Emni. – Dei um pequeno sorriso.
- É um prazer te conhecer, Emni. – Amir falou sorridente e eu assenti com a cabeça, me deitando no espaço.
A partir desse dia, por menor que tenha sido o ato de Amir, eu nunca mais tive problemas ao dormir. Nunca precisei brigar com ninguém, nunca fui jogada para fora da cama e ainda tinha dois amigos para rir e contar histórias antes de dormir. Não era a vida perfeita, claro que não, mas era melhor do que a de antes.”
“Eu não tenho muitas lembranças até meus 10, 12 anos, as regras eram realmente sobreviver, então cada dia evitando ser mais uma cruz na terra seca de Thamaga, era uma vitória. Uma imagem vívida em minha mente, que aparece em meus pensamentos até hoje, são as cruzes que tomavam boa parte de um terreno vazio, era o nosso cemitério.
Toda pessoa que morria em Thamaga era cremada, claro que não da forma chique como acontece atualmente, eles a embalava num saco e ateiam fogo, depois enterram as cinzas e, em cima dessas cinzas, ficam as cruzes. Feitas de madeira, bambu, pedaços de árvore e enterradas na terra com um pouco de argila para mantê-las em pé.
Lembro que sempre brincávamos nos campos abertos da aldeia, mas as cruzes estavam lá, então, apesar de sabermos a realidade e vivermos diariamente com ela, ver aquele mar de cruzes sempre me deixava triste. Até hoje, quando vamos fazer missões em Botswana para levar suprimentos. Até hoje.
- Está com você! – Tebogo encostou em mim e eu olhei assustada para ele, saindo correndo em direção a ele ou Amir.
Nós três ríamos como se aquilo fosse nosso castelo da Cinderela, batíamos os pés na terra seca, fazendo com que um pouco de poeira erguesse pelos ares.
- Volta aqui, Amir! – Falei rindo, vendo-o se esconder atrás de uma árvore.
- Você não me pega! – Ele gritou e eu desviei da árvore, pegando-o do outro lado.
- Peguei! – Falei e saí correndo, mas parando rapidamente quando percebi que cheguei ao limite das cruzes, me fazendo parar bruscamente.
- Peguei! – Amir falou, mas parou logo em seguida ao meu lado. – O que foi, Emi? – Ele me perguntou e eu respirei fundo.
- Eu não gosto daqui. – Falei, respirando fundo.
- Sua mãe está aqui? – Ele perguntou e eu somente assenti com a cabeça.
- Você nunca nos falou dela, Emi. – Tebogo apareceu ao meu lado e eu suspirei.
- Eu não lembro dela, nunca a conheci. – Suspirei.
- Você vem com frequência aqui, aposto que conversa com ela. – Amir falou e eu virei o rosto para ele, vendo sua mão estendida. – Vamos! Apresente seus novos amigos a ela.
Naquela época já tínhamos cerca de 12 anos, e eu não lembrava um dia que eu havia contado para eles sobre minha mãe, nenhuma vez. Não sei. A história dela não era diferente da de muitas pessoas aqui, mas Amir não tinha a doença, seus pais o abandonaram por falta de condições, Tebogo era saudável também, mas seus pais o abandonaram por ser diferente.
Todos tínhamos nossos problemas, mas nenhum deles entendia o que eu passava. Não precisavam ficar na fila de remédios todos os dias, não precisavam se preocupar com qualquer corte que era feito na sola do pé, então eu nunca mencionava isso para eles, mas eles queriam saber.
- Ela fica embaixo dessa cruz. – Apontei para uma. – Eu sei que é ela, pois é a única com um pouco de grama do lado. – Apontei para os três ou quatro fios de grama que secavam na terra.
- Como aconteceu? – Amir perguntou.
- Ela tinha a doença. – Falei suspirando e ambos me olharam. – Ela me passou.
- Ah, Emi! – Amir apertou minha mão. – Não precisa ficar pensando nisso, você está bem.
- Mais ou menos. – Suspirei. – É difícil! – Dei de ombros. – Eu preciso tomar muito mais cuidado do que vocês.
- Nós cuidaremos de você, então! – Tebogo disse e eu sorri.
- Vocês são ótimos. – Sorri e eles assentiram com a cabeça.
- E então, o que você conversa com ela? – Amir perguntou acenando para a cruz.
- Eu tento entender quem eu sou. Rezo todas as noites para que ela me mande uma luz sobre quem eu sou ou quem eu devo ser. – Suspirei. – Não imagino que seja só isso. Que toda nossa vida será isso, barro, sujeira, doença. – Abri os braços. – Isso não é viver.
- Não acho que seja só isso. – Amir suspirou. – Tem mais, você vai ver.
- Quando? – Perguntei rindo debochadamente.
- Um dia, você vai ver, as coisas serão diferentes. – Suspirei, assentindo com a cabeça.
- Crianças, hora do remédio! – Uma das cuidadoras do orfanato gritou e eu suspirei.
- Eu vou lá, a gente se vê no jantar? – Perguntei e eles assentiram com a cabeça.
- Claro! – Eles falaram juntos e suspirei, andando de cabeça baixa até o prédio novamente.”
“Para uma criança pobre, doente e totalmente sem condições, a gente não entendia muito o que acontecia, tínhamos uma rotina de ajudar dentro do orfanato, brincar, correr, tomar remédio e dormir, era basicamente isso.
Às vezes recebíamos uma visita importante de alguma pessoa que queria cuidar da gente, Médicos Sem Fronteiras, Cruz Vermelha, enfim, alguma organização médica que nos descobria no mundo. Esse era o momento de melhorar todas as nossas energias, eles faziam diversos testes, nos enchiam de remédios e nossa imunidade melhorava significativamente por um mês, mas depois a vida voltava ao normal.
Então, fora disso, nós tentávamos a todo custo achar algo para fazer. O grupo de anciões da cidade precisavam de bastante ajuda, então quando cheguei aos meus 14 anos, eu fui ajudá-los. Acabei aprendendo como jogar Xadrez e Damas, isso tudo antes de saber ler e escrever. Era divertido ficar com eles, eles nos ensinavam algumas coisas, nós os entretínhamos com nossa sabedoria jovem e acabávamos recebendo alguns conselhos.
O melhor conselho que recebi da minha vida foi de uma senhora, ela tinha 87 anos na época, mas tinha uma energia que eu não tenho nem em grandes shows, mas ela foi muito importante para mim. Além de que ela era minha esperança de que eu nunca morreria de HIV, sua doença era idêntica à minha e nunca progrediu. Já era algo.
Naquela época, com 14, 15 anos, eu já era uma menina mais bonita. Ainda mirradinha e pequenininha, foi quando cheguei aos EUA que eu comecei a encorpar mais, tinha os cabelos curtos cacheados presos sempre por uma pequena tiara, e tentava me arrumar melhor, da forma que podíamos, sabe como é, minha amizade com Amir já tinha progredido e eu já gostava dele de outra forma.
- Olá, Emni! – Ela sempre me cumprimentava com um largo sorriso no rosto e eu me acomodava na poltrona surrada à sua frente.
- Oi, senhora Goit. – Ela sorria. Seu nome era Goitsemedime, mas quem lembrava disso tudo, não é? Ironicamente, seu nome significava “Deus sabe”, acho que ela era meu deus.
- Como você está hoje, minha menina?
- Tudo certo. Infelizmente, nada de novo. – Suspirei e ela riu.
- Como não? – Franzi a testa com ela. – Não me diga que ainda não se declarou para Amir.
- E nem vou! – Falei rapidamente. – Ele não gosta de mim dessa forma, Goit. Prefiro tê-lo como amigo do que não o ter.
- Então, por que ele nunca para de olhar para você? – Virei para trás rapidamente, vendo que Amir nos encarava enquanto varria a sala. Seu olhar se encontrou com o meu e ele virou o rosto rapidamente para o lado contrário. – E ainda desvia o rosto como se tivesse fazendo algo errado.
- Não sei, Goit. – Suspirei.
- Amir já é seu amigo para a vida toda, minha jovem. Por que não tê-lo realmente para a vida toda? – Bufei.
- Pessoas como eu e você crescemos sabendo que não deveríamos nos relacionar nunca, que nossa doença era perigosa para os outros e que não deveria ser passada. – Era riu fracamente.
- Não é assim, minha querida. – Ela falou. – Você tem tratamento, falhos, mas constantes, vai se proteger, além de que um relacionamento não é só beijo na boca e sexo. – Ela riu fracamente e eu fiquei envergonhada.
- Não? – Franzi a testa.
- Claro que não, um relacionamento é ter um amigo para o resto da vida. Um confidente, alguém para rir e chorar, dividir alegrias e tristezas...
- Mas eu já faço isso com ele. – Ela sorriu.
- Então, o que diferenciaria você falar para ele que gosta dele? Que quer ter algo diferente dele?
- Tenho medo dele não sentir o mesmo. – Suspirei, observando-o conversar com senhor Makori e ambos também olhavam para nós.
- Eu duvido que ele não sinta nada diferente por você.
- Você nunca vai saber se não tentar. – Suspirei.
- Mas eu não quero perdê-lo, Goit. – Ela assentiu com a cabeça.
- Eu te garanto que você não vai. – Ela sorriu. – Só precisa ter um pouco de coragem.
- Eu vou tentar. – Suspirei.
- Além de que, se Tebogo conseguiu falar com a Ashia que gosta dela e estão juntos, por quê você não merece também?
- Isso foi engraçado, quem diria que Tebogo estaria namorando. – Rimos juntas.
- Tente, minha jovem! Você nunca vai saber se não tentar. – Ela disse. – Além de que vá logo, Amir se tornou um jovem muito bonito e outras meninas da aldeia estão de olho nele. – Suspirei.
- Não diga isso, Goit, me deixa mais nervosa. – Falei e ela segurou minha mão.
- Não, apesar de outras meninas olharem para ele, ele só tem olhos para você. – Suspirei.
- Eu vou ver o que eu vou fazer, ok?!
- Fique à vontade, minha jovem. Te espero na semana que vem para saber novidades de vocês dois. – Ri fraco.
- Até semana que vem, senhora Goit. Quer um chá antes de eu ir embora?
- Ah, vou aceitar, por favor. – Sorri para a senhora e me levantei da poltrona, seguindo para a pia que ficava na lateral, começando a preparar o chá para ela.
- Mokari está empolgado hoje. – Amir falou, apoiando na pia.
- Goit também! Deve ser o chá que eles tanto bebem. – Falei e ele riu, me ajudando a preparar as coisas.
- Pode fazer um pouco mais para ele?
- Claro! É só ferver mais água. – Disse e rimos juntos com largos sorrisos no rosto.”
“Depois de toda conversa com Goit, eu estava pronta para revelar para Amir que gostava dele. Eu precisava fazer isso, mas ainda tinha um sentimento aqui dentro que tinha medo de não ser retribuído e perdê-lo para sempre.
Mas algo que notei foi que Amir nunca deu bola para outras meninas, nunca. Quando não era comigo ou com Tebogo, normalmente ele estava sozinho. Diferente de mim, algumas meninas até se aproximavam dele na tentativa de chamá-lo para sair, mas sua resposta era sempre a mesma:
- Agradeço muito, mas não, obrigado. Meu coração já está tomado.
Amir sempre foi muito cordial e educado, não é à toa que advocacia caiu muito bem para ele depois que viemos para os Estados Unidos. Mas toda vez que ele falava “meu coração já está tomado”, eu me perguntava por quem. Afinal, ele nunca namorou alguém, da mesma forma que eu e também nunca dava um primeiro passo.
Para uma garota de 15 anos, era a maior confusão da vida. Não importa em que lugar do mundo você vive, você cria imagens loucas na sua cabeça e pensa em todas as suposições das ações do cara que você gosta. Acredite, eu fui muito assim, mas eu era na minha, como eu tinha minhas limitações nesse departamento, eu nunca dei o primeiro passo.
Até falar com Goit.
Eu já tinha uma sentença nas minhas costas pelo resto da minha vida, porque eu também não poderia ser feliz em outro departamento? Goit estava certa, namoro não era só beijo e sexo, tinha muito mais que isso, e eu sabia que, com Amir, eu já tinha muito dessas coisas, era para ele que eu chorava quando a doença regredia, era para ele que eu corria quando alguma coisa legal acontecia. Era sempre ele... E Tebogo, é claro. Mas com Tebogo era algo mais de irmão, aquela cumplicidade que até hoje eu não entendo como se transformava, mas Amir... Eu queria que ele sentisse orgulho de mim, me protegesse embaixo de suas asas e curasse todas as minhas cicatrizes.
Quando eu finalmente notei essas coisas, percebi que tudo que eu mais queria era que Amir gostasse de mim, que ele ficasse comigo para sempre, que ele também me amasse. Eu nunca tive uma representação de amor na minha vida, mas eu sabia que sentia algo diferente por Amir.
Com isso, eu decidi nessa semana que se seguiu da conversa com Goit que eu falaria para ele, que eu contaria para ele o que se passava no meu coração e esperaria as consequências, sempre pensando em boas consequências.
Como eu e Amir (e Tebogo e Ashia, além de outras crianças) trabalhávamos no mesmo turno do refeitório depois das refeições, tirando os pratos e separando o que era resto dos pratos e talheres, eu pensei que seria a oportunidade perfeita para ter alguns minutos com ele.
- E aí, o que faremos hoje mais tarde? – Tebogo perguntou enquanto me passava os pratos um por um.
- Que tal irmos pro lago mais tarde? Vai ter uma competição de Xadrez, Makori disse que vai jogar. – Amir falou e rimos juntos.
- É engraçado que nossos grandes amigos são pessoas 70 anos mais velho que nós? – Ashia comentou e rimos.
- Eles são legais, vai! – Falei. – Eu adoro a Goit. – Amir sorriu para mim, assentindo com a cabeça.
- Então, combinado? Lago hoje à noite? – Tebogo perguntou e nos entreolhamos.
- Combinado! – Falamos quase juntos.
- Bom, falta só isso... – Ashia disse finalizando de separar os talheres.
- Por que vocês não vão? – Olhei para ambos. – Eu e Amir terminamos aqui. – Virei para ele. – Se não tiver problema.
- Podem ir! – Ele falou prontamente e eu sorri para Tebogo que parece que entendeu a deixa.
- Nos vemos mais tarde! – Ele disse e saiu com Ashia.
- O que queria falar comigo? – Me assustei com a pergunta de Amir e virei para ele.
- Como sabia que eu queria falar contigo? – Falei rapidamente, sacudindo as mãos da água gelada.
- Eu te conheço há 10 anos, Emni! Eu sei quando você precisa de qualquer coisa. – Rimos juntos e ele segurou minha mão, me puxando mais para o final da longa mesa, nos afastando das outras crianças. – O que te aflige?
- Por que você fala tão formal? – Falei e ele riu. – Nem parece que você tem 16 anos. – Ele deu de ombros.
- Não enrole, Emni! O que é? – Suspirei.
- Ok, ok! – Suspirei. – Tenho algo para te falar há algum tempo já, mas foi a Goit que me fez falar...
- Ah, Goit, se mete em tudo. – Sorri.
- Ela é como uma mãe para mim. – Ele sorriu.
- E Makori como um pai. – Rimos juntos. – Você pode confiar em mim, Emi! Estamos juntos nessa, lembra? Sempre. – Mordi meu lábio inferior, respirando fundo. – Não precisa ter medo de mim.
- Eu gosto de você, Amir. – Falei rapidamente, engolindo em seco em seguida. – Não só como amigo, como algo a mais.
E o que ele fez? Ele abriu um lindo sorriso, aquele sorriso que me acorda todos os dias.
- Por que você demorou tanto para me dizer? – Ele falou e fiquei mais confusa ainda.
- Como assim? – Perguntei.
- Eu sempre gostei de você, Emni. Desde que eu te conheci. Você é incrível, bonita, inteligente, leal... – Sorri.
- Então, por que você nunca disse? – Perguntei, sentindo-o acariciar minhas mãos.
- Por causa da sua doença. Você nunca demonstrou que queria ter algo, que queria tentar, nem comigo ou com ninguém. Você se fecha na sua bolha e fica difícil entrar.
- Provavelmente é por causa dela mesmo, eu não sabia que era possível eu me relacionar com alguém e viver com essa doença.
- Mas um relacionamento não é só beijo e outras coisas...
- Foi o que Goit me mostrou. – Suspirei. – Não é porque eu tenha que tomar mais cuidado, que eu precise perder tudo. – Ele sorriu. – Eu gosto de você, Amir, e quero ter um futuro contigo.
- Eu também gosto de você, Emi! Eu vou adorar ter esse futuro contigo! – Ele me abraçou fortemente e eu apoiei meu rosto em seu ombro, sentindo-o me apertar fortemente.
- E como faremos isso? – Cochichei e ele olhou para mim.
- Aos poucos, um dia de cada vez! – Ele disse e segurou meu rosto com as mãos.
Delicadamente ele tocou meus lábios com os seus e nos separou. Foi um leve selinho, mas foi muito importante para mim aquilo. Eu sabia que teria Amir para o resto da minha vida.”
- Agora eu entendo o que você quer dizer com “o meu amor e o de Amir é diferente”. – falou e eu sorri, assentindo com a cabeça.
- Sim, é algo diferente de você e do , Jack e Scott, Mike e Lacey... – Dei de ombros. – É mais que amor, é amizade, confraternização, carinho... – Suspirei. – É cumplicidade sempre.
- Isso é demais! – sorriu e me abraçou de lado. – Vamos continuar.
“Bom, eu e Amir nos tornamos o casal mais querido pelos idosos de Thamaga! Era legal como as pessoas celebravam nosso amor e nos davam várias dicas de como ficar juntos para sempre. Parecia besteira lá com 15, 16 anos, mas parece que em alguns momentos mais tensos em nosso relacionamento eu ouço a voz de Goit e de Makori nos aconselhando, além de outros anciões, obviamente, mas esses dois eram sensacionais.
Eu e Amir ainda achamos que em algum momento esses dois ficariam juntos. Nunca soube se isso aconteceu. Goit morreu alguns anos depois que eu fui embora em decorrência de uma gripe e Makori ainda estava lá da primeira vez que eu voltei com , mas ele faleceu alguns anos depois de velhice.
Falando em “voltar”, acho que depois que eu e Amir nos ajustamos, não aconteceu nada muito interessante, em nossas vidas, apesar de termos um ao outro, a regra ainda era sobreviver e esperar por coisas milagrosas acontecerem.
E elas aconteceram quando eu tinha 16 anos, prestes a completar 17. Os Estados Unidos, junto das Organizações das Nações Unidas, colocaram os olhos em nós. Eles fizeram um projeto com a intenção de dissipar os contraídos de HIV e Aids e ajudar no tratamento. Não sei exatamente qual era o foco, provavelmente político, na época eu era muito nova, só sei que um dia eu estava vivendo minha vida normal e no outro sendo entrevistado por médicos americanos para me levar aos EUA. Claro que a conversa foi feita com tradutores de tswana para inglês, mas vamos improvisar.
- Então, Emily...
- Emni! – O corrigi.
- Emni, você é uma boa candidata para ir morar nos Estados Unidos, você gostaria disso? – Ele me perguntou e eu suspirei.
- Seria ótimo! – Falei. – Ter a chance de fazer algo diferente, outras oportunidades... Não sei.
- Acho que você se daria bem, você é uma pessoa especial. – Ponderei com a cabeça.
- Há quem diga que sim. – Falei e ele riu.
- Quais seriam suas condições? – Ele perguntou e eu franzi a testa.
- Como assim?
- Você sabe que morando nos Estados Unidos terá condições melhores do que as oferecidas aqui, mas que também não serão perfeitas, certo?
- Imagino que sim. – Falei.
- E então, qual seria uma condição para que aceitasse fazer parte desse projeto?
- Levar meu namorado. – Falei. – Se for para eu enfrentar um país novo sozinha, que seja com alguém para me acompanhar.
- Ele também tem a doença?
- Não, ainda bem. – Ele suspirou.
- Bom, Emily...
- Emni.
- ... Veremos o que podemos fazer. – Assenti com a cabeça, me levantando e saindo de lá.”
“Encurtando um pouco do caminho, ele forjou que Amir tinha HIV para que pudesse ir comigo. Eu nem conhecia aquele cara e ele me ajudou a não vir desacompanhada para os Estados Unidos. Eu sou muito grata a ele. Se não fosse essa simples mentira, eu não iria, porque Amir não iria também, e não seria tudo o que sou hoje, mas com essa decisão, eu faço parte da melhor banda do século 21.
Enfim, não queremos nos gabar, não é?!
Eles prepararam tudo para a nossa viagem, nos colocaram em um hotel por dois meses para que passássemos por uma quarentena para ter certeza que não tínhamos outras doenças, depois cuidaram de nós fisicamente e só depois fomos para os Estados Unidos.
Foi difícil me despedir, apesar de tudo, era difícil isso, sabe? A gente vive 16 anos em um mesmo lugar, com as mesmas pessoas, acaba formando uma família. Eles foram minha família pelo tempo que precisaram e me proveram tudo que eu precisava. Me despedir de Goit foi o pior, aquela mulher gostava de mim e tratava de mim com muito carinho, não tinha palavras para identificar.
Despedir de Tebogo também foi difícil, mas ele era dois anos mais velho que eu, já tinha 18 anos e disse que sairia do orfanato e tentaria fazer algo para a vida dele. Ele acabou chegando na capital, Gaborone, estudou e se tornou médico. Hoje ele é do Médicos Sem Fronteiras, credenciado à Orbi, sempre que fazemos missões em países da África Subsaariana, entramos em contato com ele para saber se quer nos acompanhar.
Não parece e eu também não comento muito, mas eu ainda mantenho minhas raízes e ainda sou grata a tudo o que me foi feito e oferecido lá, mas não posso negar que minha vida nos Estados Unidos foi muito mais estável e menos preocupante.
Quando chegamos aos Estados Unidos, inicialmente o presidente nos expôs como se estivesse fazendo uma grande caridade, nos colocou em rede nacional, falou sobre suas intenções políticas e de interesse da saúde e mais um monte de besteiras, pois logo depois ele nos distribuiu pelos estados dos Estados Unidos, nos deram roupas, sapatos e materiais de higiene e nos colocaram em orfanatos.
Eu dei sorte de vir parar em Los Angeles, Califórnia, é bem menos quente do que Thamaga, mas tem longos espaços de calor, então é até que “parecido”. Claro que quando eu cheguei aqui eu me senti nas nuvens. Eu morava em aldeias, mal sabia o que eram prédios, vivia em uma imensa bolha, com chãos de terra, casas feitos de barro e tudo mais, então, viajar de ônibus, avião, chegar em Los Angeles, ah, foi um sonho imenso.
Mas logo depois nos trancaram em um orfanato e não era tão diferente de Thamaga, tínhamos nossas tarefas a cumprir, coisas para fazer e tudo mais. A diferença é que aqui tivemos estudo. Foi somente aqui nos Estados Unidos que eu aprendi a ler e a escrever, o que foi engraçado, pois eu sabia ler e escrever em inglês, mas não sabia no tswana.
Além disso, sofremos muito preconceito quando chegamos, por causa da diferença racial, de não sabermos ler ou escrever e também por causa da doença. Passamos bons momentos de tristeza no começo, me lembro que eu desejava voltar para Thamaga só para ter pessoas que me entendiam à minha volta novamente, mas superamos. O colo de Amir foi bem usado por muito tempo, até o meu foi usado por ele e por outras crianças que foram conosco.
Era tudo diferente, era algo que a gente não estava nada acostumado. Mas sobrevivemos.”
“Uma das coisas boas de Los Angeles foi quando eu conheci a minha médica. Eles sabiam que ao trazer-nos para cá, cuidados médicos eram essenciais, tanto remédios para oferecer e consultas constantes como médicos para qualquer problema que fosse. Como nosso sistema imunológico é bem frágil, qualquer coisa nos levava ao médico.
Depois de Goit, Marie Adams foi quem se tornou minha segunda mãe, tanto que ela é minha médica até hoje. Ela trabalhava num posto de saúde público próximo ao orfanato. Eu a conheci poucas semanas depois que nos ajeitamos.
Ela sempre foi um amor de pessoa, afinal, ela estava lidando com uma menina de 16 anos com HIV, que vivia em um dos países mais pobres do mundo. Estar em Los Angeles para mim era surreal. Eu estava num parque de diversões.
Depois que nos ajeitamos, ela fez todos os exames necessários, eu ia a cada duas semanas no postinho para pegar minha leva de remédios e vamos dizer que ficamos mais próximas e eu acabei me abrindo mais com ela. Afinal, vocês sabem, eu não tinha família, eu ainda sofria preconceitos com o pessoal do orfanato, não dava para falar tudo com Amir, e as mulheres do orfanato não eram tão boazinhas como o pessoal de Thamaga.
- Oi, Emi! – Ela sorriu quando abriu a porta do seu consultório. – Vamos entrar? – Me levantei da sala de espera e segui até ela, entrando na sala e ela me abraçou rapidamente. – Como está?
- Tudo bem e contigo?
- Tudo bem, não sentiu nenhuma diferença com o remédio novo? – Me sentei em uma poltrona e ela se sentou atrás da mesa.
- Deu uma soltada no intestino nos primeiros três dias, mas você disse que podia acontecer. – Falei.
- Sim, exatamente, mas agora normalizou? – Ela foi anotando na minha ficha.
- Sim, tudo certo!
- Defecando normalmente?
- Normalmente! – Falei, rindo em seguida e ela saiu para pegar meus remédios.
- Aqui, Emi! Eu coloquei paracetamol dessa vez, você disse que tem sentido bastante dor de cabeça.
- Sim, incomoda bastante.
- Vamos ver se ele vai ajudar antes de seguir para algo mais forte. – Assenti com a cabeça, pegando meu saco de remédios.
- Tomara! Parece que estão enfiando um prego na minha cabeça. – Ela assentiu com a cabeça.
- Vamos ajustar isso. O que mais eu posso fazer por ti? – Ela me encarou.
- Tem uma coisa. – Suspirei franzindo a testa e ela me olhou.
- Sim, Emni... – Derrubei os ombros.
- Eu nunca falei isso com ninguém, então é complicado.
- Você sabe que pode falar comigo, certo? Estamos juntas há o quê? Três meses?
- Mais ou menos. – Dei de ombros.
- O que é? – Ela perguntou.
- É Amir...
- Vocês dois estão bem?
- Sim, estamos, não é... Eu não sei, sabe? Ele é homem, eu penso que ele sente falta no departamento S-E-X-O, sabe? – Falei um pouco baixo e ela deu uma risada fraca. – E eu nunca transei na minha vida, não quero morrer sem saber como é. – Ela sorriu e esticou a mão sobre a mesa e segurou a minha.
- Ah, minha querida, vocês nunca...? – Neguei com a cabeça.
- Nunca! E o corpo pede, sabe? Ele é lindo, você o conhece. – Suspirei.
- Sim, seu namorado é muito bonito mesmo e entendo que uma garota e um garoto têm suas necessidades. – Ela deu um sorriso.
- Eu queria saber o que eu faço.
- Para começar, eu vou te dar uma aulinha, HIV não é um vírus tão fácil de ser transmitido assim, não existem casos documentados de vírus que foram passados por meio de saliva, suor ou lágrimas. – Assenti com a cabeça. – Ele pode sim ser transmitido no sexo, em compartilhamento de agulhas e na gestação.
- Ok. – Ela assentiu com a cabeça.
- Agora sobre o sexo, uma relação sexual sem camisinha não é 100 por cento de chances de que o Amir vá contrair o vírus, é até baixa, mas as chances aumentam a cada relação, então sempre se proteja, ok?! Sempre! Camisinha é regra para todos, mas para você principalmente. E não use duas ou mais, uma só, borracha com borracha rasga, e vocês ficarão mais vulneráveis. – Assenti com a cabeça. – Além de outras doenças sexualmente transitiveis que protege.
- O que mais? – Perguntei.
- Você nasceu com HIV, mas nem toda criança com HIV passa para o filho.
- Mesmo? – Ela assentiu com a cabeça.
- Mesmo! – Ela sorriu. – O risco é de 17 por cento, se as mães tomam as precauções necessárias, isso cai para menos de um por cento, sua mãe era pobre, não tinha cuidados, mas você não precisa ter o mesmo destino. Seu parto foi normal em um lugar supercontaminado, feito em um centro cirúrgico preparado e uma cesárea, dificilmente existe essa transmissão.
- Eu prefiro não pagar para ver.
- E acho que está certa, mas caso queira, há opções. – Assenti com a cabeça.
- Tem algo que o Amir pode fazer? Caso a gente queira...
- Após o ato, ele pode tomar um antirretroviral, quase como uma “pílula do dia seguinte”, para reduzir as chances de contaminação. Com cuidado, dá certo. – Ela esticou um cesto com várias camisinhas e eu ri, pegando algumas.
- É só que... – Suspirei. – É tão difícil ter que sempre pensar no que eu vou fazer, se eu vou me machucar, me cortar, se eu vou transmitir para o meu próprio namorado. – Passei a mão na cabeça. – Eu queria só ter uma vida normal. – Marie sorriu.
- E você pode ter. – Ela falou. – Estude, trabalhe, descubra algo que você goste de fazer e não deixa ninguém te afastar disso. Não é uma sentença de morte, as coisas estão evoluindo cada dia mais, você não precisa ter medo sempre, viva sua vida, se cuide em caso de machucados ou relações sexuais, mas não pare de viver por causa disso. – Suspirei.
- Eu vou tentar! – Ela assentiu com a cabeça e me entregou mais algumas camisinhas.
- Quer que eu te ensine a colocar?
- Ah não! Acho que isso eu sei! – Fiquei vermelha e ela gargalhou.
- Vem aqui, vai! – Ela abriu os braços para mim. – Vai dar tudo certo. – A abracei sorrindo.”
“Vamos agilizar um pouco isso que eu não sabia que teria pique para escrever tanto ou que lembrasse de tantos detalhes da minha história, mas depois daquele papo com Marie, eu e Amir sentamos para conversar sobre isso. Eu não sou uma tarada por sexo, mas aposto que todo mundo já quis saber como era.
- Ei, como foi com Marie? – Ele perguntou quando cheguei e eu me sentei ao seu lado em seu beliche.
- Tudo certo, remédios, remédios e aulas. – Rimos juntos. – Precisamos conversar.
- O que foi? – Suspirei, olhando em volta.
- Eu quero fazer sexo. – Cochichei para ele que sorriu.
- Eu também quero. – Sorri. – Não que eu sinta falta, mas...
- Nunca aconteceu. – Falei antes que ele. - Marie me deu uma longa aula sobre isso, é possível fazer, mas nós dois precisamos tomar as medidas necessárias, não abusar e tudo mais. Além de que não, podemos nos beijar bastante, pois não pega por saliva. – Ele sorriu.
- Ei, gostei disso. – Rimos juntos. – Mas então? Você quer tentar?
- Você que tem que me responder isso, Amir. Você que é o saudável aqui. – Ele assentiu com a cabeça.
- Quero sim! Eu te amo, Emi! Quero descobrir isso contigo. – Sorri.
- Você promete que vai se cuidar?
- Sim e vou cuidar de você também. – Suspirei.
- Ok, vamos tentar, então, mas aqui? – Franzi a testa.
- Não, vamos fazer isso do jeito certo. Eu vou organizar bonitinho. – Confirmei.
Encurtando o caminho, ele ajeitou. Na real, ele mandou a real com o pessoal do orfanato, conseguiu juntar uma graninha, reservou um quarto num hotel mais ou menos para gente, preparou um jantar lindo e fofinho e tivemos nossa primeira vez. Foi bem travado, devo ser honesta, afinal, nenhuma primeira vez é boa, ainda mais quando na sua cabeça só passa o letreiro “não infectar seu namorado” durante todo o ato.
Obviamente deu tudo certo, ele não se infectou e faz testes constantes por precaução até hoje. Também não transamos tanto quanto queremos, a prevenção sempre vem em primeiro lugar comigo. Amir sabe e me ama, respeita e cuida com essa informação na cabeça desde o dia em que nos conhecemos. Mas vamos dizer que a taxa de sexo entre idosos é maior que entre mim e ele. Nos divertimos de outras formas.”
“Bom, quando fizemos 18 anos, precisamos sair do orfanato. Amir completou a idade seis meses antes do que eu, então ele saiu primeiro dizendo que arranjaria um lugar para morarmos e procurar um emprego para estar tudo ajeitado quando eu fosse. O governo dá um valor para ajudar durante os primeiros meses, mas depois estamos por conta.
Amir acabou encontrando uma quitinete em Burbank, no entorno de Los Angeles. Era pequena, mas não estávamos podendo gastar muito quando não entrava nada. Era um quarto só, divisão para cozinha, banheiro e só, nada mais. Inicialmente, compramos um colchão e depois fomos arrumando o espaço.
Pouco antes de eu dar meu tempo para sair do orfanato, ele conseguiu um emprego de garçom no The Ritz-Carlton em Los Angeles. Demorava cerca de 40 minutos de ônibus, mas pagava bem, pelo menos, e podia fazer hora extra quando precisávamos de alguma grana a mais.
Quando eu saí do orfanato, ele acabou conseguindo para mim um emprego nesse mesmo hotel, mas como camareira. A parte mais desconfortável foi sobre as perguntas da minha doença e de todos os cuidados que eu deveria ter com tudo isso, pelo menos não existia o preconceito, pelo menos não visivelmente. Todos eram muito simpáticos com a gente e até fizemos algumas amizades lá.
Foi lá que eu cheguei no nome Emily. O porteiro noturno tinha língua presa, coitado. Então todos faziam questão de zoá-lo pelas palavras que ele falava errado, e ele não conseguia de jeito nenhum falar o nome Emni, ele se confundia bastante e ficava muito incomodado por isso, inicialmente eu o corrigia incansavelmente, até que um dia eu parei de me importar e fiz a felicidade de um senhor de 77 anos.
- Boa noite, Emily! – Ele falou e ele parou. – Errei de novo, não é?! – Rimos juntos.
- Não, senhor Watson, serei Emily para o senhor! – Falei, abrindo um largo sorriso. – Que tal?
- Muito obrigado! – Ele falou e eu o abracei rapidamente, passando pelas portas de serviço.
- Até amanhã. – Sorri.
Eventualmente acabou pegando. Em nenhum momento que eu sou chamada de Emily eu me sinto menos Emni, somos a mesma pessoa, então, para que me incomodar? Para irritar metade do mundo e viver sozinha em uma bolha? Não, obrigada! Eu estava começando a ter uma vida boa, com motivos para me sentir feliz, então, para que me incomodar?
Claro que eu não era a pessoa mais aberta do mundo, ainda tinha o preconceito, ainda tinha a doença e eu ainda tentava esconder algumas partes das pessoas de volta para tentar ao máximo não perder minha identidade, mas parece que com Amir, Marie, alguns colegas que eu fiz no orfanato e no hotel, eu fiquei mais confiante, menos medrosa e com vontade de realmente dominar o mundo.
Mas claro que não era fácil assim. Eu tinha minhas limitações, de todas as formas, mas não precisava ser sempre a menina doente que eu era em Thamaga, eu poderia ser mais Emily “Emni” Lizarde, qualquer dia e qualquer hora.”
“Bom, uma das vantagens de se trabalhar no hotel, foi que pudemos ter uma melhor educação. Eu não sabia o que fazer da vida, então foquei em aprender mais o inglês propriamente dito e fazer alguns cursos aleatórios como cozinhar, costurar e afins, já Amir começou se interessar pelo Direito. Em um dia, ele acordou com o sonho em ser advogado.
Podíamos tudo, certo? Então fizemos as contas, ele viu uma faculdade que coubesse no nosso orçamento, o hotel arcou com 50 por cento dos gastos e Amir pode finalmente se tornar advogado. Tínhamos 22 anos na época, mais ou menos, isso foi dois anos antes da minha vida mudar completamente...
Diferente das outras histórias que eu li, eu não tinha inclinação nenhuma para música, eu nunca cantei no chuveiro para descobrir se eu tinha uma voz boa, durante minha vida em Botswana, eu sobrevivia, e aqui em Los Angeles eu tentava ao máximo fazer com que minha vida seguisse em frente da melhor forma possível.
Mas, apesar da vida boa que eu tive, e sim, quando você sai de uma aldeia sem asfalto e condições dignas e vive de camareira em um hotel ótimo em Los Angeles, com um salário justo e não precisando depender de ninguém, sim, é uma vida boa! Agora a vida é um sonho, é outro nível. Tem nem o que comparar, é como a dos hóspedes que eu servia no The Ritz...
Enfim, voltando ao assunto, apesar da vida boa que eu tive, eu também tive meus pontos baixos, minhas decaídas, e elas acontecem até hoje. Eu nasci com a doença, vivo com ela e a entendo desde sempre, mas existem algumas coisas que elas não me permitem ter e antes de casamento, Sophie e tudo mais, me incomodavam bastante e isso era criar uma família e a quantidade de remédios.
Apesar de eu aceitar bem minha doença, eu sei que ainda existe o preconceito, acho que só falo disso bem hoje, pois me permitiu isso, a família The Fucking Stone me recebeu para isso, então a situação mudou de figura, mas eu nunca falava propriamente sobre ela. Eu não chegava nas pessoas e falava: “eu tenho HIV positivo”, como fui honesta com desde o primeiro dia. Primeiro porque não me identifica. Eu não sou Emily doente ou saudável, somos uma só. E segundo que não é o tipo de papo que você fala em uma conversa civilizada.
Então, quando os anos foram passando no hotel e nas nossas vidas, as pessoas começaram a perguntar quando eu traria um bebê ao mundo. Quando eu e Amir oficializaríamos nossa união, quando nosso amor se tornaria uma terceira pessoa, entre outras coisas.
Repetindo, eu sempre soube da minha realidade e da minha condição, mas era difícil não me perguntar: e se, sabe? Era difícil pensar, inicialmente, que aquilo nunca iria acontecer. Que eu e Amir, apesar de seu amor incondicional por mim, sempre seríamos só Emily e Amir.
Além do mais, eu tomo, até hoje, muitos remédios, e para meu corpo não se acostumar com eles, eu preciso alterá-los frequentemente, nem que seja um miligrama a menos ou uma marca diferente, para não causar vícios também e, quando acontece de eu precisar alterar um dos medicamentos, eu sinto essa diferença de diversas formas.
Às vezes eu fico com aspecto doente, dores no estômago, febre, ataca meu sistema nervoso nas primeiras semanas, enjoos e vômitos, enfim, são vários efeitos colaterais dependendo de qual medicamento foi alterado, mas o que me dava com mais constância era um estado depressivo.
Eu digo no passado, pois atualmente os experimentos de trocas de remédios são muito menores do que anteriormente para que não afete muito a minha vida pública e nem da banda. Atualmente estamos em hiato de novo, mas quando estamos em produção de CD, eventos, turnês, videoclipes e filmes, além de cuidar das nossas vidas pessoais e de nossos filhos, eu não posso pensar em ficar mal.
Mas antes de entrar na banda era muito comum. Eu tinha todos os sintomas de uma depressão, todos mesmo, incluindo pensamentos ruins, o que diferia meus sentimentos de uma depressão real, é que em no máximo uma semana tudo passava e eu me acostumava, mas eu passava por poucas e boas, além de preocupar todos à minha volta: Amir, Marie, colegas e superiores do trabalho. Era realmente complicado.
Por isso digo que devo tudo a Amir, ele é realmente meu anjo. Sempre ficou muito na dele, me apoiou e amou incondicionalmente desde o começo. Faz questão de me fazer sorrir até nos piores momentos e sempre está comigo. Atualmente estamos vivendo em outra crise, sabendo que sairemos dela em breve, já é possível ver a luz do fim do túnel, mas Amir sempre esteve conosco. Comigo, com , com minha banda. Além de ter se mostrado um pai incrível. Apesar dos percalços, eu realmente não poderia ter uma vida melhor. O HIV são só três letrinhas que gostam de atrapalhar a minha vida, mas enquanto ele não virar quatro, me sentirei sortuda.”
“Bom, vamos recapitular: Amir está cursando Direito à noite, eu trabalho de dia e de tarde com ele no hotel e faço cursos aleatórios algumas vezes na semana. Isso durou dois anos, até que chegamos no fatídico ano de 2004, sim, chegamos ao ano em que eu entrei para a maior banda da atualidade e eu ainda não tinha tido nenhuma experiência com a música. Para você ver como são as coisas!
Apesar de não ter contato com a música, eu realmente gostava de ouvir música, então acabei conhecendo muito da cultura pop americana e também aprendi a cantar algumas músicas, mesmo que não fosse a rainha do karaokê ou de cantar no chuveiro, mas eu tinha costume em cantar em um lugar: enquanto arrumava os quartos dos hóspedes.
Minha rotina de trabalho era a seguinte: a partir das nove da manhã estava liberado para que arrumássemos os quartos dos hóspedes, mas tínhamos algumas condições. A primeira era checar se ele estava lá dentro, caso estivesse, perguntar se gostaria que limpasse, caso ele não estivesse lá, limpar sempre, menos se tivesse deixado o aviso de “não perturbe” na porta. Vocês nem imaginavam as zonas que eu encontrava nesses quartos, se elas agiam assim num hotel cinco estrelas, imagino como eram as casas delas. Era tudo jogado, uma nojeira, uma bagunça que hoje em dia faço questão de fechar e guardar minha mala quando estamos em hotéis.
Após checar a disponibilidade do quarto para limpeza, checamos quem é o hóspede, caso ele queira algum pedido especial, alguns hóspedes trazem seus animais de estimação, outros precisam de serviços de lavanderia, e de vez em quando nós só gostamos de fazer um agrado a eles com detalhes que sabemos que eles vão gostar.
Tinha uma hóspede em especial, Jules Jones, ela era uma candidata ao senado ou algo assim naquela época, nem me lembro se ela conseguiu entrar ou não, mas eu teria votado nela se pudesse votar naquela época, porque foi ela que me trouxe para esse mundo, mas eu gostava de agradá-la sempre que ela vinha, ela adorava essências, então deixava seu quarto sempre perfumado.
Após fazer a organização convencional, eu trazia o aspirador de pó para dentro do quarto e começava a passá-lo, era nessa hora em especial que eu começava a cantar. E naquela época os aspiradores não eram silenciosos como esses que temos hoje ou aqueles portáteis que não precisamos fazer nada que eles limpam a casa inteira. Não, aquilo ensurdecia qualquer um. E a senhora Jones me pegou com a guarda baixa.
- ...I don't really need to look very much further. I don't want to have to go where you don't follow. – Eu ainda movimentava as mãos e o corpo como se realmente estivesse interpretando a música. - I will hold it back again this passion inside, can't run from myself, there's nowhere to hide... – Segurei firme o fio como se fosse um microfone e abaixei-o novamente. - Don't make me close one more door, I don't want to hurt anymore. – Balancei a cabeça negativamente. - Stay in my arms if you dare or must I imagine you there. Don't walk away from me... – Minha voz se perdia no som do aspirador. - I have nothing, nothing, nothing, If I don't have you, you, you, you, you... – Fiz um biquinho com o alongamento, girando meu corpo. - You see through right to the heart of me... – Parei imediatamente quando a vi parada atrás de mim e me desesperei em desligar o aspirador.
- Oi, senhorita Lizarde. – Ela falou.
- Ah, senhora Jones, me desculpe, eu não vi a senhora. Já estou quase finalizando. Não sabia que a senhora voltaria tão rápido.
- Meu compromisso foi cancelado de última hora, mas não precisa ter pressa, Emily! Não tenho mais nada por agora e realmente gostei da cantoria.
- Senhora? – Franzi a testa.
- Você canta muito bem. – Olhei assustada. – Claro que o aspirador não é o melhor acompanhante, mas você é boa, minha jovem.
- Como assim? – Foi sua vez de franzir a testa.
- Então, você não sabe? Você tem um talento escondido e ele é escondido até para você?
- Eu não quero parecer rude, mas eu realmente não sei do que a senhora está falando. – Respirei fundo.
- Cante, minha jovem. – Ela tirou o aspirador da minha mão e o encostou na parede. – Whitney Houston, como estava cantando. - Respirei fundo e comecei devagar como estava fazendo antes.
- I don't really need to look very much further. – Comecei mais devagar. - I don't want to have to go where you don't follow... – Ela movimentava a mão para cima.
- Mais alto.
- I will hold it back again this passion inside, can't run from myself, there's nowhere to hide, your love I’ll remember forever... – Alonguei a voz, sentindo os pelos do meu braço arrepiarem e parei, vendo-a sorrir.
- Continue! – Ela falou e eu respirei fundo, soltando o ar devagar. – É isso mesmo!
- Don't make me close one more door... I don't want to hurt anymore. – Suspirei. - Stay in my arms if you dare or must I imagine you there. Don't walk away from me, I have nothing, nothing, nothing... – Respirei fundo, seguindo para o fim da música. - Don't make me close one more door, I don't want to hurt anymore. Stay in my arms if you dare or must I imagine you there. Don't walk away from me. No, don't walk away from me. Don't you dare walk away from me, I have nothing, nothing, nothing. If I don't have you, you. – Finalizei a música sentindo as lágrimas em meus olhos e soltei a respiração devagar, olhando os pelos de meus braços arrepiados.
- Você realmente não sabia. – Senhora Jones sorria e eu estava abismada.
- Eu... – Engoli em seco. – Eu nunca soube. – Ela se aproximou de mim e colocou as mãos em meus ombros.
- Você tem um talento que pouquíssimas pessoas têm, Emily! Você canta e você canta bem!
- Eu nunca... – Neguei com a cabeça e ela mantinha um largo sorriso para mim.
- Vá atrás disso, garota! Você tem um talento. Lute por isso que eu tenho certeza que você não precisará limpar um chão mais na sua vida. – Ri fracamente com um largo sorriso no rosto.
- Obrigada por me mostrar isso, senhora Jones, eu não sabia. – Ela riu fracamente, acariciando meu rosto.
- Espero grandes feitos de você, senhorita Lizarde. – Assenti com a cabeça.
- Pode deixar que eu cuidarei muito bem desse talento. – Ela sorriu e eu suspirei, feliz por ter finalmente descoberto algo que eu gostava.”
“Aquela descoberta me deixou feliz de uma forma que eu não sei nem explicar. Eu finalmente era boa em algo. Não vou dizer que era a própria Whitney Houston, faltava lapidar um pouco, mas eu cantava bem! Eu tinha uma potência vocal incrível e isso já era surreal! Essas coisas não acontecem comigo assim, certo?
Errado! Estamos tão acostumados com as coisas convencionais da vida, de sermos simples e ordinários que esquecemos de olhar para o brilho que tem dentro da gente. Naquele dia de janeiro eu descobri uma chama dentro de mim e, naquele momento eu não sabia, mas ela se transformaria em uma fogueira maravilhosa.
Ok, ainda não é adequado brincar com fogo, faísca e afins, mas vocês entenderam o que eu quis dizer, tinha algo pronto para sair. E eu fui atrás, obviamente que eu fui contar primeiro para Amir. O que foi até legal, pois eu acabei virando o entretenimento do almoço.
Assim que finalizei o momento emoção com Jules, guardei meus materiais e saí correndo atrás de Amir no restaurante. Literalmente, recebi até alguns “está tudo bem?” Estava perto da hora do almoço, então estava começando a encher com os hóspedes.
Desacelerei o passo e entrei um pouco mais tímida no restaurante, procurando Amir. O encontrei servindo alguma mesa e me aproximei do bar enquanto esperava ele terminar. Ele abaixou a bandeja e seguiu em minha direção e eu abri um largo sorriso quando ele me viu.
- Ei, o que aconteceu? – Ele falou rindo fracamente. – Parece que descobriu Atlantis.
- Atlantis não, mas eu descobri algo incrível, meu amor! – Falei animada.
- O quê? Você está me deixando empolgado. – Ri fracamente.
- Eu posso cantar, Amir! – Falei rindo e ele franziu a testa.
- Todo mundo pode cantar, Emi! – Ele falou e eu suspirei, sabendo que seria um pouco mais difícil.
- Sim, mas eu sei! – Falei firme. – E eu sou boa. – Ele arregalou os olhos.
- Como assim?
- Eu tenho um dom, Amir! E eu acho que sou boa! – Ri fracamente.
- Mas como? Eu já te vi cantar, você... – Ele parou.
- Não, você nunca me viu cantar! – Falei rindo. – Eu nunca cantei para você, Amir. Eu nunca cantei nem para mim. Eu canto normalmente arrumando os quartos, mas eu nunca me ouvi, sempre estava com o aspirador ligado. – Suspirei.
- Isso é verdade... – Ele falou se tocando. – Você nunca cantou.
- Nunca! – Ri fracamente. – E hoje eu descobri. Eu sou boa, Amir.
- Me mostre! – Ele falou animado. – Vamos!
- Aqui? – Olhei em volta, vendo as pessoas conversando, distraídas de nós dois, mas ainda sim.
- É! – Ele falou animado e eu respirei fundo, soltando o ar devagar.
- I'm a survivor, I'm not gon' give up. – Comecei a cantar forte. - I'm not gon' stop, I'm gon' work harder. I'm a survivor, I'm gonna make it. I will survive, keep on survivin'... – Amir arregalou os olhos e eu ri fracamente, ouvindo alguns aplausos por perto.
Desviei o rosto de Amir para algumas mesas ali em volta que sorriam e aplaudiam para mim e ri fracamente, agradecendo com um movimento de cabeça, sentindo meu rosto esquentar e voltei a olhar para Amir, vendo-o rir.
- Você tem um dom, meu amor! – Ele me segurou pelos ombros, me fazendo rir. – Você precisa mostrar isso para o mundo. Vá atrás disso.
- Como? – Perguntei rindo.
- Nós vamos procurar! Fala com a banda que toca aqui de noite, eles podem saber. – Ri fracamente, assentindo com a cabeça e o abracei rapidamente.
- Agora vamos, melhor voltarmos ao trabalho! – Falei e ele riu, dando meia volta e seguindo para os clientes.”
“Eu fiz exatamente o que Amir indicou, falei com a banda que tocava no hotel à noite e eles indicaram que eu gravasse uma demografia e distribuísse pelas gravadoras de Los Angeles. Perguntei quanto sairia essa brincadeira de demografia e eles me contaram que tinha estúdios de gravação que eu podia alugar por dia para gravar e podia levar meus próprios CDs para que a gravação fosse concluída.
E foi o que eu fiz. Pelo mês que se seguiu, eu procurei por várias músicas que combinassem com a minha voz: forte, de entonações graves, e treinei em casa para quando chegasse no dia da gravação, estar perfeito, afinal, não tínhamos muito dinheiro para gastar com futilidades. Tinha as despesas básicas e a faculdade de Amir, era cerca de 75 por cento da nossa renda total.
Optei por gravar Whitney Houston, Destiny’s Child e Evanescence, músicas que combinavam com a minha voz, além de tocar um pouco com o emocional, não sei, eu ficava emotiva quando ouvia essas músicas e podia apelar um pouco para esse lado.
Gravei e distribuí cerca de 50 demografias, gravadoras grandes, pequenas, estúdios de gravação, de TV e de cinema e nada. Parece que não seria tão fácil como eu pensei. Sendo bem honesta, eu não fazia a mínima ideia do que estava pensando quando fiz essa decisão. Era uma oportunidade de mudar, trazer novos ares da minha vida, não sei. Eu só realmente achava que podia ter mais.
Acabei entrando novamente naquele sentimento de que eu era uma pessoa normal e que nada de extraordinário aconteceria comigo. Juntamos a mudanças de remédios e tive um momento depressivo novamente, mas eu podia ter desistido disso, mas a guerra não tinha acabado ainda.
Mas só para variar, Amir chegou com a salvação.
Bem, em partes!
- Emni! – Ele falou animado enquanto abria a porta de nosso apartamento em um dia que estávamos de folga.
- Na cozinha! – Falei mexendo o ensopado da panela.
- Olha o que eu encontrei no chão hoje! – Ele me estendeu um panfleto e eu sequei as mãos no guardanapo de pano antes de segurar o papel.
- O que é? – Passei os olhos pelo papel: “Audição Virgin Records – Procuramos novos talentos para fazerem parte de uma nova banda”. – Oh, meu Deus! – Falei animada. – Você realmente acha?
- Claro! Por que não? Vá, dê uma chance. – Desci o olhar.
- Isso era no começo do mês, Amir. – Falei, esticando o papel para ele. – Já faz três semanas. – Suspirei.
- Putz! Eu nem me toquei disso. – Ele suspirou, pegando o papel de volta. – Sinto muito, amor. – Suspirei.
- Tudo bem, você tentou! – Dei um rápido beijo em sua bochecha e voltei a focar em minha panela.
Eu sempre fui teimosa, então aquele papel ali não era à toa, era um destino. Eu fiquei matutando com ele quase o dia inteiro, encarando aquele papel e aquele papel me encarando de volta. Eu estava quase surtando com ele ali, então, peguei minha bolsa e saí correndo em direção à gravadora Virgin Records. Correndo, no caso, era alguns ônibus e ainda andar a pé pela parte rica de Los Angeles.”
“Assim que eu cheguei na gravadora, fiquei um pouco intimidada com aquilo tudo. Eu estava em um lugar que só os ricos transitavam, paparazzi estavam na rua, limusines no recuo na rua e eu desci de ônibus. Foi um tanto difícil, mas eu respirei fundo e me coloquei no elevador, clicando o botão para o andar desejado. Suspirei quando a porta se abriu e encontrei uma morena na recepção lá na frente.
- Olá, boa tarde! – Ela abriu um largo sorriso para mim.
- Oi, eu sou Emni. Eu vi o anúncio de vocês, quero fazer o teste para a audição. – Falei, obviamente tentando dar o golpe, eu sabia que os testes já tinham acabado.
- Ah, desculpe, senhorita. Os testes acabaram há algumas semanas. – Suspirei.
- Ah, por favor, moça. Tem que ter alguém que possa fazer essa audição comigo.
- Sinto muito, não tem ninguém que possa te receber agora, os testes acabaram!
- Me deixe entrar, por favor. Eu preciso disso... – Falei suspirando.
- Não, senhorita, me desculpe, mas não posso permitir sua entrada. – Minha voz se bagunçou com a abertura do elevador novamente e olhei para trás rapidamente, vendo um grupo de jovens entrando, mas os ignorei.
- Tem que ter alguém aqui para me receber. – Falei mais firme, respirando firme.
- Algum problema aqui, Megan? – A menina entre os três homens se apoiou no balcão, me olhando. Ela era jovem, não deveria ter mais que 20 anos.
- Essa mulher quer entrar e falar com alguém, mas não posso permitir sua entrada sem que ela tenha horário marcado. – Ela suspirou, visivelmente irritada.
- Por que você quer falar com alguém? – Ela me perguntou e eu respirei fundo.
- Eu ouvi falar sobre testes para uma nova banda, eu quero fazer esse teste.
- Mas o teste acabou há semanas, você chegou atrasada. – A assistente falou e eu suspirei.
- Eu estou livre agora, eu cuido dela. – Ela falou e eu abri um largo sorriso.
- Obrigada! – Falei empolgada.
- Sério? – A assistente perguntou e a menina olhou para a assistente.
- Se ver Jessica, peça para me encontrar na sala de música. – Ela pegou um bloco de papel e caneta atrás do balcão e seguiu
- Pode deixar! – Ela afirmou.
- Vamos! – Ela falou e segui atrás dela. - Já volto! – Ela falou para os meninos que estavam com ela e eles só afirmaram com a cabeça. – Pode entrar. – Ela abriu a porta de uma sala e passei em sua frente antes de fechar a mesma.
- Quem é você? – Perguntei, curiosa com aquela menina tão jovem.
- Eu sou , a vocalista da banda que estavam procurando por pessoas. – Arregalei os olhos e ela assentiu com a cabeça, rindo fracamente.
- Nossa! – Falei surpresa.
- Pode ficar onde se sentir mais confortável. – Ela falou e se sentou em uma das cadeiras, me colocando em sua frente. – Qual seu nome, idade, de onde você é, e o que te traz aqui?
- Meu nome é Emni, tenho 24 anos. – Falei.
- Eni? – Anotei.
- E-M-N-I. – Soletrei, suspirando. – Mas pode me chamar de Emily Lizarde. – Ela falou, suspirando.
- Por quê?
- É o nome que eu me dei quando me mudei para os Estados Unidos. – Falei, encurtando a história.
- O que veio fazer aqui nos Estados Unidos? – Ela perguntou e eu engoli em seco.
- Acho que deveria mostrar meu talento, antes de mostrar a parte ruim. – Falei fracamente e ela respirou fundo.
- Eu realmente não ligo o quão ruim sua vida foi, se você for alguém que vale a pena, você vai ficar, é assim que funciona comigo. – Senti o corte rapidamente e me senti intimidada, mas abri um sorriso de leve, afirmando com a cabeça. Talento eu tenho.
- Eu sou de Botswana, um país da África. Teve uma infestação de HIV e AIDS no país e para ajudar, os Estados Unidos tirou diversas crianças do continente, incluindo a mim. – Suspirei. – Eu não conhecia meu pai e minha mãe morreu de AIDS pouco depois que eu nasci. – Prensei os lábios. – Eu morei em um orfanato até completar 18 anos e depois tenho me virado bem sozinha.
- Desculpe. – Ela falou visivelmente arrependida. – Não era a coisas assim que eu me referia. – Afirmei com a cabeça.
- Sem problemas, as pessoas não esperam. – Falei e ela me deu um olhar curioso.
- Você tem...?
- Sim, eu sou HIV positivo. – Falei. – Faço exames regularmente e ainda não desenvolvi a doença.
- Espero que nunca desenvolva. – Senti que ela foi honesta e suspirei. – Só faltou uma pergunta, o que veio fazer aqui?
- Eu quero uma chance, eu sempre tive uma vida mediana, sendo jogada de um lado para outro, então quando notei que tinha uma voz boa, achei que pudesse fazer alguma diferença.
- Você pode! – Ela falou. – O que vai cantar?
- Vou cantar My Immortal do Evanescence. – Ela ponderou com a cabeça.
- Música difícil.
- Sim, mas combina comigo. – Sorri.
- Quando quiser. – Ela me falou e pensei se teria acompanhamento musical, quando percebi que não, comecei simplesmente.
- I'm so tired of being here. – Comecei devagar. - Suppressed by all my childish fears. And if you have to leave, I wish that you would just leave, because your presence still lingers here, and it won't leave me alone. – Coloquei maior entonação na voz. - These wounds won't seem to heal. – Alongava no final. - This pain is just too real. There's just too much that time cannot erase. – Movimentava as mãos conforme a música tocava e abri os olhos ao notar que ela me acompanhou, mostrando uma voz magnífica.
- When you cried I'd wipe away all of your tears. – Sua voz era incrível, tinha uma entonação juvenil, mas era de arrepiar. - When you'd scream I'd fight away all of your fears. – Sorri largamente, acompanhando-a. - And I held your hand through all of these years. But you still have... – Paramos juntas, nos entreolhando. - All of me. – Reduzi minha entonação, mas ela olhou sugestivamente para mim.
- I've tried so hard to tell myself that you're gone. – Ela continuou cantando e eu peguei a deixa de que ela tinha pulado para o fim da música.
- But though you're still with me. – Forcei minha voz com ela, vendo-a sorrir. - I've been alone...
- All along. – Cantamos juntas e eu abri um largo sorriso, vendo-a dar pulos pela sala.
- O que está acontecendo aqui? – Ouvi outra voz e pulei de susto, vendo os amigos de e outros dois adultos entrarem na sala.
- O que você acha? – perguntou animada.
- Foi um espetáculo. – O gordo falou com um sorriso no rosto.
- Essa é Emily, minha nova backing vocal. – Passei as mãos no rosto, arregalando os olhos para ela. – É o que eu posso oferecer por agora. – Suspirei, um tanto travada com o anúncio repentino.
- É mais que o suficiente. – Abri os braços, apertando-a fortemente contra mim, sentindo as lágrimas deslizarem pelo meu rosto.
- Vamos cuidar de você agora, Emily, ou melhor, Emni. – Ela falou em meu ouvido e soltei um suspiro alto, eu tinha uma alegria imensa em meu peito.”
“Daí em diante o resto é história! Naquele dia rolou uma longa conversa de Jessica com , provavelmente por ela não poder simplesmente sair oferecendo emprego para as pessoas, mas no final deu tudo certo. Eu recebi um longo contrato, mais do que eu esperava e fui jantar com ela, Jack, Louis e Mike, os outros membros da banda que, se você está aqui, obviamente já conhece.
O melhor de tudo foi que ali, entre conversas, risadas e curiosidades, entre aquelas pessoas, eu não me senti um peixe fora d’água, nunca me prejudicaram ou me diminuíram pela minha doença ou pela minha cor de pele, entre eles, eu era só mais um membro da família Stone com o mesmo propósito: fazer parte da maior banda do mundo.
Além de tudo, eles me acolheram como um deles, não importava de onde eu vinha ou quem eu era, desde o primeiro dia eu fiz parte daquela família. E somos isso até hoje. Eu sou uma pessoa feliz demais só em ter essas pessoas na minha vida. Acredito que a música veio para mim em um momento que eu realmente precisava e que o sucesso foi consequência.
Mas eu sabia que, eventualmente, aquelas pessoas fariam parte da minha vida. Sendo Emni Lizarde ou Emily Lizarde, membro da The Fucking Stone. É loucura pensar nisso, mas é muito bom fazer parte de algo, disso. Aqui é meu lar e essa é minha família.
Hoje eu posso dizer com todas as palavras que sei quem sou e tudo isso por causa dessas pessoas que fazem parte da minha vida há 15 anos. Eles são tudo para mim e eu sei que sou tudo para eles. Estamos sempre juntos, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença até que a sorte nos separe.
É mais que um casamento, é mais que uma família, são as vantagens de fazer parte da maior e melhor banda da atualidade que tem a capacidade de se manter no topo em todas as situações, mesmo passando por alguns percalços pela vida. Somos muitos, mas somos um só e eu sou grata por tudo isso. Por causa deles, eu sou alguém muito menos neurótica e mais relaxada, menos fechada.
Eventualmente eu acabei perdendo um pouco o medo, ao invés de ficar depressiva pelo o que eu não poderia ter, eu achei alternativas. Sophia foi uma dessas alternativas. Quando eu vi que era a hora de eu achar uma família, ao invés de ir pelos meios convencionais, eu fui para Botswana e fiz todo o processo de adoção dessa joia em minha vida.
Eu sei, minha história não é um mar de rosas, mas depois de 24 anos, 40 agora, eu posso dizer que realmente podemos ser quem quisermos, não precisamos depender de pessoas ou de doenças em nossa vida. Podemos fazer o que quisermos. E espero ter muita saúde, pois ainda pretendo fazer muito mais!”
- Ah, como você é incrível, Emi! – falou me abraçando de lado e eu gargalhei. – Acho que foi uma das melhores!
- Obrigada! – Suspirei. – Acho que eu acabei tirando forças de um lugar bom e consegui.
- E ficou demais! Sua história, seu passado, sua doença, você e o Amir. Eu já gostava muito de vocês dois, agora gosto muito mais. – Ri fracamente, abraçando-a pelos ombros. – Nem foi tão difícil, né?!
- Por causa de vocês! – Apoiei meu queixo em sua cabeça. – Vocês me dão uma liberdade que eu não preciso ser ninguém diferente, então, falar da minha doença nem é tão mais depressivo assim. – Ela assentiu com a cabeça.
- É assim que eu gosto. – Ela falou. – Está ótimo, Emi, obrigada!
- Que isso! – Me afastei dela, vendo-a fechar o notebook. – Foi bom, tirou alguns antigos demônios de dentro de mim. – Ela sorriu. – Para quem agora?
- Mackenzie! – Ela falou e eu ri debochadamente.
- Ah! – Externalizei e ela riu. - Mal vejo a hora de saber o que se passa na cabecinha dele.
- Depois de eu ler a história do Mike, acho que eu mudei minha visão dele quando mais novo, ele tinha as vontades dele, mas fez como um bom pai e priorizou a Melanie. – Assenti com a cabeça.
- Deve ser, ele nem é tão pancada assim! – Rimos juntas e eu peguei o notebook. – A gente se vê depois?
- Na hora da janta! – Ela falou e eu sorri, saindo de seu quarto e encontrando no corredor.
- Ei, olha quem está aqui. – Gritei e virou o rosto, abrindo um largo sorriso ao encontrar e eu voltei a andar antes que fosse atropelada por ela.
Vi ambos se abraçarem e fiquei feliz por ter voltado de suas gravações, ficava um pouco depressiva quando ele estava fora, principalmente dos últimos acontecimentos. Ella já tinha idade para ir para a escolinha e ela fazia questão de se isolar, então tudo era mais complicado. Cheguei na porta do quarto de Mack e Delilah e bati à porta.
- Entra! – Ouvi e empurrei a porta, encontrando-o com Delilah na cama, claramente nus embaixo do lençol.
- Ah, que visão do inferno! – Falei e ambos riram.
- Oi, Emi! – Mack falou e eu revirei os olhos.
- Trouxe um presente para ti! – Estiquei o notebook e o coloquei na beirada da cama.
- Ah, meu Deus! Eu não preparei nada ainda. – Ele se sentou.
- Acredite, ninguém preparou nada. – Falei suspirando.
- Sobre o que você escreveu? – Ele perguntou.
- Minha vida em Thamaga, a doença, Amir, a mudança para Los Angeles... – Deu de ombros. – Cobri o básico. – Ele bufou.
- Me deseje sorte, sou péssimo para escrever. – Ri fracamente.
- Boa sorte! – Falei e acenei para Delilah que ria e puxei a porta novamente, rindo comigo mesma da cara de desespero que ele fez.
Continua em Uma História de Mack Derrick.
Nota da autora: Meu Deus, gente! Faz um ano que essa história está aqui comigo e eu fui focando em outras histórias em andamento e acabei esquecendo!
Vamos mudar isso, não é mesmo? Aqui está a short da Emily que é uma das minhas favoritas, gostei muito de escrever!
Espero que vocês tenham gostado de ver um pouquinho mais dessa personagem! E não se esqueçam de comentar!
Beijos.
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Nota da beta: Definitivamente a história da Emily foi uma das mais fortes com lance da doença e ela ser órfã, mas sem dúvidas foi encantador a forma como o Amir sempre foi o pilar dela. Foi linda! Ameei <3
Lembrando que qualquer erro nessa atualização e reclamações somente no e-mail.
Vamos mudar isso, não é mesmo? Aqui está a short da Emily que é uma das minhas favoritas, gostei muito de escrever!
Espero que vocês tenham gostado de ver um pouquinho mais dessa personagem! E não se esqueçam de comentar!
Beijos.
Outras Fanfics:
Lembrando que qualquer erro nessa atualização e reclamações somente no e-mail.