Krampus

Última atualização: Fanfic Finalizada

Capítulo Único

Somos aquilo que escutamos e cultivamos.
Veias com sangue ancestrais, repletas por histórias capazes de nos embalar por todas as narrativas que encontramos, em prol das lembranças que por muitas vezes nos acalmam a mente.
Uma história repassada de pai para filho costuma tornar-se realidade diante a sua veracidade. Por muitos anos, adubando um mesmo conto, a construção de cenários, enfeites e firulas, levando os ouvintes a carregarem para si uma verdade na qual sequer acreditam que existe, mas ao aquecer o coração, é mais comum apegar-se a tal edificação do que deixar de lado e ir embora.
As lendas urbanas conseguem definir-se como resquícios de histórias que por muitas vezes não consistem em realidade, mas amedrontam e delimitam visões que se tornariam mais liberais, deixando-as com um certo receio diante a maneira a portar-se.
O Natal consegue reter lendas e histórias que fascinam crianças e adolescentes, levando-os a carregá-las com o passar dos anos até que tudo seja passado assim pelos ancestrais até movimentar-se por entre as ruas como uma melodia alegre e divertida.
Uma cidade pequena é repleta por contos que não condizem com a realidade vivida, mas é tão intensa quanto, a ponto dos seus moradores se manterem alerta diante um possível acontecimento.
No dia 05 de dezembro, as portas são trancadas e as luzes de Natal não se encontram acesas. O receio de que as crianças levadas e desobedientes possam ser carregadas para lugares sombrios consumia a alegria natalina e logo após montar os enfeites, as portas são trancadas para abrirem-se somente no dia seis.
Tal qual o homem natalino de bom coração que felicita a todos os que nele confiam, junto as lendas de Natal daquela pequena e amedrontada cidade, repleta por histórias assustadoras e angustiantes, um ser infernal leva consigo crianças que não foram amigáveis com os coleguinhas, trazendo angústia aos seus familiares ao aumentar a lista de crianças desaparecidas.
A comprovação segue incoerente. Algumas famílias se enchem de paradigmas nos quais a crença em uma lenda urbana não referência a realidade e coincidentemente, essas famílias possuem histórico de entes que foram embora para nunca mais voltar.
Crianças.
Em contra partida, outras famílias se enchem de imagens do Klaus na tentativa por afastarem-se de um ser que só traz dor e angústia.
Dezenove dias após a maioria das casas se manterem envolvidas num medo sombrio, as luzes se qualificam por iluminar a maior parte dos ambientes, as crianças correm despreocupadas pelas ruas e os habitantes comemoram a noite de Natal com uma certa agradabilidade.
A neve resultara num dos maiores fatores que evidência tal época do ano. O chão encontra-se coberto por uma pequena camada de gelo e os telhados das casas, junto as luzes e enfeites ressoava como uma imagem retirada de um conto infantil, tal qual João e Maria e a casa dos doces.
Por maior que fosse o desejo que histórias infantis, repletas por crianças, fossem baseados em momentos felizes, a construção de tal narrativa sempre fugia do que verdadeiramente representava e diante a grande expansão dos contos de fadas, repletos por abracadabra, crianças iniciavam aquela disputa por presentes quase que fora de uma realidade existente.
Olhos cristalinos observavam as crianças que dançavam e se movimentavam dentro das residências. Em sua grande maioria, a excitação era pintada por uma ansiedade vinda diante o desejo por novos brinquedos que o papai Noel havia deixado ante um ano de conquistas e boas ações. Os cílios quase brancos de tão claros fechavam-se e abriam-se junto a pálpebra móvel enquanto o corpo ia e vinha de acordo com uma música que ela havia inventado.
Um passo para a direita e dois para a esquerda. Um rodopio ao som da própria risada e uma felicidade contagiante. Agora, três passos para frente e dois giros completos para trás. Os olhos mantinham-se fechados e o corpo levemente inclinado para trás, na medida em que a mente se sentia pesar diante os giros que iam e vinham de acordo com a melodia cantarolada.
— Chocolates são os melhores do que brinquedos, chocolates, chocolates por ser uma boa menina. — A voz baixa acompanhada por uma risada infantil repetira pela centésima vez aquele trecho. A música era de sua autoria e talvez, ressoava como um lembrete do que havia feito até ali e ainda do que poderia proporcionar a si mesma.
O cheiro de pinheiro ia sumindo, pouco a pouco, tal qual a vida das árvores que serviam de fantoche para a perfeição do Natal. Tal ação se dava pela grande quantidade de dias em que eles se mantinham em frente as casas pequenas daquela viela. Pedaços de vida arrancados da Natureza sem o menor resquício de humanidade, diante uma data que ironicamente tem como tema principal a junção de pessoas rente a entornos natalinos, comemorando a vida daquele que sinteticamente era definido como o seu Salvador.
Poucas pessoas conseguiam possuir a motivação exata daquela construção, em sua maioria, manter-se por entre sorrisos falsos, aguardando a abertura de presentes, ressoava como suficiente. As vidas destruídas já não levavam o ar a circular, não possuíam utilidade além de queimarem-se diante as luzes coloridas e morrerem, lentamente e torturando-se, a cada segundo mais, assistindo risadas de pessoas que não se importavam com nada.
A pequena viela no interior da Alemanha era estreita e aconchegante. As casas brancas ressoavam como uma constante sensação de que as moradias se completavam, transformando-se em uma só. As portas de madeira das casas mantinham-se fechadas diante a neve que caia por todos os lugares, as pessoas cantarolavam, dançavam e bebiam ao som de músicas que referenciavam cantigas Natalinas, em outrora aquilo não ocorria.
Uma única pessoa cantarolava e caminhava repleta por felicidade, apenas observando tudo ao seu redor. O tecido da roupa ia e vinha de acordo com os movimentos e a música inaudível, onde somente ela escutava e expunha, referenciava uma construção unilateral.
Novamente dois passos para a esquerda e mais três rodopios para a direita. A criança encontrava-se maravilhada diante a própria companhia. Em suas mãos a caixa vermelha com fita determinava um presente de Natal que qualificava aquele ano como mais um belo motivo para comemorar.
O papai Noel localizava-se por todos os lugares. Ele se sorria ao acenar para as crianças de algumas moradias, em outras, encontrava-se pendurado por entre os enfeites das árvores. Num telhado mais a frente, ele subia uma escada e logo mais no final da pequena rua, o homem entoava o sino ao repetir deliberadamente a sua risada natalina.
A magia do Natal não funcionava sem aquele homem de cabelos grisalhos, a sensação de felicidade que ele exalava por todos os poros o definia tão mais importante do que o verdadeiro motivo das festas de fim de ano. A maioria das pessoas levavam em consideração a construção na qual aquele homem se mantinha como o centro dos acontecimentos Natalinos até que pequenos interlúdios levavam os menores a esquecerem-se com o passar dos anos das maiores motivações.
Negando com a cabeça, a criança fez uma careta. Ela não se lembrava do que havia pedido naquele último Natal, tampouco conseguia ter a imagem dos seus pais ao sorrirem para fotos que emoldurariam paredes para quando as visitas fossem até ali. Talvez um eletrônico houvesse sido prometido caso ela se mantivesse disposta a ser uma boa garota, ou uma boneca que custasse muito mais do que a maioria das crianças pudessem ganhar.
Não fazia muito sentido lembrar-se de objetos quando na verdade, o maior desejo que ela culminava pelos Natais adjacentes fora determinado por algo suculento que sempre a deixava ansiosa por mais.
Rodopiando mais uma vez, ela deixou-se sorrir. O semblante angelical fora evidenciado tal como uma pequena fada ou criatura sublime que percorria por uma floresta encantada. Uma releitura infantil da Chapeuzinho Vermelho em busca da casa de um parente, trocando a cesta repleta de doces por uma caixa que vinha sendo arrastada por toda a extensão da rua.
— O que você leva aí dentro? — Com olhos curiosos, um garoto percorreu a manga do casaco pelo nariz, afastando a secreção que por ali escorria e fungando, ele terminara a limpeza cursando a língua pelos lábios sem desviar os olhos da caixa vermelha que se mantinha a sua frente. — Parece pesado para você.
A criança paralisou seus passos. Por alguns instantes, o laço de fita soltou-se do seu punho e ela o encarou com um certo temor nos olhos, deixando de lado a leveza de uma princesa infantil no qual carregava.
O olhar superior que fora lançado não fora o bastante para desestimular o carregamento que apesar das circunstâncias, ocorria de maneira agradável. O garoto cambaleou para trás, encostando o corpo na parede branca, ao lado de uma grande árvore de Natal repleta por luzes coloridas e enfeites de diversos tamanhos e formatos. Ele estudava cada detalhe da garota a sua frente e quando ela segurou novamente o laço vermelho para voltar a arrastar pelo chão, ele deixou-se sorrir.
Dois garotos correram por entre a viela e logo se posicionaram lado a lado. As vestes natalinas se mantinham envolta de tons avermelhados e cabelos perfeitamente bem penteados determinavam garotos cujo maior problema naquela noite, seria adivinhar o presente expansivo que teriam ganhado.
— O que você tem aqui? — O garoto loiro de olhos claros questionara. Ele mastigava chiclete com os dentes expostos, deixando á mostra a dentição amarelada e torta, repleta por restos de chocolate que se espalhavam até mesmo pelos lábios e queixo do rapaz. Ele cruzara os braços e a garota apertou com mais força ainda o laço que segurava.
Suas mãos trêmulas localizavam-se escondidas pelo casaco felpudo que ela utilizava. A boina vermelha combinava com a cor dos seus sapatos, tal qual o tom dos lábios que evidenciavam o calor no qual ela sentia expelir pelo seu corpo. O garoto de cabelo raspado direcionou seus passos à frente e num movimento brusco, inclinando para frente seu pé, ele tentara empurrar a caixa para que ela fosse jogada ao chão, expondo assim o que tinha dentro.
Os garotos zombaram antes de perceberem que não houvera movimento algum do objeto. Por um instante, eles se entreolharam, antes de mais outra tentativa, ele direcionou o pé mais uma vez, buscando por empurrar a caixa, os garotos já não sorriam e a menina que agora fechara seus olhos, sibilando um mantra para si mesma, pedindo para que eles se afastassem e não conseguissem ver o que se encontrava dentro dali.
— Você não comeu, Ismael? — O loiro retrucou, empurrando o amigo para o lado, que tropegou, esbarrando na árvore, tentando não quebrar nenhum enfeite, assustado. — Mas que merda, você não consegue empurrar uma caixinha como essa?
Numa oscilação brusca, ele foi em direção a garota, empurrando-a para o lado, ela cambaleou e fora ao chão. Seus cabelos bagunçaram-se e sentada com dores pelo corpo, ela se deixou ficar com a cabeça inclinada para baixo, talvez buscando por alguma explicação. Sua mão ainda segurava a fita com força, seus dedos ainda mais trêmulos balançavam minimamente enquanto ela sussurrava palavras nas quais as outras crianças não conseguiam entender.
— Você derrubou a pirralha — Ismael afirmou com os olhos presos na garota a sua frente. Aos poucos, o tremular que se mantinha presente nos dedos que seguravam a fita ia dominando o corpo da garota. A princípio, ele piscara algumas vezes, talvez buscando por alguma justificativa para aquela reação, mas na medida em que o tremor fora acelerando, ele deixou de lado as frases do amigo que se aproximava da caixa afim de jogá-la para longe. — Breno.
Diante um sussurro, Ismael teve a atenção do amigo sobre si, algo que não durou muito tempo. Antes que ele pudesse mais uma vez afirmar alguma palavra, percebera as mãos do amigo irem em direção da caixa e buscando por empurrá-la para longe, ele teve a ideia de que toneladas se encontravam presentes no dentro daquilo.
— Mas o que...
Quando suas mãos tocaram o tecido verde que cobria o caixote, ele sentiu seus dedos começarem a vibrar e desviando os olhos do próprio corpo, ele olhou envolta, percebendo a garota que mantinha os olhos do seu amigo sobre si.
Seus próprios dedos iniciaram movimentos involuntários. Suas sobrancelhas foram arqueadas e ele buscou com a própria mente, paralisar. Tentou inclinar os braços para baixo, mas também não conseguira tal feitio e diante aquela reação na qual não alcançava controlar, ele percebeu os olhos virados da garota.
Ela ergueu-se do chão. Um sorriso brotou dos seus lábios e ela logo iniciou uma dança silenciosa, somente o branco dos seus olhos encontravam-se a mostra e seus cabelos mantinham-se em desalinho. A tiara vermelha começava a soltar-se e ela, de pé, fazia barulho a cada nova investida dos sapatos ao chão.
Breno assistia a cena paralisado. A sensação de sentir-se prisioneiro do próprio corpo não passara despercebido e seus olhos arregalados demonstravam uma dor na qual ele certamente possuíra dificuldade em compreender. O tremular acelerava de acordo com os embalos nos quais a garota apresentava e diante um pavor que ele assistia em si mesmo, seu amigo iniciou um cochicho.
— Ele quer deixar você. — A voz infantil da garotinha fora ouvida e uma risada baixa e divertida contemplou a atmosfera.
A viela que possuíra luzes coloridas pelas casas já não referenciava a noite de Natal e as vozes, músicas e risadas escutadas já não pertenciam a realidade.
Um completo breu atingira o ambiente e Ismael que agora afastava-se o máximo que pudesse dos dois tinha o coração batendo descompassado, repleto por incômodos nos quais não acreditou serem reais. — O que... O que é isso? — Sua voz falhara, tal qual suas pernas que o levaram ao chão. A imagem que se encontrava a sua frente conseguia aniquilar todos os bons sentimentos que havia cultivado naquela noite, em especial e visível aos olhos de cada um que estivesse ali presente, ele estava prestes a desmaiar.
O tom pálido do seu rosto ao perceber o amigo tremular por completo consistia numa cruel tentativa de afastamento. Suas pernas não se moviam e diante a curiosidade, somada com a necessidade por ir embora, ele se viu preso ao chão, como se estivesse com cordas que brotavam do piso e enrolavam-se por sobre o seu corpo, mantendo-o ali, imóvel tal qual o outro.
— Crianças más não merecem presentes, você foi uma criança má? — Mais uma vez, a voz infantil fora externada ali. Nessa nova sistemática, ela já não tremulava por completo, seu corpo agora flutuante voltava-se para o corpo do garoto que a encarava com os olhos arregalados. Ela encarou o corpo do Breno e dera outra risadinha. Rente ao chão, a garota enrolou quatro vezes a fita no seu próprio pulso, puxando a caixa até que ela encostasse no seu corpo. — Ele foi malvado, sabia?
Ela ergueu um pouco mais do chão, sorridente. Seus movimentos foram em direção do Ismael e quando ele se encolheu ainda mais fechando os olhos e iniciando uma oração, ela voltou a sorrir.
A miragem definia algum tipo de fantasia presente dentro da mente dos que vivem em constante medo. Talvez ele pudesse estar fantasiando alguém que não existia ou a garota a sua frente tinha os pés tocando ao chão, algo que ele não percebia.
O outro garoto tremulava, sua língua havia sido enrolada e seus braços começavam a contorcer-se. Ele abria os lábios, mas nenhuma frase era dita, tampouco, os gritos conseguiam serem ouvidos por outras pessoas que nas casas se localizavam.
Pouco a pouco, Breno ia perdendo o controle dos seus movimentos vitais, lágrimas rolavam pelo seu rosto e os dentes que agora encontravam-se expostos, iniciavam uma desconstrução. Os dentes do garoto começavam a serem arrancados por uma entidade na qual não existira, uma força invisível que o debilitava, primeiro quebrando seus ossos e agora destruindo seu sorriso, num completo silêncio. O sangue respingava por toda a superfície, até mesmo sujando os cabelos da criança que não encarava a cena. Ela sorria ao brincar com seus próprios dedos, cantarolando uma cantiga na qual somente ela conseguia cantar.
— Vai embora. — Um sussurro baixo fora escutado e ela cessou os movimentos. Os olhos da garota voltaram-se ferozmente para o outro garoto que se mantinha com os braços e pernas contorcidos próximos ao ar e juntando as sobrancelhas, ela se desvencilhou da fita, erguendo-se ao tocar na caixa. Alguns dentes flutuavam pelo ar, tal qual gotículas de sangue que não haviam ido em direção alguma. No instante em que ela abrira por completo a caixa de Natal, os dentes foram até ali e logo jogaram-se num buraco. O corpo do Breno fora jogado ao chão e ele se manteve contorcendo, gemendo baixo.
Seus olhos fechados determinavam a dor que ele conseguia sentir e por um período, a garotinha voltou a sorrir. Ismael que escutou o gemido do amigo, fazendo-o erguer-se de qualquer maneira, indo até o Breno a passos trôpegos e atrapalhados, suas mãos foram em direção a ele, mas ele cessou.
Seu corpo fora paralisado pela sua mente e ele somente encarou o garoto que jazia caído ao chão. Breno já não respirava, uma pequena poça de sangue mantinha-se ao redor da sua cabeça e seus cabelos claros encontravam-se sujos daquele tom em vermelho no qual ele só costumava ver em filmes. Quando deu por si diante o que havia acontecido, ele tentou andar, sem conseguir.
Tal qual o Breno, ele abrira os lábios para gritar, mas sua voz não fora escutada por ninguém. A sensação de encontrar-se preso num ambiente fora da realidade atingira seu corpo e ele fora ao chão. Ao cair, seus dedos cessaram ao lado da fita que repousava. Ao lado dos pés da garotinha.
— Eu não consigo sentir os meus... — Num sussurro, Ismael encarou os cabelos da garota que segurava a caixa com braços tortos como uma boneca de plástico, sem peso algum. Ele piscou deliberadamente buscando o entendimento diante o que acontecia, mas antes que pudesse afirmar uma palavra que fosse, o garoto já sem vida fora jogado na pequena caixa de presentes.
As laterais da caixa foram escancaradas e uma pilha de corpos fora exposto. Garotos brancos, negros, amarelos. Meninas com laço de fita na cabeça e vestes surradas. Olhos arregalados, dentes por toda a extensão da pilha. Alguns se encontravam sujos por sangue, outros somente expunham a sensação de estarem num sono profundo. Outros expunham a dor sentida.
Uma garota em especial o encarava, ela não se encontrava morta e seus olhos piscavam lentamente, com uma certa dificuldade. Ela era idêntica a menina que agora encarava o fundo da caixa como um poço. As risadinhas arrepiavam o seu corpo e quando ela se voltou para ele, Ismael tentou recuar o corpo para trás, buscando por auxílio de alguém, que não encontrou.
— Isso é o que acontece com crianças malvadas. — A voz que em outrora possuía um tom infantil, agora já não ressoava com tanta infantilidade. O tom rouco que atingira os tímpanos do garoto arrepiou o seu corpo e aquela menina ao aproximar-se dele, negando com a cabeça, conseguiu deixá-lo ainda mais desesperado a ponto de o odor de urina inundar o ambiente — Isso é medo de mim? — Ela perguntou apontando para a calça do menino toda molhada aos sorrisos — Você foi um menino malvado? — Ismael negou com a cabeça, sua língua começava a torcer dentro dos seus lábios e a caixa de presentes ia aos poucos erguendo suas laterais até manter-se novamente fechada e lacrada. A garotinha agachara a sua frente e diante dedos trêmulos, tocou o seu rosto. Os olhos dela faiscavam tal qual uma fogueira em meio a uma mata a noite. Iluminando seus olhos e seu corpo na medida em que ela se aproximava cada vez mais. — Você foi sim um menino malvado.
Ele não tivera tempo para pensar. Quando ela percorreu os dedos pequenos pelo seu pescoço, as unhas que até então eram reflexo de alguém que as ruía, começaram a aumentar até que ele já não mais conseguisse suportar. A sensação de algo lhe cortando a garganta se tornara real quando a respiração começou a falhar. Arrebatando-o. Pouco a pouco os olhos do garoto foram fechando-se e o sangue iniciou a ser jorrado. A risada da garotinha ficara ainda mais audível e ele logo se afastou.
Percorrendo os dedos pelas suas vestes, ela observou a distância, voltando a segurar o laço vermelho preso ao seu pulso, o garoto começou a contorcer-se sem cessar. Talvez, numa busca por vida que já não pertencia a ele.
A garotinha levou os dedos pequenos com unhas já ruídas aos cabelos, percorrendo-os em busca de fios que pudessem encontrarem-se bagunçados, não encontrando nada.
Ela voltara a ser o sinônimo de perfeição.
Em seguida, ela sorriu, e as luzes voltaram-se aos locais de origem. Ismael sumiu. Breno já não existia. Ela mantinha um sorriso sorrateiro preso aos lábios e quando as portas foram abertas, diante cantigas de Natal e pessoas comemorando Nicolau, ela manteve a caixa próxima ao corpo, observando homens e mulheres olharem-na com um certo interesse.
— Cadê os seus pais, minha criança? — Uma senhora de bochechas coradas e cabelos ruivos questionara. Ela buscava por vestígios de aproximação de uma outra pessoa ao encontrar uma angelical criança sozinha. — Como é o seu nome?
— O meu nome? — Torcendo seus dedos nas laterais da fita, ela abaixou a cabeça envergonhada. — É melhor você não saber... — Ela deixou uma risadinha no ar antes de prosseguir. — Melhor não. — A mulher assentira desatenta, percorrendo seus dedos pelas mechas do cabelo da criança, erguendo o tronco em busca do seu filho que estivera brincando na rua tempos atrás. — Meu nome é Alice. — Balançando o vestido, ela deixou-se sorrir, erguendo seu olhar e mantendo-o preso ao rosto da mulher que juntara as sobrancelhas assustada — Procurando alguém?
— Só... Você viu um garotinho? Ele é mais ou menos da minha cor, mais alto do que você e... — Ela finalizara sua frase ao olhar para a árvore que se encontrava ao lado da garotinha.
Próximo aos pequenos enfeites do solo, um menino estava se contorcendo. Seu pescoço ensanguentado referenciava uma construção que o grito agudo e alto que a mulher deu não fora capaz de expressar. Rapidamente, os demais ocupantes da casa caminharam até a porta, a mulher já estava de joelhos segurando o corpo do menino, procurando por algum resquício de vida que talvez ainda fosse encontrado.
Mas não existia vida, não existia mais nada.
Aos poucos, o corpo fora paralisando. As dúvidas que pairavam pelo ar eram angustiantes e aflorava no coração dos presentes um sentimento de perda. O garoto se encontrava com o pescoço cortado e eles sequer conseguiam entender a motivação daquele ato.
— Ele se matou? — Um homem que segurava um copo de whisky questionou. Ele tinha o celular na outra mão e gravava absolutamente tudo o que encontrava pela frente. — O garoto do vizinho se encontra ao chão e eu que pensava que essa vila tinha um pouco de quietude... — Suas palavras ressoaram como navalhas no corpo do homem que se encontrava ajoelhado ao chão, segurando os ombros da mulher ruiva. Ele erguera o corpo e partiria para cima do homem indiscreto e insensível, mas seus familiares o pararam. Ele dera de ombros, desligando a câmera do celular, engolindo o resto de bebida que se encontrava no copo.
Por um instante, todos se mantiveram em silencio. Nada era dito, tampouco escutado. As palavras de afeto daquela noite haviam cessado e solidariedade nunca existira. Diante os olhos dos presentes, um garoto possuíra o rosto pálido, mas não havia sangue pelo chão. O corte no pescoço referenciava a construção de um vestígio do ocorrido, mas que pela consistência encontrada, já não versava flagrante.
A destruição de uma noite natalina foi silenciada por uma voz fina que repetia as mesmas palavras e todos os olhares se voltaram para o ambiente no qual aquele som partira.
Ao longe, a sombra de uma garotinha arrastava uma caixa. Ela já não se encontrava próxima a cena da morte e tampouco expunha seu semblante maquiavélico e divertido. O timbre da sua voz ressoava uma cantiga e sentindo os corpos arrepiarem-se diante do som expostos, alguns familiares da vítima buscaram aproximar-se da criança que talvez soubesse de algo.
— Meninos levados vão para o inferno, meninos bonzinhos não. Meninos levados vão para o inferno, meninos bonzinhos não.
— Ei você! — A mãe da criança gritou escutando também aquelas palavras, mas a menininha não cessara seus passos, tampouco a cantoria. — Você viu o que aconteceu com o meu filho? — Num instante de puro desespero, ela questionou.
O aperto que dava nos braços do filho quase quebrou-lhe os ossos que ainda se encontravam intactos e sem perceber do peso que fazia próximo ao pescoço, ela nunca soube que ele não estava completamente morto quando ela chegou.
As lágrimas rolavam pelo seu rosto, seu marido ao lado fungava ao explicar o ocorrido para a emergência. Os olhos ainda se mantinham presos na garotinha que pouco a pouco ia desaparecendo por entre a viela estreita na qual eles moravam.
— Meninos levados vão para o inferno e pais relapsos morrem em vida. — Mais uma vez ela cantarolou. Agora sozinha caminhando por ali. A caixa arrastada ressoava um barulho inocente e seus olhos tristes deixavam a mostra uma garotinha solitária em plena noite de Natal.
Ela ganharia muito chocolate, aquele havia sido o seu pedido. Os brinquedos não possuíam mais graça e durante os anos, ela aprendera que brincar com crianças era muito mais legal. Havia aprimorado a costura e aquela seria sua nova diversão naquele ano.
Um arrepio interrompera o seu pensando quando ela percebera que havia deixado um garoto para lá. Talvez levasse uma bronca ao explicar seus motivos e ela não gostava muito de reclamações.
Alice, uma garotinha divertida e diabólica caminhava a passos cada vez mais apressados. Ela ia percebendo de acordo com as janelas e diversões em família que cada minuto que se passava a levava para a hora da ceia e ele era extremamente pontual.
Pouco a pouco ela fora caminhando até o primeiro bueiro que encontrou. Deixando a caixa de lado, ela retirou a fita envolta do seu pulso e com um certo cuidado, olhou para os lados, procurando por algum vestígio de alguém que pudesse estar espionando-a. Alice odiava encontrar-se com pessoas bisbilhoteiras e sempre possuía a autorização por finalizar vidas tão mesquinhas que se preocupavam com a vida alheia, mas quase nunca conseguia concluir missões como aquelas. Apesar de manter-se como a garotinha do papai, ela sabia que um ponto amoroso se mantinha vivo dentro do seu coração, caso ainda tivesse um.
Num único movimento, ela jogou-se no esgoto, trazendo a caixa consigo. Caindo em pé, ela logo percebeu que suas vestes mudaram de forma e seus cabelos sedosos logo voltaram a coloração normal e seu aspecto sujo. Seus poucos dentes se mostraram podres e seu rosto já não possuíra uma pele rosada e em perfeito estado.
A bonita e agradável caixa de Natal agora apresentava-se como um saco repleto por restos infantis de crianças que não conseguiram manter suas promessas.
Crianças que praticavam bullyng com outras crianças, aquelas que desrespeitavam seus pais. Mimados, esnobes, cruéis.
Alice girou o rosto para a sua lateral e encontrou mais alguns dos seus. Todos com vestes surradas e sorrisos rudes nos lábios. Crianças que em outrora haviam sido com aquelas que se encontravam nos sacos, más.
— Você conseguiu quantos hoje? — Um garotinho de cabelos cacheados questionara. Alice espiou o saco que ele carregava e diante um sorriso triunfante, dera de ombros. Aquele ano ela havia sido ainda melhor. Certamente conseguiria comer todos os chocolates que havia pedido de Natal e ainda costuraria as bonecas com peles humanas que havia descoberto saber fazer. — Você não tem coração?
— Só porque eu trouxe mais garotos do que você? — Ela revirou os olhos deixando-se sorrir. Os dentes a mostra foram evidenciados por uma sujeira e podridão que ela não se importara — Eu gosto muito de chocolate e do Natal.
— O Natal não significa nada para nós, você esqueceu? Só estamos na rua por que não conseguimos... — O garoto coçou o braço repleto por manchas vermelhas, fazendo careta logo em seguida. — Nós... Não tivemos sorte esse ano.
— Já tava na hora do dia de Natal ser nosso também, não só dele. — Alice dera de ombros aos sorrisos, seus olhos foram em direção ao garoto que ainda coçava seu braço — Isso é alergia? — Ela questionou assustada — Pensei que como nós... Eu não sabia que isso poderia acontecer.
— O que? — Um garoto maior do que eles, se aproximou e Alice, junto ao outro menino, recuou seu corpo, cambaleando até encostar-se na parede, diante olhos assustadores. — Nós não somos mortos-vivos. — Dando de ombros, ele puxou o saco da Alice para enfiar a cabeça dentro diante um sorriso debochado nos lábios. — Por que os dentes estão por todos os lados? — A sobrancelha erguida referenciava uma dúvida que pairava pelo ar e a garotinha tivera instantes angustiantes, antes de respondê-lo.
Ela sentia as pernas tremularem e ao trocar um olhar com o garoto que estivera ao seu lado, tão angustiado quanto ela, a garota julgou encontrar-se completamente absorta numa realidade em que o vestido esvoaçante ainda fazia parte da sua realidade.
Dando-lhe poderes nos quais ela conseguia machucar verdadeiramente garotos como aquele grandão que se julgava superior, talvez, por carregar diante uma lapela de casaco suja e ensanguentada, três broches de ossos que resultara na categorização de vencedor dos anos em que ele certamente competira ao trazer crianças mortas.
Negando com a cabeça, a garotinha fechou os olhos antes de voltar-se a ele, já deixando o medo de lado, ela direcionou seus passos até o garoto e depositando as mãos na cintura, o encarou.
— Eu gosto de brincar de bonecas. — Sua resposta fora dada no instante em que outras crianças iniciaram gritos, aguardando o mestre daquela noite, em especial. O garoto desviou os olhos dos seus e aos poucos, iniciou uma caminhada, afastando-se dela sem afirmar nada. Alice dera de ombros confusa, não fora fácil entender o motivo dele ter ido para longe, ela não havia dito nada demais, ou tinha? — Por que você acha que ele foi embora? — Além de você ser metade do tamanho dele e conseguir o dobro dele? Ou você ter dentes para colocar nas suas bonecas? Você é estranha. — Dando de ombros, o garoto ruivo afirmara.
Alice percebera que o menino havia comparado o saco dela ao seu, levando-a a revirar os olhos. Crianças más costumavam arrepender-se do mal feito aos seus entes terrenos, crianças como ela acreditavam que não sentir remorso por outras crianças assassinadas era como uma dádiva.
Ela havia sido chamada de estranha algumas vezes, poderia lembrar-se. Algumas das memórias ainda dançavam pela sua mente, antes de despedirem-se dela e irem embora como todas as outras que haviam corrido para longe. Ano após ano, diante cada uma das suas conquistas, Alice conseguia esquecer-se cada vez mais dos seus erros, ou em se tratando da sua auto- definição, acertos.
— Eu gosto de chocolate, sabia? — Alice comentara como um sussurro. O garoto magricela arregalou os olhos por um instante e logo voltou a normalidade, dando de ombros ao manter-se quieto dali em diante. — Eu troco uma coisa pela outra e ainda ganho umas coisinhas para as minhas bonecas.
Diante a espera por receber seus presentes, Alice iniciara a movimentação do corpo de um lado para o outro, seus olhos pousaram no vestido sem cor, no tecido rasgado e surrado, desejando que o movimento fluído que em outrora se tornara presente voltasse. Seus cabelos encontravam-se oleosos e sujos, o odor conseguia transpor até mesmo o cheiro dos mortos que já se mantinham empilhados nos sacos ao lado das crianças e ela desejara mais uma vez regressar a superfície somente para voltar a sentir-se viva.
Alice não desejou tecer mais nenhum comentário. A ansiedade já começava a invadir o seu corpo e a ideia de que faltavam poucos segundos até que pudesse expor todos os seus atributos ressoava como excitante e bastante envolvente.
A competitividade resultara numa grande motivação em encontrar-se no topo e quando o silêncio se tornara presente, ela percebeu que ele estava próximo de chegar.
Os sinos iniciaram um grande barulho e por instantes, Alice fechou os olhos recebendo uma calorosa recepção. Ela poderia imaginar as vestes tão surradas quanto as suas, os dentes extremamente assustadores, as grandes garras e os chifres repletos por mechas de cabelos que se moldavam diante o vento e a movimentação. Ele, certamente, viria por entre sorrisos, caso fosso possível observar. Algumas crianças já choravam baixinho, e quando ela voltou a abrir os olhos, uma grande parte dos novos recrutas encontravam-se encostados as paredes do esgoto, junto a podridão, com medo de tudo o que aquela imagem representava.
Krampus a recrutou num Natal no qual ela já não havia sido uma boa menina. No dia 05 de dezembro, Alice fora embora das pequenas ruas daquela cidadezinha para nunca mais voltar e diante as lembranças que iam embora a cada novo instante, ela conseguia entender o real sentido de tudo o que a mantinha ali.
Os sinos cessaram quando ele tocou com seus pés ao chão, aplausos e gritos foram escutados até mesmo pelos que fingiam que não estava acontecendo nada, repletos por medo.
Uma lenda ativamente exposta aos dias atuais, consiste num ser diabólico chamado Krampus, ele referenciava o oposto de tudo o que o Klaus trazia de mais belo no saco em toda véspera de Natal. Ele mantinha junto a ele, as crianças que não se comportavam bem. Analisava aquelas que consistiam dentro de si mesmas, sentimentos assustadores e até mesmo a falta deles.
Todo dia 05 de dezembro, uma lenda onde somente alguns acreditavam, mas que certamente, todos pagariam. As vielas se mantinham vazias diante a ideia de uma possível aparição dele e os anos nunca haviam sido suficientes para que as histórias horripilantes fossem esquecidas.
Ele cheirava a carne podre. Possuíra tal qual a ideia da Alice, um semblante divertido e diante seus olhos cristalinos que mudavam de cor de acordo com a época do ano, ele conseguia destruir sonhos daqueles que pecaram por bobagem.
— Boa noite, meus diabinhos. O que vocês me trouxeram hoje? — Com chifres na cabeça e dentes fora dos lábios, o demônio iniciou seu ritual. Ele rodopiou para o lado, dando alguns passos para frente, mexeu os quadris divertido, ao som de gritos e assovios, reverenciando aqueles que o exaltavam, mantendo viva a sua história. Repleto por sorrisos, iluminando o esgoto de péssimo cheiro no qual as crianças se encontravam, o grande saco que ele tinha ao lado do corpo fizera algumas crianças romperem em aplausos e sorrisos ainda mais altos, mas Alice nada disse.
Ela recebeu o seu olhar e quando ele piscara um olho, ela soubera que havia conseguido todos os presentes que havia pedido.
Seu coração bateu forte e ela sorriu divertida, aquele trabalho era o melhor do mundo e ela sentia-se muito sortuda por conseguir tudo o que sempre queria — Crianças malvadas vão para o inferno — Ela cantarolou baixinho, repetindo os passos dados por Krampus com bastante sintonia.
Afinal de contas, não existia problema algum em trocar uma criança por um doce.


Fim



Nota da autora: E AÍ, PESSOAL! Lá vem Vanvis inventando moda sem amorzinho no Natal. HAHAHAHA Tô meio insegura com a história, principalmente pelo teor abordado, mas espero que vocês gostem mesmo assim! Um FELIZ NATAL para todos vocês e não esqueçam de serem boas crianças HAHAHAHA



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