A verdade sobre Valgt-Avvist
PARTE UM
Eu achava que o pior que poderia acontecer na Seleção fosse receber uma carta com um gigante rejeitado no topo. Não era exatamente comum jovens do setor 10 irem e nunca mais voltarem, justamente por que raramente havia algum selecionado por aqui. Há um mês eu já tinha saído dessa casa pronta para ver todos de volta, porque tinha certeza de que seria rejeitada, como todos eram.
Mas não esperava que não fosse ver minha mãe. Sika estava muito triste quando cheguei, e percebi que tinha algo errado assim que coloquei meus olhos nos da minha irmã mais nova. Depois do susto, Sika e meu melhor amigo Maroon, também rejeitado, me consolaram, dizendo que a curandeira tinha feito absolutamente tudo que podia.
Minha mãe tinha morrido por causa de uma gripe muito forte. Eu sabia que em Valgt, ou até em setores mais próximos a capital, um simples remédio teria sido capaz de salvá-la, mas em Avvist os poucos remédios que tinham eram controlados e mesmo se chegasse algum no meu setor não adiantaria nada, porque eram caríssimos. Minha mãe morreu acreditando que eu seria a primeira selecionada da família e, mesmo que eu já soubesse que não seria, me senti triste, como se a estivesse decepcionando.
Avvist era dividida em dez setores. Quanto maior o número, mais distante da capital e mais difícil passar na Seleção. A Seleção era injusta e constantemente favorecia jovens dos primeiros 4 setores e é por isso que, mesmo que estes vivessem fora de Valgt, ainda viviam bem. Do sexto setor para cima, começavam os sérios problemas de fome, moradia e violência.
Valgt era a capital, a cidade dos selecionados.
Aprendíamos na escola sobre a fundação de Valgt e o motivo pelo qual não podíamos ir todos para lá. Quando eu era criança costumava acreditar nisso, mas agora simplesmente não achava justo. Roubar e matar, por exemplo, era proibido em Valgt, e a pena era expulsão. E adivinha onde descartavam o meliante? Sim, nos setores mais afastados possíveis da capital. Bem onde eu estava.
— Não fica chateada. – Disse Maroon atrás de mim, provavelmente porque eu não parava de ler minha avaliação final da Seleção. – Aposto que eles não te mereciam.
Ri, sem humor.
— Você não está ajudando. – Comentei, guardando o papel de qualquer jeito na gaveta a minha frente.
Levantei da cadeira, analisando meu amigo.
— Você fez algum amigo lá? – Perguntei, de repente.
Os olhos de Maroon se assombraram, ele não gostava muito de falar sobre a Seleção dele.
— Sim. Ele era do seis.
— E o que aconteceu?
Maroon bufou.
— Foi selecionado.
Assenti, sabendo o que ele estava passando.
— Também fiz uma amiga. Sylvie. Ela foi selecionada. Ela era do dez!
Maroon arregalou os olhos, claramente impressionado.
— Alguns tem sorte.
— Ela não teve sorte, era muito boa. Foi a melhor mecânica da turma, isso deve ter dado pontos a ela.
A questão é que falar de Sylvie me acalmava. Eu era a única dez da Seleção que havia passado da primeira semana e quase sempre era ameaçada de morte. Sylvie sempre me defendia, mesmo quando não sabia a circunstância das ameaças. Mesmo sentindo falta dela, sei que ela teve o que merecia. Era uma boa pessoa.
— Oi, . – Falou Sika baixinho, lutando para subir no meu colo. Abaixei-me para segurá-la.
— Como você está? – Perguntei a ela. Sika fez uma carinha que me deu pena. — Só cansada. – Respondeu, séria, pulando no chão de novo.
Não devia ser normal ter uma face tão séria na idade dela. Crianças tinham que ter cara de criança. Me sentia péssima quando notava que no 10 éramos obrigados a amadurecer muito antes da hora, principalmente porque a maior parte dos jovens ficavam órfãos antes dos vinte.
Maroon afagou meu ombro, me deixando sozinha no quarto outra vez. Ele também era órfão, há muito mais tempo que eu, e fiquei me perguntando se ele não queria se mudar para minha casa logo de uma vez. Podíamos cuidar um do outro. Era o que sempre fazíamos.
Estava decidida a passar meu luto de forma mais natural possível. Saí do meu quarto e parei na cozinha, onde me deparei com duas maças podres e um pacote de ração ainda dentro da validade. Como tinha acabado de voltar da Seleção, decidi que Sika precisava mais daquilo do que eu, então ignorei minha fome e fui até o banheiro tomar um banho, também ignorando a água gelada com a qual eu não estava mais acostumada. Durante a Seleção tínhamos água quente e alimentos frescos e esqueci de treinar a mim mesma e não me acostumar com aquilo.
Sabendo que Maroon estava com Sika, permiti a mim mesma dormir depois do banho.
Tinha sido um longo dia e eu estava exausta.
PARTE DOIS
O Centro estava cheio hoje e achava que não seria possível ver tantos jovens juntos antes. Coloquei minha touca sobre a cabeça, mesmo que a temperatura nunca passasse de vinte e dois graus. Fui me distanciando do Centro e indo em direção as residências mais próximas ao litoral, que era onde eu morava. Já estava escuro, mas já tinha me acostumado a não me preocupar com isso: a incidência de violência em Valgt eram quase nulas. As ruas eram arbóreas e floridas e, como não tinha nenhum parente em Valgt, havia ganhado meu próprio quarto, no Alojamento dos Órfãos. É verdade que o nome era bem ruim e jogava na cara tudo que eu não tinha, mas em defesa deles, não tinham como saber que a injeção não tinha funcionado comigo.
Vivo fingindo. Vertindo minha tristeza em uma felicidade falsa. Risadas falsas, amigos falsos e até memórias falsas, nada na minha vida parece ter sido real, o que me frustra.
Lembro-me de quando fui selecionado, há quatro anos atrás. Durante a Seleção era normal que fizéssemos aliança. Quando você misturava jovens dos dez setores do país era impossível que não houvesse rixas, e as alianças protegiam você disso. No passado era comum mortes a candidatos que se mostravam ser os preferidos dos avaliadores, mas isso deixou de acontecer quando implantaram uma câmera inteligente por todo o local. De qualquer forma, ainda era muito ruim quando você se mostrava muito bom em algo, as pessoas te marcavam. Mesmo sendo muito bom em elétrica, tentava nunca ficar em primeiro lugar. Cometia, de propósito, erros simples que me deixassem em segundo ou terceiro lugar sempre que podia. Sempre me alertaram sobre os perigos e sempre dei ouvidos, por isso levei a sério essa história de fazer aliados. A única do meu grupo que tinha sido selecionada comigo foi Saluz, uma dois. Saluz era divertida, companheira e sincera, e lembro que fiquei aliviado quando percebi que teria companhia naquela cidade.
Mesmo que Saluz não passasse necessidade, não vou dizer que ela não merecia estar ali, ainda que conhecesse pessoas que eu sei que tiveram pontuações muito melhores e foram mandadas de volta para casa. A culpa não era dela, a Seleção é que não era justa e pronto.
Por ser um antigo residente do setor 6, sentia-me sortudo por ter conseguido passar, mas não me senti assim por muito tempo.
Logo depois da aprovação, fui transportado para uma aeronave, que me deixou no Centro de Boas Vindas aos Selecionados. Tomei remédios, vacinas, fui alimentado, polido e arrumado. Estava no mesmo grupo de Saluz e muito jovens fizeram uma grande fila, em uma parede branca e limpa. Eu era o último dessa fila e apenas Saluz estava na minha frente, quando eu vi para o que a fila servia. Assim que eu cheguei perto o suficiente para ver o que estavam fazendo com Saluz, me assustei. Ela estava deitada em uma maca, com a cara para baixo. Havia uma pistola do tamanho do meu braço que injetou nela algo pequeno e brilhante, o que a deixou um pouco feliz demais. Fiquei com medo, mas a enfermeira me acalmou. Nem por isso experimentei a felicidade de Saluz.
Conforme os dias se passaram, fui notando a mudança de comportamento nela e nos outros. Estavam felizes demais, despreocupados demais. A comida era farta e limpa. Descobri que as sobras eram enviadas para os setores e eles nem se abalavam. Diziam que era normal e “vem aqui, volte a dançar! ”. Foi então que concluí: a injeção continha algum tipo de felicidade genérica.
Em Valgt ninguém trabalhava, porque não era necessário. Tinham os dez setores do país trabalhando para fornecer tudo que a gente precisava. Então todos os dias eram sábado e graças a injeção, ninguém percebia que vivia os mesmos dias todos os dias. Eu já estava cansado daquilo.
Durante o primeiro ano, eu apenas observei. As injeções eram aplicadas anualmente, e não funcionavam comigo. Nos últimos três anos elaborei meu plano de fuga, que consistia em fugir de Valgt e levar Saluz junto. Não conseguia pensar em uma maneira de deixa-la viver essa vida de mentira. Pesquisei, de forma escondida, várias vezes, pessoas que pudessem ter uma história semelhante, mas a única pista que eu tinha, já que voltar para Avvist não era uma opção, era uma ilha ilegal construída depois da praia de Valhalla. Para chegar até lá, teria que sair de Valgt e passar por uma fronteira do setor 2. A última fase do plano era livrar Saluz do ponto de felicidade. Consegui tirar o pequeno protótipo da minha nuca sozinho três vezes com sucesso, por isso eu sabia que conseguiria tirar dela também.
Quando cheguei em meu alojamento, apertei o número do meu andar e subi rapidamente. Tinha combinado com Saluz que ela deveria me encontrar aqui, e ela sempre fazia tudo que todo mundo mandava. Uma vez que a violência quase não existia, era extremamente mal-educado trancar as portas, por isso não me assustei quando vi minha amiga sentada na minha cama, com o controle da TV na mão.
— Oi, ! – Gritou, vindo me abraçar. – O Centro estava tão legal hoje, não estava? Não estava?
— Oi, Saluz! – Cumprimentei, forçando minha voz a ficar mais animada. – Eu amei o Centro hoje. Tinha uma loja nova.
— De pisca pisca, cara! – Ela completou, batendo palma. – Estou doida para ter aquele pisca pisca na janela do meu quarto.
— É, bem legal. – Falei, tirando a mistura que eu tinha feito da mochila. Não era nada demais, só faria ela dormir e não sentir dor enquanto eu removia o protótipo. – Bebe, comprei lá!
Infelizmente a injeção também tirava seu senso de medo e implantava uma obediência ingênua e só por isso Saluz deu de ombros e bebeu o que eu tinha dado a ela sem questionar.
— O que tem aq...
Suspirei, segurando o corpo desmaiado de Saluz e a conduzindo para minha cama. Coloquei ela de costas e limpei todas as ferramentas necessárias para que ela não tivesse uma infecção ou algo do tipo.
Eu sabia que era arriscado. Se Saluz não quisesse ser salva, iria alardear as autoridades e sabe-se lá o que fariam comigo quando descobrissem que a minha injeção não funcionava. Por outro lado, mesmo que ela quisesse, nada me garantia que o efeito da injeção passaria assim que eu a livrasse daquele objeto.
Com muito cuidado, cortei uma pequena parte de sua pele, e com uma pinça, pesquei o objeto. A dose mais recente tinha acontecido há quase doze meses atrás, por isso eu tinha esperanças de que seu efeito já estivesse se cessando. Depois de guardar o aparelho, dei dois pontos no ferimento na nuca dela e protegi com uma gaze que tinha furtado na farmácia quando a vendedora não estava olhando. Eu não teria que pagar se tivesse pego quando ela estava olhando, mas iria precisar explicar para o que queria a gaze, e era melhor eu não envolver ninguém nisso.
Depois que concluí que estava tudo pronto, arrumei Saluz para que ficasse confortável e decidi tomar um banho antes que ela acordasse.
E eu estava torcendo para que ela ficasse ao meu lado quando isso acontecesse ou então eu já tinha meus dias contados.
PARTE TRÊS
Acordei com Maroon me cutucando. Sentei-me na cama zonza de sono, podendo ver pela janela que ainda era de manhã e que Sika dormia tranquilamente na cama ao lado.
— O que foi? – Perguntei, com a voz rouca.
— Vem comigo. – Falou, me ajudando a sair da cama.
Notei que ele tinha um chumaço de papéis na mão e os colocou em cima da pequena mesa da cozinha. Não tínhamos energia elétrica, e como ainda estava escuro, acendi três velas e as coloquei em cima da mesa.
— O que houve?
Maroon sorriu, apontando as folhas, e notei que eram mapas.
— Vamos fugir.
Arregalei os olhos, nervosa.
— Para onde?
Ele me olhou como se eu fosse doente.
— Para Valgt, é claro.
Tive que reprimir um sorriso.
— Você ficou maluco? – Falei, baixinho para que Sika não acordasse. – Mal chegaríamos ao setor 7.
— Mas nós vamos pelo 5. – Contestou, apontando no mapa.
— Pior ainda!
Maroon me olhava com paciência e pude perceber que era algo que ele planejava a muito tempo, pelo modo como parecia ter respostas para tudo. Sentou-se na cadeira, empurrando o velho mapa em minha direção.
— Presta atenção. – Pediu. – A maioria das pessoas são apreendidas porque querem invadir Valgt entrando pela fronteira do setor 7. Por isso a vigilância é mais alta nessa parte.
— E como nós seríamos mais inteligentes que isso?
Maroon apontou uma trilha.
— Nós iremos entrar em Valgt pela floresta. – Apontou. – Seguiremos a norte, sentido setor 5, depois atravessamos o 4 e continuaremos a leste até chegarmos no setor 2. E você se lembra o que o setor 2 comercia, certo?
— Sim, peixe.
Ele bateu na mesa.
— A gente vai se infiltrar em um barco de pesca e atravessar a fronteira não do setor 2, e sim de Valhalla. – Parecia um bom plano, sem contar que o porto de Valhalla não era tão vigiado.
— Então a gente vai entrar em Valgt pelo porto? – Perguntei, de repente animada com o plano.
— Isso!
Olhei para o mapa e para a trilha enorme desenhada.
— Vamos atravessar três fronteiras. Vai ser perigoso. – Ele concordou. – E lento, porque temos a Sika.
Sika era até que bem desenvolvida para os seus seis anos, mas ainda era criança.
— Estimo que a gente chegue no setor 2 em duas semanas. Ou mais.
Bufei.
— É isso ou morrer de fome. Não temos escolha. – Não sabia se estava dizendo isso para Maroon ou para mim mesma.
Não podia ser tão fácil assim viver em Valgt ilegalmente sem ser identificada. Mas estava disposta a arriscar se isso desse a mim e a minha irmã a chance de ter uma vida melhor.
— Você acha que estou sendo egoísta, Maroon? – Questionei, ao pensar em Sika. – Privando minha irmã de sua própria Seleção? Quer dizer, e se ela der sorte?
Maroon me olhou sério.
— E você acha que vai estar viva daqui doze anos para saber?
Olhei para baixo, ele tinha razão.
Resolvemos voltar a dormir e que no dia seguinte iríamos nos preparar para a longa viagem. O pior que poderia acontecer se fôssemos pegos era voltarmos para o lugar de onde tínhamos saído. Eu estava tão desesperada para sobreviver que acreditava no impossível.
Era o futuro de Sika que me preocupava.
Estávamos há três semanas na floresta e faziam cinco dias que tentávamos atravessar a fronteira do setor 4 para o setor 2. Havia um guarda que ficava fazendo sua vigia por dez horas, depois vinha outro e ficavam mais quatro horas juntos e por fim o primeiro ia embora e o segundo ficava por mais dez horas até ser substituído de novo. Sika estava com febre há muitos dias, e Maroon e eu suspeitávamos que tinha pego algo na floresta.
— Como ela está? – Disse Maroon, voltando de mais uma ronda.
— Ainda está com febre. – Respondi, encostando as costas da minha mão na testa dela. – Eles ainda estão lá?
Maroon bufou.
— Sim. Cada vez mais atentos. Acho que foram notificados de uma fuga do setor cinco.
Congelei no lugar, me lembrando das circunstâncias com as quais Maroon, Sika e eu conseguimos fugir do setor 5. Envolvia um carro explodido e furto de alimentos.
— Maroon, se a gente não fazer alguma coisa, vão nos descobrir aqui mais cedo ou mais tarde. – Diminui o som da minha voz. – E Sika está doente!
Meu amigo me encarou e em seguida fez um cafuné na cabeça de Sika, que mal conseguia manter os olhos abertos.
— A troca de turno mais falha acontece à noite. Podemos usar isso.
— Como? – Quis saber.
— Podemos repetir o que fizemos no setor cinco.
Suspirei.
— Vão usar isso como nosso modus operandi e finalmente saberão o nosso destino!
Maroon chacoalhou a cabeça.
— Não temos escolha, !
Depois de muito debater, acabei concordando com ele. Estava sem comer há dois dias, mas Maroon havia comido pela última vez a muito mais tempo que eu. Minha cabeça doía de fome e eu estava tão suja que quase não aguentava meu próprio cheiro.
Maroon e eu tínhamos encontrado uma caverna vazia para nos abrigarmos até decidirmos os próximos passos e de vez em quando eu conseguia ouvir o rio que corria não muito longe daqui.
Enquanto a hora não passava, deitei a cabeça de Sika na minha mochila e fui para a entrada da caverna. Estava anoitecendo e as árvores pareciam estar derramadas, aproveitando os últimos raios de sol do dia. Vi alguns roedores ao meu redor, mas nada que me assustasse. Sentei-me no chão e apoiei meus braços nos joelhos, chateada pela situação em que me encontrava. Muitas coisas tinham dado errado nessa viagem maluca e mesmo que tenha chegado tão longe, ficava me perguntando se algum dia iríamos ver Valgt. Devia ser mais fácil viver por lá. Não precisar pagar por remédios, por alimentos, nunca mais trabalhar, ter energia elétrica e água quente para os dias frios e jamais se preocupar com nada na vida, nunca mais. As pessoas de Valgt sempre me pareceram muito animadas e depois que tive esse pensamento, ri de mim mesma. Se eu não tivesse que me preocupar nunca mais na vida, com certeza viveria animada para sempre.
— Está na hora. – Disse Maroon. – Acorde Sika, coloque a mochila nas suas costas e corre.
— Onde te espero?
Maroon sacudiu a cabeça.
— Você não espera. Você corre e não olha para trás. – Orientou. – , você me ouviu?
— Eu não vou sem você! – Protestei.
— Não se preocupe comigo. – Tentou me acalmar, apertando meus ombros de leve e depositando um beijo em minha testa. – Eu encontrarei vocês.
Faltavam vinte minutos para a troca de guardas quando Maroon saiu da caverna. Com muita calma acordei Sika, que para o meu alívio parecia bem melhor.
— Eu preciso te pedir um favor, Sika.
— O que? – Questionou, coçando os olhos com as mãos.
— Preciso que você seja uma garota forte. Preciso que quando eu te pedir, você corra.
Sika arregalou seus grandes olhos escuros.
— E você?
— Estarei correndo bem ao seu lado. – Disse. – Podemos correr de mãos dadas se quiser. Eu só não consigo correr com você no colo, por isso eu preciso da sua ajuda.
Sika se levantou conforme podia. Mesmo tão nova, ela com certeza já sabia que nos encontrávamos em uma situação bem séria. Assisti minha irmã mais nova amarrar seus sapatos para que não tropeçasse nos cadarços enquanto corria e mesmo que desse para notar o esforço que aquilo custava, Sika também prendeu os cabelos no alto. Bebeu o resto de sua água no cantil, de um córrego que tínhamos encontrado seis dias atrás, e sorriu para mim.
— Vai dar certo, . – Falou. – A gente vai chegar em Valgt.
Assenti, segurando a mão dela e saindo da caverna. Estava o mais próxima da fronteira que eu podia sem ser vista pelo guarda que estava observando de cima. A cancela estava vazia, eu tinha poucos minutos para atravessar a campina e passar pela cancela antes de o guarda perceber. Do outro lado eu já sabia que nada havia. Eles estavam preocupados com quem entrava, não ligavam muito para quem saía. Estava com Sika abaixada em uma moita quando recebi o sinal de Maroon do lado oposto onde eu estava.
Como prevemos, deu certo. Alarmado pelo incêndio, o segurança desceu da guarita e eu olhei para Sika.
— Corre!
Ela segurou na minha mão com força e correu o máximo que podia. Coloquei na minha cabeça que eu tinha o direito de fazer aquilo, que não era justo os setores marginais estarem passando fome e que eu estava certa. Queria uma vida melhor para mim e para minha irmã, a pessoa que eu amava mais que tudo no mundo, e torcia para não me odiar quando crescesse e percebesse que não poderia participar de uma Seleção porque era foragida desde os seus seis anos. Sei que algumas lágrimas caíram enquanto eu corria, mas não parei. Eu estava seguindo exatamente o que Maroon tinha me orientado e quando estava quase chegando na cancela, cometi o erro de olhar para trás.
— Maroon! – Gritei, sem pensar, quando o vi coberto de fogo.
Mais lágrimas vinham ao meu rosto e, sendo instinto ou não, consegui me abaixar e atravessar a cancela antes que o guarda me visse. Ainda via o fogo no céu escuro e não fazia ideia do que tinha acontecido com Maroon. Não tinha como arriscar agora que eu era a única que poderia cuidar de Sika.
Uma vez no território do setor 2, Sika e eu nos escondemos para passar a noite e esperar Maroon. Eu disse a ela que tinha sido muito corajosa e que estava orgulhosa, e a pobre garota caiu de sono assim que encostou a cabeça no meu colo. Me apoiei no tronco da árvore onde estava, torcendo para ter visto uma miragem e que meu amigo voltasse logo.
Mas desde o momento que fechei meus olhos até o momento que os abri na manhã seguinte, ainda continuava sozinha com Sika na floresta.
E estava perdida.
PARTE QUATRO
Saluz continuou reclamando por mais um tempo, mas consegui bloquear as reclamações depois de um certo período. Eu a adorava. Ela era uma das pessoas mais importantes do mundo para mim. Só que tudo tinha limite.
A injeção parou de fazer efeito no momento que ela acordou, há três semanas atrás. Ela não fazia ideia de onde estava e me disse que sua última lembrança foi de estar na fila, no dia da Aprovação. Quando contei que já se faziam quatro anos, Saluz chorou – e eu nunca a tinha visto chorar antes.
Expliquei meus planos e o risco em que me envolvi ao também envolver ela, mas a garota parecia tão brava quando descobriu o que realmente era a seleção que nem hesitou quando concordou com meu plano de fuga.
Repassamos o plano muitas vezes, simulamos muitos resultados diferentes para diversas situações. Estocamos comida, água, remédios, curativos e tudo que pudéssemos precisar na floresta. Tínhamos perdido uma das mochilas no córrego dois dias atrás, mas por sorte ainda tínhamos a minha, que estava razoavelmente abastecida. Calculava que tínhamos sete dias de provisões antes que as coisas começassem a ficar realmente mal.
Saluz e eu estávamos andando para leste, em direção ao porto de Valhalla quando ouvimos um grito.
— Tem alguém tentando passar na fronteira. – Disse Saluz, solidária.
— Não podemos desviar do nosso caminho! – Reforcei, quando ela mencionou que queria ajudar.
— Pode ser alguém com a mesma dificuldade que a nossa! – Tentou me convencer, segurando meu ombro. – O antigo faria isso.
Quando olhei para Saluz, ela sorria.
— Droga, Saluz. – Xinguei, me virando em direção ao grito. – Se a gente for pego eu vou matar você!
— Vou anotar! – Gritou, conforme corria para me alcançar. – Olha, fumaça!
Olhei na direção que ela apontou, e pela cancela da guarita dava para ver muita fumaça saindo de uma das moitas.
— O guarda vai ver a gente saindo.
Saluz tocou meu braço.
— Atravessa. Eu cuido do guarda.
Dei um voto de confiança para Saluz e atravessei a cancela, indo até o foco da fumaça. Quando cheguei ao local só encontrei muito mato queimado, mas quando já estava quase desistindo, ouvi um gemido.
Fui seguindo o som e quando encontrei onde ele ficava mais alto, corri. Devo ter corrido por mais de um minuto até encontrar a pessoa, com queimaduras sérias e muito machucado.
— A..juda. – Ele murmurava. – A..juda... ela.
Era um rapaz. Devia ter mais ou menos minha idade, e estava deitado próximo ao rio. Devia ter corrido para lá depois de pegar fogo, considerando suas roupas molhadas, mas provavelmente não conseguiu fazer muita coisa depois de se lavar.
Por sorte, eu e Saluz tínhamos nos preparado para essa eventualidade. Tirei minha mochila das costas, procurando pelo bálsamo que eu tinha certeza de ter colocado ali. Quando o encontrei fui até o rapaz no leito do rio, e pelo menos estava acordado.
— Ei. – Falei. – Você está muito machucado. Vou passar isso em você, ok? – Apontei para o bálsamo.
O rapaz disse algo que não entendi, mas não iria deixar ninguém morrer na minha frente. Passei a pomada onde estava mais crítico e em seguida dei a ele uma pílula e um pouco de água. Em cinco minutos o cara recobrou a consciência e sua pele já estava muito melhor.
— . – Foi a primeira coisa que ele disse, se sentando.
Olhei para ele, confuso.
— É seu nome?
O estranho conseguiu rir.
— Preciso achar . – Falou, levantando-se. – Obrigado por me salvar, serei eternamente grato.
— Disponha.
— Meu nome é Maroon.
— Anda, Maroon, acho que Saluz não vai aguentar a guarita sozinha por muito tempo. – Disse a ele já correndo, quando percebi que Saluz estava sozinha a tempo demais.
Mesmo ainda ferido, Maroon me seguiu. Quando chegamos a cancela, porém, Saluz estava radiante esperando do lado de dentro.
Sorri para ela.
— O que você fez?
Ela me cutucou, marota.
— Digamos que ele vai ficar no banheiro por um tempinho. – Explicou, mostrando uma planta em seus dedos. – Essa é a sefina loustra. Tinha um monte perto de casa e é muito usada para intestino preso pelas pessoas mais idosas.
Em seguida seus olhos esbarraram em Maroon e de confusos passaram para reconhecimento.
— Maroon! – Gritou, indo abraça-lo. – Achei que nunca mais fôssemos nos ver!
— Saluz? – Disse o cara, e quando olhou para mim, pareceu ter me reconhecido também. – ?
Finalmente me lembrei. Ele era um dos únicos dez da Seleção e foi um dos melhores amigos que tive naquele mês. Fiquei triste quando ele foi rejeitado porque realmente achava que ele merecia Valgt. Agora, porém, a luz de recentes descobertas, me perguntava se ele não ficou melhor em Avvist mesmo.
— Não acredito que não me lembrei. – Falei, indo até ele.
— Com essas queimaduras deve ser difícil mesmo. – Disse, rindo.
Andamos em direção ao porto de Valhalla, e Maroon já havia nos orientado sobre as garotas que ele estava procurando: , e a irmã mais nova, Sika.
— Ela não sabia o caminho, então não deve estar muito longe. – Ele disse, conforme avançávamos na floresta. – E além do mais, Sika está doente, o que as atrasa.
Eu não tinha reclamado de ajudar a encontrar as meninas. Mesmo que não fosse do tipo que deixa garotas perdidas na floresta, estávamos indo para a direção que eu já precisava ir, então não custava nada ajudar. Maroon e Saluz, depois de pouco mais de duas horas de caminhada, decidiram sentar-se em uma sombra para descansar e eu fiquei fazendo ronda. Depois de duas voltas, ouvi um barulho vindo de uma das moitas. Sem pensar, me enfiei no meio dela, sendo recebido com um grito.
Foi então que um grosso galho acertou minha testa e tudo ficou escuro.
PARTE CINCO
— A culpa não é minha se ele me assustou! – Defendi-me quando Maroon apareceu na clareira acompanhado de outra garota.
— ! – Exclamou, quando viu o amigo desmaiado no chão. Em seguida sorriu para mim. – Estou querendo fazer isso faz umas semanas. Nada que ele não mereça.
Eu não sabia se saia correndo ou sorria de volta então preferi só assentir.
— Certo. – Falei. – Meu nome é .
Maroon foi tentar acordar o garoto desmaiado e a garota segurou minha mão.
— Ah, eu sei! Estamos te procurando há um tempão. Pode me chamar de Saluz. – Ela se abaixou e ficou de joelhos para ficar da altura de Sika. – E você deve ser a Sika, certo?
Sika concordou com a cabeça. Saluz pegou a mochila que estava no chão e tirou de lá um pequeno frasco e em seguida olhou para mim.
— Maroon disse que ela estava doente. Acho que esse frasco deve ajudar.
Segurei o pequeno frasco transparente, tirando de lá uma pílula azul. Segurei as lágrimas, pensando que apenas um daquele teria sido o suficiente para salvar minha mãe. As pessoas de Valgt tinham tudo que podiam, não era justo que nenhum setor de Avizza tivesse a quantidade de remédios que precisávamos. Mas então me toquei do que estava segurando.
— Onde arrumou isso? – Questionei Saluz.
Só depois pude fazer uma análise completa da sua condição. Como nós ela parecia estar no meio do mato há vários dias, suas roupas e cabelos estavam sujos, mas não parecia desidratada e nem com fome. Mesmo sujas, suas vestimentas sugeriam uma vida boa, e não trapos como os que estávamos usando.
Ela era uma selecionada. O que estava fazendo na fronteira do setor 2?
— Agora seria uma boa hora para me pedir desculpas. – Interrompeu o rapaz que eu acertei, . Ele parecia ter a idade de Maroon e era muito bonito. Parecia até mais limpo que Saluz, mas sem dúvida estava mais cansado.
— Me desculpe. – Pedi, sinceramente.
cruzou os braços, olhando para Maroon.
— Você já se decidiu? – Perguntou, mas os olhos de Maroon estavam me encarando.
— Conte para ela. – Pediu meu amigo.
e Saluz se entreolharam, e o rapaz bonito chegou mais perto de mim.
— Olha, . – Falou, sereno. – Eu sei que você vai ficar confusa e achar que estamos reclamando de barriga cheia mas... não vão para Valgt. Venham conosco.
— Porque eu não iria para Valgt? – Questionei, já com lágrimas nos olhos. Minha irmã quase tinha morrido nessa viagem, eu não poderia simplesmente voltar para casa. – Em Valgt tem absolutamente tudo que eu preciso.
Saluz olhou para o chão, e suspirou, triste.
— Valgt não existe, . – Respondeu ele. – É verdade que as pessoas não passam fome, frio e sede, tem roupas legais e não precisam trabalhar. Mas quando você é selecionado você deixa de existir.
— Como?
Saluz segurou minha mão, e em seguida afastou os cabelos, mostrando uma cicatriz bem recente na nuca.
— Antes de me despertar, eu recebia uma injeção que retirava todo meu livre arbítrio. – Explicou, soltando os cabelos novamente. – Eu passava o dia dançando e bebendo, obedecia qualquer um que me desse ordens e nunca me preocupava com nada. Era uma vida vazia, . Nada nunca acontecia. Quando somos selecionados, ganhamos o prêmio de viver todos os dias os mesmos dias. Eu perdi quatro anos da minha memória e não me lembro de nada que aconteceu em Valgt até tirar a injeção de mim.
Estava abalada com a revelação sobre a cidade que tanto sonhava em viver. Onde achava que seria a solução dos meus problemas.
— A verdade é que vivemos em uma bolha. – Continuou Saluz, chateada. – Uma bolha de felicidade contínua e despreocupada. Como perfeitos zumbis bêbados.
— Valgt é uma utopia. – Falou . – As pessoas que estão lá são experimentos. Escolhem os melhores cidadãos e os colocam para conviver em um grande espaço. Não tenho certeza sobre como isso acontece, mas estão tentando alguma forma avança de atingir a paz mundial e felicidade entre os povos. A vida real acontece aqui, em Avvist. Em todos os setores.
Ainda sem saber direito o que fazer, decidi que iria acreditar naqueles estranhos, porque Maroon parecia acreditar e eu confiava em Maroon. Ele nunca faria nada que pudesse prejudicar a mim ou a Sika.
— E para onde estão indo? – Questionei, insegura, apertando o ombro de Sika junto a minha cintura.
Saluz sorriu, mas foi quem respondeu.
— Estamos procurando uma ilha próxima a Valhalla. Não o porto, a praia.
Fiquei confusa.
— Porque tiveram que sair de Valgt para isso?
— As fronteiras ao redor da praia tem limites. – Foi Maroon que respondeu, olhando no mapa portátil. – A ilha que procuramos fica fora dos limites de Valgt.
— E de Avvist. – Completou Saluz.
— As Terras de Ninguém. – Murmurei, me lembrando de ter ouvido sobre isso em alguma aula.
— Isso mesmo. – disse, aprovando. – Estamos indo para Terras de Ninguém, mas procuramos especificamente a Ilha dos Perdidos. Me disseram que tem uma comunidade lá. Uma comunidade que cuida dos cidadãos perdidos de Valgt-Avvist.
E no instante seguinte, todo nosso grupo se encheu de esperança. Retirei uma pílula do frasco que ainda segurava e dei para Sika, a esperando que ela ficasse boa logo. Resolvemos passar a noite ali, onde nos achávamos seguros.
Descobri que Saluz e eram amigos de Maroon durante sua Seleção, e os três passaram boa parte da noite me divertindo com histórias sobre as provas e as avaliações especiais. Sika havia dormido assim que tomara a pílula, mas acordou bem melhor e, para o alívio de todos, sem febre e muito mais disposta.
Eu tinha saído de casa com um objetivo: entrar em Valgt e ter chance de ter uma vida melhor. Agora que eu sabia que era tudo uma mentira, e que as maravilhas da capital não passavam de histórias, estava ansiosa embarcando nessa jornada com Maroon e meus novos companheiros. Era uma viagem às cegas, não sabíamos para onde tínhamos que ir e nem se daria certo, não sabíamos sequer o que, de fato, encontraríamos na Ilha dos Perdidos.
Mas se tinha uma coisa que eu sabia, era que eu queria expor a verdade sobre Valgt. Eu queria salvar as pessoas assim como tinha salvo Saluz. Ainda tínhamos muito que aprender sobre a Seleção, a injeção e suas consequências, mas nós iríamos descobrir.
Fazia dessa minha missão real para o resto da minha pelo mesmo objetivo com o qual saí de casa: uma vida melhor.
Estava falando de um mundo melhor para todos que ficassem ali depois de nós.
Eu achava que o pior que poderia acontecer na Seleção fosse receber uma carta com um gigante rejeitado no topo. Não era exatamente comum jovens do setor 10 irem e nunca mais voltarem, justamente por que raramente havia algum selecionado por aqui. Há um mês eu já tinha saído dessa casa pronta para ver todos de volta, porque tinha certeza de que seria rejeitada, como todos eram.
Mas não esperava que não fosse ver minha mãe. Sika estava muito triste quando cheguei, e percebi que tinha algo errado assim que coloquei meus olhos nos da minha irmã mais nova. Depois do susto, Sika e meu melhor amigo Maroon, também rejeitado, me consolaram, dizendo que a curandeira tinha feito absolutamente tudo que podia.
Minha mãe tinha morrido por causa de uma gripe muito forte. Eu sabia que em Valgt, ou até em setores mais próximos a capital, um simples remédio teria sido capaz de salvá-la, mas em Avvist os poucos remédios que tinham eram controlados e mesmo se chegasse algum no meu setor não adiantaria nada, porque eram caríssimos. Minha mãe morreu acreditando que eu seria a primeira selecionada da família e, mesmo que eu já soubesse que não seria, me senti triste, como se a estivesse decepcionando.
Avvist era dividida em dez setores. Quanto maior o número, mais distante da capital e mais difícil passar na Seleção. A Seleção era injusta e constantemente favorecia jovens dos primeiros 4 setores e é por isso que, mesmo que estes vivessem fora de Valgt, ainda viviam bem. Do sexto setor para cima, começavam os sérios problemas de fome, moradia e violência.
Valgt era a capital, a cidade dos selecionados.
Aprendíamos na escola sobre a fundação de Valgt e o motivo pelo qual não podíamos ir todos para lá. Quando eu era criança costumava acreditar nisso, mas agora simplesmente não achava justo. Roubar e matar, por exemplo, era proibido em Valgt, e a pena era expulsão. E adivinha onde descartavam o meliante? Sim, nos setores mais afastados possíveis da capital. Bem onde eu estava.
— Não fica chateada. – Disse Maroon atrás de mim, provavelmente porque eu não parava de ler minha avaliação final da Seleção. – Aposto que eles não te mereciam.
Ri, sem humor.
— Você não está ajudando. – Comentei, guardando o papel de qualquer jeito na gaveta a minha frente.
Levantei da cadeira, analisando meu amigo.
— Você fez algum amigo lá? – Perguntei, de repente.
Os olhos de Maroon se assombraram, ele não gostava muito de falar sobre a Seleção dele.
— Sim. Ele era do seis.
— E o que aconteceu?
Maroon bufou.
— Foi selecionado.
Assenti, sabendo o que ele estava passando.
— Também fiz uma amiga. Sylvie. Ela foi selecionada. Ela era do dez!
Maroon arregalou os olhos, claramente impressionado.
— Alguns tem sorte.
— Ela não teve sorte, era muito boa. Foi a melhor mecânica da turma, isso deve ter dado pontos a ela.
A questão é que falar de Sylvie me acalmava. Eu era a única dez da Seleção que havia passado da primeira semana e quase sempre era ameaçada de morte. Sylvie sempre me defendia, mesmo quando não sabia a circunstância das ameaças. Mesmo sentindo falta dela, sei que ela teve o que merecia. Era uma boa pessoa.
— Oi, . – Falou Sika baixinho, lutando para subir no meu colo. Abaixei-me para segurá-la.
— Como você está? – Perguntei a ela. Sika fez uma carinha que me deu pena. — Só cansada. – Respondeu, séria, pulando no chão de novo.
Não devia ser normal ter uma face tão séria na idade dela. Crianças tinham que ter cara de criança. Me sentia péssima quando notava que no 10 éramos obrigados a amadurecer muito antes da hora, principalmente porque a maior parte dos jovens ficavam órfãos antes dos vinte.
Maroon afagou meu ombro, me deixando sozinha no quarto outra vez. Ele também era órfão, há muito mais tempo que eu, e fiquei me perguntando se ele não queria se mudar para minha casa logo de uma vez. Podíamos cuidar um do outro. Era o que sempre fazíamos.
Estava decidida a passar meu luto de forma mais natural possível. Saí do meu quarto e parei na cozinha, onde me deparei com duas maças podres e um pacote de ração ainda dentro da validade. Como tinha acabado de voltar da Seleção, decidi que Sika precisava mais daquilo do que eu, então ignorei minha fome e fui até o banheiro tomar um banho, também ignorando a água gelada com a qual eu não estava mais acostumada. Durante a Seleção tínhamos água quente e alimentos frescos e esqueci de treinar a mim mesma e não me acostumar com aquilo.
Sabendo que Maroon estava com Sika, permiti a mim mesma dormir depois do banho.
Tinha sido um longo dia e eu estava exausta.
PARTE DOIS
O Centro estava cheio hoje e achava que não seria possível ver tantos jovens juntos antes. Coloquei minha touca sobre a cabeça, mesmo que a temperatura nunca passasse de vinte e dois graus. Fui me distanciando do Centro e indo em direção as residências mais próximas ao litoral, que era onde eu morava. Já estava escuro, mas já tinha me acostumado a não me preocupar com isso: a incidência de violência em Valgt eram quase nulas. As ruas eram arbóreas e floridas e, como não tinha nenhum parente em Valgt, havia ganhado meu próprio quarto, no Alojamento dos Órfãos. É verdade que o nome era bem ruim e jogava na cara tudo que eu não tinha, mas em defesa deles, não tinham como saber que a injeção não tinha funcionado comigo.
Vivo fingindo. Vertindo minha tristeza em uma felicidade falsa. Risadas falsas, amigos falsos e até memórias falsas, nada na minha vida parece ter sido real, o que me frustra.
Lembro-me de quando fui selecionado, há quatro anos atrás. Durante a Seleção era normal que fizéssemos aliança. Quando você misturava jovens dos dez setores do país era impossível que não houvesse rixas, e as alianças protegiam você disso. No passado era comum mortes a candidatos que se mostravam ser os preferidos dos avaliadores, mas isso deixou de acontecer quando implantaram uma câmera inteligente por todo o local. De qualquer forma, ainda era muito ruim quando você se mostrava muito bom em algo, as pessoas te marcavam. Mesmo sendo muito bom em elétrica, tentava nunca ficar em primeiro lugar. Cometia, de propósito, erros simples que me deixassem em segundo ou terceiro lugar sempre que podia. Sempre me alertaram sobre os perigos e sempre dei ouvidos, por isso levei a sério essa história de fazer aliados. A única do meu grupo que tinha sido selecionada comigo foi Saluz, uma dois. Saluz era divertida, companheira e sincera, e lembro que fiquei aliviado quando percebi que teria companhia naquela cidade.
Mesmo que Saluz não passasse necessidade, não vou dizer que ela não merecia estar ali, ainda que conhecesse pessoas que eu sei que tiveram pontuações muito melhores e foram mandadas de volta para casa. A culpa não era dela, a Seleção é que não era justa e pronto.
Por ser um antigo residente do setor 6, sentia-me sortudo por ter conseguido passar, mas não me senti assim por muito tempo.
Logo depois da aprovação, fui transportado para uma aeronave, que me deixou no Centro de Boas Vindas aos Selecionados. Tomei remédios, vacinas, fui alimentado, polido e arrumado. Estava no mesmo grupo de Saluz e muito jovens fizeram uma grande fila, em uma parede branca e limpa. Eu era o último dessa fila e apenas Saluz estava na minha frente, quando eu vi para o que a fila servia. Assim que eu cheguei perto o suficiente para ver o que estavam fazendo com Saluz, me assustei. Ela estava deitada em uma maca, com a cara para baixo. Havia uma pistola do tamanho do meu braço que injetou nela algo pequeno e brilhante, o que a deixou um pouco feliz demais. Fiquei com medo, mas a enfermeira me acalmou. Nem por isso experimentei a felicidade de Saluz.
Conforme os dias se passaram, fui notando a mudança de comportamento nela e nos outros. Estavam felizes demais, despreocupados demais. A comida era farta e limpa. Descobri que as sobras eram enviadas para os setores e eles nem se abalavam. Diziam que era normal e “vem aqui, volte a dançar! ”. Foi então que concluí: a injeção continha algum tipo de felicidade genérica.
Em Valgt ninguém trabalhava, porque não era necessário. Tinham os dez setores do país trabalhando para fornecer tudo que a gente precisava. Então todos os dias eram sábado e graças a injeção, ninguém percebia que vivia os mesmos dias todos os dias. Eu já estava cansado daquilo.
Durante o primeiro ano, eu apenas observei. As injeções eram aplicadas anualmente, e não funcionavam comigo. Nos últimos três anos elaborei meu plano de fuga, que consistia em fugir de Valgt e levar Saluz junto. Não conseguia pensar em uma maneira de deixa-la viver essa vida de mentira. Pesquisei, de forma escondida, várias vezes, pessoas que pudessem ter uma história semelhante, mas a única pista que eu tinha, já que voltar para Avvist não era uma opção, era uma ilha ilegal construída depois da praia de Valhalla. Para chegar até lá, teria que sair de Valgt e passar por uma fronteira do setor 2. A última fase do plano era livrar Saluz do ponto de felicidade. Consegui tirar o pequeno protótipo da minha nuca sozinho três vezes com sucesso, por isso eu sabia que conseguiria tirar dela também.
Quando cheguei em meu alojamento, apertei o número do meu andar e subi rapidamente. Tinha combinado com Saluz que ela deveria me encontrar aqui, e ela sempre fazia tudo que todo mundo mandava. Uma vez que a violência quase não existia, era extremamente mal-educado trancar as portas, por isso não me assustei quando vi minha amiga sentada na minha cama, com o controle da TV na mão.
— Oi, ! – Gritou, vindo me abraçar. – O Centro estava tão legal hoje, não estava? Não estava?
— Oi, Saluz! – Cumprimentei, forçando minha voz a ficar mais animada. – Eu amei o Centro hoje. Tinha uma loja nova.
— De pisca pisca, cara! – Ela completou, batendo palma. – Estou doida para ter aquele pisca pisca na janela do meu quarto.
— É, bem legal. – Falei, tirando a mistura que eu tinha feito da mochila. Não era nada demais, só faria ela dormir e não sentir dor enquanto eu removia o protótipo. – Bebe, comprei lá!
Infelizmente a injeção também tirava seu senso de medo e implantava uma obediência ingênua e só por isso Saluz deu de ombros e bebeu o que eu tinha dado a ela sem questionar.
— O que tem aq...
Suspirei, segurando o corpo desmaiado de Saluz e a conduzindo para minha cama. Coloquei ela de costas e limpei todas as ferramentas necessárias para que ela não tivesse uma infecção ou algo do tipo.
Eu sabia que era arriscado. Se Saluz não quisesse ser salva, iria alardear as autoridades e sabe-se lá o que fariam comigo quando descobrissem que a minha injeção não funcionava. Por outro lado, mesmo que ela quisesse, nada me garantia que o efeito da injeção passaria assim que eu a livrasse daquele objeto.
Com muito cuidado, cortei uma pequena parte de sua pele, e com uma pinça, pesquei o objeto. A dose mais recente tinha acontecido há quase doze meses atrás, por isso eu tinha esperanças de que seu efeito já estivesse se cessando. Depois de guardar o aparelho, dei dois pontos no ferimento na nuca dela e protegi com uma gaze que tinha furtado na farmácia quando a vendedora não estava olhando. Eu não teria que pagar se tivesse pego quando ela estava olhando, mas iria precisar explicar para o que queria a gaze, e era melhor eu não envolver ninguém nisso.
Depois que concluí que estava tudo pronto, arrumei Saluz para que ficasse confortável e decidi tomar um banho antes que ela acordasse.
E eu estava torcendo para que ela ficasse ao meu lado quando isso acontecesse ou então eu já tinha meus dias contados.
PARTE TRÊS
Acordei com Maroon me cutucando. Sentei-me na cama zonza de sono, podendo ver pela janela que ainda era de manhã e que Sika dormia tranquilamente na cama ao lado.
— O que foi? – Perguntei, com a voz rouca.
— Vem comigo. – Falou, me ajudando a sair da cama.
Notei que ele tinha um chumaço de papéis na mão e os colocou em cima da pequena mesa da cozinha. Não tínhamos energia elétrica, e como ainda estava escuro, acendi três velas e as coloquei em cima da mesa.
— O que houve?
Maroon sorriu, apontando as folhas, e notei que eram mapas.
— Vamos fugir.
Arregalei os olhos, nervosa.
— Para onde?
Ele me olhou como se eu fosse doente.
— Para Valgt, é claro.
Tive que reprimir um sorriso.
— Você ficou maluco? – Falei, baixinho para que Sika não acordasse. – Mal chegaríamos ao setor 7.
— Mas nós vamos pelo 5. – Contestou, apontando no mapa.
— Pior ainda!
Maroon me olhava com paciência e pude perceber que era algo que ele planejava a muito tempo, pelo modo como parecia ter respostas para tudo. Sentou-se na cadeira, empurrando o velho mapa em minha direção.
— Presta atenção. – Pediu. – A maioria das pessoas são apreendidas porque querem invadir Valgt entrando pela fronteira do setor 7. Por isso a vigilância é mais alta nessa parte.
— E como nós seríamos mais inteligentes que isso?
Maroon apontou uma trilha.
— Nós iremos entrar em Valgt pela floresta. – Apontou. – Seguiremos a norte, sentido setor 5, depois atravessamos o 4 e continuaremos a leste até chegarmos no setor 2. E você se lembra o que o setor 2 comercia, certo?
— Sim, peixe.
Ele bateu na mesa.
— A gente vai se infiltrar em um barco de pesca e atravessar a fronteira não do setor 2, e sim de Valhalla. – Parecia um bom plano, sem contar que o porto de Valhalla não era tão vigiado.
— Então a gente vai entrar em Valgt pelo porto? – Perguntei, de repente animada com o plano.
— Isso!
Olhei para o mapa e para a trilha enorme desenhada.
— Vamos atravessar três fronteiras. Vai ser perigoso. – Ele concordou. – E lento, porque temos a Sika.
Sika era até que bem desenvolvida para os seus seis anos, mas ainda era criança.
— Estimo que a gente chegue no setor 2 em duas semanas. Ou mais.
Bufei.
— É isso ou morrer de fome. Não temos escolha. – Não sabia se estava dizendo isso para Maroon ou para mim mesma.
Não podia ser tão fácil assim viver em Valgt ilegalmente sem ser identificada. Mas estava disposta a arriscar se isso desse a mim e a minha irmã a chance de ter uma vida melhor.
— Você acha que estou sendo egoísta, Maroon? – Questionei, ao pensar em Sika. – Privando minha irmã de sua própria Seleção? Quer dizer, e se ela der sorte?
Maroon me olhou sério.
— E você acha que vai estar viva daqui doze anos para saber?
Olhei para baixo, ele tinha razão.
Resolvemos voltar a dormir e que no dia seguinte iríamos nos preparar para a longa viagem. O pior que poderia acontecer se fôssemos pegos era voltarmos para o lugar de onde tínhamos saído. Eu estava tão desesperada para sobreviver que acreditava no impossível.
Era o futuro de Sika que me preocupava.
Estávamos há três semanas na floresta e faziam cinco dias que tentávamos atravessar a fronteira do setor 4 para o setor 2. Havia um guarda que ficava fazendo sua vigia por dez horas, depois vinha outro e ficavam mais quatro horas juntos e por fim o primeiro ia embora e o segundo ficava por mais dez horas até ser substituído de novo. Sika estava com febre há muitos dias, e Maroon e eu suspeitávamos que tinha pego algo na floresta.
— Como ela está? – Disse Maroon, voltando de mais uma ronda.
— Ainda está com febre. – Respondi, encostando as costas da minha mão na testa dela. – Eles ainda estão lá?
Maroon bufou.
— Sim. Cada vez mais atentos. Acho que foram notificados de uma fuga do setor cinco.
Congelei no lugar, me lembrando das circunstâncias com as quais Maroon, Sika e eu conseguimos fugir do setor 5. Envolvia um carro explodido e furto de alimentos.
— Maroon, se a gente não fazer alguma coisa, vão nos descobrir aqui mais cedo ou mais tarde. – Diminui o som da minha voz. – E Sika está doente!
Meu amigo me encarou e em seguida fez um cafuné na cabeça de Sika, que mal conseguia manter os olhos abertos.
— A troca de turno mais falha acontece à noite. Podemos usar isso.
— Como? – Quis saber.
— Podemos repetir o que fizemos no setor cinco.
Suspirei.
— Vão usar isso como nosso modus operandi e finalmente saberão o nosso destino!
Maroon chacoalhou a cabeça.
— Não temos escolha, !
Depois de muito debater, acabei concordando com ele. Estava sem comer há dois dias, mas Maroon havia comido pela última vez a muito mais tempo que eu. Minha cabeça doía de fome e eu estava tão suja que quase não aguentava meu próprio cheiro.
Maroon e eu tínhamos encontrado uma caverna vazia para nos abrigarmos até decidirmos os próximos passos e de vez em quando eu conseguia ouvir o rio que corria não muito longe daqui.
Enquanto a hora não passava, deitei a cabeça de Sika na minha mochila e fui para a entrada da caverna. Estava anoitecendo e as árvores pareciam estar derramadas, aproveitando os últimos raios de sol do dia. Vi alguns roedores ao meu redor, mas nada que me assustasse. Sentei-me no chão e apoiei meus braços nos joelhos, chateada pela situação em que me encontrava. Muitas coisas tinham dado errado nessa viagem maluca e mesmo que tenha chegado tão longe, ficava me perguntando se algum dia iríamos ver Valgt. Devia ser mais fácil viver por lá. Não precisar pagar por remédios, por alimentos, nunca mais trabalhar, ter energia elétrica e água quente para os dias frios e jamais se preocupar com nada na vida, nunca mais. As pessoas de Valgt sempre me pareceram muito animadas e depois que tive esse pensamento, ri de mim mesma. Se eu não tivesse que me preocupar nunca mais na vida, com certeza viveria animada para sempre.
— Está na hora. – Disse Maroon. – Acorde Sika, coloque a mochila nas suas costas e corre.
— Onde te espero?
Maroon sacudiu a cabeça.
— Você não espera. Você corre e não olha para trás. – Orientou. – , você me ouviu?
— Eu não vou sem você! – Protestei.
— Não se preocupe comigo. – Tentou me acalmar, apertando meus ombros de leve e depositando um beijo em minha testa. – Eu encontrarei vocês.
Faltavam vinte minutos para a troca de guardas quando Maroon saiu da caverna. Com muita calma acordei Sika, que para o meu alívio parecia bem melhor.
— Eu preciso te pedir um favor, Sika.
— O que? – Questionou, coçando os olhos com as mãos.
— Preciso que você seja uma garota forte. Preciso que quando eu te pedir, você corra.
Sika arregalou seus grandes olhos escuros.
— E você?
— Estarei correndo bem ao seu lado. – Disse. – Podemos correr de mãos dadas se quiser. Eu só não consigo correr com você no colo, por isso eu preciso da sua ajuda.
Sika se levantou conforme podia. Mesmo tão nova, ela com certeza já sabia que nos encontrávamos em uma situação bem séria. Assisti minha irmã mais nova amarrar seus sapatos para que não tropeçasse nos cadarços enquanto corria e mesmo que desse para notar o esforço que aquilo custava, Sika também prendeu os cabelos no alto. Bebeu o resto de sua água no cantil, de um córrego que tínhamos encontrado seis dias atrás, e sorriu para mim.
— Vai dar certo, . – Falou. – A gente vai chegar em Valgt.
Assenti, segurando a mão dela e saindo da caverna. Estava o mais próxima da fronteira que eu podia sem ser vista pelo guarda que estava observando de cima. A cancela estava vazia, eu tinha poucos minutos para atravessar a campina e passar pela cancela antes de o guarda perceber. Do outro lado eu já sabia que nada havia. Eles estavam preocupados com quem entrava, não ligavam muito para quem saía. Estava com Sika abaixada em uma moita quando recebi o sinal de Maroon do lado oposto onde eu estava.
Como prevemos, deu certo. Alarmado pelo incêndio, o segurança desceu da guarita e eu olhei para Sika.
— Corre!
Ela segurou na minha mão com força e correu o máximo que podia. Coloquei na minha cabeça que eu tinha o direito de fazer aquilo, que não era justo os setores marginais estarem passando fome e que eu estava certa. Queria uma vida melhor para mim e para minha irmã, a pessoa que eu amava mais que tudo no mundo, e torcia para não me odiar quando crescesse e percebesse que não poderia participar de uma Seleção porque era foragida desde os seus seis anos. Sei que algumas lágrimas caíram enquanto eu corria, mas não parei. Eu estava seguindo exatamente o que Maroon tinha me orientado e quando estava quase chegando na cancela, cometi o erro de olhar para trás.
— Maroon! – Gritei, sem pensar, quando o vi coberto de fogo.
Mais lágrimas vinham ao meu rosto e, sendo instinto ou não, consegui me abaixar e atravessar a cancela antes que o guarda me visse. Ainda via o fogo no céu escuro e não fazia ideia do que tinha acontecido com Maroon. Não tinha como arriscar agora que eu era a única que poderia cuidar de Sika.
Uma vez no território do setor 2, Sika e eu nos escondemos para passar a noite e esperar Maroon. Eu disse a ela que tinha sido muito corajosa e que estava orgulhosa, e a pobre garota caiu de sono assim que encostou a cabeça no meu colo. Me apoiei no tronco da árvore onde estava, torcendo para ter visto uma miragem e que meu amigo voltasse logo.
Mas desde o momento que fechei meus olhos até o momento que os abri na manhã seguinte, ainda continuava sozinha com Sika na floresta.
E estava perdida.
PARTE QUATRO
Saluz continuou reclamando por mais um tempo, mas consegui bloquear as reclamações depois de um certo período. Eu a adorava. Ela era uma das pessoas mais importantes do mundo para mim. Só que tudo tinha limite.
A injeção parou de fazer efeito no momento que ela acordou, há três semanas atrás. Ela não fazia ideia de onde estava e me disse que sua última lembrança foi de estar na fila, no dia da Aprovação. Quando contei que já se faziam quatro anos, Saluz chorou – e eu nunca a tinha visto chorar antes.
Expliquei meus planos e o risco em que me envolvi ao também envolver ela, mas a garota parecia tão brava quando descobriu o que realmente era a seleção que nem hesitou quando concordou com meu plano de fuga.
Repassamos o plano muitas vezes, simulamos muitos resultados diferentes para diversas situações. Estocamos comida, água, remédios, curativos e tudo que pudéssemos precisar na floresta. Tínhamos perdido uma das mochilas no córrego dois dias atrás, mas por sorte ainda tínhamos a minha, que estava razoavelmente abastecida. Calculava que tínhamos sete dias de provisões antes que as coisas começassem a ficar realmente mal.
Saluz e eu estávamos andando para leste, em direção ao porto de Valhalla quando ouvimos um grito.
— Tem alguém tentando passar na fronteira. – Disse Saluz, solidária.
— Não podemos desviar do nosso caminho! – Reforcei, quando ela mencionou que queria ajudar.
— Pode ser alguém com a mesma dificuldade que a nossa! – Tentou me convencer, segurando meu ombro. – O antigo faria isso.
Quando olhei para Saluz, ela sorria.
— Droga, Saluz. – Xinguei, me virando em direção ao grito. – Se a gente for pego eu vou matar você!
— Vou anotar! – Gritou, conforme corria para me alcançar. – Olha, fumaça!
Olhei na direção que ela apontou, e pela cancela da guarita dava para ver muita fumaça saindo de uma das moitas.
— O guarda vai ver a gente saindo.
Saluz tocou meu braço.
— Atravessa. Eu cuido do guarda.
Dei um voto de confiança para Saluz e atravessei a cancela, indo até o foco da fumaça. Quando cheguei ao local só encontrei muito mato queimado, mas quando já estava quase desistindo, ouvi um gemido.
Fui seguindo o som e quando encontrei onde ele ficava mais alto, corri. Devo ter corrido por mais de um minuto até encontrar a pessoa, com queimaduras sérias e muito machucado.
— A..juda. – Ele murmurava. – A..juda... ela.
Era um rapaz. Devia ter mais ou menos minha idade, e estava deitado próximo ao rio. Devia ter corrido para lá depois de pegar fogo, considerando suas roupas molhadas, mas provavelmente não conseguiu fazer muita coisa depois de se lavar.
Por sorte, eu e Saluz tínhamos nos preparado para essa eventualidade. Tirei minha mochila das costas, procurando pelo bálsamo que eu tinha certeza de ter colocado ali. Quando o encontrei fui até o rapaz no leito do rio, e pelo menos estava acordado.
— Ei. – Falei. – Você está muito machucado. Vou passar isso em você, ok? – Apontei para o bálsamo.
O rapaz disse algo que não entendi, mas não iria deixar ninguém morrer na minha frente. Passei a pomada onde estava mais crítico e em seguida dei a ele uma pílula e um pouco de água. Em cinco minutos o cara recobrou a consciência e sua pele já estava muito melhor.
— . – Foi a primeira coisa que ele disse, se sentando.
Olhei para ele, confuso.
— É seu nome?
O estranho conseguiu rir.
— Preciso achar . – Falou, levantando-se. – Obrigado por me salvar, serei eternamente grato.
— Disponha.
— Meu nome é Maroon.
— Anda, Maroon, acho que Saluz não vai aguentar a guarita sozinha por muito tempo. – Disse a ele já correndo, quando percebi que Saluz estava sozinha a tempo demais.
Mesmo ainda ferido, Maroon me seguiu. Quando chegamos a cancela, porém, Saluz estava radiante esperando do lado de dentro.
Sorri para ela.
— O que você fez?
Ela me cutucou, marota.
— Digamos que ele vai ficar no banheiro por um tempinho. – Explicou, mostrando uma planta em seus dedos. – Essa é a sefina loustra. Tinha um monte perto de casa e é muito usada para intestino preso pelas pessoas mais idosas.
Em seguida seus olhos esbarraram em Maroon e de confusos passaram para reconhecimento.
— Maroon! – Gritou, indo abraça-lo. – Achei que nunca mais fôssemos nos ver!
— Saluz? – Disse o cara, e quando olhou para mim, pareceu ter me reconhecido também. – ?
Finalmente me lembrei. Ele era um dos únicos dez da Seleção e foi um dos melhores amigos que tive naquele mês. Fiquei triste quando ele foi rejeitado porque realmente achava que ele merecia Valgt. Agora, porém, a luz de recentes descobertas, me perguntava se ele não ficou melhor em Avvist mesmo.
— Não acredito que não me lembrei. – Falei, indo até ele.
— Com essas queimaduras deve ser difícil mesmo. – Disse, rindo.
Andamos em direção ao porto de Valhalla, e Maroon já havia nos orientado sobre as garotas que ele estava procurando: , e a irmã mais nova, Sika.
— Ela não sabia o caminho, então não deve estar muito longe. – Ele disse, conforme avançávamos na floresta. – E além do mais, Sika está doente, o que as atrasa.
Eu não tinha reclamado de ajudar a encontrar as meninas. Mesmo que não fosse do tipo que deixa garotas perdidas na floresta, estávamos indo para a direção que eu já precisava ir, então não custava nada ajudar. Maroon e Saluz, depois de pouco mais de duas horas de caminhada, decidiram sentar-se em uma sombra para descansar e eu fiquei fazendo ronda. Depois de duas voltas, ouvi um barulho vindo de uma das moitas. Sem pensar, me enfiei no meio dela, sendo recebido com um grito.
Foi então que um grosso galho acertou minha testa e tudo ficou escuro.
PARTE CINCO
— A culpa não é minha se ele me assustou! – Defendi-me quando Maroon apareceu na clareira acompanhado de outra garota.
— ! – Exclamou, quando viu o amigo desmaiado no chão. Em seguida sorriu para mim. – Estou querendo fazer isso faz umas semanas. Nada que ele não mereça.
Eu não sabia se saia correndo ou sorria de volta então preferi só assentir.
— Certo. – Falei. – Meu nome é .
Maroon foi tentar acordar o garoto desmaiado e a garota segurou minha mão.
— Ah, eu sei! Estamos te procurando há um tempão. Pode me chamar de Saluz. – Ela se abaixou e ficou de joelhos para ficar da altura de Sika. – E você deve ser a Sika, certo?
Sika concordou com a cabeça. Saluz pegou a mochila que estava no chão e tirou de lá um pequeno frasco e em seguida olhou para mim.
— Maroon disse que ela estava doente. Acho que esse frasco deve ajudar.
Segurei o pequeno frasco transparente, tirando de lá uma pílula azul. Segurei as lágrimas, pensando que apenas um daquele teria sido o suficiente para salvar minha mãe. As pessoas de Valgt tinham tudo que podiam, não era justo que nenhum setor de Avizza tivesse a quantidade de remédios que precisávamos. Mas então me toquei do que estava segurando.
— Onde arrumou isso? – Questionei Saluz.
Só depois pude fazer uma análise completa da sua condição. Como nós ela parecia estar no meio do mato há vários dias, suas roupas e cabelos estavam sujos, mas não parecia desidratada e nem com fome. Mesmo sujas, suas vestimentas sugeriam uma vida boa, e não trapos como os que estávamos usando.
Ela era uma selecionada. O que estava fazendo na fronteira do setor 2?
— Agora seria uma boa hora para me pedir desculpas. – Interrompeu o rapaz que eu acertei, . Ele parecia ter a idade de Maroon e era muito bonito. Parecia até mais limpo que Saluz, mas sem dúvida estava mais cansado.
— Me desculpe. – Pedi, sinceramente.
cruzou os braços, olhando para Maroon.
— Você já se decidiu? – Perguntou, mas os olhos de Maroon estavam me encarando.
— Conte para ela. – Pediu meu amigo.
e Saluz se entreolharam, e o rapaz bonito chegou mais perto de mim.
— Olha, . – Falou, sereno. – Eu sei que você vai ficar confusa e achar que estamos reclamando de barriga cheia mas... não vão para Valgt. Venham conosco.
— Porque eu não iria para Valgt? – Questionei, já com lágrimas nos olhos. Minha irmã quase tinha morrido nessa viagem, eu não poderia simplesmente voltar para casa. – Em Valgt tem absolutamente tudo que eu preciso.
Saluz olhou para o chão, e suspirou, triste.
— Valgt não existe, . – Respondeu ele. – É verdade que as pessoas não passam fome, frio e sede, tem roupas legais e não precisam trabalhar. Mas quando você é selecionado você deixa de existir.
— Como?
Saluz segurou minha mão, e em seguida afastou os cabelos, mostrando uma cicatriz bem recente na nuca.
— Antes de me despertar, eu recebia uma injeção que retirava todo meu livre arbítrio. – Explicou, soltando os cabelos novamente. – Eu passava o dia dançando e bebendo, obedecia qualquer um que me desse ordens e nunca me preocupava com nada. Era uma vida vazia, . Nada nunca acontecia. Quando somos selecionados, ganhamos o prêmio de viver todos os dias os mesmos dias. Eu perdi quatro anos da minha memória e não me lembro de nada que aconteceu em Valgt até tirar a injeção de mim.
Estava abalada com a revelação sobre a cidade que tanto sonhava em viver. Onde achava que seria a solução dos meus problemas.
— A verdade é que vivemos em uma bolha. – Continuou Saluz, chateada. – Uma bolha de felicidade contínua e despreocupada. Como perfeitos zumbis bêbados.
— Valgt é uma utopia. – Falou . – As pessoas que estão lá são experimentos. Escolhem os melhores cidadãos e os colocam para conviver em um grande espaço. Não tenho certeza sobre como isso acontece, mas estão tentando alguma forma avança de atingir a paz mundial e felicidade entre os povos. A vida real acontece aqui, em Avvist. Em todos os setores.
Ainda sem saber direito o que fazer, decidi que iria acreditar naqueles estranhos, porque Maroon parecia acreditar e eu confiava em Maroon. Ele nunca faria nada que pudesse prejudicar a mim ou a Sika.
— E para onde estão indo? – Questionei, insegura, apertando o ombro de Sika junto a minha cintura.
Saluz sorriu, mas foi quem respondeu.
— Estamos procurando uma ilha próxima a Valhalla. Não o porto, a praia.
Fiquei confusa.
— Porque tiveram que sair de Valgt para isso?
— As fronteiras ao redor da praia tem limites. – Foi Maroon que respondeu, olhando no mapa portátil. – A ilha que procuramos fica fora dos limites de Valgt.
— E de Avvist. – Completou Saluz.
— As Terras de Ninguém. – Murmurei, me lembrando de ter ouvido sobre isso em alguma aula.
— Isso mesmo. – disse, aprovando. – Estamos indo para Terras de Ninguém, mas procuramos especificamente a Ilha dos Perdidos. Me disseram que tem uma comunidade lá. Uma comunidade que cuida dos cidadãos perdidos de Valgt-Avvist.
E no instante seguinte, todo nosso grupo se encheu de esperança. Retirei uma pílula do frasco que ainda segurava e dei para Sika, a esperando que ela ficasse boa logo. Resolvemos passar a noite ali, onde nos achávamos seguros.
Descobri que Saluz e eram amigos de Maroon durante sua Seleção, e os três passaram boa parte da noite me divertindo com histórias sobre as provas e as avaliações especiais. Sika havia dormido assim que tomara a pílula, mas acordou bem melhor e, para o alívio de todos, sem febre e muito mais disposta.
Eu tinha saído de casa com um objetivo: entrar em Valgt e ter chance de ter uma vida melhor. Agora que eu sabia que era tudo uma mentira, e que as maravilhas da capital não passavam de histórias, estava ansiosa embarcando nessa jornada com Maroon e meus novos companheiros. Era uma viagem às cegas, não sabíamos para onde tínhamos que ir e nem se daria certo, não sabíamos sequer o que, de fato, encontraríamos na Ilha dos Perdidos.
Mas se tinha uma coisa que eu sabia, era que eu queria expor a verdade sobre Valgt. Eu queria salvar as pessoas assim como tinha salvo Saluz. Ainda tínhamos muito que aprender sobre a Seleção, a injeção e suas consequências, mas nós iríamos descobrir.
Fazia dessa minha missão real para o resto da minha pelo mesmo objetivo com o qual saí de casa: uma vida melhor.
Estava falando de um mundo melhor para todos que ficassem ali depois de nós.
Fim!
Nota da autora: Olá, pessoas! Escrevi essa short com muito amor, mesmo sendo bem curtinha. Me inspirei em: O Doador de Memórias, Jogos Vorazes, Feios, A Seleção,3% e tem coisa que não acaba mais hahaha
Espero que tenham gostado!
Beijinhos!
Outras Fanfics:
LONGFIC
The Only Girl [original/em andamento]
Burn With You [original/finalizada]
Take Me Back To San Francisco [especial A Whole Lot Of History/ em andamento]
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