Última atualização: 15/01/2021

Capítulo Único

Soube que estava morta no segundo em que abri meus olhos para a claridade diante de mim. O aparelho que media minha frequência cardíaca estava apitando em uma linha contínua e observo meu próprio corpo paralisado, sem os movimentos respiratórios que me manteriam viva. Analiso o silêncio que ficou no quarto de hospital e no tempo necessário para que a enfermeira de plantão percebesse que eu já não respirava e acionasse a emergência.
Eu nunca pensei na vida pós morte. Nunca pensei que teria que observar meu corpo sem viva tentando reagir. Mas esse era exatamente o problema, eu estava pairando sob ele, sem fazer nada para ajudar. Quer dizer, sou eu ali! Deveria estar tentando voltar, não deveria?
Percebo que posso sair do lugar onde estou e vago como uma sombra invisível até encontrar . Tão pequenino e assustado, ainda de pijamas por ter sido acordado às pressas e segurando seu ursinho encardido favorito. Ele quase nunca me deixava lavar porque era impaciente e não gostava de esperar enquanto o brinquedo secava. Quando olho para mais de perto, vejo que seus olhos grandes e verdes que herdou do pai expeliam as lágrimas que ele ainda não conseguia controlar, sem saber o que de fato fazia ali e o que tinha acontecido comigo.
Ao seu lado, tenta distraí-lo com seu telefone. Afaga os ombros do irmão mais novo com vontade, como se estivesse querendo passar sua própria força e coragem para ele. Seu cabelo longo e castanho está arrumado, mesmo que essa fosse uma emergência, e eu fico surpresa por nunca ter reparado o quanto ela se parece comigo. Eu consigo notar o quão nervosa está, mas por fora sorri para enquanto o ensina a jogar fruit ninja no celular dela. Bastou poucos minutos para que parasse de chorar e cedesse a atenção para o eletrônico em seus pequenos dedinhos.
Cansada, joga a cabeça para trás, comprimindo os olhos com as mãos, como se estivesse forçando as lágrimas a não caírem.
Ah, minha . Como me arrependo de não ter prestado atenção em como você está linda e adulta. Como me arrependo por não ter saído mais com você, não ter participado mais da sua vida e dos seus interesses. Eu nem sei o nome da sua melhor amiga. Clara? Lara? Sara? Qual é sua cor favorita, meu amor? Quando foi que você cresceu assim?
não aguenta. Quando se vira mostrando um sorriso banguela dizendo que ganhou o jogo, as lágrimas lhe vencem. Meu menino não entende sua tristeza, assim como não entende nada do que acontece agora, mas por amá-la acaba chorando também.
Meu lindo , meu bebê. Eu pisquei e você já está tão grande. Bastou uma piscada e passou de um bebê para uma criança fofa e inteligente que me fala coisas como "vou querer um café da manhã nutritivo". Me sinto desconfortável de repente porque eu nem me lembro de ter rido quando ele me falou isso, mas agora acho engraçado. Com quem será que ele aprendeu essas coisas? Gostaria de ter perguntado. Como me arrependo de não ter dado os colos que ele queria e cantado as músicas que ele pedia. Ou ajudado na tarefa de casa. Ou ter a chance de assistir alguma de suas apresentações escolares.
O choro dos meus filhos é consolado por um homem que aparece diante deles. . Levanta para que ele sente em seu colo, e passa os braços por trás das costas de , como um conforto. também chora, triste e silenciosamente. Será que ele já sabe? Será que alguém já contou que eu morri?
Eu não volto para o quarto para saber o que acontece por lá. Prefiro ficar com a minha família na sala de espera, mesmo que eles não possam me ver, já que não sei quanto tempo tenho nesse plano. Sei que não me dediquei a eles em vida, mas os segundos que me restam são melhores que nada.
Analiso o rosto exausto e desesperado de . Meu amado e gentil marido. Como sinto sua falta, . Como queria que não estivéssemos tão distantes um do outro. Lembro de duas noites atrás quando o acusei de ser egoísta porque só estava fazendo o meu trabalho e ele não podia reclamar. Eu que sustentava a casa e não podia parar de trabalhar, como ele queria. Penso agora que não foi legal jogar o desemprego na cara dele. era jornalista esportivo, não era um emprego com muito mercado. Ele estava otimista, mas eu nunca cooperava.
Quando ficou desempregado, eu nunca tinha tempo para ele, ou . Quase não tinha tempo nem para mim mesma. Coloquei na cabeça que não podíamos redefinir nosso padrão de vida, então comecei a trabalhar mais. E no final de tudo, minhas preocupações com dinheiro e contas para dar conforto para os meus filhos e meu marido acabou por me afastar deles.
me falou diversas vezes que eu era workaholic e precisava de ajuda. Ele me ofereceu ajuda. Eu não quis. Disse que não estava bem, que não era nada demais e daria tudo certo.
Um barulho me desperta e me faz olhar para a pequena família se consolando. Meu pai e minha mãe aparecem em meu campo de visão, procurando e as crianças com o olhar. O hospital não está cheio, mas eles estão desesperados. vê primeiro e os chama para junto deles, sem dizer nada.
Meus pais estão divorciados desde que eu tinha quinze anos. O fato de terem chegado juntos me surpreende porque, mesmo que sejam civilizados um com outro, sei que não se suportam. Bom, minha mãe não o suporta. Mas eles estavam abraçados, os olhares tristes copiados nos olhos um do outro.
Nunca fui muito próxima da minha mãe, até porque depois do divórcio escolhi morar com meu pai. Mas eu a amo e mesmo quando virei mãe eu sempre soube que ainda precisaria dela comigo. Fico envergonhada de vê-la aqui, principalmente por quase nunca retornar suas ligações. Por ter despistado um jantar de natal nos dois últimos anos e fugido de um encontro familiar no último feriado. Se eu soubesse, mamãe…
Mas é esse o ponto, não é? Se a gente soubesse quando iria morrer, não faríamos as coisas que fizemos.
Vejo meu pai reprimir um suspiro ao lado dela. Ele é o que está mais perto de e parece que quer abraçá-la, mas se contenta em só afagar o cabelo dela porque aparentemente nem percebeu que os avós estão ali.
Meu pai, a pessoa que eu mais amo no mundo. Ele era professor de literatura na faculdade antes de se aposentar. Ensinar sempre foi sua grande paixão e sempre o admirei e provavelmente foi por isso que segui seu caminho e acabei como editora-chefe. Achava meu pai excêntrico, sonhador e romântico, muito diferente dos outros pais. Sempre me perguntei porque ele nunca havia se casado de novo, mas bastou olhar meus pais juntos para perceber o motivo. A ideia de se divorciar não foi dele.
Como um perfeito professor, ele sempre me escrevia cartas feitas à mão, que eu nunca respondia. Ficava feliz quando as recebia, porém não entendia que ele queria minha resposta do mesmo jeito que chegou. A emoção de retirar a carta da caixinha do correio, tirar o selo cuidadosamente para não estragar o papel e tentar adivinhar minhas emoções através da minha caligrafia. Eu era cem por cento adepta a tecnologia, então sempre mandava mensagens de texto e agradecia, mas nunca enviei uma carta de volta. Ah, mas se eu soubesse, teria colocado meu coração e minha alma em uma carta e enviado ao meu pai. Ele teria pelo menos uma carta minha, só que agora tudo que ele podia fazer era olhar minhas respostas vagas e murchas em seu celular.
Eles ainda não sabem. Sei disso de repente, porque ainda estão tentando me reanimar no quarto. Eu não me sinto diferente. Só estou triste e arrependida pelo tempo que desperdicei, mas como me sinto tão morta quanto antes, não nutro esperanças em relação a vida que eu deveria ter vivido.
Olho aquele quadro de desespero e tristeza que as pessoas mais importantes para mim representam. parou de chorar, mas ainda olha triste para um ponto vazio, provavelmente pensando o mesmo que eu. beija o topo de sua cabeça e transfere um adormecido para o colo da avó. O ursinho encardido dele cai no chão, mas ninguém nota. Meu marido cutuca de uma maneira gentil perguntando se ela quer comer alguma coisa, e ela nega.
Se eu tivesse apenas mais um dia, faria tudo que não fiz durante todos esses anos, mas principalmente destilaria amor nesse mundo de ódio. Daria a minha família a chance de amar cada momento da vida, a chance de viver de uma maneira saudável.
Saber que programas de TV anda assistindo para saber vocabulários tão densos, saber o nome da melhor amiga de e o que ela faz no final de semana e ser mais compreensiva com . Ele nunca desejou meu mal.
Na verdade, sempre tentou impedir que acontecesse exatamente o que aconteceu: mal súbito por causa de estresse. vivia me falando isso, e eu o chamava de exagerado.
está furiosamente digitando algo no celular e eu me aproximo. Ela está enviando mensagens para uma amiga. Lara. A amiga dela se chama Lara. Não deveria, mas fico um pouco melhor por saber dessa informação.
Mesmo que ele não possa me sentir, acaricio as bochechas gordas e rosadas de com as costas da mão, fingindo secar o suor em forma de gotículas que se formam na pontinha do seu nariz. Mas o suor continua ali, e sinto lágrimas invisíveis escorrendo quentes pela minha bochecha.
Não estou morta, percebo. Mortos não choram.
Eu ainda estou lutando pela vida, o que significa que ainda tenho uma vida pela qual vale a pena lutar.
Não quero deixar meu bebê sem ninguém para secar suas gotinhas de suor no nariz. Não quero deixar quando ela não tiver ninguém a quem perguntar quando começar a se interessar por garotos. Não quero abandonar sem ter tido a chance de dizer o quão maravilhoso ele é. Não posso deixar minha mãe sem retornar suas ligações. Não posso deixar meu pai esperando pela carta que nunca escrevi.
Eu não tenho muita vida agora, mas eu tenho amor. Eu tenho o amor de todos eles, apesar de ser tão desligada como eu era. E sinto que juntos, o amor deles por mim me tornou mais forte.
Não quero deixá-los agora, mas preciso. Dou uma última olhada para trás, pensando que eu tenho uma vida linda para a qual voltar.
No quarto onde meu corpo está, os médicos batalham para me devolver minha vida. Em algum momento de alguma tentativa de reanimação, escuto o aparelho de frequência cardíaca apitando em um ritmo diferente, as ondas subindo e descendo, mostrando que no fim das contas, eu tinha conseguido. Os médicos comemoram, e tudo fica escuro.
Não sei quanto tempo se passa, mas finalmente abro os olhos, me deparando com a claridade do quarto por conta das paredes brancas. A primeira pessoa que eu vejo é , os olhinhos grandes empolgados por me ver bem. Ainda acho que ele não sabia da gravidade em que eu me encontrava, mas não poderia saber. está ao seu lado, chorando de alegria, gesto imitado por e pelos meus pais. Eu os amo. Eu amo que tenha uma vida para a qual voltar, e sabia que não era tarde demais.
E, acima de tudo, sabia que agora eu estava pronta para viver a vida que escolhi. Uma vida cheia de amor.




Fim!



Nota da autora: Olá, fanfiqueiras! Obrigada para você que leu até aqui. Eu prometi que não iria mais entristecer os ficstapes da vida, mas esse plot mexeu com o meu coração.
Espero que tenham gostado!




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