Prólogo
Era uma vez duas meninas recém-formadas no Ensino Médio. O sonho das amigas – melhores amigas – era entrar cada uma em uma renomada universidade, arrumar um namorado e ser feliz para sempre. E assim aconteceu, quando, em um momento de reflexão profunda, as mães das duas meninas decidiram que o melhor para as filhas seria ingressar em uma universidade de Londres; afinal, as meninas cagavam dinheiro e não precisavam passar pelos testes aplicados pela renomada universidade em questão. Uma vez em Londres, conviveriam no luxuoso apartamento gentilmente cedido por uma das mães, cujas posses em território britânico superavam as da própria Rainha Elisabeth – ou Bete, para os íntimos.
Marcaram o voo e partiram.
Um dia, passeando pelas calçadas escorregadias e contemplando o céu lúgubre que a cidade oferecia, as meninas encontraram, na London Eye – o point –, dois meninos lindos, educados e famosos. Eram seus ídolos! Chocadas, elas resolveram dizer que eram brasileiras, pois isso despertava pensamentos pecaminosos na cabeça de estrangeiros. Conversando, repararam que as garotas possuíam personalidades exatamente iguais - mas isso não importava, cada uma tinha a mesma mania de seu amado e eles já estavam perdidamente apaixonados.
Vinte e quatro horas e alguns capítulos depois, se beijaram, juraram amor eterno, tomaram café na Starbucks, fizeram sexo e viveram felizes para sempre.
Só que não.
Marcaram o voo e partiram.
Um dia, passeando pelas calçadas escorregadias e contemplando o céu lúgubre que a cidade oferecia, as meninas encontraram, na London Eye – o point –, dois meninos lindos, educados e famosos. Eram seus ídolos! Chocadas, elas resolveram dizer que eram brasileiras, pois isso despertava pensamentos pecaminosos na cabeça de estrangeiros. Conversando, repararam que as garotas possuíam personalidades exatamente iguais - mas isso não importava, cada uma tinha a mesma mania de seu amado e eles já estavam perdidamente apaixonados.
Vinte e quatro horas e alguns capítulos depois, se beijaram, juraram amor eterno, tomaram café na Starbucks, fizeram sexo e viveram felizes para sempre.
Só que não.
Cena 1
"Hoje, tudo se recomeça. Oh, pequeno domingo, por que tão azul?"
olhava fixamente para a capa verde do CD em suas mãos. Seus olhos começavam a arder, mas o sentimento que tomava conta de seu peito era maior, fazendo com que a garota não se importasse com isso. Nada mais importava. O mundo lá fora já não importava. Ela havia sido despedaçada e cada pedaço seu que jazia no chão frio de seu pequeno, porém confortável apartamento parecia não encontrar forças para fazer-se inteiro novamente.
- Eu não acredito que gastei trinta e cinco reais com essa bosta – as palavras saíram lentas da boca da menina. , que arrumava a gaveta de calcinha sem fazer ideia do processo doloroso pelo qual a amiga acabara de passar, olhou-a com verdadeiro espanto.
- Eu não acredito que você disse isso...
ergueu o olhar até a menina.
- Esse... esse... meu Deus, esse é o pior CD que eu já ouvi em toda a minha vida... – a garota mantinha a incredulidade na voz.
- Uau... – adquiriu o mesmo tom – Nunca pensei que a ouviria dizer uma coisa dessas sobre o Green Day.
- Eu sei, mas, cara... que decepção.
se levantou e sentou ao lado da amiga na cama, passando gentilmente uma das mãos no braço dela.
- Sinto muito, . Isso acontece, mesmo com os melhores. Eles vão se reerguer.
- Acha mesmo?
- Tenho certeza. Vá jantar agora, você precisa comer.
- Está bem.
tirou os fones e foi até a cozinha enquanto suspirava no quarto. Já estava acostumada com as crises que a amiga tinha por conta de um par de olhos verdes, ricos e famosos – sem contar casados – pelos quais ela havia, platonicamente, se apaixonado. Mas ela não podia julgar: seu coração batia mais forte toda vez que Gerard Way aparecia com suas calças justas na televisão.
Tem coisas que só uma garota entende.
Enquanto esquentava o que sobrara do almoço que as duas fizeram juntas, terminava de arrumar sua coleção de calcinhas na gaveta, sempre das mais usadas para as menos usadas. Concluído o trabalho, juntou-se à amiga na cozinha.
- Eu baixei aquele filme de terror que você queria ver, podemos assistir. Ainda é cedo para dormir – sugeriu.
- Boa ideia – disse toda animada.
- Vou conectar o cabo e assistimos na TV da sala.
- Você já jantou?
- Não, mas estou sem fome. Como mais tarde.
- Está bem.
voltou para o quarto e fez seu prato, levando-o para a sala. Jogou uma almofada no chão e sentou-se nela, usando outra para apoiar sua refeição. Alguns minutos depois, iniciava o filme.
Essa é a parte na qual a única coisa rolando na história é o próprio filme, ou seja, ninguém fala. Então, enquanto nada acontece, sinto-me na obrigação de enrolá-los. Eis alguns fatos importantes: , baixinha, e , mais alta, moram juntas em um prédio baixo de estudantes na cidadezinha de Paraíso, Minas Gerais, mas foram nascidas e criadas no interior de São Paulo. E, quando digo cidadezinha, é inha mesmo. Ambas cursam o segundo ano dos cursos de Moda e Biologia, respectivamente, embora não tenha muita certeza do que quer da vida. Nas horas vagas as meninas não fazem nada, pois não há nada para se fazer no fim do mundo. Digo, em Paraíso.
- Não sei como você consegue comer com todo esse sangue – disse com uma careta, cortando abruptamente o narrador.
- É o costume.
- Só você mesmo. Eu sempre acho que... – estava prestes a dar um discurso sobre mortes em filme de terror, mas um som bastante alto a interrompeu.
- Eu não acredito nisso – suspirou, rolando os olhos.
- Mas que inferno, o final de semana todo foi isso – se levantou, nervosa. Andou até a porta com a intenção de abri-la, mas uma batida fez com que ela... a abrisse.
- Posso ficar aqui com vocês? – , um dos meninos que moravam no apartamento da frente, pediu.
- Não vai farrear esse final de semana? – perguntou sem tirar os olhos da TV.
- Farrear? É isso o que vocês acham que acontece lá dentro?
- Não – respondeu dando espaço para o garoto entrar. – Nós sabemos que vocês três compram bebidas e bebem sozinhos a noite inteira. É patético.
- Obrigado – sorriu com ironia. saiu do apartamento.
- O que está vendo? – o garoto perguntou, se aproximando.
- Filme de terror, senta aí.
Ele assim o fez. não sabia, mas um arrepio percorria o corpo dele toda vez que ela estava por perto.
- Qual é a dessa música?
suspirou.
- Ideia do . A intenção é atrair a galera do prédio pela música para uma festa, mas, até agora, ele só conseguiu reclamação.
- Genial – respondeu, irônica. roubou uma batata frita de seu prato já quase vazio. – Não quis tentar a sorte com eles hoje?
- Por Deus, não. Tenho prova de cálculo no primeiro horário, preciso estar descansado.
o olhou com um sorriso no canto dos lábios.
- Uh, todo responsável, que bonitinho.
Ele sorriu de volta, ignorando o calor que se espalhava pelo seu corpo.
- O que fez no final de semana?
- Nada demais. Estudei um pouco, vi televisão um pouco, dormi muito, comi bastante. Ah – levantou um dedo como se lembrasse de algo -, e escutei um pouco de música.
soltou uma risada.
- Desculpe por isso.
- Não é sua culpa. Vou levar o prato pra cozinha, já volto.
assentiu e acompanhou a menina com o olhar até que ela desaparecesse. Respirou fundo, afastou os pensamentos e tentou se concentrar no filme, sem muito sucesso.
- UHUUUL!
O grito estridente chamou a atenção do garoto e fez com que aparecesse na porta da cozinha. Houve uma troca desconfiada de olhares. se levantou e abriu a porta, sendo acompanhado por , e então os dois viram dançando em cima da mesa de centro do apartamento à frente. Ela tinha uma garrafa de cerveja em uma das mãos e chacoalhava o corpo desajeitadamente enquanto e apenas a olhavam, de pé.
- ! – a chamou.
- Oi, – ela balançou a mão livre enquanto pulava na mesa. – Venha pra festa, tá bombando!
- É, eu posso ver – a garota riu. deu um gole na cerveja e desceu da mesa, voltando para seu apartamento. a agradeceu.
- Bom, eu já vou. Obrigado pela hospitalidade e, , pelo fim da palhaçada. Boa noite.
- De nada, meu amor. Boa noite.
- Boa noite, – sorriu.
E, só por isso, aquela foi uma boa noite para o menino.
Cena 2
"Hoje, tudo se recomeça. Oh, pequena angustiada segunda-feira, onde está a tua beleza?"
Segunda feira, seis e quinze da manhã. As duas acordaram ao som de Vira-vira, Mamonas Assassinas, pois esse era o mais recente toque do celular de . levantou a cabeça lentamente do travesseiro, olhando para o aparelho com o cenho franzido e os lábios entreabertos.
- Mas que porra é essa? – perguntou quase em um sussurro. se espreguiçou na cama e, depois de bocejar, respondeu.
- Ah, é, eu mudei meu toque.
suspirou e rolou na cama, levantando-se em seguida.
- Recente – ironizou.
As meninas começaram então a maçante rotina matinal. Enquanto se vestia, usava o banheiro, pois só havia um no apartamento. Logo elas trocariam de função.
- Azul ou vermelho? – gritou do quarto.
- Vermelho.
Ela tirou a blusa do cabide e a vestiu, junto com a calça branca e o sapatinho também vermelho. Perfeccionismo era seu nome do meio.
Minutos depois, prontas, as duas tomaram um rápido café e pegaram carona com até a universidade, onde cheerleaders andavam com suas mini saias e pompons, futuros Reis do Baile desfilavam em suas jaquetas esportivas, o gel modelando os cabelos, e os losers comiam em mesas separadas no intervalo.
Só que não.
Nada aconteceu. babava na apostila de Ateliê de Costura enquanto se lembrava da cena de Edward e Bella ao trocar as lâminas no microscópio em Citologia II. O tempo passou devagar, nada excitante aconteceu, nadinha mesmo e, à noite, todos estavam de volta aos seus respectivos apartamentos.
- O que vamos jantar hoje? - perguntou olhando para o interior da geladeira aberta há sete minutos.
- Miojo? - sugeriu, fazendo a mais alta olhá-la de relance.
- Adoro sua expertise culinária.
A garota deu de ombros, enrolando o cabelo no indicador.
- Quer roubar comida no apê dos meninos?
- Essa é uma boa ideia.
As duas se dirigiram até a porta da frente e bateu. foi quem a abriu, o mesmo calor correndo o peito ao ver a garota que invadia seus sonhos com certa frequência passar por ele sem esperar o convite.
- A gente veio comer - informou, jogando-se ao lado de no sofá preto de três lugares. Praticamente o único móvel no lugar.
- Tão achando que isso aqui é o quê, a casa da Mãe Joana?
- E qual de vocês faz esse papel, querido ? - perguntou, sentando-se numa das cadeiras da mesa redonda de madeira.
- Deixa as meninas filarem boia, a gente tá sempre roubando comida lá - , que sempre advogava à favor das duas, deu seu parecer sobre o caso.
- Muito bem observado, menino - deu seu joinha. - O que estavam fazendo?
- Estávamos prestes a jogar pôquer - respondeu, sentando-se ao lado da amada.
- Uh, pôquer! - os olhos da mais baixa brilharam.
- Sabe jogar? - questionou, surpreso.
- Se eu sei jogar? - a menina quase se ofendeu. - Meu amor, você está conversando com uma jogadora profissional.
As sobrancelhas da colega de quarto se arquearam, duvidosas sobre o grau de veracidade contido em tal afirmação. , que estava parado junto à TV, tirou o baralho de uma das gavetas do móvel que a sustentava e sentou ao lado de .
- Que comecem os jogos - disse, enfático, recebendo um olhar sangue-no-zóio da rival.
- Prepare-se para chorar, ABC player.
abriu a boca.
- Ok, chega de papo furado, vamos jogar logo - interrompeu a troca de gracejos.
, que já se arrependia de ter aceitado a ideia da amiga, se encontrava perdida e com fome.
- Escuta, tem comida? - sussurrou para , que riu do jeito da menina.
- Nós pedimos pizza, mas fique à vontade pra assaltar a cozinha.
- Muito obrigada.
A garota fez um tour pelo cômodo, voltando de lá com um saco de batata chips, um pacote de Trakinas, três Bisnaguinhas e geléia de morango. , que distribuia as cartas, fez o informe.
- A gente pediu pizza.
- Eu sei, só tô aquecendo - mordeu uma bisnaga, juntando-se ao grupo, que a encarou com um misto de espanto e fascinação por um momento. Quando colocou uma carta na frente da menina, pedaços de massa mastigados foram contemplados por um segundo. - Eu não sei jogar.
- Amiga, é fácil, ó...
se pôs a explicar as regras do pôquer à amiga, que não entendeu nada, mas sorriu e acenou não porque era educada, mas porque não estava a fim de entender nada mesmo. Os meninos tinham os olhos fixos na mais baixa, que discursava com visível orgulho e animação, espantados pelo fato de uma garota saber tanto sobre pôquer. Ao final da explicação, que durou mais do que todos na mesa gostariam, o jogo começou.
E, como previsível, nada realmente excitante aconteceu, mas a mesa teve um momento cômico na vez de .
- , sua vez - alertou. A menina, que tinha uma bolacha na boca, engoliu-a e o olhou.
- Eu não entendi nada.
Todos riram, com exceção de , que rolou os olhos enquanto bufava. , como um perfeito cavalheiro-idiota-semiapaixonado, aproximou sua cadeira da dela, voltando as cartas da menina para o monte.
- Ela joga comigo pra entender e entra na próxima.
- Boa - aprovou.
Três rodadas e continuava como dupla café-com-leite de , ainda não entendendo nada, mas apreciando o sabor da Trakinas com a geleia de morango - e o que foi bom, pois o jogo pôde continuar quando a pizza chegou. E as coisas foram esquentar um pouco na quinta rodada, quando o placar estava dois a dois para e .
- Onde você aprendeu a jogar assim? - perguntou, chocado com as habilidades de .
- Sem conversinha, garoto, eu quero falar é de recompensa - esbravejou, os olhos bem abertos, as veias à flor da pele, a boca espumando de ódio e prazer. parou de comer por um breve momento só pra analisar a expressão doentia da amiga. recuou na cadeira.
- Vinte reais pro ganhador da rodada - sugeriu.
- Cinquenta - rebateu.
- Cinquenta e uma semana paga de iFood na janta.
- Cinquenta, uma semana paga de iFood e mais uma de almoço no RU.
- Cinquenta, iFood, RU e a entrada do Paddock.
Nesse momento, e quase subiam na mesa.
- Cinquenta, iFood, RU, entrada e um mês de cerveja nas festinhas!
, que não sabia se ria ou se chorava, limpou a boca com a língua antes de jogar o balde de água fria.
- Algum de vocês, por acaso, tem dinheiro pra tudo isso?
Silêncio. O tique-taque do relógio ecoou pelos cômodos mal mobiliados do apê. O olhar rival, penetrante e frustrado, foi pouco a pouco substituído pela redenção.
- Vinte reais? - ofertou.
- Fechado.
e riram divertidamente e rolou os olhos enquanto lambia o catupiry da borda da pizza. O jogo recomeçou.
- Eu tô na aposta também, não é possível que vou perder pra vocês.
- Você já perdeu, , está dois a dois para mim e o .
- Tanto faz, esse vintão é meu!
- Você só blefa.
- Ela tem razão - concordou.
- Toma essa trinca aqui pra começar então - o rapaz jogou, arqueando uma sobrancelha de .
- Qual sua mão, ?
O menino, que só observava, falava nada não, abriu a boca para responder , mas foi morto por , que bisbilhotava suas cartas e entregava seu jogo pela quinta vez.
- Nossa, não da pra formar nada com isso aí.
baixou a cabeça para disfarçar o riso, levou uma das mãos à boca e encarou a amiga com os lábios entreabertos enquanto respirava fundo, dessa vez mais desistente do que apaixonado.
- É isso aí, galera, eu tô fora - disse, embaralhando as cartas no monte novamente.
- Ótimo, menos um. Não que você fosse durar muito, de qualquer jeito... - disparou e o menino abriu a boca para protestar, mas se interrompeu por achar que não valia a pena e por saber que ela estava certa.
- Bom, eu já to satisfeita, então vou pra casa tomar sorvete - se levantou, recebendo olhares um tanto quanto julgadores dos colegas. , vendo uma oportunidade de ficar sozinho com a amiga, se convidou.
- Não tenho mais nada pra fazer aqui, posso ir junto?
- É claro. Boa sorte, meninos, vocês vão precisar.
Mas ninguém ouvia mais nada: ganhar aquela partida era uma questão de honra, dignidade e vinte reais.
Cena 3
"Hoje, tudo se recomeça. Aqui e agora, para sempre e por ora, eu me encontro em você"
- Não sabia que a podia ser tão... - começou, hesitando para tentar achar a melhor palavra.
- Vaca?
O menino franziu a testa, rindo de leve.
- Ia dizer competitiva, mas essa palavra serve.
- Desculpe por entregar seu jogo, foi sem querer - disse com um biquinho constrangido, fazendo o menino sorrir enquanto afundava as mãos nos bolsos do shorts. - Todas as vezes.
- Ah, tudo bem, eu nem sou muito fã de pôquer e já tava cansando - tirou o pote de sorvete do freezer e pegou dois negocinhos de vidro, aquelas coisinhas que servem pra colocar qualquer sobremesa dentro. O rapaz riu. - Você vai mesmo tomar sorvete...
- É claro. Gosta de napolitano, né?
assentiu e logo os dois estavam sentados no chão, as costas no estofado do sofá porque era mais divertido assim e ambos ainda tinham lombar.
- Você achou que a universidade ia ser assim? - perguntou com o olhar um pouco perdido em seu sorvete.
- Assim como?
- Assim... parada - o menino a olhou.
- Sem graça, sem vida, sem acontecimentos?
Um brilho surgiu nos olhos da garota.
- Exato!
começou a rir, admirando o nariz dela.
- Hollywood engana bem, mas devo admitir que nós cinco nos divertimos.
concordou primeiro com um gesto de cabeça.
- É, tem razão, somos um bom grupo.
- Não com a putaria que o gostaria, mas, sim, somos.
A menina riu abertamente, fazendo com que o tempo parasse para ele naquele momento.
- Só o ? - provocou, abrindo um sorriso de canto no rosto dele. - Ahhh, ora, ora, os quietinhos são sempre os piores...
- Nãão, não é assim, mas também não precisava ser... - ele se interrompeu, mais uma vez buscando pela palavra, que achou.
- Assim?
assentiu, divertido, levantando as sobrancelhas num gesto de reconhecimento da obviedade do complemento, e houve um momento de silêncio gastronômico.
- Qual seria seu cenário perfeito? - ela perguntou, deixando-o quente e frio ao mesmo tempo. Um suspiro, uma colherada contendo cinco vezes mais massa e um arrependimento na raíz dos dentes depois, ele mentiu.
- Acho que não tenho um cenário perfeito.
- Duvido. Você tinha, pelo menos, expectativas - ela o olhou de relance. - Mas tudo bem se não quiser compartilhá-las.
pensou por um momento. Não queria deixá-la sem resposta, pelo contrário, seu desejo era interagir ao máximo com , mas dizer a verdade não era uma opção no momento. Ele mentiria? Mudaria de assunto? Fingiria um desmaio? Procuraria ajuda profissional? Apenas o narrador sabia.
- Eu... nunca fiz o tipo pegador, sabe...- começou, incerto, e a menina pareceu gostar do que ouviu. - Então, talvez, o mais próximo do ideal para mim seria encontrar uma garota legal e... não sei, me relacionar.
observava o rosto do rapaz enquanto ele falava, sereno e sincero, doce e diferente do que ela costumava ver por aí. Alguma coisa nele, naquele momento, fez com que a menina reparasse nele de verdade pela primeira vez: as pontas dos fios na nuca, subindo por trás da orelha; o nariz sem falhas no perfil, a pele corada e os dentes levemente tortos no sorriso meio menino, meio homem. Sem perceber, ela virou o corpo na direção do dele, que brincava com o sorvete quase derretido no pote.
- A gente se conhece há quase dois anos, mas a gente não realmente se conhece, já percebeu?
olhou para ela, vendo seus olhos levemente apertados o observando.
- É, acho que isso é verdade... nós nunca conversamos sozinhos antes.
Ele viu os lábios desenhados de se curvarem em um sorriso maroto e a ideia, qualquer que fosse ela, cruzar os olhos da menina. Intrigado pela expressão, seu coração bateu mais rápido.
- Já jogou eu nunca?
- Hm, o nome não me é estranho, mas creio que não.
O sorriso aumentou, deixando-o numa mistura de receio e entusiasmo, ainda mais quando se levantou para atravessar a porta da cozinha, voltando de lá com uma garrafa de vinho aberta.
- Eu digo algo que nunca fiz - começou, esperando-o assentir para ter certeza de que estava tudo bem. - E aí, se você já tiver feito, bebe um gole. Sem mentiras.
sentiu a adrenalina do jogo correr suas veias antes mesmo de aceitá-lo, e hesitou, tentando prever o resultado. Uma parte sua se sentia desconfortável e a outra, morrendo por aquilo.
- Feito.
- Ok... - se ajeitou, respirando lentamente para pensar. - Eu nunca roubei coisas idiotas.
negou com um gesto, sem beber.
- Eu nunca me meti numa briga.
- Isso é surpreendente - ironizou, recebendo um olhar debochado, e bebeu um gole. levantou as sobrancelhas. - Quinta série, uma pirralha xingou meu irmão e puxei o cabelo dela. Foi pior do que parece.
O garoto riu, imaginando a cena.
- Não sei, parece bem feio - debochou, divertindo a menina. - Eu nunca fumei maconha.
O queixo de caiu e ela bebeu outro gole, arrancando uma risada alta dele.
- Ano passado, festa dos calouros, e no começo desse ano de novo - confessou. - Foi divertido, mas não é algo que me chama.
- Algo além de maconha?
- Não, nem pretendo - ela falou a verdade e ele soube disso. - Eu nunca transei no banheiro de uma festa.
Dessa vez, o menino bebeu.
- Ahhhhh, garanhããão - foi a vez dela rir alto, o som invadindo cada pedaço dele. - Põe na roda!
- Ano passado, Paddock - suspirou, meio envergonhado, meio gostando daquilo. - Eu tava meio bêbado e tinha essa menina se esfregando o tempo todo em mim... - ele deu de ombros. - Não tava fazendo nada mesmo.
gargalhou, ligeiramente espantada com a confissão.
- Quem diria, o certinho do rolê... Uma vez só?
- Com ela? - assentiu. - Sim, foi só naquela noite.
- E já pegou mais gente no banheiro?
- Não é uma confissão por vez?
- Isso é um sim? - a menina se divertia, o corpo cada vez mais na direção dele, que fez o mesmo ao perceber. Cara a cara, o menino se sentiu mais quente.
- Outros lugares. Eu nunca trai.
O riso se transformou em um sorriso satisfeito no rosto da menina, que não bebeu. sentiu o mesmo e, naquele momento, houve uma breve, porém gostosa sustentação de olhares entre os dois.
O jogo continuou com afirmações menos íntimas e mais gerais, levando o menino a um estado semi alcoolizado - aquele onde adquirimos coragem, mas ainda nos encontramos sóbrios o suficiente para sabermos o que estamos fazendo. também havia tomado goles consideráveis, mas tinha mais imunidade à uva fermentada. Nessa parte da história, nada aconteceu, nada mesmo, mas eles riram e se conectaram de uma forma diferente - uma forma deles.
Até que , perdida entre o timbre da voz dele e o calor vindo do vinho, fez sua jogada.
- Eu nunca senti vontade de beijar um amigo.
ficou sóbrio. Os olhos dela olhavam atentamente os dele, as írises brilhando como dois cristais. Ele tinha uma queda por ela desde o começo, quando se conheceram numa festa qualquer num dia ordinário, antes de descobrirem que eram vizinhos de porta. Sorte a dele - ou azar? - por ver o rosto dela todos os dias pela manhã.
Ele não soube o que fazer. O olhar da garota passou a ficar incômodo, então ele baixou um pouco a cabeça, desviando a atenção para a garrafa em sua mão enquanto inflava as narinas e apertava os dedos da mão livre, evidenciando seu leve desespero. Uma risada rápida e nervosa escapou, e quais eram as opções? Beber ou não beber? E, então, ele entendeu Shakespeare.
bebeu.
- Posso perguntar? - suavizou a voz, um calafrio percorrendo sua espinha quando ele mordeu o interior da boca, visivelmente posto entre a parede.
não queria mentir, mas não queria dizer a verdade. Ou queria? Ali, olhando nos olhos da menina que sorria em sua mente dez vezes ao dia, não valeria a pena arriscar?
arriscou.
- Você.
ficou quente e depois, fria. No fundo, aquilo era exatamente o que ela queria escutar - e de onde vinha a atração repentina? Ali, olhando nos olhos do menino que a encarava com medo e desejo, não valeria a pena descobrir?
- Eu nunca roubei um beijo sem me importar com as consequências.
aproximou o rosto do dela, a vontade de sentir a boca da menina na dele gritando em cada célula, mas os gritos ferozes de os assustou, fazendo com que ele recuasse antes da porta ser escancarada. Em êxtase, balançava sua nota de vinte na mão.
- Estenda o tapete vermelho, meu amor, porque a rainha do pôquer vai passar.
A mais baixa, que agora se sentia mais alta do que todos eles juntos, sensualizava com movimentos coreografados, esfregando a nota pelo corpo enquanto atravessava a sala. Do outro lado, prendia o riso enquanto tinha os braços cruzados, emburrado.
- Vai ter troco, ! - o rival esbravejou. esticou a nota entre os dedões e os indicadores, rebolando para ele.
- Pra vinte?
não conseguiu não rir, chamando a atenção de de volta para ela. Os olhares se cruzaram, tímidos, desejosos, sem graça, interrompidos. se jogou na poltrona, inebriada pelo próprio poder, e então os olhos do menino disseram à garota a sua frente o que ela precisava saber antes dele se levantar e cruzar a porta.
- Céus, esse jogo me deu um orgasmo - balbuciou, mas estava longe.
estava presa num mundo onde seu lábio pulsava no ritmo da respiração de .
Cena 4
"Hoje, tudo se recomeça. Nada acontece até acontecer - eu, você e, veja só, um novo amanhecer."
Essa é a parte da história onde tudo, tudo mesmo, acontece. se levantou, o quarto escuro como a madrugada, e checou o relógio em seu pulso - meia noite. Respirou fundo - parecia que estava deitada há tão mais tempo. Sem ter conseguido fechar os olhos, a menina calçou suas pantufas e foi até a cozinha, tomando todo o cuidado para não acordar a amiga, que dormia abraçada à nota de vinte. Não se atreveu a acender as luzes, seus olhos já estavam acostumados à escuridão, e alguns feixes sempre escapavam pelas janelas. Tomou um copo de água e resolveu se sentar onde, mais cedo, o garoto que agora ocupava sua mente se sentara. Ela ainda conseguia sentir a respiração dele na pele dela.
E, depois disso, tudo aconteceu muito rápido.
Uma batida leve na porta, a breve hesitação pela surpresa, uma segunda batida e eles se encontravam, novamente, cara a cara.
- Posso entrar? - sussurrou, as mãos nos bolsos do shorts. Ele ainda usava as mesmas roupas.
sorriu, quente e fria, abrindo espaço.
- Sem sono?
- Acho que somos dois - riu, constrangida ao notar o olhar do garoto percorrer seu corpo. - Belo pijama.
A menina olhou para baixo, rolando os olhos com o desenho da frase ninguém supera a em itálico.
- Nem queira saber.
Três segundos de silêncio e então o cortou.
- Será que posso te pedir um copo de água?
- Mas é claro.
voltou à cozinha e tirou um copo do armário, colocando-o na pia. Quando se virou, tudo aconteceu muito rápido: os braços de firmes na cintura dela puxando-a para ele enquanto seus lábios se encaixavam, gentis e intensos, nos dela. estremeceu ao sentir o choque entre os corpos, sua coxa ficando entre as dele, e a menina envolveu o pescoço de com os braços, dando permissão para que ele aprofundasse, de cara, o beijo.
A língua dele brincava com a dela como se a conhecesse há tempos, e era difícil para não sorrir quando acariciava seu lábio inferior com a ponta da dela, entorpecendo-o por completo. O gosto da boca dele era doce. A respiração de falhava toda vez que os dedos de tocavam, sutis, a pele da barriga dela.
O momento durou e terminou com os braços dela ainda envoltos no pescoço dele e os braços dele ainda firmes em volta da cintura dela. causava pressão no peito de toda vez que respirava e vice-versa. Testas coladas, olhos fechados, narizes se tocando, o sabor de um rodando na língua do outro. Quente e frio ao mesmo tempo.
- Eu poderia ter te beijado na porta, mas não seria um beijo roubado - ele sussurrou contra os lábios da menina.
- Eu gostei bem mais assim...
sorriu.
- Sonhava com isso há tanto tempo...
deslizou os lábios entre os dele, sugando seu inferior lenta e levemente. só desejava que aquela noite nunca acabasse.
- ? - ela o chamou num sussurro quase inaudível, e o menino teve forças apenas para um murmúrio. - Eu nunca quis um amigo...
Os olhos de se abriram devagar. Da mesma maneira, ele afastou o rosto apenas o suficiente para que suas pupilas conseguissem focar as dela, e então os olhos da menina a sua frente confirmaram o que ele precisava saber antes de cruzar, com ela em seus braços, a porta do quarto do outro lado.
Esse é o momento da história onde ele consegue o que quer e ela, o que não sabia que queria.
Fim
Nota da autora: Obrigada por ler <3
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