Finalizada em: 19/05/2020

Capítulo Único


Esta história se passa em uma época muito antiga, quando os regatos ainda corriam sem curso e antes da neve branca cair sobre os picos das montanhas. Incontáveis gerações no longínquo país de Naveera ainda transmitem esta lenda, e por isso é conhecida por mais de um dos muitos povos de tão estranha terra. Dizem que se trata de uma história real, relegada às águas e aos ventos que não mais voltam, porém nunca teremos certeza: as águas e as intempéries falam em línguas que deixamos de entender há muitos éons. E mais uma vez ela será contada, para que não fique perdida na Eternidade nem nas correntes do Universo que nos rodeia. Se ela é real ou não, caberá a você decidir, estimado, estimada ouvinte. Envolva-se com ela e siga o caminho apontado. Lembre-se de agasalhar-se com peles e levar uma tocha, pois o caminho é escuro, por vezes frio e tortuoso.
Nossa história é sobre os azuis fogos-fátuos e a magia de mundos distantes, porém é principalmente sobre a perda e a descoberta — sobre o encontro dos diferentes caminhos em uma única jornada. Em um lugar com calçadas de pedras brancas e mosaicos intrincados nos cantos dos prédios, em meio às colinas e próxima à costa de um mar muito azul e calmo, ficava uma cidade pequena e acolhedora. Poucas criaturas habitavam aquela região, e ainda menos pessoas. Mas essa cidade era o lar de uma pequena família, composta por um pai de olhos claros e sua filha, reconhecida por seus cabelos pretos.
Naquele tempo e naquele local de Naveera, a vida se resumia ao passar das estações e às colheitas abundantes do clima mediterrâneo. Seus habitantes, acostumados ao vinho e às frutas, passavam pela vida sem grandes preocupações. O mesmo ocorria com a jovem cujo nome foi esquecido. Para os propósitos desta história, nós a chamaremos de , pois ela colhia flores das colinas e as vendia nos dias de mercado, quando os habitantes de aldeias próximas visitavam a cidade. Seu pai era um artesão, conhecido pelos moradores por ter a habilidade de consertar qualquer tipo de tecido, fosse roupa de feira, fosse armadura, com alguns movimentos de suas mãos ágeis e os materiais corretos. Não era tudo devido a seu talento, porém: a matéria-prima vinha da floresta de pinheiros, por vezes envolta por sombras coloridas, quase uma fronteira que a separava do resto da paisagem. Ninguém sabia a origem daquele estranho fenômeno, mas tinham um respeito quase temoroso por aquele local. O pai dela era um dos poucos que se atrevia a entrar na floresta, coletando apenas o necessário.
E é no final do verão que esta lenda começa. Em mais um dia ensolarado e de céus azuis, a filha do artesão saiu caminhando pela estrada de pedregulhos, pela primeira vez já adulta o suficiente para visitar a floresta por si só. Ela queria evitar que ele trabalhasse ainda mais do que o normal, e por isso havia combinado com ele que ficaria responsável por buscar a matéria-prima. Embora a floresta fosse próxima da cidade, ela se demorou em seu caminho pois parou várias vezes para conversar com outros viajantes, todos membros de sua comunidade e moradores de sua cidade natal. Ela e seu pai eram conhecidos na comunidade e cultivavam boas amizades.
Quando por fim a estrada ia ficando mais estreita, ela olhou para trás, vendo sua cidade na colina mais distante. E continuou em frente, seguindo pelo fim da estrada, que ficava um pouco mais escura conforme se aproximava dos limites da floresta, sem saber que a luz dourada do final da tarde desaparecia atrás dela. Ela notou as sombras coloridas pouco tempo depois de entrar na floresta, após se distrair com as árvores altas. Virando a cabeça, viu sombras de cores que nunca havia visto. A maioria era de tons que não existiam naquelas terras — talvez de locais debaixo do mar ou acima das montanhas, mas ela nunca saberia definir. seguiu as sombras por tanto tempo que o dia virou noite e o calor esfriou. Ela apertou a capa em torno dos braços enquanto continuava em seu caminho, sem hesitar e se surpreendendo a cada vez que as sombras mudavam de cor.
O caminho que fez dentro da floresta jamais seria esquecido, embora a própria garota não lembrasse. Após muitas horas andando pelos caminhos mal iluminados e sinuosos, ela viu uma figura ao lado do maior pinheiro pelo qual havia passado. A figura se virou, ficando mais fácil de vê-la conforme se aproximava. Na frente de estava uma mulher usando uma capa azul-marinho, bem iluminada pelas sombras, que agora tomavam vários tons de branco, lançando uma luz fraca. O que mais chamou atenção, no entanto, foi sua altura e uma inscrição verde que tinha na testa. não conhecia seu significado. Os cabelos da mulher se misturavam com a capa, então não soube definir sua cor, apenas viu que eram compridos. A luz brilhava no rosto pontudo da mulher, e ela esticou um de seus braços para a frente.
— Após tanto tempo, alguém veio. Estávamos te esperando. — A voz profunda a tranquilizou.
— Deve estar me confundindo com alguém — respondeu, sem nada entender. — Eu vim aqui para coletar alguns materiais para o meu pai. — Dizendo isso, olhou em volta, mas não viu os arbustos que ele lhe tinha dito para procurar. — Só preciso encontrá-los e já vou para casa.
— Não será assim, — antes que pudesse perguntar como sabia aquilo, a mulher respondeu. — A floresta me disse o seu nome. As sombras de muitas cores a trouxeram até aqui. Há anos elas tentam atrair alguém digno, e ainda nenhum mortal as havia seguido por tanto tempo. Isso mostra uma promessa sua. É de se pensar que a floresta confia em você.
— E você, quem é? Você mesma não pode cumprir essa tal promessa?
A mulher se aproximou mais e tocou no braço de . Aquele gesto a deixou mais tranquila e, por causa da proximidade, viu que um olho dela era vermelho e outro era azul, e os dois brilhavam com a mesma intensidade.
— Nomes não têm tanta relevância aqui, você pode me chamar como quiser. Eu sou apenas uma mensageira cumprindo uma missão. Meu dever é guiar quem quer que venha até aqui. Os que são como eu se conectam à natureza, porém não temos o poder de mudar os acontecimentos. Diferente de mulheres como você.
— Por que menciona mulheres, ? — era o primeiro nome que lhe vinha na cabeça, de tão surpresa que estava com aqueles olhos de cores diferentes. — Você ainda não me falou que promessa é essa.
— Porque nós estamos mais conectadas aos espíritos que aqui vivem. Um homem também poderia cumprir a promessa, porém seria mais desafiador. Eu me refiro ao pacto que foi firmado entre os mortais e esta floresta, um dos pontos de origem da magia naveeriana. Como foi a primeira a vir aqui em tantas décadas, , a floresta espera que você lhe faça um serviço. E, como recompensa, os campos ficarão mais verdes e a colheita mais farta.
— Eu só quero ir para casa — confessou, cansada daquela conversa. Nada daquilo estimulava seu interesse ou curiosidade.
— Eu entendo isso — sorriu um pouco, mas logo uma expressão preocupada tomou suas feições. — Mas a floresta não. Segundo o que dizem as estrelas, ninguém virá depois de você. — Olhou para o céu estrelado por um momento. — , a floresta precisa de ajuda. Se você não apaziguar o Espírito do Pântano, temo que o equilíbrio entre a magia, os humanos e a natureza acabará em alguns anos. E, com o fim do equilíbrio, não restará nada além da terra seca e morta.
— Então a existência dos espíritos depende das atitudes das pessoas?
— Exato. Os espíritos não têm o poder de resolver isto sozinhos, precisam de ajuda mortal. Eles mesmos me comunicaram tudo isto. Eu sinto muito por lhe dar esta responsabilidade e, novamente, faria eu mesma, se fosse possível. Porém, tudo deve acontecer desta maneira.
— Está bem. Vou ajudar — pareceu perceber a seriedade da situação e dali em diante sua preocupação com o estado da floresta se tornou maior que sua vontade de voltar para casa. Afinal, seu pai e todos ficariam bem se ela ajudasse a restaurar o equilíbrio. pareceu aliviada e guiou pela floresta, enquanto as sombras coloridas continuavam sobre elas. Enquanto caminhavam, lhe contou sobre muitos segredos da ordem da magia e do universo, e se sentiu mais preparada para o que teria que enfrentar.
Enquanto caminhavam pela relva sinuosa, não se sentiu cansada, e pensou que a conversa agradável fosse o motivo. O céu já estava com os tons dourados do final da madrugada quando pararam. Aquela era a fronteira entre a floresta e um pântano, em um lugar tão profundo e escondido que era desconhecido pela maioria das criaturas que viviam entre os pinheiros.
— Fique perto de mim — sussurrou e elas entraram no pântano de braços dados, as sombras coloridas dando a única fonte de luz. Estava muito mais escuro lá dentro que no resto da floresta. parou quando viu que a mensageira fez o mesmo. Pelo que pouco que conseguia ver, parecia que estavam na beira de um pequeno lago. Na frente delas algo grande se movia e ouviam a água se mexer com seus passos pesados, conforme a figura pisava dentro do lago.
Naquele momento sentiu a mensageira mexer o braço que estava enlaçado ao seu, soltando-se. Seus olhos acompanharam as sombras, vendo-as se movendo, dançando em volta do braço de e em volta da capa azul que vestia, e com simples gestos da mensageira subiram um pouco acima das duas, mudando de cor para branco. A única coisa que passou pela cabeça de foi que aquela era uma boa fonte de luz, e de fato suas suspeitas se tornaram verdadeiras, pois viu que de fato estavam na beira de um lago, em pé sobre os últimos trechos de grama. O cheiro de terra molhada invadiu o ambiente, o que deixou mais calma, voltando a olhar para o lago e para a criatura que se movia dentro dele. olhou de soslaio, vendo uma expressão tranquila na mensageira, sem nenhum sinal de surpresa.
Conforme se aproximava, a figura mostrou ser um gigantesco gato preto. Era tão grande que as águas do lago batiam em suas patas, e pequenas ondas se formavam quando se movia. observou como ele e se curvaram um para o outro.
Grata, auguratricis. — A voz dele era grave e profunda. Ele se virou para . — Seja bem-recebida. Os espíritos da floresta me dizem que você deve cumprir Três Provações para apaziguar-nos. Terás o apoio da auguratricis. — Os bigodes dele se mexeram enquanto falava e sentiu um formigamento na testa, e tocando-a sentiu o formato de uma estrela. — Em alguns desafios, as suas armas serão o intelecto e a rapidez. Em outras, você terá objetos. Porém, cuidado: você está arriscando sua vida para recuperar o equilíbrio do mundo. Isso significa que poderá perecer se a pressa se tornar sua inimiga ou se os sentimentos a vencerem. Para saber que está no caminho certo, você voltará a este pântano, que é o início e o fim de tudo. A energia deste lugar me impede de deixar a lagoa, então posso apenas aconselhá-la com a fala. Buona fortuna, guardiana. Que tenha vindo a nós uma verdadeira guerreira.
A palavra que o gato-espírito usou para se referir a ficaria encrustada em sua mente e coração: guardiã. A perspectiva de morrer não a assustou naquele momento. Talvez de fato fosse a pessoa certa para auxiliar os que mantinham o equilíbrio. O gato ficou parado, olhando-as se afastarem após tocar o ombro de com delicadeza, acompanhando-a em um caminho oposto ao que as havia trazido ao pântano.
— O primeiro desafio é a Provação de Conhecimento. — A partir dali, começou a falar muito devagar, de maneira que os passos delas eram mais rápidos que as palavras. — Use o seu intelecto e a sua intuição para responder às charadas do espírito que nos deu a inteligência e as emoções. — assentiu, vendo como os arredores já haviam mudado em alguns minutos. As sombras, que continuavam dançando acima delas, agora emitiam uma luz amarela, e as botas de afundaram alguns centímetros ao pisar em areia fina. a encorajou e as duas seguiram por um trecho desértico, com o ar ainda frio, o deserto banhado pelo sol conforme amanhecia. parou de andar após mais alguns metros, no mesmo momento em que conseguiu ver uma forma encolhida à frente, não muito distante delas.
— A partir deste ponto, , você deve seguir por si só. As sombras a acompanharão. Eu devo esperar aqui.
não sentiu a necessidade de responder, e apenas deu o próximo passo, observando que as sombras passaram a se mover acima dela após um gesto gracioso de . A forma encolhida se virou. Era um tipo de felino alado de pelo dourado com manchas pretas, com a linguagem corporal de um gato doméstico, porém de olhar muito feroz e feições mais angulares, vagamente humanas. Ele se levantou, com as orelhas viradas para a frente e as asas longas estendidas, ficando maior e mais ameaçador. parou bem na frente dele, perto o suficiente para que pudessem se tocar.
— Mortal vinda das trevas, por duas vezes diga-me: qual bebida obterei se misturar sândalo com erva-filatre? — o felino tinha uma voz baixa e rouca. estava confusa, afinal nunca havia visto sândalo, apenas tinha ouvido falar de suas propriedades curativas. Sentou-se à frente do espírito e pensou em todas as flores que vendia e em todos os produtos que via nos dias de mercado, mas sua mente continuou vazia. Ela olhou para trás, pensando se saberia a resposta, mas o ar foi tirado de seus pulmões com um solavanco e um grito quando o felino saltou sobre ela, pressionando uma garra em seu pescoço.
— Não! — o rugido alto fez seus ouvidos doerem. — Você não pode olhar para trás! Responda ao enigma da esfinge ou do deserto nunca sairá. — olhou nos olhos da esfinge e pediu desculpas, o que a fez se afastar alguns passos, mantendo um olhar muito atento em seus movimentos. Ainda com os ouvidos doendo, respirou fundo e tentou pensar. O que seu pai havia lhe dito sobre ervas?
— Um afrodisíaco. Você obtém um afrodisíaco, porque o sândalo é um perfume — a esfinge rugiu em resposta, dizendo entre rosnados que estava errado. Um afrodisíaco não era um tipo de bebida. queria discordar, afinal conhecia muitas histórias sobre aquilo, mas pensou que fazê-lo não seria muito prudente. Outra ideia surgiu em sua mente, a chance derradeira. Parecia uma opção ridícula. Se ela errasse, tudo estaria perdido.
— Sangue. Irá obter sangue, seja humano ou de outra criatura vivente, pois essa erva, em altas concentrações, é venenosa. É uma bebida porque alguns espíritos se alimentam de sangue.
O espírito inclinou a cabeça e se sentou, dobrando as asas.
— Está correto. Siga o caminho em frente.
Sem dizer nada, seguiu, vendo que após alguns passos o caminho voltou aos corredores verde-escuros da floresta. estava aguardando onde havia prometido e juntas retornaram ao pântano.
— Venci a Provação do Conhecimento. Derrotei o espírito da esfinge. — declarou assim que chegaram à beira do lago. Estava orgulhosa de seu feito.
— Impressionante — o gato concedeu, inclinando a cabeça na direção de . Ela sentiu outro formigamento na testa e desta vez se abaixou de joelhos na grama em direção do lago, vendo em seu reflexo que a estrela em sua testa era verde e que havia ganhado mais uma ponta. — Continue a sua jornada, guardiã.
Elas foram pelo mesmo caminho de antes, desta vez chegando em outro trecho da mesma floresta, porém muito mais escuro e silencioso. pousou as mãos nos ombros de , olhando-a com seriedade.
— Prepare-se para a Provação de Valor, muito mais difícil que a anterior. Você deve seguir por aquele trecho escuro para escapar de uma enorme criatura que se esconde nas entranhas da floresta. Cuidado, pois ele pode estar em qualquer lugar. Nunca olhe para trás, ou ele atacará pelas costas.
— Eu não posso combatê-lo? Por quê fugir dele? — questionou, ouvindo a urgência nas palavras da mensageira.
— Você deve conquistar o medo — respondeu enigmaticamente. Com alguns movimentos de sua mão, as sombras ficaram com um tom alaranjado e depois vermelho, representando o fogo. Tomaram a forma de uma esfera flutuante, com as cores sempre girando dentro dela. Com mais um gesto, a esfera flutuou ao lado de , na altura de sua cabeça. Ela engoliu em seco e prosseguiu, entendendo que não podia oferecer mais ajuda do que aquela.
sentiu uma textura estranha abaixo de suas botas quando pisou no corredor escuro, cheio de pinheiros. Mais alguns passos lhe disseram que era o que suspeitou: uma miríade de ossos, sem dúvida humanos pelo tamanho e pela largura da maioria deles. sentiu um arrepio na espinha e uma fungada em seu pescoço, como se algo estivesse lhe pedindo para se virar. Ela cerrou os punhos, ficando com uma postura rígida, desejando que tivesse uma arma para matar o monstro. Tudo que pode fazer, no entanto, foi continuar em frente, enquanto sua atenção era desviada pelos barulhos de passos que não eram os seus e por rosnados, seguidos de gritos de agonia, que ela não sabia se eram reais ou se eram de algum passado distante. Acima dela o sol se movia para o zênite, indicando o fim da manhã do dia seguinte, mas havia perdido toda a noção do tempo. Ela conseguiu manter-se firme, apesar do coração acelerado e das mãos suadas, mesmo quando uma criatura parecida com uma mistura de urso e lobo apareceu no caminho. Ela o encarou, sem parar de andar, e as sombras brilhantes pareceram assustá-lo, fazendo-o correr para o meio das árvores.
Muitas outras criaturas apareceram conforme andava, porém ela se sentia mais confiante a cada vez que fugiam após serem intimidadas, fosse pelas sombras ou pela presença de — a razão pela qual os vencia não era importante, e sim que ela era capaz. Aquele desafio a fazia ver que o mais importante era a coragem que sentia ao enfrentá-los. No entanto, os ossos continuaram aparecendo e não era possível prosseguir sem pisar neles. Enquanto o fazia, ela se sentiu triste ao pensar no que aquelas vítimas teriam passado. Convenceu-se a continuar, e de cabeça erguida, pois aquele era o único jeito de evitar que todos tivessem aquele mesmo destino. Conforme se aproximava do final do corredor de pinheiros e via a silhueta da capa azul-marinho de ao longe, ela pensava na honra que era receber aquela tarefa. Ela, , seria a responsável por trazer de volta o equilíbrio ao universo. E mesmo que tal feito fosse esquecido com o passar dos éons, bastava que ela soubesse.
sorriu quando viu chegando e imediatamente as sombras foram até ela, voltando à forma original e novamente mexendo-se em diversas cores. O próprio ar da floresta parecia diferente, mais calmo, mais leve. Talvez houvesse menos perigo para quem a visitasse a partir daquele momento. O semblante do gato também estava mais tranquilo quando chegaram até ele, e sentiu a inscrição em sua testa mudar antes que ele dissesse qualquer coisa. Agora ela tinha uma estrela de seis pontas. Não sabia o que significava, nem achava que seria capaz de entender, mas sentia que era algo positivo.
— Já devo agradecê-la, guardiã — ele se deitou no lago, o que fez a água subir, molhando um pouco as roupas delas. — Você pode não perceber, mas já fez muito por nós. Eu e os demais espíritos já sentimos o ar mais leve e fugaz, e sabemos que falta muito pouco para que a conexão entre nós, a natureza que nos cerca e nutre e os mortais seja restaurada. Agora, no entanto, falta a tarefa mais importante. Confie em si mesma e conseguirá.
, assim como o gato, não tinha nada além de palavras generosas e elogios para enquanto iam para o local do último desafio. Seu semblante estava muito mais suave e até arriscaria dizer que parecia mais jovem, como se tivesse rejuvenescido alguns anos. Mas, como ela nunca perguntou, nunca soube a verdade sobre .
— Escute bem, : a última tarefa é a Provação de Fortitude. Parece simples, porém não deixe as aparências a enganarem. Você deve derrotar o espírito que aparecer na clareira à frente com isto aqui — não viu de onde surgiu, mas nas mãos de havia uma lança de aço, incrustrada de cristais verdes.
— Um pique? Mas são os guerreiros que os usam — questionou, confusa. Nunca havia empunhado uma arma de infantaria antes.
— E o que diferencia você deles ou delas? — levantou as sobrancelhas, dando um sorriso convencido. — Diga-me, esta floresta não é seu campo de batalha e não é esta a sua guerra? Além disso, nada a impede de se tornar uma guerreira algum dia, se é isso que quer. — não se sentiu capaz de responder. Afinal, nunca havia pensado naquelas coisas. A vida na pequena cidade, colhendo e vendendo flores, era boa e lhe trazia conforto. — Minhas sombras não irão acompanhá-la agora nem irão iluminar seu caminho. Está claro para mim que pode fazer isto sozinha. Mas vou te dar mais uma coisa. — se aproximou e trançou os cabelos pretos de com rapidez, deixando-os para trás e amarrando uma fita lilás em toda sua extensão. tocou seus cabelos, satisfeita com a mudança, e agradeceu.
tomou a lança das mãos da sacerdotisa e deu passos firmes até uma clareira. Ela segurou a lança nas duas mãos, surpreendendo-se com a sua leveza e como pareceu ajustar-se bem aos seus movimentos e à sua linguagem corporal. Parecia que a arma tinha sido feita para ela. Como não havia árvores para bloquear a luz, o sol banhava a clareira e também a pele de , que se sentiu grata pelo calor confortável. Pela altura do sol, sabia que o dia já havia passado da metade. E sem demora uma grande forma voou rasante sobre , o que a fez assumir uma posição de guarda, como um movimento natural. Ela olhou para o céu cheio de nuvens e apurou os ouvidos, pegando um vislumbre de penas douradas, ou seria pelo? Ela pensou ver uma cauda também.
No momento seguinte uma criatura alada pousou na sua frente. Diferente das outras que havia visto, esta não parecia querer atacá-la, mas a olhava com o que poderia ser curiosidade. Ela era uma estranha junção de pássaro e felino, com a primeira metade de seu corpo de águia, com bico, feições e asas deste animal, além das patas da frente, que eram garras enormes e afiadas. A outra parte de seu corpo, no entanto, era de leão — o corpo esguio e forte, as patas traseiras, tão grandes quanto as da frente, e a cauda. As penas e os pelos se misturavam em seu dorso atrás das asas, e eram de um tom entre o marrom e o dourado. pensou em pedras preciosas ao vê-lo, e por um momento até esqueceu o que havia ido fazer ali. Aquela criatura era bonita e majestosa demais para olhos mortais.
— Lute comigo em um duelo honroso, . — ela nem pensou em perguntar como sabia seu nome. Falou baixo, rápido e claro. — Derrote o grifo, guardião do tesouro.
moveu a lança em suas mãos e a segurou com mais força.
— Assim será e cumprirei meu propósito. Nenhum de nós pode matar o outro. — Ficou surpresa de ditar um dos termos do combate, mas aquilo parecia correto, pois o grifo não a corrigiu.

(Coloque a música para tocar!)

Wakari aeru hi wo tomedo naku sagashita
(Eu procurei sem parar pelo dia de reconciliação)
Ushinau tame dake ni ima wo ikiteku
(Só por perdê-lo, vou viver o presente)
Mou dame da to hitori kodoku wo daite mo
(Mesmo quando é inútil e eu abraço a solidão sozinha)

O grifo deu impulso e levantou voo no mesmo momento em que brandiu a lança e correu em direção a ele. Ele voava baixo, e ela corria sob a sombra dele, girando a lança e mudando-a de posição para tentar alcançá-lo, porém sem sucesso. Em um voo rasante, ele atingiu com uma das garras, derrubando-a no chão. Ela demorou um pouco para se levantar, colocando uma mão no machucado embaixo da costela e usando a lança como se fosse um cajado, apoiando-se nela. Não era um corte, mas com certeza ela ficaria com hematomas da batida.

If you turn on the lights...
(Se você acender as luzes…)
Hikari he terashiteku
(Vou brilhar em direção a elas)

Sempre que o grifo mergulhava em direção a ela, pulava para fora do caminho dele, muitas vezes rolando no chão e depois pegando a lança antes que ele o fizesse. Ela estava mais atenta e não deixaria que ele a acertasse novamente.
— Pare de correr! Reaja! — o grifo gritava, dando outro voo rasante. — Você nunca poderá vencer se não atacar! — conseguiu se esquivar dele e correu mais, até a borda da clareira, onde pegou algumas pedras pontudas e as jogou nele quando voava baixo, porém aquilo só pareceu irritá-lo, não servindo para desorientá-lo como havia planejado.
Dando vazão à impaciência, correu e correu até que seus pulmões não aguentaram mais, e o grifo aproveitou-se do cansaço para pegar a lança em outro mergulho.
— Não! — amaldiçoou e atravessou a clareira, andando devagar por causa da falta de fôlego, em direção a um brilho que havia visto refletido pela luz do sol. Era o que pensava: na borda da clareira, próximo a um arbusto frondoso, estava uma pilha de moedas de ouro. Aquele devia ser o tesouro do grifo. não teve dúvidas e se apossou do tesouro, tirando-o todo de lá, as mãos e os braços cheios de moedas, e foi assim até o meio da clareira. Ao ver o brilho lá de cima, o grifo piou como uma águia faria e desceu imediatamente, largando a lança. Então agiu muito rápido.

“Negai tsudukeru omoi itsuka iroduku yo” to
(“Sentimentos cheios de desejos um dia mudarão de cor”, foi o que me ensinaram)
Oshiete kureta kokoro ni ikitsudukeru hito
(Ser alguém que continua vivendo com isso no coração)
Nanimo kamo hitsuzen no naka de umareru Colors
(Porque as cores nascem dentro de tudo e de tudo inevitável)
Mou ichido kono te de asu wo egakeru kara
(Vou pintar o amanhã mais uma vez com estas mãos)

Ao mesmo tempo em que deixou as moedas de ouro caírem no chão, alcançou a arma e a arrastou para si com seu pé, deixando a outra perna em meio ao tesouro, mostrando ao seu oponente que não planejava sair de lá tão cedo. Ela sorriu triunfante, segurando a lança de novo em posição de ataque, enquanto o grifo a cercava, sem conseguir descer o suficiente para pegar as moedas, já que ela apontava a arma na direção dele.

Itsu no ma ni ka boku wa nakusu koto ni mo nare
(Antes que percebesse, eu me acostumei com o que perdi)
Te ni ireta mono sae yubi wo surinuketeku
(Até coisas que foram colocadas nas minhas mãos deixei escapar)
Namida ga kareru mae ni kiki takatta kotoba wa
(Antes que minhas lágrimas secassem, as palavras que eu queria ouvir)
Ima wa dareka wo sukuu tame ni
(Agora são para salvar alguém)

O grifo guinchava, parecendo preocupado e ansioso, mas não se atrevia a atacar nem a descer, parecendo recear as ações de . Sem hesitar, ela jogou a lança para cima com toda força que tinha em seus braços, os músculos se retesando como quando um arqueiro lançava sua flecha. A lança o atingiu de raspão em uma das asas, sem machucar muito, porém com suficiente impacto para que ele tivesse que pousar.
— Você é quem precisa parar de se defender! Parta para o ataque! — acabou rindo, arrancando a lança do ferimento quando o grifo voou bem perto dela, pousando em seguida na frente dela. Uma espécie de rugido saiu da garganta dele enquanto ele corria na direção dela, e seu corpo de leão permitiu que desse um salto longo, que conseguiu bloquear parcialmente com a lança, sofrendo um arranhão no ombro e gritando.

“Hikari ga tsuyoku nareba yami mo fukaku naru” to
(Se a luz se tornar mais forte, as trevas também se tornarão mais profundas)
Kiduita toshite mo osoreru koto wa nai yo
(Mesmo se eu percebesse isso, não tenho nada a temer)
Nanimo kamo kokoro no hate ni umareru Colors
(Porque as cores nascem no final de praticamente qualquer coração)
Mou hitomi wo hiraite mitsumerareru kara
(Meus olhos já estão abertos porque estávamos olhando um para o outro)

Foi então que o espírito passou a atacá-la sem parar, a falta do tesouro parecia estar deixando-o louco. Confiante em sua habilidade e sem medo, conseguia bloquear os golpes com alguma dificuldade, principalmente quando o grifo tentava acertar seu rosto ou costelas. Até que pararam de acertar um ao outro e o duelo pareceu mais uma performance por algum tempo. Com o tempo, percebeu que não era daquela maneira que a batalha deveria acabar.

Kanashimi no Breath
(O sopro da tristeza)
Sore wa sagashiteta iro wo nijimaseru yo
(Eu estava procurando por isso para manchá-lo com cores)
Oto mo tatezu ni
(Sem emitir um som)

Ofegante pelo esforço, ela girou a lança uma vez mais, afinal sentindo seu peso, deixando a parte afiada para cima enquanto seu oponente se preparava para dar o bote. Lembrando-se de algo que percebeu quando a usou para se apoiar, pôs as duas mãos sobre as pedras verdes da arma e a bateu no chão no meio da pilha de moedas de ouro, com tanta força que ele tremeu. O grifo parou de repente, parecendo surpreso, e inclinou sua enorme cabeça.
Não foi um simples tremor. Ondas de energia se desprenderam da lança, primeiro ao redor de , depois ao redor do grifo e da clareira, de toda a floresta e de todo aquele território, inclusive na pequena cidade de azulejos. Todos, mortais ou espíritos, ouviram um barulho suave similar ao de sinos de vento, que pareceu se prolongar. Todos sentiram quando o tempo parou e a magia foi religada à natureza e aos humanos.

Just drawing...Colors in light and darkness
(Basta fazê-lo... Cores na luz e na escuridão)
And take it...Colors in light and darkness
(E pegue... Cores na luz e na escuridão)
Ima wa todoka nai yasashii iro mo
(Agora as cores suaves que não podiam ser alcançadas)
Subete wa mata kono te de egaki naoseru kara
(Vou usar estas mãos para pintar e consertar tudo de novo)

— Você me venceu e descobriu o segredo, guardiã. Eu a parabenizo — o grifo se curvou para ela e sorriu. Foi ela quem mais sentiu o impacto, e sabia que tinha feito o certo. Com o duelo terminado, ela saiu do meio da pilha, deixando que o grifo recolhesse seu tesouro. Ele olhou para ela pela última vez, como um cumprimento, levando as moedas consigo para além do arbusto, entrando na floresta novamente. acenou para ele.
Tudo mudou rápido, com vindo buscá-la e as sombras brilhando e se movendo em todo tipo de cores, muitas delas tons que nem mesmo conhecia. Conforme caminhavam, sentia tudo mais leve e uma harmonia maior naquele lugar místico. Uma espécie de tranquilidade que afastava os perigos e que podia unir as pessoas com seus ancestrais, restaurando laços há muito perdidos.
O pântano estava iluminado quando voltaram e muitas luzes e espíritos que não estavam ali antes flutuavam e brincavam. O gato gigante parecia mais saudável e também se curvou para . Ela se curvou de volta, ainda sem ter certeza do significado daquilo.
— A feiticeira-sacerdotisa estava certa — ele elogiou , que o cumprimentou também. A marca sumiu da testa de e a inscrição na testa da mensageira se tornou mais forte, com um aspecto imagético. — Guardiã, esses poderes que obteve e o que aprendeu aqui sempre estarão contigo. Cabe a você decidir para qual propósito irá usá-los.
— Você ganhou o direito de usar essa lança, . Ela é sua — sorriu e girou a lança novamente, passando a carregá-la em uma das mãos. Ela achava incrível como aquela arma parecia ter sido feita para ela e havia lhe servido bem no duelo, e apreciou o quanto se sentiu poderosa ao usá-la.
— Você não queria ir para casa? — sorriu e acompanhou como uma amiga faria, guiando-a no caminho de volta e mostrando os melhores lugares para pegar os materiais que eram a razão que a havia levado até ali.
observou de longe, do alto das colinas verdejantes de verão, enquanto corria até em casa, abraçando seu pai preocupado, vendo a reação maravilhada dele quando a filha lhe mostrou a lança, e depois entregando os materiais e sentando ao lado dele no pequeno pátio. Ela ficou observando até fecharem a porta da casa.
Sempre que os espíritos precisassem, a guardiã do equilíbrio estaria ali.


Continua...



Nota da autora: Bi, feliz aniversário! Espero que tenha gostado do presente e que o que está aqui escrito faça sentido na sua jornada. Continue sendo essa pessoa maravilhosa, cheia de luz, e você se tornará a guardiã. Obrigada por fazer parte da minha vida e por ser minha amiga-irmã. Que esta seja a primeira de muitas histórias que escrevo pra você.





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Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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