Capítulo um
O telefone em minhas mãos parecia pesar cinquenta quilos.
A brisa fria da Avenida Paulista às sete da noite não parecia nada se comparada ao calor que subia por meu corpo envergonhado. As luzes do Mc Donald’s atrás de mim tornavam minha sombra na calçada extremamente alongada, sendo interrompida momentaneamente pelos carros que passavam próximos à calçada.
Abri o contato de no celular e observei nossa última conversa. Cinco dias atrás. Ela havia me mandado um meme de engenharia e eu respondi com uma figurinha da Gretchen. Me entristecia saber que ela provavelmente me socaria após lhe contar da cagada magistral que eu havia feito.
Ouvi uma buzina próxima à minha orelha e encarei os carros com suas luzes do farol brilhando diante de meus olhos. Eu estava ao lado da estação Brigadeiro sem qualquer coragem de entrar no metrô para ir para casa.
“Precisamos conversar.”
Enviei a mensagem com o ponto final. Quem me levaria a sério se eu não usasse o ponto final na mensagem? Precisava mostrar que eu realmente precisava conversar com .
Arrumei a alça da bolsa nos ombros e desci pelas escadas rolantes, finalmente tomando coragem.
“Jesus Cristo, alguém morreu? Eu fiz algo? Você perdeu a virgindade?”
Revirei os olhos com a mensagem e dei uma risada abafada. Esperei na plataforma do metrô.
“Posso passar aí?”
“Já avisei o porteiro”
Suspirei.
Eu estava ferrado.
O terno em meu corpo parecia estranhamente justo naquele momento, assim como pareceu naquela manhã, um mês atrás, quando cheguei à recepção da Construtora Sobral, local em que almejei trabalhar desde o primeiro dia na faculdade, quando o diretor da empresa foi um dos palestrantes para os calouros suados e cansados do campus da USP.
— Vim para a entrevista na Construtora Sobral, 13° andar. — Sorri para a recepcionista de cabelos ruivos. Ela sorriu de volta e assentiu.
Aguardei nervoso enquanto subia pelo elevador prateado. Alguns funcionários ao meu lado conversavam sobre metas de vendas e falavam mal de influencers. Pelo visto uma tal de Boca Rosa havia sido racista. Foquei naquela conversa até o 13° andar.
— Sente-se, por favor. — A recepcionista da Sobral pegou o telefone em suas mãos e indicou bancos felpudos para mim. Sentei-me com as mãos cruzadas sobre o colo.
A empresa parecia ainda mais incrível dali. Paredes cinzentas subiam em formato de maquete. As salas de reunião eram de vidro. Havia maquetes de prédios expostas sobre algumas mesas de reunião ao lado da recepção. Suspirei. Aquele emprego já era meu!
Com esse pensamento centrado e animado, pedi para ir ao banheiro antes da entrevista. Mijaria como um verdadeiro vitorioso!
Caminhei a passadas tímidas para o coração da empresa, onde ficava o banheiro. O da recepção estava quebrado, havia dito a funcionária. Encarei as baias nas quais homens de terno e duas mulheres trabalhavam.
Todos pareciam focados em seus computadores, e algumas outras salas de reunião se estendiam ao longo do andar inteiro pertencente a uma das maiores empresas de engenharia do Brasil.
Duas pessoas sorriram para mim, e relaxei. Virei à esquerda, em direção ao banheiro, quando ouvi uma voz vinda da sala de reunião ao meu lado.
— O primeiro candidato está aqui.
Tentei me controlar, mas não sabia como. Parei ao lado da parede, escondido pela privacidade do gesso.
— Ele é jovem? — Uma voz disse.
Não consegui ver o rosto dos dois homens que conversavam.
— Parece.
— Ah, droga! — Resmungou a segunda voz — Nem quero entrevistá-lo, vai ser perda de tempo.
Meu coração bateu acelerado no peito.
— O currículo dele é ótimo.
— Currículo ótimo não faz o funcionário, Pietro.
A segunda voz tinha razão, mas isso não me deixava menos desesperado. Ele sequer queria me entrevistar, o que eu havia feito de errado? Questionei-me se seria por minha etnia, e minhas mãos suaram em resposta ao pensamento.
— Não podemos mais contratar jovens depois do Kaique! Não podemos lidar com outro escândalo de assédio sexual. — Arregalei os olhos. Olhei para o fim do corredor e ouvi passos. Eu seria descoberto espionando. Virei-me para ir em direção ao banheiro, apenas a dois metros de onde eu estava.
— Só considere contratar esse garoto se ele estiver casado ou prestes a casar, Pietro.
Foi a última coisa que ouvi antes de observar uma moça da limpeza virar o corredor em minha direção.
Fechei a porta do banheiro atrás de mim e encarei-me no espelho.
Eu não sou casado!
Batuquei os dedos contra o mármore da mesa. Mijar vitorioso não era mais uma opção. Mijei derrotado.
Refiz meu caminho até a recepção. Sequer valeria a pena participar da entrevista? Eu já seria negado assim que me fizessem aquela pergunta, não importa o quão incrível eu fosse.
Observei detidamente enquanto um homem de terno giz perfeitamente delineado andava em minha direção. Ele portava um sorriso simpático. Ele vai ser o responsável pela ligação para dizer que você não é um bom candidato. Pisquei algumas vezes.
— Sou o Pietro e vou te entrevistar junto ao pessoal do RH, ok? — Assenti simpaticamente.
Meu Deus, o que eu faço?!
Segui Pietro, a primeira voz daquela conversa nada legal. Abri e fechei as mãos algumas vezes, a tensão e nervosismo pungentes ali. Sentei-me na cadeira. Estávamos na mesma sala pela qual eu havia passado há pouco, próxima ao banheiro.
Só havia eu, Pietro e uma moça que eu não havia visto antes, a responsável do RH.
Convenci-me de que não me perguntariam sobre meu estado civil. Aquilo só podia ser palhaçada.
— Você é um ótimo candidato, . Amei seu nome, por falar nisso, é bem diferente. Chique. — Agradeci à responsável do RH com um sorriso.
era um nome que me perseguia desde pequeno. Meu pai havia registrado meu nome, já que minha mãe estava desmaiada na sala pós-parto. Eles haviam combinado que meu nome seria Josué, mas meu pai quis deixar meu nome gringado.
— Temos mais uma pergunta, .
Meu coração acelerou no peito. Encarei Pietro. Ele parecia pleno, na verdade, parecia perfeitamente entediado. Gostaria de estar daquela maneira.
— Qual é o seu estado civil?
DROGA! MIL VEZES, DROGA!!!!!!!!!!
Pisquei algumas vezes, as palavras tentando escapar de minha boca.
— Fique calmo, esse é um assunto delicado para você? — A responsável questionou seriamente. Pietro parecia entretido agora.
— Não, não é isso.
Enrolei.
Aquele emprego realmente valeria aquilo tudo? Quer dizer, eu precisava ter uma família para ter bom caráter? Que tipo de lógica era aquela? Ser casado já impediu assédio?
Pisquei algumas vezes. Diga algo, !
— Não sou solteiro.
A responsável arqueou a sobrancelha, e Pietro riu.
— Isso é bom, mas o que exatamente você é? — Ela repetiu a pergunta.
Olhei para o lado de fora. Observei dois homens dando risada em suas mesas enquanto abriam uma planta de prédio, ao que parecia de onde eu via. Eles apoiaram o molde sobre a mesa e pegaram seus esquadros. Senti meu coração acelerar novamente.
— Me caso em três meses. — Falei de uma vez, a mentira rastejando por meus lábios miseravelmente.
Como eu odeio mentiras.
Pietro me encarou com mais atenção, como se só tivesse percebido a minha presença ali verdadeiramente agora.
— Mas você parece tão novo. — Ele comentou. Estava me sondando.
— Já queríamos ter casado antes. Sou bem tradicional, sabe. — A mentira crescia, e eu não conseguia parar de falar — Estamos juntos há três anos. Namoramos juntando grana para o casamento. Como éramos estagiários, só queríamos oficializar o casório quando pudéssemos arcar com todos os gastos.
Até eu acreditaria naquela mentira bem elaborada e totalmente descarada.
Eu sequer havia namorado por mais de um ano, quanto mais três anos. E casamento? Pelo amor de Deus! Tenho vinte e seis anos!
Mas Pietro não precisava saber disso.
Por isso, quando a entrevista acabou e voltei para casa, esperei pacientemente. Entrei em todas as minhas redes sociais. Tirei a visibilidade do meu status de relacionamento e minha bio do instagram. Eu só possuía três fotos, todas minhas em Campos do Jordão, e em uma delas estava , com seus olhos pequenos pelo sol e usando um moletom rosa. Eles que pensassem o que quisessem!
Ao receber a ligação no dia seguinte, mal pude acreditar. O emprego era meu! Pietro havia me ligado para dar as boas novas.
— Passei no emprego! — Gritei para pelo telefone na mesma hora.
Minha amiga desde o primeiro dia de aula da faculdade gritou em comemoração do outro lado.
— Eu falei que você conseguiria! — Ela respondeu animada — Você é muito capaz, eu sabia.
Pois é, ela mal sabia.
E tudo estava bem. O emprego era meu, ninguém mais havia me perguntado sobre minha noiva. Era como se tudo tivesse passado. Eu tinha colegas de trabalho e dois projetos em andamento. Eu tinha um vale refeição capaz de alimentar minha família por um mês inteiro e um salário ótimo. Nada precisava mudar.
Até aquele dia.
— , venha aqui, por favor. — Fui chamado na sala de Dodô, nosso chefe de departamento e o homem que havia conversado com Pietro na sala aquele dia. Eu o reconheci pela forma como falava. Senti antipatia por ele na mesma hora em que fui apresentado a ele formalmente.
— Tá tudo bem? — Questionei ao adentrar no cubículo, fechando a porta atrás de mim.
Dodô tinha a pele negra e os olhos cansados, bolsas de olheiras sombreavam seu semblante. Ele cruzou os braços sobre a barriga delgada e sorriu.
— Tudo sim, fique tranquilo. Pietro falou comigo hoje, e percebi algo. Sei que somos aparentemente uma empresa reservada, mas somos um ambiente descontraído e familiar.
Assenti.
— Temos o coquetel de funcionários no final do semestre, mas acho que já saiba disso.
— Sei sim.
— Bem, você está completando seu primeiro mês aqui, e vai ser sua primeira confraternização. Pietro disse que você pode estar se sentindo desconfortável em trazer sua noiva, então estou aqui para encorajá-lo a trazê-la! É um ambiente bem legal e incentivamos os funcionários a trazerem seus parceiros. Quer dizer, parceires. O RH tem uma nova política de uso de pronomes neutros. — Permaneci em silêncio.
Eu sequer lembrava que estava noivo. Quer dizer, porque eu realmente não estava! Que papo era aquele do nada? Eu mataria Pietro! Já tínhamos intimidade o suficiente para isso.
— Não sei se ela se sentiria confortável, Dodô… — Enrolei, mas ele parecia decidido.
— Você está aqui há pouquíssimo tempo e já é um dos meus melhores funcionários. — Mantive os lábios em uma linha fina — Traga sua noiva, ok?
Saí da sala com um ponto de interrogação em minha testa. Tenho certeza de que chefes não podem se meter na vida dos funcionários daquela maneira.
— Vocês tiveram a conversa de levar o parceiro para a confraternização? — Pelé, meu colega de mesa, perguntou-me assim que sentei. Assenti em sua direção — Estão fazendo isso por causa do escândalo.
Ah, o escândalo!
O escândalo de assédio sexual que pairava sobre a empresa junto com um baita processo. O funcionário que trabalhava aqui antes de mim, Félix, havia assediado sexualmente três mulheres da empresa. Após uma delas se pronunciar, as outras duas o denunciaram também. O caso saiu na imprensa através de uma das mulheres, que era amiga de uma jornalista famosa.
A empresa demorou a se posicionar sobre o caso, já que Félix era um dos diretores, então a imprensa caiu em cima. A Construtora Sobral perdeu três clientes no processo. Depois disso, Félix foi demitido. As três funcionárias pediram demissão. Eu havia sido contratado. Agora, eu precisava levar minha noiva inexistente para a festa da firma a fim de fazer sala e parecer digno.
— Você vai levar a sua noiva? — Pelé perguntou, seus olhos vasculhando sua mesa atrás de um lápis. Ele era branco, não entendia por que seu apelido era Pelé. Na verdade, sequer sabia seu nome de verdade.
— Eu? — Enrolei.
— Sim, aquela moça do seu Instagram, não é? Ela é linda, cara!
!
— Sim, vou levá-la. — Respondi prontamente. Três colegas levantaram o olhar em nossa direção. Eu estava enfiado até o pescoço em mentiras. Engoli em seco.
— Que legal! Ela é linda mesmo. Cara de sorte! — Agnaldo respondeu do outro lado.
Essa empresa está cheia de fofoqueiros!
— Todos vamos levar, meu bem. — Pardal também se pronunciou, os cabelos loiros balançando ao passar a mão sobre eles — Solteiros são altamente encorajados a não irem. Pelo visto ainda estamos sendo sondados pela mídia.
— Que perigo, hein! — Respondi sem encará-los, meus olhos vidrados em minha mesa.
Observei paralisado meus post-its largados sobre o computador aberto. Meu Deus, o que eu faria?
— Espera, ouvi certo? vai trazer a noiva? Ah, que legal! Estou ansiosa para conhecer sua noiva! Ela é linda mesmo — Laura comentou do outro lado. Daquela distância, pelo menos quinze funcionários haviam ouvido além dos da minha baia.
E foi com essa confusão em mente que bati à porta de naquela noite.
— Você está com cara de quem comeu cachorro quente estragado. — Ela comentou assim que abriu a porta. Seus olhos miravam os meus, um sorriso largo estava em seus lábios quando ela me abraçou e me puxou para dentro.
Observei seu corpo se esgueirar até a cozinha enquanto tagarelava sobre eu ser misterioso por mensagem.
— , você vai me odiar tanto depois do que eu vou te dizer… — Comecei quando ela voltou à sala, seus olhos passando entre meu corpo largado no sofá e sua mesa de centro.
— Ih, o que houve? — Ela pareceu levemente preocupada. se aproximou e sentou ao meu lado no sofá, seus olhos fitando meu corpo por inteiro — Você não parece bêbado. O que foi que você fez? Engravidou alguém?
— Eu estou noivo. — Encarei-a. estava gaguejando, seus olhos pareciam alternar entre meus olhos e minha testa.
— Mas como assim? De quem?
— Você não vai querer saber.
A brisa fria da Avenida Paulista às sete da noite não parecia nada se comparada ao calor que subia por meu corpo envergonhado. As luzes do Mc Donald’s atrás de mim tornavam minha sombra na calçada extremamente alongada, sendo interrompida momentaneamente pelos carros que passavam próximos à calçada.
Abri o contato de no celular e observei nossa última conversa. Cinco dias atrás. Ela havia me mandado um meme de engenharia e eu respondi com uma figurinha da Gretchen. Me entristecia saber que ela provavelmente me socaria após lhe contar da cagada magistral que eu havia feito.
Ouvi uma buzina próxima à minha orelha e encarei os carros com suas luzes do farol brilhando diante de meus olhos. Eu estava ao lado da estação Brigadeiro sem qualquer coragem de entrar no metrô para ir para casa.
“Precisamos conversar.”
Enviei a mensagem com o ponto final. Quem me levaria a sério se eu não usasse o ponto final na mensagem? Precisava mostrar que eu realmente precisava conversar com .
Arrumei a alça da bolsa nos ombros e desci pelas escadas rolantes, finalmente tomando coragem.
“Jesus Cristo, alguém morreu? Eu fiz algo? Você perdeu a virgindade?”
Revirei os olhos com a mensagem e dei uma risada abafada. Esperei na plataforma do metrô.
“Posso passar aí?”
“Já avisei o porteiro”
Suspirei.
Eu estava ferrado.
O terno em meu corpo parecia estranhamente justo naquele momento, assim como pareceu naquela manhã, um mês atrás, quando cheguei à recepção da Construtora Sobral, local em que almejei trabalhar desde o primeiro dia na faculdade, quando o diretor da empresa foi um dos palestrantes para os calouros suados e cansados do campus da USP.
— Vim para a entrevista na Construtora Sobral, 13° andar. — Sorri para a recepcionista de cabelos ruivos. Ela sorriu de volta e assentiu.
Aguardei nervoso enquanto subia pelo elevador prateado. Alguns funcionários ao meu lado conversavam sobre metas de vendas e falavam mal de influencers. Pelo visto uma tal de Boca Rosa havia sido racista. Foquei naquela conversa até o 13° andar.
— Sente-se, por favor. — A recepcionista da Sobral pegou o telefone em suas mãos e indicou bancos felpudos para mim. Sentei-me com as mãos cruzadas sobre o colo.
A empresa parecia ainda mais incrível dali. Paredes cinzentas subiam em formato de maquete. As salas de reunião eram de vidro. Havia maquetes de prédios expostas sobre algumas mesas de reunião ao lado da recepção. Suspirei. Aquele emprego já era meu!
Com esse pensamento centrado e animado, pedi para ir ao banheiro antes da entrevista. Mijaria como um verdadeiro vitorioso!
Caminhei a passadas tímidas para o coração da empresa, onde ficava o banheiro. O da recepção estava quebrado, havia dito a funcionária. Encarei as baias nas quais homens de terno e duas mulheres trabalhavam.
Todos pareciam focados em seus computadores, e algumas outras salas de reunião se estendiam ao longo do andar inteiro pertencente a uma das maiores empresas de engenharia do Brasil.
Duas pessoas sorriram para mim, e relaxei. Virei à esquerda, em direção ao banheiro, quando ouvi uma voz vinda da sala de reunião ao meu lado.
— O primeiro candidato está aqui.
Tentei me controlar, mas não sabia como. Parei ao lado da parede, escondido pela privacidade do gesso.
— Ele é jovem? — Uma voz disse.
Não consegui ver o rosto dos dois homens que conversavam.
— Parece.
— Ah, droga! — Resmungou a segunda voz — Nem quero entrevistá-lo, vai ser perda de tempo.
Meu coração bateu acelerado no peito.
— O currículo dele é ótimo.
— Currículo ótimo não faz o funcionário, Pietro.
A segunda voz tinha razão, mas isso não me deixava menos desesperado. Ele sequer queria me entrevistar, o que eu havia feito de errado? Questionei-me se seria por minha etnia, e minhas mãos suaram em resposta ao pensamento.
— Não podemos mais contratar jovens depois do Kaique! Não podemos lidar com outro escândalo de assédio sexual. — Arregalei os olhos. Olhei para o fim do corredor e ouvi passos. Eu seria descoberto espionando. Virei-me para ir em direção ao banheiro, apenas a dois metros de onde eu estava.
— Só considere contratar esse garoto se ele estiver casado ou prestes a casar, Pietro.
Foi a última coisa que ouvi antes de observar uma moça da limpeza virar o corredor em minha direção.
Fechei a porta do banheiro atrás de mim e encarei-me no espelho.
Eu não sou casado!
Batuquei os dedos contra o mármore da mesa. Mijar vitorioso não era mais uma opção. Mijei derrotado.
Refiz meu caminho até a recepção. Sequer valeria a pena participar da entrevista? Eu já seria negado assim que me fizessem aquela pergunta, não importa o quão incrível eu fosse.
Observei detidamente enquanto um homem de terno giz perfeitamente delineado andava em minha direção. Ele portava um sorriso simpático. Ele vai ser o responsável pela ligação para dizer que você não é um bom candidato. Pisquei algumas vezes.
— Sou o Pietro e vou te entrevistar junto ao pessoal do RH, ok? — Assenti simpaticamente.
Meu Deus, o que eu faço?!
Segui Pietro, a primeira voz daquela conversa nada legal. Abri e fechei as mãos algumas vezes, a tensão e nervosismo pungentes ali. Sentei-me na cadeira. Estávamos na mesma sala pela qual eu havia passado há pouco, próxima ao banheiro.
Só havia eu, Pietro e uma moça que eu não havia visto antes, a responsável do RH.
Convenci-me de que não me perguntariam sobre meu estado civil. Aquilo só podia ser palhaçada.
— Você é um ótimo candidato, . Amei seu nome, por falar nisso, é bem diferente. Chique. — Agradeci à responsável do RH com um sorriso.
era um nome que me perseguia desde pequeno. Meu pai havia registrado meu nome, já que minha mãe estava desmaiada na sala pós-parto. Eles haviam combinado que meu nome seria Josué, mas meu pai quis deixar meu nome gringado.
— Temos mais uma pergunta, .
Meu coração acelerou no peito. Encarei Pietro. Ele parecia pleno, na verdade, parecia perfeitamente entediado. Gostaria de estar daquela maneira.
— Qual é o seu estado civil?
DROGA! MIL VEZES, DROGA!!!!!!!!!!
Pisquei algumas vezes, as palavras tentando escapar de minha boca.
— Fique calmo, esse é um assunto delicado para você? — A responsável questionou seriamente. Pietro parecia entretido agora.
— Não, não é isso.
Enrolei.
Aquele emprego realmente valeria aquilo tudo? Quer dizer, eu precisava ter uma família para ter bom caráter? Que tipo de lógica era aquela? Ser casado já impediu assédio?
Pisquei algumas vezes. Diga algo, !
— Não sou solteiro.
A responsável arqueou a sobrancelha, e Pietro riu.
— Isso é bom, mas o que exatamente você é? — Ela repetiu a pergunta.
Olhei para o lado de fora. Observei dois homens dando risada em suas mesas enquanto abriam uma planta de prédio, ao que parecia de onde eu via. Eles apoiaram o molde sobre a mesa e pegaram seus esquadros. Senti meu coração acelerar novamente.
— Me caso em três meses. — Falei de uma vez, a mentira rastejando por meus lábios miseravelmente.
Como eu odeio mentiras.
Pietro me encarou com mais atenção, como se só tivesse percebido a minha presença ali verdadeiramente agora.
— Mas você parece tão novo. — Ele comentou. Estava me sondando.
— Já queríamos ter casado antes. Sou bem tradicional, sabe. — A mentira crescia, e eu não conseguia parar de falar — Estamos juntos há três anos. Namoramos juntando grana para o casamento. Como éramos estagiários, só queríamos oficializar o casório quando pudéssemos arcar com todos os gastos.
Até eu acreditaria naquela mentira bem elaborada e totalmente descarada.
Eu sequer havia namorado por mais de um ano, quanto mais três anos. E casamento? Pelo amor de Deus! Tenho vinte e seis anos!
Mas Pietro não precisava saber disso.
Por isso, quando a entrevista acabou e voltei para casa, esperei pacientemente. Entrei em todas as minhas redes sociais. Tirei a visibilidade do meu status de relacionamento e minha bio do instagram. Eu só possuía três fotos, todas minhas em Campos do Jordão, e em uma delas estava , com seus olhos pequenos pelo sol e usando um moletom rosa. Eles que pensassem o que quisessem!
Ao receber a ligação no dia seguinte, mal pude acreditar. O emprego era meu! Pietro havia me ligado para dar as boas novas.
— Passei no emprego! — Gritei para pelo telefone na mesma hora.
Minha amiga desde o primeiro dia de aula da faculdade gritou em comemoração do outro lado.
— Eu falei que você conseguiria! — Ela respondeu animada — Você é muito capaz, eu sabia.
Pois é, ela mal sabia.
E tudo estava bem. O emprego era meu, ninguém mais havia me perguntado sobre minha noiva. Era como se tudo tivesse passado. Eu tinha colegas de trabalho e dois projetos em andamento. Eu tinha um vale refeição capaz de alimentar minha família por um mês inteiro e um salário ótimo. Nada precisava mudar.
Até aquele dia.
— , venha aqui, por favor. — Fui chamado na sala de Dodô, nosso chefe de departamento e o homem que havia conversado com Pietro na sala aquele dia. Eu o reconheci pela forma como falava. Senti antipatia por ele na mesma hora em que fui apresentado a ele formalmente.
— Tá tudo bem? — Questionei ao adentrar no cubículo, fechando a porta atrás de mim.
Dodô tinha a pele negra e os olhos cansados, bolsas de olheiras sombreavam seu semblante. Ele cruzou os braços sobre a barriga delgada e sorriu.
— Tudo sim, fique tranquilo. Pietro falou comigo hoje, e percebi algo. Sei que somos aparentemente uma empresa reservada, mas somos um ambiente descontraído e familiar.
Assenti.
— Temos o coquetel de funcionários no final do semestre, mas acho que já saiba disso.
— Sei sim.
— Bem, você está completando seu primeiro mês aqui, e vai ser sua primeira confraternização. Pietro disse que você pode estar se sentindo desconfortável em trazer sua noiva, então estou aqui para encorajá-lo a trazê-la! É um ambiente bem legal e incentivamos os funcionários a trazerem seus parceiros. Quer dizer, parceires. O RH tem uma nova política de uso de pronomes neutros. — Permaneci em silêncio.
Eu sequer lembrava que estava noivo. Quer dizer, porque eu realmente não estava! Que papo era aquele do nada? Eu mataria Pietro! Já tínhamos intimidade o suficiente para isso.
— Não sei se ela se sentiria confortável, Dodô… — Enrolei, mas ele parecia decidido.
— Você está aqui há pouquíssimo tempo e já é um dos meus melhores funcionários. — Mantive os lábios em uma linha fina — Traga sua noiva, ok?
Saí da sala com um ponto de interrogação em minha testa. Tenho certeza de que chefes não podem se meter na vida dos funcionários daquela maneira.
— Vocês tiveram a conversa de levar o parceiro para a confraternização? — Pelé, meu colega de mesa, perguntou-me assim que sentei. Assenti em sua direção — Estão fazendo isso por causa do escândalo.
Ah, o escândalo!
O escândalo de assédio sexual que pairava sobre a empresa junto com um baita processo. O funcionário que trabalhava aqui antes de mim, Félix, havia assediado sexualmente três mulheres da empresa. Após uma delas se pronunciar, as outras duas o denunciaram também. O caso saiu na imprensa através de uma das mulheres, que era amiga de uma jornalista famosa.
A empresa demorou a se posicionar sobre o caso, já que Félix era um dos diretores, então a imprensa caiu em cima. A Construtora Sobral perdeu três clientes no processo. Depois disso, Félix foi demitido. As três funcionárias pediram demissão. Eu havia sido contratado. Agora, eu precisava levar minha noiva inexistente para a festa da firma a fim de fazer sala e parecer digno.
— Você vai levar a sua noiva? — Pelé perguntou, seus olhos vasculhando sua mesa atrás de um lápis. Ele era branco, não entendia por que seu apelido era Pelé. Na verdade, sequer sabia seu nome de verdade.
— Eu? — Enrolei.
— Sim, aquela moça do seu Instagram, não é? Ela é linda, cara!
!
— Sim, vou levá-la. — Respondi prontamente. Três colegas levantaram o olhar em nossa direção. Eu estava enfiado até o pescoço em mentiras. Engoli em seco.
— Que legal! Ela é linda mesmo. Cara de sorte! — Agnaldo respondeu do outro lado.
Essa empresa está cheia de fofoqueiros!
— Todos vamos levar, meu bem. — Pardal também se pronunciou, os cabelos loiros balançando ao passar a mão sobre eles — Solteiros são altamente encorajados a não irem. Pelo visto ainda estamos sendo sondados pela mídia.
— Que perigo, hein! — Respondi sem encará-los, meus olhos vidrados em minha mesa.
Observei paralisado meus post-its largados sobre o computador aberto. Meu Deus, o que eu faria?
— Espera, ouvi certo? vai trazer a noiva? Ah, que legal! Estou ansiosa para conhecer sua noiva! Ela é linda mesmo — Laura comentou do outro lado. Daquela distância, pelo menos quinze funcionários haviam ouvido além dos da minha baia.
E foi com essa confusão em mente que bati à porta de naquela noite.
— Você está com cara de quem comeu cachorro quente estragado. — Ela comentou assim que abriu a porta. Seus olhos miravam os meus, um sorriso largo estava em seus lábios quando ela me abraçou e me puxou para dentro.
Observei seu corpo se esgueirar até a cozinha enquanto tagarelava sobre eu ser misterioso por mensagem.
— , você vai me odiar tanto depois do que eu vou te dizer… — Comecei quando ela voltou à sala, seus olhos passando entre meu corpo largado no sofá e sua mesa de centro.
— Ih, o que houve? — Ela pareceu levemente preocupada. se aproximou e sentou ao meu lado no sofá, seus olhos fitando meu corpo por inteiro — Você não parece bêbado. O que foi que você fez? Engravidou alguém?
— Eu estou noivo. — Encarei-a. estava gaguejando, seus olhos pareciam alternar entre meus olhos e minha testa.
— Mas como assim? De quem?
— Você não vai querer saber.
Capítulo dois
— Não. — Afirmei categoricamente.
— Nem se eu pagar três almoços? — Fuzilei — Desculpa.
Observei meus polegares. Minhas unhas estavam limpas e pintadas do azul mais profundo que existia na paleta de cores da manicure. Ela disse que aquela cor combinaria com a minha semana, representaria os mares conturbados e imprevisíveis.
Bem, eu definitivamente não esperava dizer que era meu noivo para seu chefe a fim de conseguir um emprego.
— Eu namoro, . — Relembrei-o. assentiu, seus olhos piscavam rapidamente, maquinando ideias naquela cabeça de quem é um bobão.
— Mas eu não te pedi em noivado de verdade, . — Estreitei os olhos.
— Mas seu chefe acha que sim.
— Mas ele não precisa saber que você não é minha noiva! — Virei-me para encará-lo completamente. batucava os dedos sobre o joelho coberto pela calça social.
— Podemos inventar uma desculpa no dia. Que tal eu ficar com caganeira? — arqueou a sobrancelha.
— Eu acho essa uma ótima ideia. — Ele sorriu. Os olhos fitavam os meus com alívio.
era definitivamente hiperativo. Ele já estava de pé novamente, seus braços se movendo constantemente enquanto enumerava motivos para eu não odiá-lo por ter mentido.
Eu jamais poderia odiar .
— E outro motivo, eu sou muito gostoso.
— Você precisa de motivos melhores. — Argumentei. revirou os olhos e voltou a andar pela sala.
Lembrei-me de nosso primeiro dia de aula na faculdade. Eu havia ido para o prédio errado do campus. Ao invés de ir para a Escola de Comunicação e Artes, acabei parando na Escola Politécnica de engenharia. Em certo momento, durante a orientação, eu percebi que a grade horária era totalmente diferente.
Virei-me para o garoto ao lado e perguntei onde eu estava. Ao descobrir que estava longe do meu prédio, levantei-me correndo e acabei prendendo minha blusa na cadeira, abrindo um rasgo gigantesco. Meu sutiã virou objeto de risada no meio do auditório lotado. Quis morrer, mas apenas ri nervosamente. , o garoto ao meu lado, tirou seu moletom politécnico e me entregou.
Ele almoçou comigo naquele dia e me levou para conhecer o campus, já que eu havia perdido a minha orientação. Não lembro de ter estado longe dele um dia sequer desde aquele momento. Ele pegou uma matéria a mais na faculdade só para podermos nos formar no mesmo semestre, já que eu havia pegado DP.
— Não vai rolar a caganeira. — falou após algum tempo. Pisquei em sua direção.
— Quê?
— Cagar em excesso, isso não vai rolar.
— Ué, quem não acredita em um bom e velho cocô fedido e mole? — sorriu em minha direção, mas balançou a cabeça.
— Mês passado um dos funcionários lançou essa sobre a namorada. Meu chefe não acreditou. O garoto admitiu depois de um minuto que ele havia mentido e que na verdade era gay. — Arregalei os olhos.
— Meu Deus, a sua empresa é cheia de pessoas fingindo ser o que não são. — Provoquei, meus lábios abertos em um sorriso caótico. cruzou os braços.
— Ei, não me julgue.
— Jamais faria isso.
— Faria sim, você está morrendo de vontade de dar risada e dizer que eu mereço essa enrascada. — Dei de ombros.
— Mentir nunca é a solução.
— Mas agora eu tenho um emprego, não é?
— Sim, só não tem a noiva.
Levantei-me do sofá e andei até a cozinha com em meu encalço. Observei seu corpo alto e esguio. Seus cabelos estavam levemente compridos, nas bochechas. A pele escura acolhia bem a cor de seu terno de giz.
— Como eles acreditaram que você tinha uma noiva se você sequer usa aliança? — Questionei ao tomar um gole d’água.
Após o choque inicial de ter achado que havia realmente ficado noivo de alguém, quase enfartei ao entender a mentira que ele havia soltado. Ele havia escondido aquilo de mim por mais de um mês. Se ele não fosse obrigado, ele sequer diria algo para mim?
— Eu disse que não compramos aliança para economizar para o casamento.
Ele era um bom mentiroso, eu precisava reconhecer aquilo.
— Sinto muito, não vou entrar nessa mentira, . Você sabe o que eu acho sobre mentiras. — Falei, meu coração levemente pesado por precisar dar o ultimato, mas não éramos adolescentes. Em algum momento aquela mentira seria descoberta e tudo iria para os ares.
— Eu sei, me desculpa. — Ele passou as mãos pelos cabelos grandes e pela barba. Meu apartamento ficou em silêncio enquanto ele fitava a geladeira, suas mãos dentro do bolso da calça social.
Eu poderia pintá-lo dali. O contorno da mandíbula ficaria perfeito no carvão. Eu já tentei desenhar dois anos atrás, mas ele havia se esquivado.
— O que vai fazer? — Questionei. suspirou.
— Contar a verdade, eu acho. Você está certa, começar algo errado é saber que vai terminar errado. — Mordi o lábio e fitei o chão.
— Ser honesto não é fácil.
— É, não é. Acho que vou começar a enviar meu currículo. — Ele sorriu tristemente. Abri e fechei as mãos. Queria consolá-lo, mas sabia que era o certo a se fazer. Senti meu celular vibrar em meu bolso. Bruno. Ele havia perguntado se poderia vir passar a noite aqui — Ei, quer ir comer pizza? — desconversou, um sorriso aparecendo novamente em seu rosto.
— Bruno está vindo. — Respondi enquanto respondia Bruno no chat de mensagem. Levantei o olhar e observei meu amigo com o cenho franzido.
— Você chamou um cara para vir para cá? Ele deve ser especial, hein. — Sorri com sua provocação ao cutucar minha cintura.
— Ele é, , muito.
*
Acordei muito cedo no dia seguinte. Bruno estava desacordado e suas costas arranhadas demonstravam uma noite muito divertida. Joguei o lençol para o lado e fui ao banheiro. havia esquecido a mala do trabalho na minha casa, então ofereci-me para levar a ele na construtora, já que trabalhávamos próximos um do outro.
Peguei o ônibus praticamente dormindo em pé. Observei quando uma pomba fez cocô em cima do tênis de uma moça. Aquele talvez tenha sido o ápice da minha risada em plena sete e meia da manhã no transporte público de São Paulo. Que tristeza.
— Pode subir. — A recepcionista me recebeu com um sorriso. A mala em minha mão pesada pelo menos dois quilos. Como carregava aquilo de um lado para o outro?
A empresa estava muito vazia quando entrei, da maneira como combinamos.
Se ninguém me visse ali seria melhor.
estava usando uma camiseta social e calça jeans. Sexta-feira. Dia livre. Ele até mesmo havia se livrado do tênis de bico chato e usava um all star.
— Cara, vi um pombo cagar no pé de uma mulher. — Foi assim que o cumprimentei. gargalhou, jogando a cabeça para trás e pondo a mão na barriga.
— Esse tipo de coisa deveria ser gravada.
— Eu estava ocupada segurando esse trambolho. — Levantei a mala em sua direção. segurou a maleta em mãos — Como você não é todo torto?
— Ah, eu sou um pouco. — Ele pareceu refletir — Mas em locais específicos.
— Bem — Pigarreei — É isso. Nos vemos depois?
— Claro, . — Ele me abraçou, o perfume envolvendo meu corpo assim que me afastei. Virei-me para ir embora no momento em que ouvi uma voz atrás de nós.
— Essa é a ?!
Aquele deveria ser Dodô. Encarei , ele piscava fortemente e parecia ansioso, mais ainda do que já era.
— Olá, prazer. — Estendi a mão em sua direção. Os olhos energéticos do homem de mais de cinquenta anos alternavam entre e eu.
— As pessoas aqui estavam começando a achar que você era uma lenda urbana. — Ele comentou com uma risada. pareceu engasgar. Alternei meu olhar entre os dois.
— Lenda urbana mesmo é a tristeza no olhar desse cara desde que ele começou a trabalhar aqui! Nunca o vi tão feliz. — Puxei sardinha para o lado de , mas ele ainda parecia constipado. O que deu nele?
— Na verdade, Dodô, eu preciso falar com você sobre algo… — adiantou e se colocou diante de mim — Pode ir, ! Obrigado por trazer minha maleta. — Ele piscou em minha direção. Observei paralelamente quando outros funcionários saíam de suas baias e vinham para a recepção pegar café. Alguns pararam e nos encararam — Sobre e eu… — começou.
Algumas cabeças atrás de permaneciam nos encarando. Meu amigo não havia percebido a situação. Lembrei-me de quando ele ligou anunciando que havia conseguido o emprego, seus olhos brilhavam e ele me girou no ar.
— É o emprego dos meus sonhos. — Ele disse — Finalmente vou poder criar projetos que ajudem a comunidade. — Ele sorriu, os olhos pequenos pelo sorriso gigante aberto em seu rosto.
Mordi o lábio em nervosismo.
Aquele não era o emprego dos sonhos só por causa do salário, eu sabia que significava muito mais do que só uma carteira assinada.
— está tão ansioso para a confraternização! — Praticamente berrei, empurrando para o lado e encarando Dodô diretamente nos olhos. Observei levemente preocupada quando bateu na mesa da recepção. Ops! — Nós estamos, na verdade. Estarei lá, com certeza. Não perderia por nada. — Encarei meu amigo, seus olhos meio arregalados e seus cabelos bagunçados. Ele também daria uma ótima pintura nesse momento, eu poderia chamá-lo de “Caos Mentiroso”.
— Ahã. — concordou e se colocou ao meu lado — Estamos mesmo. Muito.
Dodô nos encarou com uma leve curiosidade.
— Ai, o amor jovem… — Ele divagou — Que saudade… Poder chegar em casa tarde e acordar cedo sem enxaqueca… — Segurei a risada enquanto Dodô divagava sobre sua idade. agradeceu com o olhar, eu percebi.
Eu só esperava não me arrepender por aquela mentira.
Capítulo três
— Você está parecendo uma princesa! — Comentei enquanto enfiava um cheetos na boca.
— Eu não quero parecer uma princesa, quero parecer uma rainha poderosa e incrível capaz de derrubar qualquer pessoa apenas estalando os dedos.
— Então você quer ser o Thanos? — Sumarizei seus pensamentos, mas apenas piscou algumas vezes.
— Ele usava umas roupas bem bonitinhas.
Sairíamos dali quinze minutos para a confraternização da empresa. Tudo estava indo magicamente bem!
— Bruno está ok com essa situação, ? — Questionei mais uma vez, mordendo os lábios em nervosismo. Apoiei-me em meus cotovelos na cama, meus olhos seguindo a silhueta de no banheiro enquanto passava algo nos olhos. Cruzes, que treco é esse?!
— Uhum. — Ela murmurou concentrada.
— Certeza? — bufou e me encarou ainda segurando o treco de metal nos olhos — Você não vai perder os cílios com isso? Um trambolho desses no olho, gente… Pra quê?
— O nome disso é curvex, .
— Curvex, latex, eslatex, tanto faz, é bizarro. — Dei de ombros e deitei com a cabeça no travesseiro — Sinto muito mesmo por te fazer passar por isso.
— Se você falar isso mais uma vez, vou ser obrigada a enfiar esse curvex no meio da sua bunda! — Ela gritou do banheiro. Levantei a cabeça e gargalhei, rolando na cama preguiçosamente.
— Não quero ir, !
— Garoto, levanta. — apareceu pronta do banheiro. Bati palmas estrondosas.
— Você é a mulher mais linda do mundo. — Observei abrir um sorriso largo.
— Eu sei. — Ela piscou com seus olhos castanhos em minha direção. Sua pele estava coberta por um vestido cheio de estampas africanas, em seus pés repousavam sapatos fechados vermelhos. Ela parecia gritar luz e alegria.
Flexionei os dedos várias vezes em sua direção, e me puxou para cima.
— Vamos repassar o plano. — Recapitulei quando estávamos chegando ao endereço da casa de festas que meu chefe havia indicado.
— Claro, chefe.
— Você é minha noiva. — arqueou a sobrancelha enquanto dirigia.
— Ah, sério? É novidade essa parte.
— Sua ironia não é capaz de abalar minha confiança, ok? — Retruquei com um sorriso — Isso vai dar certo!
— Não gosto dessa confiança, . — comentou nervosamente.
— Quando meus cálculos de probabilidade já estiveram errados? — Questionei, meu peito estufando.
— Hã… Teve aquela vez que você acabou caindo numa vala naquela festa e—
— Cale a boca, foi só uma vez. Voltando ao assunto. — riu pelo nariz — Estamos juntos há três anos, somos bem tradicionais e já namoramos querendo casar. — assentiu e trocou de marcha, os barulhos das várias pulseiras encheram o carro.
Ela estava muito cheirosa naquele dia. O carro parecia exalar uma estufa do Jardim Botânico. Aquele era o perfume que eu dei para em seu aniversário do ano passado.
— Vamos nos abraçar, vou fazer sala com suas colegas e odiar seus colegas homens cis.
— Basicamente.
— Perfeito, já é o que eu faço naturalmente, não é? — Ela piscou em minha direção, os olhos delineados e dourados preencheram minha visão.
— Não sei como Bruno ficou ok com isso, sério.
— Bruno não precisa ficar “ok” com nada, . — retrucou, sua expressão um pouco mais séria e impaciente aparecendo — Eu sou sua melhor amiga. Faria qualquer coisa por você. — Ela repetiu e balançou a perna esquerda sobre a embreagem.
— Você mentiu por mim, sei o quanto odeia mentira. — Deitei a cabeça contra o estofado do carro. suspirou.
— Esse trabalho significa o mundo para você, não é? — Assenti — Então significa o mundo para mim.
*
A festa da empresa foi tudo o que uma empresa na cara da mídia por assédio sexual é: um porre. Vários casais preenchiam o jardim florido, contei pelo menos quarenta, todos conversando sobre queijos e vinhos que comeram quando foram para a Itália ou Campos do Jordão — os queijos são bem similares, como um colega fez questão de enfatizar.
Encarei do outro lado do jardim. Ela conversava animadamente com mais três mulheres. Por vezes elas me encaravam, e eu apenas sorria e acenava, e elas voltavam a rir. Como eu queria estar rindo!
— Você precisa mudar seu mindset, cara. Minha namorada é uma baita investidora, ela já deve estar chegando e vai amar falar sobre isso com vocês, paspalhos. — Consegui ouvir Pietro falar na roda. Controlei-me para não gritar.
Como eu queria estar na praia agora tomando sol e açaí!
— E você, ? O que acha sobre a bolsa atual? — Virei-me atentamente quando meu nome foi jogado na roda.
— Cara, investir na bolsa é o maior problema agora, mas o fundo imobiliário está rendendo bem. — Respondi. havia me dito isso no caminho para cá. Ela investia no fundo imobiliário, eu investia no tesouro direto.
— Você tem razão, e por falar nisso…
E Pietro desandou a falar sobre a Bolsa. Eu desandei a pensar no quanto a comida estava boa. Nada se compara a um bom e velho churrasco. Observei pisar falso em seu sapato com o canto dos olhos. Hm, aquilo não era boa coisa.
— Licença. — Disse aos meus colegas e atravessei o jardim rapidamente, passando ao lado da grande piscina decorativa.
Qual a graça de ter uma piscina gigante se eu não posso afogar Pietro nela?
Toda a estrutura do jantar da empresa era elegante. Havia tendas brancas espalhadas por todo o enorme jardim com diferentes alimentos. Em uma barra estava o churrasco, em outra, crepes de chocolate e queijo preenchiam o ar com o aroma de gordura saturada e açúcar.
Atravessei as tendas esvoaçantes e sorri para o moço do churrasco. Ele me veria muito mais ainda naquela tarde.
— Oi, meninas. — Sorri ao me aproximar da roda em que estava. Quatro rostos viraram em minha direção, inclusive — Posso pegar minha noiva rapidinho? — Elas assentiram e riram.
— Você é uma mulher de sorte, ! — A esposa de um dos funcionários disse para , mas sorria em minha direção. Interessante.
— Eu que sou o sortudo. — Respondi com um sorriso casto.
— O que houve? — questionou quando nos afastamos levemente da roda de conversa. Ela era mais baixa, então levantava o pescoço para me encarar. Olhei ao redor, todos estavam distraídos rindo alto e conversando.
— Você está bêbada? — Pisquei na direção de quando ela gargalhou em meu rosto, o cheiro doce de morango atingindo meu nariz.
— Estou moderadamente funcional.
— Vou tomar isso como um “não”. — Suspirei e ri — Não acredito que vou precisar te carregar para casa. Vai tomar uma água, mulher.
— Hm, descobri algo interessante. — Ela riu um pouco e seus olhos começavam a ficar pequenos, apoiando as duas mãos em meu peito coberto pela camisa social.
— O quê?
— Esqueci. — Ela gargalhou e apoiou a cabeça em meu peito, da mesma maneira como fazia há anos. Puxei-a pelo ombro e a encarei.
— Lembre.
— Ah, lembrei! — Ela riu novamente e suspirou — Flaviane está gamada você, cara. — Ela diminuiu o tom de voz. Encarei de soslaio Flaviane, a moça de cabelos ruivos e sorriso encantador que ria naquele momento. Trabalhávamos no mesmo corredor do escritório.
— Eu já sabia. — arqueou a sobrancelha.
— Sabia?
— Sabia. Ela já me ofereceu sexo. — piscou algumas vezes.
— Não acredito. E por que você não fez?! — Ela exclamou.
— Porque eu sou noivo, lembra? — Pisquei em sua direção, mas apenas permaneceu em silêncio, me encarando com seus olhos inquisidores.
— Você é fiel até à sua noiva falsa… — Ela suspirou pesadamente — Não contei ao Bruno que viemos. — Ela disparou.
Meu peito pareceu doer, como se eu tivesse levado um soco nas costas. Eu provavelmente levaria um quando Bruno soubesse desse nosso teatro.
Até agora havíamos feito um bom papel. Ninguém parecia desconfiar, não que houvesse alguém realmente interessado, mas as fotos dos funcionários possuíam poses minhas e de nos abraçando. Em um delas, eu beijava a cabeça de , ela gargalhava contra meu peito. O fotógrafo, o Denis do RH, disse que seria a foto do meu aniversário da empresa.
Ótimo.
— Por que não? — Questionei, mas encarou a piscina atrás de nós dois e suspirou.
— Ele sente ciúmes de nós dois. — sorriu com os dentes cerrados — Por isso.
— Mas ele não tem motivos para sentir ciúmes. — Afirmei e coloquei as mãos dentro do bolso.
— Eu sei disso! — Ela exclamou, parecia mais sóbria — Não queria ter outra briga por causa disso.
— Vocês brigaram? — Arqueei a sobrancelha e vasculhei em sinal de alguma mágoa — Nunca foi minha intenção me meter entre vocês, .
— Eu sei disso também. — Ela suspirou novamente.
— Mais uma foto do casal! — Denis gritou atrás de nós dois com seu cachecol amarelo balançando para os lados. virou-se com um sorriso gigante. Pai amado, ela era um camaleão!
Abracei-a por trás e apoiei minha bochecha ao lado da dela. Parecia um ensaio fotográfico de gravidez. Quando Denis sumiu entre flashes em outros funcionários, voltei a encará-la.
— Isso tem sido algo constante entre vocês? Essa discussão? — Abaixei meu tom de voz. Pude ver que desviava o olhar constantemente. Ela parecia chateada.
— Você não tem culpa por ele não confiar em mim. — Ela respondeu apenas.
— Mas isso é algo que eu posso evitar, não é? — Questionei.
parecia séria, e tinha razão em estar. Não era a primeira vez que um relacionamento de nós dois sofria do grande “vocês têm certeza de que não se gostam?”. Minha última namorada havia questionado isso um dia após transarmos (pois é, romântico). Permaneci a encarando sem qualquer reação.
“Você realmente está me perguntando se gosto de outra mulher depois de eu dizer que te amo pela primeira vez?”, questionei com total incredulidade na direção da loira deitada em minha cama. Ela terminou comigo dois meses depois. Havia achado um sheik e se mudaria para casar com ele. Não tive reação, apenas lembro-me de encarar chocado o celular quando ouvi o áudio do término. Onde diabos ela achou um sheik?!
— Acho que vou embora, . Não deveria ter falado sobre Bruno. — mudou o peso de um pé para o outro e cruzou os braços.
— Não, fica, por favor. — Estendi minha mão em sua direção — Depois falamos sobre isso, que tal? — encarou minha mão estendida e deu um tapa nela.
— Você vai fazer um aperto de mão com a sua noiva? — Ela arqueou a sobrancelha.
— Você é muito tradicional, sabe? — gargalhou e me abraçou de lado, sua mão envolvendo minha cintura.
— Vai se ferrar.
— Um doce. — Respondi ironicamente.
— Pessoal! — Dodô gritou de cima de uma mesa, chamando a atenção de todos presentes — Gostaria da atenção de vocês antes de encerrarmos nosso churrasco! — Observei enquanto meu chefe tentava se equilibrar.
— Minha pressão caiu só de ver isso. — sussurrou ao meu lado.
— Esses dias têm sido difíceis para todos, mas gostaria de dizer que está tudo bem. Esperamos que nenhum incidente como aquele ocorra de novo. — Cerrei os punhos dentro do bolso. Incidente? Observei ao redor. A maioria das mulheres estava com o semblante sério e fechado.
— Foi um crime, chefe. — Respondi alto, apertou minha mão ao meu lado. Dodô me encarou com o cenho franzido.
— Tem razão. — Ele cedeu rapidamente. Dodô não era muito orgulhoso — A partir de agora, teremos punições ainda mais rígidas para qualquer caso de assédio ou abuso na empresa. — Ele falou mais alto. olhou para baixo, mas fui capaz de pegar de relance um sorriso em seu rosto. Voltei a olhar para frente, um sorriso surgindo em meus próprios lábios ao vê-la sorrir.
— Você realizou perfeitamente a sua obrigação lá dentro. — comentou ao entrarmos no carro novamente. Ela estava do lado do carona agora, as pernas estavam cruzadas no banco, as camadas do vestido cobriam o banco, pegando parte do câmbio com o tecido.
— Eu fui um bom homem feministo? — Questionei.
— Esquerdomacho algum seria capaz de performar o que rolou ali. — Ela provocou, uma gargalhada gostosa escoando por sua boca.
— Ok, agora eu tenho direito a pedir um nude?
— Da Flaviane, com certeza.
— Eu estava pensando em um do Dodô. — gargalhou com a mão na boca.
Já estávamos cruzando a cidade novamente, um silêncio gostoso preencheu o carro.
— Obrigado por tudo. — Comentei enquanto batucava os dedos contra o volante.
Virei-me para quando paramos no semáforo vermelho. Ela assentiu.
— Foi divertido.
— Tudo é divertido quando se está bêbado. — cerrou os olhos.
— Eu não me arrependo de nada.
— Nem de topar essa insanidade comigo?
— Ah, sim, disso sim. — Ela riu — Não, na verdade, foi bem divertido.
— Agora você está livre dessa mentira, . Semana que vem vou anunciar nosso término para Pietro, ou seja, em dez minutos a empresa toda vai saber.
— Foi legal ser sua noiva por uma tarde, sabia? — Ela virou-se de lado no banco. Encarei-a de soslaio.
— Ah, é? Minha futura noiva vai ser uma mulher sortuda? Ou meu futuro noivo?
— Completamente.
— Ótimo. — Sorri para a avenida — O importante é que já foi, podemos dar risada disso.
— Ah, muitas risadas.
Mordi o lábio para controlar um sorriso. Eu não tinha ideia do quanto eu não riria daquilo no dia seguinte.
Capítulo quatro
O gosto de baba seca e chocolate invadiram minha boca assim que acordei. Minha cabeça girava e eu sentia a enxaqueca dando boas-vindas. Meus divertidamentes deveriam estar em pé de guerra. Levei um tempo até perceber por que minha cabeça doía tanto.
— Eu sei que você está aí! — Uma voz berrou pela porta.
Pisquei algumas vezes e levantei-me da cama rapidamente, minha pressão caindo no processo. Andei em direção à porta com a campainha invadindo o apartamento estrondosamente. Fenólio estava na casa dos pais, será que era uma namorada?
— Patel Singh! Abra esta porta agora!
Travei antes de chegar à porta. A baba seca parecia um manjar divino se comparado ao gosto ruim que subiu por minha garganta. Tinha certeza de que vomitaria.
Abri a porta com um sorriso torto cafajeste pendendo nos lábios. Flora me encarava com os olhos semicerrados e as bochechas vermelhas.
— Oi, irmãzinha.
Mal pisquei antes que ela tivesse entrado pela porta.
— Por que diabos você não está pronto para ir ao aniversário de almoço do papá e da mamadi? — Fechei a porta atrás de nós dois e arrumei o calção na cintura.
— Porque eu não vou. — Dei de ombros. Caminhei até a cozinha, Flora vinha atrás de mim bufando e xingando.
— Isso é burrice.
— Burrice seria ir ao almoço, Flora.
Havia um motivo para alguns filhos de pais indianos quererem tanto sair de casa. O motivo da minha casa tinha nome e sobrenome: minha mãe.
— Papá quer sua presença. — Ri pelo nariz enquanto colocava leite no copo, ainda de costas para minha irmã. Senti o gosto ruim na boca piorar.
— Fico feliz que você tenha parado de tentar colocar mamadi na equação. — Mexi em meus cabelos compridos e coloquei meus óculos, que estavam em cima da geladeira. Era o único lugar que eu lembrava de pegá-los. Quem colocaria óculos na geladeira? Ninguém, por isso mesmo eu nunca os perdia, não havia outro local possível para colocá-los.
— Mamá te ama, … — Flora suspirou.
Virei-me para encará-la totalmente sem humor nos olhos e na expressão. Os cabelos compridos e negros de minha irmã estavam trançados em uma coroa em sua cabeça. Ela usava a roupa tradicional que mamá havia pedido que usasse, um sári de seis metros de comprimento enrolado no corpo de Flora. O batom vermelho destacava a pele marrom, e os olhos estavam marcados por um delineado que mamadi usava constantemente.
— Não vou discutir isso com você, Flora. — Retruquei sem ânimo, minha cabeça estalando — Vou voltar a dormir agora. Você pode fechar a porta quando sair? Não quero ser assaltado. — Sorri sem mostrar os dentes e passei por ela, indo em direção ao meu quarto.
— Mamá disse que é importante, e se você perder algo?! O que as pessoas vão dizer? — Flora insistiu, sua voz ecoando pelo corredor pequeno.
— Me encaminhe depois pelo WhatsApp. O último anúncio dela foi que a Versace havia enviado um vestido para ela testar o tecido. — Flora suspirou atrás de mim.
Larguei-me na cama e me cobri novamente. Fechei os olhos, mas eu sabia que Flora permanecia parada à porta com seu sári farfalhando contra o chão. Ouvi seus brincos tilintarem e seu colar bater em seu pescoço enquanto ela andava por meu quarto.
— . — Ela suspirou pesadamente e sentou-se ao meu lado na cama — Por favor, por mim!
Arquejei e murmurei, abrindo os olhos novamente para encará-la.
— Vai ter álcool? — Flora revirou seus olhos.
— Eu por acaso iria a um almoço de família sem uma boa dose de álcool no sangue? — Ela bufou e riu.
— Me dê cinco minutos.
— Use o sherwani que mamá enviou mês passado.
— Não recebi. — Fingi tristeza, mas observei consternado quando Flora abriu meu guarda-roupa e tirou o sherwani pendurado do armário. Suspirei.
— É, não recebeu. — Flora jogou a vestimenta em minha direção.
Levantei-me da cama rapidamente e me tranquei no banheiro. Sabia que Flora só sairia da minha casa comigo ao seu lado.
Os almoços de família eram sempre regados a muita música, comida e ofertas. Peguei um remédio para enxaqueca na gaveta do banheiro, já prevendo o que me aguardava. Não sabia se estava sequer preparado para lidar com mamá, especialmente se ela tivesse escolhido aquela data para me apresentar a outra pretendente.
Da última vez, quando neguei a mamá uma noiva, ela pegou uma faca na cozinha e disse que seria seu fim. Lembro-me seriamente de sentir meu sangue gelar. Não estava pronto para passar por aquilo de novo, como no dia em que eu disse a ela que não seguiria a carreira de engenheiro.
“Você é meu maior desgosto”, ela disse no momento da raiva, nove anos atrás, quando anunciei querer ser jornalista.
Naquele mesmo ano, apliquei para engenharia no vestibular. Quando passei, mamá disse com um aceno de desdém: “Ok. Agora vamos te arranjar uma esposa”.
Lembro-me de chorar de ódio no colo de Flora. Ela sabia o que eu sentia. Na realidade, entendia ainda melhor. A única pessoa que sofria mais na mão de mamá era Flora. Ela estava prometida em casamento para um médico indiano que havia feito a proposta para meus pais. Estamos no século XXI, mas isso não significava que alguns costumes haviam sumido.
Eu era um dos únicos homens indianos capazes de serem motivo de desgosto pras suas mães. Essa só era a prova de que eu realmente havia pisado na bola em algum momento. Um filho homem ser motivo de desgosto constantemente? Hm.
Mamá também sabia disso, então creio que por isso ela seja tão dura comigo, para que eu em algum momento ceda e seja um bom filho, o filho que ela espera que eu seja.
Sei que mamadi, no fundo, talvez bem no fundo, ache que quer fazer isso para nosso bem. Somos de gerações diferentes e criados em países diferentes com culturas diferentes. Por isso o diálogo era impossível. Mamá sempre ganhava as discussões, e consequentemente Flora se casaria dali cinco meses.
Sentia-me mal. Nunca falamos sobre isso, mas questionei-me se o motivo de Flora não ter se revoltado ainda era porque eu havia feito isso primeiro, como se ela não quisesse ser a segunda decepção de mamá. A sensação invadiu meu peito com força novamente. Não sabia se algum dia teria coragem de descobrir a verdade.
— ! mandou mensagem! — Flora gritou do outro cômodo. Enrolei-me na toalha e coloquei a cabeça para fora do banheiro.
— Dê-me o celular. — Estendi a mão. Flora colocou o celular em minha mão, e voltei-me a trancar no banheiro.
“Hoje não é o aniversário de casamento dos seus pais?”
Sua mensagem piscava na tela.
“É, pois é.”
“Por que você não falou nada?”
“Não achei ser relevante”
Bloqueei o celular e coloquei o sherwani cobalto com detalhes floridos prateados costurados à mão. Fios de prata desciam pela gola do sherwani e formavam um colar sobre meu peito. Arrumei o tecido fino e coloquei a calça social da mesma cor combinando. Estranhei mamá não ter colocado um salwar para que eu usasse, uma calça folgada que é mais justa no tornozelo, mas não questionei. Mamá não poderia ser questionada sobre seu gosto de moda. Na verdade, sobre nada.
“Estou na torcida por você. E lembre-se que sua mãe te ama, . E você esqueceu sua carteira comigo. Você precisa parar com esse costume de esquecer tudo em qualquer lugar. Meus pais foram viajar, então estou sem fazer nada. Me avisa quando quiser ir embora dos seus pais, te levo a sua carteira e podemos ir tomar um sorvete. Boa sorte, vai dar tudo certo.”
Li a mensagem de e sorri. Ela era positiva a todo momento, como isso era possível? Acho que em parte era porque não conhecia mamá, mas conhecendo bem , ela tiraria o melhor da experiência de conhecê-la pessoalmente.
— Hm, que lindo! — Flora exclamou quando voltei para o quarto.
Sentei-me na cama e deixei que minha irmã arrumasse meu cabelo, como ela gostava de fazer quando morávamos juntos sob o mesmo teto. Observei-me no banheiro em seguida. Parecia um perfeito filho, pronto para obedecer seus pais e se casar para ser miserável pelo resto da vida. Que coincidência absurda eu estar fingindo estar noivo quando a pura ideia me causava desespero.
— Acha que mamá vai tentar me apresentar a outra mulher hoje? — Questionei quando descemos o elevador. O porteiro nos encarou descaradamente quando passamos pela portaria.
— Não sei. — Ela respondeu cantarolando.
— E seu noivo?
Resolvi ser cauteloso em minhas perguntas acerca daquele assunto. Eu e Flora não conversávamos tanto quanto eu gostaria, então eu não conseguia saber em que pé estavam as coisas.
— Está tudo ótimo, ! — Ela exclamou sorridente — Eu dei muita sorte.
Tentei buscar nela algum sinal de mentira ou de nervosismo, mas não encontrei. Franzi o cenho. Alguém poderia ser feliz naquela situação?
— E ele vem hoje? — Questionei novamente enquanto dirigia em direção ao caminho tão conhecido por mim.
— Uhum. — Ela murmurou.
— Por que está agindo estranho?
— Por nada. — Ela deu de ombros.
Permanecemos em silêncio até chegarmos ao casarão de nossos pais.
Papá era um dos acionistas de uma rede de shoppings em São Paulo. O contador dele havia indicado que papá investisse seu dinheiro no Fundo Imobiliário há quinze anos, e de alguma maneira absurda papai virou um dos acionistas majoritários. Agora mamá poderia usar Versace sem sequer arranhar a fortuna deles.
Adentramos pelos jardins floridos e bem podados após abrirem a porta para nós. O carro esmagava os pedregulhos da entrada do pátio. Estacionamos ao lado de alguns carros já estacionados. A casa se estendia diante de nós com seus tijolos bem colocados e janelas de madeira maciça.
Mamá queria dar a impressão de uma casa rústica. Bem, ela conseguiu.
— Por que você está tão calmo? — Flora perguntou finalmente quando já subíamos a pequena escada de placas de granito até a entrada da casa.
— Porque eu já estou acostumado com isso? — Falei em tom de questionamento.
— Nossa, quando foi a minha vez eu estava bem mais ansiosa.
— Do que você—
Ia começar a questionar, mas isso até uma bola de pelos gigante pular em meu colo.
— Fiona! — Exclamei e dei pequenos beijos na cabeça da pitbull da família. Seu corpo pesado fez com que eu precisasse me agachar para poder fazer carinho em sua orelha.
— Tem pêlo no seu sherwani. — Flora apontou. Levantei-me e limpei alguns pêlos do peito com a mão — Estou muito feliz por você. — Flora disse novamente, os olhos brilhando com algumas lágrimas tímidas.
— Obrigada, Flora. — Beijei sua testa e caminhamos juntos por entre a porta.
Lá dentro, algumas pessoas estavam deitadas em divãs e sentadas nos tapetes persas importados de mamá. Milhares de estampas coloridas giravam pela sala de jantar e pela sala de estar, as primeiras que víamos assim que entrávamos na casa. Pinturas de meninas brincando estampavam a parede atrás dos sofás, e um lustre pendia no meio da sala. Aquele lugar cheirava à infância. Por alguns instantes, esqueci-me do meu nervosismo e me senti em casa.
Fomos cumprimentados por alguns tios, como chamávamos os anciãos indianos do círculo de amizade dos nossos pais.
Flora foi interrompida por algumas tias, que a puxaram para longe provavelmente para falar do casamento e sobre como ela precisava emagrecer se quisesse manter seu marido.
Continuei a caminhar até a cozinha.
O cheiro de curry de peixe invadiu completamente meus sentidos. Seria um baita almoço, então! Entrei na sala à direita, dando de cara com a imensa cozinha, que dava para os fundos da casa. Mamá estava ali com toda a sua exuberância e cores vermelhas.
— Mamadi. — Sorri em direção à minha mãe quando ela levantou o olhar da panela para me encarar.
Estava caótico dentro da cozinha. Três funcionárias corriam de um lado para o outro preparando os pratos para serem levados à mesa baixa na sala de jantar. Além disso, observei bandejas serem apoiadas na mesa com diversas entradas.
Ah, por isso não havia tanta gente ainda. A maioria deveria estar do lado de fora conversando. Chegamos antes do almoço ser servido.
— ! — Ela exclamou e sorriu por trás da fumaça que subiu da panela ao abrir a tampa — Este tempero está bom, mas falta alguma coisa. — Ela indicou a uma das funcionárias e afastou-se do fogão — Você veio, hein? Achei que fosse dar uma desculpa esfarrapada.
Mamá era uma mulher de um metro e cinquenta com os olhos mais assustadores do mundo.
— Eu não faria isso. — Tentei sorrir confiante, mas mamadi apenas passou por mim, indo em direção à sala.
— E sua irmã? — Ela questionou e sorriu para um dos convidados recém chegados.
— Com as tias. — Respondi sucinto, mas percebi que ela já havia acabado sua fração de atenção direcionada a mim. Agora ela ria e falava em hindi com o convidado. Eu tinha certeza de que ele era um produtor de filme.
O círculo de amizades de nossos pais era estranhamente misturado. Mamadi parecia moderna se comparada aos outros indianos que eu conhecia, mas isso era só o exterior. Quando ela descobriu sobre minha sexualidade, me jogou para fora de casa e chorou ao dizer: "Você foi a desgraça dos deuses sobre nossa família". Devo dizer que meu aniversário de dezoito anos foi muito divertido.
Balancei a cabeça em uma tentativa inútil de me livrar das memórias constrangedoras daquele dia, então parei o garçom ao meu lado e peguei um drink extremamente doce da bandeja. Mamadi amava misturar a cultura brasileira à cultura indiana em tudo o que fazia. Ela costumava dizer não gostar muito do Brasil e sentir saudades de seu país, mas sequer cogitava voltar para lá. Eu sabia que ela amava este país tanto quanto eu e minha irmã, mas não queria perder a pose diante de seus amigos.
— Você está precisando de algo mais forte do que esse drink, não é? — Virei-me a tempo de ver Kadir, o noivo de Flora, sorrindo para mim. Ele tinha um sotaque do sul forte. Sorri em sua direção e apertei sua mão.
— Você não tem ideia, cara.
Kadir tinha olhos castanhos e uma barba cheia, mas era estranhamente harmonioso. O verdadeiro indiano que mamá desejava para Flora. Contive um suspiro de frustração, os questionamentos acerca da rebeldia contida de Flora ainda afloravam em minha mente imaginativa.
Eu precisava de algo mais forte.
Continuei conversando com Kadir sobre seu trabalho (estava tudo ok, mas havia um novo cirurgião sendo racista com ele) e sobre os detalhes do casamento (Flora ainda não havia escolhido o vestido de noiva, e os dois estavam indecisos entre tulipas e rosas). Surpreendi-me ao perceber que Kadir estava inteirado sobre os detalhes do casamento, que gostaria de fazer parte de todo o processo de preparação, não apenas chegar ao altar e dizer as palavras mágicas. Talvez Flora estivesse certa, talvez tudo estivesse 'ok' entre eles dois. Talvez ele fosse alguém legal, afinal de contas.
Fui até a cozinha e peguei uma garrafa de bebida que meu pai deixava guardada para ocasiões especiais. Nada mais especial do que o aniversário de um casal, certo?
— Você nunca foi muito cuidadoso para pegar minhas bebidas. — Virei-me para trás rapidamente com a garrafa em mãos.
Senti-me novamente com dezessete anos, quando meu pai me pegou pela primeira vez com a bebida em mãos. Desde os dezesseis anos, eu pegava a garrafa às vezes apenas para bebericar e devolvia de volta para o esconderijo atrás dos pratos chineses.
Uma noite, após mamá ser um doce de pessoa comigo e com Flora, desci até a cozinha e peguei a garrafa, virando-a direto na boca. Dei três goles cheios de fúria e amargura antes de observar papá me encarando na porta.
— Vícios são criados quando coisas aparentemente inofensivas servem para te fazer esquecer da sua realidade.
Papá não me repreendeu, não me bateu, nada disso. Ele parecia cansado, como se vinte anos houvessem sido adicionados às suas feições, contrastando com a felicidade que ele mostrara durante todo o dia com nossa família. Mas ali, de madrugada, com a casa inteira dormindo e apenas nós dois acordados, ele parecia verdadeiramente exausto.
— Desculpa. — Sussurrei olhando para baixo.
— Guarde isso e vá dormir. Nunca mais beba quando se sentir triste ou irritado, está me ouvindo? — Assenti, meus olhos ainda fitando o chão.
— Sim, papá.
— Ótimo. Faça algo diferente. Compre ações na bolsa, leia um livro, vá para a academia, mas não estrague a sua vida. Não te criei para ser um alcoólatra.
Papá se virou em seu pijama com uma blusa de vereador e uma calça de seda. O contraste de quem pensavam que ele fosse e de quem ele realmente gostaria de ser. Aquela imagem permaneceu comigo por muitas noites após aquela, e permanecia naquele momento.
— Não estou bebendo para esquecer nada. — Afirmei prontamente quando ele se aproximou de mim, mas guardei a garrafa apenas para desencargo de consciência.
— Acho difícil acreditar nisso. — Ele respondeu com um riso nasal. Sentou-se na caldeira em frente ao balcão. As cozinheiras estavam no momento arrumando a mesa tranquilamente, eu pude observar pela brecha na sala de jantar.
— Feliz aniversário de casamento. — Sorri para ele, e papá sorriu.
— 47 anos de casados é muita coisa. — Ele comentou enquanto abria uma das panelas com sopa de peixe — Nem acredito.
— Vocês são felizes? — Questionei, meus olhos se recusando a encarar meu progenitor.
Papá demorou a me responder. Eu sabia que conversar sobre sentimentos, sobre nossa vida pessoal, nada daquilo era comum, mas não éramos uma família completamente indiana ou completamente brasileira, então precisávamos pegar o melhor de cada cultura.
— Felicidade é algo complexo para se discutir após tanto tempo juntos. — Ele foi cauteloso em sua resposta. Assenti — Acho que somos felizes, sua mãe é, pelo menos.
Mordi o lábio. Eu sabia que papá se entristecia em algum nível pelo materialismo de mamá. Ele havia feito tudo em sua vida por ela. Enfrentara o papá de mamadi e pediu a mão dela em casamento no dia da festa de noivado de mamadi com outro homem.
Todas as ações de investimento foram ideias de mamá, mas papá não se importava tanto assim com o dinheiro, tinham o suficiente para nos criar bem, porém mamadi não se contentava com aquilo, então papá fez mais. Sempre mais.
— Você ama a mamá? — Perguntei mais uma vez. Papá mudou o peso de uma perna para outra.
— Amor é para jovens, .
E com essa conversa íntima, voltamos para a sala. As mãos grandes e calejadas de papá deram tapinhas em minhas costas. Ele usava um salwar branco sob seu sherwani dourado e branco. As cores realçaram sua pele mais escura que a minha.
Mamadi aguardava na ponta da mesa. A comida estava toda servida, e os convidados já estavam ao redor da mesa baixa. Papá se aproximou, ainda em pé, e tomou o lugar na ponta da mesa, mamadi se colocando atrás dele.
Coloquei-me ao lado de Layla, minha prima de terceiro grau. Ela não usava a vestimenta tradicional, mas um vestido com estampas coloridas e cabelo adornado com fios de prata.
— Você está muito elegante, quase da realeza. — Ela sorriu de canto enquanto as pessoas ainda conversavam antes da refeição ser servida. Sentei-me com as pernas cruzadas, a opção de talheres ao lado dos pratos estava lá para aqueles que se sentissem mais confortáveis comendo como os ocidentais, como mamá dizia.
Encarei os talheres com certa relutância, o meu lado adolescente gritando pela aprovação dos meus pais, para que eu comesse com a mão, como era costume, apenas para que eu, por um instante que fosse, pudesse ser mais parecido com eles e não com os brasileiros ao meu redor.
— Você está muito bonita também, Layla. — Respondi ao comentário com um sorriso.
Papá deu as graças frente ao altar destinado aos deuses. Fiz a prece como lembrava-me quando era mais novo, as palavras deslizando por meus lábios com tamanha familiaridade que poderia parecer quase natural, se não fosse pela minha pronúncia errada de uma das palavras, que acabou saindo mais alto sobre as outras pessoas.
Não ousei abrir o olho, sabia que mamadi estaria me encarando mesmo com os olhos fechados. Droga!
Quando abrimos os olhos, todos começaram a comer. A música voltou. As pessoas riam e conversavam entre si. Negócios eram fechados, casamentos eram discutidos. O resultado do jogo do Corinthians e do Palmeiras virou tema em algum momento.
Levantei-me da mesa para pegar um copo d'água após engasgar, mamadi me seguiu com o olhar quando pedi licença da mesa. Layla me acompanhou enquanto dava tapinhas em minhas costas.
— Você não sabe comer devagar? — Ela ralhou me entregando um copo d'água. Engoli rapidamente o conteúdo, meus pulmões estavam voltando a se lembrar como funcionavam. Limpei meus olhos lacrimejantes.
— Acho que desacostumei com a pimenta. — Layla arqueou a sobrancelha.
— Você tem estado desacostumado com muitas coisas — Ela provocou, os olhos passando por meu sherwani —, menos com uma. — Franzi o cenho em sua direção enquanto enchia outro copo d'água. As cozinheiras nos ignoravam, mas pareciam incomodadas com nossa presença na cozinha cheia. Levei Layla para um canto.
— Como assim? — Layla revirou seus olhos delineados.
— Sua noiva. — Ela respondeu simplesmente, e eu senti o engasgo voltar novamente.
Meu peito doía enquanto a tosse saía descontrolada por meus lábios.
— Como você sabe disso? — Exclamei com os olhos arregalados. Olhei ao redor da cozinha, mas as cozinheiras estavam desinteressadas.
— Eu fui ao churrasco ontem. — Ela comentou como se fosse óbvio — Meu namorado, o Pietro, me chamou. Eu cheguei no final, fiquei presa no plantão do hospital. Te vi saindo no carro com uma mulher muito bonita. Pietro me disse que era sua noiva.
Pietro, linguarudo de merda!
Pisquei algumas vezes, meus olhos percorreram seu rosto atrás de algum sinal de brincadeira, mas ele não estava lá, apenas um humor cômico de quem pegou um amigo fazendo alguma bobagem e se divertisse com a situação.
— Não é o que você está pensando, eu-
— Não precisa se explicar! — Ela interrompeu com uma expressão de desdém — Você não me deve satisfações, mas vai deixar sua mamadi feliz. Ela é indiana, não é? Sua noiva. — Pisquei novamente, ainda atordoado.
— Sim. Ela é.
era, na verdade, filha de mãe brasileira e pai indiano. Meio brasileira e meio indiana, assim como eu, mas de maneiras diferentes.
— Mas, novamente, não é isso o que-
Fui interrompido por uma figura de um metro e cinquenta e olhos grandes vidrados em mim.
— Está tudo bem? — Mamadi questionou. Assenti rapidamente. Encarei Layla quase suplicando, mas eu não precisava dizer nada.
Minha prima sabia que mamadi não estava sabendo do noivado. Se soubesse, já teria chamado toda a Índia para uma festa de noivado. Além disso, teria gritado comigo durante três horas por não ter falado com ela antes. Imaginar um cenário caótico em que mamadi descobria sobre meu noivado fez meu peito acelerar.
Acompanhei mamadi e Layla de volta à mesa e sentei-me, mas minhas pernas tremiam mesmo após ter permanecido sentado. Eu sentia meu corpo implorar para me levantar e andar pela casa. Odiava sentar à mesa para almoçar ou jantar, não conseguia permanecer mais do que cinco minutos sentado sem bater com os pés no chão ou estralar os dedos.
— Tenho um anúncio a fazer! — Mamadi exclamou com os olhos cheios de alegria.
Encarei Flora do outro lado da mesa com o cenho franzido, mas ela também sorria. Seu olhar se desviou do de mamá para o meu rosto, e quando ela percebeu minha confusão, seu semblante tornou-se sério.
O que estava acontecendo?
Papá parecia tão perdido quanto eu, mas eu só havia percebido isso porque sua sobrancelha subiu e desceu rapidamente, tão rapidamente que somente alguém que o conhecia há mais de vinte anos poderia perceber.
— Teremos um casamento! — Ela exclamou. Meu peito apertou, senti que iria desmaiar — Como sabem, Flora e Kadir se casarão ano que vem.
Mal pude esconder o alívio que tomou minha existência. Minhas mãos suavam tanto que eu precisei limpá-las contra minha calça.
Mas isso não me preparou para o que veio em seguida.
— E meu filho, , vai se casar também!
De repente, todos os olhares estavam voltados para mim. O curry pesou em meu estômago enquanto mamá me levantava e me levava para a ponta da mesa.
— Eu nunca estive tão orgulhosa de você. — Ela sorriu para mim com os olhos lacrimejando. As pessoas ao nosso redor comemoraram, risadas altas foram ouvidas enquanto meus parentes faziam piada sobre papá perder os dois filhos de uma vez — E mais tarde espero que você me explique por que eu descobri sobre o seu noivado através de outra pessoa, não de você. — Ela sussurrou perto de mim, longe da visão dos convidados. Merda!
Capítulo cinco
Abri a porta de casa com um suspiro e larguei as compras sobre a mesa. Observei as toalhas jogadas sobre o sofá e o pote de pipoca na mesa de centro. Bruno não parecia estar na minha casa.
Na noite passada, havíamos brigado tão feio que uma vizinha havia descido para perguntar estava tudo ok comigo. Respondi que sim. E estava. Bruno nunca ousou levantar a mão para mim, mas era difícil discutir com uma pessoa que fala tão alto quanto você. Nós dois somos explosivos, a situação não poderia ser pior.
Contei a ele sobre o plano de . Vi suas feições mudarem de confusão para escárnio quando contei toda a história.
— Você realmente acha que ele fez isso sem querer, ? — Bruno questionou, seus olhos verdes fitando os meus. Ele estava andando pelo quarto.
— Acho que ele pensou na pessoa mais próxima a ele. — Dei de ombros.
— Não, ele pensou na pessoa mais ingênua e que fosse cair no papo dele. — Franzi o cenho.
— Está dizendo que me manipulou? Mas eu topei participar disso com ele!
— Não, você só topou porque ele não te deu escolha. Você teria topado isso se houvesse outra alternativa? Não. Ele te colocou contra a parede. Você aceitou porque é ingênua. — Pisquei algumas vezes ainda incrédula com seu discurso.
— Eu sou amiga dele há anos, faz sentido ter pensado em mim primeiro.
— Por que ele não pensou em uma ex-namorada? — Questionou Bruno, e eu não soube responder — Viu só? É óbvio que ele é apaixonado por você, ! Olha isso, ele está tentando te roubar e você sequer percebe!
— Ei, ei, ei! — Levantei a voz e me coloquei em pé — Me roubar? Você acha que isso é um ataque contra você? — Cruzei os braços.
— Não é isso que eu quero dizer. — Ele se retratou e passou as mãos pelos cabelos louros. Permaneci em silêncio até que ele me encarasse novamente — Eu só estou cansado de tentar te ganhar todas as vezes que ele aparece.
Não soube como responder.
— Mas eu sou sua, Bruno. — Respondi mais calma e me aproximei dele. Deslizei meus dedos por sua nuca. Bruno me encarou.
— Não parece, nunca pareceu. Toda vez que estamos bem, ele aparece e a gente briga. Estou cansado, . — Afastei-me dele.
— Está terminando comigo? — Questionei completamente incrédula.
— Não, estou te dando uma última chance. Eu não queria ser o tipo de namorado que faz isso de "ou ele ou eu", mas…
— Ou ele ou você. — Respondi por ele. Bruno permaneceu encarando o chão, e lágrimas de raiva subiram por meus olhos — Isso não é justo, Bruno. Eu nunca te dei motivos para desconfiar de mim. Está sendo irracional! Eu nunca te trairia, e você sabe disso. — Àquele ponto, lágrimas grossas e quentes rolavam por meu rosto. Bruno me encarou. Minha voz vacilou.
— Sei disso, mas não confio nele.
— Mas você não namora com ele, namora comigo! — Exclamei novamente, agora as lágrimas deslizavam com facilidade — Você nunca confiou em mim, Bruno! Nunca!
Suspirei e sentei-me na cama. Bruno permaneceu em pé.
— Já dei minha alternativa final. — Ele respondeu apenas.
Levantei-me e saí de casa naquela noite. Dormiria na casa de uma das meninas, não queria estar ali. Se Bruno quisesse, ele que voltasse para sua casa, mas imaginei que não iria. Ele não gostaria de estar naquelas condições com seus colegas de apartamento.
Por isso, quando cheguei em casa no dia seguinte e vi tudo revirado, imaginei que fosse algum tipo de vingança da parte dele, e aquilo me doeu o coração.
Ele realmente estava fazendo aquilo?
Peguei as toalhas e as levei para a máquina de lavar. Aspirei o chão. Lavei o banheiro. Deixei a casa brilhando novamente. O cheiro de lavanda a enchia inteiramente. A única parede colorida, de um verde água brilhante e divertido, guardava imagens minhas e de pessoas que eu amava em um pequeno varal de polaroids.
Observei uma foto minha e de . Nossa primeira semana de aula. Estávamos pintados e com farinha na cabeça. Nossa faculdade havia abolido o trote, então fizemos com nossos colegas. Eu estava em suas costas, ele me carregava com as mãos segurando minha panturrilha e eu ria com a cabeça para trás.
Será que Bruno estava certo? Apoiei-me na vassoura em minha mão e limpei o suor da testa com o antebraço. Permaneci fitando a imagem. teria feito aquilo de propósito?
Peguei meu celular ao lembrar que era dia do aniversário de casamento dos pais de . Ele havia comentado comigo na noite anterior.
Sorri ao ver a foto que ele havia mandado de si mesmo usando um sherwani tão escuro que poderia ser preto, se não fosse pelos detalhes em prata que mostravam o tom azulado da vestimenta. Os cabelos estavam penteados perfeitamente, seus olhos brilhavam com uma malícia divertida, como se pudesse sair pulando e gritando pela rua como uma criança.
Não, não havia feito aquilo de propósito.
"Vou passar aí nos seus pais para te levar a sua carteira. Que horas vai acabar o evento?"
Enviei a mensagem e coloquei o celular sobre a mesa. respondeu prontamente.
"Pode vir quando quiser, estou doido para ir embora. Me encontra na rua atrás da casa, pode ser?"
Franzi o cenho.
Eu nunca havia questionado por que ele nunca havia me levado para conhecer sua família. Não que fosse uma obrigação, obviamente, mas vivia grudado com minha família em nossas viagens, isso até ano passado, quando comecei a namorar Bruno e ele passou a ser minha companhia. Nunca estranhei, mas ao ler aquela mensagem, percebi que ele sempre dava jeitos de me manter o mais longe possível de qualquer membro de sua família. Até mesmo de Flora, sua irmã.
"Ok."
Respondi apenas.
*
Quando cheguei à rua atrás da casa dos pais de , senti algo diferente em meu peito. Como se algo estivesse muito errado.
Minha mãe costumava dizer que sua família era sensitiva. Eu orava todos os dias para que não fosse verdade. Paranormais eram os primeiros a perceberem demônios em casas assombradas. E a morrer também. Eu não queria morrer agora.
Avisei a que o esperava. Observei quando ele virou a rua. À luz do dia, ele parecia um membro da realeza, se é que eu poderia descrever um membro da realeza. Os fios prata em seu peito reluziam ao sol cortante. Seus braços longos estavam cobertos pela manga comprida do sherwani, fios pratas contornavam a bainha. Botões muito caros, eu apostava, estavam bordados em uma linha vertical em seu tronco. O lado esquerdo do peito dele era bordado de flores pratas também. Um sorriso gigante estampava seu rosto. Esqueci-me por um momento da raiva que sentia.
— Quanto é a hora? — Questionei com a voz engrossada. apoiou-se com a cabeça na janela e sorriu.
— De graça para você, princesa. — Ele piscou, ou então era o sol forte em seus olhos, fazendo com que seus olhos ficassem pequenos.
— Aqui. — Estendi a carteira em sua direção. agradeceu e bateu com a carteira contra a palma da mão. Observei-o melhor. Ele parecia nervoso, na realidade — Almoço difícil? — Questionei e apoiei a cabeça contra o estofado do carro.
— Está mais para desastre. — Ele sorriu meio desconfortável.
Preparei-me para perguntar o que havia acontecido quando observei outra silhueta parada na esquina da rua. Ela usava uma vestimenta tradicional que as tias indianas do templo usavam.
— Hã, . — Pigarreei quando a mulher começou a se aproximar.
virou a cabeça, seus olhos se arregalaram, e eu pude jurar que ele estava ficando pálido. Quando observei melhor quem se aproximava, senti até mesmo meu peito palpitar com mais força.
A mãe de era inconfundível. Ele já havia me mostrado fotos, descrito, mostrado vídeos, mas mesmo sem nada disso eu poderia reconhecê-la. Seus olhos eram grandes e contornados por um delineado perfeitamente marcado, algo que eu não costumava ver em mulheres mais idosas. Os lábios estavam pintados de vermelho, e um grande sári azul descia por seu corpo pequeno e magro misturado em estampas laranja e vermelho. Ela parecia flutuar no asfalto quente enquanto se aproximava de nós. Brasa pronta para nos engolir.
— ? — Questionei desviando a atenção da mulher para encará-lo, mas não tive tempo. Ela alcançou o local ao lado do filho no mesmo momento em que eu saía do carro.
— Então você é a noiva do meu filho.
Capítulo seis
Eu estava trancada no banheiro há exatos três minutos. A janela atrás de mim parecia pequena demais pra saltar. E se eu fingisse um desmaio? Ou se eu fingisse estar perdida e não saber meu nome? E se eu chorasse até eles terem piedade de mim?
Hm, ótimas opções, mas nenhuma delas parecia me livrar do olhar que a mãe de lançou em minha direção no momento em que a cumprimentei.
— estava te escondendo? — ela questionou direta após uma troca de amenidades nada amenas. Seu sorriso parecia gentil, mas não chegava aos olhos.
Encarei quase implorando por misericórdia.
— Mamadi, podemos falar sobre isso lá dentro? já estava de saída — a mulher de pele escura arqueou a sobrancelha.
— Você ficou noivo e não me contou, agora não quer que eu conheça sua noiva? — ela parecia resignada e alternou seu olhar entre nós dois. — Você engravidou essa moça? — ela perguntou em um hindi rápido.
— Receio que não, senhora. — respondi em hindi também. Minhas bochechas estavam queimando de vergonha. A mulher nos encarou em silêncio.
— Diga-me, você é indiana, ?
— Sim, por parte de pai.
— Então você é mestiça — ela balançou a cabeça levemente. — Já é alguma coisa.
Precisei controlar o desconforto, mas não pareceu se incomodar em ser discreto. Uma careta surgiu em seu rosto na mesma hora.
— Mamadi, a verdade é que não é isso que você está pensando… — começou. Seus olhos encontraram os meus. Eu não estava pronta para aquela cena. Desviei o olhar para o para-brisa sujo do carro. Por que bendição precisava ter esquecido a merda da carteira?!
— Filho, eu sei que fui muito dura com você nos últimos tempos — a mãe de o interrompeu com um sorriso. — Mas tudo o que eu sempre quis foi te ver feliz, e você parece estar feliz com a Safira.
— — a corrigiu. A mulher assentiu rapidamente, descartando a correção. Senti meu estômago pesar.
— Eu estou tão orgulhosa de você — ela sorriu largamente, os olhos lacrimejavam. — Eu estive orando e pedindo tanto pelo seu casamento, e agora você trouxe uma mulher muito bela para casa.
Esperei que cortasse sua mãe e dissesse que era uma brincadeira e falasse a verdade. Continuei esperando em silêncio, mas ao olhar para o lado, vi que lágrimas tímidas escorriam por seu rosto. estava chorando junto com a mãe.
Lembrei-me de todas as histórias que meu amigo havia me contado acerca de sua infância, sobre a dor que ele sentiu quando sua mãe descobriu sua sexualidade, como o desprezou e o trouxe de volta para casa depois de um ano, sobre como ela torcia em todos os jantares de família para que ele aparecesse com uma noiva.
Uma vez, no nosso terceiro ano da faculdade, bebeu demais e chorou em meu ombro. Lembro-me de fazer carinho em sua cabeça enquanto ele dizia ser o fardo da família.
Perguntei-me se era a primeira vez que a mãe de dizia algo daquele tipo para ele, e o pensamento me fez querer chorar junto. Eu só havia visto meu amigo chorar três vezes, e as três envolviam sua mãe.
Queria poder pegar a dor de para mim, mas sabia que as coisas não funcionavam daquela maneira. Eu já havia tentado algumas vezes.
— Acho que posso ficar um pouco, senhora — respondi para a mulher quando ela me encarou. As lágrimas haviam secado e um sorriso pendia em seu rosto. me encarou de soslaio e limpou as lágrimas com a manga do sherwani.
Eu poderia me resolver com mais tarde. Pensaríamos em um jeito de acabar com esse noivado falso com calma e paciência, mas naquele momento eu só queria que ele aproveitasse a aprovação de sua mãe, mesmo que fosse de mentirinha.
*
Sempre me questionaram por que não minto. Respondo instantaneamente “porque mentir é enganar e mentir mata”. As pessoas costumavam ficar quietas quando recebiam essa resposta e refletiam sobre ela.
A mentira já havia destruído tanto da minha vida enquanto eu crescia, então estava decidida a não mentir, mesmo quando aquilo significava uma consequência pesarosa para mim.
Mentira pode ter perna curta, mas quem disse que pernas curtas não podem causar um estrago equivalente a um tanque de guerra? Exato. Ninguém disse. Provavelmente porque mentirosos não vivem tempo o suficiente para contar uma história.
Não importa se a mentira dura mil anos ou um segundo, ela ainda faz algum estrago maior do que se pode imaginar, o que muda é o tempo de duração do estrago.
Naquele momento, enquanto a família de me cumprimentava e me perguntava detalhes sobre o casamento, senti que a perna curta daquela mentira estava prensada contra minha garganta e pronta para me esmagar.
— Vocês já decidiram o local? — virei-me assustada quando Flora, irmã de , aproximou-se animada da roda de tias que me circulava.
Ela era linda. Os olhos claros contrastavam com a pele escura, e seus cabelos presos em uma trança me fizeram questionar se toda a família de seria daquele jeito: linda de tirar o fôlego.
Eu já havia conversado com ela uma vez no meu primeiro ano de faculdade com , mas havia sido pelo celular dele. Já havia pedido a ele várias vezes para nos apresentar, mas sempre dava alguma desculpa. Imaginava que envolvesse os olhares animados dela em minha direção pior causa do casamento falso, como se esperasse que fôssemos cunhadas e melhores amigas. Eu queria ser melhor amiga dela, sem problemas. Mas cunhada era um passo complicado.
— Não, ainda não decidimos nada. É muito recente — respondi sem jeito.
Percebi que uma das mulheres, talvez uma das únicas do recinto a não estar surtando por causa do casamento, nos encarava de longe. Usava um vestido vermelho e seus olhos perfeitamente delineados miravam minha pele, que queimava sob seus olhares. Observei quando ela se aproximou, mas passou reto por nós, indo na direção de .
Coloquei o cabelo atrás da orelha enquanto olhava levemente para trás, tentando ouvir enquanto conversavam.
Ei, eu sei que é errado!
Mas ele era meu noivo de mentirinha, pelo amor de Deus.
E eu sabia que aquela mulher não havia caído no nosso papo. Ela sorria enquanto a mãe de gritava para o mundo que seu filho se casaria. Logo, todos ali estavam falando sobre como teríamos presentes persas sendo enviados para nosso casamento. Que um monarca estaria presente no casamento. Disseram também que teríamos uma cerimônia indiana tradicional e que nossa lua de mel seria na Índia. Questionei-me se a mãe de tinha algo a ver com aquele aumento absurdo dos fatos.
Observei quando a mulher de vestido vermelho puxou para um canto da casa, sumindo da minha vista. Voltei a me concentrar na irmã de ao meu lado, mas ela parecia desconfiada.
— Não imagino por que te esconderia — ela comentou com o cenho franzido.
— Nós estamos tomando cuidado — segui o ritmo. A mentira parou desconfortável em minha garganta.
— Com o quê? — ela soltou uma gargalhada. — Se for com mamadi, entendo.
As tias ao nosso redor já haviam enjoado do casamento, agora falavam sobre uma das jovens do templo que havia engravidado de um mestiço tailandês.
Olhei ao redor mais uma vez, mas ainda estava sumido. Tapetes persas espalhados pela sala acomodavam almofadas das cores mais vibrantes e vivas: amarelo, laranja, vermelho do mais sanguíneo possível e azul tão escuro que poderia parecer engolir o ar ao redor.
Havia homens rindo enquanto bebiam cachaça do lado de fora. As mulheres estavam espalhadas pelo deque nos fundos da casa, pelo que percebi, em uma roda, sentadas em almofadas ainda mais vibrantes do que as da sala.
Eu havia chegado após a refeição principal, mas diante de mim havia um prato enorme com samosa, pastéis fritos recheados com lentilha, vindaloo, arroz brasileiro e uma pequena porção de curry de peixe ao lado. Aquela mistura faria horrores ao meu estômago.
Algumas garçonetes passavam ao redor com copos de chai, para a digestão. Peguei um e deixei ao lado do prato. Precisaria daquilo.
— Sempre ouvir falar de você, sabia? — Flora comentou com um sorriso. Enfiei uma garfada gigante de vadaloo na boca. Flora, com seus cabelos perfeitamente presos e olhos curiosos, continuou a me fitar ansiosamente até que a situação já estivesse ridícula demais para mim.
— Eu também sempre ouvi falar muito de você. Na verdade, acho que te menciona em nossas conversas pelo menos uma vez ao dia. Fico chateada por ele ter te escondido de mim.
Aquilo, para alívio do meu orgulho, era verdade. amava sua irmã com todas as forças. Mesmo sem conhecê-la pessoalmente, eu sabia quem ela era. Sabia que Flora estava prometida a um casamento arranjado com um médico indiano, sabia também que ela fazia faculdade escondida da mãe, que sua comida favorita era pipoca caramelizada e batata frita e que ela me mataria se eu fizesse mal a . Aquela última parte era dedução.
— Estou muito feliz por vocês — Flora segurou minhas mãos, suas unhas feitas brilharam contra o lustre sobre nossa cabeça. — Meu irmão sempre pareceu um bobo apaixonado falando de você.
Bem, aquilo era novidade.
— Eu preciso ir ao banheiro rapidinho — Flora comentou ao olhar para um ponto atrás de mim, onde um homem alto e de ombros largos sorria para ela.
Ah, aquele era o prometido de Flora? Controlei uma expressão clara de “meu Deus, esse cara saiu de uma novela” e foquei na comida à minha frente. Agora eu estava sozinha em um cômodo gigante e ameaçador. Eu sabia que estar sozinha em um jantar de família grande era como um cabrito sozinho diante de um lobo.
Talvez estivesse certo, eu lia fantasia demais.
Observei quando uma das tias de sári laranja entrou na cozinha ao lado de outra tia com um sári adornado por enfeites tão grandes e pesados que poderiam facilmente ser usados para afundar alguém no mar. Eu conseguia ver a cozinha daqui, mas elas não conseguiam me ver. Enfiei uma colherada de curry na boca, o sabor explodiu em minha boca.
— Acha que ele está fazendo isso para conseguir a herança? — uma das tias questionou em tom risonho.
— Acho que ela está fazendo isso pela herança.
Franzi o cenho enquanto comia meu arroz com vadaloo.
— Quando Flora aceitou o casamento, achei que ela ficaria com a herança completa mesmo que ele decidisse casar.
Cansei de fingir que não estava ouvindo. Levantei-me devagar. Não havia ninguém na sala, todos estavam lá atrás, no deque. Menos e a moça de vermelho. Eu não os via em local algum. Aproximei-me da parede que me escondia das duas.
Se elas estavam falando de , contava como fuxico?
— Então quer dizer que a Anushka não descobriu o casamento até você contar? — a tia de sári laranja questionou com indignação.
— Pois é! Que tipo de filho não conta primeiro para a mãe que está noivando? Quer saber de uma coisa? Eu acho que ele contratou essa mulher.
— Não… Você acha? — cerrei os punhos contra minha calça jeans em desconforto.
— Claro! Acho que ele está envolvido com um homem e vai ter um casamento de fachada. A Dira fez isso, lembra dela? Que ela casou, mas tinha um caso com uma brasileira?
Aquilo era ridículo demais até para a pior novela mexicana do universo, mas não conseguia deixar de ouvir.
— Você está inventando coisas — finalmente concordei com algo dito naquela conversa.
— Por que outra razão ele esconderia o noivado da mãe?
— Será que ela está grávida? — controlei o engasgo em meu peito.
Será que todos ali presumiam que havia me engravidado?
— Hm, isso explica a barriga dela…
— Mas aquilo não é barriga de grávida.
Preparei-me para invadir a cozinha e atrapalhar a conversa sobre minha circunferência abdominal, mas foi mais rápido.
— ! — ele abriu um sorriso largo.
Arregalei os olhos. Ele não havia percebido que eu espionava as tias igual a tremenda fofoqueira que eu era.
— Querido! — respondi de volta ao notar que as tias haviam percebido nossa presença. Uma delas saiu da cozinha na mesma hora que toquei o braço de .
Ufa! Dali pareceria que eu estava com ele, e não ouvindo a conversa dos outros.
— Vocês são um casal lindo! — a tia do sári laranja exclamou com as mãos nas bochechas, o som das pulseiras acompanhou seus movimentos.
Falsa. Controlei um suspiro raivoso.
— Estamos ansiosas pelo casamento — a outra tia seguiu na onda, os olhos negros fitaram o local onde eu segurava o braço de . Mantive o aperto ali, segurando o tecido em minhas mãos como se fosse uma afronta direta. E eu queria que fosse.
Elas se retiraram em seguida, voltando para o deque nos fundos da casa.
Fitei com o coração acelerado.
— Você sabia que as pessoas acham que você me engravidou? — sussurrei ao puxá-lo para o canto da sala, longe da possibilidade dos ouvidos das tias.
— As pessoas vão achar isso mesmo que daqui a 9 meses você não esteja com uma criança no colo — comprimi os lábios em uma linha fina. — Ei, o que houve?
— É só que… Eu não sei, eu… — comecei a gesticular, mas foi mais rápido em segurar minha mão suada e me mandar respirar fundo. — A sua mãe é assustadora. E eu nem sou sua noiva de verdade! — sussurrei a última parte, mas com a mesma urgência.
gargalhou com a mão na barriga e assentiu.
— Pois é, fico feliz que agora conheça a parte complicada da minha vida, não só a minha gostosura e beleza — revirei os olhos.
— , precisamos pensar no que vamos fazer — retomei o assunto. assentiu concentrado.
— Pensei em contar à mamadi hoje à noite que o motivo para eu não ter te apresentado é porque você negou o pedido de casamento — pisquei algumas vezes em sua direção.
— Mas isso não é ruim?
— Como assim?
A cena das duas tias conversando na cozinha tomou minha mente. Qual seria o próximo rumor se descobrissem que não apenas não havia me engravidado, como também levado um fora? Meu peito apertou com a possível homofobia que viria dali. Eu não aguentaria vê-lo passar por aquele inferno.
— Não, vamos fazer o seguinte — estralei os dedos em nervosismo. começou a mudar o peso de um pé para o outro. Parecíamos dois jovens que tomaram café demais e agora não conseguiam fazer o açúcar parar.
— Amo quando você entra no modo lunática planejadora — franzi o cenho em sua direção.
— Não sou uma lunática planejadora — arqueou a sobrancelha em descrença. — Só um pouco.
— Meninos! — a tia de sári laranja apareceu na sala novamente, dessa vez com um sorriso. — Estão sendo chamados lá fora! Vamos servir a sobremesa.
— Muito obrigada por nos chamar — respondeu cordialmente.
Começamos a andar juntos, nossos pés descalços não faziam barulho sobre os tapetes felpudos.
— Dê duas semanas para a sua mãe. Diga que você terminou o noivado porque eu não quero ter filhos — me encarou de soslaio.
— Você quer ter filhos.
— Ninguém precisa saber disso. Além do mais, eu nunca mais vou precisar ver sua família, certo? É mais fácil que eu saia como vilã do que você — pareceu ponderar, mas desviou do assunto antes de atingirmos o deque.
— Pensei que você odiasse mentiras — ele provocou.
— Já que estamos mentindo, vamos mentir direito.
Capítulo sete
— Sua mamadi vai te matar quando descobrir o que você fez — Layla cruzou os braços em minha direção. Olhei ao redor, mas ninguém parecia nos ver.
Observei de canto de olho quando as tias rodearam . Ela parecia estar lidando bem com a situação.
Por minha causa, já havia mentido mais vezes em um período de meia hora do que em sua vida toda. E aquele mero pensamento me causava repulsa. Precisaria me desculpa seriamente com ela.
— Mamadi não vai descobrir nada — enfatizei.
— Mães descobrem tudo. Você sabe disso — bufei exasperado e passei as mãos pelo rosto cansado. Comecei a bater as mãos de leve e andar de um lado para o outro no pequeno espaço entre a parede e o corpo de minha prima.
— Layla, eu preciso da sua ajuda com isso. É temporário. Isso nem deveria ter acontecido. E, ei, espera! — arregalei os olhos e cruzei os braços. — Foi você quem contou pra mamadi sobre o meu casamento?! Porque você me viu na confraternização da empresa. Só você poderia ter dito — Layla pareceu desconfortável por um instante.
— Eu contei à Flora. Na verdade, eu não contei, eu só achei que ela já soubesse! Quer dizer, que filho indiano esconde o noivado com uma mulher indiana de sua mãe? Se ela fosse totalmente brasileira, eu entenderia e…
— Ela é totalmente brasileira e totalmente indiana, Layla — arqueei a sobrancelha. Layla fez um sinal de desdém com as mãos.
— Ser mestiço é mais complicado que isso, e você sabe bem — assenti para que continuasse. — Se alguém contou do seu noivado para sua mãe, foi Flora.
Aquilo explicaria por que Flora estava emocionada ao me ver. Um semblante de compreensão tomou meu rosto. Layla esperou pacientemente que eu processasse todas as informações.
— Voltando ao assunto principal. Layla, preciso que você me ajude a segurar essa barra só por mais um tempo — minha prima não parecia muito convencida, mas deu de ombros.
— Claro. Não penso em contar que você mentiu para conseguir um emprego e não teve o mínimo de inteligência para pensar que sua prima namora seu colega de trabalho — ela provocou com um sorriso irritante. — Isso estragaria a sua reputação de inteligente da família.
— Você não me contou que estava namorando Pietro.
— Eu postei isso no Instagram semana passada.
Eu não pude argumentar contra aquilo. Querendo ou não, ela havia anunciado. Eu só não havia visto.
Droga de dependência das redes sociais.
— Ela parece ser uma boa menina, — Layla indicou o cômodo em que estava. Acompanhei seu olhar e assenti.
— Ela é. Por isso mesmo que não quero me prolongar nessa mentira. Ela não tem culpa nenhuma.
— Nossa família tem o péssimo hábito de mentir. Por favor, prometa que não vai fazer mais isso — assenti em sua direção.
— Não pretendo. A próxima pessoa que eu trouxer para casa, vai ser a pessoa com quem eu vou casar de verdade. — Layla se deu por vencida.
Decidi não contar a ela sobre o meu desejo de nunca casar, isso provavelmente seria mais um segredo meu com possibilidade de acabar caindo sem querer nas mãos de outra pessoa.
Capítulo oito
O vinho em minha boca só ficaria mais gostoso se acompanhado de uma pizza, mas eu me contentava com a pipoca.
— Você já tentou pompoarismo? — virei-me curiosa para Laura. Ela e Lorena conversavam animadamente sobre algumas técnicas que haviam descoberto de uma youtuber.
— Cara, eu queria muito testar uma vez, mas a escassez de homens no Brasil é gigante — Lorena retrucou com um suspiro triste antes de tomar um gole de sangria.
— Quase metade da população é formada por homens — comentei com um sorriso por trás da taça quase vazia. Lorena manteve os olhos escuros em minha direção enquanto um sombrio sorriso surgia em seu rosto.
— Você sabe bem que eu me interesso pela outra metade também. Isso me torna disponível para toda a população brasileira.
— E ainda está reclamando de escassez? Uau, você é exigente para alguém que tem mais de 200 milhões de pessoas no cardápio. — Arqueei a sobrancelha em sua direção.
— Droga, não gosto de conversar com gente inteligente.
Lorena levantou-se do chão e sentou-se ao meu lado no sofá. Laís havia voltado do banheiro naquele momento e sacudiu as mãos molhadas em nossa direção, respingando gotículas em minha taça com a marca de meus dedos.
Minhas amigas haviam convocado uma reunião de emergência após minha última notícia bombástica do dia anterior. Eu havia tentado esconder, mas é impossível manter qualquer coisa em sigilo de minhas amigas.
Ao chegar do trabalho na noite anterior, após uma reunião caótica sobre um furo de notícia que havia me mantido no trabalho por cinco horas após o meu horário regular, encontrei Bruno sentado no sofá e com duas garrafas de cerveja ao lado de seus pés.
Eu e ele não havíamos conversado desde que ele me deu o ultimato. Eu não esperava encontrá-lo ali naquele momento. O cansaço do dia pesou ainda mais sobre meus ombros ao pensar que teria que confrontá-lo. Eu sabia que Bruno não estava ali para tomar chá e uma rapidinha. Em seus olhos, percebi que ele queria conversar. E aquilo era tudo o que eu não queria no momento.
Sentei-me ao lado dele no sofá. Bruno levantou o olhar e me encarou. Ele parecia tão cansado quanto eu.
— Você tomou alguma decisão? — ele questionou após alguns segundos de silêncio. Encarei a televisão plugada à parede e suspirei pesadamente.
Passei as mãos sobre meu rosto e esfreguei meus olhos, sentindo-os arder. Bom, era melhor ter aquela conversa de uma vez. Não valia a pena esperar até que eu estivesse descansada. Eu iria me estressar de qualquer forma, que fosse de uma vez, e não em doses fracionadas.
— Eu não gosto de ser encurralada, você sabe bem disso — iniciei o diálogo com a voz mais calma o possível. Bruno assentiu e encarou as mãos sobre a calça jeans.
— Às vezes a gente precisa se encurralar, sabia? — ele tentou sorrir, mas parecia decepcionado. Ele sabia que fim teria aquela conversa. Eu também sabia.
— Eu sou encurralada diversas vezes todos os dias no trabalho, a última coisa que eu preciso quando chegar em casa é mais do mesmo — acariciei o peito de minha mão com os dedos. — E eu não quero estar com alguém que não confia em mim.
E ali estava. Eu gostava de Bruno, muito. Mas eu nunca havia tido problema em cortar laços daquela maneira. Se a coisa não funcionava, eu cortava. Se eu percebia que não havia futuro, acabava com a situação. Simples. Nem sempre indolor, mas simples. É mais fácil viver livre de pesos do que lutando pelo que não tem futuro.
E é com esse discurso super romântico que eu começaria a sessão com minha psicóloga na semana seguinte. Obviamente as coisas sairiam de ordem, ninguém consegue montar um roteiro em uma sessão de psicologia, é senso comum.
— Você realmente vai acabar com um relacionamento por causa de uma encurralada? E uma muito bem justificada? — Bruno parecia resignado.
— Bruno, não é só isso. Eu só estou cansada. Relacionamentos não deveriam ser abalados quando uma pessoa aparece, como você bem diz — disse, por fim. Bruno se colocou em pé. Segui seu movimento e o encarei direto nos olhos. Então iríamos discutir. Bem, eu estava pronta. Cansada, mas pronta. Eu quase levei um tapa na cara de uma senadora hoje, eu aguentaria o tranco.
— Então você sente algo por ele?
— Meu Deus, por que você continua falando de ? — exclamei exasperada.
— Porque a sua desculpa para terminar comigo é o que eu disse sobre ele!
— Não é uma desculpa! A questão não é o , é como você interpreta minha relação com ele! — tentei repetir mais uma vez. Eu ensaiei aquele discurso no banho ontem, por que parecia estar saindo de roteiro? Mais um tópico para a psicóloga.
— Você é doida — Bruno comentou com um riso nervoso. Arregalei os olhos e cruzei os braços.
— Eu sou o quê?
— Isso mesmo, doida! Olha só a desculpa esfarrapada que você está dando para terminar comigo! Eu senti ciúmes do seu amigo, grande merda! Eu posso sentir ciúmes às vezes, sabia? É normal! Eu vim conversar com você sobre isso, porque é isso que se faz em um relacionamento, — ele pareceu ainda mais sério — as pessoas conversam. Quando você ia me contar que foi à reunião da empresa do ? — pisquei algumas vezes, levemente atordoada.
— Como sabe?
— Para alguém que não mente, você tem sem se saído como um belo Pinóquio.
Meu peito ardeu. Senti o sangue em minhas veias ferver. Aquilo não estava no roteiro. Nada disso. Encarei Bruno em silêncio pelo que pareceram horas.
— Sabe do que mais, Bruno? — falei finalmente e tentei controlar a minha voz. — A verdade é que eu não quero conversar. Meu Deus, como eu não quero conversar. Eu não quero reviver o assunto do , porque, pela milésima vez desde que começamos a namorar, eu e ele não temos nada! — Bruno apenas cruzou os braços e arqueou a sobrancelha. — Eu não vou terminar uma amizade de anos com ele por um cara que quando briga comigo parece uma criança de dois anos pirracenta! Você deixou meu apartamento de cabeça para baixo porque nós brigamos por causa do . Agora, baseado nisso, ligando todos os fatos à situação atual — cruzei os dedos das mãos como se fosse fazer uma prece — diga-me, por favor, você acha que contar para você sobre ter ido acompanhar a uma festa da empresa seria sábio?
Os olhos do Bruno queimavam de ódio, eu conseguia ver. Ótimo, porque eu não largaria aquele osso. Eu estava até que orgulhosa do meu ponto de vista. E, por um segundo apenas, senti-me feliz por estar ganhando o argumento. Contudo, tudo isso ruiu quando lembrei-me da minha mãe segurando minhas mãos com força uma noite e dizendo com todas as palavras embargadas que papai a havia perdido por querer vencê-la em tudo. Eu fechei a porta do quarto com força atrás de mim depois ter dito para minha mãe que eu a odiava. Sequer me lembro por que brigamos. Mas os olhos cheios de lágrimas e o nariz vermelho marcavam minha memória e me perseguiam toda vez que eu me sentia orgulhosa daquela maneira.
Ser parecida com meu pai era meu maior medo. E eu estava cada dia mais perto de tornar aquilo realidade.
Encarei Bruno novamente, mas com outros olhos. Eu sabia que minha voz já estava trêmula, mas eu sabia que não era por causa daquela discussão ou do nosso término.
— Desculpa por não ter conversado com você — mudei completamente meu discurso. Bruno pareceu atordoado com a mudança. Ele coçou a nuca, sem saber o que fazer. — Desculpa por não ter sido honesta com relação à festa de . Foi completamente errado da minha parte. Eu não confiei em você.
O silêncio que perdurou a partir dali foi o suficiente para me fazer encarar meus pés.
— Ok — Bruno suspirou longamente e esfregou os olhos. — Podemos passar por isso.
— Não, Bruno — balancei as mãos em frente ao corpo. — Eu ainda quero terminar.
— Hã? — a confusão havia voltado ao seu olhar.
— Eu errei feio com você, mas isso não diminui o que você fez no meu apartamento — apontei para a sala ao meu redor, dando um passo para trás. — Isso não foi legal, não foi saudável.
O olhar de Bruno parecia alternar de magoado para raivoso rapidamente. Franzi o cenho.
— Saudável? — ele balbuciou as palavras como se fossem pregos em sua boca. — Você é definitivamente doida. Eu vou embora daqui.
Observei enquanto Bruno pegava suas coisas do meu quarto e colocava em sua mochila. Ele estava transtornado.
— Bruno, por favor, você não disse que em um relacionamento a gente deveria conversar? — questionei quando ele voltou para a sala.
Seu cabelo estava uma bagunça, os olhos claros eram tempestuosos, até mesmo sua camiseta, sempre lisa e passada, estava amarrotada na calça.
— Agora você quer conversar?
— Não era seu objetivo conversar comigo? Ou a conversa só é válida quando você recebe o que você quer? Não é porque eu não quero continuar com nosso relacionamento que a gente não possa conversar igual dois seres humanos! — exclamei e bati com as mãos na lateral do corpo. Bruno acompanhou o movimento imerso em pensamentos.
— Adeus, .
— Não, não é assim que você faz o movimento… — Lorena levantou de sua amostra grátis de como não ficar com as coxas doloridas.
Peguei a garrafa de vinho sobre a mesa do centro e verti o restante do conteúdo em minha taça, deixando a garrafa vazia ao meu lado.
— Você já está pronta para conversar ou precisa de mais uma garrafa inteira? — Laís questionou seriamente enquanto enfiava um punhado de pipoca na boca. Ela estava com as pernas cruzadas sobre a cadeira artesanal que havíamos comprado juntas na Liberdade e com a taça de vinho branco pela metade pendendo em seus dedos esguios. Ela bebericou mais um pouco do líquido doce antes de suspirar. — Estamos preocupadas…
As outras meninas pararam o que estavam fazendo e voltaram o olhar para nós duas. Voltei meu olhar para a taça e comprimi os lábios em uma linha fina.
— Terminei com o Bruno — senti o gosto das palavras em minha boca levemente amargas pelo sabor do vinho. Laís apenas arqueou a sobrancelha, ao passo que as outras meninas se sentavam próximas ao meu pé no chão. Lorena desligou a música de fundo que tocava da TV e apoiou o queixo na mão.
— Nós sabemos dessa parte. Você só falou isso — Laura se pronunciou após alguns instantes silenciosos.
Então, aproveitando o gancho do álcool correndo por todas as minhas veias, expliquei tudo. Sobre como havia mentido no emprego, passando em seguida para as discussões com Bruno e toda a minha falta de noção relacionada ao falso noivado. Omiti a parte em que transcendi pensando na lição de vida que minha mãe me deu anos atrás. Aquilo era coisa para a psicóloga e Freud discutirem.
Não fui interrompida uma vez sequer, o que era raridade em nosso grupinho. Laura às vezes soltava alguns muxoxos ou suspiros surpresos, mas nenhuma interrupção. Nada. Ao fim do monólogo, deparei-me com três pares de olhos esbugalhados em minha direção.
— Por que você não contou nada disso antes?! — Laís exclamou com a voz subindo algumas oitavas. Mordi o interior da bochecha e comecei a batucar com o pé no chão.
— Porque eu achei que fosse conseguir lidar com tudo sozinha — ouvi Lorena bufar audivelmente.
— Já falamos sobre isso vinte e cinco mil vezes, meu Deus do céu! — Laís conduziu a bronca. Era exatamente por isso que eu não queria falar nada.
— Acho que ela não precisa disso agora, gente — Laura fez carinho em minha perna pendendo do sofá. Sorri em sua direção.
— Na verdade, precisa! — Laís se levantou da cadeira e apoiou a taça de vinho sobre a mesa. — , por que você terminou com o Bruno, de verdade? Eu entendo a sua justificativa, mas não pode ser só isso. Vocês já tinham discutido sobre coisas piores antes. Vamos, diga.
— Eu falei a verdade. Terminei com ele porque eu não quero estar com um cara que reage a discussões como quem tem dois anos. E parando para pensar bem, ele já fez isso outras vezes. Eu só não tinha percebido! — Laís não se deu por vencida. — Eu não consigo ver outro motivo para ter terminado com ele.
— Nem por causa do ? — ela arriscou com a voz um pouco mais contida. Revirei os olhos e tomei mais um gole de vinho.
— Você também?!
Laura tomou a dianteira com um sorriso nervoso.
— O que ela quer dizer, , é que talvez você realmente tenha terminado com ele porque gosta mais do do que de Bruno.
— Eu gosto de maneiras diferentes, vocês sabem disso. Amor de amigo não é amor de amante.
Observei Lorena se preparar para discutir, então apenas a fuzilei com o olhar, mas nada a impediu.
— Você pode amar como amigo, mas como amante também. Amantes têm cumplicidade e amizade. A linha de diferença é muito tênue.
— A diferença, Lorena, é que eu e sempre fomos platônicos! — exclamei. — Nada rola entre a gente. Se algo precisasse ter rolado, já teria há muito tempo. Nós somos amigos há, o que, sete anos? Se em sete anos nós não tivemos nada, é porque não vai rolar.
Terminei meu argumento final com um suspiro cansado. Apoiei a taça de vinho sobre o guarda-copos e massageei as têmporas levemente. Estava estressada demais.
— Ok, vamos deixar isso de lado — Laís se rendeu primeiro, sentando-se ao meu lado e fazendo carinho em minhas costas. Respirei profundamente, mas mantive a cabeça entre as mãos com os cotovelos apoiados na perna.
— Bruno estava certo, sabia? — comentei com a voz embargada. — Eu não gosto de conversar. Eu sou uma jornalista, uma comunicadora que não gosta de se comunicar com ninguém. E-eu não sei por que é tão difícil lidar com relacionamentos. Eles deveriam ser fáceis, não é? Quando você ama alguém, tudo fica fácil e a vida fica bonita — limpei uma lágrima solitária. — Mas todo relacionamento que eu tenho parece um dos trabalhos de Hércules.
— Pensa pelo lado bom, você já está no décimo primeiro, só falta o próximo! — Lorena sorriu e fez um sinal positivo com o polegar. Ri em sua direção e limpei algumas outras lágrimas que insistiam em fugir de meu controle.
— Eu entendo totalmente o narcisismo de Hércules. Se eu precisasse fazer aqueles doze trabalhos, eu também me sentiria o máximo — comentei com um riso embargado, mas feliz. Falar sobre tudo o que havia acontecido com minhas amigas realmente me ajudou.
Passar a noite anterior sozinha em meu apartamento foi extremamente depreciativo e humilhante.
— Olha só, … — Laís começou e empertigou-se ao meu lado no sofá, encarando-me com uma expressão sorridente. — O amor é muito complicado, sabe? Quando as pessoas dizem que o amor é fácil, é porque qualquer empecilho que venha não parece tão grande porque você está com alguém que te dá suporte ao seu lado. Agora, se você estava se forçando a estar com alguém e se condenando… Isso não é amor. Nessa parte, preciso concordar, o amor é fácil.
Assenti calmamente.
— Você está doida para falar do amor do ponto de vista dos gregos, não é? — virei-me para Lorena com um sorriso gigante.
— Sim, por favor! Olha só, os gregos definiram vários tipos de amores por um motivo, certo? — assenti, acompanhando seu raciocínio. — Talvez os seus trabalhos de Hércules estejam focados no amor errado — arqueei a sobrancelha enquanto ela gesticulava. Lorena levantou-se do chão e começou a andar em círculos, exatamente como fazia quando estava raciocinando.
— Ok, você está me perdendo, Lorena — ri em sua direção, mas Laís parecia estar acompanhando o pensamento de nossa amiga.
— Sim, isso faz total sentido! — Laís também se levantou e colocou-se ao lado de Lorena. — Você está procurando um amor ágape, mas não entendeu ainda o amor philautia e só busca amores eros.
— Alguém, pelo amor de Platão, me explica de novo a questão dos amores, eu imploro — comentei visivelmente confusa, alternando meu olhar entre Laís e Lorena. Laura, por outro lado, também parecia tão perdida quanto eu. Um consolo, pelo menos.
— Vamos lá, — Laís começou. — Os gregos não tinham uma palavra para amor, mas alguns conceitos diferentes direcionados a tipos de relação. Você deve conhecer o eros, certo?
— O amor sexual?
— Isso — Lorena sorriu. — Mas há muitos outros. A bíblia descreve quatro amores, o ágape, que é o amor incondicional, em que um se doa para o outro inteiramente; o storge, que é o amor familiar e philia, que é o amor entre amigos, basicamente. Ok, mas além desses quatro, ainda existem outros! Um deles é o philautia, que é o amor próprio. Para você amar outra pessoa, você precisa se amar.
— Narciso também se amava — Laura pontuou ao meu lado. Pela expressão de prazer intelectual no rosto de Lorena, ela esperava que alguém dissesse aquilo.
— Não é a mesma coisa.
— Narciso era um vício. Aquela questão de virtude e vício, não é? Tudo com moderação pode ser uma virtude — tomei a dianteira, compreendendo um pouco melhor o que minhas amigas queriam dizer.
— É, mais ou menos isso. Enfim, o que estamos dizendo é: você entende o amor entre um casal como o amor ágape, que é o que você busca, mesmo sem saber. Contudo, você ainda não entendeu o philautia, ou seja, o amor próprio. E, por fim, você só se envolve em amores eros, ou seja, carnais.
Pisquei algumas vezes enquanto processava todas as informações.
— Falta um amor aí — comentei, por fim.
— Hã? — Lorena parecia confusa.
— Philia. Eu tenho esse amor por todas vocês. Eu diria que ele poderia beirar ao ágape — Laís abriu um largo sorriso e me abraçou fortemente.
— Eu te amo ágape pra caramba, cara.
— Ei, eu amo muito mais ágape que todas vocês — Laura empurrou Laís para o lado e deu risada.
Logo já estávamos falando sobre os diferentes amores eros que cada uma já teve e categorizando cada pessoa que havia passado em nossas vidas. No fundo, não pude deixar de imaginar em qual categoria se encaixava. E sorri para mim mesma ao pensar que, independente de qual amor fosse, eu o amava com tudo o que tinha. E aquilo era o suficiente.
Capítulo nove
Já haviam se passado quase três semanas desde que minha família havia descoberto sobre meu noivado, e elas se foram como um borrão. Desde então, as coisas estavam estranhamente calmas. e eu não conseguimos nos falar direito, o que era relativamente comum em nossas rotinas corridas. Flora não havia falado comigo desde o almoço, o que me deixava preocupado. Mas o que mais me assustava, não, assustar é um verbo medíocre e azedo se comparado ao que eu sentia… O que mais me deixava cagando de medo era o silêncio de mamadi.
Ela não havia me pressionado a contar sobre , sobre meu noivado, sobre nada, e eu só pude presumir que ela apareceria com minha amiga amarrada a um carro com latinhas presas na placa e pronta para nos levar até nossa lua-de-mel, a fim de termos diversos bebês.
Não me leve a mal, meus bebês e de seriam lindos.
— , acho que tem um problema com o arquivo que você enviou. — Pietro apareceu ao meu lado na baia do escritório enquanto eu me arrumava para sair. — Está indo embora? — ele questionou curiosamente enquanto fitava minha mochila.
— Sim, deu meu horário.
— E você não vai ficar para o happy hour da última sexta do mês? — ele arqueou a sobrancelha e apoiou o arquivo impresso que eu havia enviado três horas atrás para ele.
— Eu tô cansado pra um caramba, Pietro. Quero ir para casa. Vou pegar o transporte público lotado se demorar muito.
Pietro cutucou o canto da unha e suspirou.
— Ok, não posso obrigar ninguém a se divertir — ele deu de ombros e encarou o papel novamente. — Mas preciso que você me envie de novo. Acho que veio no formato errado.
— Eu salvei pelo InDesign o arquivo 3D — retruquei apontando para o papel sobre a mesa.
— Eu recebi em PDF.
Controlei o ímpeto de retrucar com: “e você não tem a capacidade mental de converter o arquivo?”, mas apenas segurei minha língua e assenti. Ele ainda era meu superior. Ainda.
— Ok, vou enviar de novo.
Coloquei a bolsa no chão ao sentar-me na cadeira novamente. Apoiei-me contra ela enquanto olhava ao redor da empresa.
Era sexta, final de tarde. Havia um feriado prolongado chegando. Segunda-feira não iríamos trabalhar. Arrepiei só de pensar no quanto eu dormiria. Abri um sorriso infantil ao pensar em minhas cobertas me esperando em casa.
Meu celular vibrou em meu bolso. Peguei o aparelho e sorri ao ver o nome de brilhar na tela.
— Fala, minha rainha.
— Eu vou me acostumar mal com esses elogios — a voz dela cortava e estava baixa se comparada ao som alto que vinha atrás de si.
— É pra se acostumar mesmo. Onde você está? Foi a uma balada? Pensei que não gostasse de baladas — precisei apoiar a outra mão no ouvido livre para poder ouvi-la direito.
— Eu estou perto da sua empresa. Uma galera do escritório resolveu vir pro happy hour no Eros.
— Eu amo o nome desse bar.
— É — riu. — Eu também. Bom, queria saber se você quer vir. Não nos vemos tem um tempo, e acho que temos algumas pendências para colocarmos em dia.
Afastei o celular do ouvido para tossir.
— Claro. Te encontro aí. Estou super animado. — Pietro me encarava do outro lado da firma como se soubesse o que eu planejava. Franzi o cenho em sua direção e virei-me para o lado. Eu hein, cara estranho.
— Estou com saudades de você, sabia? — sorri pelo telefone e bati com os pés no chão diante da fala de .
— Pelo amor de Deus, você me ama muito! — exclamei com uma gargalhada. Loguei no computador enquanto ria do outro lado da linha.
— Eu não posso mais dizer que sinto falta do meu amigo? — ela provocou. Eu sabia que provavelmente estava encarando os pés e batendo com a ponta do sapato no chão.
— Pode. Eu gosto disso. Chego aí em uns quinze minutos, eu acho. O pessoal da empresa também marcou o happy hour nesse bar. Prepare-se para alguns comentários do…
— Ei, . — Assustei-me quando Pietro apareceu ao lado e derrubei o celular na mesa. Peguei-o rapidamente e despedi-me de . — Foi mal pelo susto! Pode deixar esse arquivo para terça. — Arqueei a sobrancelha em sua direção. — Vi você falando com sua noiva, e acho que você precisa ir se divertir logo.
— Na realidade… Vou para o happy hour com vocês, ela está me esperando lá.
Pietro assentiu.
— Nesse caso, me envie por favor o arquivo.
Controlei-me para não xingar em vinte idiomas diferentes a família inteira de Pietro até a nonagésima geração enquanto ele desfilava pela empresa com seu terno caro.
— ! — Flaviane me chamou do outro lado da firma. Todos já haviam saído para nos esperar no térreo, como Pietro havia me dito antes de sair pela porta de vidro. As luzes estavam praticamente todas desligadas, e eu precisaria desligar todo o restante, inclusive as luzes assustadoras da copa.
— Oi, diga! — sorri em sua direção e levantei-me da cadeira. Peguei a cópia impressa do arquivo para Pietro e andei em sua direção. Parei no meio do caminho para deixar a impressão sobre a mesa do homem mais pé no saco do Brasil.
Quando virei-me para trás, Flaviane estava próxima. Perigosamente próxima. De repente, como quando percebemos que o mágico não cortou sua assistente ao meio e que ela está bem, percebi que estávamos apenas nós dois no andar inteiro. Fitei seus olhos azuis e pele bronzeada. Ela passava todos os fins de semana no Guarujá em uma casa de praia gigante — nas palavras de Pietro. Haja disposição e protetor solar! Mas creio que Flaviane conseguia se virar bem.
— Hã, posso ajudar? — questionei com a voz mais baixa.
Não consegui desviar o olhar do dela.
Seus cabelos estavam presos em um rabo de cavalo e o batom em sua boca parecia brilhar. Ela era verdadeiramente linda. Arrumei minha postura e senti-me bobo por não ter passado mais perfume antes de sair de casa.
— Acho que pode — ela sorriu e apoiou sua mão na mesa em cima do arquivo de Pietro, onde eu também estava com a mão. Segui seu olhar para nossos dedos perigosamente próximos e engoli em seco.
!
— Hã, eu sou noivo — balbuciei a primeira coisa que me veio à mente.
Droga de noivado de mentira! Uma mulher estava diante de mim, uma que já havia demonstrado interesse e por quem eu definitivamente me sentia atraído, e eu não podia fazer nada. Nada!
— Eu sei — ela retrucou e usou a outra mão para brincar com o cinto da minha calça. — Eu não quero um relacionamento. Eu só quero que você transe comigo.
Meu Deus do céu!!!!!!!!!
Minha mente parecia uma tela em branco do Windows. Meu interior gritava em desespero. Se ela continuasse me encarando daquela maneira, eu provavelmente pediria misericórdia e um pouco de lubrificante.
— Ei, vocês dois vão demorar?
Praticamente gritei de susto com a voz de Pietro vinda da recepção. Afastei-me de Flaviane rapidamente e tropecei em uma cadeira, caindo com a bunda sobre uma almofada rosa. Gargalhei junto à Flaviane de meu papel de bobo. Ela estendeu a mão em minha direção enquanto gritava para Pietro.
— Estamos indo!
A loira me puxou pela mão com força, praticamente batendo nossos corpos juntos. Encarei-a com um sorriso. Há quanto tempo eu não era mimado daquela maneira? Flaviane demorou a soltar minha mão e abriu um sorriso largo antes de virar de costas para mim e se agachar para pegar a bolsa no chão.
Pelo amor de tudo que existe de mais precioso no mundo, eu preciso sair daqui!
— Vamos? — ela questionou com uma piscadela.
— Vamos.
*
Vi antes que minha amiga percebesse minha chegada. Ela estava sentada com as pernas desnudas cruzadas e um vestido preto cobria seu corpo. Era dia de reuniões, pelo visto. Como esperado, seu casaquinho social estava sobre a cadeira. Sorri com aquilo. era extremamente organizada, até mesmo com relação aos seus dias de roupas.
Vestido preto e casaco social? Dia de reuniões importantes.
Camiseta social amarela e calça boca de sino roxa? Ela estava se sentindo feliz e provavelmente no período fértil (ela me ensinou a fazer os cálculos para poder ter mais chances de pegar alguma mulher).
E por último, a que eu mais temia, a saia preta e a blusa cinza. Aqueles eram dias tempestuosos em que ela não queria se arrumar.
Subi os pequenos degraus simulando um deque no bar. Sorri para o garçom, um conhecido meu da época da faculdade, e andei em direção à minha amiga, mas fui parado subitamente por Flaviane, que puxou de leve a manga de minha camisa social.
— Se o que eu senti lá dentro foi uma recusa, não pareceu — ela comentou baixo e a uma distância segura. Pareceríamos apenas colegas de trabalho conversando casualmente sobre uma rapidinha no carro dela. Não que eu estivesse imaginando nada daquilo. Ah, quem eu queria enganar? Eu estava. E muito. Pra caramba.
— Olha, Flaviane… — comecei, mas ela me interrompeu com um arquear de sobrancelhas.
— Se você quiser, me dá um sinal. Pede uma espanhola para mim. Vou levar como um sim, e então vamos para o meu carro, ok?
Senti meu corpo inteiro arrepiar. A ousadia dela era simplesmente absurda! Precisei flexionar os dedos algumas vezes antes de me recompor.
havia me visto e acenava freneticamente com a mão. Deixei Flaviane de lado e caminhei até ela com um sorriso. Abracei-a rapidamente e cumprimentei sua colega de trabalho. Sentei-me à mesa em seguida.
Observei consternado enquanto contava sobre a semana caótica que havia passado na redação. Sua colega, Juanita (um apelido, creio eu), adicionava comentários no meio da narrativa. Uma senadora queria abrir um processo contra . Eles estavam fazendo uma petição para aumentar o número de máquinas de café no térreo e pedindo aumento de salário para os terceirizados (iniciativa de ). Além disso, o chefe de do Rio de Janeiro havia pedido demissão.
— E ainda teve a melhor! — Juanita comentou com um sorriso largo. — está concorrendo à vaga no Rio!
Encarei com os olhos cerrados. Juanita ficou alheia ao fato de sermos noivos. Noivos falsos, mas ainda noivos. Como minha noiva falsa iria para o Rio de Janeiro?!
encarou as batatas em cima da mesa e bebericou seu drink sem me encarar nos olhos.
— Pietro chegou! Ele é o namorado da minha amiga, vou falar com ele. Já volto. — Juanita se levantou da cadeira e sumiu de visão. Permaneci encarando com um sorriso preguiçoso.
— Vai passar o rodo no Rio? — tentei fazer piada, mas apenas mordeu o canto do lábio. — Você não pretendia me contar isso hoje, não é? — continuei meu raciocínio.
— Não — ela riu pelo nariz e tomou outro gole de sua espanhola. Controlei o ímpeto de olhar para trás e procurar por Flaviane. — Eu nem acho que vá conseguir a vaga. Além disso, minha mãe está aqui e…
— Ei! — exclamei e segurei sua mão por cima da mesa. sustentou meu olhar. — Sua mãe deu a vida para você conseguir seu sonho, . Até onde eu sei, seu sonho é ser a próxima Maju Coutinho, não é? — gargalhou, mas assentiu. Fiz carinho sobre sua mão com o polegar e sorri. A risada dela era um bom sinal. — Então você precisa ir caso consiga.
— Você nem sabe pra que é o trabalho!
— Então, diga — apoiei o queixo sobre a mão e afastei nosso toque.
— Não é para a vaga do meu chefe que eu estou concorrendo… É para a vaga abaixo da dele. Eu seria co-âncora do maior jornal do Rio.
— ! — exclamei completamente estupefato e gargalhei. — Você definitivamente não vai deixar de aceitar esse emprego caso consiga. Isso é loucura! Meu Deus, eu vou ter uma amiga famosa!
gargalhou com a mão na barriga e balançou a cabeça.
— Eu não queria falar nada… Caso não dê certo, vai ser só mais uma frustração.
— A gente se frustra o tempo todo, , e amigos estão aqui para ajudar a superar essa frustração, não serem privados dela — retruquei ao roubar algumas de suas batatas. Minha amiga pareceu ponderar enquanto brincava com o canuco em seus dedos, mas abriu um sorriso em seguida.
— Isso seria bem legal, né? Conseguir o emprego... — minha amiga apoiou a mão sobre o queixo, exatamente como eu estava. — Eu ia poder comprar algumas roupas bem legais.
— É, quem sabe você não possa renovar seu guarda-roupa do humor?
— O quê? — ela questionou. Recostei-me contra a cadeira gelada e cruzei os braços.
— Você, querida , tem um padrão de roupas.
— Até parece! Não tenho — balancei a cabeça em sua direção e sorri ainda mais. Ver desconcertada era um prazer quase espiritual. Quando ela ficava fora de sua zona de conforto, entrava na defensiva imediatamente.
— Tem sim! Hoje é dia de reunião, não é? Vestido preto e casaquinho.
— É a minha roupa chique… — abraçou a si mesma e tirou um fio de cabelo do vestido.
— Com certeza é chique. E, pelo que eu vi no seu Instagram, pois é, eu mexi no Instagram, você estava usando a sua blusa cinza e saia preta quando visitou as meninas, o que significa que estava triste no dia.
arregalou os olhos em minha direção.
— Você é um bruxo?
— Eu só te conheço bem, . E é divertido descobrir essas coisinhas e te deixar sem chão — revirou os olhos em minha direção, mas não deixou de sorrir.
— Cada segundo disso é ridículo.
— Pode ser, mas eu me divirto — dei de ombros. — Quer falar sobre o que aconteceu naquele dia?
A verdade é que eu teria perguntado antes, mas não era uma pessoa aberta com relação às suas tristezas. Ela gostava de me consolar, mas odiava ser consolada. Eu sabia que não conseguiria tirar nada dela pela internet. Mas pessoalmente era outra história. Quem resistiria ao meu sorriso?
— Não, não quero — ela respondeu com um sorriso torto. — Já passou. Além disso, eu quero me divertir com você hoje.
E ali estava novamente o desviar de olhar e a batucada dos dedos sobre a mesa. Muitas pessoas não gostam de ser forçadas, e era uma dessas. Quanto mais tentasse falar com ela, mais se fecharia.
Um dos meus maiores desafios em nossa amizade é respeitar esse silêncio. Quando estou triste ou cansado, gosto de estar cercado de pessoas. não era assim. Às vezes eu me questionava como fazíamos essa amizade funcionar, mas nunca tivemos problemas com relação a nos adaptarmos um ao outro, pelo menos era o que eu achava.
Observei de soslaio Flaviane dançar com uma de nossas colegas da empresa, mas seu olhar se fixou no meu por um instante, e uma onda de tensão subiu por meus ombros.
Voltei-me para , que cantarolava a música um pouco alta com um mover de lábios.
— Você disse que precisávamos resolver pendências… — comecei.
— Sim, a pendência principal é a diversão — respondeu em minha direção e abriu um sorriso gigantesco.
Que a diversão começasse, então!
Capítulo dez
realmente queria se divertir. Após alguns drinks e uma banda ao vivo subir no palco, nós dois dançávamos um de frente para o outro. Abracei-me à sua cintura quando tropecei em seu pé durante um passo falho de forró. Ele cheirava a madeira e açaí.
— A gente não é bom nisso — constatou o óbvio. Assenti e coloquei os cabelos para trás das orelhas, tentando abafar o calor. Eu tinha certeza de que estava com pizza sob as axilas.
Já estávamos dançando ali por pelo menos meia hora. A bebida me deixava meio tonta, e o sorriso de meio magoado ao ouvir Juanita falar sobre minha possível promoção permanecia em minha mente, ecoando contra a minha falta de preocupação com mudanças. Mas era diferente. Eu precisei abdicar de amigos, namorados, casa, trabalho, mas nunca dele. Era uma sensação incômoda entre saber que preciso crescer e querer me apegar ao meu passado, talvez. Ou eu só amava muito . E minha mãe, claro, deixar minha mãe pesava no peito.
A verdade é que ser adulto é uma merda. Merda grande e cagada melada de bosta! As pessoas tentam nos avisar. Nossos pais dizem "você vai crescer e querer ser criança". E é uma outra merda colossal admitir que nossos pais estão certos. Apenas um dos grandes detalhes que confirma a grande merda que é ser adulto.
Senti o olhar de se desviar para algo atrás de mim. Virei-me e segui seu olhar, parando em uma moça loira.
— O que foi? — questionei ao voltar meu olhar para ele, tentando controlar a minha raiva por ser uma adulta responsável por meus atos.
— Lembra da Flaviane? Aquela colega da firma que está interessada em mim? — assenti vagamente. Aquele dia do churrasco estava meio fragmentado. Peguei a maior parte das memórias e as ocupei com séries da Netflix e documentários sobre o meio ambiente. — Bem, hoje ela investiu de novo, e…
— Você quer aceitar, mas por causa do nosso noivado falso não sabe se é a escolha certa? — adivinhei suas intenções muito mais rápido do que ele imaginava, eu percebi. arregalou os olhos, mas sorriu.
— Isso.
— , não somos noivos de verdade — franzi o cenho em sua direção. — Você está livre para traçar essa garota o quanto quiser!
— Você é tão romântica, — provocou e beliscou meu braço de leve, abrindo um de seus sorrisos mais lindos em minha direção.
Verdade seja dita, é gato para um caramba. Eu não posso mentir que no início de nossa amizade, depois de ele me ver só de sutiã no meio do auditória politécnica, senti-me tentada a dar em cima dele. Mas a cena daquela vergonha perpetuou uma vergonha que a de 17 anos sentia com maestria. E, com o tempo, a vontade passou. E nunca demonstrou qualquer interesse. Só uma vez. Eu dava ao máximo para manter aquela memória enfurnada em algum lugar distante da minha mente.
Foi no nosso segundo ano na USP — ou uspício —, e e eu estávamos juntos após a recepção dos calouros na Prainha da ECA (Escola de Comunicação e Artes). Naquele dia, haveria uma festa das cinco da tarde às cinco da manhã. Eu fui pronta para dormir na casa de Laís e não me aguentar em pé no dia seguinte.
Em algum ponto entre vomitar nos arbustos e sarrar contra um vendedor de brisadeiro, eu me vi agarrada a um homem da Medicina Veterinária. O beijo dele tinha gosto de flúor e sua mão insistia em violar o cinto da minha calça.
Durante o intervalo do pior beijo da minha vida, observei parado contra uma árvore enquanto bebia provavelmente água do seu tirante. Ele usava a bata da atlética, os braços nus estavam flexionados e ele não sorria, estava sério como nunca. Segurei seu olhar diante do meu. Será que havia acontecido algo? Afastei-me gentilmente do mediciner versão zoológico e caminhei até meu amigo. Ele não desmanchou a expressão quando parei ao seu lado, mas eu estava aérea demais para perceber que sua expressão não era exatamente de raiva.
— Aproveitando sua noite? — ele questionou sem me encarar. Assenti debilmente e soltei uma gargalhada tribêbada.
— Aquele cara tinha gosto de flúor — pus a mão na barriga para gargalhar, minha cabeça estava pesada e tudo parecia muito mais engraçado do que era. se rendeu ao riso junto comigo, e passamos pelo menos três minutos rindo um apoiado no outro. — Por que você estava com cara de bravo? — Passei a ponta do indicador sobre o tecido solto da bata. franziu o cenho.
— Eu não estava bravo. — sempre foi um péssimo mentiroso. Aquilo foi essencial para a nossa amizade continuar. Dei um tapa ardido em seu peito coberto pelo tecido fino.
— Estava sim! Diga logo! Eu não tenho a noite toda!
— Ele estava te esmagando e mais bêbado que velho ao meio-dia em bar decadente — ele respondeu com um suspiro frustrado. — Você só pega cara zoado, . Pelo amor de Deus! Seu histórico em festas é mais sujo que carreira de político. — Cruzei os braços sobre o meu tirante e abri um sorriso torto.
— Eu não olho só a aparência, , eu sou diferente de algumas pessoas. — Meu amigo sabia que eu não deveria ser levada a sério, mas vi um lampejo de raiva passar por seus olhos.
— Não é que você não olha a aparência, você também não olha o caráter. E que caráter deve ser analisado em uma festa de faculdade, exatamente? — ele questionou, e tinha razão.
— Ah, , eu só quero me divertir.
— Então se diverte comigo. — Eu não estava pronta para aquele ultimato. Fitei por alguns segundos, mas não consegui desviar o olhar. Ele havia virado em minha direção, eu não sabia o que fazer com as mãos.
— Você não quer isso — desconversei. Eu me sentia repentinamente sóbria e alerta. E acesa. Meus pêlos do braço estavam arrepiados, minha nuca suava e minhas mãos poderiam facilmente ser um hidrante de tanta água acumulada ali.
— Você quer? — ele retrucou com a sobrancelha arqueada. era um ano mais velho que eu, então, com meus meros quase 19 anos (faria dois dias dali) e ele, com seus quase 20, parecíamos estranhamente adaptáveis. Meu cabelo havia assentado em um modelito definitivo meses atrás, e as espinhas haviam deixado meu rosto em paz. havia começado a academia há alguns meses, então seus braços pareciam mais fortes, e seu maxilar estava demarcado por causa dos treinos da atlética e da academia. Eu o achava bonito tanto quando tinha uma barriga de chop quanto agora, mas era triste não poder fingir que sua barriga era uma bateria.
— , você está dizendo isso porque bebeu — tentei mais uma vez, mas eu sabia que ele não havia ingerido nada, porque precisaria ir para a casa dos pais pela primeira vez em meses desde que havia se assumido bissexual para sua mãe. A festa era uma tentativa de fazer o tempo passar mais rápido.
— Eu não bebi um gole sequer de álcool. Tenho plena noção do que estou te oferecendo — ele retrucou. — Mas, se você não quiser, vai estar de ressaca demais amanhã pra se lembrar disso.
Ah, se ele soubesse!
Então, com toda a minha pompa de mulher trêmula da cabeça aos pés, toquei sua bochecha e sorri. era realmente lindo aos meus olhos. Eu ficava irritada com o fato de ele não ter o reconhecimento devido por quem era. Ele não era realmente "bonito" aos olhos dos ocidentais, e eu sabia que às vezes isso o incomodava. Diante dos indianos, ele era lindo, mas diante dos brasileiros, não.
— Eu gosto do seu nariz — sussurrei em sua direção. inclinou a cabeça com o meu toque, encostando sua bochecha aos meus dedos gelados.
— Ele não é indiano demais para você? — questionou com um sorriso falho.
— Ele é lindo — encarei seu nariz novamente e engoli em seco. Aquilo realmente aconteceria?
Soltei um grito assustado quando três amigos de se aproximaram por trás de nós dois e o arrastaram até um desafio de cerveja no meio da festa. Permaneci encarando a árvore em que estava apoiado até dois segundos atrás.
Nunca mais falamos sobre o assunto, e eu evitava sequer pensar nele. achava que eu havia esquecido, e talvez fosse melhor daquela maneira.
— Boa noite, pessoal! — A voz do moço da banda ao vivo interrompeu meus devaneios, atirando um balde d'água em minha cara com intensidade cinco do créu. — A próxima música é um pedido do Pasqual para a sua noiva, a Penélope! Temos mais noivos aqui?
Segurei uma risada sufocada quando gritou junto com os outros comprometidos. O sorriso em seu rosto era impagável. Os primeiros acordes tomaram o bar, e controlei um salto quando apoiou as duas mãos em minha cintura no momento em que a música mudou para uma MPB mais calma. A vocalista da banda ao vivo permitia que uma versão diferente de Monalisa tocasse.
— Eu adoro essa música — confessei sem jeito. Estávamos próximos demais. Olhei para qualquer lugar, menos para seu rosto. As memórias que insistiam em me deixar sem jeito, como uma constante lembrança de que eu e havíamos chegado no "quase" em algum momento.
Eu e não costumávamos ficar tímidos pelo toque físico. Éramos amigos há tanto tempo e passamos por tanto que contato físico simplesmente faz parte de nossa amizade. Mas aquilo era levemente diferente. E eu apenas não sabia por quê.
— Sabe, eu acho que quero te levar para dançar mais. — Arqueei a sobrancelha diante de seu comentário sobre a música. Batemos em um casal próximos a nós dois. Pedi desculpas com um aceno de cabeça.
— Para mais desses desastres?
— Eu já tentei levar uma ex-namorada para dançar, mas ela era muito boa. Preciso dançar com alguém que seja tão ruim quanto eu.
Gargalhei com a cabeça para trás, sentindo-a pesada devido ao álcool. Pendi meu pescoço para o lado e finalmente encarei os olhos de . O castanho beirando à escuridão parecia ainda mais profundo. Desde quando os olhos dele eram tão bonitos? Senti minha boca seca enquanto sua respiração atingia meu rosto.
— Está tudo bem? — ele questionou seriamente, parando. Balancei a cabeça e voltei a encarar qualquer ponto que não os olhos de . Fixei meu olhar na parede, era um local seguro.
— Sim, tudo bem. Só estou meio aérea hoje.
O refrão ficou mais alto, e o corpo de se aproximou ainda mais do meu. Senti minhas pernas ficarem mais rígidas e minhas costas suavam absurdos com o toque dele.
Por um segundo, lembrei-me de que estava há semanas sem o toque de alguém. E estava ali. Eu estou carente, cansada e no período fértil. está aqui. É isso. Produção hormonal é algo incontrolável, mas meu autocontrole é sobre humano — de acordo com meu chefe.
— Terminei com Bruno — soltei a informação de uma vez. desviou o olhar do topo de minha cabeça para meus olhos. Choque contemplava seu semblante.
— Sinto muito.
— Eu também.
A realidade é que eu não sentia.
— Quer falar sobre isso? — ele sussurrou em meu ouvido. Controlei a onda de espasmos em minhas costas e neguei.
— Não mesmo.
— Ok — ele riu calorosamente próximo à minha orelha, fazendo com que meu cabelo pinicasse meu pescoço.
— Qual é o nosso tipo de amor, ? — questionei. Ele arqueou a sobrancelha.
— Como assim?
— Os gregos tinham diversas palavras para diferentes tipos de relação…
— Sim, eu conheço alguns. Ágape, eros, philia… Tem mais algo?
— Storge, philautia e xenia.
— Hm, eu não conheço os dois últimos.
— Philautia é amor próprio e xenia, que eu descobri pesquisando, é relação entre anfitrião e convidado — arqueou a sobrancelha, parecia realmente interessado.
— Isso é legal. Eu acho que nosso amor é philia, não? Não acho que seja storge…
— Eu também não — concordei. A música acabou, e eu e nos afastamos. Sorri em sua direção, mas ele continuava a olhar por sobre o meu ombro. — , vai lá — apontei com a cabeça para Flaviane. virou seu olhar para mim.
— Tem certeza? Nós meio que somos noivos…
— De mentirinha, . E precisamos falar sobre isso, mas amanhã. Você está criando teias, pode ir. Consigo sentir o cheiro de testosterona daqui. Só, por favor, deixa pra fazer o que você quiser fazer quando seus colegas não estiverem assistindo. Não coloca seu emprego na corda bamba por causa de uma mulher, ok? — abriu um largo sorriso em minha direção e surpreendeu-me com um beijo na testa.
— Você é a fada madrinha da transa, sabia?
Ah, que ótimo.
— Eu sei. Aproveita sua noite!
— Eu vou! — ele acenou e passou por mim, sumindo nas sombras atrás do palco. E logo me vi sozinha. A sensação não foi das melhores, eu precisava admitir.
Caminhei até o bar e sentei-me em um dos bancos de madeira próximos à bancada. Pedi outra espanhola.
— Aquele homem tinha pedido uma, mas acabou de cancelar — o garçom apontou para , que saía do bar ao lado de Flaviane. — Se não for incômodo…
— Ele é meu amigo. Eu aceito. Obrigada — peguei a bebida da mão do garçom e bebi o drink doce em goles gigantes.
, meu falso noivo, estava se agarrando com uma mulher linda muito verdadeira do lado de fora, a poucos metros de mim, e aquilo fazia com que eu me sentisse estranhamente cansada.
— Nossa, garçom, me vê um drink desse que ela está bebendo, por favor. — Levantei o olhar do meu drink, mas sem parar de mandar ver no canudinho de metal. — Acho que vocês deveriam contratar ela como garota propaganda daqui. — Praticamente cuspi meu drink ao virar para o lado e observar quem agora me encarava.
Guilherme Luchini, o novo âncora do jornal. E meu novo colega de trabalho. Ele era nosso correspondente internacional da Itália. Filho de pai brasileiro e mãe italiana, Guilherme era justamente o que nosso jornal precisava: um homem gostoso de terno falando sobre a subida do euro e da umidade na calcinha das telespectadoras.
Afastei-me da bebida e sorri envergonhada em sua direção. Bem, aquilo também não era comum.
— Pois é, sexta antes de feriado. Uma espanhola cai bem.
Queria me afogar no Tietê.
A minha versão induzida por bebida alcoólica não era a minha favorita. Eu falava mais, perdia o pudor demais e me envolvia em encrencas demais. E aquele homem ali com certeza era encrenca.
— Obrigado — ele agradeceu o garçom quando o funcionário voltou com a bebida. Apontei com o meu canudo em sua direção e sorri.
— Esses negócios são viciantes, eu preciso dizer.
— Nem me diga! A Itália não tinha drinks tão bons quanto os brasileiros, eu te garanto isso — sorri em sua direção e balancei a cabeça.
— Nem vinhos?
— Ok, isso é outra história. — Soltei uma risada gostosa e bêbada. Eu deveria estar linda: suada, cansada e com tesão. Uma boa mistura, eu diria.
— Peço desculpas por você precisar presenciar sua nova colega de trabalho devorando uma espanhola, mas eu preciso ir. Seja bem-vindo à PBC, notícias…
— Direto do mundo todo para você — ele completou a frase carro-chefe do jornal. Sorri em sua direção e assenti.
— Isso. Te vejo na terça. — Acenei em sua direção ao virar-me em direção ao caixa para pagar minha comanda. Eu já era a próxima da fila quando virei para trás e observei o gostoso italiano me encarando. — Hm, oi! De novo! — soltei uma risada boba e voltei-me para frente.
— Gostei da sua risada — virei-me novamente. Guilherme sorria. Sua pele lembrava a praia. E protetor solar. Eu tinha certeza de que ele se cuidava. E de que gostava de fazer trilhas. Ele tem cara de quem gosta de aventuras.
Era a minha vez de pagar. Batalhei com o zíper da bolsa, até que peguei o cartão e paguei meu número exorbitante de bebidas. Andei até a calçada e peguei meu celular. Estava triste só de pensar em pegar o metrô, e já passava das nove e meia. O trânsito já deveria estar tranquilo até em casa. Pegar um Uber parecia uma boa opção.
— A gente precisa parar de se encontrar assim. — Olhei para o lado, e lá estava ele com um sorriso gigante no rosto!
Porcariaaaa!
— Eu gostei desses encontros — respondi com bom humor.
— É, eu também. Hã, desculpa perguntar, mas você está bem?
— Só um pouco aérea. Eu nunca bebo, então, quando acontece, a situação pode ficar meio estranha. Na verdade, eu costumo beber vinho, mas uma taça por dia. Sabe como é, os gregos faziam isso e viviam horrores. — Guilherme riu e assentiu.
— Viviam horrores e faziam peças incríveis. Acho que isso é um convite à embriaguez.
— Também acho.
As luzes da grande metrópole invadiam todos os meus sentidos. O ar quente vindo daquela massa de calor entre os prédios era sufocante, assim como a sensação de poder soltar uma bobagem sem noção para um homem lindo como aquele a qualquer momento. Eu era a Cinderela da pinga, e à meia-noite eu me tornaria um velho de cinquenta anos que arrota e diz que o poste na rua é uma mulher gostosa. Estou otimista!
Olhei para o final da rua já vazia, havia algumas pessoas caminhando pelas calçadas, mas o trânsito era zerado. Meu corpo inteiro arrepiou ao ver o único carro da rua com as janelas embaçadas. Meu estômago pesou com a bebida.
?
— Ei, já que a gente continua se encontrando toda hora só porque estamos no mesmo lugar… — iniciei o papo, mas Guilherme já ria. — Quer ir filar um rango no shopping?
— Eu adoraria, mas preciso ir para casa arrumar as caixas da mudança. — Assenti e consegui disfarçar bem minha decepção. — Ouvindo isso em voz alta me fez perceber que essa é a última coisa que eu quero. Adoraria ir filar um rango com você.
— Bem, então vamos lá! — apontei para a calçada.
Guilherme Luchini era muito gentil. Do tipo cartas para Julieta gentil. Seu sorriso era capaz de parar uma guerra e causar outra. Queria que ele causasse uma guerra entre a fivela do meu cinto e…
— O que você vai querer comer? — Guilherme questionou quando chegamos à praça de alimentação vazia.
Olhei ao redor, mas nada parecia tão apetitoso quanto ele.
— Hm, indiana.
— Boa escolha.
Andamos até o restaurante de comida indiana mais fajuto que eu já havia visto. O gosto era pior do que eu imaginava. Mas Guilherme parecia amar.
— Eu não quero ser racista, Deus sabe o quanto já foram comigo sobre esse assunto, mas…
— Sim — respondi com um sorriso. — Eu sou indiana. Metade, pelo menos. Pai indiano e mãe brasileira. E essa comida é uma vergonha.
Guilherme gargalhou enquanto limpava o canto da boca com o guardanapo. Acompanhei o movimento atentamente.
— Bom, acho que você fica responsável por me levar para provar a verdadeira comida indiana.
— Sim, vou te apresentar ao chá.
Guilherme enfiou outra garfada na boca. Forcei-me a comer, e aquilo me ajudou muito com relação à quantidade de bebida que meu corpo havia ingerido. Logo o cansaço já sobrepujava o tesão no homem gigante sentado diante de mim. Ele parecia quase um fogão elétrico. Só que mais alto. E mais quente.
— Obrigado pelo jantar. — Ele sorriu ao terminar de comer. — Vou voltar para casa animado para arrumar as caixas.
— É, mudanças podem ser uma merda.
— Você pelo visto vai passar por isso logo, não é? A vaga no Rio e tudo mais...
— Como sabe?
— Eu fiquei sabendo na minha primeira hora no jornal. As pessoas falam bastante na redação — ele respondeu com um leve sotaque ao final. Percebi durante nossa conversa que ele às vezes parecia pronunciar algumas vogais levemente diferente quando estava à vontade. Não consegui medir em palavras o quanto achei aquilo fofo. E sexy. Especialmente sexy.
Droga de período fértil!
— Ser jornalista é ser fofoqueiro com carteira assinada. Nós somos pagos para fofocar, já pensou nisso? — Sorri sobre o copo de água com gás enquanto Guilherme gargalhava com a cabeça para trás.
Após o jantar, andamos juntos pelas calçadas cheias da Vila Olímpia. O bairro extremamente rico e cheio de grandes empresas estava silencioso nas ruas, mas cheio nas calçadas. Funcionários aproveitavam uma noite de descanso antes de irem para casa. Alguns casais se agarravam na rua, mas não muitos. Afinal de contas, todo mundo ali era colega de trabalho em algum nível, e as coisas poderiam dar errado.
Profissionalismo é uma merda.
— Te deixo na estação — Guilherme ofereceu ao apontar com a cabeça para a estação de trem.
— Ah, eu vou pegar um Uber — apontei para meu celular com um sorriso mais sóbrio. — Onde você mora? Quem sabe nós não podemos rachar um carro?
— Eu moro subindo a rua, na verdade.
Controlei o ímpeto de fazer uma cara surpresa. Quanto esse cara ganhava por mês?
— Foi um prazer te conhecer melhor, Guilherme Luchini…
— Você pronuncia muito bem o meu nome — ele comentou com o cenho franzido. — Fala italiano?
— Sì — retruquei com um sorrisinho. Guilherme abriu um largo sorriso e disparou frases e mais frases em italiano em minha direção. Precisei explicar em italiano, ainda que levemente enferrujada, que eu ainda estava no nível intermediário.
Ele, então, se ofereceu para me ajudar com a língua italiana, o que eu aceitei de bom grado. E ele realmente me ajudou. Por isso, quando atravessamos a porta de sua casa naquela noite entre beijos desesperados, deixei que ele me levasse para conhecer a Itália dentro de si no italiano mais fluente que eu poderia pedir. E que professor, Brasil!
Capítulo onze
Acordar no dia seguinte foi uma sensação indescritível. Não, indescritível talvez nem chegue aos pés do que a noite passada havia sido. Cocei os olhos preguiçosamente e sentei-me entre os lençóis macios. Olhei ao redor, mas Guilherme não estava ali.
Estava na hora de ir embora.
Levantei-me devagar e prendi os cabelos bagunçados em um coque no topo da cabeça. Peguei minhas roupas dobradas sobre a escrivaninha disposta embaixo da janela do quarto de Luchini. A cama king size ocupava a maior parte da suíte. As paredes eram brancas e a única cor presente no quarto vinha de pequenos vasos de planta sobre a escrivaninha de madeira. Ontem, após algum tempo rindo com ele sobre algumas curiosidades do nosso trabalho, levantei, dobrei as roupas e voltei para a cama. Eu não era uma selvagem, por favor.
Minha cabeça estava pesada e eu sentia que olheiras cresciam sob meus olhos, ardendo por uma noite mal dormida. Muito divertida, mas mal dormida.
Observei consternada meu salto no chão. É, eu pegaria um Uber para casa. Não queria fazer a caminhada da vergonha ouvindo alguém gritar "o trem fechou, o guarda não passou e o shopping trem chegou". Já me bastava aquilo durante a semana toda.
Andei em direção à suíte e coloquei apenas a cabeça para dentro. Guilherme não estava ali. Lavei o rosto e escovei os dentes. Obrigada, higiene bucal, por me fazer carregar meu necessáire para todo lado.
Cruzei o apartamento em silêncio. Meus pés tocavam o chão gelado, e eu me senti feliz por não haver nenhum animal de estimação ali. Com muita sorte, Guilherme havia saído para a academia (homens como ele passavam o dia treinando, tenho certeza, era a única explicação para o ritmo daquele homem), e eu poderia sumir sem vestígios.
— Oi.
Soltei um grito assustado e esganiçado ao vê-lo parado no batente da cozinha. Eu estava prestes a chegar à porta, precisava tomar muito cuidado com como procederia a partir dali.
— Oi — sorri e abracei minha bolsa ao lado do corpo com força. — Hm, estou indo embora. Obrigada por ontem.
Eu odeio dias seguintes!
E ele era meu colega de trabalho! Eu nunca fiz isso em anos no mercado jornalístico. O que havia dado em mim, pelo amor de Deus? Ele com certeza deveria ser um homem lixo cheio de “hm, não se apaixone por mim”. O arrependimento por minhas ações caiu como uma bigorna montada no Titanic sobre os meus ombros. Queria fazer como o Jack e me afundar no mar gelado.
Mas Guilherme apenas arqueou a sobrancelha e sorriu.
— Você realmente está tão desconfortável? — questionou com um tom risonho.
Ele estava sem camisa e com uma calça de moletom. Por um segundo, esqueci-me do motivo de querer ir para casa.
— Dias seguintes são sempre desconfortáveis. E desculpa, na realidade. Não pelo sexo. Aquilo foi ótimo. — Guilherme gargalhou. — Mas nós somos colegas de trabalho, e tem um motivo para as pessoas condenarem esse tipo de coisa, sabe? Enfim, quero ir embora antes que algum de nós dois descubra algo ruim um sobre o outro e acabemos nos odiando ou algo do tipo.
Mudei de peso desconfortavelmente e encarei a porta de correr atrás de Luchini. E se ele falasse pra todo mundo na redação? E se ele fosse um babaca? E se ele tivesse filmado tudo e postasse online? Meu coração começou a acelerar diante das possibilidades.
— Gosto do jeito que você pensa, apesar de meio fora da realidade. — Guilherme piscou e apontou para a varanda do apartamento, que abria de cara para a metrópole diante de nós. Pisquei algumas vezes em direção à luz forte. — Pelo menos tome café, que tal? Eu vou para a academia e te deixo aqui, já que você se sente desconfortável. Não precisa se despedir também.
— Gosto do jeito que você pensa — retruquei com um sorriso confortável e relaxei o abraço na bolsa. — Obrigada.
— Por nada. Eu preparei um café da manhã pra você. Não é muita coisa, não esperava visitas. — O homem coçou a nuca, os músculos de sua pélvis ficaram mais aparentes. Mantive os olhos ali por um tempo. É, ele era gostoso demais para minha sanidade.
— Obrigada — disse mais uma vez. Guilherme andou em minha direção com um sorriso. Antes que eu pudesse reagir, ele me beijava novamente. Mais calmo do que na noite anterior, mas não menos envolvente. Apoiei minhas mãos em seu quadril e não evitei um suspiro quando nos afastamos.
Ele sorriu e passou com o polegar por meu lábio inferior, encostando nossos narizes com delicadeza, seus cabelos estavam bagunçados, e o calor de sua pele pinicava minhas mãos. Encarei seu peitoral exposto e sorri.
— Bom treino — sussurrei. Guilherme gargalhou ao lado do meu ouvido.
Devorei meu café da manhã enquanto Luchini avisava o porteiro da minha saída. Despedi-me dele com um aceno e um pedido para que eu deixasse a porta encostada. Enquanto descia pelo elevador, apoiei a cabeça contra o vidro e suspirei. Aquela havia sido uma ótima noite. Ótima. Guilherme descobriu um novo ponto de suspiro em mim que eu não conhecia. Sempre o agradeceria por aquilo, mentalmente, claro.
Peguei meu celular e observei algumas mensagens de brilhando na tela.
"Como assim você mandou ver com um italiano?"
Arqueei a sobrancelha. O que eu havia mandado antes?
Subi um pouco a conversa. Eu havia mandado uma mensagem para ele com a minha localização e disse:
"Vou apresentar o chá indiano para um italiano. Aí está minha localização. Espero que ela marque 'no céu', porque ele com certeza é uma criatura divina"
Ah, …
Gargalhei diante de minha frase boba. Não me lembrava de ter mandado aquilo. Fui tomada por uma curiosidade latente.
"E você mandou ver com a Flaviane?"
Enviei a mensagem enquanto segurava a respiração. A resposta apareceu logo em seguida.
"Não. Eu permaneci fiel à minha noiva."
Permaneci encarando a tela com o cenho franzido. Como assim?
"Ela não tinha camisinha, e eu também não. Não ia rolar."
Soltei um suspiro aliviado.
Entrei no Uber com o coração acelerado no peito. estava me ligando por chamada de vídeo. Aguardei até que tivesse cumprimentado a motorista devidamente, arrumei os cabelos incrivelmente bagunçados e atendi.
— E aí, deu o verdadeiro chá pro italiano provar? — abriu a chamada com um sorriso. Revirei os olhos e me recostei contra o couro do banco.
— Eu entrei lá achando que eu daria um chá nele, mas acabou que o homem me deu um chá — gargalhou. Observei a motorista abrir um sorriso bem humorado. Graças a Deus era uma mulher.
— Isso é bom. Acho que vai te ajudar a superar o Bruno — torci o nariz e observei em silêncio apoiar o celular porcamente sobre algum local em sua cozinha.
— Eu não estou tentando superar o Bruno. Philautia, lembra? — assentiu distraidamente enquanto quebrava um ovo num pote.
— E o que tem a ver amor próprio com transar com um desconhecido?
— Ele não é desconhecido!
Sim, ele era. E também sabia, porque apenas franziu o cenho e sumiu da tela por alguns segundos. Ouvi o som de ovo estalar na panela. Permaneci encarando o fundo da cozinha do apartamento dele até que voltasse.
— É, era sobre isso que eu queria falar — ele começou enquanto mastigava algo. — O que deu em você para ir para a casa de um homem que você não conhece?
A voz de estava séria. Mordi o interior da bochecha.
— Eu não sei.
— Como assim, ? Você nunca fez isso antes. Não, não. Você é a pessoa que briga com suas amigas quando fazem essas coisas. Você já brigou comigo por isso antes!
Suspirei pesadamente e comecei a batucar com o pé no chão.
— Eu não sei, ! Eu acho que só precisava de uma aventura uma vez na vida. — Meu amigo revirou os olhos.
— Você pode ser aventureira e não correr riscos.
Lembrei-me do nosso “quase” na faculdade, e um arrepio maldito percorreu cada centrímetro da minha pele. Senti-me pequena e estúpida por alguns momentos.
— A vida é cheia de riscos — retruquei azeda.
Era cansativo tentar ser contida o tempo todo. Ontem, devido aos meus hormônios explodindo em mim como se fosse o ano novo em Copacabana, rendi-me a uma noite desprovida de qualquer reflexão. E eu estava até que feliz com aquilo, apesar de extremamente desconfortável com as possíveis consequências. Mas parecia viver sua vida tão livremente às vezes, e eu quis sentir aquilo uma vez sequer. Foi divertido, mas agora eu me questionava se eu havia escolhido a situação certa para me soltar.
Era de certa forma injusto comparar a liberdade de com a minha. Ele era um homem alto e atlético. Não, não, era homem, simples assim. Para ele, viver adoidado era muito mais possível e com menos consequências do que para mim. Questionei-me se ele estava se preocupando por esse motivo.
sumiu novamente, mas sua voz continuava preenchendo meu fone de ouvido.
— , eu fiquei preocupado, de verdade. Você sabia que eu fui até a casa dele esperar você sair? — Arregalei os olhos em choque.
— Por que você fez isso? — questionei com a voz esganiçada.
— Porque você me mandou uma mensagem após encher a cara dizendo que daria um chá em alguém. Seu celular ainda estava na Vila Olímpia. Eu pensei que, sei lá, ele tivesse sido roubado ou você tivesse feito alguma bobagem. Não sei, , eu só sei que fiquei preocupado pra caramba! Na próxima vez, por favor, pelo menos diga com quem está e se está tudo bem. Não anuncie que vai transar e suma — ele falou mais alto.
— Eu agradeço a sua preocupação, mas acho que ir até a casa dele foi demais…
— Ok, — ele desistiu. — Só, por favor, tome cuidado, ok? E não vá transar na casa de desconhecidos, tem cada maluco por aí!
— É, tem os caras que traem as noivas com colegas de trabalho, não é? — gargalhou enquanto colocava os olhos mexidos em um prato, longe da minha visão do celular.
— A questão, dona , é a seguinte: não quero que você saia por aí vivendo a vida adoidada só porque descobriu algumas palavras que significam amor em outro idioma. — Permaneci em silêncio. — Sua noção e organização são o elo da nossa amizade. Eu não posso ser a pessoa sã, isso é contra as regras da humanidade.
Gargalhei com a cabeça contra o estofado. Mesmo me dando uma bronca, conseguia me fazer rir.
Eu sabia que ele não condenava o fato de eu ter transado com um desconhecido, mas ido para a casa dele. Na realidade, os cenários do que poderia ter acontecido rondaram a minha mente assim que eu acordei. Eu já havia passado por uma situação péssima dessas quando eu tinha dezenove anos, então compreendia a preocupação de .
Por um instante, pensei no que Guilherme poderia espalhar pela redação. Era a primeira semana dele, e eu já havia dado pro cara sem nem pensar duas vezes.
Nas últimas semanas eu havia mentido, estava concorrendo a uma promoção, transado com um italiano, transado com um colega de trabalho e com um desconhecido. Os últimos três itens sendo com a mesma pessoa!
— Além disso — continuou tagarelando — você sabe que, se quiser uma aventura sexual insana, pode contar comigo — ele piscou do outro lado da tela.
Meu coração acelerou no peito, minhas mãos suaram e eu tive certeza de que meus seios estavam enrijecidos sob o sutiã. Por um instante, pensei que alguém havia dado um soco com um punho de ferro na minha traqueia.
— Pode sonhar com isso, Patel — ri nervosamente e desliguei a chamada o mais rápido possível. Apoiei o celular no colo sem reação alguma. Minha cabeça estava latejando e eu começava a entrar no modo paranoico.
— Você tem um sorriso lindo! — a motorista comentou ao me olhar pelo retrovisor. Agradeci com meu melhor sorriso em sua direção. — Sabe… Desculpa falar isso, só que o seu fone estava alto e eu acabei ouvindo… Mas o seu amigo tem razão. A gente precisa tomar cuidado com essas coisas hoje em dia. É horrível que esses homens tenham a liberdade de transar sem medo, mas a gente precisa se cuidar vinte e cinco vezes mais.
Acenei com a cabeça. A mulher virou à esquerda em uma rua e bati com a cabeça contra o estofado do banco.
— A gente faz cada loucura para esquecer de homem, não é? — comentei e ri pelo nariz enquanto encarava a cidade passando do lado de fora da janela. Passamos por um jovem dançando break dance na calçada e por um homem de terno que derrubou suco verde em seu paletó. Fiz uma careta. Aquilo demoraria para sair.
— Eu te garanto algo, moça, homem nenhum vai te ajudar a esquecer outro homem. Dar tempo ao tempo é a melhor solução.
— O problema é que eu não sei direito qual dos dois homens eu estou tentando esquecer — aquela meia-verdade pareceu travar em minha boca. Um lampejo de compreensão piscou nos olhos da motorista.
— Ah, então o garoto do telefone…
— É meu melhor amigo. Acho que estou carente, e ele está ali, então tem algo rolando hormonalmente.
— Posso dar um conselho? — Maneei com a cabeça em consentimento. — Não faça isso. Melhores amigos são melhores amigos. Se você aprecia mais sua amizade do que a chance de uma rapidinha, acho que é melhor usar sua dose hormonal em algo diferente. Talvez em outros homens ou mulheres, não sei a sua preferência, ou em yoga, não sei! — Gargalhei enquanto ela gesticulava com uma mão ao pararmos no farol. — Eu já fiz isso antes. Abri mão de uma boa amizade por um deslize. Adivinha qual foi pro brejo?
E com aquela conversa singela, desembarquei em frente à casa da minha mãe.
— Obrigada pela conversa, hã, Angelica — li o nome da mulher no aplicativo e sorri em sua direção.
— Pense no que eu falei.
— Pode acreditar, eu vou.
E eu pensei, por dias a fio aquela conversa rondava minha mente, tirava meu sono e me fazia permanecer encarando a parede do escritório como um cachorro quando late para um ponto acima da nossa cabeça.
e eu éramos bons amigos, seria ridículo da minha parte me insinuar para cima dele sem pensar nas consequências depois. O modo adoidada já havia sido desativado, e a racional estava tomando o controle novamente. Eu gostava daquela , ela me permitia ficar longe de confusões e encrencas. Às vezes eu a odiava, mas eu sabia que, naquele momento, permanecer longe de e de minhas explosões hormonais era a decisão certa. Eu contava com isso.
Capítulo doze
Flora estava sentada diante de mim em silêncio há pelo menos três minutos. Ela permanecia encarando as mãos apoiadas no colo e suspirando ocasionalmente. Deixei-me relaxar na cadeira enquanto ela batucava com os pés no chão.
Eu havia saído da chamada com há alguns minutos, e minha irmã tocou na campainha assim que decidi sentar no sofá para ver The Office, meu novo vício.
— Eu vim pedir desculpas — Flora iniciou com a voz baixa, seus olhos fitavam suas próprias mãos.
— Pelo quê? — franzi o cenho em confusão e tomei outro gole do suco de maracujá que sobrou de ontem.
— Eu contei à mamadi sobre você e a . Não tinha ideia de que você queria manter aquilo em silêncio.
— As tias acham que elas contaram à mamadi. Pelo visto me ouviram falar com Layla sobre isso e foram direto fofocar com ela. Então foi você quem contou? — Flora assentiu.
— Layla me contou enquanto estava na festa. Eu estava com mamadi e contei a notícia. Estava tão eufórica que nem parei para pensar. E aí, no almoço, as tias devem ter te ouvido e acharam ser as primeiras a descobrir. — Bufei em frustração e levantei-me do sofá, andando pela sala em círculos.
— Eu odeio fofoca mais do que tudo — rosnei e mordi a ponta do polegar enquanto pensava.
— Você já percebeu que a nossa colônia vive dizendo que odeia fofoca, mas não para de fofocar? — Gargalhei em sua direção.
— É, acho que somos muito acostumados a cuidar da vida um do outro.
Sentei-me novamente e segurei as mãos geladas de Flora com um sorriso.
— Você não tem culpa, Flora. Fica tranquila — assegurei. — Mas espera… Mamadi sabia antes do almoço? — arqueei a sobrancelha em confusão. — Ela deveria ter me ligado na hora para me xingar, por que ela não fez isso? — Flora deu de ombros.
— Eu também estranhei. Quando eu contei, ela apenas se levantou e foi falar com papá na cozinha. Eu nem imaginei que ela iria anunciar no almoço.
— Isso não tem a menor lógica, Flora. Mamadi nunca aceita uma informação dessas sem protesto. Será que ela está planejando algo? — questionei com o tom baixo. Flora cerrou os olhos e suspirou.
— Ela deixa a gente paranoico.
Como em uma invocação, a porta de casa foi atingida por algumas batidas ritmadas. Eu e Flora nos encaramos.
— Quem é? — gritei.
— A mulher que te deu à luz!
Flora e eu trocamos um olhar nervoso. Se mamadi ouviu sequer um pouco do que falávamos…
— Indo! — gritei prontamente e abri a porta com um sorriso. — Mamadi, como está?
Minha mãe estava parada diante de mim usando uma calça jeans com uma bata roxa por cima até os joelhos. Sua bolsa Chanel estava ao lado do corpo e combinava com a bata.
— Bem, querido, graças aos deuses — ela entrou em minha casa e analisou os arredores, como sempre fazia quando vinha visitar. Ela abraçou Flora com força e fez carinho em sua bochecha com o polegar. Fui até a cozinha buscar algo para mamadi beber. Ao voltar, ela e Flora discutiam sobre o casamento.
— Fico feliz que estejam empolgadas com o casamento — entreguei o copo à mamadi e apoiei-me contra a mesa da sala. Ela tomou um gole sutil de água e deixou o copo sobre a mesinha. — Mamadi, tome mais água. Problemas de pedra no rim são sérios.
— Eu já tomei hoje — ela desconversou com um gesto com as mãos. — E por falar no casamento, quem você vai levar, ?
Eu estava sendo testado. O peso da questão de mamadi preencheu o pequeno cômodo. Bati os pés desconfortavelmente contra o chão.
— Mãe, eu tenho uma noiva.
Senti-me desconfortável com o quão facilmente a mentira havia saído. Temia que em algum ponto eu esquecesse que eu e éramos apenas amigos.
— E o que tem a ver? Vocês ainda não são casados — ela comentou seriamente. Flora alternou o olhar entre nós dois.
— Mamadi, por que levaria qualquer outra mulher senão a noiva? — Minha irmã apertou as mãos sobre a calça jeans. Enfrentar mamadi sempre era um problema para Flora.
— Porque eu não quero que essa mulher apareça nas fotos do casamento. Depois, quando ela terminar com , vamos precisar olhar para as fotos com ela.
Cerrei os punhos e encarei a janela do lado de fora.
— Mamadi, por favor, não vamos discutir isso.
Eu estava cansado demais para lidar com mamadi naquele momento. Eu a amava, mas pela paciência de Buda, aquilo era demais.
Sempre pensei em como era a relação de famílias indianas se comparadas com as brasileiras. Enquanto cresci, vi muitos amigos indianos serem mais livres por terem nascido no Brasil, mas tinha muitos outros amigos que, assim como eu, possuíam uma relação muito mais distante e restrita com seus pais. Não era uma regra, mas o modelo de criação era bem diferente. E às vezes aquilo me incomodava.
Eu sabia que gostaria de criar meus filhos (se os tivesse), à la brasileira. E eu não era ingênuo ao ponto de pensar que aquilo seria totalmente verdade. Havia pontos muito positivos na criação de meus pais. Eu cresci desejando a ambição, respeitando os mais velhos ao meu redor e, verdade seja dita, as atividades extracurriculares na escola me ajudaram a chegar muito mais longe. Mas é muito mais do que isso, viver com uma criação escolar brasileira e familiar indiana me ajudou a ver o mundo de uma maneira que meus amigos totalmente brasileiros não conseguiam. Eu seria eternamente grato por aquilo.
Mas a minha primeira mudança seria com relação ao nome! É muito comum para filhos de imigrantes terem alguns nomes incomuns. não é um nome comum no Brasil, e sempre me senti incomodado com isso. Porém, enquanto cresci, vi muitos amigos meus com nomes como John, Marie, Sunny. Eu não entendia exatamente o motivo de pais estrangeiros colocarem o nome dos filhos com nacionalidades diferentes do país em que vivem e até do país nativo. Quer dizer, por que meu nome não era algo como Kadir?
De qualquer modo, o nome do meu filho será Zé da Pá Virada.
— E por falar nisso — troquei o rumo da conversa, virando-me para mamadi com o semblante sério — por que você não me avisou antes que sabia sobre meu noivado? Por que só anunciou no almoço e não falou comigo antes?
Mamadi permaneceu me encarando por alguns segundos, como se estivesse pensando se me responderia a verdade leve ou a verdade cruel. Eu duvidava que a primeira opção fosse ser escolhida.
— Eu tentei te dar a chance de falar algo — arqueei a sobrancelha, levemente surpreso.
— Desde quando você me dá a chance de falar algo?
— Você quer apanhar na boca? — ela praticamente rosnou. Empertiguei-me contra a mesa. Flora segurava o riso.
— Desculpa, mamadi — ela continuava com a expressão irritadiça.
— Criei dois malcriados… — minha mãe resmungou. — Eu imaginei que fosse contar para mim, não que eu precisaria descobrir por Flora. Pior ainda, eu fui informada sobre seu noivado. Eu precisava salvar aquela catástrofe, não é? — ela riu pelo nariz. — É isso que dá tentar dar uma chance para os outros.
— Mamadi, eu ia te contar…
— Me poupe, — ela balançou o pulso cheio de pulseiras e arqueou a sobrancelha. — Você já fez o suficiente. Enfim, está dito, a Filomena não vai à festa.
— É , mamadi — corrigi com uma leve impaciência.
— Sim, isso.
Minha mãe e Flora voltaram a conversar sobre os detalhes do casamento animadamente, ignorando a minha presença por completo. Sentei-me à mesa e batuquei com os dedos sobre a madeira. deveria estar na casa de sua mãe. Peguei meu celular para mandar uma mensagem para ela, e fui surpreendido pela mensagem de Flaviane. Abri um sorriso discreto diante de seu “bom dia”.
Eu me arrependia tanto de ter saído sem proteção no dia anterior!
Mas me arrependi mais ainda por não ter estado ao lado de para evitar o desastre italiano. Bloqueei a tela do celular após responder Flaviane e permaneci encarando a janela. havia exagerado na noite anterior.
Acordei quatro da manhã com suas mensagens. Minha amiga levava seu sono muito a sério, jamais mandaria mensagens àquela hora se não fosse por um bom motivo.
Ao lê-las, franzi o cenho e não consegui mais dormir até o fim da noite. Tentei ligar para seu celular, entrar em contato, mas a internet estava desligada.
Tentei assistir a alguns vídeos no YouTube e mexer no Facebook, mas a inquietação era grande demais. Comecei a andar pela casa no escuro com o som da minha playlist de rap tocando ao fundo até seis da manhã, quando decidi ir até o endereço que havia enviado. Eu só conseguiria dormir bem se me certificasse de que estava tudo bem.
Peguei o carro usado, que eu raramente dirigia, na garagem e segui o endereço na Vila Olímpia. Andei até a portaria e perguntei por — a mulher de cabelos escuros e pele marrom escura que havia entrado pela porta com o italiano, na descrição nada útil de .
Caso ele tentasse algo contra ela ou sumisse, como eu descreveria à polícia? Que ela havia sido raptada por um italiano?
Quando me apresentei como irmão de , o porteiro desinteressado de cinquenta anos apenas assentiu e disse que ela estava ali. Agradeci com um suspiro aliviado e voltei para o carro.
O sol despontava do outro lado da Marginal Pinheiros. O trânsito de sábado era tranquilo. Deitei a cabeça contra o estofado e pensei na bronca que daria em . Era a primeira vez em nossos anos de amizade que ela fazia aquilo.
Ela e Bruno haviam terminado. Eu não poderia dizer que sentia muito. Eu sabia que Bruno e tinham data de validade, creio que até mesmo ela sabia, mas não quis me meter. Eu era cegamente crente na teoria de que algumas pessoas precisam descobrir sozinhas o que gostam ou não, e não precisava da minha ajuda com aquilo. Sendo mais honesto ainda, ela rejeitaria meu comentário com um aceno e diria "sei o que estou fazendo".
E ela sabia.
Durante todos os nossos anos de amizade, já a vi saindo com algumas pessoas, e consegui dizer quais dariam certo ou não (eu havia errado uma vez, mas em que mundo eu imaginaria que ficaria um ano enrolada com um rockeiro punk fã do Supla?).
Tentei segurar a risada diante da memória de ter acompanhado os dois em um show na Paulista junto à minha ex-namorada (a que fugiu com o sheik). Lá, decidiu que terminaria com ele, e eu decidi que precisava comprar um tênis novo.
Duas decisões igualmente importantes.
— , o que você acha? — encarei Flora distraidamente. Ela riu e balançou os cabelos negros para trás. — Qual é o mais bonito? — Levantou duas revistas com duas noivas indianas usando duas vestimentas extremamente semelhantes, mas eu não diria aquilo para Flora.
— Hm, o da esquerda, definitivamente.
Flora pareceu satisfeita e voltou a conversar com mamadi.
— Eu estava pensando em ir hoje fazer a prova do vestido… — Tomei um gole d’água enquanto fitava Flora com o cenho franzido. Ela não parecia estar falando sozinha, mas mamadi se levantou e estava na cozinha fazendo almoço. Só poderia se dirigir a mim.
— Boa sorte! — Sorri largamente e prendi metade do cabelo em um pequeno rabo de cavalo. Flora bufou e jogou as duas revistas ao lado do corpo, levantando-se rapidamente e se aproximando de mim.
— Quero que mamadi e se aproximem! Ela é sua noiva, e acho que seria legal se as duas passassem um tempo juntas.
Encarei Flora com um semblante descrente. Ela só poderia estar brincando. Cobri a boca com a mão para evitar uma risada desconfortável.
— Sem chance, Flora.
— Qual é, ? — ela exclamou resignada e cruzou os braços. — Você manteve escondida de mim por anos! E agora que eu finalmente a conheci, não vou deixar você sumir com ela até o dia do casamento. Poxa, é a primeira mulher que você trouxe pra casa. — Ela colocou o cabelo atrás da orelha antes de continuar. — E eu sei que você já teve muitas namoradas e namorados antes — soltei uma gargalhada estrondosa, jogando a cabeça para trás.
— Quem te disse isso?
— A ! — ela exclamou. Balancei a cabeça e encarei minha mão sobre a mesa.
— está delirando.
— Eu duvido que sua noiva falaria isso como uma mentira… — Flora deu de ombros e voltou a se sentar no sofá com uma careta emburrada. — Você parece gostar dela de verdade, e eu gostei de , . Por favor, não estrague tudo e deixe-me aproveitar minha cunhada!
Ponderei por alguns segundos em silêncio. Toda aquela mentira crescia a cada dia. Ontem eu e deveríamos ter conversado sobre aquele assunto, mas ele parecia cada vez mais distante. Eu sequer sabia se gostaria de ter aquela conversa, sendo totalmente honesto.
A verdade é que as últimas semanas têm sido ótimas com . O noivado falso me permitiu falar com ela muito mais do que estávamos acostumados. A rotina adulta não nos dava muitas chances de nos vermos pessoalmente. Ser o noivo de por aquelas semanas me fez lembrar o quanto eu sentia saudades dela e da nossa amizade. Aquilo era tão ruim assim?
— Eu vou falar com ela, pode ser? — enrolei Flora por um tempo. Minha irmã, que me conhecia bem demais, negou com a cabeça.
— Eu vou falar. Dê-me seu celular. Vou ligar para ela.
— Ligar? Quem liga em pleno século XXI?
— Pessoas que querem encurralar as outras — ela respondeu com obviedade. — Mensagens dão escapatória, chamadas são diferentes.
— Isso é muito manipulador — constatei com surpresa. Desde quando Flora havia ficado calculista daquela maneira? Minha irmã pegou meu celular desbloqueado sobre a mesa e abriu as ligações.
— O contato dela está salvo como “, cara mia”? — Flora comprimiu os lábios em uma linha fina para segurar a risada. — Isso é muito meloso. — Revirei os olhos e apenas a encarei enquanto andava pela sala com o telefone na orelha.
estava com a mãe e provavelmente com o celular no silencioso, não atenderia.
— Oi, ! É a Flora, irmã do …
Levantei-me de supetão e aproximei-me de Flora para pegar o celular. O único motivo para eu ter concordado com aquilo era a certeza de que não atenderia a ligação. Flora desviou da minha tentativa de toque e correu para meu quarto, trancando a porta atrás de si. Colei o ouvido na porta, ouvindo alguns murmúrios por parte de Flora.
— Isso, a prova de vestidos! Mamadi não tem o mesmo gosto que eu, então queria uma outra indiana com a minha idade para dar uma opinião… — Revirei os olhos com a desculpa esfarrapada. Eu e Flora realmente éramos irmãos. — Você consegue? Ai que ótimo! Não, não vai. Mas posso chamar ele, se você quiser! Hm, eu concordo. Ok, perfeito. Amanhã às nove na estação Tiradentes? Perfeito! Você é incrível. Estou ansiosa. Obrigada, !
Afastei-me da porta quando Flora apareceu diante de mim com uma expressão convencida.
— Eu vou sair para fazer compras com a sua noiva. Acho que amanhã vai ser um ótimo dia! — Fiz uma careta e voltei para a sala. Mamadi estava pondo a mesa. Ajudei na organização com Flora.
Quando as duas foram embora, larguei-me no sofá com a cabeça no estofado. Liguei a TV e deixei The Office, minha série de conforto, passar. Meu corpo afundou no móvel e deixei-me fechar os olhos. e Flora iriam fazer compras juntas. Eu não sabia como me sentir em relação àquilo. Na realidade, essa situação inteira era fora do comum. Eu só torcia para que não surtasse.
*
Eu estava surtando.
Após desligar a chamada com Flora, senti o ar sumir de meus pulmões. Minha mãe e meu padrasto, que riam de um vídeo recebido pelo WhatsApp, viraram para mim levemente assustados.
— Filha, está tudo bem? — Kabir aproximou-se de mim com o rosto preocupado, passando as mãos calejadas em minhas costas.
— Sim, sim. Eu só…
— Você está assim há alguns dias — minha mãe arqueou a sobrancelha e aproximou-se com o pano de prato em mãos.
— Eu acho que fiz uma bobagem. — Kabir segurou uma risada diante da cara de minha mãe. Ela era a pessoa mais organizada e metódica que eu conhecia, ainda mais do que eu.
— O que houve? Está tudo bem no seu emprego?
Lembrei-me da proposta que eu havia recebido do emprego de co-âncora no jornal do Rio, e isso só pareceu me deixar mais afobada. Eram tantas escolhas, eu estava tão perdida.
— Lembra do , certo? — comecei a conversa, mas sem saber direito como continuar. Eu nunca deixava de contar as coisas para minha mãe, e eu não havia falado nada sobre e nossa farsa, porém não precisava ser vidente para saber que ela provavelmente gritaria comigo por mentir.
— Óbvio que eu lembro do ! — minha mãe exclamou com um sorriso e sentou-se no braço do sofá. Seus cabelos curtos estavam controlados por uma bandana azul cerúleo e ela usava um vestido preto com espaços para bolsos, nos quais estavam escondidos seus remédios para pressão alta e chocolates. Ela jurava que ninguém sabia da existência deles ali, o que deixava a situação mais cômica. — Onde ele está, falando nisso? Não o vejo há tanto tempo…
— Bom, mãe, eu tenho muito que te atualizar, na verdade.
— Ih, isso pede um vinho? — Kabir tentou amenizar o clima, mas minha mãe já havia cruzado os braços em desconfiança. Ele estava entre nós duas, e levantou-se para buscar a bebida e as taças simples. Segurei a bebida em mãos e tomei um gole antes de apoiar a bebida sobre a pequena mesinha.
Minha mãe odiava quando eu bebia. Do ponto de vista dela, a partir do momento em que eu bebi uma taça de vinho, já estava a um passo ínfimo do alcoolismo. Tossi desconfortavelmente e suspirei antes de começar.
— Terminei com Bruno.
Esperei por reclamações, revolta e gritos, mas minha mãe e Kabir apenas me encararam em silêncio. Kabir pousou sua mão marrom sobre a negra de minha mãe, uma mistura absurdamente linda.
— Nenhuma reação? — questionei confusa. Kabir abriu um sorriso desconfortável.
— Querida, eu e sua mãe não gostávamos muito do Bruno…
— Mas vocês chamavam ele para ir à praia com a gente! — exclamei indignada. Minha mãe esfregou os olhos verdes com um suspiro.
— A gente precisava de outra pessoa para rachar a gasolina — ela admitiu com desdém. Arregalei os olhos em choque.
— Vocês só podem estar brincando…
— Querida, não é que nós não apoiávamos, é só que—
Kabir tentou começar, mas minha mãe o interrompeu.
— Nós preferimos o ! — Pisquei algumas vezes em direção aos dois, sem saber direito se eu acreditava naquilo ou não.
— Mas eu não namoro o .
— Mas deveria! — ela exclamou e bateu na perna de Kabir, que apenas a encarou de soslaio e suspirou.
Kabir e minha mãe se conheceram no templo que frequentávamos quando eu era criança. Minha mãe era totalmente adepta ao hinduísmo mesmo antes de conhecer meu pai. Apesar de eu não seguir a religião com ela, continuava a frequentar o templo quando ela pedia a minha presença. Há alguns anos, Kabir e minha mãe se conheceram durante um almoço de fiéis. Ele derrubou chá na calça dela e os dois se apaixonaram. Estavam juntos desde então. E apesar de ser indiano, Kabir havia aceitado bem a cultura brasileira. Às vezes, era minha mãe quem parecia mais indiana do que ele, e aquilo só me provava o quanto estereótipos são enganosos.
— Mãe, eu e somos amigos. E é isso. Acabou. Por favor, não é a primeira vez que temos essa conversa, mas gostaria que fosse a última — afirmei categoricamente. Kabir assentiu, mas minha mãe levou um tempo antes de concordar.
— Ok. Posso tentar. Qual a próxima notícia?
— Eu e estamos noivos.
Talvez eu tenha feito aquilo de propósito apenas para ver a cara de choque de minha mãe. Valeu totalmente a pena. Precisei de alguns minutos de gritos histéricos até explicar a história inteira. Minha mãe, que antes praticamente chorava de alegria, parecia prestes a me matar. Eu poderia lidar com a raiva dela, mas não esperava que fosse ser tanta. Kabir fez o papel de impedir que a taça de vinho fosse atirada em minha direção.
— Eu não criei uma mentirosa, Kabir! — ela exclamou quando Kabir disse a ela que se controlasse.
— Mãe, espera! Nós já temos tudo resolvido. E não me obrigou a mentir, eu que escolhi seguir em frente.
— Isso é pior ainda! — ela gritou nervosamente. Kabir me encarou com o semblante sério.
— Querida, vá beber água. Eu quero conversar com , pode ser? — minha mãe saiu da sala xingando em hindi. Ignorei as ofensas finais e sentei-me novamente no sofá com a cabeça entre as mãos.
— Eu sabia que a reação dela não ia ser das melhores, mas não é como se eu tivesse matado alguém nem nada disso — confessei para Kabir com uma careta. Ele riu e sentou-se de frente para mim em um banco de tecido.
— Querida, você sabe o quanto sua mãe odeia mentiras — assenti. — E ela também sabe o quanto você odeia. Por que está mentindo?
Aquela era uma boa pergunta.
Desde ontem, quando e eu dançamos no bar, eu me perguntava se minhas motivações eram unicamente pela nossa amizade. Muitas variáveis, muitos Xs sem resposta. Eu odiava aquilo.
— Eu não sei — admiti com um pesar de ombros. Aquela era a verdade. Eu ainda não tinha informações o suficiente para decidir por que havia mentido tanto desde o início.
— E está tranquilo com essa teia de mentiras? — ele questionou seriamente e passou a mão pela barba cheia.
— Não, não está. Na verdade, ele estava pronto para contar a verdade, mas eu falei para continuarmos com aquilo. A culpa é dele por mentir primeiro, mas eu que continuei. — Kabir assentiu lentamente em compreensão.
Ele parecia carregar a sabedoria e calmaria do mundo inteiro em seus olhos castanhos e dentes estranhamente alinhados para alguém que nunca havia usado aparelho, ou era o que ele dizia. Suspirei mais uma vez e senti-me calma quando ele segurou minhas mãos entre as suas.
— Eu sei que você está esperando que alguém te diga o que fazer — ele diminuiu o tom de voz e encarou a cozinha. — Sua mãe com certeza vai te dizer o que fazer também, você sabe disso. Mas não podemos tomar nenhuma decisão por você. Afinal de contas, , você é adulta e precisa se responsabilizar por suas decisões.
— Eu sei disso, mas é tão difícil — engoli em seco. — Eu tenho tantas decisões em mãos, e elas só parecem aumentar. Nunca tive dificuldades em ser prática e eficiente.
— Não é possível ser prático e eficiente quando se trata de pessoas que amamos. São vidas. Mas você não é uma mentirosa, , então não aja como uma.
Capítulo treze
Eu odiava pegar o metrô de São Paulo em dia de semana, mas pegar no final de semana era quase um passeio turístico. Consegui ir sentada durante o caminho todo enquanto assistia The Office pelo celular. Soltei uma gargalhada incontida, atraindo a atenção de uma moça usando uma fantasia de palhaço do outro lado do vagão.
Aguardei Flora fora da catraca do metrô. Subi as escadas correndo quando ela anunciou que me esperava. E, bem, foi uma surpresa ao vê-la acenando de dentro de um carro esportivo. Como ela ainda não havia sido assaltada?!
Entrei no veículo timidamente enquanto ela sorria e me cumprimentava animadamente. O carro tinha cheiro de gente rica, e o painel na frente do volante era digital. Cobicei aquilo por alguns instantes. Flora usava um vestido azul justo ao seu corpo magro, um batom vermelho preenchia seus lábios finos e os cabelos estavam trançados em formato de coroa.
— Eu vou casar com um tecido sobre a cabeça, então é melhor provar o vestido sabendo disso.
Eu não podia discordar daquela lógica.
Pelo que percebi, a mãe de havia se sentido indisposta naquela manhã e não iria à primeira prova do vestido de Flora. Meus sentimentos alternaram entre alívio e desespero ao ouvir a notícia.
Na noite anterior, passou uma hora comigo ao telefone discutindo possíveis cenários com a mãe dele em cena. Primeiramente, decidimos que contaríamos sobre nosso término dali três semanas, quando haveria um evento com a família de . Ali a fofoca correria como fogo em folhagem seca.
Decidimos também o motivo do término: eu não queria ter filhos. Saio como vilã e a mãe de fica feliz. Eu, de verdade, não me incomodei com o arranjo dos fatos, mas , sim. Ele ainda gostaria de pensar em outra desculpa para o término do noivado, o que nos levou a mais uma hora pesquisando no Google “motivos para terminar com alguém”. Encontramos alguns motivos muito bons para terminar um namoro, mas não um noivado. Quer dizer, se dissesse que terminou comigo porque eu durmo do lado esquerdo da cama, provavelmente alguém desconfiaria.
Eu estava entristecida em parte por precisar me afastar de Flora. Eu fiquei realmente feliz por conhecê-la melhor.
— Eu não sabia que havia lojas de noiva indianas por aqui — admiti para Flora quando estacionamos em um estacionamento pago.
Saí do carro, e meus tênis confortáveis esmagaram o cascalho sob meus pés. Andamos juntas a pé até uma pequena entrada que levava escada acima até um ateliê. O bafo quente de São Paulo fazia minhas omoplatas suarem e meu corpo inteiro pingava gotículas de suor, que evaporavam antes que eu me desse conta. As paredes pareciam nos engolir enquanto subíamos os lances de degraus do pequeno estúdio. Controlei a respiração ofegante quando chegamos ao terceiro patamar, que era a loja.
Do lado de fora, ninguém imaginaria o tamanho do lugar. Todas as paredes eram preenchidas por araras de vestidos tradicionais, cores bufantes estampavam cada centímetro de minha visão. O ar condicionado contrastava com o calor excessivo da rua, e uma mulher baixinha e usando uma fita métrica enrolada ao pescoço veio nos receber.
— Olá! Eu estou aqui para a prova do vestido. Sou a Flora Patel. — Flora sorriu cordialmente para a funcionária. Encarei os arredores mais uma vez antes de segui-las até uma cortina de veludo vermelha. O ar cheirava a naftalina e incenso, meu corpo inteiro começava a tremer de frio. Ah, o choque térmico!
— Que estranho, hoje é domingo e tem uma loja aberta. Geralmente fica tudo fechado — confidenciei para Flora quando a mulher baixinha sumiu de vista pela cortina. Ela virou para mim com um sorriso simples.
— Mamadi é amiga da dona, ela abriu para que eu provasse o vestido.
Tentei controlar o choque, falhando miseravelmente, porque Flora agora gargalhava diante dos meus olhos esbugalhados.
— Uau, isso é que é confiança — assoviei e Flora assentiu.
A funcionária voltou e nos guiou através do portal dividido pela cortina. Ali dentro estavam os vestidos mais lindos que eu já havia visto na vida. Alguns manequins usavam vestimentas vermelhas com pedras incrustadas tão lindas que me fizeram cogitar casar apenas para usá-las. Se eu e não resolvêssemos a situação do noivado falso, eu provavelmente precisaria de um casamento falso também, e não reclamaria em usar um vestido falso daqueles.
Flora pediu licença e foi ao banheiro, deixando-me sozinha entre milhares de vestidos berrantes. Dedilhei alguns tecidos, pensando em quanto os casamentos indianos eram bonitos. No ano passado, fui em um que durou praticamente duas semanas. Kabir e dona senhora minha mãe jamais poderiam desconfiar do tanto que eu bebi naqueles dias. Eu juro que vi um duende em algum ponto entre uma ressaca e outra.
E quando Flora me ligou no dia anterior, havia acabado de chegar na casa da minha mãe. Tentei dizer que não, mas ela parecia animada. E lembrei-me de dizendo que Flora não tinha muitas amigas, então decidi ir como alguém que realmente gostaria da amizade dela.
Como se Flora fosse querer ser sua amiga depois que anunciar o término, não é?
Sacudi o pensamento com os ombros e suspirei. Eu precisava me lembrar constantemente de que aquilo acabaria em três semanas. Mas Flora era um amor de pessoa, e eu não conseguia resistir a alguém pedindo minha ajuda.
O celular vibrou em meu bolso. Abri um sorriso largo ao ver que era Guilherme Luchini checando se eu estava bem. Eu estava respondendo quando Flora voltou.
— Ei, vamos lá? — Segurou meu pulso e me guiou pelos vestidos das araras.
Passei o dedo por entre alguns modelos, sentindo o tecido e me chocando com os valores nas etiquetas. Senti a ponta dos dedos formigarem a cada casa decimal dos vestidos. Eu pensava em me casar algum dia, mas definitivamente não gostava de pensar no valor da cerimônia. Flora puxou uma vestimenta vermelha de um cabide, e precisei tentar com muito custo não babar no chão.
O top vermelho de manga três quartos era incrustado de desenhos dourados de flores e galhos cobrindo o redor dos seios. Pedrarias delicadas desciam até o decote e padronizavam com as mangas douradas. A saia era vermelha, mas desenhos brancos e dourados preenchiam a bainha e subiam pelo tecido, dando a impressão de movimento. Conchas e ondas pareciam dar vida ao material pesado. Junto a ele estava um sári também vermelho, mas ele era mais simples. Aquele sári indicava que Flora seria uma mulher casada.
— Pela sua cara, acho que amou esse vestido, não é? — Flora comentou com um risinho ao me ver babando. Cocei a nuca desconcertada e assenti.
— Você ficaria incrível nele, de verdade. — Flora analisou o tecido, mas torceu o nariz.
— Eu não queria usar vermelho, pensei em algo mais dourado. Mas, ei, você já decidiu o vestido?
— Hã?
— O casamento — apontou como se eu fosse meio lerda. Pisquei algumas vezes até entender.
Eu sou jornalista, preciso de respostas rápidas e inteligentes!
— Ah, sim! Eu e . É, desculpa. Não, não tenho um vestido — Flora gargalhou com a mão sobre a barriga e colocou a roupa vermelha em minhas mãos. Uma bela jornalista, eu sou.
— Prove este. — O tecido parecia pesar o dobro agora. Mudei o peso do corpo desconfortavelmente. As palavras de Kabir ecoavam em minha mente, dizendo que eu não era uma mentirosa. Acho que ele estava errado.
— Eu não acho que seja uma boa ideia. Só estou aqui para te acompanhar.
— Enquanto você se troca, eu vou atrás de um chai para nós duas. Isso é me acompanhar também. — Flora sorriu docemente e encarou a roupa que eu segurava. — é um homem de sorte. Eu sempre imaginei que houvesse algo entre vocês dois, sabia?
— Ah, é? — Encarei o tecido em minhas mãos. De repente, o ar condicionado parecia insignificante. Eu sabia que estava ficando vermelha e suada.
— Sim! Ele achava que me enganaria com aquele papo de “somos apenas amigos” e “ela é como uma irmã para mim”. Ahã, até parece.
Meu Deus, como está quente nesse lugar!
— Querida, você está bem? — Flora abanou com as unhas perfeitamente feitas em frente ao meu rosto. — Vou pegar uma água gelada e pedir para diminuírem a temperatura.
Flora sumiu novamente, e as paredes pareciam me engolir. Aquela mentira estava me consumindo. E desde quando tantas pessoas achavam que eu e tínhamos um relacionamento? Flora, Kabir, minha mãe, minhas amigas…
Deixei que a saia vermelha em minhas mãos fosse alvo do meu aperto nervoso. A situação estava saindo muito do meu controle. Eu jamais imaginaria estar em uma posição como essa, mentindo para todos e precisando ouvir situações desconfortáveis sobre como eu e meu melhor amigo somos um bom casal, quando na verdade somos apenas amigos.
me amava como irmã! Aquilo já era o suficiente para mim, por que não era para outras pessoas?
Aquela sensação ruim no estômago havia voltado, a mesma que senti quando vi ir atrás de Flaviane na noite anterior. Tentar desvendar o que aquilo significava parecia mais um trabalho cansativo, e eu não queria nenhuma outra complicação adicionada ao que eu já precisava resolver.
— Aqui está. — A funcionária que nos atendeu entregou um chai para mim. Tomei a bebida feita de especiarias e leite como se fosse um abraço. — E já diminui o ar condicionado, como você pediu.
Eu me abstraí da conversa enquanto Flora falava com a mulher sobre as provas dos vestidos. Foi um erro ter vindo aqui. Tudo isso é um erro. Flora me odiaria quando descobrisse sobre o término, me odiaria se descobrisse aquela mentira toda. Quer dizer, eu estou mentindo para ela neste momento! Que tipo de pessoa eu sou?
Pensei em mentir e dizer que estava passando mal, mas aquela seria mais uma farsa adicionada às outras, e eu não conseguiria mais adicionar mentira alguma àquela pilha.
Eu consigo aguentar até a hora de ir embora. É só manter o assunto do casamento distante, o que seria difícil, levando em conta que estávamos ali para provar vestidos de casamento.
É, aquilo seria um desastre.
Flora saiu para provar uma vestimenta parecida com a que eu segurava em mãos, mas dourada e mais discreta. Sentei-me no banco de frente para o provador. A roupa que ela havia me dado ainda estava comigo, e eu não parecia querer me livrar dela tão cedo.
— O que achamos? — questionou ao sair do provador com a mão na cintura.
Flora parecia uma mina de ouro em movimento. Ela tinha razão em ter usado uma trança em coroa naquele dia, já que um véu dourado transparente cobria seu rosto até a altura da cintura. O top chegava a quatro dedos abaixo de seus seios e era incrustado de peças douradas. O tecido reluzia contra a luz do provador, e o farfalhar do tecido era o único som ouvido, mascarando muito bem meus murmúrios sem noção diante dela.
— Se o seu noivo não desmaiar te vendo usar essa roupa, ele não te merece.
Flora gargalhou com a mão sobre a boca e subiu em um pequeno palanque, observando seu reflexo no espelho. E eu me vi atrás dela, com os olhos arregalados e a boca escancarada ao vê-la usar aquela roupa. A saia cobria o pequeno palco, e Flora era uma infinidade de tecido e beleza. Os desenhos em toda a roupa eram de fios ondulados e conchas na bainha da saia e na manga do top. Flora girou, e o vestido fez a curva junto com ela.
— Eu queria poder usar isso para trabalhar — Flora confessou ao me encarar pelo espelho, e foi a minha vez de gargalhar. Sua pele escura dava vida ao tom de dourado. Ela tirou o véu e mordeu o lábio inferior.
— O que houve? Não gostou de algo? — questionei seriamente e levantei-me, deixando a roupa sobre o banco.
— Será que Kadir vai gostar? — ela ponderou seriamente, passando a mão pelo tecido da saia com súbita falta de coragem. Sorri compreensiva em sua direção.
— Ele vai amar, Flora — assegurei-a com um sorriso. — Você é a noiva mais bonita que eu já vi, e ele também vai pensar isso. Mas a questão é: você consegue se imaginar usando essa roupa? — Dei a volta ao seu redor, parando ao seu lado. Flora continuou encarando o reflexo no espelho, seu peito subia e descia calmamente.
Ali, parada, ela parecia uma divindade. Suas mãos delicadas estavam cruzadas sobre o umbigo, os olhos grandes escaneavam toda a extensão da roupa, parecendo pensativa.
— Eu nunca me senti tão linda — ela admitiu com os olhos cheios de lágrimas. Controlei a ardência em meus próprios olhos ao vê-la limpar as lágrimas tímidas com as costas das mãos.
Ei, você não pode se dar ao luxo de ser amiga do seu futuro ex-noivo!!!
Minha consciência me puxou de volta à realidade com um soco. Empertiguei-me em minha própria postura, pigarreando levemente.
— Eu achei o meu vestido — Flora encarou com um sorriso o seu reflexo no espelho.
— Você não vai provar nenhum outro? — questionei confusa.
— Quando você acha o certo, não é preciso provar mais nenhum — ela me encarou com um sorriso enigmático. — Serve tanto para homens quanto para vestidos. — Gargalhei em sua direção enquanto ela se sentava ao meu lado e tomava seu chai. Nós duas permanecemos encarando o reflexo de Flora. O vestido parecia ainda mais bonito a cada minuto, pois novos detalhes surgiam conforme encarávamos sua extensão.
— Obrigada por me chamar — confidenciei ao fitá-la de verdade. Flora sorriu e segurou minha mão, seus dedos quentes pelo chai fizeram com que eu me sentisse mais calma.
— Eu fico feliz que possamos ser amigas, cunhadinha.
E ali estava a memória de que nada daquilo era real. Tentei controlar o desconforto e apenas sorri.
— Eu também, Flora.
— Bem, agora você precisa provar a roupa! Está segurando isso desde que chegamos aqui! — Flora deu um tapinha de leve em meu braço.
— Eu só vou provar porque eu nunca coloquei um desses na vida — condicionei. Ela revirou os olhos e me empurrou levemente, apontando para o provador com a cabeça.
— Vou te esperar aqui para podermos tirar uma foto e mandarmos para o .
— Hm, melhor não. Não quero que me veja assim — comentei nervosamente. Flora mordeu o lábio inferior e sorriu.
— Tudo bem, mas quero a foto mesmo assim, para recordação.
Por que ela precisava ser tão legal?
Caminhei em direção ao provador. Enquanto tirava a roupa e vestia o top, pensava em como havia chegado até ali. Eu não me arrependia de ter ajudado . Mas me arrependia por precisar mentir para Flora, para a mãe de e para todos ao nosso redor.
O tecido deslizava por minha pele tranquilamente. Era uma pena estar provando aquele vestido após sair do metrô sujo de São Paulo, mas, ei, ossos do ofício do paulistano.
— , eu estou recebendo uma ligação! Já volto! — Flora anunciou próxima à cortina do provador. Dei meu ok e continuei arrumando o tecido. Eram muitos detalhes e muito pano em jogo, então tomei o cuidado para não comprometer aquela peça absurdamente cara. A etiqueta indicava que aquela roupa valia pelo menos três salários meus. Porém, ao me encarar no espelho, todos aqueles sentimentos foram colocados em espera — o medo, as mentiras, a raiva e o cansaço.
Eu estava deslumbrante.
A saia, assim como eu esperava, parecia ter vida própria. O top pinicava meus seios em contato com o material, mas nem de perto me incomodava verdadeiramente. O tecido comprido e longo que adornava a roupa era laranja com bolinhas douradas. Por um segundo, fechei os olhos e consegui imaginar uma cerimônia diante de mim. sorria em minha direção e me puxava para dançar, usando a mesma roupa tradicional que o vi usar no dia do almoço em família. Um arrepio percorreu minhas pernas. Abri os olhos e pisquei para meu reflexo no espelho do provador apertado. Meu peito subia e descia acelerado diante de minhas fantasias. Eu estava lendo demais! Malditos escritores de romance nacionais, vocês me pagam!
Não sabia onde colocar as mãos, então as manti em minha cintura, meus olhos não deixaram de conferir que meus seios estavam bem colocados no top, minha cintura deixava suas gordurinhas passando pela barriga, mas nem aquilo me incomodava. Algumas estrias em meu braço estavam salientes quando arrumava as mangas. Eu estava estranhamente satisfeita com o resultado. Talvez me casar não fosse tão ruim assim. Mesmo que desse errado, pelo menos as fotos seriam lindas.
Ouvi a cortina do corredor ser aberta. Flora havia voltado. Encarei-me uma última vez e joguei o tecido sobre o rosto, como o véu.
— Eu nunca me senti tão misteriosa, sabia? — exclamei com uma risada. — Eu adoro os casamentos brasileiros, mas eles nem de perto têm a mesma graça que os casamentos indianos. — Segurei a cortina do provador e gargalhei antes de continuar. — Sério, imagina derrubar molho nisso aqui? Eu nem consigo imaginar o trabalho para—
Interrompi-me ao ver me encarando quando abri a cortina por completo. Ele estava parado no meio da sala de vestidos de noiva, e seu queixo pareceu cair ao me ver parada diante dele. Fui tomada por uma onda de vergonha e nervosismo. A noção do ridículo caiu sobre mim rapidamente.
— , eu posso explicar! — comecei a exclamar antes de Flora aparecer por trás dele com um sorriso.
— Eu queria poder enquadrar a cara do meu irmão agora — Flora gargalhou, mas permaneci com meu olhar apreensivo na direção de . Ele não esboçou nenhuma reação. — ? — Flora estalou os dedos diante dos olhos dele. Apoiei as mãos na cintura.
— Estou tão horrenda assim? — questionei com a sobrancelha arqueada, o que finalmente fez com que pigarreasse.
— Você é a mulher mais linda do mundo, . — Fui tomada por uma onda de vergonha. Senti minhas bochechas enrubescerem diante do comentário. Flora bateu palminhas e sorriu de orelha a orelha, mas não tirava os olhos de mim, percorrendo cada centímetro de pele com os olhos.
— Pelo amor de Deus, pare de devorar minha cunhada com os olhos! — Flora gargalhou.
desviou o olhar para ela pela primeira vez. — , suba no mini palco! — Flora ordenou com um sorriso.
— Flora, é melhor não. Isso foi bobagem. — Tentei me esconder de novo no provador, mas foi quem tomou a dianteira.
— Você claramente teve o maior esforço para colocar o vestido. Acho que é justo aproveitar mais um pouco, não? — Sua voz estava mais rouca e mais altiva.
Pisquei algumas vezes sem reação. andou até mim com um sorriso e segurou minha mão, puxando-me até o pequeno palanque. Meus pés descalços encostaram na madeira gelada. Diante de mim estava o meu reflexo completo. O véu cobria a vergonha em minhas bochechas e meus lábios tremendo de nervosismo. e Flora me encaravam pelo espelho.
— Se você não se casar nesse vestido, eu vou fazer um escândalo — Flora comentou com os olhos arregalados. Encarei-a pelo espelho com desconforto.
— Ele é caro, Flora.
— Eu pago.
Dessa vez, até a encarou.
— Não é necessário, Flora.
— É sim! — ela exclamou com o cenho franzido. — Esse é o meu presente de casamento.
— O seu presente de casamento é adorável — comecei. — Mas isso é muito caro, Flora, de verdade.
— Sim. Não podemos aceitar — embarcou na onda.
— nunca nega presentes meus — ela começou com o semblante sério. — Eu vou pagar pelo meu vestido. Conversem sobre isso. Mas eu não pretendo desistir tão fácil — deu o ultimato e sumiu pela cortina de veludo.
Logo, eu e éramos os únicos ali. Desci do palanque rapidamente, pronta para voltar ao provador e torcer para ir parar em Nárnia. Fui impedida por , que se adiantou antes que eu fechasse a cortina atrás de mim.
— Desculpa — comecei o discurso imediatamente. Por sorte, o véu protegia minha feição desconcertada. — Eu só me deixei levar porque a roupa é tão bonita, e Flora insistiu. Foi tão estúpido, eu sei. Eu nem sei o que dizer, só desculpa.
permaneceu em silêncio, e então gargalhou. Gargalhou tão alto e forte que precisei cruzar os braços. A vergonha agora era substituída por raiva.
— Por que você está rindo?! Eu falei alguma coisa engraçada, por acaso?
— É só que eu nunca te vi com tanta vergonha antes! — ele exclamou sorridente. — É muito fofo, sabia?
— Vai à merda — xinguei e dei um tapa em seu braço. — Eu estava aqui morta de preocupação, e você faz piada?!
— … — ele começou ao parar de rir. Suas mãos foram em direção à bainha do véu, puxando o tecido para cima com delicadeza. Logo meu rosto estava descoberto e me encarava livremente. O vento gelado do ar condicionado atingiu minhas maçãs do rosto. — Você nunca precisa sentir vergonha comigo, sabe disso, não é?
— Eu sei, mas eu estou usando uma roupa tradicional indiana de um casamento, e nem vamos nos casar! — exclamei enquanto gesticulava. permaneceu brincando com o tecido do véu em suas mãos enquanto sorria.
— O que eu falei é verdade, sabia? — franzi o cenho. — Você é a mulher mais linda do mundo.
— Para com isso, . — Busquei força em minha voz para dizer, mas eu sequer achava que ele já havia me encarado alguma vez como agora. Fixei meus olhos em seu rosto, em como suas sobrancelhas grossas estavam franzidas, em suas bochechas vermelhas pelo calor e seus lábios cheios.
— Por que você nunca aceita meus elogios, ? — perguntou ao soltar a ponta do véu. Eu não tinha resposta para aquilo.
— Porque elogios de amigo não contam — arqueou a sobrancelha. O ar em meus pulmões sumiu. Nossos corpos estavam próximos demais. Eu podia sentir sua respiração em meu rosto e o calor de sua pele próxima à minha.
Você sabe que, se quiser uma aventura sexual insana, pode contar comigo.
— Meus elogios deveriam contar. — A voz de soou próxima, deixei que meus olhos caíssem para seus lábios, subindo novamente para seu olhar tenso em minha direção.
não tinha ideia do quanto os elogios dele contavam para mim. Eu não conseguia falar, sabia que diria alguma besteira.
— Eu gosto quando você me elogia, . — Arrumei coragem para falar sem gaguejar. sorriu e brincou com a ponta do véu. Segui seu olhar, meu peito já doía por não estar respirando direito.
Gritei assustada ao ouvir o barulho do meu celular cortar a cortina de tensão entre nós dois. não deu risada do meu susto ou do meu grito, o que era impossível. Ele sempre ria. Cortei nosso contato visual com muito custo e virei-me de costas para pegar meu aparelho entre as roupas que usava antes. A saia farfalhou com o movimento. O nome de Guilherme brilhava na tela com o nome “O Italiano”. seguiu meu olhar e observou o mesmo que eu. Sua expressão se tornou impassível por um segundo, voltando logo ao seu sorriso descontraído habitual.
— Você deveria atender o italiano — ele indicou o celular com a cabeça e colocou a mão dentro dos bolsos da calça jeans. — Eu vou atrás de Flora, ver por que está demorando tanto para comprar o vestido. Já volto.
Segurei o celular em mãos e atendi o telefone. Mas mesmo após a voz de Guilherme soar pela ligação, a voz de era a que ecoava em meus ouvidos.
Capítulo quatorze
Quando Flora me mandou mensagem avisando que e ela estavam na Tiradentes comprando roupas, decidi passar para dizer oi para as duas.
Ou era isso ou passar o dia vendo The Office enquanto esperava a segunda-feira chegar. Eu preferia rir com , então a decisão pareceu óbvia. Aproveitei que estava me sentindo selvagem e resolvi ir de carro. Era domingo e o trânsito estaria tranquilo.
Cruzei os bairros com um leve desconforto. Eu odiava dirigir na metrópole. Todos buzinavam demais e se irritavam demais, além de o trânsito ser caótico. Era mais fácil pegar o metrô ou andar de bicicleta, mas hoje era domingo, e eu estava com pressa em ir até as duas. Precisava admitir que, em parte, era por medo de acabar surtando e contando toda a verdade para minha irmã.
Quando mamadi anunciou no grupo da família que estava indisposta e que não iria à prova, eu sabia que era uma desculpa esfarrapada. Até parece que estar doente era um motivo para mamadi deixar de fazer o que quisesse. Uma vez ela foi com pneumonia buscar Flora numa balada, não preciso dizer que aquele dia foi uma prova de fogo para a nossa família. No final, Flora chegou em casa com um pênis de borracha na testa e mamadi berrava atrás dela. Acho que minha irmã nunca mais foi a uma balada desde então.
Estacionei o carro em um estacionamento com o valor por hora absurdamente caro e subi as escadas estreitas até o terceiro andar. Acenei para um homem grande parado em frente ao caixa. Flora apareceu por entre uma cortina e me abraçou com força. Observei vários vestidos enfiados em sacolas e dispostos em diversos cabides, aquilo parecia uma festa de cores e tecidos bufantes.
— Sua noiva está lá dentro! — Flora anunciou animadamente. Seus cabelos estavam levemente desarrumados. — Eu já provei meu vestido e decidi qual vou levar. Acho que você vai ter uma surpresa legal quando entrar na sala de prova!
— Eu posso fazer isso? — questionei com o cenho franzido.
— Claro que pode. Mamadi pediu para abrirem a loja para nós hoje.
— Ser rico tem suas regalias — provoquei com um sorriso. Flora revirou os olhos.
— E você só não aproveita porque é orgulhoso demais para isso.
— Talvez. — Dei de ombros e encarei as paredes pintadas de branco, esperando que aparecesse por ali a qualquer instante.
— Vá lá dentro, já estou indo. — Minha irmã apontou para uma cortina vermelha de tecido de veludo. Caminhei a passadas largas até a entrada da pequena saleta. Ao abrir a cortina, ouvi a risada de e fui tomado por uma vontade de sorrir junto. Minha amiga tinha esse efeito sobre mim, na realidade, sobre qualquer pessoa que estivesse com ela.
Não a vi quando entrei na sub-sala, e percebi que sua voz vinha do provador.
Quando ela saiu, tive a certeza de que meu coração vomitou dentro de mim. Uma vez, quando fui a um museu com a escola, observei uma releitura de uma rainha egípcia alta com o vestido mais lindo que eu havia visto. Na época, com 14 anos, decidi que só me envolveria com uma mulher se ela fosse linda daquela maneira. Eu, tão novo, não seria capaz de imaginar que seria ainda mais linda do que a egípcia na parede do museu.
Eu sequer podia acreditar que era possível que ela ficasse mais bonita. era uma caixinha de surpresas. E vê-la tímida aumentou meu nível de admiração mil vezes mais. Cerrei meus punhos e abri e fechei as mãos algumas vezes. Eu precisava dizer algo, porém sentia que qualquer coisa estragaria o que eu realmente queria dizer. Não havia palavras na língua portuguesa boas o suficiente para descrever a beleza dela naquele momento, e mesmo que houvesse, não seria o suficiente.
Quando vi que o italiano a ligava, foi como um balde de água fria no pequeno faz de conta que minha mente insistia em criar quando e eu nos aproximávamos demais. Pigarreei ao alcançar Flora do lado de fora. Ela dava risada com uma moça baixinha e o mesmo homem do caixa.
— Ela está trocando de roupa e já sai.
— , por que você não aceita o presente? — Flora questionou seriamente, puxando-me de canto para longe dos ouvidos dos donos da loja.
— Eu já falei, é caro demais.
— Você nunca recusou um presente meu por causa de valor. — Suspirei pesadamente e encarei o teto.
Pequenos arrepios cruzavam meu corpo ao lembrar da tensão que havia sentido na sala minutos atrás.
— jamais aceitaria. Ela é tão orgulhosa quanto você diz que eu sou. — Flora franziu o cenho e deu de ombros.
— Duvido.
— É sério — reforcei mais uma vez e controlei uma gargalhada antes de me justificar. — Uma vez ela desmaiou e se recusou a ir para o hospital, porque quem queria levá-la era um colega de trabalho que ela odiava. — Flora arregalou os olhos. — Mas ela melhorou muito, sério.
— Que horror, ! Você não pode sair falando esse tipo de coisa sobre a sua noiva para qualquer um!
— E você é qualquer um? — questionei confuso diante de sua revolta.
— Meu Deus, você é um tapado — ela praticamente rosnou e me deu um tapa na cabeça. — basicamente fez uma caridade ao aceitar casar com você, sabia?
— Ela é linda pra caramba, né? — Tentei segurar o sorriso crescente em meus lábios, mas era ridículo sequer tentar. Flora cruzou os braços e sorriu orgulhosa.
— Ela é. Fico feliz que finalmente tenha conquistado ela, . — Olhei para trás de seu ombro. não havia saído.
— Flora, você não contou nada para , não é? — questionei em tom baixo e segurei seu braço, puxando-a para mais longe. Flora arqueou a sobrancelha.
— Não, claro que não. Ué, por quê? Você está escondendo isso dela? Mas é tão fofo! — Flora parecia confusa.
Queria dizer a ela a verdade e abrir o jogo sobre e eu, mas eu não podia. Eu sabia que não me perdoaria por expor tudo aquilo enquanto ela estivesse por perto, e também sabia que Flora ficaria chateada.
— Ah, aquele evento com nossa família foi cancelado. — Flora captou minha atenção novamente.
— Hã?
— O daqui três semanas. Mamadi acabou de mandar mensagem no grupo da família avisando. E ela me pediu para te dizer que vamos viajar. Você comentou que estaria de folga, não é? — Tentei falar algo, mas apenas gaguejei. Como sairia daquela?
— Então, não vou tirar folga, sabe como é… — Flora cruzou os braços e revirou os olhos.
— Mamadi já ligou para a sua empresa e conferiu sua folga.
— Ela fez o quê?! — exclamei exasperado e bati com as mãos sobre as coxas. Flora deu de ombros.
— Você está surpreso?
— Não, mas isso não deixa a situação menos revoltante!
— Lide com isso, Patel. Nós vamos para aquela praia particular no Rio de Janeiro do amigo de mamadi.
— Você quer dizer amante? — questionei com a sobrancelha arqueada. Flora me fitou seriamente com os lábios crispados.
— Você não sabe se eles são amantes ou não, e não é justo com mamadi que você fale essas coisas sobre ela. — Foi a minha vez de cruzar os braços sobre o peito e fitá-la em descrença.
— Eles eram amantes, sim, Flora. E você sabe disso.
— Mamadi nunca admitiu nada — ela defendeu.
— Como se a nossa família falasse sobre seus problemas abertamente, não é? — provoquei, mas Flora não respondeu, tomei aquilo como incentivo para continuar. — Você, por exemplo, sequer abriu a boca para falar sobre o casamento que mamadi te forçou a ter.
Flora levantou a cabeça subitamente e fechou uma carranca.
— Você não está sendo justo.
— Ah, por que seu casamento arranjado é?
— Você só diz essas coisas porque você é homem, ! — Flora de repente pareceu explodir em um hindi perfeito. Precisei me forçar para entender o que dizia. — Acha que é tão fácil virar as costas para a minha família como você fez? Porque não é! E, ao contrário do que você pode pensar, eu estou feliz com essa situação. Eu e Kadir começamos isso como um acordo, mas eu estou apaixonada por ele, que droga!
Troquei o peso de um pé para o outro desconfortavelmente. Flora respirava alto. Fiquei aliviado por ela ter explodido comigo em nosso idioma materno, parecia mais aliviada ao final.
— Foi mal. Eu não sabia como você estava lidando com isso tudo.
— É, como se a nossa família falasse sobre seus problemas abertamente, não é? — ela comentou com ironia escorrendo por suas palavras.
— Somos iguais aos nossos pais, não é? — questionei seriamente. Flora assentiu.
— Para a nossa maior infelicidade. — Dei um empurrão em seu ombro. Encarei meus pés e suspirei. Flora e eu nunca brigamos por mais de dez segundos.
— O que acha de tentarmos sermos menos parecidos com eles e sairmos para jantar e conversarmos sobre você e Kadir? — Flora resmungou com uma expressão exasperada.
— Não dá pra forçar essas coisas, !
— Claro que dá! — retruquei. — Casos de família por acaso é algo espontâneo?
— As pessoas são pagas para ir àquele programa. — Flora fez um gesto de desdém com as mãos. Coloquei a mão esquerda no peito e fiz uma expressão de choque.
— Como você ousa dizer que aquela obra nacional não é espontânea? — Flora revirou os olhos.
— Além disso, eu e Kadir estamos indo à terapia de casal. — Deu de ombros. Tentei controlar o choque em minhas feições.
— Ele é um indiano que vai ao psicólogo? Uau, realmente é algo novo.
— Pois é. — Flora passou as mãos pelo cabelo e sorriu para o chão. — A gente vai construir uma família, e eu preciso do seu apoio nisso, . Eu estou apoiando você e a , não estou?
— Sobre isso… — comecei com leve receio. Eu queria ser honesto com minha irmã sobre o que estava acontecendo em minha vida, e isso incluía falar sobre .
— Ah, quero levá-la para almoçar. E hoje. Você vai sumir daqui e me deixar conversar com paz com minha cunhada, ok? — Olhei para um ponto atrás de Flora, onde já estava de volta às suas roupas cotidianas. Calça jeans e blusa laranja. Aquela era uma combinação nova. Talvez ela usasse aquele conjunto significando “hoje vou matar o do coração”.
usando uma roupa de noiva não era uma visão que eu esperava algum dia presenciar. Mas a surpresa foi absurdamente devastadora. Ela estava belíssima. E não sabia aceitar meus elogios. Sempre foi assim, desviava deles com alguma piada ou uma réplica sobre a minha aparência.
No início da faculdade, achava que era o jeito dela de tentar me dizer que não estava interessada em mim, mas isso até descobrir que ela não costumava aceitar elogios de pessoas que a conheciam. Por quê? Eu não tenho ideia, mas é quase uma missão pessoal fazê-la aceitar meus elogios e entendê-los. Talvez eu tenha muito tempo livre em mãos para me dedicar a essas bobagens.
— estava de saída. — Flora apontou para mim com um sorriso. piscou algumas vezes em sinal de nervosismo.
— Ah, é? Mas ele não acabou de chegar? — me encarou suplicante com o olhar. Eu não ganharia aquela batalha da minha irmã. E eu poderia me divertir um pouco com .
— Estou muito cansado. Passei a noite toda pensando na minha noiva. — Pisquei em sua direção, começou a ficar vermelha. Flora achou adorável, mas eu sabia que a vermelhidão decorria da raiva. — Eu preciso dormir um pouco.
— Sim, e vamos poder falar mal dele o quanto quisermos — minha irmã comentou. Arqueei a sobrancelha em sua direção, subitamente interessado naquele almoço.
— Eu não concordo com essa estratégia — argumentei.
— No final do dia, podemos ir a um tanque de tiros e colocar as meias fedidas dele como alvo. — continuou com uma gargalhada, ao passo que Flora entrou na onda e começou a detalhar atitudes minhas que a irritavam.
E apesar de saber que estávamos em uma redoma de vidro e que a qualquer momento tudo poderia desabar, me permiti pensar em como seria se nada daquilo fosse uma mentira. Se realmente me amasse. Decidi ir embora antes que minha mente voltasse a me sacanear. Eu não entraria naquilo novamente. Nunca mais.
Capítulo quinze
Caixas de mudança são muito pesadas, e eu não tenho uma coluna boa. Laís resmungava da mesma dor nas costas enquanto apoiava o pequeno móvel de cabeceira ao lado do colchão de Lorena.
— Pelo amor de Deus, Lorena vai morar com o namorado ou com três pessoas? — minha amiga exclamou e limpou uma camada de suor no paninho amarelo em sua mão.
Apoiei-me contra a parede e respirei fundo, tomando um gole d'água.
— Pelo que Lorena me contou, Marcos ainda está decidindo o que vai manter desde o seu dead name e essas coisas — comentei. Laís assentiu em compreensão.
Nós todas esperávamos que Lorena e aquela-que-não-deve-ser-pronunciada fossem ficar juntas pelo resto da vida, mas nenhuma delas parecia ter coragem de pedir uma a outra para morarem juntas, e então, quando a parceira de Lorena se assumiu trans e a família de Marcos não aceitou bem, os dois tomaram a decisão de morarem juntos. Estávamos felizes com a decisão, e eles dois também. Minhas amigas mereciam toda a felicidade do mundo, e Marcos era uma ótima pessoa.
Peguei-me pensando se algum dia estaria com alguém que minhas amigas apoiassem integralmente. Até agora, eu havia feito um péssimo trabalho nisso. Meu dedo podre me acompanhava por todo lado.
— Então quer dizer que você provou um vestido de casamento? — Laura questionou ao entrar no quarto. Ela já havia desistido das roupas, usava apenas um top e um shorts que tirou de uma das caixas de Lorena. Estava um calor infernal às oito da noite.
Após o nosso trabalho naquela terça, uma semana após o incidente do vestido, todas topamos vir ajudar Marcos e Lorena com a mudança para o novo apartamento em um bairro da zona oeste, próximo ao trabalho de ambos. Eu trabalhava próximo dali, então foi aliviante só precisar pegar um ônibus até lá.
— Pois é, provei. — Prendi o cabelo em um coque e tirei minha camisa, ficando só de sutiã junto com Laura. O vento atingiu meu colo e suspirei aliviada.
— E o ? — Laís questionou cautelosamente.
Nós não havíamos falado mais nada sobre o meu namoro falso com , apesar das insistentes provocações. Eu sabia que as meninas diriam verdades que eu ainda não estava pronta para aceitar, ainda mais depois de Guilherme.
E falando no italiano, nós estávamos nos dando muito bem. Conversamos durante o feriado prolongado e combinamos de jantar naquele sábado para que ele me ajudasse na entrevista. E eu depois transaria com ele. Essa última parte não era confirmada, mas eu faria um esforço para que acontecesse.
A motorista do Uber estava certa sobre o seu conselho. E agora que meu período fértil havia acabado, eu tinha mais clareza da situação ao meu redor. Era meramente hormonal o que eu senti por — os arrepios, o nervosismo, a vontade massiva de fazer da cara dele um banco. Agora eu era uma nova mulher.
— O deve ter babado até fazer uma poça — Laura provocou com uma risada curta.
— Ah, mas quem não? — respondi e comecei a puxar algumas caixas do corredor, colocando-as no quarto ao lado do guarda-roupa.
— Tem razão, bom ponto. — Laura deu de ombros e sorriu em minha direção. — Estamos torcendo muito pelo seu emprego, . De verdade. A gente quer te ver brilhando na televisão brasileira. — Controlei as lágrimas que me pareciam impossíveis de segurar.
Minhas amigas eram tudo pra mim. Em todos os momentos, estando certa ou errada, elas estavam lá. Eu tive a maior sorte do mundo por ter pessoas tão preciosas ao meu lado. Eu morreria e mataria por elas, mas mais morreria, porque matar me mandaria para a cadeia, o que me impediria de manter o contato com elas. Só por isso. Com quem eu conversaria sobre as fofocas da cadeia?
— Eu espero conseguir, mas não quero criar expectativa. Guilherme vai me ajudar com a entrevista. — Laís mordeu o lábio inferior e arqueou as sobrancelhas, dando um sorriso arteiro.
— Ele te ajudou com muita coisa na sexta, né? Você foi até uma boa anfitriã e recebeu o nosso italiano com um belo de um chá brasileiríssimo! — Laura gargalhou com a fala de Laís, curvando-se para frente. Eu a acompanhei sem conter o bom humor. Estar com elas, não importava a situação, era motivo para me sentir renovada.
— , sua vida está muito movimentada — Laura comentou com um sorriso sapeca. — Dois homens, um noivo falso, uma cunhada fofa, proposta de promoção… Nossa, quem diria que você se colocaria nessas situações? — Cerrei os olhos em sua direção.
— O que quer dizer com isso?
— O que eu quero dizer é o seguinte, — ela começou, buscando em Laís apoio para minhas respostas — você não é uma pessoa espontânea quando se trata da sua vida amorosa. — Pisquei algumas vezes. — Você tenta controlar tudo ao seu redor, se estressa com coisas pequenas que fogem do seu controle e nunca se dá uma chance sem ser no seu ambiente de trabalho.
Ouvir aquilo não era o que eu esperava para a minha noite, apesar de estarem com razão. Laís apenas assentiu em concordância e tomou outro gole d'água.
— Ficamos felizes que você esteja se descobrindo mais — Laís completou o pensamento. Ruminei aquelas palavras por algum tempo, e eventualmente acabei sorrindo.
— Eu esqueci o bem que me fazia. — Laura e Laís trocaram olhares cúmplices. — Sei que vocês não acreditam na nossa amizade, mas a verdade é que eu e temos uma amizade bonita, cara, e isso é raro de achar.
— Você tem razão — Laís cedeu e sentou-se no chão com as costas apoiadas contra a parede. Ouvimos um murmúrio vindo do corredor. Laura torceu o nariz e se levantou para fechar a porta.
— Os dois estão ocupados. — Apontou com a cabeça para a porta fechada. Fiz uma careta, e as três gargalharam juntas.
— E como foi o almoço com a sua cunhada falsa? — Laura questionou com a voz mais alta, tentando impedir qualquer uma de nós três de ouvir algo que não deveríamos.
— Foi bom.
E era verdade. Flora era um amor de pessoa, e ela pagou pelo jantar. Eu e minha carteira agradecemos muitíssimo. Eu esquecia por vezes que Flora administrava algumas empresas, e por isso ganhava muito mais do que eu ganharia na vida. Por isso, quando fomos a um restaurante, que o nome eu sequer conseguia pronunciar, em um bairro nobre, respirei aliviada por ela dizer que era por conta dela.
Eu podia ser orgulhosa com muitas coisas, mas não com pessoas pagando minha comida.
Durante nossa conversa, descobri que Flora amava seu noivo e estava pronta para passar sua vida com ele. Aquilo me surpreendeu. Eu não me imaginaria amando alguém que fui forçada a me casar. Não mesmo. Apenas o pensamento foi o suficiente para parecer esmagar meu peito. Eu preferia estar sozinha do que me sentir presa a alguém com quem não valia a pena viver.
Você demorou demais para se ligar com Bruno.
E ali estava a questão que me incomodava acerca de Bruno. Enrolei demais para cortar o que eu já sabia não ter futuro. Aquilo nunca havia acontecido. Eu estava ficando preguiçosa demais e acomodada demais. Talvez fosse bom mudar de emprego, ir para outra cidade, começar do zero.
E quando Flora começou a falar sobre o casamento animadamente, eu permaneci com os olhos vidrados nela. Aquela mulher tinha um poder ao redor de si de conquistar qualquer pessoa. Eu percebi quando o garçom veio nos atender e seu rosto se iluminou diante da simpatia dela. E quem não se iluminaria?
— Sabe, sempre foi muito palhaço… — ela começou com um sorriso enquanto arrastava a ponta das unhas sobre a beirada da taça de vinho praticamente vazia.
Ao nosso redor, casais e grupos de amigos se reuniam. O ambiente era preenchido por risadas, conversas e por música ao vivo. Enfiei mais uma garfada de massa na boca e praticamente gemi de felicidade. A comida era muito boa!
— Hm — murmurei entre mastigadas. — Palhaço é pouco, Flora.
— Sim, você razão. — Flora gargalhou. — De qualquer modo, eu sempre soube que ele era um galinha na faculdade, com a atlética e tudo mais. é o tipo de cara que não é lembrado pela beleza absurda, mas pelo senso de humor. — Maneei com a cabeça, sem saber exatamente aonde ela queria chegar. — E eu só me pergunto por que ele demorou tanto para te conquistar.
Flora deitou a cabeça de lado, parecendo realmente curiosa. Engoli em seco e mastiguei por mais tempo, tentando ganhar vantagem antes de responder.
— demorou para me conquistar porque eu tenho dedo podre. — Aquela era uma verdade inegável. E era absurdo o quanto eu me sentia em paz conversando com Flora. Encostei-me contra a cadeira e sorri. — Ele me aguentou lidando com muitos caras sem noção. — Sorri para meu prato e cruzei os braços. — E nunca me julgou por nenhum deles. Ele só estava ali.
Algo em meu peito apertou, senti imediatamente uma vontade absurda de ligar para e conversar com ele, agradecer por tudo o que ele havia feito por mim. Levantei meus olhos apenas para encontrar Flora com um largo sorriso no rosto.
— Acho que sempre foi rendido por você, — ela confidenciou. Tudo ao meu redor parecia um vórtex pronto para me sugar para um buraco negro. As risadas ficaram ensurdecedoras e meu coração batia tão acelerado que eu considerava arritmia como um problema real naquele momento.
— Isso não é verdade. — Minha voz pareceu esganiçada. Flora apenas riu, balançando a cabeça.
— É sim. E acho que você sempre retribuiu, sendo bem honesta — ela comentou com delicadeza, mas um olhar sagaz preenchia seu rosto.
Eu queria me enfiar no chão e me arremessar de cara nas cordas do piano no meio do salão.
— Meu Deus, você está muito vermelha. Estou sendo muito indelicada, me perdoa. — Flora balançou as mãos diante de meus olhos com uma careta enfeitando seu rosto. Eu estava praticamente sem respirar.
E naquela noite, quando me mandou uma mensagem perguntando como foi o almoço, eu o ignorei. Assim como suas outras mensagens no dia seguinte. E foi depois de ignorar a décima que aceitei sair com Guilherme novamente.
A voz de Bruno em minha mente sussurrando "ele se aproveitou da sua ingenuidade, ele sabe o que está fazendo" parecia martelar junto com as batidas do meu coração.
— Será que vai demorar para eles saírem do quarto? — Laura questionou. Laís decidiu colocar uma música no celular. Apagamos a luz e permanecemos as três sentadas na varanda do apartamento. O vento quente e abafado se misturava a um ar gelado que vinha com o findar da noite. Ao longe, observei o rio Pinheiros e a raia olímpica da USP.
Apoiei o queixo nos joelhos, tomando mais um gole de água.
— Eu acho que sim. Da outra vez, precisei esperar duas horas, porque Lorena estava com a chave da antiga casa dela no quarto.
— Duas horas? — Laís arqueou a sobrancelha.
— Pois é. — Segurei o riso escandaloso quando minhas amigas pareciam discutir acirradamente sobre o tempo de duração do sexo entre mulheres e homens.
Senti meu celular vibrar em minhas mãos, e sorri ao ver a mensagem de Guilherme.
"O que você está fazendo?"
"Esperando meus amigos transarem para ir embora"
"Ai, ai… Poderia ser a gente, né?"
Abri um sorriso sorrateiro e respondi antes de bloquear:
"Quer conhecer meu cafofo?"
— Por que você está sorrindo? — Laís perguntou inquisidora e pulou em cima de mim, pegando o celular e arregalando os olhos ao ler as mensagens. — Você vai dar!!!!
Soltei uma gargalhada alta e neguei com a cabeça.
— Pra esse homem? Quantas vezes ele quiser.
— Caramba… — Laura assobiou. — Cadê esse na minha vida?
— Dá um desconto pra . — Eu estava prestes a agradecer Laís pela trégua, mas o agradecimento morreu em meus lábios quando vi seu olhar em minha direção. — Ela precisa aproveitar o Guilherme antes de perceber que está apaixonada.
— Cansei desse papo merda. — Levantei-me e apoiei-me contra o parapeito da varanda. Laura e Laís permaneceram em silêncio atrás de mim, logo ouvi um suspiro.
— Foi mal, não falo mais. — Laís tocou meu tornozelo. Virei-me para encará-la no mesmo momento em que uma rajada de vento atingiu meus cabelos, aliviando o calor. Quase gemi de alívio.
— Eu só… — resmunguei desajeitadamente. — Esses dias eu considerei dar em cima de — admiti a contragosto. Laís arregalou os olhos e Laura abriu um sorriso arteiro.
— E não deu por quê? — Laura questionou.
— Porque… pelo mesmo motivo por que eu não o beijei naquela festa da faculdade. Nós somos bons amigos.
— Bons amigos podem se pegar às vezes! — Laís contra argumentou sabiamente com a sobrancelha arqueada.
— Não com . — Mordi a ponta da unha e suspirei. — Acho que ele talvez tenha gostado de mim na época da faculdade. — Laura revirou os olhos.
— Você acha? , pelo amor de Deus, mas isso é ÓBVIO para qualquer pessoa com capacidade cognitiva.
— Como jornalista investigativa, você é uma ótima cozinheira — Laís comentou com o semblante mais sério. — Ok, e aí, o que você pretende fazer?
— Nada. — Dei de ombros. — Não tem o que fazer.
— Você não vai entrar no modo paranoico e afastar ele de você, vai? — Laura questionou seriamente e, ao não responder, ela transformou o rosto na faceta mais impassível que eu já havia visto. — Isso não é justo, .
— Eu não sei lidar com essas coisas — admiti honestamente. — Por que ele não me disse?
— Porque você ia fazer o que fez agora. Além disso, não é como se você tivesse dado tempo para ele tomar alguma iniciativa, né? — Laís retrucou. — Você foi sempre muito assertiva com a sua política de não querer namorar indianos.
— Eu teria dado uma chance a ele se tivesse sido honesto antes.
— Não teria, . — Laura suspirou e tocou o ossinho entre os olhos. — Você teria fugido, inventado alguma desculpa, qualquer coisa, é o que você faz normalmente.
Permaneci encarando o chão sem conseguir encarar minhas amigas. Elas tinham razão.
— Eu não quero dar uma de doida.
— Então não dê! — Laís sorriu em minha direção e abriu os braços. — Você só precisa ter certeza se o que você está sentindo é tesão acumulado ou algo mais. E nós estamos aqui para ajudar. Enquanto isso… — ela levantou a mão e pegou meu celular. — Dê uma chance ao Guilherme Luchini. Não vai fazer mal um pouco de casualidade. Tenta ver se consegue sair com ele, eu e Laura vamos ficar aqui.
Laura assentiu junto com Laís. Respirei fundo e peguei meu celular. Uma mensagem de se sobrepunha à de Guilherme. Apertei o chat do italiano e sorri com sua última mensagem.
"Estou doido para conhecer um pouco mais de você, ;)"
Encarei minhas amigas uma última vez antes de responder:
"Quer ir hoje?"
"Estou chamando um Uber!"
Joguei a blusa sobre meu corpo e despedi-me das meninas, caminhando com um sorriso até o metrô para ir para minha casa. Eu pensaria no que fazer com depois, mas hoje eu queria me divertir um pouco mais. Talvez deixar a despojada tomar conta não fosse algo tão ruim assim, afinal de contas.
Capítulo dezesseis
Flaviane estava largada em minha cama e mexia em seu celular enquanto eu saía do banho. Ela sorriu em minha direção e levantou-se. Seu corpo completamente nu em minha frente parecia esculpido por algum gênio da arte, e peguei-me fitando cada curva de seus ombros, as saboneteiras expostas, a pele negra que parecia sugar toda a claridade da lua ao seu redor, tomando-a para si.
— Gosto da forma como você me olha — ela sussurrou e segurei sua cintura, dando beijos espaçados em seu pescoço. Flaviane segurou meus ombros e afastou-se com um sorriso. — Preciso ir para casa, e você precisa voltar para a sua noiva.
Controlei o arrepio que atravessou minha espinha. Flaviane não sabia que eu e não éramos noivos de verdade, e eu preferia que achasse que eu a estava traindo do que mentindo. Que beleza, não é?
— Não quer mais uma rodada? — sondei com um risinho. Flaviane deu um beijo em meu peitoral exposto e balançou a cabeça.
— Próxima vez é lá em casa, . Tenho que voltar, preciso buscar minha filha com o pai dela.
Quando Flaviane desceu o elevador, permaneci em silêncio sepulcral, encarando minha residência com um suspiro. Passei a mão na nuca úmida e liguei a TV, deixando meus olhos percorrem o caminho atrás dos jornalistas em busca de , que estava de plantão naquele dia. Quando vi sua pele escura ao fundo, abri um sorriso minúsculo e sentei-me no sofá, esticando as pernas sobre o pequeno banquinho.
Peguei meu celular e abri nossa conversa.
"Você está famosa, está na televisão."
Observei com uma gargalhada quando pegou o telefone e abriu algo que parecia um sorriso gigante. Ela não voltou o olhar para a bancada onde os jornalistas permaneciam, apenas respondeu. Acompanhei em tempo real o aplicativo indicando o "digitando..." e seus dedos se moverem pela televisão.
"Quem é? Aqui é a assessora da . Se quiser falar com ela, marque um horário."
Gargalhei e levantei-me do sofá, andando em círculos com o celular em mãos. Passei a mão por sobre a barba e senti minha boca explodir em sorrisos.
"Ah, marcar horário? Eu não tenho privilégio especial? Que pena, porque eu pensei em algumas coisas bem divertidas para fazer com ela..."
Arrisquei-me, e perdi de vista quando uma reportagem foi colocada no lugar dos jornalistas. Eu sabia que ela estava corando, o que foi confirmado pela demora em me responder. Quando a tela voltou aos jornalistas, percebi que não estava mais sozinha, havia um homem parado diante de si com um sorriso gigante e um terno.
Guilherme Luchini.
Bloqueei o celular e o joguei sobre o sofá, cruzando o apartamento a passos largos, pegando um copo d'água na cozinha. A voz do âncora ainda ecoava em meu ouvido quando meu celular começou a tocar.
— Diga, . — Atendi o celular com um pigarreio.
— Oi, meu amor! — ela exclamou sorridente e ouvi uma buzina. — Ainda de pé o convite das coisas divertidas que você quer fazer comigo?
Controlei o ímpeto de responder com uma cantada barata.
— Claro! Eu pensei que você estivesse de plantão.
— Ah, não, eu tenho banco de horas e o RH praticamente me expulsou daqui. A emissora não quer problemas com denúncia de funcionários.
— Bom, nesse caso, quer vir aqui pra casa? — Comecei a fuçar nos armários praticamente vazios. Precisava fazer compras logo.
— Sim! Chego aí em meia hora, se o metrô colaborar.
Fiz o pedido de mercado pelo aplicativo. Vinho, chocolate e cervejas. Com o que tinha no armário, resolvi fazer uma pizza de microondas. Dava para o gasto.
E quando chegou, precisei controlar as batidas descompassadas de meu peito.
Ela usava um vestido vermelho solto e um blazer branco. Seus cabelos estavam presos em um rabo de cavalo e um brinco dourado pendia em suas orelhas. Estava deslumbrante, para dizer o mínimo.
— Oi, ! Cuidado com o chão, deixei cair um copo hoje… E uau, isso é tudo pra mim? — questionei com um sorriso enquanto ela largava os sapatos na entrada da casa e revirava os olhos maquiados. colocou uma sacola marrom em minha mão e adentrou na casa com familiaridade de quem já havia frequentado demais aquele lugar. — E a roupa é nova.
— Sim, eu resolvi fazer umas compras para o tempo que vou passar no Rio.
— Você vai daqui uma semana já, não é? — Fiz os cálculos em minha mente, percebi com agrado que ela estaria no Rio quando eu estivesse lá viajando com minha família.
— Isso mesmo! Guilherme está sendo de grande ajuda com o que fazer, como agir…
— E de outras coisas também, né? — provoquei com um sorriso e a empurrei pelo ombro. gargalhou e assentiu. — Pensei que não quisesse outro relacionamento, .
— E não quero — retrucou enquanto caminhávamos até a cozinha.
Peguei nas mãos a sacola e vi que ela trouxera uma porção de batata frita com ketchup. A sacola indicava o Bar do Gato. Nós nos tornamos amigos de uma das sócias com rapidez, e agora tínhamos desconto em alguns pratos específicos. Eu até tinha um prato feito em minha homenagem, que se chamava Engenheiros da Paulista, um beirute com tudo de mais gorduroso que o Brasil pode oferecer.
— Estou transando com ele, só isso. — enfiou um punhado de batatas na boca no mesmo momento em que o microondas indicou que a pizza estava pronta. Virei-me de costas para ela e alcancei a comida, tentando controlar uma careta.
— Você não estava no processo de amor próprio? — questionei com o cenho franzido. Tirei a pizza da forma e a coloquei em um prato. Metade para mim e metade para ela.
— As pessoas acham que amor próprio significa sempre dar um tempo para si mesmo afastado dos outros — ela começou, mastigando as batatas crocantes. — E eu estou dando um tempo do amor, mas isso é algo puramente físico, não vejo problema.
— Cuidado para não se apaixonar pelo italiano, …. — alertei. Ela suspirou e encheu uma taça de vinho.
— , eu, de verdade, não considero me relacionar com ele. Eu não quero, não gosto da ideia, mas eu também não estava apegada emocionalmente ao Bruno, você sabe disso. Eu só quero alguém pra transar comigo sem burocracia, e é exatamente o que o Guilherme também quer. Enquanto estivermos na mesma página, estamos tranquilos. — Assenti diante de seu argumento bem elaborado.
— Eu estava pensando sobre como nossos relacionamentos são influenciados por nossos pais — comecei, cruzando os braços ao encará-la. assentiu enquanto tomava um copo d’água.
— E qual foi a sua conclusão?
— Nós somos cópias inatas deles. Inclusive, eu e Flora somos idênticos aos meus pais. E você? — deu de ombros e colocou o copo sobre a pia, tomando tempo para pensar.
— Não conheci meu pai, então não sei como seria a responsabilidade. Minha mãe diz que sou muito parecida com ele de jeito, até o fato de ser cabeça dura. — Sorri ao vê-la esconder uma careta.
— Isso é verdade.
— Ah, cale a boca. — Ela arremessou um pano de prato em minha direção com um sorriso. — De qualquer modo, meu pai e minha mãe eram bem parecidos, ela disse.
— Você sente muita falta dele?
Falar do pai de era algo novo. Mesmo quando éramos mais novos, não falava dele. Aquelas eram as informações mais recentes que ela havia dado de seu pai.
— Eu sentia quando era mais nova, hoje em dia, não. Não tem como sentir saudade de alguém que você nunca conheceu. — Concordei com um aceno de cabeça. bufou e encarou o teto. — Esses dias eu sonhei com ele. Quer dizer, não era ele, já que eu não sei como é o rosto dele hoje em dia, mas era um homem que eu sabia ser meu pai.
Permaneci em silêncio pelo tempo que podia. parecia subitamente frágil.
— E ele… ele me abraçava e dizia que tudo ia ficar bem. — Tentei evitar o choque cruzando meu semblante quando uma expressão de dor cruzou os olhos dela. — Isso depois de ele vir até mim em um cavalo vermelho com crina de unicórnio. Depois disso, ele entrou na água e sumiu. Ah, e o Ronaldinho também estava no sonho.
— O fenômeno?
— Não, você sabe que esse é o Ronaldo. Eu tô falando do gaúcho.
— Você teve alguma notícia do seu pai que possa ter desencadeado isso?
— Sendo bem honesta? Não. — Deu de ombros e começou a organizar os meus temperos sobre a bancada branca. — Foi só como uma sensação… sei lá, de que meu pai estava perto de mim. Enfim, ridículo.
— Não é ridículo — retruquei. — Seu pai é Kadir, tudo bem, mas também é normal você sentir falta do seu pai biológico. — Aproximei-me de e fiz com que parasse de arrumar o orégano e a pimenta-do-reino. Virei-a para mim com delicadeza e sorri. — Você é humana, , pare de achar que pode deixar de ser uma quando bem entender.
— Prometo tentar. — me fitou por alguns segundos antes de suspirar. — Chega desse papo analítico, deixa isso para a minha sessão amanhã com a psicóloga.
sumiu para dentro do apartamento para lavar as mãos. Peguei os pratos, o vinho e a cerveja e levei tudo para a sala. Mudei de canal ao ver que era Guilherme quem apresentava uma notícia no noticiário. Coloquei na Netflix e sentei-me no meu lado do sofá, cruzando as pernas desajeitadamente enquanto a esperava voltar.
— Você trouxe alguém pra cá? — questionou quando voltou do corredor. Ela tinha um sorriso arteiro no rosto e uma expressão maliciosa.
— Flaviane — comentei subitamente envergonhado. controlou um sorrisinho e tirou o blazer, jogando-o sobre a poltrona. Os braços escuros estavam desnudos, ela se alongou porcamente e jogou-se no sofá ao meu lado.
— Como foi? — questionou enquanto tomava um gole de vinho e roubava o controle de minha mão para ligar a televisão.
— Bom — respondi sucinto e virei-me para a televisão. Eu sabia que minhas bochechas provavelmente estavam vermelhas.
— Você nunca fica envergonhado, . — provocou. — Você está a fim dela? Mesmo?
— Não. — Maneei a cabeça e tomei um gole da minha cerveja. — Estou corando porque não costumamos falar em detalhes sórdidos sobre nossas transas. — O rosto de se moldou em uma expressão de compreensão.
— Você não quer falar sobre a experiência transcendental com a Flaviane?
— Não foi transcendental.
— Eu já vi a Flaviane, acho que transcendental seria pouco para descrever aquele avião montado em você.
Ah, a delicadeza de !
Gargalhei e assenti.
— Por que você não dá uma chance para ela? — questionou seriamente, seus olhos permaneciam nos meus e não se desviaram. Ela sempre foi direta e decidida, não sentia vergonha de muita coisa. Esse é só um dos motivos para eu ainda sentir um deleite ao lembrar de como ela havia ficado envergonhada usando aquele vestido de noiva, duas semanas atrás.
— Porque eu não gosto dela desse jeito, não vale a pena. — Estiquei-me para roubar o controle da Netflix de volta, mas apenas deu um tapa em minha mão.
— Ok. — Deu de ombros e ligou em um filme brasileiro lançado nos últimos dias, mas eu não consegui prestar atenção direito.
— , eu vou estar no Rio quando você for para lá — soltei em algum momento, e apenas me encarou de soslaio.
— Que adorável, , mas não precisa ir comigo, eu sei me virar sozinha.
— Não, linguaruda, não é isso. Vou passar o fim de semana e a segunda-feira lá. — pausou o filme e virou-se inteiramente para me encarar.
Por um instante, lembrei-me do primeiro momento em que vi diante de mim naquele anfiteatro na politécnica. Assim que bati os olhos nela, a achei tão linda. Queria sentar do lado dela só para poder estar perto, e foi o que eu fiz, praticamente jogando meu amigo para sentar em outra cadeira. E a cena do sutiã, ah, aquilo ainda me fazia gargalhar de vez em quando. Ela ficou roxa de vergonha. Eu fiquei roxo por segurar a risada honesta diante do sutiã com desenhos da Barbie.
— A gente pode se encontrar no Rio! — exclamou sorridente, arrumando-se no sofá animada. — Podemos ir pra praia… Imagina? e no Rio. A gente pode fazer uma varredura por lá.
— Você está muito animada.
— Claro! Eu vou passar uma semana no Rio de Janeiro, quero aproveitar ao máximo. Tenho até um roteiro de viagem para fazermos, . — pegou o celular na mão e enfiou o roteiro que havia feito na minha cara. Peguei o aparelho com uma risada. — O ruim é que meu hotel é bem no centro, e os mais próximos da praia são muito caros…
— Ei, por que você não vem comigo? Faz a sua entrevista, já que você vai alguns dias antes, te busco e você passa o restante dos dias na praia particular do amigo de mamadi. Sei que podemos andar de barco para outras praias, ver os centros históricos e tudo mais. — Os olhos de estavam arregalados, sua boca abria em um “O” perfeito.
— EU AMEI! — gritou e se jogou em meus braços, colocando-se em pé rapidamente e andando de um lado para o outro com a expressão pensativa. — Calma, mas como você vai? O que vai fazer lá? Não tem o jantar com a sua família?
— Pois é, isso foi cancelado. Vamos viajar para essa praia. — Os ombros de caíram imediatamente.
— Não vou viajar com sua família, .
— Ué, por que não?
— Eu não sei se você bateu a cabeça e teve uma amnésia, mas, até onde eu sei, estamos fingindo ser noivos. Se eu for para a essa viagem sendo sua noiva, vou precisar mentir, e eu não aguento mais, acho que você também não. Se eu for como se já estivéssemos terminados… bem, eu não preciso explicar por que isso seria estranho, não é? — Ela parou e cruzou os braços. Levantei-me do sofá também e fui arrumar os livros na estante da sala, tentando ocupar a mente e deixar a energia de meu corpo fluir de alguma maneira.
— E se nós terminássemos na viagem? — Uma lâmpada poderia facilmente ter parado sobre minha cabeça. Virei-me para trás, estava bebendo o vinho e me analisando.
— Continue.
— Você pode ir comigo, nós temos uma briga super feia no último dia e terminamos! Você vai voltar no seu vôo normal e dá tudo certo. E, de quebra, você ainda aproveita a praia particular do amante da minha mãe!
— Amante? — parecia confusa. — Não era amigo?
— Os dois! — Fiz sinal de desdém, mas não parecia totalmente convencida. Ela era muito racional, pelo amor de Deus. — , olha só o tanto de coisa que você fez esse ano, e ainda estamos no início dele. Uma chance de emprego, uma redescoberta pessoal, um noivo gostoso… Você precisa começar a pegar as oportunidades que a vida te dá e pensar um pouco menos às vezes, sabia?
pareceu ponderar por alguns instantes. Aquilo era um bom sinal, ela pelo menos estava considerando o que eu havia dito.
— Quer saber? Você está certo, vamos para a praia particular do amante da sua mãe!
— Esse é o espírito! — comemorei e sorri em sua direção, colocando o último livro na ordem. Levantei-me com um leve resmungar.
— O seu vizinho também está feliz por nós, colocou até um forró para tocar. — brincou quando o som de Falamansa invadiu o apartamento vindo diretamente do meu vizinho de porta, um recifense muito viciado em forró. Eu já havia baixado várias músicas que ele tocava durante a semana. — Estou feliz demais para ver algum filme, vamos dançar!
— Nós podemos fazer muita coisa bem, , mas dançar não é uma delas. — Minha amiga gargalhou e se aproximou, puxando-me pela mão e tomando a guia da música. — Espera aí, você está sendo o homem da dança? — questionei incrédulo. apenas riu e começou a guiar nossos pés.
— Não existe homem dança, e eu tenho treinado bastante em casa — comentou próxima ao meu ouvido e puxou minha cintura para perto. Praticamente tremi diante de seu toque, e acho que ela percebeu, mas não se moveu, apenas me puxou um pouco mais.
Após o baque inicial, comecei a seguir seus movimentos no momento em que a próxima música começou.
e eu ríamos de nossos passos destrambelhados, mas eventualmente pegamos a manha do ritmo, e logo estávamos girando pela sala. Acho que estávamos dançando algum estilo musical, mas definitivamente não era forró.
— Você está rebolando errado! — exclamou em minha direção com uma gargalhada, limpando uma leve camada de suor da testa. Minha amiga se aproximou de mim e colocou as mãos em minha cintura, mexendo de um lado para o outro sem tirar a atenção dali.
— Nem deveríamos estar rebolando assim dançando forró… Nós estamos em uma cena de Ritmo Quente, por algum acaso? Eu sou a Baby e você é o meu Johnny Castle? — gargalhou ainda com a mão em minha cintura e assentiu.
— Sim. Agora só falta a gente ir para um lago e eu te carregar no ar!
— Acho que podemos fazer isso agora… — provoquei com um sorriso. Antes que pudesse gritar, peguei-a no colo pela cintura, levantando-a. Ela se contorceu em risadas, batendo em meu ombro enquanto eu tomava cuidado para que ela não batesse com a cabeça no teto. — You can do it, Johnny Castle!
— Mas o Johnny que levanta a Baby — retrucou ao me olhar de cima. Dei um impulso e a joguei mais para cima, segurando em suas coxas com meu braço.
— Isso é machismo! — exclamei sorridente. abriu os braços e a girei pela sala.
Minha visão ficou turva pelos giros, senti minha pressão titubear e lembro-me apenas de soltar um grito assustado quando caí no chão, puxando junto. Exclamei de dor quando bati com a bunda direto no piso frio.
— ! — exclamou preocupada, sua queda havia sido amortecida pela minha. Seus cabelos batiam meu rosto e ela gargalhava, apesar da preocupação.
— Estou bem, só quebrei a bunda. — Arquejei de dor e comecei a gargalhar com ela, deitando a cabeça no chão gelado. estava com as pernas ao redor de minha cintura, sentada em minha barriga.
Permaneci em silêncio, encarando-a com o plano de fundo do meu vizinho forrozeiro. Não dissemos nada por um tempo, mas eu contornava cada traço de seu rosto sob a lua atravessando a janela. Seu peito subia e descia veloz pelas risadas, suas mãos estavam agarradas ao tecido de minha camisa com delicadeza. Fui tomado por uma súbita noção de que ela estava sentada em mim com os cabelos bagunçados e os olhos alegres.
O de anos atrás batia à porta, implorava para entrar, para poder pegá-la pelo cabelo e beijá-la até que perdesse o fôlego. Coloquei minhas mãos em sua cintura, mas não reclamou, não fez nada além de se mover sobre meu corpo, descendo um pouco mais, aconchegando-se em mim. Fiz pequenos círculos em seu quadril com a ponta dos dedos. Ninguém havia falado nada, não tínhamos força para isso. Acho que também havia pensado aquilo, porque colocou as mãos sobre as minhas e sorriu.
Naquele momento não havia italiano, Flaviane, nada. Apenas nós dois e o vizinho, que agora tocava Calcinha Preta. Wesley Safadão era melhor do que ninguém para embalar aquele momento com seu forró eletrônico.
— , eu preciso te fazer uma pergunta… — começou com a voz rouca.
Percebi quando ela começou a se agachar diante de mim, e eu não estava imaginando coisas, estava acontecendo algo ali, algo que eu não entendia e não esperava presenciar algum dia, somente nos meus sonhos (e eles foram muitos).
— Pode perguntar o que quiser, princesa — incentivei. sorriu com a alcunha, mas não falou, apenas pairou sobre meu rosto como um espelho. Seus cabelos presos caíam em meu rosto, pinicavam meu pescoço e me imploravam para serem segurados por minhas mãos trêmulas.
A verdade é que eu era absurdamente apaixonado por desde que nos conhecemos. Talvez isso seja eufemismo. Sendo mais honesto ainda, eu não sou bom em destrinchar o que sinto, mas que esteja registrado que eu sentia algo.
Todas as vezes que ela sorria para mim, um pedaço meu morria, porque sua voz ecoando o mantra de não se relacionar com indianos era mais alta do que os rugidos do meu pau adolescente bombeando todo o sangue possível para lá.
E merda, esteve em minha mente por pelo menos três anos dos nove que nos conhecemos. Eu a amei em silêncio por anos (digo que é amor, mas eu tinha dezenove anos e ereções matinais com nome e sobrenome, era complicado diferenciar tesão de qualquer outra coisa, já que os sintomas são os mesmos que amor: dor quando não aliviado, felicidade quando finalmente acontece, arrepios quando você não pode mostrar o que está rolando em público, e é bem vergonhoso).
Eu superei.
Eu sei que superei, porque, do contrário, não teria saído com outras pessoas, encontrado novos amores e tido meu coração quebrado outras vezes.
Superei e entendi que ela me via como amigo. Finalmente parei de me incomodar com isso, segui minha vida.
Mas desde que voltamos a nos falar regularmente, desde que ela voltou a sorrir pronunciando meu nome e a me abraçar como não fazíamos há anos, algo em mim pareceu surgir de uma profundeza há muito esquecida, como quando você acha que perdeu uma roupa favorita, e aí acha em algum momento enfiada no fundo de uma caixa de doação. Você fica chocado, alegre, mas corre o risco de a roupa não servir mais, já que você cresceu. A diferença é que aquela roupa ainda parecia me servir bem, o que me assustou. Cada segundo daquela revirada no baú me assustava, já que e eu não éramos mais adolescentes.
Ela não havia me correspondido em anos, por que corresponderia agora? Por que meu coração insistia em me lembrar de que o noivado falso poderia não ser falso se eu simplesmente me arriscasse? Mas as opções não eram boas, não. poderia dizer “oh, , deus do sexo e da virilidade, eu te amo” ou, a versão mais condizente com a realidade, “me desculpa, mas somos só amigos”.
A segunda opção não seria problemática se não fosse .
Ela se afastaria, provavelmente sumiria sem dizer mais nada, para evitar que eu tivesse meu coração partido (como se a rejeição em si já não fosse o suficiente). E eu preferiria passar uma vida fingindo não amá-la do que passar essa mesma vida privado do seu sorriso. Meus amigos me dariam vinte socos se me ouvissem falando desse jeito sobre uma mulher, porém era o que eu pensava. Desde que tudo isso voltou a aflorar e eu me senti novamente como um pirralho com as calças arriadas a cada chance possível, percebi o quanto me cansava fingir que somente conseguia ser amigo dela.
Eu não tinha mais forças para encarar toda aquela avalanche, e esse sentimento pessimista me deu uma ponta de coragem para talvez fazer o que o de anos atrás não conseguiu: me colocar em primeiro lugar.
não sabia do meu abismo por ela, não era justo comigo ou com ela que eu continuasse a me machucar daquela maneira. Eu precisava me dar uma chance de superá-la ao ponto de nunca mais precisar duvidar se sinto algo ou não. Mas enquanto não me desse o “não” definitivo, eu sempre pensaria naquela brecha.
E essa brecha parece ainda mais escancarada agora, quando encaro seus lábios, volto o olhar para ela e vejo que ela também encara minha boca. Talvez aquele fosse o momento. O “não” me libertaria, o “sim” também, quer para o bem ou para o mal.
— ? Você está meio pálido — constatou com um arquear de sobrancelha.
— É impressão — sussurrei e levantei minha mão apoiada em sua cintura, dedilhando sua coxa exposta pelo vestido que havia subido por suas pernas grossas e escuras. — Você tem o nariz lindo. — gargalhou próxima ao meu rosto. Ela cheirava a algo bom e familiar. Daqui, observava seus traços perfeitamente iluminados pela lua. Os olhos castanhos com ruguinhas de sorriso ao lado, os lábios cheios, o nariz batata, o peito subindo e descendo pelas respirações profundas e as marcas de sorriso ao lado da boca. Detive meu olhar naquele ponto por mais tempo.
— Eu já elogiei o seu nariz assim antes — ela relembrou com um sorriso. Fui transportado para a festa anos atrás, quando eu e quase nos beijamos e ela elogiou meu nariz. Abri um sorriso descarado.
— Então chegamos à conclusão de que os dois têm narizes bonitos, é isso? — provoquei, dando um apertão em seu quadril, o que a fez rir. apoiou os braços ao lado da minha cabeça e roçou nossos narizes com um sorriso.
Aquilo realmente estava acontecendo?
Pisquei algumas vezes, ainda levemente incrédulo, mas sem coragem para me afastar. Meu coração batia acelerado no esôfago, pois é, esôfago, porque meu corpo inteiro parecia reagir a ela daquela maneira: sem noção e de impossível compreensão à mente humana.
E quando finalmente cortou o espaço entre nós dois, meu corpo inteiro liberou a tensão montada sobre mim. Seus lábios tinham gosto de chocolate e vinho, e eles me abraçaram como se já fôssemos amigos de longa data. Segurei imediatamente sua nuca, puxando-a para mais perto, enquanto a outra mão permanecia em seu quadril, fazendo carinhos circulares.
Tivemos uma leve dificuldade no início, levando a rir e afundar-se mais em minha cintura, o que gerou um gemido baixo da minha parte. Os lábios de eram exatamente como eu esperava, confortáveis e gentis, como se ela quisesse aproveitar cada segundo daquilo, o que era ótimo, porque eu estava viciado.
Controlei um arquejo desesperado quando sorriu entre os beijos, descendo para meu pescoço. Passei as pontas dos dedos por suas costas desnudas no vestido e sorri ao ver que sua pele se arrepiava sob meu toque. Apenas o som de nossos lábios tocando era ouvido no apartamento escuro, isso e Calcinha Preta.
Aprofundei o beijo com mais desespero, passando minha mão para sua coxa, descendo a outra para a lateral de seu seio. Eu sequer sabia que um beijo podia ser tão gostoso, erótico e lento ao mesmo tempo. Minha calça jeans pareceu um empecilho desgraçado naquele momento.
O mundo pareceu se converter em estrelas alucinógenas quando os dois puxaram o cabelo um do outro ao mesmo tempo, e gemidos baixos e suspiros aceleravam e intensificavam nosso toque. Trilhas de fogo subiam por meu tronco enquanto enfiava suas mãos por minha camiseta, dedilhando a pele e apertando de leve minha cintura quando aprofundamos ainda mais o beijo. Detive meu toque para subir seu vestido por um momento. Eu nunca havia beijado antes, não sabia os limites. Uma ex-namorada disse que eu era “mão boba”, não sabia se aquilo afastaria ou não.
— Você não precisa ser tímido comigo, — ela disse enquanto depositava um beijo sobre meu pomo de Adão. — Pode me tocar como você quiser — sussurrou em meu ouvido antes de puxar o lóbulo de minha orelha levemente com os dentes. Revirei os olhos inconscientemente quando ela colocou minha mão sobre sua bunda e rebolou ao mesmo tempo contra minha calça jeans.
Eu ia morrer. Um filete de suor escorria por minhas costas e meu corpo inteiro ainda tentava acompanhar o que acontecia. estava me beijando!
— Eu preciso sentar, essa posição não rola — murmurei contra nossos lábios.
Eu queria ter no meu colo, poder senti-la com o corpo inteiro sobre o meu, beijar seu pescoço sem medo de cairmos ou sem a gravidade me dando um torcicolo, porque aquele era o melhor beijo do mundo.
O de anos atrás pulava ao meu redor e gritava: “É ISSO AÍ, SEU MERDA, CONSEGUIMOS!”. O atual dirigiu os beijos para o pescoço de enquanto começava a me sentar, tentando fingir não ser o cara mais feliz do mundo.
Contudo, fui tomado por uma pontada de dor absurda na bunda e soltei um grito involuntário quando tentei me sentar, voltando a deitar enquanto pontos pretos e brancos dançavam em minha visão. arregalou os olhos e saiu de cima de mim com os lábios inchados e os olhos confusos.
— do céu! Eu sentei com força em você? Eu quebrei seu pênis por cima da calça? — Neguei debilmente, amaldiçoando aquela dor maldita.
— Cara, eu não consigo sentar!
Eu estava pronto para dizer que ela não precisava se preocupar, mas olhou para o chão e percebeu um pequeno filete de sangue ao lado da minha cintura.
— Meu Deus, você está sangrando! — exclamou assustada e começou a andar de um lado para o outro. Segui seu olhar e constatei assustado que, sim, eu estava sangrando. Será que aquilo havia saído da minha bunda?!
— Hospital, ! — decretei, tentando controlar o nervosismo. Provavelmente não era nada, mas a voz assustada de me fazia crer que o Thanos havia socado a manopla dele no meu ânus e liberado pequenos stormtroopers lá dentro.
— Ok, vamos. Você consegue levantar? Não é perigoso? Dá para quebrar o cu? Eu não sei dizer… acho que não. — começou a divagar enquanto pegava a chave do carro, seu blazer e buscava um casaco para mim. — Ok, vamos tentar te levantar. Você consegue?
— Acho que sim. — Virei de bruços. tentou conter um arquejo de susto, mas não conseguiu. — PELO AMOR DE DEUS! O QUE ACONTECEU? — gritei assustado.
— Você caiu em cima de alguma coisa, eu só não sei dizer o que é, mas sua camisa está toda manchada de sangue. Sem desespero. Não se mexe, acho melhor chamar uma ambulância, não é? Vai que você se mexe e isso aí te mata.
— , você não está ajudando! — exclamei. — Foi um caco de vidro de um copo que eu quebrei hoje, pelo visto não limpei direito — praguejei com raiva. — E uma ambulância por causa de um vidro? Eles vão dar risada da nossa cara, sabia?
— Eu sei que é algo pequeno, só que parece estar bem perto do ossinho da bunda, e é recomendação dos primeiros socorros que você não se mexa. Você nunca assistiu novela das nove? Espera aí, já volto.
Eu não a vi, mas notei de esguelha quando pegou seu celular e começou a conversar com a mulher da emergência.
— Sim, ele caiu em cima de um caco de vidro! Foi bem na coluna. Sei que está sangrando bastante e deve ter penetrado pela camiseta, porque não consigo enxergar… Isso. Não, eu não mexi no lugar. — Uma pausa. — , você tá sentindo ardência?
— Não. — respondi. Observei a silhueta de atrás de mim pelo vidro da janela.
— A pressão está caindo? Está se sentindo tonto?
— Eu só tô com uma vergonha do cacete, ! Os bombadões de três metros da emergência vão vir me resgatar porque eu sentei no vidro… pelo amor de Deus, que vergonha. E se algum deles for bonito, ?
— Não, não está se sentindo tonto, pelo menos não mais do que já é. — me ignorou e voltou a conversar. — Quanto tempo? Ok, nós aguardamos. Obrigada! — Minha amiga se agachou em minha frente e tentou controlar o riso. — A ambulância está vindo.
— Pode tirar o sorrisinho da cara, !
— Não dá, querido . Quando a Baby caiu, o Johnny deu risada, não foi? Estou apenas sendo fiel ao roteiro…
Capítulo dezessete
Não fazia parte dos meus planos estar às dez da noite em um hospital no meio de São Paulo. Eu estava sentada na cadeira enquanto esperava a enfermeira me dar alguma notícia. Flora, contato de emergência de , estava a caminho.
Encostei a cabeça na parede e controlei a gargalhada desenfreada. Quando eu fico nervosa, dou risada. Muita risada. Quando cheguei aos finalmentes pela primeira vez, gargalhei tanto que o cara achou que eu estivesse rindo do tamanho do pênis dele, então se levantou e saiu, mas eu continuei rindo sozinha por mais meia hora.
Por isso, quando os paramédicos precisaram descer com na maca pelos andares até o térreo, passei o caminho todo praticamente fazendo xixi nas calças de rir, ao passo que me xingava em um hindi escrachado.
Uma das paramédicas me pediu para parar de rir, já que aquilo deixava nervoso e somente dificultava o trabalho para descer de maca. Então segurei a gargalhada até entrar no carro para acompanhar a ambulância, mas soltei tudo lá dentro.
Eu havia beijado ! De verdade, de língua e tudo que tinha direito. E havia sido ótimo. Lembrei do cheiro de xampu de seu cabelo, dos lábios macios e gostosos, de corpo ele suspirou e gemeu meu nome em alguns momentos.
E puta merda, eu lembrei especialmente do quanto eu estava pronta para qualquer coisa que ele pedisse. Se achasse uma boa ideia acender o gás porque seria romântico, eu provavelmente faria. Pairei com meus dedos sobre meus lábios e sorri ao lembrar do sorriso dele entre os beijos, do corpo magro me puxando para perto mais e mais, como se qualquer espaço entre os dois precisasse ser preenchido até que não houvesse mais nada entre nós dois. Como eu queria repetir aquele beijo!
— ! — A voz de Flora me puxou de volta para a realidade nada gargalhável da situação. — O que aconteceu? Foi um acidente sério? Ele está bem? — A irmã de estava com os olhos arregalados e vermelhos, parecia ter chorado. Nossa, mas eu sequer havia explicado o que aconteceu. Ela realmente se preocupava com o irmão.
— A enfermeira não deu notícias ainda, ele entrou de maca e foi direto por aquela porta. Estou esperando aqui há uns trinta minutos. — Flora assentiu e foi até a recepção, pedindo por mais informações.
Observei seu porte com interesse. Ela usava a parte de cima do pijama de seda (muito bonito, por sinal) e calça moletom. Será que ela estava com Kadir antes de vir para cá?
Afundei-me na cadeira e tomei mais um gole da água. Eu já deveria estar dormindo àquela hora para acordar cedo e trabalhar, mas não conseguiria descansar sem saber como estava. Na realidade, não conseguiria dormir depois daquele beijo, apenas ficaria rolando na cama de um lado para o outro, pensando no quanto eu não queria que aquilo tivesse acabado.
— Bom, ele está passando por uma microcirurgia — Flora adiantou ao se aproximar novamente. — Caiu em cima de um caco de vidro que não limpou direito e os estilhaços estavam meio espaçados. — Arregalei os olhos e deitei a cabeça para trás.
— Isso que dá ele não usar produto de limpeza quando limpa vidro… — resmunguei. Flora se sentou ao meu lado e me encarou com curiosidade.
— disse para o médico que caiu no chão porque estava te ensinando a lutar, mas eu duvido muito disso por alguns motivos: primeiro, ele não sabe lutar; segundo, ele não sabe lutar. Então, o que aconteceu? — Senti-me enrubescer enquanto encarava minhas unhas feitas.
— A gente estava fazendo aquela cena de Ritmo Quente… — minha voz saiu como uma criança sendo pega com a boca na botija fazendo algo que a mãe disse que era proibido. — Sabe? Quando o Johnny Castle levanta a Baby e…
— Você tá brincando! — Flora me interrompeu e gargalhou alto, apoiando a testa sobre o braço cheio de pulseiras e um relógio caro. Tentei segurar a risada, mas não consegui. A cena era ridícula em todos os sentidos possíveis.
— Não, é sério! Mas aí é que fica melhor, Flora, o era a Baby e eu era o Johnny! — Flora começou a tremer devido às risadas, e algumas pessoas ao nosso redor torceram o nariz. Nós não podemos ser felizes no hospital, por acaso?
— Vocês dois são as criaturas mais fofas do universo — ela comentou e balançou a cabeça em negativa.
Controlei o riso nervoso que tentava se apossar de mim. Antes do acidente monumental, eu sabia que estava pronta para beijar , e eu não podia colocar a culpa no período fértil ou em qualquer outro fator externo. Eu estava sóbria, prestes a menstruar e muito consciente da rebolada proposital que dei contra sua cintura. Os dedos de encostaram em minha cintura sobre o vestido, aquele mero movimento foi capaz de me fazer perder o mínimo de sanidade que ainda me restava desde a prova do vestido.
E eu estava prestes a arruinar o momento perguntando se era verdade que ele era apaixonado por mim. Em minha defesa, era uma pergunta simples com apenas duas opções de respostas: sim e não. Se sim, eu engataria em uma conversa dinâmica sobre como eu queria beijar a boca dele. Se não, eu também tentaria engatar em uma conversa para beijá-lo. Mas não consegui, talvez por medo da resposta, talvez por não saber se era a coisa certa a se fazer. Se quisesse me dizer que estava apaixonado, ele diria, não é? Somos amigos. Se ele não quis dizer, então era direito dele e forçá-lo não era a escolha certa. Novamente, um limbo. E esse era um no qual eu não queria entrar. Felizmente, não precisei me martirizar com nada daquilo, o beijo era uma resposta mais eficiente.
Eu disse mais cedo naquele dia que não queria me envolver com ninguém, mas quanto mais eu tentava me convencer de que eu e não daríamos certo, mais ele provava que eu poderia estar errada, e aquele lampejo de esperança havia se apossado do meu peito.
Sabia que as meninas me odiariam por pensar o que pensei, mas eu queria esmagar aquela ínfima esperança antes que ela crescesse o suficiente até parecer grande demais para esconder.
havia visto tantos relacionamentos meus irem para o brejo, tantas vezes em que eu era a errada da relação. Nós dois somos tão diferentes estando com outras pessoas, eu não queria arrastar meu amigo para a minha teia. Ele não merecia aquilo.
era compreensivo demais, passivo demais. A atual não é uma boa parceira para ninguém. Além disso, ser casual com ele estava fora de cogitação. Se ele já teve sentimentos por mim antes, não seria justo da minha parte dar qualquer margem para que voltassem até que eu estivesse minimamente pronta para me abrir com ele. Mas agora com o beijo, como seria?
E essa é a controladora adiantando que ele realmente sentiu algo por mim. sequer havia confirmado.
Quantas vezes enquanto crescemos as pessoas não nos irritam de casal com outra pessoa, mas nós a vemos apenas como amigo? poderia ter passado pela mesma coisa, levando em consideração o quanto é sociável, amável e carinhoso. Era muito fácil se apaixonar por ele. E por mais que eu não tivesse gostado dele por todos esses anos, eu sabia o quanto poderia cair nas graças de agora, porque eu queria.
Meu Deus, como eu queria que ele tivesse continuado o que começamos na casa dele. Queria ter sentido suas mãos firmes na minha coxa, sua barba na minha bochecha e seus cabelos em meus dedos.
Cerrei os punhos sobre a coxa enquanto Flora saía para comprar um lanche. Por que diabos ele não havia se declarado antes? Por que não admitiu? Por que não seguiu em frente naquele dia da festa? Por que fingiu que aquilo não aconteceu?
A frustração tomou conta do meu corpo inteiro diante das perguntas sem respostas e das quais eu era parcialmente culpada. Peguei-me pensando que eu queria ser tentar algo com , que tentar me prender ao desapego com ele apenas o afastaria de mim, e eu não queria aquilo, não mesmo.
— ?
Levantei o olhar diante da voz masculina que me chamava. Um homem marrom, de pele escura e olhos ainda mais escuros me encarava. Seus cabelos eram ralos e entradas subiam por sua cabeça.
— Posso ajudar? — questionei levemente atordoada. Será que era um parente de que eu não reconheci? Não era o pai dele, com certeza, porque o pai de era mais baixo e mais gordo.
Antes que eu pudesse responder, olhei para trás, a mãe de entrava no hospital com uma máscara hospitalar no rosto.
— Ah, você é parente de ? — perguntei com um sorriso. Estendi a mão, ao passo que o homem estendeu também, mas parecia nervoso.
Encarei a mãe de se aproximando no momento em que Flora apareceu por outro corredor ao meu lado. A comitiva indiana havia chegado, o que chamou a atenção dos pacientes, especialmente pela mãe de usar um sari laranja.
— Mamadi! — Flora abraçou a mãe assim que se aproximou.
— Oi, filha. está bem?
— Sim, tudo tranquilo. — Flora me encarou e pareceu comentar mentalmente que a microcirurgia não deveria ser pronunciada.
O homem ainda diante de mim não havia desviado o olhar, e tentei ao máximo não me sentir desconfortável, então sorri para a mãe de Flora e acenei.
— Oi! É um prazer te rever. — Dei meu melhor sorriso, ao passo que a tia sorriu cortês e voltou o olhar para o homem diante de mim.
— Então vocês já tiveram a chance de colocar o papo em dia? — ela perguntou com leve interesse, largando sua bolsa ao lado da cadeira onde eu estava sentada. Flora franziu o cenho, parecia tão confusa quanto eu.
— Como assim? Desculpa por não ter te reconhecido, você é do templo que minha mãe frequenta? — Virei-me para o desconhecido morrendo de vergonha. Tenho certeza de que minha mãe me mataria por não lembrar de um rosto amigo.
O homem piscou algumas vezes e sorriu nervoso, colocando as mãos no bolso da calça social muito cara. O templo que Kabir e minha mãe frequentavam não era abastado, então estranhei que ele frequentasse aquele local.
— Templo? — A mãe de Flora gargalhou e maneou com a cabeça, estendendo o braço cheio de braceletes na direção de nós dois. Alternei o olhar entre ela e ele, mas Flora parecia subitamente consciente da situação. Todos, menos eu, estavam cientes de uma piada hilária e imaginavam que eu a conhecia, portanto deveria rir junto, mas eu estava perdida.
Será que ele era um parente meu por parte de pai?
Enquanto crescia, minha mãe falou poucas vezes de meu pai. Ele havia nos abandonado no Brasil para construir uma família na Índia. Meu doador de esperma (que é como o chamo na maior parte das vezes) achou que era possível manter duas famílias simultâneas — o que funcionou, até minha mãe descobrir e o chutar de casa.
Ela descobriu mais tarde, quando eu tinha três anos, que ele já estava prometido a uma mulher na Índia, mas que havia se apaixonado por minha mãe quando veio ao Brasil para fundar uma empresa. Era a justificativa perfeita: passar tempos na Índia e no Brasil, mantendo duas famílias com álibi credível.
A última notícia que tivemos dele foi quando completei cinco anos. A empresa havia falido e meu pai nunca mais deu as caras no Brasil. Eu sequer o havia conhecido. Já tinha visto algumas fotos de um álbum que minha mãe guardava da época em que eu era bebê. Ela não havia se livrado das fotos porque eu estava nelas, mas todas as outras em que ela e meu pai apareciam foram para o lixo.
Então saber que eu tinha um parente por parte de pai no Brasil foi uma surpresa, levando em consideração que ninguém da família dele nos reconhecia como parentes (e nem deveriam, na realidade).
— Você é parente por parte de pai? — Tentei a sorte, ao passo que o homem assentiu e abriu um sorriso trêmulo. — Ah, sério? Nossa, eu nunca tinha conhecido um parente por parte do meu pai… — Encarei a mãe de com o semblante curioso. — E como vocês se conhecem?
— Ah, querida… — A mamadi de Flora apoiou a mão no queixo e nos encarou com curiosidade.
— , podemos conversar?
Ouvir a voz do homem me deixou nervosa, pois parecia mais sério e rígido do que até mesmo minha mãe. Será que havia acontecido algo com meu pai? Por um instante, pensei que ele havia morrido, e uma sensação desesperadora tomou conta de mim, mesmo que eu não soubesse o motivo.
— É sobre o seu pai.
Aquele homem tinha um sotaque bangalês muito forte, apesar de parecer ser fluente em português. Assenti em sua direção e o acompanhei até o canto do hospital. Enquanto isso, peguei meu celular e digitei uma mensagem apressada para minha mãe:
“Acho que aconteceu algo com meu pai… Tem um homem aqui no hospital que me conhece, e acho que ele é da família dele. Além disso, os dois se parecem. Você sabe se ele tinha algum irmão ou primo? Ele tem um sotaque de Bangladesh também”
Enviei a mensagem rapidamente e coloquei um sorriso educado no rosto, assim como minha mãe havia ensinado.
Virei-me de frente para o estranho e estendi a mão em sua direção para que continuasse no mesmo momento em que a notificação de minha mãe apareceu no celular.
“Filha? Do que está falando? Seu pai era filho único… Acho que esse homem pode ter cometido um engano. Onde você está?”
— Bom, eu conheço seu pai — ele começou, parecia nervoso e ficava mexendo os dedos calejados e preenchidos por anéis de pedras grandes.
— De onde?
— Desde pequenos.
— E como você sabia que eu estava aqui? Ele pediu para você trazer alguma mensagem?
— Eu não entendi o final, pode repetir?
— Meu pai, ele falou para você me dizer algo? — reformulei a pergunta. Meu coração batia acelerado no peito. Será que meu pai havia tentado contato?
— Eu vim passar um tempo na casa de Anushka, sou amigo de família. Temos negócios juntos. Descobri que você está noiva do filho de Anushka.
— Mas isso ainda não explica exatamente…
Meu celular começou a tocar ensandecidamente com o toque especial de minha mãe.
— Licença só um minuto, por favor. — pedi educadamente e afastei-me, colocando o celular na orelha. — Oi, mãe, tá tudo bem… Pelo visto ele é um parente do meu pai, eles se conhecem desde pequenos.
— , presta atenção! — ela exclamou impaciente e nervosa. — Olha o braço dele, tem alguma cicatriz no peito da mão?
Virei-me de soslaio e encarei sua mão.
— Qual delas?
— A direita, eu acho.
Fitei-o com atenção, mas ele parecia distraído com uma pintura na parede. Prestei mais atenção em sua mão e percebi o traço da cicatriz subindo até a manga da camiseta social.
— Sim, ele tem.
— …
Levantei a cabeça no mesmo momento em que ele me encarou, um sorriso triste estava em seu rosto.
— Mãe, pelo amor de Deus, você está me assustando. Ele é algum agiota ou algo do tipo? Só os agiotas têm cicatrizes assim!
— , sai daí agora e vem aqui para casa, precisamos conversar. — A voz de minha mãe beirava ao desespero.
O homem se aproximava de mim, mas não consegui me mexer.
— Ele é meu pai? — Minha voz embargada sequer conseguia processar a profundidade daquelas palavras. Elas não pareciam verdade quando saíram, não pareciam verdade quando minha mãe começou a chorar ou quando o homem finalmente se aproximou de mim após ter ouvido a minha pergunta.
Ninguém precisou dizer nada, mas eu sabia.
Eu finalmente estava conhecendo meu pai.
Capítulo dezoito
O relógio indicava ser onze e meia da noite. Minha mãe estava sentada diante de mim, usando um pijama de flanela e o típico avental com bolsos cheios de chocolate e remédios. Kabir estava na cozinha preparando chá. Adnan, mais conhecido como meu pai ressurgido dos mortos, a encarnação do mal, estava sentado ao lado de minha mãe. Ninguém conseguia dizer nada, havia uma parede de tensão impenetrável na sala, cortada apenas pelo som da chaleira dizendo que a água estava pronta. Mas eu não estava.
Meu corpo inteiro acumulava a tensão do dia, a preocupação com , a sensação de ter sido enganada, abandonada, tudo aquilo foi jogado em meus ombros sem que eu tivesse a opção de receber a notícia em doses pequenas.
O único aviso foi o sonho de alguns dias atrás. Coincidência demais, eu diria.
Depois de perceber que o doador de esperma responsável pela minha existência estava diante de mim, tomei a atitude mais racional possível. Pedi ajuda para a minha mãe. Disse a ele que só conversaríamos com a presença dela, o que ele aceitou meio relutante. Talvez estivesse com medo da reação dela, eu também teria, por isso queria que ela presenciasse aquele diálogo. Porque, caso eu chorasse como um bebê, ela poderia ser a cabeça raivosa da conversa.
— Ok, precisamos falar algo — minha mãe se pronunciou primeiro, mas eu continuei encarando o chão diante de mim, com os cotovelos apoiados sobre o joelho.
— Não tenho que falar nada, ele é que tem. — Apontei para Adnan.
Ele era extremamente parecido comigo, percebi enquanto dirigia para casa no carro de . Flora havia me assegurado que não tinha problema e que levaria o irmão para casa em seu próprio carro. Eu não iria junto com aquele homem para lugar nenhum. Ele poderia ser meu pai biológico, mas eu não sabia merda alguma sobre ele desde que nasci. Não me lembro de sua voz, nunca vi seu rosto pessoalmente desde que tenho memória, nada. Ele era um estranho que fez um trabalho meia bomba e agora está ligado a mim por um espermatozóide pelo resto da vida. Mas era somente aquilo.
Por que ele havia voltado?
A pergunta não parou de ressoar em meu peito durante todo o caminho até a casa de minha mãe.
Por que ele foi embora, em primeiro lugar? Por que não lutou por mim e pela minha mãe? Por que não me procurou nas vezes em que esteve no Brasil? Por que ele conhecia a mãe de ?
Todas as perguntas que eu finalmente havia desistido de fazer há alguns anos voltaram mais fortes, mais reais e mais sóbrias, mas ainda mais doloridas.
Se ele viesse com aquele papo merda de recuperar o tempo perdido, eu perderia a cabeça.
— Eu não sei nem como começar… — Adnan começou nervoso, passando os dedos pelos anéis nos dedos grossos.
— Se você não se preparou, isso é problema seu. — Praticamente cuspi. Minha mãe cerrou os olhos em minha direção.
— Não fale assim, .
— Eu vou falar do jeito que eu quiser com ele — retruquei com uma voz que sequer reconhecia como minha.
Meu corpo inteiro tremia de raiva, uma súbita vontade de chorar preencheu meu peito, sem conseguir acreditar que toda aquela cena se desenvolvia diante de mim.
Eu definitivamente não tinha colocado aquilo no roteiro da minha vida. Na realidade, tinha me acostumado com o fato de Kabir ser meu pai, porque ele era, e aquilo não me incomodava mais. Pelo menos não na maior parte do tempo.
— Ela tem todo o direito, Amélia — Adnan respondeu com um aceno, e minha mãe apenas assentiu. Eu a havia chamado para ser o lado raivoso, não o pacífico! — Bom, vamos lá, o que você quer saber primeiro?
— Por que você saiu do buraco de onde veio? Você é o amante da mãe de ? — questionei na lata antes mesmo que ele pudesse tomar fôlego.
Eu não conhecia aquela versão minha, a que xingava e disparava ódio atrás de ódio. Sou uma pessoa explosiva, mas não assim. Eu não gostava daquilo.
Aquela ideia sobre ele ser o amigo/amante passou pela minha mente durante todo o caminho de carro. As peças faziam sentido quando combinadas, eu só torcia para estar errada.
— Eu sou amigo de Anushka, vim passar uma temporada no Brasil para visitar um cliente. Não tinha ideia de que ela era a sua sogra, descobri em um jantar com eles.
Kabir apareceu da cozinha com uma bandeja em mãos e xícaras de chá. Peguei a minha, percebendo o quanto estava trêmula, então a deixei apoiada na mesinha de centro, tentando disfarçar inutilmente meu nervosismo. Adnan parecia do mesmo jeito, pois não tocou em seu chá fumegante.
Assim que Kabir distribuiu os chás, deu um beijo na minha testa e na de minha mãe, então foi para o quarto, deixando a porta do corredor aberta.
— Eu quero começar dizendo que sinto muito — Adnan disse após algumas respiradas. — Muito. Por Allah, você não tem ideia do quanto eu sinto. Eu nunca fiz isso antes, eu não sei nem como começar a falar tudo que quero dizer, mas… Eu não podia perder a chance de te ver. E olha só para você! É tão linda, parece tanto com sua mãe… — Os olhos de Adnan se encheram de lágrimas. Percebi relutante que minha mãe também parecia chorar.
— Honestamente, Adnan — pronunciei seu nome com o sotaque mais forte que conseguia, frisando em cada letra meu desrespeito por ele. Não me importava que ele fosse um indiano com cultura forte e imposição de patriarca, ele era um verme aos meus olhos —, eu acho lindo que você tenha ficado emocionado com o meu casamento e tudo mais — encarei minha mãe, que parecia me alertar sobre minhas próximas palavras —, mas você não faz parte da minha vida, não fez e não vai fazer. Eu sugiro o seguinte: você volta para a casa da Anushka, depois rasteja de volta para a Bangladesh e morre por lá, que tal?
— ! — minha mãe exclamou, assustada.
— Não, mãe, ouve mais. — Levantei-me da cadeira. Lágrimas teimosas escorriam quentes por minhas bochechas. — Não é problema dizer isso, porque, para mim, esse homem já estava morto antes de aparecer. Não faz diferença. Eu vivi mais de um quarto de século sem ele ao meu lado, não é agora que vai fazer diferença! — Abri os braços, sentindo o gosto ruim do enjoo tomar conta de mim. — Ele não estava aqui quando eu passei na melhor faculdade do país, quando eu entrei para a seleção de futsal feminino da faculdade, quando eu tive minhas crises de pânico na época do vestibular. Que inferno, ele não estava aqui nem quando eu comecei o maternal! — Àquele ponto, minha mãe chorava copiosamente e Adnan se controlava para não entrar na mesma onda. — Você já morreu há muito tempo, só falta desovar o corpo.
Finalizei meu monólogo, mas não me senti vitoriosa. Meu corpo inteiro pedia por uma pausa, por um choro descontrolado e raivoso, por um tempo só para mim.
— , eu sei que—
— Meu Deus, você não sabe nada! — interrompi Adnan antes que ele continuasse. Toda a raiva acumulada daqueles anos saía como brasa viva por meu peito. Todas as vezes em que não reclamei com minha mãe e guardei para mim, todas as vezes em que eu chorei sozinha no dia dos pais ou em todos os momentos que alguém me dizia que eu não parecia com Kabir e que ele não era meu pai de verdade.
A realidade é que eu não sentia falta dele, mas me irritava nunca ter tido a chance de sentir raiva. Sempre foi aceitação, foi “deixa para lá, não vale a pena”.
Ser uma criatura racional com relação ao abandono do meu pai me custou sentimentos que eu deveria ter sentido e que agora irrompiam de mim sem barreira alguma, porque não aprendi a lidar com eles antes.
Aquilo com certeza serviria para a minha próxima sessão com a psicóloga.
Nossa, pobrezinha dela, precisaríamos de meses só para lidar com esse dia.
Eu precisava pensar, ter um tempo sozinha para refletir sobre toda aquela situação e decidir o que fazer.
Suspirei pesadamente e encarei os dois silenciosos diante de mim.
— Olha só, eu não estou com cabeça para conversar pacificamente, e eu não sou nenhuma selvagem. Hoje foi demais para mim, não esperava nada disso. E eu preciso trabalhar amanhã. Vou para casa, mas topo um jantar para conversarmos. E só. Você tem um jantar apenas, pai. Eu vou mandar uma mensagem para minha mãe com os detalhes e ela te passa.
— Perfeito, . — Adnan praticamente chorou de alívio. Abracei-me com as mãos e encarei o teto, evitando que novas lágrimas caíssem.
— Mãe, boa noite, te amo. — Aproximei-me dela e dei um beijo em sua cabeça.
Quando entrei no carro, deixei que um grito engasgado saísse por meus lábios. Apoiei a cabeça no volante e chorei o choro mais dolorido que eu conseguia.
Eu estava sem ar, não sou acostumada a chorar, então as engrenagens voltavam a funcionar aos poucos.
Chora, respira, chora, respira.
Meu corpo inteiro convulsionou devido ao ódio, ao medo, ao nervosismo, a uma gama de sentimentos que eu não conhecia tão bem assim quando misturados um ao outro.
Pensei em ligar para , mas ele ainda deveria estar no hospital. As meninas já estavam dormindo. Eu não tinha a quem recorrer naquela hora. E aquilo era um pouco do que a vida adulta é: lidar com seus problemas sozinhos, porque nem sempre as pessoas estão presentes. Não é errado, mas solitário. Era solitário não poder chorar no ombro de alguém.
Pensei no quanto foi solitário para minha mãe também precisar lidar com o abandono de Adnan. Aquela era a primeira vez que eu pensava nele com um nome, e era estranho imaginar os próximos passos. Eu não estava pronta.
Limpei as lágrimas, assoei o nariz e me concentrei em não bater o carro enquanto dirigia até minha casa. Parei o carro de na rua e subi o elevador ainda soluçando, mas um pouco mais tranquila.
Se e eu não tivéssemos topado aquele noivado falso, será que eu conheceria Adnan? O mero pensamento me encheu de calafrios. Tanta coisa não teria acontecido se não fosse por aquele desastre.
Lancei meus sapatos na entrada do apartamento e lavei o rosto apressadamente, mais tentando evitar o inchaço do que tirar a maquiagem. O dia de hoje pareceu durar vinte e nove horas. Suspirei pesadamente e me encarei no espelho. Os cabelos longos estavam presos em um coque, minhas bochechas tinham um tom rubro, meus lábios estavam secos e inchados, assim como meus olhos, que diminuíram de tamanho devido ao inchaço pelas lágrimas.
Aquela me encarando de volta não parecia viva, era como um verdadeiro espectro. Passei as mãos em minhas bochechas, tentando me tirar daquele poço de autopiedade. Eu não deveria me colocar para baixo daquela maneira, não quando eu não era a culpada.
Mas talvez uma parte minha ainda pensasse que eu tinha culpa quando se tratava de . Talvez eu estivesse o enrolando assim como meu pai enrolou minha mãe, tentando lidar com tudo ao mesmo tempo e ignorando que eu não sou capaz de controlar tudo ao meu redor.
Eu precisava de uma boa noite de sono e descanso, o que não foi problema quando desmaiei no colchão antes que sequer encostasse a cabeça no travesseiro. Meu corpo decidiu ter um pouco de misericórdia de mim, só esperava que o resto do universo também tivesse.
Capítulo dezenove
Achei que os quatro pontos na minha coluna seriam o suficiente para minha mãe me livrar do fardo de ir viajar para o Rio, mas não funcionou. Mamadi era muito insistente quando queria, e era mais difícil ainda convencer alguém sem olhar no rosto da pessoa, já que eu precisei ficar virado de bruços por toda a noite no hospital antes de sair na manhã seguinte.
Flora me contou por cima o que havia acontecido com e, por mais que eu quisesse falar com ela, conhecia minha amiga o suficiente para saber que ela usava o tempo dela para processar tudo o que estava acontecendo.
Mesmo assim, enviei uma mensagem dizendo que estava bem e que poderia conversar comigo se quisesse.
Não comentei nada sobre o beijo, não era hora nem local para aquilo tudo.
nunca falava do pai para mim, então não tinha tanta ideia do que se passava em sua mente naquele momento, mas aproveitei o tempo no caminho para casa, deitado no banco de trás do carro de Flora com a bunda para cima, para pesquisar sobre formas de lidar com amigos com os pais separados. Infelizmente, não achei tanto material sobre um pai indiano que abandonou a família cedo demais e havia ressurgido dos mortos. Com tantos indianos no mundo, alguém deveria ter passado por aquilo também, não é?
— , apenas ouça falar — Flora resmungou enquanto me acompanhava até meu apartamento, que ainda estava manchado de sangue ao lado do sofá. Flora arqueou a sobrancelha e me deixou descansando na cama (de bunda para cima, claro) enquanto limpava a sujeira.
— Quando me dá conselhos — berrei direto do quarto —, ela me apresenta soluções. Quero fazer isso por ela.
— Nem sempre as pessoas precisam de solução, … — Flora colocou a cabeça para dentro do quarto enquanto balançava um pano molhado de sangue em minha direção. — Mas você, sim. Para com essa mania insuportável de não limpar vidro direito, essa é a solução para não matar sua família de susto!
— Ok, mamadi. — Flora revirou os olhos e voltou para a sala.
Lembrei-me de comentando comigo em minha casa sobre seu pai. Um arrepio cruzou meu corpo de repente. Será que ela era sensitiva?
— Como eu dizia — Flora berrou —, é justamente a pessoa com solução para tudo, mas não deve ter nenhuma a esse ponto. Quando falamos, as ideias ficam mais claras, e falar com você pode ser justamente o que ela precisa para arranjar algumas soluções.
— Hum, interessante — ponderei com a cara enfiada no travesseiro, sentindo meu queixo formigar.
Logo Flora estava sentada ao meu lado e mexia no celular com as pernas cruzadas sobre a cama.
— Você não tem emprego, não? — Virei o rosto para encará-la.
Flora era empresária. E ela, por incrível que pareça, não havia pegado dinheiro de nossos pais para isso. Ganhou boa parte do investimento inicial aplicando seu dinheiro de professora para crianças em diferentes mercados. Um dia, não sabemos se por sorte ou por pura esperteza, faturou trinta mil reais, e então começou a rodar o dinheiro. Hoje, já tinha três empresas próprias, era acionista de várias outras e começava a dar palestras para mulheres sobre empreendedorismo.
Eu admirava sua postura, mas ela tinha noção de que não poderia ter investido tão seguramente se não fosse pelo conforto que tínhamos. Mesmo que o dinheiro fosse inteiramente dela, boa parte dele era economizado por não precisar bancar o teto sobre sua cabeça. Eu e Flora fomos criados com plena noção de que o dinheiro de nossos pais não era o nosso. Papá sempre reforçou isso, inclusive nos fez começar a trabalhar com quinze anos. Flora era mais dedicada e mais antenada ao seu redor, e eu era mais tranquilo (mas não menos ambicioso).
— Eu prefiro trabalhar à noite — Flora confessou. — É meio difícil dormir, então eu trabalho.
— Tenho certeza de que esse não é um comportamento saudável.
— Você fala fórmulas matemáticas enquanto dorme. — Minha irmã franziu o cenho em minha direção e bloqueou o celular, colocando-o em seu colo.
Descobri recentemente que, sim, eu falo enquanto durmo. E mais ainda, falo sobre matemática.
O médico confessou que durante a sedação eu o ensinei a usar um modelo 3D de uma planta para achar falhas numa construção.
Para minha sorte, ele estava procurando um engenheiro, e eu já tinha um freela em mãos. Dr. Bandeiras disse que, se drogado eu era um bom matemático, imagina só como seria sóbrio. 1x0 para a matemática!
— Muito pesado o que aconteceu com a , né? — Flora iniciou o assunto com cautela, me analisando por sobre os óculos de descanso. Assenti e deitei a cabeça sobre as mãos.
— Eu não tinha ideia de que ele e mamadi se conheciam, fiquei bem surpreso. Pelo menos ele não é o amante de mamadi, isso tornaria as coisas bem mais complicadas.
Assim que Flora me contou o que havia acontecido, fomos buscar respostas com mamadi, que explicou conhecer Adnan há pelo menos trinta anos. Se tornaram amigos em Bangladesh, em um casamento da sobrinha de Adnan, e depois, quando ele decidiu vir fazer negócios no Brasil, mamadi já estava por aqui, então ela foi a rede de amparo dele quando decidiu investir em São Paulo.
Meus pais que o ensinaram sobre o mercado brasileiro, deram indicações de lugares para morar e o receberam na casa deles até que achasse um local para se instalar.
Depois se casou com a mãe de .
Mamadi contou que a cerimônia de casamento foi feita apenas com a família brasileira de Amélia, já que a dele estava toda na Índia.
Quando a empresa no Brasil faliu, alguns anos depois, quando já era um pouquinho maior, mamadi decidiu investir nos negócios dele na Índia. Os dois eram parceiros comerciais desde então.
E agora, pelo que mamadi disse, ele queria investir de novo no mercado brasileiro na área de tecnologia, por isso estava de volta. Mamadi o chamou para se instalar em sua casa, já que o espaço é enorme e eles têm quartos o suficiente para as visitas. Acho que minha mãe tem se sentido meio solitária, e Adnan era um amigo de longa data.
Ao questionar sobre como ele descobriu a relação de com ela, mamadi disse que estava mostrando fotos minhas e de Flora para ele, comentando sobre todo o tempo que ficaram sem se falar. Ela contou a ele que eu estava noivo e mostrou uma foto minha e de que havia sido tirada no almoço (parecem anos desde aquele dia). Levando em consideração que é a cópia esculpida e escarrada de sua mãe, não foi difícil fazer uma associação.
Pelo visto, o pai de orou por um sinal divino de que precisava falar com sua filha, e o meu acidente sentando com a bunda no vidro foi perfeito.
— , a tá ligando. — Flora jogou meu celular em minhas mãos e me encarou com ansiedade. — Atende!
— Calma, criatura abominável — resmunguei e peguei o telefone, encarando Flora com desconfiança. — Vaza, Flora.
— Grosseiro, rude, estúpido e que não me deixa ouvir a fofoca! — Ela se levantou e saiu do quarto, deixando uma brecha aberta, com certeza ouviria pela porta.
— Oi, ! — a voz de irrompeu ao atender o toque.
— Oi, . Decidiu que é hora de conversar?
— Eu só liguei para saber quando posso passar com o carro aí para te devolver. — Arqueei a sobrancelha e observei a sombra de Flora flutuar do lado de fora do quarto.
— Quando você puder. Vou ter que passar uma semana em casa por causa desses benditos pontos.
— Tadinho, meu Deus! Ah, vou me encontrar com Guilherme depois de amanhã aí perto, então já deixo com você.
Revirei os olhos. Guilherme era o próximo Bruno, já podia sentir. Aquilo me deixou com muito mais raiva do que deveria. Por que insistia em se enfiar em relacionamentos com caras incompatíveis com ela? E o pior de tudo, eu era incompatível com em muitos aspectos, por que diabos ela não investia em mim também?
O beijo havia significado algo para ela ou eu seria algo como o Guilherme: casual?
O mero pensamento me manteve enjoado pelo resto do dia — ou eram os remédios, mas me contentei com a primeira alternativa.
Eu não conseguiria fazer aquilo, não agora que meu coração bombeava todo o sangue para meu pau e eu não conseguia pensar em nada senão nela. Sem chance.
Ficamos em silêncio na ligação por um tempo. A respiração de era audível, mas eu não queria ser o primeiro a falar naquele momento.
— Eu conheci meu pai.
Mais alguns segundos.
— E como foi? — questionei com a voz mais mansa e calma que conseguia.
— Horrível. Mas eu já resolvi tudo.
— Como assim? Isso não aconteceu ontem?
— É.
— …
— Calma, ouve! — ela exclamou alto. — Eu vou sair para jantar com ele na terça que vem, e na quarta já vou para o Rio, certo? Vou ficar lá até segunda-feira de manhã.
— Certo — concordei com desconfiança.
— Então, só vou precisar lidar com ele por um jantar. Caso eu passe na entrevista de emprego, vou estar ocupada com a mudança. Ele vai entender o recado e me deixar em paz, não é?
— , não acho que funciona assim.
Eu estava entrando em um terreno perigoso e escorregadio.
— Claro que funciona! Ele vai falar um monte de baboseira no jantar, eu não vou acreditar em nada. Pensei em dizer que o perdoo só para ele ficar com a consciência limpa e voltar para Bangladesh.
— Isso é psicopata — disparei na lata. permaneceu em silêncio.
— Ele tinha duas famílias e não demonstrou remorso nenhum com isso. — Sua voz soou gélida quando voltou a falar. — O que eu estou fazendo é quase brincadeira de criança se comparado ao que ele nos fez passar.
Ela tinha um bom ponto, mas eu tinha um melhor.
— Quando minha mãe me chutou de casa e pediu para eu voltar alguns meses depois, quem foi que me incentivou a dar uma chance?
— … não é a mesma coisa.
— É sim, . Nossos pais nos machucaram e nos abandonaram de alguma maneira. Eu não estou dizendo que as situações são parecidas, mas o seu conselho para mim vale para você também. Não estou dizendo para você perdoar o cara e começar a passar as férias em Bangladesh, eu estou dizendo para você ouvir o que ele tem a dizer antes de cortar seu pai definitivamente da sua vida.
— E se ele me machucar de novo?
— E se ele não te machucar?
O silêncio voltou novamente. suspirou.
— Eu não vou correr risco nenhum com o meu coração. Meu sim é sim, meu não é não. E eu não quero ver esse homem nunca mais, .
“Eu não vou correr risco nenhum com o meu coração”.
Aquela frase ecoou por meus ouvidos durante os dias silenciosos que se passaram da recuperação, e uma ideia me ocorreu. Se eu estava pronto para me declarar para , eu precisava mostrar a ela que valia a pena correr riscos com nossos corações, mesmo que o final não fosse tão bonito quanto nas novelas.
era a rainha da organização e planejamento. Bem, eu estava pronto para usar um pouco daquilo a meu favor. E eu tinha até o fim da viagem para isso.
Capítulo vinte
Eu estava ignorando .
Não me leve a mal, não foi nem de propósito, mas eu não estava pronta para a semana presidencial mais conturbada que eu já havia presenciado.
Precisei ir para três cidades no interior durante a semana e fiz tanta hora extra que cheguei a dormir na redação um dia (pois é, o pessoal do RH quase me socou por isso, mas o sofá da sala de recreação estava aconchegante e eu estava cansada depois de ter passado o dia olhando para o computador).
Além disso, meu pai havia tomado a maior parte dos meus pensamentos. Entre odiá-lo, odiar o presidente e pensar em como as coisas ficariam com , me sobrava pouco tempo para efetivamente falar com . Preciso arrumar tudo em minha mente antes de poder colocar em prática.
E também estava me ignorando. Ele me mandou três memes e uma mensagem me perguntando como eu estava, mas nada além disso. Estranhei seu comportamento, e peguei-me olhando para o celular várias vezes durante o dia, esperando que tivesse mandado alguma mensagem.
Talvez aquilo fosse bom, significava que o beijo não havia sido algo grande para ele. Ótimo. Era mais fácil saber desde o início. Se eu passasse na entrevista do Rio, a última coisa que poderia acontecer seria um relacionamento à distância. Já me bastava a saudade que eu sentiria dele enquanto meu amigo, não conseguiria nutrir uma paixão avassaladora estando a mais de seis horas de ônibus dele.
— Você está linda hoje, querida. — Pavanelli passou ao meu lado exalando cheiro de cigarro recém fumado na varanda da redação. Sorri largamente em direção à chefe do RH. — Grande encontro?
Ah, quem me dera! Hoje já era terça-feira, ou seja, o dia de encontrar meu pai finalmente.
— É, pode-se dizer que sim — respondi sucinta.
Amanhã cedo vou partir para o Rio. Minha entrevista é na quinta-feira. Devo me encontrar com entre sexta e sábado, dependendo da hora que chegar para me buscar. Está tudo perfeito e planejado para fingir que meu pai não existe nos próximos dias.
Ele fez isso comigo por toda a minha existência, eu poderia fazer aquilo por alguns dias até voltar para São Paulo.
A redação tem estado uma loucura na última semana, especialmente com uma nova emissora de TV gringa que se mudou para o Brasil. Desde então, muitos de nossos redatores e jornalistas têm largado os empregos aqui e migrado para a outra emissora, a BCN. O RH era o que mais sofria o impacto com tantas entrevistas e contratos, além de exames de demissão.
— Ei, quer a minha sobremesa? Não estou com muita vontade — ofereci à Pavanelli, porque hoje já presenciei dois funcionários gritando na cara dela porque não receberiam algum valor de rescisão do contrato. Ela merecia uma boa sobremesa. A chefe do RH sorriu carinhosa em minha direção e aceitou de bom grado. Além disso, estava ansiosa demais para engolir algo que não água com açúcar e chá gelado.
E o dia foi salvo novamente graças à minha ansiedade!
Terminei meu horário de almoço e voltei ao computador, pegando meu celular novamente. Nada de . Mordisquei a ponta da unha e abri o aplicativo de mensagens, enviando uma mensagem rápida.
“Vamos continuar sem falar sobre o que aconteceu na sua casa?”
Bloqueei o aparelho. Ouvi meu coração batendo no ouvido. Os minutos pareceram se arrastar enquanto eu aguardava pela resposta e fingia trabalhar. Somente fingia, porque suor escorria pelas minhas têmporas e meu corpo inteiro parecia feito de geleca. A última vez que minha ansiedade atacou com tanta força havia sido no dia do atentado à sede da redação, um ano e meio atrás, após um dos fanáticos favoráveis ao governo explodir uma bomba no banheiro do térreo. Conseguimos sair sãos e salvos, a jornalista que escreveu a matéria atacando o governo foi feita refém por três horas.
Ser jornalista é não ser pago para sofrer o estresse correspondente à carga horária.
Eu achava que o dia seria caótico e eu poderia gastar cada segundo até ver meu pai de maneira corrida, estressada e muito habitual. Mas hoje, de todos os dias, o Brasil decidiu permanecer quieto, algo completamente raro. Revisei duas colunas antes de subir para o servidor principal.
Eu ganhei, três meses atrás, a minha própria coluna quinzenal no site oficial da redação. Lá eu falava sobre economia jovem e as tendências do mercado de consumo online, a área que mais me atraía. Apesar de preferir ser repórter e ter começado minha carreira daquela maneira, eu estava gostando de trabalhar na redação. Só não era o meu sonho. O que só tornava o emprego no Rio um sonho quase paradisíaco.
— Ei, o que está acontecendo hoje? Está mais agitada do que o normal. — Luana, minha colega de mesa, me encarou com o semblante preocupado.
Nós entramos juntas na emissora, sobrevivemos aos cortes de funcionários, ao atentado (especialmente), aos chefes misóginos e a tudo o que o mundo corporativo tem a oferecer.
— Eu estou com a ansiedade atacada — desabafei. Luana assentiu em compreensão, passando a mão pelos cabelos longos.
— Faça alguns exercícios de respiração, tente se distrair um pouco. Se isso evoluir para uma crise de ansiedade séria, te levo até a salinha de recreação e fico com você até passar, ok? O presidente que se exploda. — Gargalhei em sua direção e assenti, subitamente agradecida pela ajuda.
Molhei minhas mãos com água e passei pela nuca, colando alguns fios de cabelo à minha pele e molhando meu vestido. Fiz alguns exercícios que minha psicóloga me passou. Assim que finalizei, uma mensagem apareceu em meu celular.
“Sobre o que você quer conversar?”
perguntava. Pisquei algumas vezes.
“Sobre como não quero que nossa amizade acabe por causa de um beijo bobo”
Fechei os olhos até que ele me respondesse novamente. Eu passei a última semana inteira tentando me convencer de que aquele beijo não havia significado nada.
“Não se preocupe, um beijo bobo não é capaz de destruir nossa amizade...”
“Ótimo, porque eu não queria nada disso ficasse estranho e tudo mais. Nós somos bons amigos, e acho que estávamos meio levados pelo momento e essas coisas. Não é como se algo fosse mudar”
Enviei a mensagem com o coração na mão. Eu estava dando uma de , mas não conseguia evitar, estava me afastando dele antes que pudesse dizer que o beijo não representou nada para ele. Era mais fácil pensar que eu havia encerrado as coisas. Simples assim.
não respondeu mais a minha mensagem. Um incômodo surgiu em meu peito, talvez não fosse a melhor ideia passar qualquer tempo que fosse com ele e sua família. E pior ainda, eu duvidava que fosse querer a minha presença depois desse show de horrores em forma de mensagem no WhatsApp. Mas eu precisava dar um jeito de me desculpar, de tentar ser uma amiga melhor, mesmo que aquilo significasse fingir que o beijo não tirou meu sono, me fez tocar os lábios em frente ao espelho apenas para lembrar do toque dele.
— Está melhor? — Luana perguntou preocupada ao meu lado.
— É, acho que estou.
Foi muito mais fácil ver o tempo passar sabendo que eu havia blindado meu coração, ainda que porcamente.
*
Eu estava atrasada.
Ter reclamado sobre a calmaria do dia me rendeu, faltando uma hora para sair, uma matéria urgente sobre um projeto de lei absurdo. Escrevi a matéria com o cenho franzido e o enviei ao meu colega para a revisão. Assim que recebi o arquivo revisado, upei no site. Deitei com a cabeça sobre a mesa quando deu o meu horário. Estava na hora de encarar o monstro no armário, meu pai.
Comecei a pensar em Luke Skywalker e em como ele deve ter se sentido descobrindo que o maior vilão da galáxia era seu pai. E esse mesmo vilão horrível, diga-se de passagem, foi morto nas suas mãos.
Eu não queria matar meu pai para meu arco se completar, então comecei a pensar em outras maneiras de me relacionar com o maior jedi do universo enquanto pegava o metrô em direção ao restaurante que meu progenitor e eu combinamos.
Percebendo que talvez a família dos jedi mais poderosos do universo não poderia ser comparável à minha vida normal e medíocre, resolvi recorrer a algo que fosse mais… Real. O que as famílias do programa do João Kleber fariam no meu lugar?
Ali estava a minha deixa para fantasiar uma discussão acirrada de revelação, na qual meu pai assumia ser um vampiro que fugiu para a Índia, a fim de me poupar de seus inimigos.
João Kleber ganharia uma marca alta de audiência com um programa daquele, com certeza.
Soltei uma risada solitária ao encarar o grande hotel escalando pelo ar da metrópole.
Escolhi o local mais caro que o dinheiro gringo poderia pagar e pesquisei os pratos e os valores na internet. Decidi começar com uma entrada barata e caprichar no preço salgado do prato principal e da sobremesa. Não seria 1% da pensão que esse homem não me deu enquanto crescia.
O pensamento fez meu coração acelerar e meu corpo queimar. Eu e minha mãe conversamos muito nos últimos dias. Depois que fui embora, naquela noite fatídica em que conheci meu pai, eles dois conversaram a noite toda. Adnan se desculpou, minha mãe o perdoou — e sem problemas, diga-se de passagem. Até Kabir entrou na brincadeira.
Minha mãe era mais rígida e correta do que eu, e por isso estranhei que ela houvesse sido tão enfática na falta de senso em me prender ao passado. Mas ali estava o grande porém, eu não tinha um passado com ele. Eu não conheci meu pai. Sequer tinha alguma memória dele dos meus primeiros três anos de vida.
Cruzei o restaurante inteiro tentando controlar uma careta de desconforto, até que o vi parado em uma mesa ao lado de uma janela com vista para toda a cidade de São Paulo. Estávamos em um hotel, no vigésimo sétimo andar. Dali tudo parecia minúsculo e insignificante, exatamente como boa parte dos ricaços neste terraço gosta de olhar para os outros.
Meu pai usava um terno cerúleo que caía muito bem em sua pele marrom. A sobrancelha falhada no canto direito estava arqueada e um sorriso pequeno brotava em sua boca. Ele me encarou com confiança enquanto eu andava em sua direção, não parecia mais o homem chorão da última vez, o que eu não sabia ser algo bom ou não.
Aquele Adnan não aceitaria que o chamasse de inútil novamente, disso eu tinha certeza.
Ele se levantou quando cheguei ao lado da mesa e puxou a cadeira para que eu me sentasse no momento em que um garçom se aproximou.
— Boa noite, eu sou o Naha. Estou aqui para atendê-los nesta noite. Gostariam de uma entrada enquanto decidem o prato principal? O prato de hoje indicado pelo chef é risoto de salmão.
Encarei o garçom vestido de terno e com uma luva branca em mãos. Ele era um rapaz ruivo com os olhos mais vibrantes que eu já tinha visto. Sorri em sua direção, evitando o olhar inquisitivo de meu pai ao meu lado.
— Eu aceito o bolinho de arroz com lentilha e pastel de siri, por favor. — O homem assentiu e se dirigiu a meu pai, que encarava o cardápio em sua frente com o cenho franzido.
— O mesmo que ela, por favor — respondeu com o sotaque carregado.
Quando o garçom se retirou (quase chorei para que ele não o fizesse), forcei-me a encarar o homem diante de mim sob a luz baixa do restaurante. As mesas eram cobertas por tecidos sedosos e caríssimos e estavam dispostas por todo o salão. Garçons rodavam de um lado para o outro com bandejas em mãos e sorriso cordiais. Um piano de cauda se encontrava disposto em um palanque mais alto no meio do restaurante, e um pianista asiático tocava uma versão instrumental de um pop moderno. Sorri com a performance. Ele estava focado e apaixonado pelas teclas musicais, pude perceber. O som embalava o ambiente entre as conversas baixas e o som delicado de talheres encostando nas porcelanas.
— Você está linda, filha — Adnan começou com um sorriso pequeno. Assenti com a cabeça e encarei minha própria mão sobre a mesa, completamente desconfortável. Prometi para minha mãe que ficaria até o final e ouviria tudo o que ele diria, já que ela não me adiantou nada, apenas que ele realmente parecia arrependido de tudo.
— Pois é, minha mãe tem uma boa genética.
Eu prometi ficar até o final, mas não que deixaria de falar o que bem entendesse até lá.
Adnan suspirou e abriu um sorriso para o prato coberto por um lenço dobrado em formato de coroa do papa. Ora, ora, aquilo era interessante.
— Peço perdão por ter aparecido tão repentinamente… — disse enquanto eu encarava a metrópole lá embaixo e considerava me jogar pela janela apenas para não precisar mais um segundo daquela tortura.
— Alguns diriam que você até se atrasou alguns anos.
— , não há desculpa para o que eu fiz. — Adnan passou a mão pelos cabelos compridos na altura do pescoço e me encarou seriamente. — E não há desculpas para o medo e vergonha que me impediram de vir atrás de você todos esses anos. Porque foi isso que me impediu de encontrar você e sua mãe de novo, vergonha por ter abandonado vocês duas, por ter escondido uma família inteira de sua mãe. Na época que vim para o Brasil, eu estava prometido a uma mulher. Não queria me casar, mas era a minha responsabilidade. E então conheci sua mãe. — Um sorriso se alastrou por seu rosto e seus olhos pareciam imersos em memórias das quais não fiz parte, ao passo que um nó gigante estava preso em minha garganta. — Ela me fez o homem mais feliz e livre do mundo. Eu me apaixonei por Amélia com tanta facilidade… Sua mãe era a mulher mais encantadora do mundo, apesar de muito fechada com relação aos seus sentimentos.
Fomos interrompidos pelo garçom com nossas entradas. Enfiei tudo o que podia na boca, a fim de não precisar comentar nada naquele momento, e aquilo não foi um impedimento para Adnan, que continuou falando quando o funcionário saiu de cena.
— Eu achei, de verdade, que poderia permanecer com o amor da minha vida aqui e manter a minha família na Índia. Ninguém descobriria. Continentes diferentes, a internet não era banda larga… Eu fui estúpido e tolo em sequer cogitar isso, mas já havia ido longe demais para voltar atrás. Não poderia abandonar minha família na Índia, já que toda a minha herança, meus negócios, todo o meu mundo estava lá. — Cerrei os punhos sobre a mesa.
— Nós éramos o elo mais fraco. A opção menos dolorosa — completei por ele. Adnan teve a decência de não conseguir me olhar nos olhos, encarando o pastel de siri à sua frente. Precisei morder o lábio inferior diversas vezes para controlar a raiva. — A sua esposa, a indiana, ela sabe disso tudo? — Adnan assentiu com um suspiro.
— Ela me perdoou, felizmente. Tentei contato com sua mãe depois que cheguei à Índia e percebi a, como que se diz mesmo? Burrada, isso, burrada que eu fiz. Desculpa, eu não pratiquei tanto português quanto deveria, apesar de ter tido aulas nos últimos anos.
— Você teve o quê? — perguntei incrédula. — Por que estava aprendendo português?
— Para vir atrás de você.
Bem, eu não esperava por aquela.
— Há três anos, decidi que meu medo e minha vergonha não eram maiores do que a minha vontade de te conhecer, mas eu estava lidando com a crise financeira da empresa. Eu só consegui me organizar há cinco meses para vir para cá, foram as minhas primeiras férias em cinco anos. — Assenti em compreensão, mas não me permiti falar, eu não sabia o que sairia de minha boca caso o fizesse.
— Qual a sua maior dificuldade?
— Oi? — perguntou confuso.
— Sua maior dificuldade falando português. — Adnan tentou controlar, percebi, mas um sorriso gigante escapou quando fiz a pergunta.
— Acho que continua sendo os verbos irregulares. Eu assisti muita novela nos últimos anos, sou fluente em português, apesar de ter sotaque, mas algumas coisas são muito difíceis.
— É, eu sinto a mesma coisa falando hindi. — Adnan estava surpreso. Passei a mão sobre a barba com um ar de curiosidade.
— Sua mãe te ensinou hindi?
— Sim, ela e Kabir. Eu quis aprender outros idiomas, mas resolvi focar em línguas latinas.
Eu sempre ouvi falar sobre filhos que se orgulham quando seus pais ficam felizes por eles, surpresos por sua perspicácia. Eu mesma já havia presenciado isso diversas vezes com minha mãe, mas o olhar de surpresa nos olhos de meu pai… Aquilo foi algo novo. Permiti-me sorrir um pouco.
— Ah, você está sorrindo! — Fechei a cara imediatamente. — — Adnan me encarou com os olhos mais melancólicos do que antes —, não tem um dia do qual eu não me arrependa de ter te deixado para trás. Não houve uma noite sequer em que eu deitasse a cabeça no travesseiro sem sentir um peso esmagador por não saber como você estava.
— Seu medo da minha rejeição foi maior do que o seu amor de pai — cortei-o. — E é isso que não tem perdão. Já vi mães levantando carros para salvar seus filhos, pais que vão todos os dias para os trens e metrôs pedir por dinheiro com lágrimas nos olhos, porque não querem ver os filhos morrerem. Mas sabe o que esses pais têm de parecido?
Adnan permaneceu em silêncio. Tentei controlar um soluço, mas a dor no peito estava de volta. Senti-me fraca e cansada.
— Eles estavam lá, presentes — finalizei. Àquele ponto, lágrimas teimosas batalhavam para escorrer. — Você podia ter sido um pai idiota, mas se estivesse lá, ainda seria um pai presente. Crianças não entendem medo, razão ou traição — apontei o óbvio. Minhas mãos tremiam de nervoso, eu não conseguia mais ficar sem falar o que estava enterrado em mim há anos. — Crianças entendem quem é presente. Você não lutou por mim, você me abandonou.
Não tive forças para encará-lo, especialmente agora que a mesa ao nosso lado parecia subitamente interessada no drama de novela.
— Eu preciso ir ao banheiro, me desculpa.
Levantei-me rapidamente e caminhei a passos apressados até uma porta do outro lado do salão, atrás de uma parede gigante fazendo um formato de caracol até os sanitários. Lágrimas insistentes se derramavam por minhas bochechas. Ao entrar no banheiro, peguei papéis mais confortáveis que minha cama e sequei as lágrimas.
Meus olhos estavam vermelhos e cansados, minhas mãos tremiam e meus ombros estavam curvados em má postura. Suspirei pesadamente e realizei mais alguns exercícios de respiração. Eles se tornaram meus melhores amigos naquelas semanas.
Por mais que aquilo estivesse indo melhor do que o esperado, eu não contava com o elemento da tristeza profunda. A raiva, o ódio, o desconforto, a melancolia, eu conseguia lidar com tudo aquilo, mas não com a tristeza, com o monstro que se escondia sob minha pele.
Durante todos aqueles anos, fui compreensiva por causa de minha mãe. Nutria um ódio por dentro, mas percebia finalmente que aquele ódio vinha da tristeza, da incompreensão. E eu odiava cada um daqueles sentimentos ruins e confusos dentro de mim.
Éramos muito parecidos, eu e ele. Enquanto me olhava no espelho, pensava em como nossa aparência era similar. Os olhos grandes, o queixo, até a sobrancelha. Mas além disso, a tentativa de lidar com tudo sozinho. Ele achou que poderia sustentar duas famílias ao mesmo tempo. Eu nunca fiz isso, contudo nunca gosto de pedir ajuda, sempre posso resolver tudo sozinha. A diferença é que aquilo ainda não havia explodido na minha cara, porém estava perto. .
Voltei para a mesa pensando em como minha mãe o perdoou, refleti sobre o que ela compreendeu para que pudesse perdoá-lo. Ela disse que eu teria que achar meu próprio motivo para perdoar meu pai, e eu iria atrás dele.
Capítulo vinte e um
Eu não compreendi perfeitamente o que estava fazendo até que me vi parada em frente ao apartamento de . As luzes automáticas do corredor já estavam apagadas, meu corpo tremia e minhas mãos suavam rios.
Pisquei algumas vezes, ainda atordoada demais pelo restante do jantar. Meu coração batia forte e minha rinite estava altamente atacada devido ao acesso de lágrimas no carro durante todo o caminho para cá, mas eu estava decidida.
Durante o jantar, pedi para meu pai mostrar sua família. Eu tinha irmãos. Cinco, para ser mais precisa. Três meninas e dois meninos. Um deles tinha praticamente a minha idade, o nome dele era Barney (pois é) e era a cópia idêntica de meu pai. Naquele momento, enquanto seus olhos brilhavam com amor dilacerante por sua família, me vi ainda mais destroçada por dentro.
— Eu não precisei passar pela dor sozinho, sabe — Adnan comentou com um sorriso apaixonado ao olhar para sua esposa. — Ela estava lá comigo e insistiu por todos esses anos para que eu viesse atrás de você.
Eu não queria passar por aquilo sozinha também, não importando o quanto meu orgulho e minha sensibilidade estivessem doendo. Pedir ajuda não é fraqueza, lembrei a mim mesma enquanto esperava pelo sinal vermelho abrir perto da casa de , é humano.
— Quando você vai entrar, ? — Assustei-me com a voz de vinda do outro lado da porta fechada.
Estranhei que o porteiro me deixasse subir sem ligar para avisar. Pelo visto, ele ligou.
Engoli em seco e estalei os dedos nervosamente.
— Agora, talvez? — tentei soar brincalhona, mas minha voz denunciava as lágrimas embargadas e o nervosismo.
abriu a porta, a luz do corredor se acendeu novamente. Ele estava lindo de calça moletom preta e sem camisa. Estava um calor verdadeiramente infernal de verão, mas se ele estava com tanto calor, por que diabos usava uma calça de moletom?! E por que eu estou com tanto calor também?
— Oi. — se apoiou contra o batente da porta e cruzou os braços, arqueando a sobrancelha em minha direção. Mordi o lábio com força, sem saber o que dizer ou como agir. Era a primeira vez que nos víamos sem envolver sangue e gritos depois do beijo.
— Oi — cumprimentei de volta com um sorriso nervoso.
— Você vai ficar parada aí ou vai entrar, ? — perguntou com o semblante sério, abrindo passagem para mim. Adentrei na casa com o coração batendo com força e com a respiração ofegante. — Bom, preciso saber se você veio reforçar o quanto o nosso beijo foi insignificante, saca? Só para me preparar. Eu estava no meio de uma sessão de Pesca Mortal, odiaria estragar meu humor desse jeito.
Engoli o choro e encarei o teto, mas as lágrimas já haviam voltado. pareceu subitamente consciente do meu estado, porque sua expressão foi aliviada.
— O que houve?
— Jantar com meu pai.
— Pensei que você fosse cancelar — apontou.
E sim, eu ia. Mandei uma mensagem para meu amigo três dias atrás avisando que eu desisti de me encontrar com Adnan, mas não o avisei de que voltei atrás em minha decisão novamente.
— Eu descancelei. — franziu o cenho e assentiu em compreensão. Agora ele estava parado e apoiado sobre a mesa da sala, com os braços cruzados sobre o peito mais definido. Eu não via sem camisa há um bom tempo. A cena era inebriante, para dizer o mínimo. Pontos da luz refletiam em seu peitoral limpo de pêlos, as veias sobressaídas seguiam até o antebraço e pequenas sardinhas despontavam em seus ombros.
— Pela sua cara, acho que as coisas não foram muito boas.
— Elas foram, na verdade — contrariei. — Eu não estou pronta para perdoá-lo, mas eu entendi algumas coisas.
— Me ilumine, . — apontou para o sofá para que eu me sentasse. Soltei minha bolsa sobre o estofado enquanto ele se sentava na mesinha de centro. Fiz uma careta em sua direção.
— Você vai quebrar isso.
— , foco.
— Ok. — Suspirei pesadamente e encarei minhas próprias mãos trêmulas. — Meu pai achou que conseguiria lidar com toda a situação sozinho. Ele realmente achava que ter duas famílias era possível, se ele se esforçasse sozinho para fazer aquilo dar certo — controlei uma careta azeda — e a merda explodiu na cara dele.
— Obviamente — constatou com um sorriso pequeno.
— E eu não quero cometer os mesmos erros que o meu pai, .
Passei a mão pelos cabelos agora presos em um coque. permaneceu calado enquanto eu divagava.
— Você é a pessoa em quem eu mais confio no mundo. — Minha voz estava embargada, meus olhos traziam novamente as lágrimas que eu achava ter esgotado completamente no carro. — Eu não quero te perder, não quero te afastar de mim, não quero lidar com tudo o que tem acontecido na minha vida sozinha. Eu te amo tanto, não consigo fazer isso só.
piscou algumas vezes e esticou sua mão, parando o tremor nas minhas. Encarei nossos dedos cruzados e virei-me para seu rosto. As lágrimas escorriam novamente, meu peito ardia entre as lágrimas, o medo e a saudade do rosto de me tomavam. Peguei-me ansiando pelo abraço dele, pelo toque e pelo companheirismo que eu sabia não ter com mais ninguém além de Patel.
— Eu nunca te deixei sozinha, não é porque você resolveu ficar doida que eu vou fazer isso — apontou. Ruguinhas de preocupação se instalaram em sua testa.
— Eu estou tão cansada, e você é bom demais para mim… — solucei, descendo o olhar para meus joelhos.
respirou fundo e se colocou de joelhos, puxando-me para um abraço desajeitado, mas que se encaixou perfeitamente no que eu precisava. Afundei meu nariz em seu ombro, fungando e chorando alto enquanto ele fazia carinho em minhas costas.
— Eu passei minha vida inteira considerando meu pai um homem morto — confessei com a voz abafada. — Nunca senti tanta dor antes! Eu nunca precisei passar pelo luto por meu pai, porque eu nunca o conheci, então por que agora que ele voltou eu sinto essa dor como se o tivesse perdido para sempre? — choraminguei novamente, apertando os nós dos dedos atrás do pescoço de , sem conseguir controlar os soluços desesperados. — Eu me senti tão sozinha…
— Você não está sozinha, . Nunca, está entendendo? — me apertou com mais força. — E você não é boa demais para mim, somos apenas dois seres humanos com muitos defeitos. Você também me aguenta em meus piores momentos e me ajuda a melhorar, não é? Estou aqui para fazer isso também, . — depositou um beijo em meu ombro e voltou o olhar para mim, segurando meu rosto entre as mãos. — A não ser que você me chute para longe, eu vou continuar do seu lado.
Senti meu peito explodir em um amor tão grande que poderia atravessar a estratosfera. Desci meu olhar para os lábios de . Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, agarrei-me ao seu pescoço e o beijei com urgência.
Minha pele se arrepiou sob seu toque quando ele retribuiu, puxando-me para perto e esmagando minha cintura contra a sua.
Um beijo molhado de lágrimas e catarro. Exatamente o que eu queria para aquela noite.
O gosto salgado se misturou entre nossos lábios em um beijo desajeitado e intenso. Segurei os fios de cabelo de com força, puxando-os quando ele suspirou.
— . — nos separou subitamente.
Nós dois estávamos ofegantes, meu peito subia e descia descontrolado, minhas mãos trêmulas ainda estavam no cabelo dele. me encarava com tanta intensidade que poderia me desmontar ali, somente me olhando. Passei a ponta da língua sobre os lábios, movimento que acompanhou tão ofegante quanto eu.
— Você não está em condição para isso.
— Para o quê? Beijar? — perguntei confusa.
Lembrei-me da mensagem que havia mandado mais cedo. Eu tinha razão! Meu Deus, o beijo não havia significado nada para mesmo.
Fui tomada por uma onda de vergonha e constrangimento. Eu estraguei tudo.
Afastei-me dele, e os olhos de se alarmaram.
— , espera, você não vai sair correndo.
— Eu não ia — menti descaradamente.
Eu queria enfiar minha cara em um vaso de planta e comer terra até virar árvore.
— Sim, você ia — respondeu ironicamente. — Você não pode me beijar agora depois de ter falado com seu pai.
— Por que não?
— Porque a mensagem que você mandou mais cedo é o que a ainda pensa, não essa que está na minha frente. Aposto que você vai acordar amanhã e se arrepender disso, me dar um gelo e ficar toda doida. — passou as mãos pelo cabelo, que agora chegava aos ombros de tão comprido. — Eu não posso fazer isso, , não posso ser um boneco na sua mão toda vez que você tem um pico emocional.
— Desculpa.
— , eu sei que está tudo difícil para você, e Deus, eu não imagino o quanto esteja sendo difícil. Mas… Eu não consigo, me desculpa.
Assenti em compreensão, lutando contra todo o sentimento de ridículo que surgia em meu peito.
— Eu vou embora, . Desculpa. Não foi uma boa hora — murmurei envergonhada e peguei minha bolsa no sofá, levantando de supetão. soltou uma risada amarga, beirando ao cinismo, e cruzou os braços sobre o peito.
— Vê, é exatamente disso que eu falo! Você está fugindo logo após dizer que não queria ser como seu pai! — ele exclamou seriamente, completamente contrariado.
Senti minhas bochechas enrubescerem e larguei a bolsa, virando-me para ele completamente.
— Você não está sendo justo, Patel.
— Como não? Você sempre foi assim, ! Veio aqui para me pedir desculpas, mas está indo embora e provando que seu desejo de fugir é maior do que o de encarar um possível não, você não me dá a chance de falar! Me explica, de onde vem isso?
Lágrimas furiosas escorriam por meu rosto enquanto parava para respirar, seu peito subia e descia violentamente, ele estava verdadeiramente com raiva. Mordi o lábio inferior com força, cogitando suas palavras e sendo tomada por uma onda de coragem inevitável.
— Bom, então vamos ser honestos — comecei em voz baixa. Pensei que não tivesse me ouvido, mas fui surpreendida pela clara incompreensão em seu rosto. — Você quer saber por que eu fugi nessas últimas semanas?
Eu estava cansada das mentiras que acabaram com a minha família, mentiras que eu contei para mim mesma e para nos últimos dias.
Odeio mentiras, mas não consegui ser honesta com meu melhor amigo nos últimos meses sobre o que sentia, e isso estava me corroendo.
Estava na hora de deixar a honesta tomar conta novamente, e que ela nunca mais precisasse ser colocada de lado visando meu próprio conforto.
Se quisesse aceitar o que eu tinha a dizer, ficaria feliz. Do contrário, eu tinha um emprego no Rio pronto para segurar a minha queda e me ajudar a esquecer da rejeição. Começar de novo. Eu era boa nisso, e independente da resposta de , eu seguiria em frente, assim como minha mãe seguiu.
Um coração quebrado não é motivo para me esconder, é motivo para abandonar um barco antigo e entrar num novo, e quem sabe o que eu encontraria no meio do mar gigante ao meu redor?
— É só o que eu quero saber — respondeu irredutível.
Fitei-o seriamente, me aproximando um pouco mais, sentindo o ar de suas narinas bater em meu rosto quando o encarei de perto, quase implorando por misericórdia para meu orgulho.
Suas íris estavam iluminadas pela luz da sala, sua pele escura era perfeita, assim como seus lábios, agora franzidos enquanto alternava seu olhar entre meus olhos e minha boca.
— Diga, — incentivou. — Diga por que diabos você foge toda vez que eu me aproximo? Por que você não consegue aceitar que eu cuide de você? Me diz por que cacete eu preciso recolher pedaços do meu coração toda vez que você me deixa confuso!
A confissão me deixou nervosa, mas eu não me afastei, apenas me aproximei mais de e, encarando seus olhos confusos, praticamente sussurrei, talvez confessando para mim mesma:
— Eu não sei lidar bem com o fato de estar apaixonada por você, .
O som da cidade esmoreceu, o vizinho cantor de forró desligara o rádio de som há alguns minutos. Eu conseguia ouvir meu próprio coração acelerado, sangue rugia em meus ouvidos após a confissão que eu guardei em meu peito nos últimos dias.
Eu estou apaixonada por . Completamente. Sem espaço para negação ou dúvidas.
— Você… hein? — piscou algumas vezes, completamente incrédulo. Aquilo era uma resposta negativa ou positiva? Comecei a fechar e abrir os punhos, ansiosa por sua resposta.
— Não é tão difícil, ! — exclamei nervosamente, virando de costas para ele, como se a confissão jogada no ar pudesse desaparecer se eu simplesmente fingisse que nunca ocorrera. Passei a mão sobre o rosto e encarei a parede. — Eu não consigo encarar você se a resposta for não — comentei honestamente, com a voz impressionantemente firme. — Então, o que quer que você vá dizer, diga enquanto eu estou virada.
permaneceu em silêncio por um momento, a ansiedade ainda corroía meu corpo por inteiro, dizendo o quanto aquilo era ridículo.
Todo aquele discurso corajoso foi ralo abaixo, eu queria muito ser correspondida por .
— Acho que eu tenho a minha resposta — desisti finalmente, pegando minha bolsa no sofá. Eu devo ter lido algum sinal errado na semi-declaração de . Se é que aquilo beirava uma declaração.
Antes que eu pudesse puxar a bolsa contra meu corpo, agarrou o material de couro e o jogou de volta no sofá, então colocou-se à minha frente com um sorriso atordoado rasgando seu rosto.
— Você está o quê?
— Você realmente quer que eu repita? — perguntei estupefata, sentindo a raiva substituir a vergonha. — Qual é a sua, cara?
— , você por acaso não sabe ler a minha expressão depois de tanto tempo?
estava nervoso, seus olhos passeavam livremente por meu rosto, um sorriso calmo pendia em seus lábios enquanto eu era tomada pela súbita consciência de sua mão em meu braço.
Soltei um gritinho assustado quando ele enlaçou minha cintura, puxando-me para perto. Aparei minha queda segurando seus ombros com força, e quase bati com minha cabeça em sua bochecha.
Se antes meu rosto estava vermelho de vergonha, agora ele parecia verdadeiramente um nariz de palhaço.
— Diz de novo, — ele sussurrou, arrastando seu nariz com o meu. Fechei os olhos de súbito, apertando mais seus ombros entre meus dedos. — Diz mais uma vez.
Meu corpo inteiro arrepiou diante de seu pedido, sua voz entrecortada com o nervosismo atingiu níveis profundos em minha mente. Respirei pesadamente e repeti:
— Eu… gosto de você.
riu, e fui tomada por uma alegria descomunal com o som mais gostoso que eu já tinha ouvido. Ainda de olhos fechados, eu podia sentir seus lábios próximos à minha bochecha, o toque fantasmagórico de seus dedos sobre minha cintura e seu coração batendo fortemente contra o meu.
— Você não usou essas palavras, .
Um puxão mais próximo, e eu podia sentir meu tronco colado ao seu. Sua pele exposta estava quente contra a minha roupa e sua mão larga segurou minha nuca, enquanto a outra permanecia repousada em minha cintura.
— Você está me matando aqui, … — murmurei sem graça, mas ele não cedeu. Olhei para o teto e bufei, soltando as palavras novamente: — Eu estou apaixonada por você. Pronto. É isso. Agora eu posso ir-
— Me deixa responder, mulher! — ele riu contra meu pescoço, sem me deixar sair de seu aperto. Engoli em seco e assenti. Desci os olhos e encontrei me encarando também, tão profundamente quanto poderia. Nós dois praticamente não tínhamos espaço para além do outro, para qualquer lugar que eu fosse, a pele de me envolveria, seu cheiro, seu cabelo, tudo.
— Você não tem ideia do quanto eu sou apaixonado por você, … — ele praticamente sussurrou. Seus dedos dedilharam minha cintura com carinho, sua boca encontrou minha testa, depositando um beijo leve. Permaneci encarando seus olhos, completamente absorta pela beleza do homem diante de mim. — Você não tem a menor ideia.
— Ah, eu tenho, pode acreditar que tenho — comentei debilmente, sentindo meu pescoço doer ao olhar para cima por tanto tempo. — E o que a gente faz agora? — perguntei ansiosa, envolvendo os braços ao redor do pescoço de .
Meu Deus, gosta de mim!
Não, corrigindo, ele é apaixonado por mim.
A informação não desceu completamente, não acho que iria até que alguém me desse um tapa na cara.
— Eu tenho algumas ideias do que a gente possa fazer… — ele cantarolou, colocando seu joelho entre minhas pernas. Suspirei e prendi o fôlego, sentindo meu ventre queimar com sua proximidade. — Mas não hoje.
Senti falta de sua pele imediatamente.
O ar gelado me envolveu, e minha pele se arrepiou pela falta de contato com . Pisquei algumas vezes, ainda atordoada.
— Você acabou de se declarar para mim e agora não vai me beijar?! — aumentei minha voz, abrindo os braços em indignação. gargalhou ao se apoiar novamente contra a mesa.
— Eu devo admitir que não esperava isso, nem em um milhão de anos. — Arqueei a sobrancelha diante de sua confissão. — está apaixonada por mim… Acho que vai demorar para processar isso, sabe?
Revirei os olhos e me aproximei como uma criança emburrada, puxando-o para perto pelo fio do cós da calça.
Que se lasque, toda a minha dignidade já foi para o lixo hoje. Implorar para sentar nele era o mínimo.
— Me deixa te mostrar o quanto eu gosto de você… — murmurei manhosa, mas não cedeu, apenas me segurou pelos ombros e me encarou com um sorriso.
— Acredite em mim, eu estou doido para ver o quanto você gosta de mim, mas nada disso muda o que aconteceu com seu pai hoje.
— Puta merda, , você vai falar do meu pai agora? Quer me brochar mais? Fala logo que você não lava o saco, inferno!
riu alto, me puxando para um abraço apertado. Funguei em seu pescoço, absorvendo o cheiro de colônia e pele. Pelo amor, eu quero lamber esse homem inteiro! Segurei-o com força, como se a qualquer momento eu pudesse acordar em minha cama, lamentando minha falta de coragem para me declarar para meu melhor amigo.
Soltei uma risada alta quando ouvi Falamansa tocar alto no vizinho. Absorvi com deleite o corpo de tremendo de rir também. Nós nos afastamos, agora eu o via ainda mais de perto.
— Eu não quis te brochar falando do seu pai, … — passou as costas dos dedos por minha bochecha. Fechei os olhos por impulso. — Mas nós vamos fazer isso do jeito certo, e você está cansada e machucada. Não seria justo.
E ele estava certo.
Até mesmo naquilo, era mais consciente.
Assenti a contragosto e abri os olhos, sem deixar de sorrir em sua direção.
— Obrigada.
— Você está me agradecendo por fazer o mínimo? Quem é você e o que fez com a ? — Dei um soquinho em seu peito nu, controlando o impulso de manter a mão ali.
— Eu estava com medo de você me rejeitar, na realidade.
foi quem revirou os olhos dessa vez.
— Você me conhece há tantos anos, mas não consegue entender nada, não é?
Lembrei-me das meninas falando sobre ser apaixonado por mim há muito tempo, mas eu ainda não conseguia falar sobre aquilo. Um passo de cada vez.
— Você já sabia que eu gostava de você, por acaso? — questionei bem humorada. deu de ombros, mas o sorriso não morreu.
— Eu imaginei que sim, mas você só precisava de um impulso. Se eu soubesse que seu pai seria o gatilho, teria ido buscá-lo na Índia pelos cabelos antes.
— Vai se ferrar, Patel.
Nós dois permanecemos em um silêncio gostoso. Passeei por todo o rosto de , gravando cada detalhe em minha mente. Ele parecia fazer o mesmo comigo.
— Você não vai mesmo me comer? — tentei mais uma vez. gargalhou alto, negando com a cabeça.
— Não, hoje não.
— E quando isso vai acontecer? — bufei. — Que burocracia…
— Quando a gente resolver toda essa questão do noivado. — Arqueei a sobrancelha, assentindo em compreensão. — Eu não conseguiria fazer nada com você sabendo que só estamos envolvidos nessa furada por minha causa. Não seria justo com você.
Maneei com a cabeça e afastei-me dele. Ele estava certo, e se eu precisaria pensar com calma, estar perto daquele peito desnudo não seria a opção mais sóbria.
— Ok, então você promete me comer quando falarmos para a sua família sobre o noivado falso?
— Mulher, você é muito direta, cruzes! Eu não comer você… — Cruzei os braços sobre o peito e o encarei em desafio, arqueando a sobrancelha. — Primeiro eu vou amar você, e depois eu vou te comer.
Meu corpo inteiro sentiu o baque de suas palavras, e um arrepio gélido cruzou minha espinha, ligando a chavinha maldita que permanecia ativa toda vez que aparecia em minha mente. Controlei o ímpeto de esfregar as pernas e sustentei seu olhar.
— Ai, ai, geralmente quem fala demais acaba entregando pouco… — cantarolei. Soltei um gritinho quando se aproximou rapidamente e me puxou para perto, envolvendo minha nuca com sua mão espalmada e apoiando a outra em minha bunda, praticamente fundindo nossos corpos.
Apoiei uma mão na mesa atrás dele, assustada pelo movimento repentino.
Não tive tempo para fazer piada alguma, pois no minuto seguinte me beijava. Gemi contra seus lábios, segurando seus cabelos com força entre meus dedos. Suas mãos passearam livremente por meu corpo, apertando meu seio sobre o sutiã e descendo sua boca para meu pescoço exposto. Praticamente me sentei contra seu joelho, tentando tocar qualquer pedaço de pele uma contra a outra.
— Sabe como eu senti que você estava se rendendo, ? — praticamente ronronou enquanto contornava meu mamilo com o polegar, afastando-se o suficiente para me encarar. Neguei com a cabeça, sem tirar os olhos de seus lábios inchados.
— Não, me conta — pedi, e fui tomada por sua boca mais uma vez, mas por pouco tempo.
— Pelos seus sorrisos… — Deitei a cabeça para o lado, sentindo a boca de percorrer livremente minha pele exposta. Contorci os dedos no sapato, tentando evitar que meus olhos fechassem com o toque sensível em minha pele. — Pelo seu beijo aqui em casa… — Revirei os olhos quando ele começou a mover o joelho entre minhas pernas. Suspirei pesadamente contra seu pescoço, e sorri ao perceber que ele estava arrepiado. — Pela forma como você reagiu no provador da loja de vestidos…
Aquele dia parecia ter acontecido há eras. Naquele momento eu já sabia que não era apenas meu amigo, pelo menos não da minha parte.
Segurei pela nuca, puxando-o para beijá-lo novamente, mas ele apenas sorriu e se afastou.
— Boa viagem, .
Encarei atordoada quando ele se desvencilhou de mim, indo em direção à porta, que agora estava aberta. Pisquei algumas vezes, tentando processar o beijo.
A viagem!
— Você não vai me beijar desse jeito e me mandar embora, seu filho de uma-
— Você disse que quem fala demais faz de menos, não é? — Arqueou a sobrancelha e colocou um sorriso desgraçado no rosto. Desci o olhar para sua calça de moletom, cerrando os punhos ao vê-lo crescer atrás do tecido. — Estou terrivelmente ofendido, linda.
Peguei minha bolsa no sofá e andei desafiadora em sua direção, controlando o tremor em meu corpo.
deitou a cabeça contra a parede quando eu o segurei por sobre a calça, acariciando-o enquanto mantinha meu olhar sobre o seu.
— …
— Você vai precisar cuidar disso, lindo. — Beijei sua clavícula e afastei-me. Observei com deleite primitivo os olhos atordoados de e soltei um beijo em sua direção antes de segurar a maçaneta da porta. — Eu pretendo cuidar do que está acontecendo no meio das minhas pernas assim que chegar no carro, é uma pena que não possa me ajudar. Deseje-me sorte na entrevista!
Fechei a porta atrás de mim com um estrondo, sentindo meu coração acelerar com o que eu acabei de fazer.
Desci o elevador correndo, precisei controlar a vontade de subir e completar o que comecei. Mas estava certo. Irritantemente certo. Nós precisávamos resolver aquela mentira, ele me conhecia bem o suficiente para saber que não conseguiria estar com ele enquanto o noivado falso pairasse sobre nós como uma sombra.
Toquei meus lábios com um sorriso enquanto me encarava no espelho. As bochechas estavam vermelhas, assim como meus lábios. Observei com excitação os arranhões da barba de em meu pescoço. Toquei a superfície sensível e controlei um arquejo ao continuar em minha mente o que havíamos começado.
Infelizmente, ao contrário do que disse a , eu dependia do transporte público para ir até minha casa. Mas nada disso me impediu de terminar meu trabalho quando cheguei em meu lar, desmanchando em cores ao imaginar a boca de no lugar de meus dedos.
Eu estava cada segundo mais ansiosa por aquela viagem.
Capítulo vinte e dois
Fui acordado na quinta-feira por uma imagem de na praia. Ela estava deslumbrante de biquíni azul e óculos de sol cobrindo os olhos. Sorri descarado e rodei na cama, sentindo que os lençóis acordaram no chão novamente. Aquilo já era rotina.
“Cuidado para não pegar insolação, ”
Respondi sua mensagem e enfiei a cara nos travesseiros, balançando os pés animadamente. Era incrível como apenas uma mensagem dela me fazia querer sair por aí dançando Lady Gaga e Chitãozinho e Xororó.
“Sem problema, você pode passar o creme em mim, ”
e eu não conversamos mais sobre o que aconteceu dois dias atrás. Eu ainda sentia que teria algumas barreiras a quebrar com ela, mas a principal era a gigante diante de nós: o emprego de no Rio de Janeiro.
Sei que, se puxar demais a corda com relação ao emprego, ela surtará. Posso ser apaixonado por ela, mas não sou burro. Não quero que ela tenha uma síncope. Além disso, eu sabia que um relacionamento à distância não funcionaria nunca. Aquilo também era uma incógnita. O universo inteiro parecia apontar para a falha catastrófica vindo em nossa direção, mas não desistiria, não depois de tanto tempo amando em segredo e finalmente perceber que ela sentia algo de volta.
Não, eu posso ser medroso em muitas áreas, mas eu não deixaria ir, a não ser que a decisão viesse dela. Fatores externos poderiam ser contornáveis, pelo menos era o que eu esperava.
Observei meu celular tocando sobre a cama e o atendi rapidamente.
— Olá, eu estou falando com a mais nova co-âncora do jornal? — atendi a ligação com um sorriso brincalhão. Coloquei o telefone no viva-voz e andei até a cozinha para fazer café, tentando controlar o nervosismo por .
— Há, queria! A entrevista é em dez minutos, vim me refugiar no banheiro.
Um flashback de memórias me levou de volta à minha própria entrevista de emprego, o que nos levou a todo esse circo. Segurei uma gargalhada arrastada.
— Será que eles também têm preferência por mulheres casadas?
— Eles têm preferência por mulheres brancas, magras e estéreis — rebateu com nervosismo. — Eu não sou magra e nem branca, então…
— Você é estéril?
— Não até onde eu sei, mas eu posso fazer com que eles acreditem que sim.
Gargalhei alto diante de sua voz levemente entrecortada pelo sinal ruim.
— , você vai arrasar nessa entrevista! Vai ser incrível e maravilhoso. Você vai para o Rio de Janeiro e botar todo mundo para beijar os pés da primeira mulher negra-indiana-não-magra-e-não-estéril a estar na TV.
— Caramba, que título gigante! — Ela gargalhou.
Um incômodo tomou meu corpo ao falar sobre o Rio.
A realidade de que estaria longe pareceu mais próxima e mais vívida. Sinto que ela também percebeu isso, porque sua voz ficou subitamente mais calma. Ela lidava melhor com crises trabalhistas do que eu. Na verdade, lidava com uma separação melhor do que eu.
E talvez eu a entenda agora, o medo de se deixar entregar a algo que teria um prazo de validade. estava olhando as probabilidades e não via uma saída positiva delas. Eu, ao contrário dela, vi muitas saídas e poucas probabilidades, contrariando meu emprego atual. Isso é apenas mais um motivo para eu saber que não nasci para a engenharia, preferia pessoas, apesar de amar matemática.
— , eu preciso ir antes que a recepcionista ache que eu estou deslizando um moreno aqui antes da entrevista.
— E qual o problema? Ela não faz as necessidades dela?
— Duvido que cague no banheiro do lugar em que vai fazer a entrevista de emprego mais importante da vida dela!
— Bom ponto. Vai lá, princesa, apavora eles! — incentivei e fiz um sinal de vitória com o braço, mesmo que ela não pudesse ver.
— Vou apavorar! Beijos, se cuida. Estou ansiosa para te ver.
— Eu também, , eu também.
Mesmo que fosse para entendermos que precisaríamos nos separar por causa do emprego dela.
Desliguei a ligação e preparei meu café com uma sensação de nervosismo na boca do estômago.
Ser hiperativo era um problema às vezes, especialmente quando eu não tinha controle sobre a situação ao meu redor. No entanto, como a médica fez questão de dizer e eu me orgulhava daquilo, o fato de eu ser um cara tranquilo ajudava a lidar com a hiperatividade.
Muita gente acha que pessoas hiperativas são iguais, mas nós somos diferentes. Hiperatividade não é traço de personalidade, é como dizer que uma pessoa bipolar é caracterizada pela bipolaridade dela.
De qualquer modo, militar sozinho em minha mente me distraía do relógio passando sem notícias de sobre a entrevista. Porém não foi necessário me distrair sozinho por muito tempo, já que mamadi e Flora invadiram minha casa uma hora depois. Eu tirei os pontos antes de ontem, antes de chegar em minha casa, mas minha licença se estendia até hoje, o que fez minha família surtar e decidir que seria uma boa ideia adiantar a viagem, já que amanhã seria feriado e minha folga ocorreria na segunda.
— , você não arrumou suas coisas? — Flora berrou de dentro do meu quarto enquanto eu lavava a louça do almoço.
Encarei o relógio em cima da bancada. estava na reunião há duas horas, será que havia acontecido algo?
— Não, Flora, você é quem tem o costume de levar vinte e cinco peças de roupa para três dias de viagem. Eu só vou pegar umas três camisetas, duas sungas e um shorts.
— Um shorts? — ela berrou. Mamadi gritou algo em hindi para ela. — Pois é, mamadi, seu filho é um porco!
Revirei os olhos e voltei a lavar a louça, pensando em deixar um prato cair e me jogar em cima só para não precisar lidar com o julgamento fashion de Flora.
Passar uma semana com ela durante a minha recuperação foi ótimo, mas havia um motivo para não brigarmos mais desde que saí da casa de nossos pais: não convivemos juntos. Depois do quarto dia, estávamos prestes a arremessar um ao outro na parede. A desvantagem era minha, que precisei passar o tempo todo dependente dela. Ainda por cima dormimos na mesma cama, já que eu moro em um apartamento de dois quartos, mas o outro é um escritório barra depósito, e Flora chuta muito . Como eu sou hiperativo e ela é quem me derruba da cama? Eu é quem deveria fazer isso!
Terminei a louça e fui fuçar o que Flora fazia no meu quarto. Ela revirava meu guarda-roupa e analisava as roupas diante de seus olhos. Seu olhar virou-se para mim quando adentrei no quarto com cautela.
— Pode me explicar por que você anda tão desorganizado, ? — ela questionou seriamente. Suspirei e sentei-me na cama com as pernas cruzadas.
— Ansiedade ficou meio complicada nessas semanas. Falei com a doutora, ela disse que pode ser um daqueles picos.
A expressão de Flora se suavizou, um centelho de preocupação se acendeu em seu semblante.
— Quer conversar?
Eu queria, meu Deus, como queria, mas Flora não sabia sobre as mentiras com , sobre a entrevista de emprego, sobre a minha novidade acadêmica, sobre nada . Senti-me um covarde por não ser capaz de falar a verdade para a minha própria família.
Na verdade, os últimos dias me mostraram que eu era um covarde para muitas coisas.
— É só por causa do emprego, sabe? Cada dia mais eu tenho certeza de que não nasci para ser engenheiro. Eu achei que entrar nessa empresa fosse me trazer realização pessoal, mas não aconteceu.
— Óbvio que não, tapado.
Flora se jogou ao meu lado na cama e me deu um pescotapa certeiro. Fiz uma careta de dor e toquei o local ardido.
— Eu ainda estou de licença médica, garota.
— , você fala que eu sou passiva com relação aos nossos pais, mas você está seguindo uma carreira que odeia por causa deles!
— Abaixa o tom, se a mamadi vier aqui brigar com a gente, digo que é culpa sua. — Flora revirou os olhos, mas não cedeu na conversa.
— Você é covarde, não se impõe!
— E você se impõe muito, não é? — provoquei de volta. Flora bufou sem paciência.
— Que merda, nós dois somos farinha do mesmo saco. Que tal fazermos um acordo? Eu começo a me impor mais, mas só se você se impor também — ela propôs e estendeu a mão em minha direção. Alternei o olhar entre suas unhas bem feitas e seus olhos ansiosos.
— Vou começar o mestrado para ser professor, Flora.
Minha irmã arregalou os olhos e escancarou os lábios em um sorriso incrédulo.
— Você é uma caixinha de surpresas mesmo! E aí, o que deu? Esse é o motivo da sua ansiedade? Achei que fosse algo digno da minha atenção.
Empurrei os ombros de Flora com força, e ela precisou se segurar na cama para não cair no chão. Puxei-a de volta para o lugar antes de diminuir o tom de voz, para que mamadi não ouvisse.
— Fui aprovado para fazer na USP.
— MEU DEUS DO CÉU! — Flora gritou e se jogou em meu colo, nós dois caímos na cama. Dei um tapa em seu braço com força.
— Não grita, Flora!
— Desculpa — ela sussurrou, mas o tom de animação não se dissipou. Um sorriso crescente balançava meu rosto e me desmoronava.
Que se lasque, eu estava feliz para um caramba!
Ano passado, em um acesso de impulsividade, me inscrevi para os editais de mestrado na mesma semana que enviei o currículo para a Sobral. Deixei que o destino decidisse o que faria. Eu não contei para ninguém, nem para , contrariando o que eu vivia dizendo a ela: para que compartilhasse seus problemas com os outros. Mas aquilo era diferente. Eu não podia criar expectativas, ou aquilo tudo me destruiria.
Recebi a notícia alguns dias atrás, mas não sabia como reagir ou o que fazer.
Então, para clarear as ideias, desenhei em uma folha de papel o que eu sabia que me faria mais feliz e o que me faria menos feliz. O mestrado ganhou disparado em pontos positivos, mas um ponto negativo pesava naquele sonho: a bolsa do mestrado não seria o suficiente para me sustentar.
Por isso ainda refletia. Tinha até segunda para entregar a papelada, que estava pronta e guardada em uma pasta azul na minha gaveta da cama, o único local imaculado em toda a bagunça do cômodo. Aquela gaveta parecia um monstro me perseguindo enquanto dormia. Seguir meu sonho valeria não conseguir me sustentar por praticamente dois anos? Como vou estudar se estiver preocupado o tempo todo com o que comer no dia seguinte? Meu coração apertou diante da possibilidade.
— Pois é, fui aprovado! — contrariei meu nervosismo e me permiti sorrir.
Observei com animação quando Flora pegou meu travesseiro e gritou contra ele para controlar a felicidade. Ela estava mais animada que eu, e aquilo fez com que eu me arrependesse por não ter compartilhado com ela antes. Ou com .
— A mamadi vai surtar — ela confidenciou, a felicidade de seu olhar falhando um pouco mais. — Você vai ser um acadêmico, meu Deus!
— Eu não vou falar para ela.
— Espera — Flora gargalhou com incredulidade —, você pretende fazer um mestrado inteiro e não contar para mamadi? E quando você disser que saiu do seu emprego? Acho que mamadi vai saber quando você precisar voltar pra casa porque não consegue bancar esse apartamento, .
— E é por isso que eu ainda estou cogitando o mestrado — retruquei e coloquei-me em pé. Ouvi um ronco alto da sala. Mamadi estava dormindo, cochilo da tarde.
— Você precisa! — Flora também se levantou em um sobressalto. Cruzei os braços e firmei um sorriso irônico no rosto.
— Você acabou de bombardear todos os meus planos e agora está me incentivando? Decida-se, Flora!
— Você é burro e não entende o que eu quero dizer. — Flora gesticulou com as mãos em frente aos meus olhos. — Isso é a realidade, e ela é uma droga. Você nunca vai ter outra chance dessas. Se deixar de fazer tudo só porque é difícil demais, nunca vai fazer nada .
— Não sei se você percebeu, mas eu preciso me sustentar.
— Você tem o seu fundo de emergência, não é? — ela perguntou.
— Sim. Um ano de aluguel seguro.
— Ótimo. Eu vou te financiar. — Pisquei algumas vezes, totalmente incrédulo.
— Você vai o quê?
— Eu vou investir em você, cara.
— E por que você faria isso?
Eu ainda não entendia exatamente o que estava acontecendo.
— Por que você é meu irmão, . — Flora apontou o óbvio com um revirar de olhos impaciente. — Comece o mestrado. Faça seus bicos de freelancer. Quando a situação não conseguir se sustentar mais, me avise. E isso não é uma doação, eu espero de você todo o sangue e suor possíveis.
Eu não consegui falar nada, somente abracei Flora com força e tremi em seus braços magros enquanto ela passava as unhas longas por meus cabelos, exatamente como fazia quando éramos mais novos e mamadi falava algo ruim sobre nós ou brigava conosco.
— Você sabe que eu não sou orgulhoso, mas eu não me sinto muito confortável com isso — confessei, ainda abraçado a ela.
— Às vezes as pessoas só precisam de alguém que acredite nelas, e isso é o suficiente. Eu acredito em você, sei que vai ser um profissional incrível no que ama, sendo que já é genial no que não gosta. Quero te ver feliz, irmãozinho — Flora apertou minhas bochechas —, só isso. Por favor, não desperdice sua única vida fazendo algo que odeia. Você vai se arrepender e se tornar uma pessoa amargurada.
E, por mais que Flora não tivesse a intenção, ela somente me fez pensar em e em como eu não queria passar minha vida longe dela.
Capítulo vinte e três
Quando me chamou para ir à praia com a família dele, imaginei que fosse ser uma casa em uma parte reservada e calma, não que o trecho inteiro pertencia ao amante da mãe dele.
— Eu posso dar uns pegas nesse cara depois da sua mãe? — perguntei a , o que fez com que ele gargalhasse com força.
Eu achei que estar no mesmo carro que fosse ser estranho, desconfortável, mas não era. Assim que ele estacionou em frente ao meu hotel, pensei em fingir uma amnésia crônica e dizer que não sabia como fui parar ali, que os últimos dois meses desapareceram de minha mente.
Não precisei me despedir dele antes de ir para o Rio, então lidar com a vergonha por mensagem era mais fácil do que cara a cara. Durante a minha estadia no Rio, enquanto andava pela orla da praia, observando as pessoas se exercitando na areia e as ondas do mar quebrando, pensei no quanto adoraria estar ali. No quanto o Rio parecia tão grande sem ele ao meu lado. O pensamento foi assustador. Eu precisava deixar claro para meu coração ansioso que eu e ele não poderíamos ficar juntos ainda. Mas eu estava cansada de colocar tantos impedimentos entre nós dois, era exaustivo demais.
Agora que abri a porta para que entrasse, seria muito difícil tirá-lo. Aquele era precisamente o que me motivava a não me envolver completamente. Porém, sentir remorso não era uma opção, não quando se tratava de .
Enquanto arrumava a pequena mala de viagem que trouxe, pensei em como seria revê-lo, se tocar seus lábios ainda seria tão assustador e excitante quanto das outras vezes.
Peguei-me pensando que poderia escrever poesias, músicas, desenhar e gritar sobre em todas as formas expressivas existentes no mundo. Aquele era o efeito quando se está apaixonado, não é? Apesar de lutar continuamente contra o amor e a subjetividade e a fraqueza que vêm de tal sentimento, precisava admitir que o sentimento era bom. Ótimo, na verdade.
O sol parece mais amarelo, a areia brilha mais, as pessoas são mais felizes e o mundo parece girar ao redor do nosso eixo.
A última vez que me senti assim foi quando a menstruação desceu após duas semanas atrasadas.
Quem disse que o romance ainda está vivo não me conheceu pessoalmente.
Aguardei por no lobby do hotel com os braços cruzados e os pés batendo no chão em nervosismo. Fui abordada por uma senhora que me reconheceu do jornal, quando eu fazia cobertura de notícias locais no jornal da tarde. Senti aquilo como presságio para o que viria, talvez uma resposta positiva me deixasse mais tranquila.
Pensei em como contornar a situação com , será que seria estranho estar com ele depois daquela cena? Será que ele já teria desistido de mim? Pensei em pedir desculpas em adiantamento por toda maluquice que tomaria aquela viagem, só que aquilo não foi preciso, porque , como sempre, foi compreensivo. Me deu um beijo na bochecha quando saiu do carro e sorriu.
Ele estava de regata branca, shorts de tecido molinho e chinelo, aquilo o tornava o homem mais lindo do Rio de Janeiro, mas ele parecia inconsciente daquilo.
Segurei sua nuca de leve quando ele se aproximou para tirar um fio de cabelo de minha bochecha. Observei com deleite sua pele se arrepiar sob meu toque e sorri. Entrei no carro em silêncio e suspirei, apoiando minha cabeça contra o estofado gelado pelo ar condicionado.
É incrível como pequenos atos têm significados completamente diferentes dependendo de quem os performa. Por exemplo, se fosse qualquer pessoa dirigindo o carro alugado da concessionária, eu acharia algo normal, insignificante. Mas dirigindo era algo que beirava ao erotismo barato. A forma como ele dava seta fazia meu corpo se arrepiar, sua olhadela pelo retrovisor encharcou minha calcinha, e quando ele mudava de marcha? Era mais fácil colocar fogo no meu corpo, a temperatura ainda seria menor do que agora, enquanto o devoro descaradamente.
— ? — gargalhou em minha direção quando paramos em um farol vermelho. Pisquei algumas vezes, mas não consegui disfarçar meus olhos vidrados. foi decente o suficiente para fingir que eu não o havia despido com o olhar, o que eu estranhei. Nenhuma piada? — Vamos chegar em quarenta minutos por causa do trânsito, quer colocar uma música?
Quarenta minutos no carro com sem dizer que eu queria montar em cima dele. Aquilo tinha tudo para dar errado, mas eu adorava um bom desafio, e se mostrava o maior de todos nos últimos meses.
— Claro, dá seu celular.
Controlei um gemido sôfrego quando nossas mãos se tocaram. Eu queria cruzar nossos dedos e beijar cada um deles, mas não havia como fazer aquilo sem parecer uma maluca, então me contentei em pegar o celular da mão de e colocar no aleatório no Spotify. Assim que a música atingiu as caixas de som, gargalhou alto.
— Sério, o Spotify me odeia.
Daddy issues do The Neighbourhood preencheu o cubículo fechado e gelado pelo ar condicionado, que nos barrava do calor infernal do lado de fora. Meu pai era o último assunto naquele momento de descontração, então passei de música imediatamente, deixando Friends don’t da Maddie e Tae tocar.
A fase country internacional de não foi ruim, levando em consideração que Taylor Swift e Carrie Underwood agora faziam parte de seu repertório vitalício. Balancei a cabeça ao som da música.
disse que estaria ao meu lado, que eu precisava ter clareza na mente. Nos últimos dias, nada nunca esteve tão claro. Eu queria , não adiantava negar. Estar perto dele trazia o melhor de mim, meu coração batia acelerado, meus olhos não se desviavam do dele mesmo que tentasse, cada segundo do dia parecia doloroso sem ter ele por perto.
respeitou minha decisão de falar em poucas palavras como a entrevista havia sido. Eu não estava confiante, mas ser uma mulher marrom e negra e com um corpo fora do padrão não era exatamente algo positivo, especialmente com a banca de entrevista sendo composta por três homens brancos e uma mulher branca.
Tentei controlar meu nervosismo diante deles, mas era sempre intimidador precisar superar as expectativas de raça e gênero em locais de emprego tão machistas e racistas quanto a televisão brasileira. Daquela vez não foi diferente.
A Maju Coutinho e a Gloria Maria eram tão conhecidas justamente porque eram a exceção, não a regra. E eu sabia que o pêndulo sempre tendia para a regra, ainda mais por eu não ter tanta experiência quanto as duas.
Um arrepio cruzou minha espinha ao lembrar do andamento da entrevista, mas espantei o pensamento para longe, decidida a aproveitar os próximos dias com o máximo possível. Eu tinha até o dia seguinte para aproveitar sem preocupações, sem o peso da promessa da mulher do RH em meus ombros, e aquilo era o suficiente para mim no momento.
— Ele peida ouro? — perguntei, tentando afastar os pensamentos de sabotagem da minha mente quando entramos nas estradas arenosas até o canto mais isolado da praia fechada. Passamos por poucas casas, mas todas muito luxuosas.
parou de súbito. Estávamos sozinhos no meio da estrada de terra. Do lado direito, o mar crescia na linha do horizonte, perdendo de vista a divisão entre oceano e céu. Do lado esquerdo, gramíneas cresciam em terrenos vazios e bem cuidados. Observei ao longe um parquinho em um círculo de areia.
— O quê? Vai me sequestrar? Devo dizer que eu gastei toda a minha grana em uma loja de sapatos — comentei em tom divertido, mas tinha um semblante preocupado no rosto. Virei-me de lado no banco, ajustando o cinto ao meu peito e o encarei preocupada. — O que houve, ? — Corri com meus dedos por sua mão sobre o câmbio e entrelacei nossos dedos. encarou nossas mãos e sorriu, levando o toque de sua boca até a palma. Deitei a cabeça de lado e sorri para ele, beijando os nós de seus dedos em seguida.
— Estou com medo do que vamos fazer.
Assenti em compreensão, apertando os lábios em uma linha fina.
— A verdade não é fácil na maioria das vezes, sabia? — provoquei. assentiu e vasculhou meu rosto com seus olhos da mesma forma como fez quando estávamos em sua casa.
— Obrigada por não ter me matado por causa dessa mentira. Prometo não fazer mais isso.
— Não promete, … — pedi com um murmúrio. — Que o seu sim seja sim, seu não seja não.
maneou com a cabeça. Suspirei diante de seus carinhos em minha mão, cruzando meu corpo inteiro com uma familiaridade grande. Fiquei com medo de tudo ser estranho, mas nada com era estranho. Ele sempre foi casa para mim.
— Minha mãe vai surtar — comentou com uma risada alta.
— Ela vai te expulsar de casa.
— Ela já fez isso antes — deu de ombros —, eu já pago minhas contas, o máximo que ela pode fazer é me deserdar.
— Ah, mas isso não é problema… — comecei, aproximando um pouco mais nossos rostos. arqueou a sobrancelha em confusão. — Porque eu pretendo te dar o mundo inteiro.
piscou algumas vezes e riu alto, colocando a mão na barriga e abrindo aquele sorriso estonteante em minha direção.
— Desde quando você é brega?
— Desde que eu encontrei o homem mais lindo do universo.
riu de novo, ainda mais alto do que antes. Acompanhei sua risada e mordi a ponta da unha enquanto ele se recuperava, pequenas lágrimas brotavam no canto de seus olhos. Ele apoiou a cabeça no volante e retomou sua respiração.
— Obrigada por me distrair — agradeceu sinceramente, me encarando.
— Estou aqui para o que precisar, você sabe.
Um silêncio longo se estendeu entre nós dois. Corri meus dedos levemente pelas suas costas, traçando o tecido fino da regata com os olhos vidrados na pele por baixo dela.
— Você está me comendo com os olhos desde que colocou os olhos em mim.
— Estou mesmo — confirmei sem vergonha alguma. — Só falta você me comer agora.
— , você por acaso tem doze anos? — perguntou exasperado, soltando uma gargalhada. Revirei os olhos e arrastei as unhas com mais força por sua pele. ficou sério repentinamente. — Não faz isso, .
— Ou o que, príncipe? — sussurrei e passei minha mão para sua perna, arrastando as unhas de leve para o interior da coxa. suspirou quando passei com a mão sobre o zíper de sua bermuda e levou sua mão à minha bochecha, fazendo um carinho simples. Virei o rosto de lado levemente e mordi a ponta de seu polegar.
— Nós podemos voltar para a cidade — ele comentou absorto, descendo sua mão com cuidado para a barra de minha calça jeans.
— Não, não podemos — comentei risonha. praguejou e concordou.
— Inferno de mulher — resmungou e se afastou, colocando minhas mãos sobre meu colo com uma expressão raivosa. — Para com isso!
— Que culpa tenho eu se você é gostoso?
Observei com assombro o rosto de tomar um tom escarlate rapidamente. Mordi o canto da boca para controlar uma gargalhada.
— Parando para pensar… Você tem ficado vermelho constantemente com meus elogios, não é? — ponderei. revirou os olhos e ligou o carro de novo, indo devagar pela estradinha.
— Não estou acostumado com isso.
— Elogios?
— Ser elogiado por uma gostosa.
Foi a minha vez de rir. Balancei a cabeça em negativa e levantei-me rápido, dando um beijo estalado em sua bochecha.
— Por que esse beijo? — perguntou.
Ao longe observei a casa de vidro se estender diante de nós.
— Um agradecimento por não ter desistido de mim.
— Nunca desistiria de você, — respondeu com obviedade, mas um sorriso pendia em seu rosto. Sorri também e voltei a olhar para frente.
Quando estacionamos o carro, precisei engolir em seco e me lembrar de que a família de não era um bicho de sete cabeças. O peso já foi aliviado quando perguntei a ele se meu pai estava ali, já que passava um tempo na casa da mãe dele. Quando a negativa veio, respirei aliviada.
Por mais que eu não sentisse mais tanta raiva assim de meu pai, a tristeza ainda continuava ali, e ela seria a mais difícil de lidar. E Adnan tinha noção de que precisaria ralar muito para conquistar minha confiança, o que me deixava em parte mais calma, ainda tinha tempo para raciocinar tudo ao meu redor. Nós combinamos de tomar café juntos assim que eu voltasse para São Paulo. Não falei sobre a entrevista, nem mesmo minha mãe sabia, então ele não seria a primeira pessoa a saber. Apenas disse que viajaria com , a mesma coisa que disse à minha mãe.
— É muito estranho você viajar com ele assim, — minha mãe disse enquanto dobrava as roupas recém-tiradas do varal.
Revirei os olhos e a poupei do resto do drama que permeava nós dois, ela ficaria entediada e diria: “o amor pode esperar, o emprego, não”. Por um lado, ela tinha razão, mas por outro, era .
Lembrei-me disso enquanto Flora me bombardeava de perguntas sobre a viagem e a mãe de me tratava com cordialidade estranha. Talvez ela estivesse de bom humor. Eu também conheci o amante dela apenas de relance, um brasileiro de olhos verdes e botox nas bochechas. Um gosto peculiar, eu diria. Ele estava indo para a cidade no momento em que topei com ele, enquanto tirava as coisas do carro.
O pai de também estava ali, o que só me deixava mais tensa com a possibilidade de um grande drama familiar cheio de tramas envolvendo herança, gravidezes inesperadas e veneno.
Minha família era pequena e simples, aquele tipo de reviravolta só era conhecida por mim em novelas, mas alguns amigos meus com família grande já haviam passado por maus bocados nas festas de família.
— , leva a para o quarto dela! — Flora exclamou com animação após me cumprimentar com um abraço apertado à porta.
Só a porta de quase dois metros no arco de entrada da casa era maior que meu quarto. Todo o patamar térreo dava vista para o mar à frente, como um grande lençol estendido sobre a areia. Não havia paredes, apenas janelas do teto ao chão, dando ao lugar inteiro uma iluminação absurda e libertadora. O cheiro de mar estava impregnado em mim até os ossos, algo que eu sentia falta todos os dias na metrópole barulhenta e cinzenta de São Paulo.
Logo à minha direita estava a sala, com um sofá preto em formato L de frente a uma TV de pelo menos 86 polegadas. Havia duas poltronas estilo cinema preenchendo o resto do espaço.
Do lado esquerdo estava a cozinha mais arejada e branca que eu já tinha visto. Minha mãe surtaria vendo isso, logo em seguida perguntaria como era a rotina de limpeza. A bancada estilo americano dividia a cozinha da sala, um fogão de seis bocas embutido no mármore me enchia de soberba. Eu precisava daquilo na minha casa para ontem!
acompanhou minha expressão catatônica com um sorriso bobo.
— Vou te levar para um tour, só vou guardar suas coisas lá em cima primeiro. — Fitei-o com desconfiança. — Apesar de eu achar que noivos deveriam dormir no mesmo quarto…
— Você tentou deixar nós dois no mesmo quarto? — revirou os olhos, mas não deixou de sorrir.
— Você bem que sonha com isso, não é? — Piscou em minha direção e segurou minha cintura, dando um beijo em minha bochecha.
Afinal de contas, para a sua família, ainda éramos noivos, o que significava toque físico e apelidos bregas enquanto estivéssemos ali.
Não havíamos conversado ainda, mas como seria a revelação? seria honesto com relação a tudo ou em parte? Eu deveria ter gastado o caminho até aqui pensando mais nisso e menos em sua boca beijando meu pescoço.
— Vamos? — desceu pelas escadas atrás da cozinha em minha direção antes que eu percebesse. Ele já havia levado nossas coisas? Pisquei algumas vezes em sua direção, mas aceitei sua mão estendida. — Madame, para começar, temos aqui a cozinha. — apontou com exagero para o espaço que eu namorava.
Fui engolida pela visão da extremidade da praia, quando o terreno se tornava montanhoso. Precisei piscar algumas vezes, contemplando com assombro a beleza da paisagem da cozinha.
— , eu nunca quis tanto ser rica na minha vida — confidenciei estupefata. gargalhou sem soltar minha mão, me puxando para a escada em espiral também extremamente branca atrás da geladeira gigante, levando aos quartos.
Subi atrás dele animada, com meus chinelos vagabundos fazendo barulho no chão. Ao ver a roupa de , fiquei aliviada, mas agora me sentia deslocada. Ele disse que a vestimenta não era importante, mas era fácil dizer, o difícil foi engolir o olhar de julgamento da mãe de desde o topo de meus cabelos até o chinelo. Senti uma vontade inexplicável de trocar de roupa, que foi batalhada com afinco. Eu estava ali por ele, não por ela. E se fazia parte dos meus planos fazer parte da vida de , eu precisava lidar com aquilo o mais cedo possível.
Pessoa alguma faria com que eu me sentisse mal, especialmente uma indiana de um metro e meio ranzinza que transava com o amante na mesma casa que seu próprio marido e controlava os filhos.
Apesar disso, eu realmente queria que ela gostasse de mim, facilitaria muito as coisas.
— Caramba, , cabem quatro pessoas nessa cama! — exclamei assombrada quando adentramos no primeiro quarto do corredor, o meu. O de estava ao lado, aquele era o quarto mais afastado dos outros. De lá, podíamos ver todo o mar se abrindo diante de nós dois.
As ondas quebravam próximas à areia, e ao longe observei alguns iates e barcos boiando sobre o mar tranquilo. O sol refletia na água limpa e convidativa. Me vi sem fôlego novamente diante de toda aquela enormidade. seguiu meu olhar e soltou minhas mãos apenas para pegar um controle remoto sobre a mesa de cabeceira ao lado da cama. Não fui capaz de explicar racionalmente a falta que fez seus dedos enrolados nos meus.
Flexionei os dedos e controlei a sensação ridícula dentro de mim. Alguma vez eu já havia sentido isso? Eu não conseguia me lembrar.
voltou ao meu lado e apertou um botão, fazendo com que as cortinas fechassem, bloqueando toda a luz lá fora.
— Ah, então é assim que ele dorme… — Fui tomada por compreensão.
Eu estava me questionando como o dono da casa fazia quando queria dormir até tarde com aquele sol todo na sua cara. apertou outro botão, e uma tela parecida com a de cinema começou a descer ao meu lado. Pulei assustada, percebendo que, na verdade, era uma televisão, e ela não estava descendo, mas saindo de dentro da parede.
— Você vai poder assistir o episódio novo de Brooklyn Nine-Nine que sai domingo — apontou para a televisão com o controle, e o canal americano passou na TV.
— Ele tem acesso à televisão estadunidense?
— Pois é.
Mordi o canto da boca e decidi me jogar na cama, sentindo os lençóis parecendo nuvem acomodarem minhas costas cansadas. Suspirei alto e enfiei a cara no travesseiro, respirando o cheiro de riqueza. Eu nunca havia visto algo tão luxuoso quanto aquela casa.
— Vamos à praia? — propôs animadamente.
— Não vamos terminar o tour?
— Temos até segunda para explorar essa casa inteira, mas esse sol não vai durar para sempre.
Não pude argumentar com , então visualizei minha pequena mala de rodinhas rosa no canto do quarto, próxima ao banheiro da suíte. Aproveitei para espiar o local, segurando um mini surto ao ver uma banheira gigante e uma ducha daquelas com luzes que eu só vi no Pinterest algumas vezes.
— Não fale comigo mais, , eu vou estar presa nesse banheiro. Pretendo tomar banho até ficar com a pele toda enrugada e ter acabado com a água daqui.
— Por mais que eu inveje a sua decisão, Flora vai acabar vindo aqui e te arrastar para a praia, então eu seria muito boazinha em fazer isso por vontade própria. Minha irmã é beem enfática quando quer.
— Por isso eu e ela somos amigas. — Pisquei na direção de e fechei a porta do banheiro atrás de mim, colocando o maiô preto que eu havia separado e a saída de banho azul por cima.
Para finalizar o look paulistano-deslocado-no-Rio, coloquei o chinelo gasto no pé e o óculos de sol no topo da cabeça. Passei o protetor solar, porque, ao contrário do que muitas pessoas acham, pessoas de pele escura também precisam de proteção contra os raios UV.
— , já falaram que você fica muito bem de azul? — comentou quando voltei ao quarto. Ele estava deitado na cama com as pernas cruzadas, as mãos permaneciam posicionadas atrás da cabeça enquanto assistia um programa sobre peixes na televisão.
— Já. — Dei de ombros e agachei-me para guardar a roupa que usei na viagem de carro até ali. Virei-me com a mão na cintura e encarei . — Vamos à praia, eu quero te enterrar na areia.
— Ui, ui, ui! Vai me deixar atoladinha ? — ele provocou com uma gargalhada. Arremessei minha canga em sua direção e ri.
— Sim, pode me chamar de bola de fogo, porque o calor tá de matar.
Descemos as escadas dando risadas e fazendo piada sobre o Bonde do Tigrão. Flora já nos esperava na praia.
Abrindo as portas de vidro para a varanda, uma grande escadaria de pedra descia direto para a praia. Descendo alguns degraus, havia uma grande piscina de borda infinita à esquerda, o que me fez perceber que havia um outro patamar inferior ao que estávamos. Olhei por cima, mas percebi que era uma churrasqueira com sala de jogos e academia. A partir dali havia só mato e a escadinha de pedra, sem mais surpresas de gente rica.
A praia se estendia gloriosa ao nosso redor, com a água reluzente e a areia branquinha. Minha pele queimava sob o sol, o suor já pinicava minha têmpora e me fazia questionar por que não trouxe um chapéu de aba grande. Flora nos esperava próxima a uma toalha estendida no chão e acenava em nossa direção.
— Caramba, cunhadinha, você está deslumbrante de azul! — foi seu primeiro comentário antes de me abraçar, passando os braços magros ao meu redor e me encarando novamente.
— Eu falei, não falei? — deu de ombros e largou o chinelo sobre a areia, fazendo grãos voarem no ar.
— Puta merda, , faz essa porcaria direito! — Flora exclamou e se agachou para limpar a sujeira do irmão. apenas franziu a sobrancelha e deu de ombros novamente.
— Foi mal.
Tirei a saída de banho, ficando de maiô, e coloquei meus chinelos (delicadamente) ao lado dos de .
— O primeiro a entrar na água paga uma pizza — exclamei, o que fez com que Flora e gritassem atrás de mim quando disparei em direção à água, que me atingiu com força gélida. Gargalhei para disfarçar o frio quando os dois me alcançaram. Flora mergulhou rapidamente, ainda permaneceu um pouco ao meu lado, protegendo os olhos do sol escaldante.
— Estou muito feliz por ter a chance de pagar uma pizza para você, mas isso tem um custo, sabe? Fui ludibriado!
Eu estava prestes a rebater que o único preço a ser pago seria o da pizza mais cara da região, mas não tive a chance antes que me pegasse no colo com as mãos geladas e me derrubasse na água. Gargalhei ao me levantar, mas não sentia mais frio. Cuspi água salgada e soltei um gritinho.
— Patel!
Comecei a correr atrás dele, a água já batia em minha cintura naquele momento, mas ainda pegava nas coxas de . Flora apareceu atrás do irmão e se jogou nas costas dele, os dois caíram imediatamente. Meu coração acelerou com a brincadeira. Eu era uma pessoa ainda muito rígida, mesmo quando me ajudava a ficar mais relaxada. Sendo bem honesta, eu era a versão mais nova da minha mãe. Respirei aliviada quando os dois voltaram à superfície gargalhando.
— Estou muito feliz por você estar aqui, ! — Flora exclamou com felicidade, se aproximando de mim novamente.
Deixei meu olhar se voltar para , que agora tinha gotículas de água descendo por seu tronco. Ele já tinha uma cor mais forte na pele, estava bronzeado. Desci o caminho da água até a barra do shorts, flexionando os dedos ao imaginar que fim daria aquela trilha. O sol contra sua pele marrom fez com que a temperatura naquele momento não fosse nada se comparado ao que eu sentia no meio de minhas pernas.
— Eu também estou feliz por estar aqui, Flora. Sua família é muito querida.
— Não precisa ser gentil, , nossa família é caótica e perturbada.
— Se você está falando de , é verdade — provoquei com uma gargalhada. bateu na água, que jorrou em minha cara. Flora riu junto e assentiu.
— Você já conheceu o papá? — ela perguntou, colocando a mão sobre os olhos para bloquear a luz do sol. Neguei com a cabeça.
— fala muito bem dele. Eu só falei um pouco com ele naquele almoço de família, mas quase nada.
— Papá é completamente diferente de todo mundo, é calmo, pacífico e não fala sem pensar.
— Bom, e a mamadi você já conhece de outros carnavais — prosseguiu e se ajoelhou na água quase inteiramente cristalina.
— Ele é realmente o amante dela? — perguntei novamente, ainda sem conseguir acreditar. e Flora se encararam e ela suspirou.
— Ela nunca confirmou, mas já vimos ela e papá discutindo sobre isso. — Apenas assenti, não sabia o que dizer além disso.
— O dono da casa, o Felipe, é bem legal. Acho que papá e mamadi simplesmente aceitam essas coisas — comentou ao fitar a casa ao longe.
— E como vocês se sentem com essa situação?
— Papá e mamadi já deixaram de se amar há muito tempo, só é triste saber que não podem se separar e serem felizes por causa das outras pessoas — respondeu com seriedade. Flora não nos encarou, mas fitou as montanhas à oeste.
— A comunidade indiana é complicada, e nós nos vemos enfiados no meio dela. Só percebemos que somos todos iguais quando a merda é jogada no ventilador — Flora comentou com a expressão séria e os lábios crispados.
— Ok, chega desse papo — se pronunciou com um sorriso de quem já havia falado muito sobre aquilo. — Que tal brincarmos de Marco Polo?
E mesmo enquanto dávamos risada e mergulhávamos, uma parte da minha mente não deixou totalmente a casa imponente sobre nós, os fantasmas que não nos deixariam enquanto estivéssemos lá.
Capítulo vinte e quatro
Dizer que o dia foi ótimo era eufemismo. Flora e eram uma dupla de irmãos incrivelmente divertida. Minhas bochechas ardiam pelas risadas. Nós surfamos (uma tentativa, na realidade), jogamos bola na areia e até mesmo fizemos alguns exercícios de yoga que Flora passou para nós. Combinamos de andar de barco no dia seguinte e iríamos até algumas piscinas naturais com o guia.
Ao fim da tarde, a mãe de apareceu na beirada da água, nos chamando para dentro. O jantar havia sido feito pelo chef (sim, é isso mesmo) de Felipe, que não jantaria na casa, já que precisava ir à cidade para um jantar de negócios. Seríamos apenas nós, a família Patel e eu, a noiva falsa, que na verdade estava caidinha pelo Patel mais novo.
Hum, eu estava otimista.
Saí do banho com uma toalha na cabeça e um vestido vermelho solto e de alcinha no corpo. não estava em lugar algum, mas observei um bilhete em cima da cama. Caminhei até ele e abri um sorriso bobo ao ver que era para mim:
Virei o bilhete algumas vezes antes de devolvê-lo à cama. Arrumei o cabelo e desci as escadas com o coração batendo forte contra o peito. A brisa gelada agora batia contra meus cabelos molhados e fazia minha pele bronzeada se arrepiar. A mesa estava posta diante de mim quando cheguei à cozinha. Somente Flora estava sentada. Observei o pai de ao longe, na varanda.
— É falta de educação se eu for cumprimentá-lo primeiro? — perguntei para Flora quando cheguei ao seu lado na mesa, apontando para seu pai com o queixo. Ela tomou um gole de vinho e negou.
— Pode ir.
Caminhei devagar até a porta por onde vinha a brisa gelada. O sol terminava de se pôr ao fundo do horizonte. Fui preenchida por uma reverência que somente nos toma quando colocados diante de algo tão grandioso que não pode ser explicado por bocas mortais, então apenas fiquei um tempinho ali, absorvendo aquela visão majestosa até criar coragem para falar com o pai de .
Minha decisão de chegar com calma foi frustrada quando tropecei no minúsculo degrau até a varanda. Praguejei e, ao levantar a cabeça, precisei controlar o susto com a versão mais velha de me encarando. Eles eram idênticos. A pele escura, os cabelos grossos, até mesmo os olhos, apesar de serem uma versão mais fatigada e triste, ainda eram iguais aos de .
— Olá, ! É um prazer te rever. — Acenei bobamente com a mão e me aproximei dele.
— Obrigada por ter permitido que eu viesse.
— Ah, é uma injustiça não compartilhar essa imensidão com mais gente, sabe?
O pai de indicou com a cabeça para que eu me aproximasse e ficasse ao seu lado. Apoiei as mãos na barra da varanda, contemplando o último fôlego do sol antes que sumisse atrás das ondas.
— Não conte para eles, mas a casa agora é minha. Assinei o contrato hoje de manhã, o dono da casa foi à cidade falar com a corretora, na verdade. A partir de segunda, sou morador oficial desta residência. — Pisquei algumas vezes, levemente incrédula. O Sr. Patel me encarou com uma expressão divertida. — Consegue guardar esse segredo até o jantar?
— Claro, consigo.
Eu já estava guardando tantos segredos, aquele seria apenas mais um.
Não precisei me questionar por muito tempo se ele viveria ali sozinho, a sua expressão pacífica me dizia que sim. Permanecemos em silêncio por algum tempo, eu sentia que ele queria dizer algo, e não estava errada.
— Você é indiana, não é? — Assenti em confirmação. Ele passou a mão sobre a barba branca e me encarou de soslaio. — Então você sabe que nós não somos os melhores em falarmos sobre nossos problemas.
— Tenho alguma experiência nisso — comentei com uma careta.
— Preciso que saiba que, caso case com , vai se casar com toda uma cultura junta também, e não vai ser fácil. — Engoli em seco, sentindo a mentira escalar por minha pele com um lembrete incômodo de que ainda estava ali.
— Estou ciente disso.
— Olha só, … — ele começou, virando-se de costas. Arrumei minha postura para encará-lo melhor. — Esse não promete ser um fim de semana pacífico, então eu peço perdão em adiantamento por qualquer inconveniente.
— Vou dar o meu melhor para manter calmo — assegurei, porque é o que tentaria fazer.
Quer dizer, isso até todos eles descobrirem que o noivado era falso, mas o que sentíamos um pelo outro não era. Sairíamos de noivos para nada, então para namorados? Talvez? Eu e não discutimos o que seríamos. Surpreendi-me por não ter ficado bitolada com aquilo ainda, apesar de todo o tempo disponível para ter um treco diante do futuro com .
Controlei um sorriso gigante ao pensar que não estava assustada com a perspectiva de não saber ainda o que éramos, porque a certeza de que eu e sentíamos algo grande um pelo outro era o suficiente naquele momento.
— Agradeço. Bom, agora vamos jantar, estou com muita fome.
Andamos juntos até a mesa. Senti uma simpatia automática por aquele homem. sempre falava muito bem dele, e eu sentia que era justificável. Ele passava uma aura de sabedoria e paciência que eu não encontrava em muitas pessoas. É realmente necessário ser muito pacífico para topar estar no mesmo ambiente que o amante de sua esposa e sua esposa. Eu não conseguiria.
— Vamos rangar, parece ótimo!
bateu com as mãos uma na outra quando apareceu na varanda. Ele parecia ter vindo direto da piscina. E, sem surpresa alguma, estava deslumbrante. Seu tronco, hoje de manhã cheio de água do mar, estava agora coberto por um moletom preto e uma calça de treino laranja, mas os pés destoavam do modelito, já que usava um chinelo branco.
E, apesar de ser uma aberração da moda, estava lindo. Ele cortou o cabelo antes de vir para cá, estava ainda mais sexy do que eu esperava, o que fazia meu coração pedir por misericórdia a cada dois segundos.
Era impossível que eu tivesse deixado esse monumento longe de mim por tantos anos. Mas eu pretendia mudar toda aquela situação, não deixá-lo longe, não mais.
Meu pai perdeu a chance por muito menos, eu não repetiria os mesmos erros que ele. E, se eu falhasse, seria uma tentativa, certo?
Durante o jantar, apenas o som dos talheres era ouvido. A mãe de usava um sari preto e permaneceu quieta durante toda a refeição, olhando apenas para a própria comida. estava sentado em minha frente e Flora ao meu lado. Os pais deles se sentaram em extremidades opostas nos cantos da mesa. Tomei uma golada de vinho antes de enfiar outra garfada do risoto de camarão na boca. Aquilo estava divino!
Eu nunca fui impedida de apreciar uma boa comida por causa de uma torta de climão. Inclusive, se aquela torta fosse comestível, eu comeria sem problemas. Mas nem todos pareciam compartilhar da mesma calmaria.
— Então, , animada para o casamento? — o pai de perguntou com um pigarreio. Controlei uma mudança de postura desconfortável e forcei-me a sorrir.
— Muito!
— Já começaram os detalhes? — Anushka questionou em seguida, firmando os olhos de bola de gude em minha direção, como se entendesse perfeitamente a mentira escondida sob minha pele.
Aquela mulher era extremamente inteligente, eu sabia.
— Ainda não — respondi com leve desconforto, procurando nos pés de sob a mesa um consolo. Ele encostou em mim, assegurando que estava ali.
Aquilo não era justo, eu não deveria estar pagando o preço daquela mentira ainda. E, por mais que tudo fosse acabar naquele fim de semana, me odiei por um momento por ter deixado que ela se arrastasse por tanto tempo, justificando minhas mentiras com uma bondade para com .
Eu só topei continuar mentindo porque, mesmo sem saber, inconscientemente, queria estar com .
Como eu demorei tanto tempo para perceber?
— Bom, — ela recomeçou, agora com um olhar preocupado —, eu não sei nada sobre você. Nada além do que seu pai disse.
Engoli em seco com a menção de Adnan, mas controlei a careta. Eu era jornalista, lidei com ameaças de morte diretamente jogadas em meus olhos. Sobrevivi a um atentado na emissora. Aquela mulher, por mais assustadora que fosse, ainda era humana.
— Meu pai não é a melhor referência para quem eu sou, com todo o respeito.
Estávamos em um limbo. Eu precisava me mostrar assertiva, mas não desrespeitosa. Esse limite era confuso na comunidade indiana. Isso foi expressado com clareza nos olhos de Anushka.
— Você consegue falar assim do próprio pai? — Espetou um camarão e abriu um sorriso azedo. — O que podemos esperar de seus filhos?
Preparei-me para rebater, mas tomou a dianteira.
— Isso é indelicado e inapropriado para o jantar, mamadi.
Anushka arqueou a sobrancelha, buscando apoio no marido, mas ele apenas cruzou os dedos e os apoiou sobre a boca, recostado na cadeira.
— Não fale assim comigo, — ordenou. Flora moveu-se na cadeira.
— O que gostaria de saber? — retomei a atenção para mim, antes que se estressasse. Ele me encarou furtivamente, ralhando comigo através do olhar.
— Você cozinha?
— Sim, mas não se puder evitar.
— Quer ter filhos?
— Mamadi! — interrompeu.
— Não, não quero. Não agora — respondi com honestidade. Anushka assentiu em compreensão.
— Já pensou em clarear a pele? — Cerrei os punhos sobre a mesa, controlando as batidas do meu coração.
Na comunidade indiana, é muito comum mulheres mais escuras enfrentarem problemas para se casar. A cultura do embranquecimento era forte demais entre os indianos, tanto na Índia quanto no Brasil.
— Eu gosto da minha pele — retruquei com uma careta. Anushka fechou a cara imediatamente, parecia pronta para voar em meu pescoço. Movi-me desconfortável na cadeira diante da falta de fala por parte dos outros da mesa.
Enquanto crescia, estava acostumada com esse comportamento por parte dos meus amigos. Não se retruca um pai indiano, não importa a situação. Porém, naquele momento, enquanto três adultos que obviamente eram maiores de idade se calavam diante da mãe de , perguntei-me se seria sempre daquela maneira.
Ela fala, eles abaixam a cabeça e obedecem.
Não nasci para aquilo. Não se tem amor imposto, e o que acontecia ali claramente não era amor.
— E como pretende cuidar da casa quando se casarem? Vai deixar o seu emprego? — voltou a questionar após tomar um gole d'água.
— Eu deveria? — questionei confusa, o que foi uma péssima decisão. Até mesmo o pai de , que se mostrava passivo à cena, pigarreou.
Percebi o erro tarde demais, quando as palavras já haviam saído.
Será que tantos anos frequentando o templo com minha mãe não me ensinaram nada?
— Isso vai ser uma desgraça. O que as pessoas vão dizer? — Anushka me ignorou, dirigindo-se a , como se eu não estivesse ali.
— Mamadi, por favor… — Flora começou, apertando os olhos com o polegar e o indicador.
Aquela parecia ser uma conversa recorrente.
— Flora, fique quieta — Anushka retrucou, voltando seu olhar para novamente. — Ela sequer é indiana, , no que estava pensando?
Farta daquilo, estava pronta para me levantar e ir embora. não diria nada?
— Ela é indiana, mamadi — ele se pronunciou, então decidi permanecer na cadeira por mais um segundo. — É tão indiana quanto Flora e eu.
A mesa permaneceu em silêncio.
— Ok, o que está acontecendo? — Flora largou os talheres sobre a mesa de súbito. Mastiguei lentamente a garfada de risoto, tentando controlar as batidas apressadas do meu coração. — , perdão por precisar presenciar isso, mas é bom que esteja acostumada com nosso jeito familiar de ser. Alguém vai falar algo? Mamadi estava bem hoje à tarde, e aí parece que chupou limão estragado.
— Fale direito, Flora — Anushka rosnou, alternando o olhar entre a filha e eu. Engoli em seco.
— Eu posso me retirar, não tem problema. — Apontei para a varanda.
— Não tem problema, — o pai de se pronunciou pela primeira vez e moveu as mãos com um sinal de desdém, não em minha direção, mas para minha recomendação. Senti-me como se estivesse numa reunião da família Skywalker. — Meninos, eu comprei essa casa hoje. Por isso viemos viajar, para que eu pudesse assinar o contrato.
e Flora piscaram algumas vezes, tentando compreender as implicações subentendidas daquilo.
— Vou passar a viver aqui efetivamente a partir da semana que vem com minha, hum, namorada.
Eu não estava preparada para aquilo. tossiu alto e Flora praticamente cuspiu sua Coca-Cola, ao passo que Anushka apenas os encarou com incredulidade.
— Essa é a reação de vocês? — ela exclamou em um hindi perfeito.
— E a mamadi? — perguntou em português, alternando o olhar entre os dois.
— Quer contar? — O pai de deu a abertura, estendendo a mão em direção à mãe de .
Senti-me assistindo a uma partida de ping-pong digna de novela das nove. Aquele tipo de entretenimento não existia na vida real, não é possível!
— Eu e Felipe vamos nos mudar para Nova Iorque.
Bem, não gargalhou daquilo.
— Você só pode estar brincando… — ele murmurou com o semblante frio.
Flora era a que parecia mais atordoada, alternando o olhar entre os dois.
— Há quanto tempo vocês decidiram isso?
— No dia em que a mãe de vocês anunciou o noivado de e — ele respondeu no lugar de Anushka, que parecia prestes a chorar.
Senti-me extremamente desconfortável, mas não tinha saída dali, então apenas estendi meu pé e toquei do outro lado da mesa, que me encarou com a expressão tranquila, indicando que estava bem.
— Na verdade, precisamos te agradecer, . — Fui tomada por uma onda de constrangimento quando o pai de chamou minha atenção. — Nós decidimos que só tomaríamos essa decisão quando achasse a pessoa certa para ele, e você apareceu.
Quis vomitar. E se aquilo não desse certo? Aquela era uma pressão grande demais.
Eu precisava de ar, estava prestes a gritar.
Encarei com desespero no olhar, ele parecia pensar o mesmo.
— E-eu não sei o que dizer — balbuciei com nervosismo.
— Não precisa, poupe-nos disso — Anushka foi quem me respondeu, me encarando com os olhos cheios de lágrimas. Pelo tremor de Flora ao meu lado, era a primeira vez que via a mãe chorando. Senti-me como uma intrusa naquele momento, queria me enfiar embaixo da mesa e acordar em Nárnia. — Nós não tivemos um casamento falho — ela começou, segurando a mão de cada filho sobre a mesa —, só que algumas coisas acabam. E nós demoramos demais para perceber que o nosso acabou.
— E você está tranquila com isso? — perguntou para a mãe, encarando o toque dela em sua mão. — Quer dizer, o que as pessoas vão pensar, essas coisas. — Cada palavra saída dolorida de sua boca, quase estranha. Ele parecia se adaptar ao cenário atual tanto quanto eu, como se aquela conversa nunca tivesse acontecido antes. Eu não duvidava daquilo.
— Eu e seu pai estamos prontos para encarar isso — ela afirmou seriamente e trocou um olhar cúmplice com seu ex-marido, algo tão profundo que somente pessoas que se conhecem há uma vida conseguem interpretar.
— Ok, e agora como vamos passar o resto do fim de semana? — perguntou cruzando as mãos sobre a mesa. — Porque, honestamente, que merda!
— Patel! Controle essa sua boca na mesa! E vamos passar como sempre, ué — Anushka retrucou.
— Isso é bizarro… — Flora constatou com o cenho franzido, ao passo que concordou veemente com a cabeça.
Eu, por mais que não pudesse me pronunciar, concordava.
— Felipe não vai ficar em casa durante o fim de semana, podem ficar tranquilos. Nós queríamos que viesse justamente para que pudéssemos conhecê-la melhor, já que vamos estar cada um em um canto do globo agora. — O pai de apontou para mim enquanto falava. Pelo amor de Deus, alguém para de trazer meu nome à tona toda hora!
— Estou à disposição — comentei com um sorriso trêmulo.
— Ótimo, então vamos fazer o seguinte? Amanhã de manhã vamos todos à praia e podemos jogar um pouco, igual fazíamos quando os meninos eram mais novos, que tal?
Ninguém pareceu muito animado com a ideia do pai de , mas fiz um esforço para não desanimá-lo, então comecei a dar algumas ideias de brincadeiras. Chutei com força sob a mesa, e ele entendeu o recado. Logo estávamos todos engajados em uma conversa sobre futebol de praia ser melhor que o de campo.
Ignorei a mãe de pelo resto da noite, em uma mistura de medo e raiva. engoliu muito daquilo, assim como Flora. Apesar de ser um traço cultural mais forte, não pude deixar de me sentir desconfortável.
Respeitar é diferente de engolir ofensas absurdas. E era aquilo que a mãe de fazia, ofendia para conseguir o que queria.
E se , um homem formado de um metro e oitenta e mais de vinte anos não conseguia lidar com ela, aquilo seria um sinal de que havia algo errado?
Sempre disse que gostaria de estar com alguém decidido e que fosse assertivo em seus modos. Questionei-me se eu estava ignorando alguns sinais pelo fato de ser , e aquilo criou uma palpitação em meu peito conhecida, aquela que vem antes de eu surtar e ir embora.
Porém, algum momento quando encarei , percebi o agradecimento em seu olhar, e aquilo foi o suficiente para que eu mantivesse um sorriso no rosto até o final do jantar. Eu surtaria depois, quando estivéssemos em São Paulo e pudéssemos conversar sem o peso da bomba de seus pais.
Anushka foi a primeira a se retirar, alegando estar cansada e querer dormir para irmos à praia cedo. Controlei o suspiro de alívio quando ela sumiu pelas escadas. O pai de foi fazer algumas ligações, até que por fim sobramos eu e Flora. disse que queria pensar um pouco e tomar um ar, então desceu até a praia.
Flora também pediu licença para descansar, mas disse que eu poderia ficar à vontade para ver televisão ou nadar na piscina. Agradeci com um aceno, e mal esperei que ela tivesse subido as escadas para correr pela janela da varanda, descendo as escadas de pedra correndo, esquecendo-me por um momento dos riscos de tropeçar e cair.
Quando a areia fofa atingiu meus pés, não observei . A praia estava escura, eu ouvia os barulhos dos grilos e observava os caranguejos indo de um buraco para o outro. A lua refletia na água novamente com toda a intensidade, e usei da claridade para seguir algumas pegadas na areia até onde estava sentado. Havia uma pequena fogueira em sua frente, as chamas realçavam o brilho de seus olhos e davam forma às árvores sombrias subindo uma colina até perder de vista. A noite começava a esfriar, e a escolha do meu vestido me pareceu levemente estúpida. Ele me viu e se levantou, então corri em sua direção, jogando-me em seus braços quando cheguei perto o suficiente.
— Eu sinto muito, , muito — murmurei contra seu pescoço, abraçando-o com força contra meus braços. riu na curvatura de meu pescoço e fez carinho em minhas costas. Permanecemos naquela posição por algum tempo, o silêncio era quebrado apenas pelas ondas e pelos grilos ao longe, o cheiro do mar nos enchia de uma vivacidade que São Paulo não permitia. Era como estar em um universo paralelo, uma bolha que não poderia ser perfurada por nada nem ninguém.
— Se eu soubesse que isso tudo teria acontecido, não chamaria você. Desculpa. — Afastei nossos corpos, encarando o rosto dele ao lado da fogueira.
— Nunca me peça perdão por algo assim, está me ouvindo? — ordenei.
— Mas posso pedir perdão por não ter sido tão incisivo — ele comentou com pesar, encarando a areia sobre seus pés. Encarei o céu estrelado e balancei a cabeça.
— Sei que você e Flora têm dificuldades em lidar com a sua mãe, mas você é adulto, . Precisa agir como um.
Ele pareceu ter levado meu toque numa boa, mas eu sabia que passaria a noite pensando naquilo. precisava digerir tudo aquilo, e era demais para uma noite só. Seus pais estavam se separando. Eu não imaginava o quanto aquilo doía, mas eu sabia exatamente como era não ter os dois pais juntos.
— E isso tudo aqui? É para mim? — desconversei. riu e assentiu, passando a mão pela minha cintura carinhosamente enquanto apontava para a fogueira.
— Não é algo grande, mas é o que eu consegui fazer.
Segui seu olhar e encarei por completo o que ele havia preparado. Havia duas garrafas de vinho e uma cesta de plástico sobre uma canga com estampas indianas. A fogueira iluminou também um saco de marshmellow e pastéis coreanos.
Eu sempre ouvi as pessoas falando sobre como as pequenas coisas é que importam. Tive certeza absoluta naquele momento de que meu coração poderia explodir de felicidade. Queria sair por aí dando estrelinhas, dançar funk até as pernas doerem somente para poder fazer tudo de novo.
— Eu não tenho palavras — murmurei bobamente, não conseguia mensurar o quanto estava feliz por aquele piquenique sob o luar. — Você é incrível, .
— Ah, eu tento — piscou em minha direção e me guiou para que eu me sentasse sobre a canga. Cruzei as pernas e abri a cesta com curiosidade, tirando de lá alguns chocolates e salgadinhos.
— Você me conhece como ninguém, sabia? — comentei enquanto ele colocava vinho em minha taça. me fitou com a sobrancelha arqueada.
— Você está muito carinhosa, o que aconteceu?
Mostrei a língua, mas apenas riu e bebericou de sua taça.
— Não sou carinhosa o suficiente?
— É, é sim — ele assentiu e abriu um largo sorriso em minha direção —, mas te ver boba por mim só te deixa ainda mais linda e adorável.
Não controlei o rubor em minhas bochechas diante de sua constatação. Eu e ainda não havíamos dado nome aos bois sobre o que sentíamos, queríamos ou esperávamos do futuro.
— , eu queria te fazer uma pergunta na noite do hospital.
Aprumei-me na canga, ajeitando o tecido do vestido que o vento insistia em tentar levar embora. As chamas da fogueira estremeceram ao meu lado. Cada memória daquela noite ainda pairava como um fantasma sobre minha pele, tomando meus sonhos e me fazendo delirar.
— Lança. Ah, não, espera, vamos deixar essa situação um pouco menos séria, que tal? — Arqueei a sobrancelha em sua direção com curiosidade quando ele encheu minha taça com mais vinho. — Vamos fazer aquele negócio de responder ou beber, pode ser? Se algum de nós dois não se sentir confortável para responder, podemos beber o vinho.
— Está com medo de responder, Patel? — provoquei com um sorriso sob a taça, mas pareceu sério quando falou:
— Estou fazendo isso por você, , quero te dar uma saída que não seja sair correndo da situação.
Bem, aquela havia doído. Mas era justo. Assenti encarando minha taça e respirei profundamente, controlando o nervosismo.
— Você disse que eu precisava tomar a minha decisão — comecei com o semblante sério, mas eu estava nervosa, minhas mãos tremiam levemente —, mas você nunca admitiu o que sentia por mim. Então a minha pergunta é a seguinte, , você já se apaixonou por mim antes?
O ar pareceu ser sugado de meus pulmões, não estava desconfortável, mas não esperava que eu fosse ser tão direta. Não se passaram mais do que alguns segundos antes que ele respirasse fundo e assentisse.
— Sim, já.
— Quando?
— É a minha vez, — ele comentou com um pigarreio, arrumando-se na canga. Peguei um chocolate e enfiei na boca. — Você ainda está saindo com o italiano?
— Não — respondi na lata. deixou um sorriso escapar por seus lábios, o que me fez rir junto. — No dia que saí com ele, pouco depois de nos beijarmos, eu terminei tudo.
— Por quê? — questionou com os olhos vibrando em minha direção.
— Hum, acho que é a minha vez de fazer a pergunta, não é? — riu e assentiu, tomando mais um gole generoso de vinho. Eu estava me sentindo leve, sorrisos fáceis caíam por meus lábios e nada parecia tão sério quanto era.
— O que você está sentindo com relação aos seus pais?
respirou fundo e rodeou a borda da taça de vinho com o dedo, me encarando com um sorriso sarcástico.
— Você quer falar sobre meus pais?
— Você quer? — retruquei. negou e tomou um gole de vinho. — Ok, justo. Sua vez.
— Por que você terminou tudo com o italiano? Não era algo apenas casual na sua jornada do autoconhecimento?
me encarava nos olhos, e algo me dizia que qualquer desvio de olhar seria uma decepção, então permaneci encarando seu rosto enquanto respondia.
— Por sua causa, . — Observei com curiosidade quando ele engoliu em seco. — Por que você não se declarou para mim antes?
— Por medo — ele respondeu na lata. — Eu não conseguiria lidar com a sua rejeição.
— Você não me deu a opção de te rejeitar, simplesmente me privou de saber o que você sentia — retruquei. limpou a areia de sua perna com a mão.
— Eu não ia conseguir lidar com o não, , não naquela época.
— Que época? — questionei confusa. suspirou antes de responder.
— Na faculdade. Eu gostei de você por uns três anos durante a faculdade, .
Eu sabia por cima pelo que as meninas tinham me dito (todo mundo, na verdade), porém não estava pronta para aquele tempo todo. passou tanto tempo assim a fim de uma menina que ia atrás dele dia após dia para falar sobre meus encontros casuais?
— Conheço essa cara, e é justamente por isso que eu não queria ter dito nada. Não é sua culpa, . Gostar de você foi divertido.
— Foi?
— Hum? — ele murmurou enquanto comia mais chocolate.
— Foi? Não é mais divertido? Quer dizer, você não gosta mais de mim? — Embolei-me nas perguntas. abriu um sorriso que me derreteu por dentro.
— Não é a sua vez de perguntar, linda. Minha pergunta é bem simples e direta: você disse estar apaixonada por mim. Preciso saber se isso é algo impulsivo ou é real.
— É a coisa mais real que já senti por alguém.
Não adiantava não ser honesta. Desde aquele dia, quando eu e dançamos no Eros, eu tentava lutar contra aquele puxão no peito, as borboletas no estômago e todas essas coisas das quais eu corro como o diabo foge da cruz.
— Como eu tenho certeza disso, ? — ele perguntou com a voz mais baixa. — Como eu sei que você não vai se cansar de mim assim como se cansou de todos os outros?
Aquela era uma boa pergunta, uma para a qual eu não tinha resposta exata.
— Você não vai saber, — fui honesta, respondendo com o quanto eu poderia. — Mas eu posso te garantir algo… — Deixei a taça agora vazia sobre a canga e me arrastei para perto dele, passando com o polegar sobre sua bochecha. fechou os olhos diante de meu toque, abrindo-os levemente quando voltei a falar: — Você é o único que me faz querer ficar, que me faz querer batalhar para ter na minha vida. Eu vim aqui com um objetivo, , e é te fazer perceber que eu não estou brincando com você e com seu coração.
— Essa foi uma boa resposta — ele sussurrou próximo aos meus lábios. Desci o olhar para a boca dele, voltando para seus olhos. Afastei-me quando ele se aproximou para me beijar.
— Não vou te beijar até resolver isso, . Além do mais, não seria justo depois de tudo o que aconteceu no jantar de hoje. — Beijei sua bochecha de leve após usar a mesma frase que ele lançou em minha direção para justificar não me beijar em sua casa, indo contra todos os meus impulsos para não beijar sua boca até o mundo acabar. Ele resmungou enquanto eu voltava para meu lugar e enchia a taça de vinho mais uma vez.
— Você é muito metódica, sabia?
— Sim, e é por isso que somos uma dupla tão boa. — Pisquei em sua direção e comi mais um chocolate, encarando-o com curiosidade. — Quem faz a pergunta agora?
— Você. — Apontou em minha direção e apoiou o queixo na mão, me fitando com curiosidade.
— Hum, deixe-me pensar… Ok, vamos lá. Você estaria disposto a um relacionamento à distância caso eu passe na entrevista do Rio?
Meu coração batia com força no peito àquele ponto, sangue zunia com força em minhas orelhas. Tudo dependia daquela resposta. respirou fundo e demorou a responder.
— Eu estaria disposto a tentar, mas não seria fácil ou dinâmico para nenhum de nós dois. Eu não ia conseguir te dar a atenção necessária, acho que você também não — ele começou, mas se interrompeu de súbito: — mas é óbvio que eu não diria para você ficar, claramente.
— Você abriria mão de mim mais uma vez? — questionei.
— Esse é seu sonho, não é? Então, sem pensar duas vezes.
Não consegui falar nada, não com aquela resposta. Eu não estava acostumada com o doar-se a alguém, abrir mão de sua própria felicidade pela de outra pessoa, e estava disposto a fazer aquilo por mim novamente.
— Prometo que você não vai precisar fazer isso, — afirmei com certeza. arqueou a sobrancelha em descrença.
— Você odeia promessas.
— Só as que eu não posso cumprir.
— Ah, e essa você pode? — perguntou com ironia. — Ah, merda! — Ele exclamou quando derrubou água em uma garrafa na áreia, sujando a canga. Ri e balancei a cabeça ao jogar mais areia por cima para cobrir.
— Como eu dizia, prometo que vamos fazer isso dar certo — assegurei novamente.
— Você tem certeza? Sempre parece que tem algo nos atrapalhando, tenho medo de algum problema surgir do buraco. — fingiu olhar para dentro de um buraco de caranguejo.
Gargalhei e o puxei para perto de novo, roçando nossos narizes em um beijo esquimó.
— E a regra de não me beijar hoje? — ele perguntou com um sorriso provocador.
— Posso parar agora, se você quiser.
— Não se atreva. — colocou a mão em minha coxa e cruzou minha perna em seu corpo no momento em que nossos lábios se encostaram mais uma vez.
O gosto de vinho tomou nossas línguas, inclinei a cabeça e deixei que descobrisse um pouco mais de mim. Segurei sua nuca e suspirei entre um beijo e outro, aprofundando nossa proximidade quando nossas peles pareciam fogo uma sobre a outra.
Beijar era minha nova atividade favorita. Ele não tinha pressa, ao contrário de mim, que era doida para tirar as roupas dele na primeira oportunidade possível.
Ri quando ele começou a me provocar, fugindo do beijo. Puxei-o para perto de novo, mas tropecei em minha tentativa falha de me encaixar em suas pernas, e os dois caíram na areia. Agora, ao contrário da outra vez, eu estava deitada. Havia areia em cada centímetro de minha pele, mas eu não me importava, não com sorrindo sobre mim e com sua mão acariciando minha cintura.
— Você tem certeza de que não caiu em cima de um caco de vidro? — ele perguntou, dando selinhos em minha boca e dirigindo os outros beijos para meu colo, brincando com o tecido do vestido com os dentes. Segurei seus cabelos de leve, descendo minhas unhas para seus ombros.
— Absoluta, — confirmei e contorci-me sob seu toque quando suas mãos dedilharam meus seios sobre o tecido fino.
— Ah, eu tenho uma novidade para contar — comentou enquanto subia o tecido do meu vestido.
— Sério? Qual?
— EU ESTOU ME APROXIMANDO!
Assustei-me com uma voz a alguns metros de nós. Levantei com tanta força que bati minha testa com a de , vi estrelas por alguns instantes.
— EU ESTOU MUITO PERTOOO!
— Flora? — gritou quando caiu de bunda na areia, também atordoado pela interrupção.
Flora parou em nossa frente com o semblante preocupado.
— Desculpa interromper, mas papá pediu para que eu chamasse vocês dois, ele quer fazer uma sessão de filmes com a gente. Não conseguiu dormir, pelo visto. — Gargalhei e assenti, colocando-me em pé em um salto e puxando junto.
— Claro, vamos! Seu pai é adorável.
Limpei a areia de meu vestido e balancei meu cabelo, voando com areia para todo lado. Flora saiu andando na frente, eu e ficamos atrás apenas para arrumar as coisas e apagar a fogueira.
— Não acredito que não vou poder te beijar para ver filmes. — fez uma careta, respondi dando um tapa estalado em seu braço.
— Aproveita o tempo com seu pai, .
— E falando nisso… e o seu pai?
Peguei a segunda garrafa de vinho e a segurei enquanto colocava a canga em meu braço e pegava a cesta.
— Eu e meu pai ainda temos um longo caminho pela frente. — Começamos a andar pela areia com o som das ondas embalando nosso silêncio.
Algumas perguntas rondavam minha mente organizada e odiosa por assuntos inacabados — nós estávamos namorando?
— Estou orgulhoso de você — encarei de esguelha, deixando que o sorriso escapasse facilmente por meus lábios.
— Por quê?
— Por ter se encontrado com seu pai, por ter finalmente encarado o seu medo para se declarar para mim, sabe? O básico. — Gargalhei alto e neguei com a cabeça, esbarrando meu braço com o seu. trocou a mão da cesta e cruzou nossos dedos. Eu não achava que poderia estar mais feliz do que naquele momento.
— Eu não me declarei para você ainda.
— Uh, isso significa que aquilo na minha casa foi só um treino? Estou ansioso!
Revirei os olhos e o empurrei de leve, mas sem soltar as nossas mãos. Eu não planejava soltar ou deixá-lo se afastar de mim nunca mais, não enquanto ele estivesse ao meu lado.
Capítulo vinte e cinco
Noite de Ano Novo, quando toda a família está em casa, a música é alta, a comida é farta, você está feliz e cheio de esperança. É assim que me sinto agora enquanto vejo se arrumar em frente ao espelho do banheiro para o jantar. Ela está usando um perfume absurdamente cheiroso, e sinto que poderia viver com o nariz em seu pescoço.
Papá decidiu chamar alguns colegas de trabalho da filial do Rio de sua empresa para jantar conosco, eles trariam suas famílias também. Isso significava que teríamos crianças correndo de um lado para o outro, e também significava que eu precisaria ficar fazendo sala para os convidados, e não enchendo de beijos inapropriados a noite toda. Não que isso fosse realmente me impedir.
E seria mais difícil ainda me controlar quando ela usava uma calça jeans marcando aquela bunda deliciosa e uma camiseta azul que eu escolhi para a ocasião.
— Você acha melhor a argola dourada ou prata? — Ela saiu do banheiro balançando o par de brincos em minha direção.
— Acho que a dourada combina com a blusa. — voltou para o banheiro e retornou alguns segundos depois. — Você é tão gostosa que faria o mundo inteiro parar de girar se quisesse.
gargalhou alto. Eu não me cansava de ouvir aquele som. Levantei-me da cama e passei minhas mãos ao redor de sua cintura, beijando-a com mais calma desde que havíamos começado com aquele rela-não-rela.
Ontem à noite, assistimos um filme colombiano. Eu não preciso dizer que o filme era a última coisa na qual eu prestava atenção.
Papá e conversaram durante o filme sobre as referências latinas, sobre todo o contexto e essas coisas que gente inteligente consegue fazer sem parecer ridículo.
Flora estava capotada nos primeiros dez minutos, roncando baixo com um chapéu sobre os olhos tal qual um bóia-fria na hora do descanso.
Apesar do filme ser legendado em hindi, eu estava feliz. estava envolvida nos meus braços e vez ou outra, quando ela parecia concentrada demais, eu soprava seu pescoço ou fazia carinho com o polegar em sua nuca. E todas as vezes, uma onda de prazer percorria meu corpo ao vê-la se arrepiando e se arrumando no sofá, esfregando seu quadril contra minha calça.
Quando o filme acabou, Flora subiu para seu quarto, papá também, mas queria ver outro filme, já que estava sem sono. Eu concordei, e os dois se aconchegaram diante da tela massiva para assistir Aladdin. Sorri com a escolha dela, mas não comentei nada, nem mesmo quando ela começou a citar as falas dos personagens, contrastando elementos culturais com os cinematográficos.
Em algum momento, estava deitada com a cabeça no meu colo e já dormia. Fiz carinho em sua cabeça enquanto o filme passava. Jafar havia se tornado uma cobra gigante, o que eu achava ridículo! Sério, ele é um vilão tão inteligente pedindo coisas tão estúpidas… O mais forte do mundo? Obviamente deveria ter pedido para ser o Dwayne Johnson.
Tentei acordar , mas ela pediu para continuar dormindo no sofá, e não tive escolha a não ser ficar ali. Por mais que minha coluna pedisse uma pausa no dia seguinte enquanto nadávamos ao lado do barco, fiquei hipnotizado pela forma como havia se adequado bem à minha família.
Até mesmo mamadi parecia menos defensiva, mas eu acreditava ser pela melancolia do fim de semana.
Não é todo dia que se acaba um casamento tão duradouro. E, apesar dos apesares, eu fiquei feliz em saber que meus pais decidiram nadar contra a corrente da fofoca da colônia para que pudessem buscar sua própria felicidade, mesmo que isso significasse que não estariam mais juntos.
Tudo estava em paz naquele dia. Contudo, levando a sério a minha teoria de que eu tinha o timing e sorte de um viciado em jogos trancafiado em um porão em Las Vegas, observei atônito e com a garganta seca Flaviane entrar pela porta de casa com os braços dados com um dos sócios de papai na hora do jantar.
, que estava do outro lado da sala, seguiu meu olhar e franziu o cenho. Aquilo era muita coincidência. Eu, obviamente, os cumprimentei com cordialidade, mas havia uma escola de samba em minha cabeça enquanto eu decidia se era muito azarado ou odiado por divindades.
— É um prazer te rever, — Flaviane cumprimentou suavemente, mas seus olhos demonstravam uma malícia extremamente assustadora, que em outra ocasião seria tremendamente sexy. Naquele momento, pensei em trancá-la na despensa até todos irem embora.
— Vocês dois se conhecem? — o homem de pele escura, acompanhante de Flaviane e sócio de papá, apontou para nós dois com um sorriso. Assenti com um sorriso torto. Eu seria um péssimo ator em todas as escalas.
— Sim, somos colegas de trabalho — respondi simples. Quanto menos falasse, melhor seria.
Eu precisava dar um jeito de contar a Flaviane que eu não queria repetir nossas doses de casualidade, e eu pretendia fazer aquilo logo.
me acalmou com o olhar e piscou para mim de onde estava conversando com algumas esposas dos sócios. Ela soltou uma risada, que eu reconhecia como forçada, e cruzou os dedos em sinal de sorte, sorrindo em seguida.
Respirei fundo e tentei me concentrar na roda de conversas sobre investimentos, mas uma criança passou voando por mim em direção às escadas, então decidi me ocupar em brincar com elas enquanto Flaviane parecia entretida.
Fiquei de olho nela por um tempo, tentando achar uma brecha para me aproximar. No meio tempo, me diverti construindo brinquedos.
Crianças são muito mais divertidas do que adultos, que bebem para esquecer seus problemas. Eu sabia que papá compartilhava da mesma ideia, porque logo estava brincando comigo e com dois meninos, Pedro Júnior e Pablo, de construir Legos que Pablo trouxera para se divertir.
Montamos uma nave de Lego, e o resultado foi bem satisfatório. Tirei algumas fotos e mandei no grupo com meus amigos da faculdade. Ajudei papá a se levantar quando terminamos, ele ainda precisava fazer sala com seus convidados, e eu tinha que dar um jeito de puxar Flaviane para um canto e conversar com ela.
apontou para a varanda com a cabeça em um momento enquanto eu falava com uma das esposas sobre o valor absurdo do arroz. Ela disse que precisaria demitir a empregada para sustentar a casa. Eu sabia que ela poderia ter vinte empregadas sem sequer arranhar seu orçamento, mas forcei-me a ser gentil em nome de papá. Despedi-me com um sorriso e praticamente corri até minha noiva-falsa com o coração acelerado.
— Eu juro que não sabia que ela estaria aqui — falei direto quando a alcancei. O vento frio atingiu meu rosto com força ao pisar na varanda. assentiu e cruzou os braços, contornando o cotovelo com as unhas.
— Ela ainda acha que vocês dois estão transando? — perguntou.
— Sim, eu não falei mais com ela depois daquele dia do vidro. — assentiu e suspirou, eu sabia que sua mente inteligente maquinava diversas formas de nos livrar daquela situação.
— Você consegue falar com ela em privado? Posso distrair o acompanhante dela. É uma boa chance de explicar.
Concordei com o plano simples. Quanto menos ação, melhor.
Hoje, enquanto papá anunciava o jantar, eu e pensávamos em quando contaríamos a eles sobre o noivado falso. O plano inicial era usar o jantar, mas a presença daquelas pessoas não impediria o escândalo que mamadi faria — e talvez Flora.
Então, após alguns minutos de discussão mais cedo na praia, decidimos que contaríamos após o jantar, quando todos estivessem cansados demais para gritar com nós dois. não foi a maior fã da ideia, alegando que nós também estaríamos cansados. Por mais lógica que fosse aquela teoria, era nossa única chance antes de voltar para São Paulo amanhã de manhã.
Cutuquei o osso entre os olhos e suspirei pesadamente, encarando as pequenas ondas quebrando na areia, mas incapacitado de ver além da escuridão. Aspirei com familiaridade o cheiro de sal e areia, mais tranquilo com a nossa decisão. Não seria fácil, porém era necessário.
— Eu só quero que isso acabe — confessei. — Queria que alguém largasse a bomba e nós dois não precisássemos lidar com isso. — arqueou a sobrancelha.
— Não é assim que se resolve um conflito. Você vive me dizendo isso e agora está querendo amarelar? — Balançou a cabeça em negativo e segurou minha camiseta de botões, puxando-me para perto. — Que lindo, .
— Você não tem direito de usar isso contra mim — murmurei. riu pelo nariz e mordeu o interior da bochecha.
— Eu sei que não precisamos falar disso agora, mas… Precisamos conversar sobre algumas coisas, . — Arrepiei-me com a tensão em sua voz. Fitei com preocupação.
— O que está incomodando você?
— Não é exatamente isso, é só que… Ai, que droga, eu nem sei como dizer isso sem parecer uma escrota.
— Tente — incentivei com um leve pesar de ombros.
— Você precisa saber que sua mãe vai surtar quando falarmos sobre o fim do noivado, e que ela não vai te atacar, mas a mim. E eu sei que a cultura indiana é complicada, mas eu preciso que esteja do meu lado nisso.
— Mas é claro! — comentei de pronto. pareceu levemente cética, virando-se de lado.
— Você não me defendeu exatamente no jantar.
Ah, então era sobre aquilo.
Sopesei o que poderia falar. e eu nos conhecíamos há anos, mas aquela dinâmica era nova, e eu precisaria aprender a lidar com ela.
— Sinto muito por isso, de verdade — pedi com a voz baixa, puxando-a para perto pelo cós da calça jeans. olhou para dentro da casa, mas virei seu queixo para mim com delicadeza. — Mesmo. Eu só não sei lidar com minha mãe, pelo menos não direito. E é algo que preciso melhorar, então peço paciência com isso.
assentiu com um suspiro.
— Ok, podemos tentar.
Dei uma leve beliscada em sua bochecha e recebi um tapa na mão em retorno.
— Seu bobo — brincou e me empurrou pelo ombro. — Vai logo dizer para a Flaviane que você só vai me comer a partir de hoje.
— Você é uma verdadeira romântica — cantarolei com uma risada e voltei para dentro da casa.
Flaviane conversava com meu pai e seu acompanhante, então permaneci apoiado no balcão da cozinha enquanto esperava por uma chance. se juntou com Flora do lado de fora da varanda, as duas riam e balançavam a cabeça em direção ao mar. Sorri com a visão, subitamente grato por Flora e se darem tão bem. Voltei meu olhar para Flaviane, aguardando pacientemente.
A oportunidade se apresentou perfeita quando ela pediu licença para ir ao banheiro. Segui a mulher de pele negra a passos apertados, tentando disfarçar. Eu seria um péssimo 007. Havia suor em minhas têmporas, meu corpo inteiro tremia de nervosismo com a possibilidade de ser pego dando o fora na acompanhante de um dos colegas de trabalho de papá. Senti o olhar de me seguir ao longo da sala, queimando minhas costas com expectativa.
O lavabo ficava ao lado da cozinha, virando em um pequeno corredor. Assim que caminhei daquela direção, fui surpreendido por Flaviane, que estava parada ao lado da porta. Ela me virou e me apoiou contra a parede, beijando minha boca antes que eu pudesse ter alguma reação. Fui tomado pela surpresa, mas não reagi ao beijo, empurrando-a de leve pelos ombros.
— Precisamos conversar! — exclamei com os olhos arregalados.
Ela pareceu confusa, mas se afastou.
— Está tudo bem? — perguntou com o semblante sério. — Pensei que você gostasse dessas coisas mais explícitas, sabe? — Ela gesticulou com as mãos para minha calça.
— Só preciso te falar algo sério… Eu e não somos noivos de verdade. — Flaviane arqueou a sobrancelha. Esperei um choque em seu olhar, qualquer coisa, mas ela permaneceu impassível.
— Eu sabia — disse com um sorriso levemente vitorioso. Agora eu era quem estava confuso. — Eu jamais transaria com o noivo de alguém. Vi vocês dois conversando naquele almoço da empresa, lembra? Ouvi falando sobre o namorado dela, não foi difícil fazer as somas…
Eu achei que era um bom mentiroso. Mas a verdade é que, para cada mentiroso, há um Sherlock Holmes pronto para desmascará-lo. Fitei Flaviane com perplexidade, um sorriso incrédulo rasgou meu rosto.
— E por que não me contou?
— Acho que pela adrenalina, não sei. Era engraçado te ver todo nervoso.
Bem, eu não estava pronto para aquilo.
— Mas por que está me contando isso? — perguntou novamente, perdida em minha expressão.
— Porque eu e estamos juntos.
— Sério? — Arregalou os olhos, surpresa. Senti um leve deleite em seu choque e assenti com os braços cruzados.
— Seríssimo.
— Poxa, meus parabéns! — Controlei um susto quando ela me abraçou com a força por um tempo. — Já que estamos sendo honestos… — continuou com a voz mais cômica, mas sem deixar o abraço. Não sabia onde colocar as mãos, então a abracei de volta, sem jeito. — Eu vim como acompanhante de Blumenau, mas ele na verdade é gay. Não o traí ou nada do tipo, se é algo que você pensou.
Sim, eu considerei a hipótese, mas me choquei o suficiente com sua revelação para dar tempo que ela voltasse a me encarar, longe do abraço, mas perto de meu rosto.
— Blumenau é gay?
— Muito.
— Uau — retruquei embasbacado. Flaviane mordeu o lábio inferior e suspirou.
— Bem, então terminamos aqui, não é? — murmurou com um risinho triste. Passei a mão em meu braço e assenti, coçando a nuca em seguida.
— Pois é…
— Posso pelo menos me despedir direito? — perguntou direta. Arregalei os olhos, mas não tive tempo de retrucar antes que sua boca estivesse na minha, me prensando contra a parede com força. Afastei seu corpo com delicadeza e fechei a cara.
— Eu não dei a minha permissão para isso, Flaviane — comentei chateado. Flaviane deu de ombros e suspirou.
— Eu merecia uma despedida.
— Ewwww!
Virei-me com os olhos arregalados para a entrada do lavabo, sentindo meus batimentos cardíacos atingirem níveis estratosféricos de um momento para o outro. Nada me preparou para encontrar o olhar de Pedro Júnior em minha direção. Ele abriu um sorriso maldoso que somente crianças conseguem dar e saiu gritando pela sala:
— Beijoooo, beijo! Eles se beijaraaaam! Beijoooo! Eca, que nojo, beijoooo!
Encarei Flaviane alarmado, e os dois correram de volta. Toda a festa nos encarava com os olhos arregalados quando atingimos o patamar da cozinha.
Pablo também entrou na brincadeira e fez seus bonecos do Max Steel se beijarem, gerando uma reação negativa da mãe dele, que tirou os bonecos de sua mão e os jogou em sua bolsa Gucci.
Pense, ! <br> Mas não conseguia me mexer, eu tinha certeza de que aquele era o pior pesadelo do qual eu já havia participado. Naquele cenário, todos estavam com roupas, mas eu estava pelado e indefeso.
— Ai, ai, essas crianças… — Apontei para Pedro Júnior, sem saber o que dizer além disso. estava com os olhos arregalados e enraivecidos. — Elas inventam cada coisa!
Franzo o cenho, mas acompanho assustado quando aponta para sua própria boca. Passo o dedo sobre meus lábios, sabendo que o batom de Flaviane estava ali.
— Eu não inventei nada! — Pedro Júnior berrou enraivecido. Seus cabelos loiros caíam por seus olhos azuis, uma faceta de raiva percorria seu rosto. — Eu vi! Eles dois se beijaram, e a moça disse que ele — apontou para Blumenau — é gay! Eu ouvi tudinho! E tem mais — àquele ponto, a mãe de Pedro Júnior simplesmente arrastava o filho pela manga para o canto mais longe da sala, mas sua voz estridente ainda preenchia todo o gigante espaço —, o moço traiu aquela moça! — Ele apontou para , por fim.
Como uma criança poderia ser tão fofoqueira?
Ainda mais assustador do que o olhar de era o olhar de mamadi, que parecia pegar fogo em minha direção. Flaviane era uma estátua de sal ao meu lado, com os olhos fixos em seu acompanhante.
Ninguém se mexia, somente o chef e sua equipe de cozinheiros permaneciam trabalhando na varanda, alheios ao que se passava do lado de dentro da casa. Eu estava prestes a me agachar e pedir perdão beijando o chão, então soltou uma gargalhada alta e estridente, chamando a atenção de todos para si.
Fitei sua figura se mover por entre as pessoas, seus olhos prometiam gritos e nervosismo como eu só vi uma vez, quando seu ex-namorado a trancou para fora de casa e eu precisei buscá-la à meia-noite no centro de São Paulo. Ela estava ao lado de um morador de rua fumando maconha e dizendo a ela que as estrelas eram, na verdade, virgens que morreram antes de se desposarem com seus esposos.
— Ah, , eu já te falei várias vezes para tomar cuidado com esse costume quando você bebe! — se pronunciou, passando por todos para andar em minha direção. Todos os olhares a seguiam com curiosidade. — Podem ficar tranquilos, quando ele bebe muito vinho tende a ficar confortável demais. Isso inclui beijar cachorros também. — Encarei-a com os olhos arregalados, mas isso tirou algumas risadas tímidas dos convidados. — Ah, qual é? Não foi nada, podem ficar tranquilos. O jantar está sendo servido, e vocês vão acabar comendo moscas com esses queixos abertos. Especialmente você, Alfredo, soube que está aguardando pelo pudim, não é? Então vamos à fila! Ele será servido lá fora.
Observei estupefato enquanto todos começavam a andar aos poucos para a varanda, onde o chef terminava de colocar os molhos nos alimentos. Papá distribuiu diversas mesas redondas ao longo da varanda extensa. Flaviane também deu no pé, sumindo da minha visão. Eu estava pronto para me desculpar, mas virou-se para mim com o rosto pegando fogo.
— Sério isso, ?
— Ela me agarrou! — defendi-me em um sussurro desesperado. Algumas pessoas fofoqueiras se voltaram para nós, por isso abaixei o tom de voz e sorri na direção delas, acenando com a mão.
— Eu acredito nisso, mas a questão é que você não foi inteligente o suficiente para pensar que levar a mulher para um canto isolado não passaria a mensagem errada para ela? — revirou os olhos e me deu um tapa no braço. — Acorda, !
Puxei pelo braço para o mesmo corredor onde Flaviane me encurralou.
— E agora? O noivado!
— Você liga para isso, ? — pareceu chocada, seus olhos escanearam meu rosto inteiro. — Você não conseguiu se defender da própria cagada na frente de todo mundo. Está agindo passivamente com tudo, e agiu passivamente com relação ao noivado falso o tempo todo!
— Você não está sendo justa — apontei com igual incredulidade.
queria ter aquela discussão agora?
— Essa mentira já acabou há eras, , e mesmo assim você tentou arrastar por muito tempo.
— E você tinha toda a liberdade de dizer que não! — respondi.
O que deu em com o surto repentino?
— , você está sendo tão passivo quanto seu pai foi a vida toda!
Aquela frase me impactou tanto que fez piscar algumas vezes. Quando seus dedos tentaram tocar meu braço, desvencilhei-me.
— Não é a mesma coisa. Minha mãe maltratou meu pai por muito tempo.
— E ela não fez o mesmo com você?
Por mais que estivesse magoada, não deixava de falar a verdade. Nunca. Nem mesmo quando doesse até o fundo da alma, tocando em pontos adormecidos.
— Eu posterguei essa mentira toda de propósito, mesmo sem querer — confessei.
Percebi há algumas semanas que eu teria contado a verdade antes, mas não me sentia disposto. Estar com me fazia querer manter aquela farsa pelo tempo necessário.
— , você enche a boca para dizer que eu não peço ajuda, que eu não falo sobre meus problemas — ela começou, parecia cansada —, mas você mantém tanto para si. As mágoas com sua mãe, sua paixão por mim, tudo isso. Você engole e aceita tudo. E, sendo bem honesta, foi doloroso imaginar que, por mais que eu me esforce, sempre vou precisar bater de frente com sua mãe sozinha, porque você abaixa a cabeça e aceita tudo.
— , eu não sei se você está me acusando ou tentando me ajudar.
— Ajudar, óbvio! — ela exclamou com obviedade. Pisquei algumas vezes para o teto, uma careta surgia em meu rosto.
— Então por que você faz isso como se me olhasse de um pedestal? Como se meus erros fossem, de alguma forma, maiores que os seus?
— Isso não é verdade… — retrucou, mas não parecia totalmente convencida.
— Você e eu somos a cópia cuspida e escarrada de nossos pais, ! — exclamei um pouco mais alto, tratando de abaixar o tom de voz ao encará-la novamente. Eu estava machucado, sabia que ela também. — Eu posso ser passivo por causa dela, mas você também é medrosa por causa do seu pai. , você é tão culpada quanto eu por essa mentira continuar, e você sabe disso. Não é justo colocarmos a culpa em nossos pais por algo que somente nós dois decidimos.
Permanecemos em silêncio por um tempo, apenas nossas respirações eram audíveis. Eu sabia que estava certo, mas aquilo não importava, não quando ela respirava fundo e olhava para a parede atrás de mim. Eu preferia estar errado se aquilo significasse acabar com essa briga.
— , começamos tudo isso com uma mentira. Não tem como terminar bem — confessou com lágrimas nos olhos. — Olha só isso, você tem medo de se expressar, eu tenho medo de me entregar completamente. Como isso vai funcionar?
Espera, o que ela estava dizendo?
— — segurei suas mãos com as minhas, meus olhos passeavam com desespero por seu rosto, tentando trazê-la de volta para a realidade —, você tem a mania de achar que somente pessoas completamente resolvidas consigo mesmas podem se dar a chance de serem felizes. Nós sempre vamos mudar, sempre vamos achar outros defeitos e tentar corrigi-los.
— Mas e se não der certo? — ela murmurou.
— Aí não deu, ué! O que podemos fazer?
Permanecemos em silêncio por pouco tempo, até Flora irromper pelo corredor com os olhos em brasa.
— Eu não acredito que você fez isso! — Minha irmã me estapeou com força na cabeça e no braço. Pisquei atordoado, ciente de que precisaríamos lidar com uma bomba em nossas mãos.
Quando eu disse que preferia que alguém contasse sobre o noivado, não imaginei que algum poder divino realmente fosse ouvir aquilo.
Onde estava esse poder quando eu pedi um videogame com quatorze anos?
— Alguém vai me explicar o que acabou de acontecer ou eu preciso adivinhar?
Ah, não.
Mamadi foi a próxima a chegar para a festa, parando ao lado de Flora. Observei papá ao longe, também nos encarando enquanto dava alguns tapinhas nas costas de um de seus colegas, atravessando as portas em nossa direção.
— Saiam todos daqui, vamos subir para o quarto. Não vamos discutir aqui! — ele ralhou, e todos subiram em silêncio pela escada em filinha indiana. Encarei alarmado, não tinha como justificar o que aconteceu ali embaixo, não dava.
— Que merda foi aquela?! — Flora foi a primeira a exclamar com um gritinho esganiçado quando entramos todos no quarto.
Encolhi os ombros, sentindo-me como um cão sem escapatória. alternava o olhar entre todos nós, eu conseguia sentir seus neurônios trabalhando a todo vapor para nos tirar daquela situação, mas as vozes de mamadi, papá e Flora nos invadiam ao mesmo tempo.
— O que as pessoas vão dizer? — Essa era mamadi.
— Você perdeu o juízo? Eu vou enfiar meu pé na sua bunda! — Essa era Flora.
— Eu não acredito que eu criei um canalha. — Esse era papá.
— Eu sabia disso! — falou por cima das vozes. Todos viraram para encará-la, mas ela não se intimidou pela atenção. — Eu sabia de tudo isso.
— Você é corna mansa? — mamadi questionou com nojo na voz.
— Não é como se você tivesse problema com isso, não é, Anushka? — papá retrucou severamente.
— Vocês dois têm o relacionamento aberto ou algo assim? — Flora indagou em confusão.
— Eu e não somos noivos de verdade. — Lancei a verdade de uma vez. — A mulher que vocês viram lá embaixo é Flaviane, eu e ela nos… hã… encontramos algumas vezes.
— Eu falei que ele não era gay! — mamadi foi a primeira a exclamar, parecia prestes a desmaiar.
— Mãe! — exclamei exasperado. — Eu sou bissexual, pelo amor de Deus, já tivemos essa conversa milhões de vezes.
O silêncio prevaleceu depois disso. estava parada ao meu lado, mas seus olhos fitavam qualquer coisa que não minha família. Eu estava prestes a lançar um “é pegadinha do malandro”, apenas para descontrair, no momento em que Flora se pronunciou:
— Por que vocês mentiram? — Ela parecia verdadeiramente magoada. tremeu ao meu lado e moveu o peso do pé para o outro, desconfortável com a situação inteira.
— No dia da entrevista de emprego, descobri que eles só aceitavam funcionários casados ou prestes a se casar — comecei a história pelo começo. — E eu menti, disse que estava noivo.
— Ah, … — mamadi lamentou.
— Então chamei para ser minha noiva de mentirinha no evento da empresa, já que todos já achavam que era ela a minha noiva. — Todos os olhares se voltaram para , que encolheu os ombros. — Só que Layla, aquela bocuda, acabou contando para Flora, e aí chegou em toda a família.
— E por que vocês não admitiram antes? — mamadi questionou confusa.
— Porque a senhora tratou melhor quando ele parecia estar noivo do que sozinho. — tomou a dianteira. Mamadi cerrou os olhos em direção a ela. Flora arregalou os olhos e papá tocou o ossinho do osso entre os olhos, como se soubesse o que estava vindo.
— Você vai querer dizer como eu trato meu filho?
— Mamadi, você não pode nos tratar mais assim! Não pode falar desse jeito com — disse exasperado. — Olha só o que você faz com a gente, a pressão que cai sobre nossos ombros. Eu não ligo para o que as outras pessoas vão pensar me vendo namorar um homem ou uma mulher. Eu amo , entende? Amo. E isso não me torna menos bissexual!
— Pensei que vocês tivessem terminado — Flora comentou com confusão, alternando o olhar entre nós dois.
sequer se mexia ao meu lado. Eu estava petrificado, sem saber como reagir diante dos olhares colocados em meu rosto.
— Ontem vocês dois estavam se beijando na praia, aquilo significava alguma coisa? — Flora questionou novamente, desviando o assunto de mamadi por algum tempo.
— Eu e nos conhecemos melhor durante esse período, nos entendemos e descobrimos que nos gostamos. — Tomei a vez, levando em consideração que eu desmoronaria a qualquer instante. — Mas isso não me torna menos bissexual, mãe… Eu sei que você pode me odiar por isso, mas é verdade. Eu odiei cada momento em que precisei fazer faculdade forçado, odiei o fato de achar que precisávamos mentir para que eu pudesse me sentir amado por você. E isso só me fez mal, eu não aguento mais!
Um alfinete caindo no chão poderia ser ouvido. Ao longe, escutamos as risadas altas dos convidados, alheios ao drama familiar que se passava no andar de cima.
— Bem, eu posso aceitar isso — mamadi falou de supetão, tomando a todos com surpresa. — Contanto que você não se case com essa mestiça, eu aceito tudo. Fico feliz que tudo esteja resolvido. Podemos dar uma carona para ela voltar para casa. Damos alguma explicação sobre esse vexame lá embaixo. Eu consigo resolver, não é exatamente isso que faço?
Os olhos de mamadi não pareciam atordoados, era simplesmente como se ela esperasse aquilo, que eu cometesse algum erro e ela precisasse correr ao resgate.
me encarou com os olhos fixos, seu pescoço se tornava vermelho.
Eu precisava dizer alguma coisa, mas o olhar do meu pai dizia que era melhor esperar. E meu pai esperou por anos, nunca disse nada. Eu não faria a mesma coisa. Porém, antes que pudesse falar, deu um passo, fitando mamadi diretamente nos olhos.
— Eu não mereço e não preciso ouvir nada disso — sibilou, olhando para minha mãe com os olhos tão vidrados ao ponto de ser sufocante. — Você arruinou seu filho em tantas áreas. Tem noção do quanto ele sofreu por sua causa? — exclamou exasperada, passando as mãos pelos cabelos. — Mas isso não é problema meu. Eu me recuso a ouvir a senhora falar qualquer coisa desse tipo sobre mim, sobre seu filho!
se virou para mim, e vi tanta dor em seu olhar que senti vontade de chorar, de gritar, de abraçá-la, mas eu sabia que isso apenas a afastaria.
— Você disse que ama… — ela murmurou, eu sabia que lágrimas lutavam em seus olhos. Sua voz quebradiça me despedaçou por dentro. Eu queria tocá-la, fazer algo, mas eu não conseguia. Simplesmente não conseguia me mexer. — Vocês precisam de tempo para conversar — apontou para todos com os olhos cansados —, e eu preciso voltar para casa. Peço desculpas, de verdade, pelo incômodo.
E então ela foi embora. Mal encarei minha família e avancei para a porta atrás dela. Mamadi segurou meu pulso com força, uma advertência pairava em seu olhar.
— Não vai atrás dela, não é? — Livrei-me de seu aperto com força, fitando-a como eu verdadeiramente a via naquele momento, um monstro.
— Você é uma pessoa horrível… — comentei com surpresa e nervosismo, consciente de minhas palavras e desejando ter falado cada uma delas. Mamadi arregalou os olhos, Flora deu um passo à frente. — Você destruiu a minha felicidade por tantos anos, não vou deixar que faça o mesmo agora.
— Você não pode falar assim com sua mãe, ! — papá apontou. Virei-me em sua direção, sangue rugia em meus ouvidos enquanto balançava a cabeça, sentindo lágrimas de raiva subirem por meu peito.
— Alguém tem que falar, não é? Já que você nunca fez isso! — praticamente gritei, sentindo meu coração bater com força no peito, a raiva tomando cada canto de minha atenção.
Mal tive reação quando a mão de minha mãe atingiu meu rosto com força. Virei-me para ela com lágrimas escorrendo pelo meu rosto, minha cabeça doía pela força do tapa e minha bochecha formigava no local que sua mão atingiu.
— Eu tenho vergonha de te ter como filho agora, — mamadi comentou com o semblante dolorido, os olhos pequenos vermelhos. Toquei minha bochecha onde ardia e vi uma pequena mancha de sangue na ponta do dedo. Fitei os anéis gigantes de mamadi nos dedos e soltei um soluço, sentindo meu peito doer com as lágrimas querendo se derramar.
— Então não me considere mais seu filho — retruquei. — Não é como se você me tratasse como um.
Virei-me para a porta rapidamente, indo para o quarto de sem esperar para ver se alguém me seguia. Adentrei pela porta, batendo com a maçaneta na parede. estava jogando suas roupas na maleta e calçando seus tênis. Vestia uma meia azul e outra amarela, lágrimas furiosas escorriam por seu rosto.
— , por favor, me deixa falar…
— Agora você quer falar? — exclamou com raiva.
Não me aproximei, sabia como reagiria. Então permaneci parado, encarando-a enquanto ela tentava fechar sua mala, sem sucesso.
— , tem uma calcinha impedindo…
— Eu sei! — gritou desesperada. Tirou a calcinha do caminho e finalmente fechou a mala.
— Por favor, me deixa falar com você com calma. Você sequer me deu tempo de te defender no quarto e…
— Pelo amor de Deus, ! — exclamou e passou as mãos pelos olhos com lágrimas. — Não é só por minha causa! Tem noção do quanto é difícil te ver ouvindo tudo aquilo que sua mãe disse? E o pior, saber que você ouve e não consegue dizer nada?
Soltei outro soluço, sentindo meu peito descer e subir com força. balançou a cabeça e apoiou sua mala no chão.
— Eu não consigo ver isso, não consigo… — assumiu e passou a mão pelo cabelo.
— Então você está fugindo de novo? Justamente quando eu preciso de você? — Foi minha vez de exclamar com indignação. apoiou as mãos sobre a mala e suspirou.
— A sua mãe fez a minha caveira desde que eu cheguei, você falou algo? — perguntou com os braços estendidos. Em seguida, pegou sua mala e parou em minha frente. Seus cabelos negros estavam presos em um coque, seus olhos vermelhos permaneciam cheios de lágrimas e seus lábios tremiam. — Sai da frente, .
— … — implorei, mas ela não cedeu, permaneceu encarando a porta atrás de mim, como se eu fosse um espectro atrapalhando seu caminho. Como se eu não estivesse ali.
Deixei que ela passasse, mas a segui enquanto ela descia as escadas. As pessoas jantavam enquanto decolava para fora. Observei Pedro Júnior acompanhar nossos passos, e constatei com frustração que minha mãe nos seguia.
parou em frente à casa e encarou a rua vazia diante de nós.
— , me deixa pelo menos te levar até o hotel…
— , deixa essa mestiça ir! — mamadi gritou atrás de mim, sua figura pequena parada na porta. virou para trás com os olhos ardendo de ódio.
— Mamadi, agora não é a hora!
— É sim! — exclamou de volta. — Vocês obviamente têm muito a discutir, e eu preciso ir para o hotel. Não quero tomar decisões de cabeça cheia e estou cansada. , eu vou pedir um Uber, não se preocupe.
— Uber não chega aqui… — comentei. balançou a cabeça, encarando o céu estrelado.
— Que merda! — exclamou com raiva. passou as mãos no rosto, encarando os arredores, exasperada, e então se virou para mim com os olhos marejados. — Sabe por que eu prometi que nada iria nos separar por causa do Rio? — perguntou a voz quebradiça. Neguei com a cabeça, incerto do motivo para citar nossa conversa na praia na noite anterior. — Porque eu passei no emprego, , eu passei — ela soluçou, os lábios tremendo enquanto lágrimas grossas rolavam por seu rosto, mas ela parecia ainda mais machucada do que antes.
— Por que você não contou antes? — questionei com cuidado, sem saber ao certo o que suas palavras significavam.
— Porque a condição para ter a vaga era transar com o diretor.
Senti o chão se abrir diante de mim enquanto chorava com mais força, seus ombros subiam e desciam enquanto ela tentava buscar forças para falar. Antes que percebesse, eu também chorava.
Queria dizer que tudo ficaria bem, que eu estaria ali com ela, mas se retraiu em seu próprio corpo, chorando com mais força.
— E-ele disse… disse que… — tomou forças, sem conseguir me encarar nos olhos. Limpei lágrimas teimosas em meus olhos, querendo tomar a dor dela para mim. Por que não disse antes? Por que guardar aquilo para si durante todo o fim de semana? — Ele praticamente disse que eu tinha duas opções, transar com ele e conseguir o emprego ou ser demitida.
— … — comecei, mas ela levantou a mão, pedindo para falar.
— Eu chorei muito, , naquele dia. Tudo está uma merda ultimamente, e você é a única parte boa dos últimos dias — ela confessou com um gemido sôfrego. Eu sabia que odiava chorar, odiava se sentir impotente diante dos outros. Mas eu não era os outros, e queria que ela soubesse daquilo, então deixei que chorasse. — E hoje, tudo isso… Eu estou sufocada, cansada. Eu não consigo mais.
E então ela se silenciou. Por alguns segundos, permaneci a encarando. E então me aproximei, envolvendo seu corpo em um abraço apertado, sem saber o que fazer além disso.
Eu não tinha ideia, e não sabia por que não disse nada antes, mas eu só queria estar ali por ela. Segurei um choro aliviado quando ela envolveu meu corpo de volta, enfiando seu rosto em meu peito enquanto lágrimas doloridas escorriam por seu rosto, molhando minha camiseta social. Meu coração se quebrou em pedaços minúsculos quando seu choro se tornou dolorido. Levei minha mão a seus cabelos, afagando sua cabeça enquanto beijava todo local disponível que minha boca pudesse alcançar, tentando mostrar para ela que estava ali.
— Eu ia contar no dia da praia, ia finalmente dizer que nós dois não tínhamos mais barreiras, mas você já estava tão ocupado com a questão dos seus pais, eu não queria te sobrecarregar e—
Afastei seu corpo do meu com os olhos arregalados, segurando o rosto de entre as mãos com um olhar exasperado.
— , você nunca precisa esconder algo de mim, nunca. Nós dois precisamos estar aqui para tudo, você não precisava esconder isso de mim, pelo amor de Deus! — exclamei alarmado, limpando suas lágrimas com o polegar. assentiu com a cabeça entre minhas mãos, fungando em seguida.
— Eu senti vergonha, . Sei que não deveria dar atenção ao que aquele homem nojento disse, mas… Não consigo tirar da cabeça que eu nunca fui o suficiente. Eu nunca vou ser o suficiente para eles. — Puxei para mais um abraço, afundando o nariz em sua cabeça enquanto suas lágrimas continuavam a rolar.
Meu peito permanecia apertado diante da falta de palavras. O que eu poderia dizer? Como lidaria com aquilo? O que ela precisava de mim?
— Eu a levo para a cidade. — Virei-me para trás e observei papá aparecer com a cara séria, fitando nós dois.
— Não quero causar mais incômodo, eu posso me virar — pediu ao afastar o rosto de minha camiseta, fungando e limpando as lágrimas.
— , por favor, pelo menos passa a noite aqui e amanhã eu te levo, por favor…
— Eu posso te levar, sem problema — papá confirmou e passou por mim, indo em direção à . — Não é incômodo, é o mínimo.
— Tudo bem, obrigada — cedeu.
A decepção em seu olhar me consumia.
E então, como se não tivesse me atingido antes, lembrei-me de sua história, de todas as vezes que não foi considerada digna por ser metade brasileira e metade indiana. Também me lembrei de todas as vezes que sua identidade era questionada, o quanto aquilo a machucava. Mamadi não ofendeu somente nós dois, mas quem era, justamente a questão que ainda a machucava: sua identidade. E ainda somado a tudo o que aconteceu nos últimos dias, seu pai, o emprego, o noivado… Eu fui tão cego!
Dei um passo à frente, pronto para falar com ela. Meu pai sustentou meu olhar e negou com a cabeça, mas o ignorei e cruzei seu caminho, indo em direção à , que me encarava com os mesmos olhos doloridos. Parei em sua frente, a boca seca e a cabeça pulsando, sem saber exatamente o que dizer ou como dizer.
— Eu vou respeitar seu tempo — comecei, suspirando e passando as mãos pelos cabelos mais curtos, subitamente consciente da falta de meus cabelos longos. — E, merda, eu vou respeitar você se sua decisão for não querer mais nada comigo também.
— …
— Espera, . — Estendi a mão, e logo em seguida a esmaguei contra a outra, sinalizando meu nervosismo e minha ansiedade batendo no peito, pedindo para tomar conta. — Não termina tudo sem antes a gente conversar, por favor.
— Não vou — ela prometeu, sustentando meu olhar com um sorriso triste. — Eu só estou triste e magoada, você entende isso? — Assenti.
— , só preciso te dizer algo — ela me fitou, os olhos derramando mais algumas lágrimas solitárias —, você é muito mais do que minha mãe diz. Você é infinitamente mais do que seu pai diz, sua mãe ou qualquer pessoa no mundo. Você é preciosa, inteligente, carismática, e tudo o que você conquistou foi devido à sua garra e determinação. O que aquele homem disse para você… Nada daquilo é verdade. Você é mais do que aquele emprego. Não ache que seu valor está no que um homem que mal te conhece diz. Não está! — Observei com um suspiro quase aliviado quando ela chorou com mais força, abraçando seu próprio corpo. — E quando eu disse lá em cima que eu te amo… — Balancei a cabeça, olhando somente para ela. — Eu amo. Muito. Meu Deus, como eu te amo! E eu nunca teria a chance de amar outra pessoa como você, porque você inteira é digna de ser amada. E me mata não poder fazer nada agora além de oferecer meu abraço e talvez algumas piadas sem graça.
soluçou com mais força.
— Você não está dizendo isso para me convencer a ficar, não é? — Soltei uma risada sufocada.
— Não, você sabe que eu não faria isso. — fungou e assentiu.
— Desculpa por todo esse drama. — Dei de ombros, apontando com a cabeça para minha família.
— Isso é um fim de semana normal lá em casa, já rolou até faca apontada no pescoço antes. Comparado com isso, hoje foi um dia excepcional. — riu, e aquela risadinha tomou meu coração com uma esperança que só existia quando se tratava dela.
— Eu realmente quero ir para o hotel, . Não consigo ficar aqui, não com sua mãe e tudo aquilo que ela disse.
— Eu também acho melhor. Pretendo ter uma conversa com ela. — encarou os próprios pés. — Não por sua causa, , mas por minha causa. Você tinha razão quando falou sobre ficar quieto. Hoje só me mostrou o quanto eu tenho a perder mantendo a boca fechada o tempo todo.
— Desculpa, … — ela choramingou, limpando as lágrimas do rosto. Não acho que já tenha visto chorar tanto antes. Segurei suas mãos quentes nas minhas, fazendo carinho em sua palma.
— Eu peço desculpas. Lembra do que falamos na minha casa? Somos dois seres humanos com defeitos, e eu pretendo trabalhar nesse específico. E você não tem a menor culpa do que aconteceu aqui hoje, nenhuma! Na verdade, você me avisou sobre os problemas da mentira, estou só colhendo o que plantei, e te joguei no meio. Desculpas por isso, mil desculpas…
— Eu vou trabalhar no meu julgamento — ela falou, deixando um sorriso pender de lado —, menos com o presidente. Pretendo continuar julgando qualquer figura política.
Soltei um riso nervoso e levei sua mão aos lábios, dando um beijo nos nós de seus dedos.
— Não seria você se fosse de outra maneira, .
— Podemos ir? — Meu pai apareceu do meu lado, dando um tapinha de leve em meu ombro.
— Posso te levar, … — tentei novamente, mas ela negou.
— Acho melhor você ficar com sua mãe. Prometo que nos falamos assim que eu chegar. Não vou deixar você escapar. — Ela piscou em minha direção, e então soube que nós ficaríamos bem. Contanto que o diálogo fosse nosso melhor amigo, tudo ficaria bem.
Capítulo vinte e seis
Estava sentada na frente do lago, encarando os patos comendo pães que as crianças jogavam em sua direção, mesmo que aquilo fosse proibido pelas regras do parque Ibirapuera.
Minha mente correu de volta para a semana anterior. Eu e tínhamos discutido antes mesmo de definirmos o que tínhamos. Meu primeiro instinto foi correr. Aquilo parecia ter tudo para dar errado. Contudo, forcei-me a pensar um pouco antes de agir, como sempre fazia.
E percebi, com leve assombro, que eu havia usado da mesma forma como ele me usou. Eu decidi manter aquela farsa por mais tempo por vontade própria. Tive diversas chances, apenas coloquei empecilhos no caminho para prorrogar o fim inevitável.
Eu realmente era tão culpada quanto .
E aquilo me deixava pensando: dois culpados podem se inocentar?
Não me arrependi de ter dito a a verdade sobre sua passividade, sobre a forma como não se impõe acerca de assuntos que ele pode simplesmente contornar ou ignorar. Mas me arrependi por ter dito aquilo como se eu fosse livre de erros.
Suspirei pesadamente sobre meus joelhos, tentando controlar as batidas aceleradas de meu coração. Cenas da entrevista de emprego desastrosa tomavam minha visão, misturadas aos olhares julgadores da mãe de e toda a situação bizarra que tomou conta do domingo anterior.
Uma semana desde que aquele show de horrores aconteceu, um verdadeiro picadeiro de monstruosidade. e eu conversamos um pouco ao longo da semana, mas ele decidiu permanecer com a família até que resolvessem suas pendências. Flora e ele passariam a semana junto com seus pais antes que cada um seguisse para seu caminho, e eu sabia o quanto aquilo o drenava.
A situação inteira era complicada, ele saía do trabalho direto para falar com eles. Terapia em grupo, terapia individual, tudo a que tinham direito. E eu mal tive tempo também. Apesar de não ter confessado, eu achava que tinha saído da Construtora.
Na segunda-feira, logo após pousar em São Paulo, recebi a ligação da chefe de RH da emissora, a que estava presente na entrevista desastrosa. Enquanto estava prestes a mandá-la tomar em lugares nada televisionáveis, fui tomada por uma onda de confusão. Ela estava me oferecendo uma outra oportunidade.
A diretora comentou que ouviu o que o diretor da emissora disse para mim. Aquela era sua última semana por lá, já que foi contratada pela nossa — quer dizer, não mais minha — rival televisiva.
E, para minha surpresa, ela me indicou como um nome confiável. Disse que a forma como eu xinguei o diretor da emissora foi digna de novela e que viu muitos casos como aquele ocorrerem em graus menores ou maiores, mas que ninguém nunca se impôs — nem mesmo ela. Disse que gostaria de me ver provando a ele que minha competência me colocaria no topo. Ela contou o ocorrido para a diretora da BCN, que agendou uma entrevista comigo para a terça-feira.
Apesar do constrangimento da situação, Marcela Morales, dona da BCN no Brasil, foi clara ao dizer que aquilo não era caridade, mas uma aposta, e que eu concorria com outra mulher para a vaga de co-âncora no jornal do meio-dia, algo mais informal focado em telespectadores mais jovens.
Sorri contra meus joelhos. Mesmo que não conseguisse o emprego, ainda assim estaria aliviada por ter recebido tanta confiança de alguém. Precisei lidar durante toda a semana com vozes irritantes me lembrando de minha incompetência, da minha culpa naquela situação toda. Eu talvez tenha me mostrado aberta demais, o diretor havia apenas confundido algum sinal que dei, eu estava sendo dramática… Mas nada daquilo era verdade, e eu precisava me lembrar todos os dias. Ainda era difícil, e provavelmente seria por mais tempo, mas eu não precisava passar por aquilo sozinha.
— Você chegou cedo! — Adnan sorriu em minha direção quando apareceu em meu campo de visão. Coloquei a mão sobre o rosto, cerrando os olhos ao encará-lo contra o sol.
— Pois é, queria ficar admirando um pouco aquelas crianças encherem os patos de pão. — Ele gargalhou e se abaixou até se sentar ao meu lado, limpando as palmas das mãos sujas de folhas secas que caíram das árvores ao nosso redor.
— Fiquei feliz pela sua ligação — ele comentou com um sorriso sincero.
Ele usava uma regata cinza, uma calça de moletom esportiva e tênis chamativos com cores diversas e confusas. Sua cabeça estava protegida por um boné e seus óculos de sol estavam atrás do boné. Adnan estava incrivelmente brasileiro naquele momento. A imagem me fez querer rir.
— Obrigada por vir — agradeci e peguei alguns galhos espalhados ao meu redor, quebrando-os em meus dedos enquanto tomava coragem para falar com ele. Adnan suspirou e se apoiou atrás nos braços, cruzando as pernas esticadas em frente ao corpo.
— Sua mãe me contou o resumo da ópera — arqueou a sobrancelha com um sorriso incrédulo —, e que ópera…
— Pois é. — Ri sem graça e balancei a cabeça, em seguida a apoiei sobre os joelhos novamente. — Foi um verdadeiro drama.
— As melhores famílias são assim — ele constatou. — Sinto muito, , há algo que eu possa fazer?
— “Há”? — comentei com um riso. — Suas aulas de português são muito formais.
— Elas são focadas em negócios. — Torceu o nariz, mas deu um sorriso em minha direção. — Você não respondeu minha pergunta.
— Não, não acho que alguém possa fazer algo. — Neguei com a cabeça. — Minha mãe ficou muito nervosa quando soube sobre a mãe de .
Àquilo, Adnan fechou o rosto com seriedade.
— Eu jamais imaginei que Anushka fosse daquela maneira.
— É, é complicado — concordei.
Adnan descobriu sobre o acontecido assim que toda a família voltou para casa. Eu não soube diretamente por ele, mas minha mãe contou que, ao entender o ocorrido, Adnan falou poucas e boas para a mãe de e deixou a casa imediatamente, indo para um hotel.
Apesar de saber que aquilo era o mínimo, senti-me feliz por saber que ele tomou uma decisão daquelas. Ele e Anushka eram amigos há anos, não deve ter sido fácil.
— Bom, não que eu não esteja feliz por você ter me chamado — ele começou —, mas tem algum motivo específico para você me chamar aqui, filha?
Soltei um riso fraco e quebrei mais um pequeno galho, voltando meu olhar para ele.
— Fiz uma promessa de que tentaria ser mais aberta à sua volta. E eu sei que posso me arrepender — fiz uma careta —, mas eu realmente quero tentar isso. — Apontei para nós dois com leve receio. — Esse negócio de pai e filha.
Pisquei algumas vezes, atordoada por ver lágrimas tímidas surgirem nos olhos de Adnan. Ele colocou os óculos de sol imediatamente, o que me fez sorrir, mas fingi não ter reparado.
— Obrigado, — ele falou com um sorriso largo. — Eu sei que não mereço isso.
— Não mesmo. — Dei de ombros. Às vezes seria difícil deixar a rispidez ir embora, mas estava disposta a tentar de verdade. — Não quero forçar nada, então vamos começar com calma.
— Justo — ele concordou. — Seus irmãos chegarão ao Brasil na semana que vem. Quero fazer as coisas corretamente.
Engoli em seco, sem saber ao certo o que fazer com aquela informação. Eu estava pronta para conhecer os filhos de Adnan com outra mulher? Será que me odiariam? Será que apontariam a faca para mim e me diriam que eu jamais ficarei com a herança?
Não pude evitar um sorrisinho tímido ao pensar que com certeza seria arrastado comigo para aquele jantar. Estava na hora de dar a ele um pouco de drama familiar alheio.
— Ah, eu tenho um favor para te pedir! — exclamei e dei um tapa em minha própria coxa ao lembrar. Adnan assentiu, indicando para que eu continuasse. — Você por algum acaso sabe como acender uma fogueira?
*
O resultado foi desastroso. Eventualmente, voltei para a cozinha e pedi ajuda a um chefe de cozinha, que veio reclamando até o canto do quintal enquanto dizia não ser pago para ser capataz de ninguém.
Eu concordava, mas estava nervosa demais pela conversa que teria com para me importar com suas reclamações bem fundamentadas.
— Muito obrigada! — Acenei para o homem enquanto ele subia pela lateral da casa que Adnan alugou por alguns meses.
Pelo menos eu tinha uma fogueira.
Coloquei minha canga no chão, arrumando os itens exatamente como me lembrava na praia. A garrafa de vinho foi substituída por um espumante, as taças viraram copos de plástico biodegradável. A noite estava com cara de São Paulo: muitas nuvens e nenhuma estrela. Aquilo acabava com meu plano romântico em partes, mas eu estava otimista.
Eu não precisava de tudo perfeito, só de ali comigo, e era naquilo que me focava enquanto arrumava os detalhes finais com o chefe de cozinha.
Adnan me emprestou a casa pela noite. Ele ficaria em meu apartamento até a manhã seguinte. Ele não gostou muito da ideia, mas eu prometi a ele que não desonraria nada em sua casa. A conversa ia para caminhos estranhos envolvendo proteção e sexo seguro, mas me impedi antes que a coisa ficasse estranha demais.
Às vezes era difícil ter recém-descoberto um pai, e eu precisaria me adaptar àquilo.
— Estou tendo um deja vu.
Virei-me assustada quando apareceu a alguns metros de mim. O porteiro da rua deve tê-lo deixado entrar. Ele estava com as mãos no bolso da calça social, mas alguns botões da camisa permaneciam abertos.
Esfreguei as mãos, incerta de como reagir.
Era a primeira vez que nos víamos desde a praia. estava cansado, sob seus olhos estavam bolsas de olheiras, a barba crescia cada vez mais, com algumas falhas nos cantos. E, apesar de tudo, ele continuava lindo aos meus olhos.
Permaneci encarando o chão, a coragem subitamente foi se esvaindo. tomou as rédeas, apontando para a fogueira.
— Você fez sozinha?
— Não. — Ri pelo nariz. — Um dos ajudantes do cozinheiro. E eu pedi ajuda para meu pai.
franziu o cenho, mas não falou nada, apenas andou na direção da canga e se sentou, cruzando as pernas. Aproximei-me devagar, sentando-me de frente para ele.
Comecei a brincar com a barra do vestido, sem saber exatamente como começar.
— Promete que não vai sair correndo — praticamente sussurrou, precisei até mesmo piscar algumas vezes até processar o que disse.
— Prometo.
Ele respirou fundo e me encarou.
— Eu te amo, .
— Eu também te amo, , muito.
E eu amava. Não me doía dizer ou admitir aquilo para . Admitir que o amava foi fácil, porque era verdade.
Costumo ser sincera com tudo e todos, mas não comigo mesma. Aquilo precisava mudar. E admitir que amava era só o primeiro passo de uma série de mudanças que eu gostaria de fazer.
sorriu e entrelaçou nossos dedos timidamente.
— Como foi sua semana? — perguntei com cautela, sondando o terreno. me fitou e deu de ombros.
Eu estava com tanta saudade dele que chegava a ser sufocante. Eu só queria beijá-lo, me afundar nele até me esquecer que o mundo lá fora existia. Mas eu precisava ir com calma.
— Um começo. Nós não vamos nos tornar a família mais comunicativa do mundo de uma hora para a outra, ainda mais com mamadi se mudando. Mas foi um começo, de qualquer maneira.
— Passos de bebê — conclui. assentiu. — Nós dois demos vários passos de bebê desde que tudo isso começou.
— Alguns foram para trás, … — comentou com o semblante sério, encarando nossas mãos.
Havia calor ali, e minha palma estava suada. sabia disso, mas não se afastou.
— Sinto muito por ter te feito mentir, quando sei que você odeia isso. Fui mau caráter em pensar por um segundo que aquilo seria melhor do que a verdade. Você não merecia isso.
— Desculpa por ter te afastado por tanto tempo, por não ter sido justa com nós dois, com você. Perdão por ter colocado o fardo todo em você, ele é meu também para carregar.
— Você se sente desconfortável pedindo desculpas? — pigarreou antes de perguntar. Abri um sorriso triste e neguei com a cabeça.
— Não, só me senti muito envergonhada por tudo o que fiz.
— Eu também.
— Se nós só tivéssemos conversado desde o começo… — comecei, pensando em como as coisas teriam sido mais fáceis. gargalhou, e a bolha de tensão ao nosso redor se desfez.
— Então não haveria história.
— Eu já teria começado a te beijar há mais tempo — sopesei, balançando a cabeça dramaticamente.
me surpreendeu com um selinho demorado. Ele tinha cheiro de sabonete e pitanga, seu carinho em minha nuca me levou ao céu e seu sorriso ao se afastar de mim valeu por uma vida. Sua mão segurou minha nuca mesmo enquanto nos separamos. Não pude controlar o ânimo em meu estômago, o coração acelerado e os olhos sonhadores. Como eu senti falta da boca dele!
Fitei seus olhos, então desci o olhar para seu nariz, sua boca. Eu não queria deixar de observá-lo, todo o tempo do mundo parecia insuficiente para captar toda a beleza dele.
— Você estava certa quando disse que começamos errado, — começou, seus dedos deixavam rastros de fogo sob a brisa fria em meus cabelos —, mas espero que possamos mudar o final.
— Você já está pensando no final? — Balancei a cabeça em negativa, dando um outro selinho nele, acertando que estava de acordo. — Reconhecemos o erro, agora vamos fazer isso funcionar.
— E o que somos agora? Namorados?
Namorados.
Eu nunca pensei que essa palavra fosse significar tanto para mim quanto naquele momento, enquanto sorria em minha direção e aguardava ansioso por minha resposta.
— Completamente namorados, . Começamos com o noivado, acho que a próxima etapa obviamente é o namoro.
Ele gargalhou, e sua risada aqueceu todo o meu corpo, levando ondas de felicidade para cada célula exaurida depois de tantos anos buscando algo que estava diante de mim o tempo todo.
Eu já era feliz sozinha, mas estar feliz com era surreal.
Nós dois sabíamos que viveríamos um sem o outro pelo tempo necessário, já fizemos isso antes. Mas agora era diferente, porque não queríamos estar separados. E eu me esforçaria para aquilo, lutaria contra a minha vontade de comodidade e orgulho todos os dias, porque merecia alguém que o amasse de maneira justa, e era o que eu merecia também.
Ambos estávamos dispostos a dar um ao outro o que era necessário, então permanecemos na mesma página. No final, aquilo era o que importava. Não seria uma pessoa nadando contra a corrente, mas duas que simplesmente achavam um caminho mais calmo pelo canto do rio, indo para pastos verdes e essas coisas meio sagradas que casais costumam falar quando estão juntos. Talvez com alguns empecilhos no caminho, mas passaríamos por eles.
E meu Deus, como era bom estar junto com .
— Você não me falou como foi a ida para o hotel com o meu pai — comentou.
— Boa noite! — O chefe apareceu atrás de nós dois. Sorri em sua direção enquanto colocava dois hambúrgueres em nossa frente junto com uma porção gigante de batata.
— Você contratou um chefe para fazer McDonalds? — Segurei a respiração, virando-me para o chefe com um sorriso, pedindo desculpas.
— Perdão? McDonalds? — o homem de pele branca questionou com a voz controlada. Censurei com o olhar, ao passo que ele arregalou os olhos e imediatamente colocou as mãos em frente ao corpo, balançando-as.
— Desculpa, cara, não quis menosprezar.
O chefe apenas nos deixou enquanto dizia que não aguentaria aquele emprego por mais tempo. Quando ele sumiu de vista, pegando suas coisas e indo embora, permiti que uma gargalhada tomasse o ar ao nosso redor, enchendo a noite escura com um ar mais leve. me acompanhou, gargalhando até sua barriga doer.
— Meu Deus, eu achei que ele fosse cuspir em mim! — ele constatou com um sorriso. Balancei a cabeça com uma risada.
— Não comemore ainda, temos a sobremesa.
— Uh, sobremesa? — Ele assobiou. — Você realmente está se esforçando para entrar nas minhas calças.
— Como se eu precisasse me esforçar para isso. — Revirei os olhos. colocou a mão no peito como se estivesse ofendido.
— Eu não sou fácil!
— Eu gosto de você facinho para mim — comentei e me aproximei dele, afastando nossos pratos para o lado. Dobrei a perna e coloquei a outra estendida atrás de suas costas, deixando nossos rostos praticamente colados.
segurou minha cintura, passeando com os dedos pelo tecido de meu shorts jeans. A noite estava quente, apesar de já estarmos no outono.
— Eu sou fácil desde que coloquei meus olhos em você — sussurrou ao colocar meu cabelo caindo atrás de minha orelha, fazendo carinho em minha bochecha. Levantei minha própria mão e passei com meu dedo indicador sobre uma pequena cicatriz em sua bochecha, fruto do tapa de sua mãe. Balancei a cabeça em negativa com um suspiro.
— Como você está, ?
deu de ombros e apoiou sua testa em meu ombro. Fiz carinho em sua nuca, sorrindo ao perceber que seu cabelo crescia novamente.
— Cansado demais. Sinto que perdi trinta anos de vida em uma semana.
— Sinto muito — confessei. me apertou com mais força contra seu corpo.
— Você não respondeu minha pergunta sobre meu pai.
Encarei o crepitar da chama ao meu lado e suspirei.
O pai de me levou para o hotel na semana passada. Achei que ele fosse me dar uma bronca no caminho, mas ele me surpreendeu.
— Peço perdão pelo que aconteceu — ele pediu assim que deixamos para trás o município vizinho ao que estávamos hospedados. Tirei um fiapo branco de minha roupa e assenti.
— Desculpa por ter estragado o fim de semana — pedi honestamente. Minha mãe me mataria se soubesse o que aconteceu, e eu sentia tanta vergonha que poderia mudar de país somente para fingir o fim de semana não foi real.
— Você não fez isso. Na verdade, estou envergonhado, a primeira pessoa a enfrentar Anushka foi minha nora… Isso não é nada positivo. — Dei uma risada nasalada, mas não pude ignorar a sensação gostosa que a palavra “nora” causou em mim. — Eu ouvi parte do que você falou para , já peço desculpas por isso também, e eu sei que minha opinião pode não contar para nada, mas há muitos homens como seu chefe no meio empresarial.
Assenti, incerta de como reagir. Estava com vergonha em todos os níveis emocionais possíveis, então apenas o deixei falar.
— E você vai encontrar com muitos outros como ele ao longo da vida. Eu sempre disse para Flora que ela teria que batalhar muito mais vezes que qualquer menina branca brasileira. — Assenti, reconhecendo minha própria mãe em seu discurso. — E Anushka sempre disse isso a . Ela achou que a melhor forma de protegê-lo fosse simplesmente controlando a vida dele. — Um suspiro resignado foi o único indício de falta de paciência em seu discurso. — E eu não estou justificando o que ela fez, não consigo. Tem um motivo para estarmos nos separando, não é? — Ele pareceu reflexivo.
Viramos na estrada a caminho da capital. Permaneci com suas palavras na mente enquanto dirigíamos pelo asfalto.
— Espero que possa perdoar a nossa família — ele continuou após alguns momentos silenciosos. Assenti em meu canto, cruzando as mãos —, e que tenha um pouco de paciência com agora. Os próximos dias não vão ser fáceis. E eu não posso falar por ele, mas nunca vi esse garoto apresentar alguém à nossa família — riu pelo nariz, balançando a cabeça como se lembrasse de tempos remotos —, e ele falou o que achava pela primeira vez em anos. Isso foi um grande passo, apesar de eu não ter gostado em nada da insolência dele.
Não pude evitar uma gargalhada honesta, contrastando com as lágrimas que secavam em meu rosto.
— Ele realmente foi insolente.
— É — concordou. — comprou uma briga pesada com a minha esposa.
Mordi o lábio para controlar o pensamento de que ele ainda não a tratava como ex-esposa. Talvez ele ainda a amasse em algum lugar. Mas o amor não é capaz de segurar tudo, isso era algo que meus anos de vida me ensinaram.
Meu pai podia alegar ter amado minha mãe, mas não foi o suficiente para que ficasse. Casamentos não são mantidos só com amor. E eu pretendia levar aquela lição para meu relacionamento com .
— ? — estalou os dedos em frente aos meus olhos. — Está viajando…
— Foi boa — respondi. — Digo, a viagem com seu pai.
arqueou a sobrancelha, levemente desconfiado.
— Alguma notícia sobre o emprego? — ele perguntou novamente.
— Ainda não. Estou começando a me corroer de ansiedade.
Marcela disse que eu poderia aguardar a resposta na próxima semana. Terça-feira completaria sete dias completos. Mesmo que procurasse outros empregos, meu coração palpitava por aquilo, pelo meu sonho de trabalhar na televisão novamente.
Eu só precisava de uma chance, uma chance para me colocar à vista, e então escalaria ainda mais. Torcia para que Marcela me desse a chance de me provar, eu só precisava de um salto de fé.
— Posso te ajudar a enviar alguns currículos — se ofereceu, inclinando-se para o lado, a fim de pegar algumas batatas fritas.
— Eu já enviei para todos os lugares que possa imaginar.
— Como você é rápida! — exclamou com um sorriso.
— Estou há uma semana desempregada, já não aguento mais. Preciso trabalhar!
— Você virou uma escrava do capitalismo — balançou a cabeça em negação —, que tristeza! — Revirei os olhos e peguei uma batata frita de sua mão com a boca. — Ei, ladra!
— Só se for do seu coração…
— Voltamos às cantadas bregas? — Sorri quando seus braços me envolveram mais, puxando-me para perto.
— É meu passatempo favorito, sabia? — comentei com um riso quando seus lábios foram em direção ao meu pescoço, fazendo cócegas. — Tomei uma decisão quanto a meu pai — comentei baixo enquanto curtíamos a presença um do outro. se permitiu fazer carinho em minhas costas, traçando símbolos do infinito em minha pele. — Eu precisava achar alguma razão para perdoá-lo, algo que fizesse sentido.
— E você achou?
— Você perdoou seus pais e sua mãe, mas isso não significa ser menos forte ou que você deu passagem livre para que esmagassem seu coração. Eu quero perdoar meu pai, porque ele parece disposto a mudar, assim como eu estou agora. Quero ver com ações a mudança dele, mas meu coração está inclinado ao perdão, não a passar pano para as ações dele. Meu pai perdeu minha mãe por tentar resolver tudo sozinho, não vou fazer o mesmo com você. Não quero resolver nada sozinha.
— Olha, você vai ter que limpar a bunda sozinha, essa parte eu não quero. — Dei um tapa em suas costas e gargalhei, dando um beijo em seu pescoço.
não falou nada, apenas se aconchegou ao nosso abraço.
— Tentarei ser mais assertivo, abaixar menos a cabeça e me impor mais. Você estava certa. Tentar ser tranquilo com tudo ao meu redor traz mais problemas do que soluções.
— Viu só? Nós podemos aprender com as coisas boas um do outro! — comemorei vitoriosa e nos afastei.
De repente, fui tomada pela sensação de que não havia mais barreira alguma. Tudo estava realmente às claras. Menos por uma coisa.
— E a Flaviane? — perguntei. respirou fundo.
— Conversei com ela e o sócio de papá. Não fiquei bravo com ela por ter me beijado, eu acho.
— Essa é a sua maneira de ser assertivo? — questionei com o cenho franzido.
— O sócio de papá enfrentará uma barra pesada com relação à sexualidade dele. — Um suspiro de frustração tomou seu peito. — Até quando nós vamos ser caçados de nossas profissões por causa da nossa sexualidade? — Mordi o lábio inferior sem saber como responder. — Enfim, Flaviane e ele se resolveram, mas ficou um clima pesadíssimo.
Fiquei em silêncio, refletindo sobre como e eu lidamos com as situações de maneiras diferentes, mas não precisamente significava algo bom ou ruim. Apenas diferente.
— Ei, você tinha uma novidade! — exclamei com a recordação.
— Nossa, é verdade — deu um tapa na testa e riu. — Foi tudo uma loucura, nem me lembrei. Eu consegui passar para uma bolsa de mestrado na USP!
Pisquei algumas vezes, assimilando a notícia, então joguei-me no colo de , derrubando-o na grama. Ele riu alto, então comecei a beijar seu rosto, pescoço, fiz cócegas em sua pele, deliciando-me com o som de sua risada.
— Eu estou tão feliz! Parabéns! — Dei um beijo estalado em sua boca, segurando suas bochechas com as mãos.
explicou sobre a conversa com a irmã, sobre o incentivo a seguir seus sonhos, sobre como ele estava pronto para tomar um passo em direção ao que desejava. E, como eu desconfiava, sobre sua demissão da Construtora para começar o mestrado dali alguns dias.
Ele contou a verdade para Dodô, seu chefe, sobre o noivado falso, sobre Flaviane. A situação não acabou bem. foi demitido (apesar de conseguir receber o que lhe era devido), mas ele não parecia triste, estava genuinamente feliz. Ele fez a prova do mestrado, mas já tinha a resposta de seu orientador, um professor que o acompanhou desde o primeiro semestre da faculdade.
— Eu não sou minha profissão — comentou —, eu estou naquela profissão. Você me ensinou isso, estou apenas colocando em prática.
Meu coração explodiu de felicidade. Sentei-me em seu colo, limpando algumas gramíneas do rosto de , apenas para fitá-lo seriamente.
— Eu estou muito orgulhosa de você. Muito. — percorreu meu rosto com os olhos e lágrimas tímidas surgiram em seus olhos.
— Obrigada, .
— Vamos passar por tudo isso juntos, ok? Sem correr. Não vou a lugar nenhum.
Beijei sua boca uma, duas, vinte vezes até que enlaçasse a minha cintura com os braços e me segurasse com força, como se eu pudesse sumir entre seus dedos a qualquer momento, mas eu não iria.
me tinha por inteiro, e não sentia medo em me doar para ele, pelo menos não agora. Talvez precisasse lidar com os receios, os medos, mas eu não estava sozinha.
Naquele momento, tudo isso me bastava.
— , o chefe… — ele gemeu quando me movimentei contra sua cintura, beijando sua boca com calma.
— Ele foi embora — sussurrei.
— Tem certeza? — confirmou mais uma vez.
— Pelo amor de Deus, mesmo que ele esteja aqui, não me importo! — exclamei exasperada, afundando meu quadril contra o seu. Soltei um gemido sôfrego e levantei minha camiseta sobre o tronco, mostrando meu corpo desnudo.
Observei com deleite enquanto ele se rendia, abrindo o zíper de meu shorts. O fogo subia e queimava ao nosso redor, amplificando o suor em minhas costas, delineando luz no peito de , que agora estava mais exposto enquanto abria sua camisa social.
— Eu te amo tanto — gemeu quando eu o segurei em minhas mãos, sorrindo em sua direção, beijando seu tórax, pescoço, bochechas, como se ter uma boca só fosse uma maldição.
— — enlacei seu pescoço alguns minutos depois, com o corpo conectado ao dele, sentindo labaredas de fogo dançando sobre minha pele livremente. — Deixa eu te mostrar o quanto eu te amo… — Rebolei contra seu colo, segurando seu cabelo com força enquanto começava a me movimentar contra ele. segurou minha cintura e mordeu meu queixo, voltando o olhar seguro para mim com um sorriso.
— Eu sou todo seu, , faça de mim o que quiser.
Epílogo
estava demorando demais.
Eu a via gesticular do outro lado da calçada, mas não ouvia o que dizia. O volume do rádio estava alto, Turma do Pagode berrava dentro do carro fechado enquanto minha namorada permanecia de costas para mim.
Namorada.
Eu nunca imaginei que aquilo realmente pudesse acontecer, mas ali estávamos nós, duas semanas depois, namorado e namorada.
Decidi contar a verdade para meu chefe, Dodô. Fui demitido, como era de se esperar. Tanto pelo mestrado quanto pela mentira. Flaviane e eu trabalhávamos juntos, e a empresa não poderia se responsabilizar por algum incidente de novo. Pelo menos ela tinha mantido o emprego. Nós dois conversamos depois, esclarecemos tudo.
Mamadi e Felipe estavam em Nova Iorque, papá e sua namorada (Florença) agora moravam juntos na praia.
Tínhamos terapia em grupo uma vez a cada quinze dias. Fazíamos tudo online.
recebeu a ligação da diretora do RH naquela mesma noite, enquanto estávamos indo para o nosso segundo round nos fundos da casa de seu pai. Encarei curioso enquanto seus olhos passavam de um deleite prazeroso para uma alegria histérica.
Na segunda, dia em que aguardava pela notícia do emprego, assinei minha demissão. Na quinta, comecei o mestrado. e eu tínhamos muito tempo para ficarmos embaixo das cobertas entre ligações para a faculdade e envio de currículos.
Mas eu sabia que a vaga era dela. Eles não queriam uma entrevista para selecionar o escolhido. já era a decidida, não havia outra opção.
E, para que eu não visse o “não” (que só existia na cabeça dela), saiu do carro em plena avenida para atender a ligação. Deixei o pisca-alerta ligado enquanto ela falava com a diretora do RH, Celena, o anjo cooperativo da vida da minha namorada.
Porém, quando seus olhos finalmente se voltaram em minha direção, eu sabia a resposta.
— Eu falei que você era a melhor! — comemorei quando ela entrou no carro. Seus braços envolveram meu pescoço. Ela não parava quieta, falando sobre como estava animada e como precisava voltar a passar na fonoaudióloga para tratar de suas manias.
— Obrigada por estar aqui para compartilhar isso comigo, .
Afastei-me e beijei cada uma das lágrimas, que eu sabia serem de alegria. Vi-me sorrindo mais ainda, beijando sua boca ao final.
— Nós já fomos noivos, , acho que passamos da fase de nos conhecermos direto com fofura para o “agora você pode pagar a pizza com seu novo emprego”.
Ela riu e negou com a cabeça, recompondo-se, mas sem parar de sorrir.
— Estou pronta para te mimar, . Afinal de contas, já fomos noivos.
— Eu não poderia ter tido uma noiva melhor. — Beijei sua mão antes de voltar com o carro para a pista principal. me encarou de soslaio, mas sorria também.
— Você foi o melhor noivo que já tive.
— Já houveram outros? — provoquei.
— Não, e não quero que haja.
— Se depender de mim… — comecei, fitando-a inteiramente quando paramos no semáforo. — Vou ser o único noivo do qual vai precisar.
Fim.
Nota da autora: Chegamos ao fim de Engaged, a minha primeira história finalizada aqui no site. Eu nunca pensei que fosse chegar até o final, e eu não tenho palavras o suficiente para agradecer o carinho de vocês (eu nunca vou ter MESMO).
O que acharam do final? Curtiram? Confesso que reescrevi tantas vezes, sem saber exatamente o que me agradava, mas eu fiquei feliz hahahaha
E VAI VIR SPIN OFF DE ENGAGED!!!!!!! Vocês acharam MESMO que eu ia deixar vocês órfãos de fanfic? SEM CHANCE!
Os protagonistas do spin off são personagens que vocês amam: Flora e Guilherme! É isso mesmo, Brasil, nossos dois queridos vão ter uma história para eles!
SINOPSE:
"Flora terminou seu noivado arranjado após perceber que viver para sua família não valia mais a pena do que sua felicidade. Vendo-se obrigada a usar a reserva de sua lua de mel em um vinhedo familiar na Itália completamente isolado da metrópole de São Paulo, ela decide usar do seu tempo para viver novas experiências das quais foi privada por medo - uma delas, uma paixão arrebatadora que fizesse seu corpo vibrar.
Guilherme Luchini não planejava precisar passar meses fora do Brasil para cuidar de seu pai doente na Itália. Deixando para trás um negócio próprio e sua terrinha amada, ele precisa cuidar dos negócios da família até achar um administrador novo para o vinhedo da família, mas isso não se mostra uma tarefa pra lá das mais fáceis quando conhece uma hóspede capaz de fazê-lo se revirar de raiva e desejo ao mesmo tempo.
Flora e Guilherme se conhecem em momentos péssimos para os dois, e a única escapatória é deixar que a inimizade imediata se torne algo mais carnal e visceral do que os dois pudessem imaginar."
Pois é, Brasil! A história ainda não tem data de publicação, mas chuto que lá para a metade de março já deve estar no site. Se você não quer perder esse lançamento, é só entrar no grupo do facebook ;)
E, se você quiser preencher o vazio com outras histórias, aqui embaixo tem uma lista com tudo o que eu tenho publicado aqui no site, desde shortfics hot até longfics, tem pra todo freguês!
Você também pode me acompanhar nas minhas redes sociais, especialmente no meu instagram @arquelanalivros!
Antes de ir, agradeço mais uma vez por ter lido até aqui, pelo amor e apoio! Agradeço em nome da Samira e do Joshua com todo o nosso coração (que bate como um só hahaha).
Até a próxima, família!
Ei, não se esqueça de entrar no grupo no facebook onde eu falo sobre as atts, vai rolar spoiler e aviso de quando novas fanfics entram no site! É só clicar no ícone do facebook aqui embaixo pra ser redirecionado direto pro grupo ;)
Espero você lá.
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Guilherme Luchini não planejava precisar passar meses fora do Brasil para cuidar de seu pai doente na Itália. Deixando para trás um negócio próprio e sua terrinha amada, ele precisa cuidar dos negócios da família até achar um administrador novo para o vinhedo da família, mas isso não se mostra uma tarefa pra lá das mais fáceis quando conhece uma hóspede capaz de fazê-lo se revirar de raiva e desejo ao mesmo tempo.
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Pois é, Brasil! A história ainda não tem data de publicação, mas chuto que lá para a metade de março já deve estar no site. Se você não quer perder esse lançamento, é só entrar no grupo do facebook ;)
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