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Finalizada em: 05/12/2020

Capítulo Único

Segundo os demonologistas, três horas da manhã é um horário demoníaco, a hora profana. É o período em que a escuridão atinge o seu auge e o véu entre a terra e o inferno está tão fino que permite que as forças das trevas vaguem livremente entre esses dois mundos, divertindo-se com o desespero dos mundanos, possuindo e carregando consigo o maior número de almas que puderem. Aqueles que, por qualquer motivo que seja, dão abertura o suficiente para essas entidades, acabam sucumbindo à perdição, entregando o alimento que a maldade mais almeja. No entanto, ainda há aqueles que conseguem passar pelos atentados dos demônios e sobrevivem, porém algumas marcas são deixadas para trás, marcas essas que jamais serão esquecidas.
Elizabeth carregava consigo aquela que considerava a pior das marcas. Não era nenhuma espécie de cicatriz em seu corpo, ou feridas psicológicas que afetariam seu discernimento. Na verdade, ela levava uma ferida profusa em seu coração e seu legado completamente destruído pelo medo.
Havia assistido com seus próprios olhos aquele a quem havia entregado tudo o que tinha lhe ser arrancado como se rasgassem pontos de uma cirurgia. Antes de conhecê-lo, ela estava dilacerada e ele havia recolhido todos os seus pedaços, suturado com todo o amor e selado com um beijo, em uma promessa clara de eternidade.
Infelizmente o para sempre não existia. Não para a família .
Tudo o que restava à mulher era uma caixa trancada por uma chave que ela não tinha e aquela dor chata que fazia seu coração sangrar a cada dia que passava.
— Henry... — Sua voz ecoou chorosa e um suspiro escapou de seus lábios enquanto ela encarava a caixa de madeira, deslizando seus dedos pelos entalhes dourados e tocando a fechadura sem chave.
Não se sentia segura, mas também não se importava. O filho, fruto de seu amor com Henry, estava perfeitamente crescido e seguro, completamente alheio a toda aquela bagunça. Ela partiria de bom grado se isso permitisse que sua alma se reencontrasse à do esposo, nos céus ou no inferno.
Eram três da manhã, a hora do Diabo, mas por algum motivo a alma de Elizabeth não era desejada. E sem ter ao menos a noção de como ou quando, logo a caixa estava de volta ao seu devido esconderijo e a mulher enroscada feito uma bola na cama, ressonando em um sono profundo e sem sonhos ou pesadelos.
Por hora.

📿


Há vários quilômetros da residência dos , Shelby Thompson abria seus olhos lentamente, apenas encontrando a escuridão e o lugar vazio onde seu marido deveria estar. Soltou um suspiro ao tatear o lugar dele, então esticou a mão para pegar seu celular, acendendo o visor e verificando o horário. Três da manhã.
Apagou o aparelho e ligou o abajur para iluminar seu quarto. Passou as mãos pelos fios loiros de seus cabelos e soltou o ar lentamente, piscando os olhos e pigarreando ao sentir a boca mais seca do que o costume. Por isso que odiava acordar no meio da noite, ela sempre despertava com uma sede excessiva e isso mais tarde lhe faria ter que acordar de novo para ir ao banheiro.
Levantou-se da cama e foi até a mesinha onde deixavam uma jarra com água, já que ela também odiava ter que descer as escadas no meio da noite para bebê-la. Na verdade, sua experiência com vários filmes de terror também havia lhe influenciado nisso e ela balançou a cabeça em negação, rindo ao encher um copo e levá-lo aos lábios. Precisou de mais outro daquele para saciar sua sede, então voltou para a cama, se sentando e lançando um olhar tristonho ao lugar do marido.
Eric Thompson era o braço direito do dono de uma companhia importante, o que requeria que ele estivesse sempre à disposição dos caprichos de seu chefe. Inclusive os de viajar para um país do outro lado do mundo e passar duas semanas longe dela e de seus filhos.
Ela queria que o chefe do marido se explodisse lá no Japão, mas sabia que se isso acontecesse, provavelmente Eric perderia o emprego e eles estariam ferrados. O que lhe restava era aceitar.
Sentiu seus olhos pesarem um pouco, num sinal de que o sono estava voltando, então puxou as cobertas para se ajeitar na cama. Foi aí que ouviu a campainha tocar.
Franziu o cenho, perguntando mentalmente se estaria imaginando coisas devido ao sono e se manteve em silêncio por alguns segundos. Seu corpo estava ainda sentado e paralisado, pronto para que ela se deitasse, porém seus olhos estavam espertos e em alerta.
Depois de algum tempo de silêncio, ela ouviu a campainha novamente, confirmando que não estava imaginando coisas e sentiu seu coração disparar.
Quem poderia ser a uma hora como aquela?
Coisa boa não era, foi a sua primeira conclusão. Não havia como imaginar algo bom batendo à sua porta de madrugada e ela temia por seus dois filhos, dormindo serenamente no quarto ao lado. Estava sozinha e sabia que não conseguiria se defender de um assaltante.
Mas então o que deveria fazer? Deveria ficar quieta até a pessoa ir embora, ligar para a polícia ou ser corajosa e ir até lá ver quem estava lhe incomodando?
Pensando bem, Eric guardava um revólver ali em algum lugar, ela só precisava achá-lo e estaria segura, mesmo que não tivesse ideia de como usar aquela coisa.
Enquanto Shelby continuava hesitando e cogitando o que faria, a campainha voltou a tocar, dessa vez mais insistente.
Um outro pensamento ocorreu à cabeça da mulher. E se fosse Eric chegando de viagem?
Se sentiu meio estúpida por não pensar nisso antes e se levantou da cama num rompante, parando com a mão diante da maçaneta da porta ao lembrar da conversa com o marido mais cedo.
— Eu sei, querida. Também sinto sua falta, mas Knox resolveu ir a essa conferência de última hora e o cara precisa de mim. É o meu trabalho, amor. Não tenho escolha.
Eles haviam conversado via Skype há algumas horas e, a não ser que Eric fosse capaz de se teletransportar, não havia como estar diante da casa deles. Outro detalhe era que o marido tinha as chaves, ele jamais chegaria tocando a campainha naquele horário.
Suspirou fundo, de forma mais barulhenta do que desejava, e se xingou mentalmente por isso.
Da forma mais silenciosa que conseguiu, ela abriu a porta do quarto e foi até o dos filhos apenas para checar se estava tudo bem. Então notou que o barulho insistente da campainha havia cessado.
Ergueu uma sobrancelha em sinal de surpresa e quando estava na metade do corredor para voltar ao seu quarto, ouviu o barulho do telefone tocando.
Não o seu celular, o telefone de casa mesmo e ninguém ligava para lá num horário como aquele.
Caminhou de forma rápida até alcançá-lo e resolveu atender para resolver de vez aquele mistério.
— Alô? — soltou de forma rouca, por não usar a voz por algum tempo.
A resposta foi apenas uma respiração indistinta e isso lhe irritou de certa forma.
— Se não vai dizer quem é ou o que quer, pare de incomodar minha família! — rosnou com rispidez. Então o som aumentou, se transformando em um ruído incômodo e ela se perguntou se aquilo era uma risada.
Me deixe entrar. — Sentiu tudo dentro de si congelar e soltou o telefone como se esse tivesse lhe dado um choque ao ouvir uma voz rouca, que ela não conseguiu distinguir se era masculina ou feminina.
O aparelho estava fora do gancho, mas isso não o impediu de tocar novamente, o que fez com que Shelby arregalasse seus olhos de surpresa e voltasse a pegar o aparelho, tremendo tanto que achou que fosse desmaiar.
Me deixe entrar, Shelby. — Aquilo não podia ser real. Deveria ser fruto de um pesadelo ou algo do tipo, porque cada palavra que ela ouvia injetava mais uma dose de medo em seu sistema.
— Me deixe você em paz! — num súbito ato de coragem, ela deixou escapar com fúria, batendo o telefone no gancho e correndo até o quarto do marido para pegar o revólver. Ela não sabia onde estava, então precisou revirar todas as gavetas possíveis até enfim encontrar a arma.
Segurou diante do corpo com as mãos trêmulas e saiu do quarto de novo, caminhando pelo corredor e descendo as escadas. Estava na metade delas, quando a porta da entrada se escancarou em um estrondo que fez com que Shelby se perguntasse como que seus dois meninos não haviam acordado. Não eram de ter sono pesado, principalmente o mais novo, que sempre vinha até seu quarto pedir para dormir na cama dos pais, mas naquela noite nada era como de costume.
A senhora Thompson ficou paralisada enquanto olhava para a porta aberta, seus braços apontavam a arma e ela rezava mentalmente para que tivesse posicionado a mão de forma correta no gatilho.
— Quem está aí? — gritou com a voz desesperada de medo, tremendo por completo e lutando para manter suas mãos firmes. Ouviu uma risada em resposta e aquilo serviu para acender ainda mais a ira que vinha junto ao desespero. — Eu perguntei quem, diabos, está aí! — insistiu e então o telefone voltou a tocar ao mesmo tempo que a campainha. Shelby voltou a sentir suas pernas e desceu correndo os últimos lances de escada, parando diante da porta com a arma apontada e descobrindo com espanto que não havia ninguém parado do lado de fora.
Vamos lá, querida Shelby. Tudo o que precisa fazer é me deixar entrar. Depois disso tudo irá embora. — Olhou à sua volta, procurando a origem da voz, mas parecia que essa vinha de todo o lugar e não conseguir distinguir o dono dela lhe deixava ainda mais apavorada. Havia um quê de maldade que arrepiava cada fio de cabelo da mulher e a sensação de que seu corpo estava gelado lhe causou uma tontura que quase fez com que ela desabasse. Tudo o que lhe mantinha de pé era a necessidade de defender os dois filhos, que inexplicavelmente ainda dormiam tranquilamente no quarto.
— Quer entrar para quê? Não tem nada de valor aqui. Todos os nossos bens mais preciosos eu e meu marido deixamos guardados no banco — disse esperançosa, embora algo lhe dissesse que não seria tão fácil assim.
Você vai descobrir que tem sim. Tudo o que precisa fazer é...
— Já sei, já sei. Deixar você entrar. Bem, não vai rolar. Eu... Eu não tenho medo! — A voz de Shelby soou orgulhosa, mas a risada assustadora que se seguiu foi capaz de fazê-la recuar, quase abandonando toda a pose.
Se não deixar por bem, será por mal. — Movida pelo impulso, a mulher apertou o gatilho, disparando o tiro para o nada através de sua porta aberta. Ela repetiu o gesto mais duas vezes, mas de qualquer forma não pareceu adiantar nada.
O barulho do telefone e da campainha tocando estavam lhe enlouquecendo e, para piorar tudo, ela viu as luzes oscilarem e as cortinas de suas janelas se abriram com força.
Diga, Shelby. Diga as palavras — a voz insistiu.
— Não! — a resposta veio em um berro furioso e quase instantaneamente ela ouviu os gritos dos dois filhos.

📿


Elizabeth observava o filho com ternura enquanto este tomava seu café da manhã. Ele havia recém completado vinte e um anos e era tão belo quanto seu pai. Na verdade, ele tinha pouquíssimas características dela e isso Elizabeth não conseguiria negar nem se quisesse. era uma cópia mais jovem de Henry e não só na aparência como em muitos traços de sua personalidade. Isso preocupava a senhora muito mais do que ela era capaz de admitir. Seu coração estremecia de medo de que um dia ele descobrisse a herança genética que havia recebido de seu lado paterno e, se dependesse dela, esse dia nunca chegaria.
— Mãe? Tá tudo bem? — O rapaz a despertou de seus pensamentos, indagando o olhar de sua mãe sobre si. Ela balançou a cabeça com delicadeza, piscando os olhos e abrindo um sorriso carinhoso.
— Claro, meu bem. Só estava aqui pensando no quanto parece com seu pai — resolveu não mentir e viu que o filho retribuíra com um sorriso fraco. A partida de Henry claramente não havia somente afetado a ela. As consequências se mostravam nos olhos profundos do filho, que lutava para manter as aparências dia a dia.
— Ele faz falta — soltou num suspiro sincero enquanto se servia de mais uma colher de cereal e um pouco do iogurte, desviando o olhar dela ao mastigar os grãos.
— Sim, ele faz. Mas ele estará sempre conosco em espírito. Você sabe disso, não sabe? — Elizabeth tentou consolá-lo, mesmo sabendo que aquelas palavras não seriam o suficiente.
— Claro, mãe. — Terminou o café da manhã e largou a tigela na pia, se aproximando da mais velha e beijando sua testa carinhosamente. — Preciso ir. Nos vemos no jantar? — Mais uma vez sorriu sem que este fosse refletido em seus olhos.
A matriarca sabia muito bem que a partida do marido também havia deixado marcas profundas no rapaz, principalmente porque ambos tinham uma relação de amizade que causava inveja a muitos, mas não sabia que não tinha muito o que fazer. Henry havia partido e mãe e filho precisavam apenas se apoiar enquanto aprendiam a conviver com a dor de sua ausência.
— Bom trabalho, querido. Nos vemos no jantar — confirmou de forma mecânica, observando o filho se afastar e sair pela porta da cozinha. Soltou um suspiro, sem sentir a menor vontade de se alimentar e foi até a pia dar um jeito na louça.
Ela havia acabado de secar a bancada e arrumar a mesa quando ouviu um telefone tocar.
Mas não era o que eles tinham na sala com uma extensão na cozinha e outra no quarto do casal , era o aparelho que não tocava há vários meses e este ficava no escritório que Elizabeth mantinha trancado desde a morte do marido.
De início, ela ignorou, deixando que chamasse até cair na secretária eletrônica, mas logo depois que isso aconteceu, o som característico voltou a ecoar, como se a pessoa do outro lado soubesse que ela estava em casa ou estivesse tão desesperada que não desistiria com tanta facilidade.
A senhora , intrigada, acabou por seguir até o escritório, suspirando longamente antes de pegar a chave que sempre carregava consigo e abrir o cômodo, encontrando-o empoeirado de uma forma que não era novidade alguma para ela.
Vários artigos estavam dispostos em todo o ambiente, artigos estes que eram extremamente perigosos para desavisados e por isso a necessidade de manter tudo trancado. Elizabeth não sabia o que aconteceria com aquilo tudo quando ela partisse. Talvez o melhor fosse se livrar daquilo, mas quem disse que conseguia? Se desfazer de todos aqueles artefatos era como mandar embora uma parte importante dela, de seu casamento e, principalmente, de seu Henry.
Senhora , se a senhora está aí, por favor, é muito importante! — Uma voz feminina trêmula ecoou pela secretária eletrônica, fazendo com que Elizabeth olhasse para o telefone sem reação. Ela mal havia percebido que o aparelho parara de tocar. — Eu... Eu tenho certeza de que estou sendo assombrada e me disseram que só a senhora pode me ajudar...
Soltou o ar com impaciência ao ouvir isso. Estava óbvio que seria alguém pedindo por ajuda naquele sentido, ela sabia disso desde que identificara o tom daquele telefone tocando.
Ia pegá-lo para dizer à mulher que não fazia mais aquele tipo de trabalho, quando o que ouviu em seguida fez com que sua decisão tomasse outro rumo.
Por favor, senhora . Sei que não atende há anos, mas eu não sei mais a quem recorrer... Ele insiste que eu o deixe entrar e eu não sei por quanto tempo mais consigo suportar.
A mente da mais velha começou a trabalhar a mil, fazendo conexões que tanto poderiam ser absurdas como fazerem todo o sentido do mundo, mas só haveria um jeito de descobrir qual era a opção correta.
Pegou o telefone do gancho e retornou à ligação.

📿


Quando colocou seus pés de volta à sua casa, sentindo a exaustão tomar conta de cada célula de seu corpo, ele só conseguia pensar em um banho quente, algo para forrar seu estômago e uma boa noite de sono. No dia seguinte, teriam um carregamento importante para receber na loja onde trabalhava e ele precisaria acordar mais cedo que o normal.
Somente esse fato já era o suficiente para deixá-lo de mau humor. Odiava ter que acordar cedo todos os dias, mas precisava daquele emprego para pagar a faculdade que iniciaria no ano seguinte.
— Mãe? — chamou, percebendo a casa toda escura e franzindo o cenho ao não ver sinal algum da mais velha. — Mãe? — repetiu, caminhando até o quarto dela e achando mais estranho ainda o fato de que aparentemente ela não estava em casa. Desde quando a mãe saía num horário daqueles? Será que havia acontecido alguma coisa?
Por mais exausto que estivesse, a preocupação falou mais alto e ele puxou o celular do bolso para ligar para Elizabeth, sentindo um grande ponto de interrogação se formar em sua mente ao ver que havia uma mensagem de voz em sua caixa de entrada. Clicou para ouvir do que se tratava e segundos depois identificou a voz da mãe.

“Querido, precisei fazer uma viagem de última hora para o trabalho, mas não se preocupe porque voltarei o mais rápido possível. Deixei um pouco de dinheiro naquele nosso esconderijo para o caso de você ter alguma emergência. São só alguns dias, meu bem, se cuide, sim? Eu ligo para você assim que chegar ao meu destino. Faça o favor de comer direito, nada daquelas suas porcarias super calóricas! Amo você”.

Algo no tom da mãe fez com que achasse aquela mensagem extremamente esquisita e percebeu que, pelo tempo que ele havia a recebido, Elizabeth já deveria ter lhe ligado. A não ser que estivesse em outro estado ou país.
Tentou espantar a desconfiança de seus pensamentos e riu ao lembrar da mais velha falando em porcarias super calóricas. Até parece que ele ia cozinhar algo saudável.
Então foi até seu quarto para tomar o tal banho, o qual ele tanto precisava.

📿


Já fazia quase uma semana que Elizabeth estava fora de casa. Naquele mesmo dia, cerca de uma hora depois, ela havia ligado para o filho e a conversa havia sido breve demais para o gosto do rapaz. Depois disso, nada. Nenhuma mensagem ou ligação e estava cada vez mais preocupado, cogitando inclusive ligar para a polícia ou algo do tipo. Quem sabe se fosse até o local onde a mãe trabalhava ou ligasse para lá, poderia pelo menos saber para onde a haviam mandado, e decidido a isso ele pegou o telefone da sala e discou os números.
A ligação havia sido curta, mas o peso das palavras de quem havia lhe atendido deixou o rapaz paralisado por uns bons minutos.
Segundo o que uma mocinha super animada havia lhe dito, Elizabeth não aparecia no trabalho há quase uma semana.
Definitivamente, ele precisava ir até a polícia.
Catou um casaco qualquer do cabideiro de seu quarto, sua carteira com documentos, a chave da moto e assim que abriu a porta da cozinha para sair por ali, como era de costume, deu de encontro com uma garota branquinha, de cabelos loiros e olhos tão claros que pareciam vidro. Tomou um susto e quase bateu a porta na cara da moça, que sorriu leve para ele e a segurou esticando uma das mãos.
— Suponho que você seja — ela questionou, medindo o rapaz de cima a baixo, o que de certa forma o incomodou.
— E eu que você esteja me procurando, mas me desculpe, eu não posso falar com você agora. Tenho uma emergência para resolver e... Por que veio por aqui? Essa é a porta dos fundos. — Franziu o cenho, encarando-a com curiosidade e pressa ao mesmo tempo, tentando passar pela garota, mas sendo bloqueado propositalmente.
— Ouvi o barulho das chaves aqui, mas isso não vem ao caso. — Ela lhe sorriu, mostrando dentes branquíssimos. — Essa emergência que você tem para resolver tem a ver com a sua mãe? — estreitou os olhos ao ouvir isso.
— O que você sabe sobre a minha mãe? — questionou desconfiado.
— O que eu sei sobre ela não vem ao caso agora, . Ela está desaparecida, não está? A polícia não pode te ajudar — a garota foi enfática, o que deixou o rapaz assustado de uma forma bem incômoda.
— Acho que isso não é de sua conta. Quem, diabos, é você? — soltou com um tom nervoso.
— Meu nome é e você vai descobrir que isso pode não ser da minha conta, mas você precisa de mim. Sua mãe está aprisionada por um demônio e o quanto antes você... — interrompeu a fala da garota, totalmente indignado com o que tinha acabado de ouvir.
— Demônio? Você é maluca. Saia da minha casa ou serei obrigado a forçá-la. — Tentou ser o mais controlado possível, mas a garota havia se atrevido a falar de sua mãe e inventar histórias malucas. Ele não tinha tempo para aquilo. A mãe poderia estar correndo perigo na mão de sequestradores ou coisa pior e... Não podia pensar assim! Iria até a polícia e pensaria positivo. Encontrariam a mãe sã e salva.
— Você pode me expulsar da sua casa, , mas sua mãe ainda precisa de ajuda. Quando estiver pronto para me ouvir, me procure. — E sem dizer mais nada, a garota virou as costas e saiu. Sem entregar um cartão, sem dizer o número dela para que ele a procurasse, tudo o que ele tinha era o seu nome e ele nem sabia se ela não havia mentido sobre isso do mesmo jeito que havia mentido sobre o paradeiro de sua mãe.
O rapaz bateu a porta da cozinha com força e chutou uma cadeira, se arrependendo quando sentiu uma dor lancinante no dedo do pé. Só faltava ter quebrado aquela merda por causa da garota maluca.
Droga, ele precisava pensar com clareza!
Saiu meio desatinado e quando deu por si estava no quarto da mãe, se sentando na cama dela e passando as mãos por seus cabelos, respirando fundo e contendo a vontade chata que sentia de chorar. Ele só queria encontrar Elizabeth sem nenhum arranhão. Não sabia o que faria se alguém tivesse feito algum mal a ela e só de pensar na hipótese sentia uma raiva absurda misturada ao pesar. Seu coração doía de preocupação e isso não ajudava em nada, parecia ressaltar que a mãe corria perigo.
Apoiou o queixo em sua mão e suspirou fundo, focalizando o guarda-roupas de Elizabeth diante de si e notando que uma das portas estava entreaberta. Franziu o cenho e caminhou até o móvel, pretendendo fechar da forma correta, mas, antes que fizesse isso, se interrompeu ao ver uma bela caixa de madeira com entalhes dourados.
Parou por alguns segundos, observando a peça e num flash de memórias a imagem do pai segurando aquela caixa apareceu em sua mente, o que fez com que abrisse a porta para pegá-la, deslizando seus dedos pelos detalhes e notando a fechadura em tom de ouro envelhecido. Tirou a mão dali de forma automática e levou-a à corrente que carregava em seu pescoço desde o dia da morte do pai. Nesta, havia uma chave pendurada.
Com os pensamentos ainda meio atordoados, andou de volta até a cama da mãe e se sentou sobre ela com a caixa em mãos, tirando a corrente de seu pescoço e testando a chave na fechadura por pura curiosidade.
De certa forma, não foi surpresa alguma para ele quando a caixa se abriu, algo em sua mente lhe dizia que o rapaz já sabia disso desde que a viu.
O conteúdo era composto por coisas bizarras na mente de . Havia uma cruz, um frasco do que parecia ser água benta, uma bíblia, um revólver sem munição e um diário surrado.
Soltou uma risada nervosa, porque mais pareciam ser coisas de padre, exceto pela arma, e pegou o diário, deslizando seus dedos pela capa negra e abrindo-o, notando a inscrição logo abaixo no papel.

“Diário de Henry ,
Ao meu filho, ”.


Seu pai havia deixado aquele diário a ele? Por que sua mãe nunca havia lhe dito aquilo? De repente, pensou nas palavras da tal e balançou a cabeça em negação logo em seguida. Não podia cair nas besteiras que a maluca havia dito, por mais que seu pai possuísse artefatos que poderiam ser utilizados para enfrentar supostos demônios. Será que ele era um padre mesmo? Não lembrava de ir à igreja com ele, aquilo era muito estranho.
Riu de si mesmo e virou a primeira página, começando a ler o conteúdo da seguinte.

“Meu filho,
Se você está lendo este diário, estou morto ou você bisbilhotou minhas coisas.
Independente de qual seja a opção, é sinal de que está na hora de você saber o verdadeiro significado do sobrenome .
Antes de qualquer coisa, eu quero que me perdoe, filho, por ter ocultado tudo isso de você durante todo esse tempo, mas eu e sua mãe queríamos que tivesse uma vida normal, longe de todo o horror e loucura onde nos metemos.
Talvez esse tenha sido um erro terrível. Talvez eu tenha sido estúpido por não aprender comigo mesmo que não adianta fugir do que você é, mas lhe proporcionei o máximo que pude de uma vida normal para que você tivesse a opção de escolher seu caminho.
Eu ainda não sei por onde começar, mas não sou homem de meias palavras, então serei objetivo.
Como cada primogênito da linhagem dos , você possui o dom da mediunidade e eu sei que não preciso explicar o que é porque confio muito na sua inteligência.
A partir do dia de hoje, você tem a opção de carregar o mesmo legado que eu carreguei, sua vó antes de mim e você sabe como a lista segue. Talvez considere uma benção ou uma maldição, terá tempo o suficiente para refletir sobre isso, assim espero, mas o fato é que, desde as suas primeiras palavras, eu e sua mãe já sabíamos que você tinha herdado os mesmos dons que os meus. Elizabeth costuma dizer para quem quiser ouvir que você é a minha cara, não é? Na verdade, você é mais do que isso, . Você é meu herdeiro. Você é um .
Não se assuste tanto com a revelação ou com o fato de nós sequer deixarmos você assistir a todos aqueles filmes de terror que sempre insistia. Eu e sua mãe só queríamos protegê-lo e para isso precisamos ir longe. Tivemos que silenciar os seus poderes recorrendo à medicina e, acredite, eu não me arrependo por ter feito de tudo ao meu alcance para que tenha uma vida normal.
Os espíritos podem ser extremamente amigáveis e bons, mas, como em tudo no mundo há um pouco de maldade, existem os espíritos inumanos e malignos, aqueles cuja única finalidade é causar dor e destruição. Foi à proteger a humanidade contra esses espíritos e mandá-los de volta ao inferno que eu dediquei toda a minha vida.
As pessoas costumam chamar eu e sua mãe de demonologistas, mas eu não sei se realmente gosto desse termo. Nós não lidamos apenas com demônios, que sim, são reais. Nós ajudamos as almas a encontrarem paz e descobrirem qual é o seu verdadeiro caminho.
Através desta caixa e deste diário, eu deixo a você o meu legado, filho. Nas páginas seguintes, você encontrará todo o meu conhecimento sobre o sobrenatural e no final deste diário está a chave daquele cômodo que você sempre quis conhecer, mas nunca foi permitido. Explore-o, explore o diário e só então tome a sua decisão.
Eu o amo imensamente, gostaria que nunca encontrasse esse diário, mas o destino é o verdadeiro maestro de nossas vidas.
Seu pai,
Henry ”.


não sabia definir o que sentia após ler todas aquelas palavras. Notou que suas mãos tremiam tanto que ele não sabia como havia conseguido se manter segurando o diário e seus olhos estavam embaçados pelas lágrimas. Sentiu uma delas escorrer por sua bochecha enquanto um turbilhão de memórias tomava conta de seus pensamentos, memórias essas de momentos que havia partilhado com o pai. Sentia uma falta absurda do mais velho e sabia que sua mãe lutava o máximo que podia para preencher o buraco que a morte dele havia deixado, mas nenhum esforço adiantava. Henry era seu melhor amigo. Aquele com quem dividia seus segredos e temores mais profundos, aquele que o ensinava como agir diante das garotas que ele gostava ou a enfrentar os valentões que tentavam mexer com o rapaz, antes menino.
No momento, todo aquele sentimento de vazio havia sido preenchido pelo de raiva, indignação, frustração e o pior deles: de traição.
Num ímpeto de raiva, atirou o diário para longe, vendo-o bater contra o guarda-roupas e cair aberto com as folhas voltadas para baixo. Um som metálico havia sido ouvido junto ao barulho do livreto se chocando ao chão e seu olhar foi de encontro a uma corrente de prata com um pingente de cruz, atirada a poucos centímetros do diário. Mais lágrimas de frustração escorreram de seus olhos quando o rapaz reconheceu que aquela era a corrente que o pai não tirava do pescoço. Ao mesmo tempo então franziu o cenho, achando esquisito aquele objeto estar ali sendo que o pai havia sido enterrado com ele e balançou a cabeça, secando as lágrimas e imaginando que provavelmente tinha se enganado.

Sua mãe está aprisionada por um demônio.

De repente, a lembrança das palavras da garota maluca ecoou em seus pensamentos.
Suspirou fundo, grunhindo alto em seguida e voltando a pegar o diário, folheando-o rapidamente até a última página e encontrando a chave sobre a qual o pai havia escrito.
Apertou o objeto dourado em mãos e mordeu a boca, olhando para a porta do quarto em seguida e acabando por ir até o cômodo que, de fato, ele sempre quis conhecer.
Parou diante do escritório dos pais e colocou a chave na fechadura, destrancando-a e hesitando um pouco antes de abri-la. Quando o fez, uma surpresa genuína tomou conta de suas expressões.
Seus olhos passearam por todos os cantos do cômodo, abarrotado por vários objetos esquisitos, alguns em redomas de vidro e outros apenas dispostos sobre prateleiras. Franziu o cenho ao ver uma boneca de pano com a boca costurada e foi aí que notou que também havia coisas que pareciam excepcionalmente normais. Exceto, é claro, pelo fato de que provavelmente eram amaldiçoadas.
Sua cabeça estava virada em um turbilhão de confusão. se perguntava a cada cinco segundos se tudo não passava de um pesadelo do qual ele acordaria em questão de minutos, mas algo dentro de si gritava a resposta. Era tudo real e ele não tinha como fugir agora que estava envolvido por esse mundo.
Ao contrário do que Henry havia dito, não tinha escolha.
— Droga, pai! — murmurou sentindo-se derrotado, então voltou a lembrar do que a desconhecida havia dito sobre sua mãe. Se ela estivesse certa, Elizabeth corria um sério perigo e ele precisava fazer alguma coisa para salvá-la, mesmo não tendo a mínima ideia de como agiria naquele caso.
Tomou um susto ao então ouvir a campainha tocar e sem pensar muito bem caminhou até a porta da sala, abrindo-a e dando de cara com a garota, o que fez com que seus olhos se arregalassem de surpresa.
— Vejo que agora está mais disposto a me ouvir — a moça disse, indicando o diário que havia trazido consigo. Ele apertou o objeto com os dedos, ainda se sentindo confuso e com uma vontade absurda de sair correndo para se internar em alguma casa de repouso.
— Para falar a verdade, estou mais disposto a sair correndo do que qualquer outra coisa, mas... — pigarreou, ouvindo-a rir baixinho. — Entre... Como é seu nome mesmo? — questionou meio sem jeito.
— ela repetiu com calma, seguindo para dentro da casa assim que lhe concedeu passagem. Ele então fechou a porta logo atrás da garota e seguiu de volta para o escritório dos pais, sem se importar que ela visse tudo o que havia lá dentro.
— Então esse é o legado dos . — Ouviu a voz dela soar admirada e voltou seu olhar para , observando pela primeira vez o quanto as feições da garota eram belas.
— Como sabe sobre minha família e quem eu sou? — o rapaz questionou, sem deixar de encarar a moça e se sentindo meio estranho com relação a ela. não era de se interessar por garotas do tipo dela e de qualquer forma aquela não era bem a hora para aquilo, mas algo havia lhe chamado atenção e despertado seu interesse.
— Espíritos comentam, . Tanto os bons quanto os maus — ela disse com um olhar enigmático em resposta ao dele.
— O que quer dizer com isso? Você também é... médium? — Ele estava visivelmente confuso, o que lhe deixou um tanto irritado ao vê-la rir baixinho. Essa parte da história ele achava completamente absurda, já que nunca havia visto nada daquilo. Nenhum fantasma, espírito ou demônio e olhou com raiva para o jeito divertido da garota. — O que é tão engraçado? — soltou de forma grosseira.
— Eu não sou médium, querido . Não te culpo por não ter notado ainda, é meio complicado de ver a marca mesmo. — Ela não havia se alterado pelo jeito do rapaz.
— Que marca? Quer fazer o favor de fazer sentido? — resmungou, vendo a garota rir de novo.
— Você é sempre impaciente assim? Precisa relaxar, meu anjo ou vai acabar partindo muito mais jovem do que deveria. — lhe fuzilou com os olhos e ela sorriu de canto, continuando segundos depois. — Eu estou morta, . Morri já faz alguns anos.
Parecia que ele havia engolido um pedaço de gelo grande demais e que este entalava preso em sua garganta.
Então ergueu um pouco a blusa que vestia, lhe mostrando a marca profunda em seu abdômen. Não era uma cicatriz e sim um buraco, onde ela provavelmente havia sido atingida por algo perfurocortante, possivelmente uma faca.
Que loucura era aquela?
— Como assim você está morta? Então como eu consigo ver você? Como...? — Então ele parou de falar ao lembrar de algo escrito no diário de seu pai.

Tivemos que silenciar seus poderes recorrendo à medicina.

Pensou no frasco amarelo guardado dentro da cabine de seu banheiro e na insistência da mãe todos os dias para que ele não esquecesse. Ouviu da mais velha que ele tinha severas crises de pânico desde criança e por isso tomava aqueles remédios desde que então.
apertou os lábios, imaginando sobre o que mais haviam mentido para ele.
— Você pode odiar seus pais o quanto quiser, . Mas sabe que agora não é hora para isso. Finalmente você tem a verdade e as horas estão passando. Você precisa salvar a sua mãe, , e eu sinto muito por ser eu a lhe dizer isso, mas ela não tem muito tempo. — As palavras de o despertaram dos pensamentos, enquanto ela falava com urgência.
Ele a encarou com uma feição distante, mas sabia que estava certa. Ou ia atrás da mãe, ou a perderia como havia acontecido com seu pai.
— Eu... Eu não sei nada sobre demônios, . Como irei enfrentar algo que não conheço? — soltou em um tom sincero e até mesmo amedrontado. Era tudo desconhecido demais para que seus esforços valessem alguma coisa.
— Tudo o que precisa saber está no diário, lembra? Use o carro de seu pai, ele costumava guardar um arsenal no porta-malas com tudo o que vai precisar e você tem a mim. Vou acompanhá-lo aonde for. — a encarou surpreso por ouvir aquilo e notou nas feições de que ela devia conhecê-lo muito antes de ele conhecê-la. E algo nele havia gostado de perceber isso.
Só podia ser louco por estar mesmo se sentindo atraído por um espírito. O tempo para eles não devia correr da mesma forma, então quantos anos ela teria?
Evitou pensar nisso.
Ele ainda estava hesitante quando seguiu para fora do cômodo, buscando a caixa que havia deixado no quarto dos pais e seguindo para a garagem a fim de pegar o carro do pai, como havia lhe orientado. Embarcou no lado do motorista e franziu o cenho enquanto via a moça se acomodar no banco ao lado.
— Como vou ler o diário, se preciso dirigir até lá? — Olhou para ela, pela primeira vez com uma expressão de riso.
— Eu leio pra você, querido. — Ela sorriu para ele e assentindo, deu partida.


📿


sabia que a situação dele deveria ser no mínimo curiosa para qualquer pessoa que decidisse observá-lo por alguns minutos, afinal, apenas ele podia ver , o que significava que o rapaz gesticulava vez ou outra para o banco do carona, onde havia apenas o diário de Henry .
No entanto, sendo sincero, ele não se importava com o que estavam pensando dele. Tudo o que queria era conseguir encontrar sua mãe e salvá-la de qualquer ameaça que fosse. Tendo experiência com entidades ou não, daria o máximo de si.
A quantidade de informações contidas naquelas páginas era muito maior do que imaginava, mas ele tentou absorver o máximo delas.
Quando parou diante da casa da família Thompson, no entanto, de repente era como se tudo simplesmente tivesse evaporado de seu cérebro, principalmente porque o semblante de adquiriu um tom sombrio e urgente.
... — ela começou.
— Eu sei — o rapaz disse apenas.
Ao olhar para a fachada daquela residência, o jovem conseguiu compreender completamente os motivos de seus pais terem adormecido o dom que havia herdado por todo aquele tempo. De repente, ele conseguia sentir cada gota de desespero que emanava daquele lugar. Havia um cheiro de enxofre no ar e a energia estava tão carregada que parecia que um peso tinha acabado de ser jogado em seus ombros.
— Você consegue, . Estarei com você o tempo todo — prometeu, direcionando sua mão à dele, mas ambos sabiam que ele não conseguiria senti-la.
— Ainda não sei como enfrentar isso que me espera — confessou, não como um ato de covardia, mas sim uma rápida declaração.
— Está no seu sangue, . Confie em mim.
Com um aceno solene em concordância, o médium desceu do carro, pegando a maleta com os artefatos que antes pertenciam a Henry no porta-malas e caminhando na direção da porta.
— Está aberta — informou quando o rapaz fez menção de tocar a campainha.
Engolindo a seco, empurrou a porta, que de fato estava apenas encostada, porém quando fez menção de entrar no ambiente, fez sinal para que parasse.
— A corrente de seu pai, você também trouxe? — ela questionou, fazendo-o suspirar e puxar o objeto de um de seus bolsos. — Ótimo. Coloque-a.
Não entendeu muito bem o motivo daquilo, mas não era a hora para discutir ou desconfiar dos atos de , então apenas obedeceu.
Como se estivesse arrancando o curativo de uma ferida, seus passos o colocaram dentro da residência e imediatamente a sensação de desespero lhe atingiu em proporções sete vezes maiores do que antes.
Cada terminação nervosa do corpo do rapaz tremeu e ele precisou de muita força de vontade para não permitir que seus pés congelassem no chão. O medo corroeu suas entranhas e uma sensação terrível de sufocamento fez com que um nó se formasse em sua garganta quando além do odor de enxofre ele também detectou o fedor pútrido da morte.
quis gritar, mas de repente não encontrou sua própria voz. Quis chorar, mas as lágrimas se recusaram a tomar seus olhos.
Aquilo só podia significar que chegara tarde demais. Em um dos cômodos daquela casa, ele encontraria sua mãe morta assim como ele acabara de descobrir os corpos de Shelby Thompson e os dois filhos pequenos.
Pela forma como estavam dispostos, deduziu que a mulher havia matado as crianças e depois se suicidado. Um cenário tão desolador quanto a constatação do que ele iria encontrar ao explorar a residência.
nunca havia visto cenas de crime fora as que assistia em séries e filmes, e a sensação de choque e desespero que tomava conta de si fez com que questionasse mentalmente se seria realmente capaz de seguir o legado da família .
Desconfiava que não e nem gostaria se aquela vida de caçador de entidades tivesse lhe tirado também sua amada mãe.
, que permanecera calada durante todo o tempo, de repente ergueu a cabeça alarmada em direção ao médium, requerendo a atenção dele no mesmo instante em que um gemido gutural pôde ser ouvido.
Mãe. — Não precisou cogitar, ele soube que era Elizabeth.
Correu desesperadamente em direção ao som, percebendo que este havia vindo do porão da casa e não se surpreendeu ao ver que a porta que levava ao lugar não estava apenas fechada como trancada a chave.
— A água benta, — a mulher soprou.
Guiado pelas orientações que havia lido no diário de seu pai, aspergiu a água benta pela porta do porão, começando a murmurar algumas orações que enfraqueceriam os poderes daquela entidade maligna. Sabia que era disso que se tratava pelos diversos sinais espalhados pelo ambiente.
A cada palavra que proferia, se sentia um pouco mais confiante e não teve tempo para esboçar reação alguma quando conseguiu que a porta se destrancasse. Ele não podia perder aqueles minutos porque sabia que eram cruciais à sobrevivência de Elizabeth. O demônio havia levado três almas naquela residência e estava sedento pela quarta.
Nada prepararia para ver sua mãe encolhida no canto daquele ambiente claustrofóbico e fedendo a mofo, enxofre e podridão. Assim como ele sabia que nada apagaria de sua mente a imagem dos olhos dela se revirando nas órbitas enquanto as palmas de Elizabeth vertiam sangue, já que a mulher havia apertado tanto as mãos em punho que suas unhas cortaram a carne.
Você! — Apontou na direção de . — Você não vai tirá-la de mim. Vou me deliciar com a carne dela e depois irei me banhar no seu sangue.
— Mãe, eu sei que está aí em algum lugar. Eu irei salvá-la, aguente firme. — Ignorou aquelas palavras, mas recebeu gargalhadas como resposta.
— Chegou tarde demais, jovenzinho. Ela já se foi, mas tenho boas notícias. Se você me deixar entrar, vocês ficarão juntos novamente. — Um sorriso perverso fez com que o rosto de Elizabeth adquirisse feições grotescas.
estremeceu, sentindo a onda de desespero triplicar e de repente questionou como ele conseguiria forças para vencer aquele demônio. Se sua mãe tivesse realmente partido, não havia sentido algum em continuar com aquilo tudo.
— Não dê ouvidos a ele, . — Como se uma bolha fosse estourada, a voz de ecoou nítida em seus ouvidos, então ele se voltou mais uma vez para o espírito inumano.
— Quem é você? — Indagou o jovem em um rompante de coragem.
— Acha mesmo que vou me entregar o meu nome para você de bandeja? — debochou.
não se permitiria mais oscilar naquele momento, por mais que seu corpo protestasse e seu coração acelerado gritasse para que o jovem corresse dali e salvasse sua própria vida.
Mas ele jamais deixaria sua mãe para trás. Na verdade, algo dentro de si gritava que jamais deixaria qualquer pessoa em posse daquele entidade grotesca.
— Descreva-se para mim. — Seu tom de voz voltou a adquirir mais firmeza e o rapaz tirou o crucifixo de seu pescoço, segurando-o para provocar o demônio.
Mesmo esperando por algo do gênero, o médium ainda se assustou ao sentir que o objeto foi arrancado de sua mão por uma força invisível.
— Não! — a resposta veio forçada por entre os lábios de Elizabeth, então ela passou a soltar gritos agonizantes, como se estivesse em um estado de dor apavorante enquanto seu corpo se debatia violentamente. O crucifixo foi colocado de pé em uma posição invertida.
— Descreva-se para mim! — exigiu .
Então a entidade parou e fixou seus olhos no rapaz. Passou a língua pelos próprios lábios e sua voz ecoou perturbadoramente diferente do tom da mulher.
— Em verdade, eu lhe digo minha aparência. Sou perverso e cruel. Sou ardiloso e nada bonito. Sou inumano. Meu corpo é coberto por pelos. Sou todo negro e meu rosto possui presas tão afiadas quanto as garras de minhas mãos e pés. Tenho uma cauda. O que mais você quer saber, jovenzinho? — Ouvir todas aquelas descrições foi fazendo com que os pelos na nuca de se arrepiassem ainda mais.
— Quero saber como você chama a si mesmo. Me diga o seu nome e não me faça repetir a pergunta.
— Eu sou Vostok! — proclamou a entidade. — Eu sou Vostok!
O médium então abriu o diário nas páginas marcadas pelo pai, então as palavras ali escritas simplesmente começaram a jorrar dos lábios de . Como se fosse fluente em latim desde o seu nascimento, o rapaz recitou as orações, ignorando os gritos que aumentavam e as tentativas do demônio em lhe atingir com objetos atirados em sua direção. Houve vento, assobios e mais gritos.
pensou no pai e no quanto aquela tarefa devia exigir dele em cada caso que resolvia com sua mãe. Sentiu orgulho e isso aumentou a dose de determinação em suas veias.
— Pelo poder de Deus concedido a mim, Vostok, eu lhe ordeno que deixe esta alma! — Sua última fala foi ainda mais enérgica e por alguns segundos pareceu que nada ia acontecer, até que o corpo de Elizabeth parou de se debater e caiu frouxamente no chão do porão.
Como se uma mão tivesse puxado, o cheiro de enxofre desapareceu e a atmosfera tornou-se menos carregada.
havia conseguido.
Então ele correu na direção da mãe, agarrando-a com ansiedade e checando a sua pulsação, sentindo as lágrimas finalmente irromperem de seus olhos ao constatar que ainda estava viva.
— Você conseguiu, — a voz de ecoou.
Como prometido, em nenhum momento ela deixou de estar ali com ele e aquilo havia significado muito.
— Eu consegui — murmurou, sem conseguir desviar seus olhos da mãe e acariciando a bochecha pálida dela.
— Ela precisa ir para um hospital — declarou logo em seguida e não discordava.
Tomou Elizabeth em seus braços após pegar impulso e então seguiu com ela para fora da casa.
E aos passar pelos corpos da família Thompson, aceitou seu legado e jurou que faria o impossível para impedir que horrores como aquele tornassem a acontecer.


📿


— Eu sinto muito, meu filho. Sinto por ter feito com que não soubesse de seus dons e sinto por não ter lhe contado a verdade mesmo após a morte de seu pai. Eu tive tantas oportunidades para fazer isso e simplesmente não tive coragem... Não queria envolvê-lo nesse mundo quando você parecia bem o suficiente com uma vida normal — Elizabeth disparou a falar assim que recobrou sua consciência. Sua voz estava ainda fraca e soava esganiçada enquanto o bipe do aparelho que a monitorava indicava que seus batimentos haviam acelerado.
suspirou, buscando uma das mãos da mãe com a sua e a apertando em uma forma de acalmá-la.
— Não posso dizer que não fiquei magoado ao descobrir todas as coisas que você e meu pai esconderam de mim, mãe, mas eu entendo as razões que tiveram. Ninguém deveria ser obrigado a entrar nesse mundo sem ter escolhido isso, embora o legado dos seja partilhado no sangue.
— Ainda assim, você não precisa seguir com isso se não quiser. Existem formar de bloquear tudo. Seus remédios...
— Decidi que não vou mais tomá-los. Não posso ignorar tudo. Não depois do que aconteceu. E por mais que vocês tenham escondido isso a minha vida toda, sinto que é o que meu pai desejava para mim — interrompeu a mãe para declarar firmemente.
então percebeu que era observado de um outro ponto e assim que encarou a porta fechada do quarto de hospital, viu que ali estava e ela parecia ansiosa para lhe dizer algo.
— Mas descanse, minha mãe. Em breve a levarei de volta pra casa, tudo bem? — Se aproximou lentamente e então lhe deu um beijo leve em sua testa.
— Eu te amo, meu amor — Elizabeth murmurou com a voz se tornando sonolenta. Era como se as palavras do filho tivessem lhe tranquilizado o bastante para que ela se entregasse ao cansaço que sentia.
— Eu também amo você — respondeu mesmo percebendo o exato momento em que ela mergulhara no sono.
caminhou então em direção a , vendo que um sorriso de canto moldava os lábios da mulher e não conseguiu evitar retribuí-la.
— Achei que iria sumir depois de concluído o caso da minha mãe — o rapaz disse ao lhe encarar com interesse.
— Eu ia, mas acabou de surgir um outro caso pra você e, sinceramente, adoraria ver como vai se sair.
soltou uma risada rouca.
— Por que será que eu sinto que não será apenas durante mais esse caso aí?
riu junto a ele.
— Bom, desde que me queira por perto, eu te acompanharei sempre.
— Ótimo, porque eu gosto dessa ideia de ter você como parceira.


FIM



Nota da autora: Oi, meus anjos! Espero que gostem da fic. Me inspirei em Invocação do Mal, o meu filme favorito de todos os tempos e eu to bem ansiosa para ver as opiniões de vocês.
Caso queira saber mais sobre minhas histórias ou interagir comigo, me siga no instagram e entre nos meus grupos do whatsapp e facebook.
Beijos e até a próxima.
Ste.



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