Capítulo 15 - Someday, somehow, I'm gonna make it alright, but not right now.
Ele estava andando na minha frente, calmamente, com as mãos no bolso de sua calça. Seus cabelos bagunçavam momentaneamente, com a brisa que dançava no ar. O lugar estava escuro, meio sombrio até. Parecia que a única coisa iluminada era o caminho por onde ele passava, ou andava calmamente. Então, com pressa, eu comecei a seguí-lo e a chamá-lo.
Mas ele não me ouvia.
Comecei a falar mais alto, e a acelerar minha caminhada, mas mesmo assim, sem sucesso algum. Levou-se apenas um segundo para que meu andar se tornasse um correr. E levou mais outro segundo para que eu começasse a gritar seu nome, a chamá-lo com todas as forças do meu íntimo.
E ele não me ouvia.
Seguia caminhando no mesmo ritmo, e eu nunca o alcançava. O desespero começou a tomar conta de mim, e correndo mais do que nunca, tropecei e caí no chão, com força. As lágrimas já caíam do meu rosto, enquanto eu erguia minha mão numa tentativa frustrada de fazê-lo virar-se e voltar até onde eu estava; um pedido mudo de que não me deixasse sozinha nunca.
Cansada, exaurida, senti meus olhos pesarem com a escuridão que se tornava cada vez maior sobre mim. Observei o foco de luz que o acompanhava, se distanciar rapidamente, e o bolo na garganta tornou-se real.
Num suspiro, chamei seu nome uma última vez, vendo que minhas forças estavam se esgotando. Mas antes que meus olhos se fechassem por completo, a silhueta à frente parou, e, olhando por cima dos ombros em minha direção, ele falou: "?"
E foi aí que eu acordei. Chorando.
Respirando com dificuldade, passei a mão na minha testa e senti o suor nela. Não sei quanto tempo demorei pra perceber que eu tinha tido um pesadelo. Ou melhor, o pesadelo. Já era a quinta vez em três meses que eu tinha sonhado com aquela droga de cena, que só se repetia na minha cabeça.
Três meses. Pois é. Faziam três meses que eu tinha aquele sonho ruim, com se afastando de mim, e por mais que eu tentasse acompanhá-lo, nunca o alcançava...
Faziam três meses que eu não falava com . E devo admitir que são longos e dolorosos três meses. A dor não passou, porém aprendi a conviver com ela, sentindo cada pequena partícula do meu corpo pulsar toda vez que eu passava por ele, e tratava-o como um mero conhecido.
Sentir sua ausência era terrível. Junto a isso, às vezes eu sentia seu olhar sobre mim, como se quisesse que eu o encarasse de volta, mas eu só conseguia olhar pra qualquer canto que não fosse ele. Tudo isso era esmagador, pesado demais.
Os garotos da banda me diziam pra relevar as ações do meu (antigo?) melhor amigo, e eu apenas negava cegamente, confiante de que tudo de alguma forma desencadearia em algo bom – ou pelo menos melhor do que a situação que nos encontrávamos.
Mas o tratamento entre e eu estava tão fora do eixo que até conversou comigo sobre isso, achando que era melhor simplesmente fazer as pazes com o . Apesar de sua iniciativa, minha resposta foi negativa. Me negava a voltar àquele ciclo vicioso de pazes, brigas, lágrimas...
E percebi que, depois de persistir nessa mudança em nossa relação, o foco passou a ser a banda dos rapazes. Nestes últimos tempos, poucos foram os dias que não ensaiaram ou deram tudo de si, tanto nos covers quanto em músicas autorais.
Particularmente, eu estava grata por isso. Além de ficar feliz pela evolução da McFy, isso de alguma forma significava que, mesmo com as questões entre eu, e talvez , aquilo não atrapalhava a banda e sua capacidade de brilhar cada vez mais.
O empenho dos rapazes foi tanto que chamou a atenção de ninguém mais ninguém menos do que o pai de Elise, que curiosamente trabalhava numa produtora e demonstrou interesse em auxiliar a banda com o que precisasse.
A galera não coube em si, é claro. E eu também não poderia ficar mais feliz por aquilo, porque era mais uma oportunidade da banda expandir seu potencial, e de por conseguinte, tornar os sonhos realidade.
E durante esses meses, os meninos realizaram pequenos shows pela cidade, com ajuda e produção do pai de Elise. Ele era uma pessoa legal, se prontificava a ouvir os arranjos dos meninos, sugeria mudanças, trocava ideias e performances com os rapazes, e sempre que podia, estava presente nos shows. Estes, por sua vez, não eram lá os mais lotados, mas era notável que aos poucos, a McFly construía seu próprio e fiel público – pequeno na quantidade, gigante na presença.
A galera da escola dava maior apoio, principalmente depois do primeiro show que os meninos fizeram naquela fatídica festa. E apesar de todos os pesares, não poderíamos negar a felicidade que cada pequeno detalhe trazia consigo.
Mesmo que no fundo, eu achasse muito curioso que logo o pai de Elise fosse o cara a ajudar na produção do McFly. Mas a vida se encarrega de jogar na nossa cara certas verdades, e bem... A curiosidade durou pouco tempo, é claro. O universo não me deixaria sem um retorno – afinal de contas, por que um adulto alheio como Sr. Reagan ajudaria uma banda de meninos?
A resposta veio em um desses últimos shows da banda; depois que os meninos saíram do palco e entraram no camarim improvisado, chamou a atenção de todos que lá estavam reunidos, com uma feição animada.
E quando me toquei do que estava acontecendo, senti levemente o chão sair de meus pés.
A cena se passou como câmera lenta pra mim.
O braço de erguido com um copo de cerveja.
A mão direita apertando a cintura de Lis.
Os sorrisos de ambos.
Os lábios de anunciando o seu namoro com Elise.
E o nada.
O ambiente perdeu som, e eu só via imagens.
Por fora, eu sabia que estava sem reação. Por dentro, em muitas partes o coração partiu, com a dor da certeza do que sempre fora uma desconfiança pra mim...
Ele gostava dela, de verdade... E não de mim.
Naquele momento, veio à mente a conversa que tivemos em minha varanda, quando ele assumiu que gostava de alguém que talvez não gostasse dele, mas que ele esperaria o tempo que fosse.
Eu ri de forma zombeteira daquilo. Porque não teve que esperar tanto tempo assim, não é mesmo?
Enquanto ele estava recebendo os parabéns dos amigos, eu me perguntava se eu estava feliz por ele. E fiquei um pouco melhor ao perceber que uma parte de mim estava feliz por isso. Mesmo que a outra parte estivesse se contraindo em posição fetal suplicando para que arrancassem aquele sentimento de mim.
apertou minha mão, e me tirou do transe. Eu a encarei, forçando um sorriso.
Ela sabia que dentro de mim estava um caos.
Respirei fundo, controlei o tremor e o nó na garganta. Foi fácil? Nem um pouco.
Mas a força e a perseverança já eram amigas de longa data, e lá estava eu, caminhando lado a lado delas.
O que não significa que tenha sido fácil abraçar a Lis, desejando tudo de bom para o relacionamento dela com o cara que eu ainda amava. Foi punk. E um tanto estranho! Mas mais estranho foi sentir que, eu não fui falsa, nem mentirosa ou algo do tipo.
Não digo que eu não queria estar no lugar dela, pois seria a maior blasfêmia que já poderia ter contado na vida. Mas, se o relacionamento deles desse certo, e se proporcionasse felicidade à , já estava de bom tamanho pra mim.
Assim que saí do abraço de Elise, dei de cara com ele, que saía do abraço de .
Nossos olhares se conectaram, e eu vi uma imagem em sincronia: seu sorriso desmanchando ao me ver, ao mesmo tempo que eu me via em seus olhos, fazendo a mesmíssima coisa.
Não tínhamos um contato mais íntimo desde aquela noite na qual ele me deixou só, com um monte de questionamentos sem respostas na cabeça.
E lá estávamos nós, boas semanas depois de tudo acontecer, se encarando de um jeito tão indecifrável que apenas o discreto empurrão de em mim, me despertou.
Porém, como eu estava distraída, o empurrão levou força demais (e queria acreditar cegamente que o movimento tinha sido mal calculado pela minha amiga), e eu acabei indo na direção de , quase dando de cara com seu peito. Se ele não tivesse me segurado firmemente pelos braços, logo acima de meus cotovelos, eu iria basicamente estrebuchar minha cara em si.
Nos encaramos novamente, e eu balbuciei algumas sílabas antes de criar coragem para quebrar o silêncio.
“M-Me desculpe por isso.” Eu comentei, endireitando minha postura e mordendo rapidamente o canto da boca. Tomei fôlego e vesti meu melhor sorriso. “Parabéns, . Fico feliz por vocês.”
Acho que nunca havia dito palavras que soassem tão agridoces na minha boca. Uma parte de mim sentia o almoço querendo voltar ao pronunciá-las. A outra se aquecia minimamente com a ideia de que ele estava bem, feliz. E aquilo era uma porra louca do caralho, me desculpe o termo. Mas eu não saberia descrever de outra forma a dimensão dos sentimentos...
Quando percebi que ele não havia dito nada, senti meu sorriso novamente se esvaindo, sem quebrar o contato visual. Ele suspirou fundo, me encarando daquele jeito que eu não conseguia entender.
Não disse nada, mas suas mãos seguiam me segurando nos braços. E eu sentia o local ferver; já não sentia seu toque, por mínimo que seja, há algum tempo. Aquilo me causava estranheza, ansiedade, e um pouco de euforia.
Enquanto pensava em tudo isso, senti seus dedos escorregarem de meus braços para as minhas costas, e quando dei por mim, meu rosto estava de encontro ao seu suéter azul marinho.
Puta merda... o cheiro. Sem condições nenhuma para lidar com o cheiro de . E quando digo cheiro, não é perfume, nem fragrância: é o cheiro da pessoa, aquela essência que exala da pele macia que entrava em contato com a minha cara quando nos abraçávamos.
Exatamente como naquele momento. Dei a má sorte de encontrar apenas a superfície têxtil do suéter, e ri comigo mesma que até nos momentos mais delicados a desgraça fazia questão de tirar uma com a minha cara.
Porque nem ter aquela doce sensação eu poderia ter.
Não teve jeito; eu o abracei de volta, ainda insegura, mas o abracei sim. Senti até as pontas dos meus dedos pressionarem suas costas, e ambos sabíamos que a saudade estava latente ali, naquele encontro, naquele simples abraço... Porque senti seus braços se apertarem ao meu redor.
Eu cheguei a fechar os olhos, e não sabia o que se passava, mas já não importava...
Não naquele momento, não ali, onde tudo, de alguma forma, parecia estar de volta ao lugar.
Mas infelizmente, era apenas um lapso do espaçotempo; abri meus olhos com uma sobriedade invejável, deixei as mãos pouco a pouco escorregarem das costas de , e senti o torso dele se enrijecer, logo repetindo meus movimentos.
E assim, nosso abraço estava findado, e um sorriso amarelo jazia em meus lábios; já , seguia sem falar ou esboçar nada. Apenas me encarava, daquela mesma e intrigante maneira de antes.
Lis chegou e agarrou o braço de , comentando alguma coisa em seu ouvido, o que fez seus olhos saírem de mim e encará-la com um sorriso forçado. Eu suspirei e admiti internamente minha derrota, me retirando do lugar e encaminhando para perto de , fingindo ver alguma notificação no celular – quando na verdade estava apenas tentando engolir o pranto preso na garganta, sem muito sucesso.
Me forcei a sair do celular, e fui ao encontro de , que me recebeu com um abraço de lado.
E se a vida pudesse ser mais ambígua... Ao tempo que relutava com o aperto no peito por ver e Elise oficialmente juntos, havia uma pequena alegria pairando logo ao meu lado.
Porque felizmente, existia .
Por um lado, , com quem nunca mais tive proximidade após aquele nostálgico abraço. Do outro, , com quem eu nunca pensei estar construindo uma relação como a atual.
, quem teoricamente era e não era meu namorado. Não havíamos assumido nada, mas agíamos como tal.
, que não questionava mais do que o necessário, e respeitava meus momentos.
, que sabia que eu não gostava dele como gostava de , mas persistia em ser o melhor cara com quem já havia me relacionado (ainda que isso não fosse muito difícil diante da quantidade de pessoas com quem me relacionei na vida).
De toda forma, na ambiguidade da alegria e da tristeza, uma das poucas certezas diárias era a tal da ansiedade. Toda noite eu suplicava ao universo para deixar de amar daquele jeito, e nutrir sentimentos por . As coisas seriam tão mais fáceis, não é mesmo?
E sempre que eu pensava sobre isso, meu interior ficava agitado. Afinal de contas, me sentia uma escrota, como se tivesse usando-o para esquecer .
Mas toda vez que esse pensamento me vinha à mente, ou toda vez que tentava conversar isso com , lá estava apenas sendo ele mesmo, falando coisas aleatórias, me fazendo rir e me dizendo pra simplesmente viver, para ser mais leve e lidar apenas com o momento.
E eu tentava, mas nunca ficaria tranquila como ele aparentava estar. Quer dizer, ao contrário de mim, supostamente não via problema nenhum na forma com qual (não) rotulávamos nosso relacionamento. Parecia que ele não tinha pressa em me esperar, e por isso eu era profundamente grata.
Apesar de todo sofrimento, eu não poderia negar: era a contrapartida que me fazia sorrir e me sentir mais tranquila. Ele conseguia arrancar risadas, momentos de pura alegria e de fato, me fazer enxergar as coisas por outros pontos de vistas, mil vezes menos pesadas, diferente de como eu levava a vida.
Além, claro, de me proporcionar experiências de casal que eu não tinha ainda vivenciado.
E sim, eu ainda era virgem.
Porém, com mais noções e descobertas que uma pessoa da minha idade teria.
Este era um ponto também inegável: a pegação com era ótima. Nossos beijos encaixavam, e cada vez mais nossos corpos sentiam-se à vontade no toque um do outro, como se reconhecessem na familiaridade das carícias.
E aquilo era bom, legal, me fazia vibrar e principalmente; me fazia sentir que finalmente estava vivenciando algo memorável, como mulher. Uma mulher que era desejada. Situação esta que, visivelmente, nunca vivenciaria com . Meus pensamentos sobre minhas experiências foram abruptamente cortados quando meu celular decidiu vibrar insistentemente.
Oh, era isso mesmo. Eu havia tido de novo o pesadelo dos pesadelos, e acordei momentos antes do despertador tocar. Peguei o aparelho à contragosto, vendo que ainda eram seis horas, mas mesmo assim eu deveria acordar.
Me lembrei do porquê quando li no visor do celular "Passeio da Escola."
Desliguei o alarme e afundei meu rosto no travesseiro por alguns instantes.
Passeio de férias do fim do ano. Da escola.
Significava: eu, , , Doug e... . Durante uma semana, completamente absortos numa rotina totalmente nova.
Eu me perguntava o que me esperava naquilo tudo.
***
"Aqui tem o meu celular, o telefone de casa, telefone da casa da avó dela, dos tios... Oh, e aqui está o telefone dos padrinhos também! E se não conseguir contato com nenhum deles, há Beth, nossa querida vizinha que adora a minha filha, além de que..."
"Mãe!" Interrompi minha mãe, enquanto ela apontava todos os contatos existentes para o professor de educação física, que no caso, era um dos docentes que viajaria conosco.
"Eu acho que o professor já entendeu que há mais de uma pessoa pra quem ele possa ligar em caso de acidente ou qualquer coisa do tipo."
"Óh!" Ela exclamou, levando a mão a boca, dando um sorrisinho envergonhado. "Perdão, professor. Acho que me exaltei. Bom, acho que é só isso. Vocês já estão partindo agora?"
"Os alunos já estão formando fila pra entrarem nos ônibus, então essa seria a hora apropriada para uma despedida." O professor explicou, educadamente.
"Despedida não!" Minha mãe arregalou os olhos, colocando a mão no coração. "Apenas um 'até logo'. Não me assuste, professor." Ela pediu, e eu jurava que tinha visto o homem abafar uma risada com uma tosse, apenas consentindo respeitavelmente.
"Mãe, vamos logo com isso." Pedi, enquanto o meu professor pedia licença.
"Ai, meu docinho, minha prole querida, meu filhote de bicho preguiça, meu potrinho..." Mamãe enumerava apelidos "carinhosos" enquanto me abraçava (lê-se: quebrava minhas costelas) maternalmente.
"Eu também vou sentir sua falta, mãe. Mas só vai ser uma semana, relaxe." Falei, enquanto retribuía seu abraço, de uma maneira muito menos esmagadora.
“Como consegue ser tão fria?” Ela comentou, enxugando uma lágrima no canto do olho.
“Mas que drama!” Reclamei, enquanto limpava outra lágrima teimosa caindo do seu olho esquerdo.
"Como se eu pudesse controlar isso! Você só vai entender quando for mãe, não adianta discutir isso no momento! Agora pare de falar e me dê mais um outro abraço e diz que você ama a mamãe." Ela demandou, e eu fiz uma careta enquanto reclamava.
"Ah, mãe! Eu não..."
"Se não fizer, você ficará sem internet nas férias."
"Cara, eu vou sentir tanto a sua falta!" Falei, enquanto a abraçava apertado.
E nós rimos, em uníssono. Ela segurou meu rosto em suas mãos, me olhou e perguntou:
"E você, está bem?"
"Sim." Mentira.
"Tem certeza?" E ela sabia.
"Acho que sim." Respondi, incerta do que dizer. Ela me olhou com os olhos cerrados.
"Pesadelo outra vez?" Por que mães podem ser tão... mães?
"Talvez." Sussurrei, encarando meu tênis.
"?" Ela questionou, e eu só assenti com a cabeça, ainda não encarando-a nos olhos. Ela sabia do pesadelo, e sabia toda vez que ele se repetira nos últimos e insuportáveis meses.
"Eu não sei como, mas vocês têm de se resolver logo. Isso não está fazendo bem a você, e, pelo que eu ouvi, não é diferente com o ." Ela comentou, fazendo uma feição séria.
"Como assim?” Meu coração deu um pulo quando ouvi o nome soar pelos lábios de minha mãe.
Ela suspirou, antes de continuar.
“Encontrei com a mãe de e ela me disse que o menino não parece muito bem. Deu uma emagrecida e o sono está desregulado, pelo que ela consegue notar... E além disso...” Minha mãe me encarou, com uma sobrancelha erguida. “A Sra. me perguntou porque você não aparece mais lá.”
“E o que você respondeu?” Perguntei, exasperada.
“Disse que tem estado ocupada com os estudos e o namoro.” Deu de ombros, suspirando novamente.
“Eu não namoro, mãe...” Bufei, coçando a nuca.
“Você sabe que sim. Pode não ser de um jeito mega romântico, mas você tem algo, né querida?”
Minha vez de mexer os ombros, sem muita saída. Senti minhas bochechas quentes, e poderia confirmar que elas estavam coradas.
“Bem, é isso. Vocês têm que se resolver.”
"Não há nada que eu possa fazer. Você, mais do que ninguém, sabe o quanto eu tentei manter a nossa amizade." Comentei, sentindo meu semblante deprimir levemente enquanto explicava à minha mãe.
"Eu sei, filha, e como sei. Mas é só... Uma amizade tão linda como a de vocês não nasce de um dia para o outro. E também não caba tão facilmente..."
"Não acabou, mãe. É só um tempo que precisamos. Vai tudo dar certo no final." Nem eu acreditava nas minhas próprias palavras, mas eu precisava repetí-las até que isso acontecesse.
"Tudo bem, então... Se cuide, eu te amo, e qualquer coisa vou correndo até você. É só me gritar, entendeu?” Ela falou, me abraçando ternamente pela última vez, e eu retribuí suas ações.
"Pode deixar, mãe, vai ficar tudo bem. Se cuide também. Eu te amo."
" ?" O professor me chamou, e eu peguei minha mala, dando um último beijo no rosto da progenitora, correndo para a fila.
"Tchau, mãe!" Gritei rapidamente, recebendo um 'Até logo, potrinho!' como resposta, antes de chegar à fila, arfando.
"Presente."
"Até que enfim." Ouvi a voz de soar atrás de mim.
"Hey, !" Exclamei, enquanto a abraçava entusiasmada. “Tá tudo bem?” Perguntei vendo a cara de puta de .
Ela bufou em direção à , que a olhava com cara de gatinho do Shrek.
"!” O professor berrou, fazendo com que nos encolhêssemos com a potência da voz. “, poltrona 48, ao lado desta jovem aqui.” E apontou para uma menina de cabelos cacheados e ruivos.
Minha amiga me olhou, respirou fundo e rolou os olhos.
“Depois conversamos.” E entrou em disparada no ônibus.
Franzi a testa e arqueei a sobrancelha, automaticamente me virando para olhar e Doug.
“É seguro perguntar o que aconteceu?” Indaguei, num fio de voz.
choramingou, batendo na testa várias vezes.
“Eu esqueci a porra do nosso aniversário de namoro. Dois meses, cara! Dois meses! Como eu pude ser tão esquecido com apenas dois meses?”
“Eita, é hoje?” Perguntei, fazendo uma careta. Aquela coisa de datas era realmente importante para .
apenas confirmou com a cabeça, bufando.
“E o pior é que vim aqui desejar um bom passeio pra ela... E ela achou que eu estava aqui por causa da data... Argh! Como eu sou idiota!” E bateu na própria testa, visivelmente frustrado.
"Calma, , vai tudo dar certo. É só você planejar uma coisa bem legal no retorno do passeio. Vai ficar tudo bem, não esquenta.” Respondi, fazendo uma careta. só respirou fundo e afirmou com a cabeça, enquanto Doug dava tapinhas encorajadores nas costas do amigo.
"Cheguei a tempo?" A voz de soou atrás de mim, e, no momento seguinte, me virei sorridente para respondê-lo.
"Chegou antes do ônibus partir, né moço? O que aconteceu? Sonhou demais comigo?" Perguntei, me sentindo total poderosa.
"Oh, e como... Altas homenagens." Ele falou apenas pra mim, escondendo a risada por detrás da sua falsa tosse, e eu fiquei enrubescida.
Ele riu mais ainda da minha cara, e me puxou pra um abraço apertado, dando um selinho logo em seguida.
"Oi pra você também." Eu cumprimentei, sorridente.
" ?" O professor chamou, e eu dei um tapa nele, pra que ele corresse até o ônibus.
"Sim?" Ele respondeu ao superior.
"Você é o 49, junto com Luke Stevens, 50. Ok, este ônibus está completo. Vamos para o próximo."
Me despedi com um aceno e olhar meio triste para , que lançou um beijo no ar, seguido de uma piscadela e sua entrada no transporte.
"Ok, continuando a contagem...” O professor falou, absorto na prancheta que tinha em mãos.
"Antes tarde do que nunca, né Bela Adormecida?" Ouvi a voz de Doug soar bem zombeteira, enquanto meu coração dava um leve sobressalto ao ver a imagem de chegando até nós.
"Acordei atrasado, noite ruim de sono..." Foi a vez da voz de invadir o ambiente, e, por mais que a minha vontade fosse cumprimenta-lo como eu teria feito se ainda estivéssemos nos falando, só continuei a fingir que ouvia atentamente o que o professor dizia.
Apertei a minha mão ao redor da alça da minha mala, tentando ficar numa boa e espantando a conversa que tive com minha mãe há momentos atrás. Mas estava parecendo uma missão impossível! As palavras ecoavam na minha mente, e eu apenas tentava manter o bem-estar.
"O importante é que você está aqui. Relaxa." disse, mesmo com a feição um pouco triste com seus próprios problemas.
"Doug , com Mary Smith.” E Doug sorriu para nós sem mostrar os dentes, acenando.
“Até mais, cara.” Ele disse, dando uns tapinhas no ombro de . “Fique bem, ok? Vai dar tudo certo.”
apenas meneou a cabeça, dando um sorriso amarelo.
“O que houve?” perguntou, com a sobrancelha arqueada. suspirou.
“Esqueci o aniversário de namoro... Sou um imbecil.” E rolou os olhos, colocando as mãos no bolso.
“Calma, não é o fim do mundo.” Percebi que falei mais rápido do que pensei, e lá estava eu me metendo numa conversa entre ele e , que me olhou brevemente, sem nenhuma expressão específica no rosto. Mesmo assim, ignorei seu olhar e foquei em , com um sorriso esperançoso. “Vou conversar com ela. Provavelmente deve estar chateada no momento... Mas nada que não tenha jeito. Tempo é tudo.”
sorriu pra mim, fazendo uma cara de dor.
“Espero que você esteja certa. Gosto mesmo dela...” E mirou o ônibus pelo qual entrou.
Mais alguns minutos depois, e o professor chamou a pessoa ao meu lado. Olhei ao redor e percebi que não havia ninguém mais na fila além de nós. O coração palpitou com essa constatação.
"!"
"Presente." Ele respondeu, dando dois pequenos passos na direção do professor, ficando exatamente na minha frente.
"Era pra você estar no primeiro ônibus, mas como você só apareceu agora, vai neste mesmo. , 89... E seu acompanhante é... , , 90. Lado esquerdo, uma das últimas fileiras. Podem seguir." O QUÊ?
Eu havia ouvido perfeitamente, mas não acreditei de primeira. O coração acelerou mais ainda, e eu respirei com dificuldade. Isso só poderia ser a maldita Lei de Murphy!
“Perdão, professor. Você disse e ?” Ele indagou, e eu pude sentir sua voz tremer levemente. E mesmo estando de costas para mim, eu tinha certeza que seus olhos estavam levemente arregalados e uma das sobrancelhas arqueadas, apenas pela maneira como falou. Pois essa era sempre sua expressão de desconfiança e incredulidade.
“Sim. Sr. . Algum problema?” O professor indagou, franzindo o cenho. apenas negou rapidamente com a cabeça, ajeitando a mochila nas costas.
Silêncio constrangedor detected.
“Eu vou indo, pessoal. Boa viagem e a gente se fala.” comentou, olhando de uma forma estranha para . Eu apenas franzi o cenho, tentando entender o que aquilo queria dizer.
“Certo, até mais!” respondeu e acenou de volta, e antes de entrar no ônibus, deu uma breve olhada pra trás, mas não chegou a olhar pra mim, muito menos nos meus olhos. Parecia que tinha desistido no meio do caminho, e simplesmente entrou no transporte.
Suspirei profundamente e encarei , que me deu um sorriso forçado.
“Você está mais estranho do que de costume.” Disse, arqueando a sobrancelha.
“Estou tentando dizer que isso também vai passar.” riu levemente, apontando pra mim e pro lugar que ocupava antes de subir no ônibus.
Eu apenas respirei fundo, dando de ombros. Não havia muito o que ser dito.
“Veremos, né?” Sorri sem mostrar os dentes e ele suspirou com a cara confusa.
“Isso tá ficando difícil pra vocês, ...” Ele comentou, e eu rolei os olhos.
“Já é a segunda vez que escuto isso hoje, e não são nem dez da manhã, !” Respondi com certa irritação e ele ergueu os braços em defesa.
“Eu não estou dizendo que é sua responsabilidade! Só estou constatando o óbvio: vocês estão sofrendo com isso!”
“E você acha que eu não sei?” Perguntei com a voz levemente falha, sentindo um aperto no peito. sorriu de maneira triste e me puxou para um abraço, no qua aceitei de bom grado.
“Desculpe, não quis dizer que você deveria fazer algo. Sei que é difícil às vezes.”
“Às vezes, vulgo quase sempre!” Resmunguei, e riu levemente, enquanto segurava meus ombros com gentileza.
“Uma hora as coisas vão se ajeitar. Não acho justo vocês sofrerem, mas não tenho dúvidas de que esse tempo está trazendo muita coisa que serve de aprendizado, não é?” Eu concordei levemente, e sorri de forma amena.
“Vai ficar tudo bem, . Afinal de contas, é você e . Não deixe de acreditar nisso... Ele com certeza não deixou.”
Eu fiquei encarando com os olhos marejados, um tanto confusa sobre a última parte da fala. Como ele poderia afirmar com tanta segurança?
“Senhorita , estamos só aguardando você!” O Professor disse ao lado da porta do ônibus, com um sorriso colgate.
Suspirei e encarei com a face mais alegre, sentindo um aconchego por dentro ao ouvir suas palavras. O abracei levemente, e agradeci a ajuda, me despedindo e entrando no ônibus logo em seguida.
Coloquei meus pés no corredor e me arrastei da forma mais lerda que pude, adiando o momento em que precisaria lidar com . Cada passo que dava, era uma pirueta que meu estômago dava.
Quando cheguei perto o suficiente, vi sentado no seu lugar, colocando os fones de ouvido.
Estava visivelmente me evitando, e apesar de uma parte de mim estar agradecida por ele ter mantido sua promessa de não insistir em nossa aproximação por algum tempo, a maior parte de mim estava bem incomodada com todo aquele silêncio e ausência de expressão.
Mas eu havia solicitado aquilo com todas as letras e palavras, certo? Então basicamente, teria que enfiar meu incômodo num lugar que o sol não bate, e seguir fazendo a egípcia... Fingindo plenitude.
Meus pensamentos tornaram-se nada quando finalmente alcancei minha poltrona, e apenas se virou para o lado, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
E eu, apenas uma estranha sentando-se ao lado dele.
Coloquei minha mochila no bagageiro e sentei naquela poltrona fria, dando de cara para a janela.
"Bom dia." Eu quase sussurrei, de tão baixo que falei. Porém, como não havia nada acontecendo, pode ouvir-me com nitidez.
"Bom dia." Respondeu, parecendo desconfortável, olhando para o celular. Mirando disfarçadamente seu rosto, percebi que seu maxilar estava levemente tensionado. Suspirei, encarando a janela. Pra que eu fui tentar diálogo mesmo?
Com a cabeça encostada no vidro, poucos minutos depois o ônibus já estava em movimento, assim como meus pensamentos. E desse jeito, sem nem permitir virar um centímetro pro lado oposto, eu acabei adormecendo com aquele silêncio sepulcral.
... E o barulho ensurdecedor da minha própria mente, tentando me convencer de que o sono faria o tempo passar mais rápido.
***
"... ?" Ouvi uma voz me chamar, e, acordando assustada, vi o rosto de Doug me encarando. "Acorda, mulher! Primeira parada. Vamos descer numa lanchonete por vinte minutos. Vai querer comer alguma coisa, ou ir no banheiro, quem sabe?"
Olhei em volta e vi que o ônibus estava vazio. Cocei meu olho, e pegando minha mochila me levantei, respondendo ao meu amigo:
"Eu tô sem fome... quero beber alguma coisa, só.”
"Tem certeza?”
"Sim, eu não acho que eu vá sentir fome. Mesmo, mesmo." Respondi, sincera. "Ah, e obrigada por ter me acordado."
“Eu estava prestes a te socar pra poder te tirar do sono, ." Ele fez uma cara de tédio com um sorriso de lado e eu ri levemente.
“Ainda bem que você tem amor à vida, né?” Ajeitei meu cabelo e coloquei meu casaco, enquanto saíamos do ônibus, procurando pelos nossos amigos.
“A razão nas suas palavras é incontestável!” Doug respondeu, e nós rimos.
Quando chegamos à lanchonete, vimos , e sentados à uma mesa, perto da janela. Todos olharam em nossa direção, e eu percebi que nos olhou, sorriu sem vontade e me olhou em seguida.
Sim, me olhou!
Nos meus olhos.
Uns cinco segundos. E depois desviou, encarando seu suco por um tempo, enquanto balançava o copo. Logo depois, deu uma bela golada.
O olhar dele, sem emoção, estava mais frio do que o tempo nublado – e algo me dizia que entre um e outro, apenas ao inverno eu sobreviveria.
"Não se preocupe." Doug falou baixo, sem me olhar, com as mãos no bolso. “Apesar de não parecer, vai ficar tudo bem.” E me olhou, com um breve sorriso. “Eu creio nisso.” O encarei com um sorriso sem graça, apenas meneando a cabeça, completamente sem respostas.
Às vezes esquecia que aquele assunto – e eu – cada vez mais tornava-se perceptível ao resto da galera.
Mas o que eu poderia fazer sobre isso, não é mesmo?
Suspirei, preferindo não ligar mais do que o necessário para aquilo.
"Como foi a viagem de vocês, queridos amigos?" Doug perguntou enquanto sentava ao lado de , dando um breve peteleco em seu nariz. , por sua vez, apenas o encarou com mau humor, arrancando uma risadinha de Doug.
"Bem." Todos responderam, em uníssono.
"Ei, flor." me chamou, puxando uma cadeira ao seu lado, indicando o lugar para sentar.
"Tudo tranquilo na viagem?" Perguntei, depois de ter cumprimentando-o.
"Aham, tudo bem. Só achei chato você ficar em outro ônibus..."
"É... bem chato." Assim que eu falei, se levantou da mesa indo em direção ao banheiro, saindo do meu campo de vista.
"Mas logo a gente chega." Respondi, ainda olhando para o caminho que tomou, me sentindo um pouco aérea.
Rapidamente, me virei para , que me encarava com um pequeno sorriso, e eu me chutei internamente por ter dado tanto na pinta que estava reparando nas ações de .
Sorri abertamente para , me virando para ele.
“Quer alguma coisa? Acho que vou pegar um suco de laranja.”
Ele fez que não com a cabeça, ainda sorrindo sem mostrar os dentes.
“Quer que eu vá com você?” Ele indagou após alguns segundos.
“Não, eu vou de boa. Já volto.” E apertei seu ombro antes de sair do local.
Antes de ir para a fila, aproveitei para ir ao banheiro e me ajeitar um pouco. Estava com a cara amassada de sono, e um tanto desconfortável por estar dividindo a viagem com .
O desconforto era na verdade um misto de sensações: ansiedade, tristeza, frustração... E como podem ver, nenhuma delas era boa.
Lavei meu rosto com água abundante, passando a mão refrescante na nuca, e secando levemente com o papel disponível. Dei uns tapinhas na cara, e saí do banheiro, já indo ao caixa comprar o suco.
Pouco após ter me sentado à mesa, os meninos discutiam alguns arranjos das músicas autorais. Assim que terminei meu suco, e mais depressa do que gostaria, os motoristas começaram a anunciar o fim da parada, fazendo com que pouco a pouco voltássemos para os nossos ônibus. Dei um forte abraço em , que me surpreendeu com um beijo na ponta do nariz e um leve beliscar na cintura, enquanto mordia o lábio em meio à um sorriso endiabrado.
Só ele pra ser o mais humorado da turma mesmo.
Sorri ao ter esse pensamento, mas logo o sorriso foi embora quando cheguei no corredor do ônibus, ao notar já sentado em seu lugar.
Me arrastei novamente, pedindo à Deus e ao universo que essa viagem fosse rápida. Estava me sentindo sufocada diante daquela situação constrangedora.
Quando notou minha presença, repetiu os movimentos como da primeira vez, sem me encarar em nenhum momento. Apenas posicionou seu corpo levemente para o lado, possibilitando a minha passagem. Fiz o mais rápido que pude, e logo me sentei à procura de meu fone de ouvido; precisava me refugiar na música, e aproveitar que meu assento era o da janela. Quem sabe o sono chegaria novamente? Apesar de me sentir bem desperta, eu ansiava por essa possibilidade.
***
Não lembrava há quanto tempo estava na estrada, mas percebi algo que irritou profundamente: consegui a proeza de ouvir desde Metallica até Dashboard Confessional sem conseguir me prender em música nenhuma!
Isso era, definitivamente, estranho.
Desistindo da música, eu deixei que qualquer coisa tocasse apenas pra me ajudar a distrair, enquanto somava o som a qualquer outra coisa. Puxei meu celular e vi que a bateria dele não estava lá aquelas coisas. Suspirei ao pensar que não daria pra usar a internet e as redes sociais, se não acabaria com um celular morto e um silêncio mórbido até o fim da viagem.
Melhor música sem facebook e instagram do que stories e uma eternidade de atmosfera constrangedora ao lado do melhor amigo pelo qual ainda era apaixonada.
(Essa frase poderia ir para o Guiness Book como uma das mais inusitadas da história.)
Bufei novamente, e procurei ao redor alguma coisa pra fazer, até que avistei uma revista no encosto da poltrona à minha frente. Uma revista qualquer pra ler, quem sabe? Peguei o objeto e notei que as notícias estavam tão desatualizadas que ainda falavam em ipod e mp3.
Tudo bem, eu sobreviveria.
Pulei algumas páginas, passando por posters de duas páginas do lobinho do crepúsculo, até a parte de testes da revista. As letras garrafais do título me fizeram rolar os olhos.
"O que você realmente sente por ele? Descubra já se é só amizade, talvez ele seja o gatinho ideal pra você!"
Se Deus existia, ele era uma criança de dois anos babona, com coriza escorrendo pelo nariz, e a fralda totalmente cagada com um importante detalhe: o controle da minha vida estava dentro da fralda.
Bufei no exato momento em que ouvi uma tentativa falha de prender o riso.
Sem sequer calcular meus movimentos, virei a cabeça para encarar o dono da mesma, mas sua expressão era de alguém entediado mexendo no celular. Voltei à minha posição o mais rápido que pude, e senti a revista pesar uma tonelada em meu colo.
Enquanto a encarava, ficava matutando na minha mente o que acabara de acontecer. Não acreditava que estava bisbilhotando o que eu estava lendo, e muito menos ter rido daquilo!
Afinal de contas, riu por quê? O filha da mãe sabia que eu gostava de outra pessoa, mas estava com . Será que ele estava rindo da minha situação, pensando que eu estava dividida entre e meu “verdadeiro amor”?
Decidi resgatar a fonte da paciência nas profundezas do meu ser enquanto me convencia de que não falaria nem faria nada... Apenas encostei a cabeça na poltrona, posicionando-a levemente para trás e encarando a janela.
Deus, a criança de dois anos cagada, continuava obrando em cima do controle da minha vida.
Decidi dormir e forçar o sono, apesar do balanço do ônibus fazer a tarefa parecer impossível! Unindo a minha situação ao frio que o vidro transmitia, nem encostar a cabeça na janela e fingir sofrência enquanto ouvia “Clocks” do Coldplay eu poderia. Mas a teimosia era algo que estava no meu DNA, e eu insisti com força.
Quando estava já cochilando, senti um incômodo grande na boca do estômago.
Deus, a criança de dois anos cagada, operou seu mais novo cocô em cima do controle da minha vida.
Abri os olhos ao sentir minha barriga vibrar uma vez. Depois fez um pequeno barulhinho. Na terceira vez, ela roncou, como se tivesse uma vida ali dentro.
Me encolhi mais na poltrona, a fim de que aquele ronco não se transformasse em dor. Mas, obviamente, como aparentemente eu taquei pedra na cruz com chiclete, não só a dor na barriga, como a dor de cabeça avassaladora, daquelas de quando a gente tá a fim de comer um bode, chegou, me fazendo gemer um pouco. Fechei os olhos, pra controlar a fome e aguentar até chegarmos ao nosso destino. Fazia o que? Uma hora, uma hora e meia? Fui checar no celular, e para meu desagrado, apenas 50 minutos haviam se passado.
Bufei, xingando em voz baixa tudo e todos, me questionando porque eu nem sequer comprei um biscoito pra comer no ônibus. Fechei os olhos novamente, me sentindo idiota e me encolhendo na poltrona.
Eu estava decida à entrar em coma e dormir até que chegássemos, mas ao que tudo indicava, as coisas não estavam a fim de seguir meus planos... E eu descobriria que, pela primeira vez no dia, aquilo poderia ser algo bom.
Primeiro ouvi bufar.
Segundo, abri os olhos, arqueando uma sobrancelha.
Terceiro, minha visão foi preenchida por um embrulho em minha direção.
“O q-que é isso?” Eu forcei a falar, depois de ficar igual uma idiota encarando aquela coisa deliciosamente cheirosa envolvida por papel alumínio.
Ainda sem me encarar, apenas segurava o bendito embrulho com uma mão, enquanto mexia no celular. Muito tedioso, respondeu:
“Comida.”
“Oh, jura?” Falei, sem paciência. “Mas está me dando?” Perguntei mais pra mim do que pra ele, com a voz por um fio.
rolou os olhos e encarou o teto do ônibus.
“Dai-me forças, Pai...” Ele disse em voz baixa, numa aparente conversa com Deus, e eu cerrei os olhos. Ele me encarou com tédio na cara.
“É claro que é pra você, estou lhe oferecendo.” E senti a entonação rude em sua voz.
Aquilo me fez involuntariamente cruzar os braços e virar para a janela.
“Muito obrigada, mas passo.” Devolvi no mesmo timbre e pude ouvir suspirar.
“Sempre tão teimosa... Não muda nunca.” Eu sabia que, pela forma como falou, estava conversando mais consigo mesmo do que comigo.
Porém, era de mim que aquele troglodita falava! E eu franzi o cenho, voltando a encará-lo.
“Qual é o problema agora? Fala na minha cara!” Eu bradei, irritada.
Já estávamos naquela situação, somando ao fato de que eu sentia fome...
Podem declarar a terceira guerra mundial.
“O problema é que você é incrivelmente teimosa quando claramente está morrendo de fome e negando a porra de um hambúrguer de forno porque tem problemas comigo!” Ele devolveu, franzindo o cenho e falando baixo, porém definitivamente enfezado. Pisquei umas cinco vezes enquanto ele continuava sua fala.
“Eu só estou oferecendo a merda de uma comida. É só e apenas isto! Mas se é tão difícil, que fique com fome até que seu estômago comece a dialogar comigo.”
Fazia um bom tempo que não tínhamos uma conversa tão extensa, e eu estava muito irritada com tudo que ele havia dito.
Principalmente porque era verdade.
Inclusive a parte do estômago dialogar.
E durante todo o tempo, sustentei seu olhar, que simplesmente desistiu daquele meu silêncio e assim, virou o rosto para frente.
Quando se moveu para guardar o hambúrguer, eu segurei seu braço.
Aquela era a primeira vez que nos tocávamos desde o abraço.
Minha mão tremeu um pouco, mas não desisti do leve aperto no pulso de , que me olhou surpreso. Suspirei, sem olhá-lo diretamente nos olhos.Tomei coragem, bufei, e ergui levemente a cabeça, fazendo contato visual.
“Você disse hambúrguer de forno?”
ficou me encarando por um longo tempo, e eu quase me arrependi de ter feito aquele comentário infame. Mas como luz no fim do túnel, ele suavizou a cara, olhou para o embrulho de alumínio e acenou com a cabeça, abrindo um sorriso mínimo no canto do rosto – o que significava muito, acredite.
“É. Com cheddar.”
Meu estômago roncou de novo, e eu o encarei com a cara completamente vermelha, enquanto ele comprimia uma risada. Em meio ao meu sorriso sem graça, eu pensava que tinha razão.
Eu estava sendo apenas teimosa por ter problemas pendentes com ele.
Ou seja, se fosse apenas e exclusivamente tratar da minha fome, não teria problema algum, não é?
“Me desculpe.” Eu respondi, ainda segurando seu braço.
Ele me encarou surpreso, deixando esvair qualquer rastro de sorriso ou graça em seu rosto.
Sei que era meio chocante ouvir o que eu acabara de dizer, mas não era como se fosse a coisa mais difícil do mundo.
Apenas se tratava do fato de que, historicamente, era mais teimoso que eu, e volta e meia, ele era quem pisava na bola, sendo a pessoa a pedir desculpas mais vezes em nossa amizade. Mas aquilo fazia tempo, bem como eu recitar perdões depois de tudo que aconteceu entre nós.
Percebi que ele olhou para minha mão agarrada a seu pulso, e engoliu a seco. Eu entendi aquilo como algo incômodo, e larguei na hora, retesando-a em meu colo, me sentindo estranhamente tímida e indevida.
"Come logo isso...” Ele sussurrou, colocando o hamburguer nas minhas mãos, se virando pra frente e visivelmente acuado.
A verdade era que estava preocupado e atento, sabendo da minha fome mesmo que eu não tenha feito nada para demonstrá-la.
E isso era foda, porque significava que me conhecia tão bem, que não precisávamos anunciar certas coisas. Fome era uma delas! E pelo visto, por mais que estivéssemos afastados, aquilo não mudara.
No fundo de minha mente, eu me perguntava o que ainda permanecia intacto e o que de fato mudara pra sempre.
"Obrigada... ." Falei, enquanto abria o embrulho sobre meu colo, vendo dar de ombros menear a cabeça, mexendo as pernas inquietamente.
"Como...?" Eu indaguei, curiosa demais para o meu próprio bem. virou o rosto em minha direção, prestando atenção em mim.
Era a primeira vez que ele me olhava nos olhos, depois de muito tempo, sem que estivéssemos afrontando um ao outro. E acredite, a falta de costume de não ver aqueles olhos há tempos, naquela atmosfera, me fez querer fazer coisas que tecnicamente só seriam permitidas se ele fosse o .
Ou eu fosse Lis.
"Como o quê?" Ele perguntou, se referindo ao que eu tinha 'balbuciado', antes de entrar em transe.
"Como você sabia que eu...?" Tentei concluir, mas ele riu sem humor, enquanto já respondia à questão que eu nem havia terminado.
"Por favor, . Sua barriga estava parecendo uma guitarra distorcida. Ela não é tão discreta quanto seu rosto tenta parecer."
Eu não sabia se era a euforia de ouvir aquela voz de um jeito descontraído.
Eu não sabia se era a ansiedade para comer o hambúrguer.
Eu não sabia se era porque ainda reparava em meu rosto.
Só sei que, de um pequeno sorriso, iniciou-se uma pequena risada, e, quando dei por mim, estava às gargalhadas, com aquela piada infame de . Fucking. .
Aquilo era felicidade, dor, frustração ou paixão em formas de risada? Quem sabia a verdadeira resposta pra aquilo? E quem ligava?
Qual não foi a minha surpresa quando percebi que não era só eu que estava rindo, mas sim, ninguém mais ninguém menos do que ele!
Sim, estava rindo comigo!
Aquilo parecia tão improvável quanto tudo ficar bem entre nós novamente.
Mas eu não foquei naquilo; apenas me permiti sentir feliz quando vivenciei um momento tão nostálgico.
Deus, como eu sentia falta daquilo!
O simples ato de rir com o fazia a vida parecer mais fácil, mais gostosa. E eu não sabia o tamanho da falta que me fazia, até de fato tê-lo de volta – mesmo que por alguns míseros minutos.
Ficamos nos olhando enquanto ríamos, vez ou outra, pegando ar pra rir mais.
Fomos aos poucos parando de rir, ainda nos encarando... tinha um brilho indecifrável no olhar, e eu poderia jurar que era alegria, como eu me sentia. Estávamos sorrindo de forma boba e infantil, um para o outro, quando senti meu celular vibrar.
"Mas, o que...?" Eu falei, puxando o aparelho do bolso.
Era uma mensagem de .
"Life without you baby just don't know where I would be.
(L)."
Minha primeira reação ao ler a mensagem, foi abrir um sorriso singelo. Mas daí, eu comecei a refletir, fazendo meu sorriso se desmanchar. Eu fiquei olhando para o visor, tentando entender a que ponto eu havia chegado – estando com um, gostando de outro. Sendo que os dois interagiam como companheiros de banda.
E agora, eu me via naquela situação, recebendo mensagem do meu pseudo namorado, usando a letra da música que eu fiz com o cara que eu realmente gosto. E a letra fazia parte de umas escritas autorais que fiz há anos atrás, quando gostava do meu pseudo namorado, que na época era só um garoto que não estava a fim de mim como eu estava na dele.
Putaquepariu, três mil vezes.
Nem novela mexicana tinha tanto plot twist.
Com calma, respondi qualquer coisa adorável e à altura, e logo bloqueei a tela do celular. Engoli à seco, sorrindo amarelo para e desfazendo o embrulho que encobria o hambúrguer por inteiro.
Eu não precisei dizer nada.
Não sei se leu a mensagem – estávamos próximos o suficiente para ele ver que eu falava com . Mas ele simplesmente deu um rápido e forçado sorriso, respirou fundo, se virou para frente e colocou os fones no ouvido, deixando-me de lado com o lanche que me dera.
“Bom apetite.” Ele comentou, antes de dar play em sua música e fechar os olhos, tentando dormir.
A entonação da sua voz continha algo pesado, diferente de momentos antes. Poderia ser só minha impressão, mas isso não impediu que eu suspirasse, apenas agradecendo com a cabeça.
Curiosamente, percebi que enquanto ria com (e sentia que aquilo era uma das coisas mais naturais e boas que eu vivenciava na vida), não queria pensar na nossa real situação, queria apenas vivenciar aquele maravilhoso e simples momento.
Ironicamente, significava que eu estava seguindo os conselhos de , sobre viver o presente, carpe diem, porém... com .
Aquele pensamento me fez ter voltas na boca do estômago, e nada tinha a ver com fome.
Coloquei o hambúrguer na boca, senti seu gosto.
Apesar do cheiro e do sabor delicioso, era fato: o gosto amargo não tinha nada a ver com o lanche.
Aquela seria uma longa viagem...
Mas ele não me ouvia.
Comecei a falar mais alto, e a acelerar minha caminhada, mas mesmo assim, sem sucesso algum. Levou-se apenas um segundo para que meu andar se tornasse um correr. E levou mais outro segundo para que eu começasse a gritar seu nome, a chamá-lo com todas as forças do meu íntimo.
E ele não me ouvia.
Seguia caminhando no mesmo ritmo, e eu nunca o alcançava. O desespero começou a tomar conta de mim, e correndo mais do que nunca, tropecei e caí no chão, com força. As lágrimas já caíam do meu rosto, enquanto eu erguia minha mão numa tentativa frustrada de fazê-lo virar-se e voltar até onde eu estava; um pedido mudo de que não me deixasse sozinha nunca.
Cansada, exaurida, senti meus olhos pesarem com a escuridão que se tornava cada vez maior sobre mim. Observei o foco de luz que o acompanhava, se distanciar rapidamente, e o bolo na garganta tornou-se real.
Num suspiro, chamei seu nome uma última vez, vendo que minhas forças estavam se esgotando. Mas antes que meus olhos se fechassem por completo, a silhueta à frente parou, e, olhando por cima dos ombros em minha direção, ele falou: "?"
E foi aí que eu acordei. Chorando.
Respirando com dificuldade, passei a mão na minha testa e senti o suor nela. Não sei quanto tempo demorei pra perceber que eu tinha tido um pesadelo. Ou melhor, o pesadelo. Já era a quinta vez em três meses que eu tinha sonhado com aquela droga de cena, que só se repetia na minha cabeça.
Três meses. Pois é. Faziam três meses que eu tinha aquele sonho ruim, com se afastando de mim, e por mais que eu tentasse acompanhá-lo, nunca o alcançava...
Faziam três meses que eu não falava com . E devo admitir que são longos e dolorosos três meses. A dor não passou, porém aprendi a conviver com ela, sentindo cada pequena partícula do meu corpo pulsar toda vez que eu passava por ele, e tratava-o como um mero conhecido.
Sentir sua ausência era terrível. Junto a isso, às vezes eu sentia seu olhar sobre mim, como se quisesse que eu o encarasse de volta, mas eu só conseguia olhar pra qualquer canto que não fosse ele. Tudo isso era esmagador, pesado demais.
Os garotos da banda me diziam pra relevar as ações do meu (antigo?) melhor amigo, e eu apenas negava cegamente, confiante de que tudo de alguma forma desencadearia em algo bom – ou pelo menos melhor do que a situação que nos encontrávamos.
Mas o tratamento entre e eu estava tão fora do eixo que até conversou comigo sobre isso, achando que era melhor simplesmente fazer as pazes com o . Apesar de sua iniciativa, minha resposta foi negativa. Me negava a voltar àquele ciclo vicioso de pazes, brigas, lágrimas...
E percebi que, depois de persistir nessa mudança em nossa relação, o foco passou a ser a banda dos rapazes. Nestes últimos tempos, poucos foram os dias que não ensaiaram ou deram tudo de si, tanto nos covers quanto em músicas autorais.
Particularmente, eu estava grata por isso. Além de ficar feliz pela evolução da McFy, isso de alguma forma significava que, mesmo com as questões entre eu, e talvez , aquilo não atrapalhava a banda e sua capacidade de brilhar cada vez mais.
O empenho dos rapazes foi tanto que chamou a atenção de ninguém mais ninguém menos do que o pai de Elise, que curiosamente trabalhava numa produtora e demonstrou interesse em auxiliar a banda com o que precisasse.
A galera não coube em si, é claro. E eu também não poderia ficar mais feliz por aquilo, porque era mais uma oportunidade da banda expandir seu potencial, e de por conseguinte, tornar os sonhos realidade.
E durante esses meses, os meninos realizaram pequenos shows pela cidade, com ajuda e produção do pai de Elise. Ele era uma pessoa legal, se prontificava a ouvir os arranjos dos meninos, sugeria mudanças, trocava ideias e performances com os rapazes, e sempre que podia, estava presente nos shows. Estes, por sua vez, não eram lá os mais lotados, mas era notável que aos poucos, a McFly construía seu próprio e fiel público – pequeno na quantidade, gigante na presença.
A galera da escola dava maior apoio, principalmente depois do primeiro show que os meninos fizeram naquela fatídica festa. E apesar de todos os pesares, não poderíamos negar a felicidade que cada pequeno detalhe trazia consigo.
Mesmo que no fundo, eu achasse muito curioso que logo o pai de Elise fosse o cara a ajudar na produção do McFly. Mas a vida se encarrega de jogar na nossa cara certas verdades, e bem... A curiosidade durou pouco tempo, é claro. O universo não me deixaria sem um retorno – afinal de contas, por que um adulto alheio como Sr. Reagan ajudaria uma banda de meninos?
A resposta veio em um desses últimos shows da banda; depois que os meninos saíram do palco e entraram no camarim improvisado, chamou a atenção de todos que lá estavam reunidos, com uma feição animada.
E quando me toquei do que estava acontecendo, senti levemente o chão sair de meus pés.
A cena se passou como câmera lenta pra mim.
O braço de erguido com um copo de cerveja.
A mão direita apertando a cintura de Lis.
Os sorrisos de ambos.
Os lábios de anunciando o seu namoro com Elise.
E o nada.
O ambiente perdeu som, e eu só via imagens.
Por fora, eu sabia que estava sem reação. Por dentro, em muitas partes o coração partiu, com a dor da certeza do que sempre fora uma desconfiança pra mim...
Ele gostava dela, de verdade... E não de mim.
Naquele momento, veio à mente a conversa que tivemos em minha varanda, quando ele assumiu que gostava de alguém que talvez não gostasse dele, mas que ele esperaria o tempo que fosse.
Eu ri de forma zombeteira daquilo. Porque não teve que esperar tanto tempo assim, não é mesmo?
Enquanto ele estava recebendo os parabéns dos amigos, eu me perguntava se eu estava feliz por ele. E fiquei um pouco melhor ao perceber que uma parte de mim estava feliz por isso. Mesmo que a outra parte estivesse se contraindo em posição fetal suplicando para que arrancassem aquele sentimento de mim.
apertou minha mão, e me tirou do transe. Eu a encarei, forçando um sorriso.
Ela sabia que dentro de mim estava um caos.
Respirei fundo, controlei o tremor e o nó na garganta. Foi fácil? Nem um pouco.
Mas a força e a perseverança já eram amigas de longa data, e lá estava eu, caminhando lado a lado delas.
O que não significa que tenha sido fácil abraçar a Lis, desejando tudo de bom para o relacionamento dela com o cara que eu ainda amava. Foi punk. E um tanto estranho! Mas mais estranho foi sentir que, eu não fui falsa, nem mentirosa ou algo do tipo.
Não digo que eu não queria estar no lugar dela, pois seria a maior blasfêmia que já poderia ter contado na vida. Mas, se o relacionamento deles desse certo, e se proporcionasse felicidade à , já estava de bom tamanho pra mim.
Assim que saí do abraço de Elise, dei de cara com ele, que saía do abraço de .
Nossos olhares se conectaram, e eu vi uma imagem em sincronia: seu sorriso desmanchando ao me ver, ao mesmo tempo que eu me via em seus olhos, fazendo a mesmíssima coisa.
Não tínhamos um contato mais íntimo desde aquela noite na qual ele me deixou só, com um monte de questionamentos sem respostas na cabeça.
E lá estávamos nós, boas semanas depois de tudo acontecer, se encarando de um jeito tão indecifrável que apenas o discreto empurrão de em mim, me despertou.
Porém, como eu estava distraída, o empurrão levou força demais (e queria acreditar cegamente que o movimento tinha sido mal calculado pela minha amiga), e eu acabei indo na direção de , quase dando de cara com seu peito. Se ele não tivesse me segurado firmemente pelos braços, logo acima de meus cotovelos, eu iria basicamente estrebuchar minha cara em si.
Nos encaramos novamente, e eu balbuciei algumas sílabas antes de criar coragem para quebrar o silêncio.
“M-Me desculpe por isso.” Eu comentei, endireitando minha postura e mordendo rapidamente o canto da boca. Tomei fôlego e vesti meu melhor sorriso. “Parabéns, . Fico feliz por vocês.”
Acho que nunca havia dito palavras que soassem tão agridoces na minha boca. Uma parte de mim sentia o almoço querendo voltar ao pronunciá-las. A outra se aquecia minimamente com a ideia de que ele estava bem, feliz. E aquilo era uma porra louca do caralho, me desculpe o termo. Mas eu não saberia descrever de outra forma a dimensão dos sentimentos...
Quando percebi que ele não havia dito nada, senti meu sorriso novamente se esvaindo, sem quebrar o contato visual. Ele suspirou fundo, me encarando daquele jeito que eu não conseguia entender.
Não disse nada, mas suas mãos seguiam me segurando nos braços. E eu sentia o local ferver; já não sentia seu toque, por mínimo que seja, há algum tempo. Aquilo me causava estranheza, ansiedade, e um pouco de euforia.
Enquanto pensava em tudo isso, senti seus dedos escorregarem de meus braços para as minhas costas, e quando dei por mim, meu rosto estava de encontro ao seu suéter azul marinho.
Puta merda... o cheiro. Sem condições nenhuma para lidar com o cheiro de . E quando digo cheiro, não é perfume, nem fragrância: é o cheiro da pessoa, aquela essência que exala da pele macia que entrava em contato com a minha cara quando nos abraçávamos.
Exatamente como naquele momento. Dei a má sorte de encontrar apenas a superfície têxtil do suéter, e ri comigo mesma que até nos momentos mais delicados a desgraça fazia questão de tirar uma com a minha cara.
Porque nem ter aquela doce sensação eu poderia ter.
Não teve jeito; eu o abracei de volta, ainda insegura, mas o abracei sim. Senti até as pontas dos meus dedos pressionarem suas costas, e ambos sabíamos que a saudade estava latente ali, naquele encontro, naquele simples abraço... Porque senti seus braços se apertarem ao meu redor.
Eu cheguei a fechar os olhos, e não sabia o que se passava, mas já não importava...
Não naquele momento, não ali, onde tudo, de alguma forma, parecia estar de volta ao lugar.
Mas infelizmente, era apenas um lapso do espaçotempo; abri meus olhos com uma sobriedade invejável, deixei as mãos pouco a pouco escorregarem das costas de , e senti o torso dele se enrijecer, logo repetindo meus movimentos.
E assim, nosso abraço estava findado, e um sorriso amarelo jazia em meus lábios; já , seguia sem falar ou esboçar nada. Apenas me encarava, daquela mesma e intrigante maneira de antes.
Lis chegou e agarrou o braço de , comentando alguma coisa em seu ouvido, o que fez seus olhos saírem de mim e encará-la com um sorriso forçado. Eu suspirei e admiti internamente minha derrota, me retirando do lugar e encaminhando para perto de , fingindo ver alguma notificação no celular – quando na verdade estava apenas tentando engolir o pranto preso na garganta, sem muito sucesso.
Me forcei a sair do celular, e fui ao encontro de , que me recebeu com um abraço de lado.
E se a vida pudesse ser mais ambígua... Ao tempo que relutava com o aperto no peito por ver e Elise oficialmente juntos, havia uma pequena alegria pairando logo ao meu lado.
Porque felizmente, existia .
Por um lado, , com quem nunca mais tive proximidade após aquele nostálgico abraço. Do outro, , com quem eu nunca pensei estar construindo uma relação como a atual.
, quem teoricamente era e não era meu namorado. Não havíamos assumido nada, mas agíamos como tal.
, que não questionava mais do que o necessário, e respeitava meus momentos.
, que sabia que eu não gostava dele como gostava de , mas persistia em ser o melhor cara com quem já havia me relacionado (ainda que isso não fosse muito difícil diante da quantidade de pessoas com quem me relacionei na vida).
De toda forma, na ambiguidade da alegria e da tristeza, uma das poucas certezas diárias era a tal da ansiedade. Toda noite eu suplicava ao universo para deixar de amar daquele jeito, e nutrir sentimentos por . As coisas seriam tão mais fáceis, não é mesmo?
E sempre que eu pensava sobre isso, meu interior ficava agitado. Afinal de contas, me sentia uma escrota, como se tivesse usando-o para esquecer .
Mas toda vez que esse pensamento me vinha à mente, ou toda vez que tentava conversar isso com , lá estava apenas sendo ele mesmo, falando coisas aleatórias, me fazendo rir e me dizendo pra simplesmente viver, para ser mais leve e lidar apenas com o momento.
E eu tentava, mas nunca ficaria tranquila como ele aparentava estar. Quer dizer, ao contrário de mim, supostamente não via problema nenhum na forma com qual (não) rotulávamos nosso relacionamento. Parecia que ele não tinha pressa em me esperar, e por isso eu era profundamente grata.
Apesar de todo sofrimento, eu não poderia negar: era a contrapartida que me fazia sorrir e me sentir mais tranquila. Ele conseguia arrancar risadas, momentos de pura alegria e de fato, me fazer enxergar as coisas por outros pontos de vistas, mil vezes menos pesadas, diferente de como eu levava a vida.
Além, claro, de me proporcionar experiências de casal que eu não tinha ainda vivenciado.
E sim, eu ainda era virgem.
Porém, com mais noções e descobertas que uma pessoa da minha idade teria.
Este era um ponto também inegável: a pegação com era ótima. Nossos beijos encaixavam, e cada vez mais nossos corpos sentiam-se à vontade no toque um do outro, como se reconhecessem na familiaridade das carícias.
E aquilo era bom, legal, me fazia vibrar e principalmente; me fazia sentir que finalmente estava vivenciando algo memorável, como mulher. Uma mulher que era desejada. Situação esta que, visivelmente, nunca vivenciaria com . Meus pensamentos sobre minhas experiências foram abruptamente cortados quando meu celular decidiu vibrar insistentemente.
Oh, era isso mesmo. Eu havia tido de novo o pesadelo dos pesadelos, e acordei momentos antes do despertador tocar. Peguei o aparelho à contragosto, vendo que ainda eram seis horas, mas mesmo assim eu deveria acordar.
Me lembrei do porquê quando li no visor do celular "Passeio da Escola."
Desliguei o alarme e afundei meu rosto no travesseiro por alguns instantes.
Passeio de férias do fim do ano. Da escola.
Significava: eu, , , Doug e... . Durante uma semana, completamente absortos numa rotina totalmente nova.
Eu me perguntava o que me esperava naquilo tudo.
"Aqui tem o meu celular, o telefone de casa, telefone da casa da avó dela, dos tios... Oh, e aqui está o telefone dos padrinhos também! E se não conseguir contato com nenhum deles, há Beth, nossa querida vizinha que adora a minha filha, além de que..."
"Mãe!" Interrompi minha mãe, enquanto ela apontava todos os contatos existentes para o professor de educação física, que no caso, era um dos docentes que viajaria conosco.
"Eu acho que o professor já entendeu que há mais de uma pessoa pra quem ele possa ligar em caso de acidente ou qualquer coisa do tipo."
"Óh!" Ela exclamou, levando a mão a boca, dando um sorrisinho envergonhado. "Perdão, professor. Acho que me exaltei. Bom, acho que é só isso. Vocês já estão partindo agora?"
"Os alunos já estão formando fila pra entrarem nos ônibus, então essa seria a hora apropriada para uma despedida." O professor explicou, educadamente.
"Despedida não!" Minha mãe arregalou os olhos, colocando a mão no coração. "Apenas um 'até logo'. Não me assuste, professor." Ela pediu, e eu jurava que tinha visto o homem abafar uma risada com uma tosse, apenas consentindo respeitavelmente.
"Mãe, vamos logo com isso." Pedi, enquanto o meu professor pedia licença.
"Ai, meu docinho, minha prole querida, meu filhote de bicho preguiça, meu potrinho..." Mamãe enumerava apelidos "carinhosos" enquanto me abraçava (lê-se: quebrava minhas costelas) maternalmente.
"Eu também vou sentir sua falta, mãe. Mas só vai ser uma semana, relaxe." Falei, enquanto retribuía seu abraço, de uma maneira muito menos esmagadora.
“Como consegue ser tão fria?” Ela comentou, enxugando uma lágrima no canto do olho.
“Mas que drama!” Reclamei, enquanto limpava outra lágrima teimosa caindo do seu olho esquerdo.
"Como se eu pudesse controlar isso! Você só vai entender quando for mãe, não adianta discutir isso no momento! Agora pare de falar e me dê mais um outro abraço e diz que você ama a mamãe." Ela demandou, e eu fiz uma careta enquanto reclamava.
"Ah, mãe! Eu não..."
"Se não fizer, você ficará sem internet nas férias."
"Cara, eu vou sentir tanto a sua falta!" Falei, enquanto a abraçava apertado.
E nós rimos, em uníssono. Ela segurou meu rosto em suas mãos, me olhou e perguntou:
"E você, está bem?"
"Sim." Mentira.
"Tem certeza?" E ela sabia.
"Acho que sim." Respondi, incerta do que dizer. Ela me olhou com os olhos cerrados.
"Pesadelo outra vez?" Por que mães podem ser tão... mães?
"Talvez." Sussurrei, encarando meu tênis.
"?" Ela questionou, e eu só assenti com a cabeça, ainda não encarando-a nos olhos. Ela sabia do pesadelo, e sabia toda vez que ele se repetira nos últimos e insuportáveis meses.
"Eu não sei como, mas vocês têm de se resolver logo. Isso não está fazendo bem a você, e, pelo que eu ouvi, não é diferente com o ." Ela comentou, fazendo uma feição séria.
"Como assim?” Meu coração deu um pulo quando ouvi o nome soar pelos lábios de minha mãe.
Ela suspirou, antes de continuar.
“Encontrei com a mãe de e ela me disse que o menino não parece muito bem. Deu uma emagrecida e o sono está desregulado, pelo que ela consegue notar... E além disso...” Minha mãe me encarou, com uma sobrancelha erguida. “A Sra. me perguntou porque você não aparece mais lá.”
“E o que você respondeu?” Perguntei, exasperada.
“Disse que tem estado ocupada com os estudos e o namoro.” Deu de ombros, suspirando novamente.
“Eu não namoro, mãe...” Bufei, coçando a nuca.
“Você sabe que sim. Pode não ser de um jeito mega romântico, mas você tem algo, né querida?”
Minha vez de mexer os ombros, sem muita saída. Senti minhas bochechas quentes, e poderia confirmar que elas estavam coradas.
“Bem, é isso. Vocês têm que se resolver.”
"Não há nada que eu possa fazer. Você, mais do que ninguém, sabe o quanto eu tentei manter a nossa amizade." Comentei, sentindo meu semblante deprimir levemente enquanto explicava à minha mãe.
"Eu sei, filha, e como sei. Mas é só... Uma amizade tão linda como a de vocês não nasce de um dia para o outro. E também não caba tão facilmente..."
"Não acabou, mãe. É só um tempo que precisamos. Vai tudo dar certo no final." Nem eu acreditava nas minhas próprias palavras, mas eu precisava repetí-las até que isso acontecesse.
"Tudo bem, então... Se cuide, eu te amo, e qualquer coisa vou correndo até você. É só me gritar, entendeu?” Ela falou, me abraçando ternamente pela última vez, e eu retribuí suas ações.
"Pode deixar, mãe, vai ficar tudo bem. Se cuide também. Eu te amo."
" ?" O professor me chamou, e eu peguei minha mala, dando um último beijo no rosto da progenitora, correndo para a fila.
"Tchau, mãe!" Gritei rapidamente, recebendo um 'Até logo, potrinho!' como resposta, antes de chegar à fila, arfando.
"Presente."
"Até que enfim." Ouvi a voz de soar atrás de mim.
"Hey, !" Exclamei, enquanto a abraçava entusiasmada. “Tá tudo bem?” Perguntei vendo a cara de puta de .
Ela bufou em direção à , que a olhava com cara de gatinho do Shrek.
"!” O professor berrou, fazendo com que nos encolhêssemos com a potência da voz. “, poltrona 48, ao lado desta jovem aqui.” E apontou para uma menina de cabelos cacheados e ruivos.
Minha amiga me olhou, respirou fundo e rolou os olhos.
“Depois conversamos.” E entrou em disparada no ônibus.
Franzi a testa e arqueei a sobrancelha, automaticamente me virando para olhar e Doug.
“É seguro perguntar o que aconteceu?” Indaguei, num fio de voz.
choramingou, batendo na testa várias vezes.
“Eu esqueci a porra do nosso aniversário de namoro. Dois meses, cara! Dois meses! Como eu pude ser tão esquecido com apenas dois meses?”
“Eita, é hoje?” Perguntei, fazendo uma careta. Aquela coisa de datas era realmente importante para .
apenas confirmou com a cabeça, bufando.
“E o pior é que vim aqui desejar um bom passeio pra ela... E ela achou que eu estava aqui por causa da data... Argh! Como eu sou idiota!” E bateu na própria testa, visivelmente frustrado.
"Calma, , vai tudo dar certo. É só você planejar uma coisa bem legal no retorno do passeio. Vai ficar tudo bem, não esquenta.” Respondi, fazendo uma careta. só respirou fundo e afirmou com a cabeça, enquanto Doug dava tapinhas encorajadores nas costas do amigo.
"Cheguei a tempo?" A voz de soou atrás de mim, e, no momento seguinte, me virei sorridente para respondê-lo.
"Chegou antes do ônibus partir, né moço? O que aconteceu? Sonhou demais comigo?" Perguntei, me sentindo total poderosa.
"Oh, e como... Altas homenagens." Ele falou apenas pra mim, escondendo a risada por detrás da sua falsa tosse, e eu fiquei enrubescida.
Ele riu mais ainda da minha cara, e me puxou pra um abraço apertado, dando um selinho logo em seguida.
"Oi pra você também." Eu cumprimentei, sorridente.
" ?" O professor chamou, e eu dei um tapa nele, pra que ele corresse até o ônibus.
"Sim?" Ele respondeu ao superior.
"Você é o 49, junto com Luke Stevens, 50. Ok, este ônibus está completo. Vamos para o próximo."
Me despedi com um aceno e olhar meio triste para , que lançou um beijo no ar, seguido de uma piscadela e sua entrada no transporte.
"Ok, continuando a contagem...” O professor falou, absorto na prancheta que tinha em mãos.
"Antes tarde do que nunca, né Bela Adormecida?" Ouvi a voz de Doug soar bem zombeteira, enquanto meu coração dava um leve sobressalto ao ver a imagem de chegando até nós.
"Acordei atrasado, noite ruim de sono..." Foi a vez da voz de invadir o ambiente, e, por mais que a minha vontade fosse cumprimenta-lo como eu teria feito se ainda estivéssemos nos falando, só continuei a fingir que ouvia atentamente o que o professor dizia.
Apertei a minha mão ao redor da alça da minha mala, tentando ficar numa boa e espantando a conversa que tive com minha mãe há momentos atrás. Mas estava parecendo uma missão impossível! As palavras ecoavam na minha mente, e eu apenas tentava manter o bem-estar.
"O importante é que você está aqui. Relaxa." disse, mesmo com a feição um pouco triste com seus próprios problemas.
"Doug , com Mary Smith.” E Doug sorriu para nós sem mostrar os dentes, acenando.
“Até mais, cara.” Ele disse, dando uns tapinhas no ombro de . “Fique bem, ok? Vai dar tudo certo.”
apenas meneou a cabeça, dando um sorriso amarelo.
“O que houve?” perguntou, com a sobrancelha arqueada. suspirou.
“Esqueci o aniversário de namoro... Sou um imbecil.” E rolou os olhos, colocando as mãos no bolso.
“Calma, não é o fim do mundo.” Percebi que falei mais rápido do que pensei, e lá estava eu me metendo numa conversa entre ele e , que me olhou brevemente, sem nenhuma expressão específica no rosto. Mesmo assim, ignorei seu olhar e foquei em , com um sorriso esperançoso. “Vou conversar com ela. Provavelmente deve estar chateada no momento... Mas nada que não tenha jeito. Tempo é tudo.”
sorriu pra mim, fazendo uma cara de dor.
“Espero que você esteja certa. Gosto mesmo dela...” E mirou o ônibus pelo qual entrou.
Mais alguns minutos depois, e o professor chamou a pessoa ao meu lado. Olhei ao redor e percebi que não havia ninguém mais na fila além de nós. O coração palpitou com essa constatação.
"!"
"Presente." Ele respondeu, dando dois pequenos passos na direção do professor, ficando exatamente na minha frente.
"Era pra você estar no primeiro ônibus, mas como você só apareceu agora, vai neste mesmo. , 89... E seu acompanhante é... , , 90. Lado esquerdo, uma das últimas fileiras. Podem seguir." O QUÊ?
Eu havia ouvido perfeitamente, mas não acreditei de primeira. O coração acelerou mais ainda, e eu respirei com dificuldade. Isso só poderia ser a maldita Lei de Murphy!
“Perdão, professor. Você disse e ?” Ele indagou, e eu pude sentir sua voz tremer levemente. E mesmo estando de costas para mim, eu tinha certeza que seus olhos estavam levemente arregalados e uma das sobrancelhas arqueadas, apenas pela maneira como falou. Pois essa era sempre sua expressão de desconfiança e incredulidade.
“Sim. Sr. . Algum problema?” O professor indagou, franzindo o cenho. apenas negou rapidamente com a cabeça, ajeitando a mochila nas costas.
Silêncio constrangedor detected.
“Eu vou indo, pessoal. Boa viagem e a gente se fala.” comentou, olhando de uma forma estranha para . Eu apenas franzi o cenho, tentando entender o que aquilo queria dizer.
“Certo, até mais!” respondeu e acenou de volta, e antes de entrar no ônibus, deu uma breve olhada pra trás, mas não chegou a olhar pra mim, muito menos nos meus olhos. Parecia que tinha desistido no meio do caminho, e simplesmente entrou no transporte.
Suspirei profundamente e encarei , que me deu um sorriso forçado.
“Você está mais estranho do que de costume.” Disse, arqueando a sobrancelha.
“Estou tentando dizer que isso também vai passar.” riu levemente, apontando pra mim e pro lugar que ocupava antes de subir no ônibus.
Eu apenas respirei fundo, dando de ombros. Não havia muito o que ser dito.
“Veremos, né?” Sorri sem mostrar os dentes e ele suspirou com a cara confusa.
“Isso tá ficando difícil pra vocês, ...” Ele comentou, e eu rolei os olhos.
“Já é a segunda vez que escuto isso hoje, e não são nem dez da manhã, !” Respondi com certa irritação e ele ergueu os braços em defesa.
“Eu não estou dizendo que é sua responsabilidade! Só estou constatando o óbvio: vocês estão sofrendo com isso!”
“E você acha que eu não sei?” Perguntei com a voz levemente falha, sentindo um aperto no peito. sorriu de maneira triste e me puxou para um abraço, no qua aceitei de bom grado.
“Desculpe, não quis dizer que você deveria fazer algo. Sei que é difícil às vezes.”
“Às vezes, vulgo quase sempre!” Resmunguei, e riu levemente, enquanto segurava meus ombros com gentileza.
“Uma hora as coisas vão se ajeitar. Não acho justo vocês sofrerem, mas não tenho dúvidas de que esse tempo está trazendo muita coisa que serve de aprendizado, não é?” Eu concordei levemente, e sorri de forma amena.
“Vai ficar tudo bem, . Afinal de contas, é você e . Não deixe de acreditar nisso... Ele com certeza não deixou.”
Eu fiquei encarando com os olhos marejados, um tanto confusa sobre a última parte da fala. Como ele poderia afirmar com tanta segurança?
“Senhorita , estamos só aguardando você!” O Professor disse ao lado da porta do ônibus, com um sorriso colgate.
Suspirei e encarei com a face mais alegre, sentindo um aconchego por dentro ao ouvir suas palavras. O abracei levemente, e agradeci a ajuda, me despedindo e entrando no ônibus logo em seguida.
Coloquei meus pés no corredor e me arrastei da forma mais lerda que pude, adiando o momento em que precisaria lidar com . Cada passo que dava, era uma pirueta que meu estômago dava.
Quando cheguei perto o suficiente, vi sentado no seu lugar, colocando os fones de ouvido.
Estava visivelmente me evitando, e apesar de uma parte de mim estar agradecida por ele ter mantido sua promessa de não insistir em nossa aproximação por algum tempo, a maior parte de mim estava bem incomodada com todo aquele silêncio e ausência de expressão.
Mas eu havia solicitado aquilo com todas as letras e palavras, certo? Então basicamente, teria que enfiar meu incômodo num lugar que o sol não bate, e seguir fazendo a egípcia... Fingindo plenitude.
Meus pensamentos tornaram-se nada quando finalmente alcancei minha poltrona, e apenas se virou para o lado, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
E eu, apenas uma estranha sentando-se ao lado dele.
Coloquei minha mochila no bagageiro e sentei naquela poltrona fria, dando de cara para a janela.
"Bom dia." Eu quase sussurrei, de tão baixo que falei. Porém, como não havia nada acontecendo, pode ouvir-me com nitidez.
"Bom dia." Respondeu, parecendo desconfortável, olhando para o celular. Mirando disfarçadamente seu rosto, percebi que seu maxilar estava levemente tensionado. Suspirei, encarando a janela. Pra que eu fui tentar diálogo mesmo?
Com a cabeça encostada no vidro, poucos minutos depois o ônibus já estava em movimento, assim como meus pensamentos. E desse jeito, sem nem permitir virar um centímetro pro lado oposto, eu acabei adormecendo com aquele silêncio sepulcral.
... E o barulho ensurdecedor da minha própria mente, tentando me convencer de que o sono faria o tempo passar mais rápido.
"... ?" Ouvi uma voz me chamar, e, acordando assustada, vi o rosto de Doug me encarando. "Acorda, mulher! Primeira parada. Vamos descer numa lanchonete por vinte minutos. Vai querer comer alguma coisa, ou ir no banheiro, quem sabe?"
Olhei em volta e vi que o ônibus estava vazio. Cocei meu olho, e pegando minha mochila me levantei, respondendo ao meu amigo:
"Eu tô sem fome... quero beber alguma coisa, só.”
"Tem certeza?”
"Sim, eu não acho que eu vá sentir fome. Mesmo, mesmo." Respondi, sincera. "Ah, e obrigada por ter me acordado."
“Eu estava prestes a te socar pra poder te tirar do sono, ." Ele fez uma cara de tédio com um sorriso de lado e eu ri levemente.
“Ainda bem que você tem amor à vida, né?” Ajeitei meu cabelo e coloquei meu casaco, enquanto saíamos do ônibus, procurando pelos nossos amigos.
“A razão nas suas palavras é incontestável!” Doug respondeu, e nós rimos.
Quando chegamos à lanchonete, vimos , e sentados à uma mesa, perto da janela. Todos olharam em nossa direção, e eu percebi que nos olhou, sorriu sem vontade e me olhou em seguida.
Sim, me olhou!
Nos meus olhos.
Uns cinco segundos. E depois desviou, encarando seu suco por um tempo, enquanto balançava o copo. Logo depois, deu uma bela golada.
O olhar dele, sem emoção, estava mais frio do que o tempo nublado – e algo me dizia que entre um e outro, apenas ao inverno eu sobreviveria.
"Não se preocupe." Doug falou baixo, sem me olhar, com as mãos no bolso. “Apesar de não parecer, vai ficar tudo bem.” E me olhou, com um breve sorriso. “Eu creio nisso.” O encarei com um sorriso sem graça, apenas meneando a cabeça, completamente sem respostas.
Às vezes esquecia que aquele assunto – e eu – cada vez mais tornava-se perceptível ao resto da galera.
Mas o que eu poderia fazer sobre isso, não é mesmo?
Suspirei, preferindo não ligar mais do que o necessário para aquilo.
"Como foi a viagem de vocês, queridos amigos?" Doug perguntou enquanto sentava ao lado de , dando um breve peteleco em seu nariz. , por sua vez, apenas o encarou com mau humor, arrancando uma risadinha de Doug.
"Bem." Todos responderam, em uníssono.
"Ei, flor." me chamou, puxando uma cadeira ao seu lado, indicando o lugar para sentar.
"Tudo tranquilo na viagem?" Perguntei, depois de ter cumprimentando-o.
"Aham, tudo bem. Só achei chato você ficar em outro ônibus..."
"É... bem chato." Assim que eu falei, se levantou da mesa indo em direção ao banheiro, saindo do meu campo de vista.
"Mas logo a gente chega." Respondi, ainda olhando para o caminho que tomou, me sentindo um pouco aérea.
Rapidamente, me virei para , que me encarava com um pequeno sorriso, e eu me chutei internamente por ter dado tanto na pinta que estava reparando nas ações de .
Sorri abertamente para , me virando para ele.
“Quer alguma coisa? Acho que vou pegar um suco de laranja.”
Ele fez que não com a cabeça, ainda sorrindo sem mostrar os dentes.
“Quer que eu vá com você?” Ele indagou após alguns segundos.
“Não, eu vou de boa. Já volto.” E apertei seu ombro antes de sair do local.
Antes de ir para a fila, aproveitei para ir ao banheiro e me ajeitar um pouco. Estava com a cara amassada de sono, e um tanto desconfortável por estar dividindo a viagem com .
O desconforto era na verdade um misto de sensações: ansiedade, tristeza, frustração... E como podem ver, nenhuma delas era boa.
Lavei meu rosto com água abundante, passando a mão refrescante na nuca, e secando levemente com o papel disponível. Dei uns tapinhas na cara, e saí do banheiro, já indo ao caixa comprar o suco.
Pouco após ter me sentado à mesa, os meninos discutiam alguns arranjos das músicas autorais. Assim que terminei meu suco, e mais depressa do que gostaria, os motoristas começaram a anunciar o fim da parada, fazendo com que pouco a pouco voltássemos para os nossos ônibus. Dei um forte abraço em , que me surpreendeu com um beijo na ponta do nariz e um leve beliscar na cintura, enquanto mordia o lábio em meio à um sorriso endiabrado.
Só ele pra ser o mais humorado da turma mesmo.
Sorri ao ter esse pensamento, mas logo o sorriso foi embora quando cheguei no corredor do ônibus, ao notar já sentado em seu lugar.
Me arrastei novamente, pedindo à Deus e ao universo que essa viagem fosse rápida. Estava me sentindo sufocada diante daquela situação constrangedora.
Quando notou minha presença, repetiu os movimentos como da primeira vez, sem me encarar em nenhum momento. Apenas posicionou seu corpo levemente para o lado, possibilitando a minha passagem. Fiz o mais rápido que pude, e logo me sentei à procura de meu fone de ouvido; precisava me refugiar na música, e aproveitar que meu assento era o da janela. Quem sabe o sono chegaria novamente? Apesar de me sentir bem desperta, eu ansiava por essa possibilidade.
Não lembrava há quanto tempo estava na estrada, mas percebi algo que irritou profundamente: consegui a proeza de ouvir desde Metallica até Dashboard Confessional sem conseguir me prender em música nenhuma!
Isso era, definitivamente, estranho.
Desistindo da música, eu deixei que qualquer coisa tocasse apenas pra me ajudar a distrair, enquanto somava o som a qualquer outra coisa. Puxei meu celular e vi que a bateria dele não estava lá aquelas coisas. Suspirei ao pensar que não daria pra usar a internet e as redes sociais, se não acabaria com um celular morto e um silêncio mórbido até o fim da viagem.
Melhor música sem facebook e instagram do que stories e uma eternidade de atmosfera constrangedora ao lado do melhor amigo pelo qual ainda era apaixonada.
(Essa frase poderia ir para o Guiness Book como uma das mais inusitadas da história.)
Bufei novamente, e procurei ao redor alguma coisa pra fazer, até que avistei uma revista no encosto da poltrona à minha frente. Uma revista qualquer pra ler, quem sabe? Peguei o objeto e notei que as notícias estavam tão desatualizadas que ainda falavam em ipod e mp3.
Tudo bem, eu sobreviveria.
Pulei algumas páginas, passando por posters de duas páginas do lobinho do crepúsculo, até a parte de testes da revista. As letras garrafais do título me fizeram rolar os olhos.
Se Deus existia, ele era uma criança de dois anos babona, com coriza escorrendo pelo nariz, e a fralda totalmente cagada com um importante detalhe: o controle da minha vida estava dentro da fralda.
Bufei no exato momento em que ouvi uma tentativa falha de prender o riso.
Sem sequer calcular meus movimentos, virei a cabeça para encarar o dono da mesma, mas sua expressão era de alguém entediado mexendo no celular. Voltei à minha posição o mais rápido que pude, e senti a revista pesar uma tonelada em meu colo.
Enquanto a encarava, ficava matutando na minha mente o que acabara de acontecer. Não acreditava que estava bisbilhotando o que eu estava lendo, e muito menos ter rido daquilo!
Afinal de contas, riu por quê? O filha da mãe sabia que eu gostava de outra pessoa, mas estava com . Será que ele estava rindo da minha situação, pensando que eu estava dividida entre e meu “verdadeiro amor”?
Decidi resgatar a fonte da paciência nas profundezas do meu ser enquanto me convencia de que não falaria nem faria nada... Apenas encostei a cabeça na poltrona, posicionando-a levemente para trás e encarando a janela.
Deus, a criança de dois anos cagada, continuava obrando em cima do controle da minha vida.
Decidi dormir e forçar o sono, apesar do balanço do ônibus fazer a tarefa parecer impossível! Unindo a minha situação ao frio que o vidro transmitia, nem encostar a cabeça na janela e fingir sofrência enquanto ouvia “Clocks” do Coldplay eu poderia. Mas a teimosia era algo que estava no meu DNA, e eu insisti com força.
Quando estava já cochilando, senti um incômodo grande na boca do estômago.
Deus, a criança de dois anos cagada, operou seu mais novo cocô em cima do controle da minha vida.
Abri os olhos ao sentir minha barriga vibrar uma vez. Depois fez um pequeno barulhinho. Na terceira vez, ela roncou, como se tivesse uma vida ali dentro.
Me encolhi mais na poltrona, a fim de que aquele ronco não se transformasse em dor. Mas, obviamente, como aparentemente eu taquei pedra na cruz com chiclete, não só a dor na barriga, como a dor de cabeça avassaladora, daquelas de quando a gente tá a fim de comer um bode, chegou, me fazendo gemer um pouco. Fechei os olhos, pra controlar a fome e aguentar até chegarmos ao nosso destino. Fazia o que? Uma hora, uma hora e meia? Fui checar no celular, e para meu desagrado, apenas 50 minutos haviam se passado.
Bufei, xingando em voz baixa tudo e todos, me questionando porque eu nem sequer comprei um biscoito pra comer no ônibus. Fechei os olhos novamente, me sentindo idiota e me encolhendo na poltrona.
Eu estava decida à entrar em coma e dormir até que chegássemos, mas ao que tudo indicava, as coisas não estavam a fim de seguir meus planos... E eu descobriria que, pela primeira vez no dia, aquilo poderia ser algo bom.
Primeiro ouvi bufar.
Segundo, abri os olhos, arqueando uma sobrancelha.
Terceiro, minha visão foi preenchida por um embrulho em minha direção.
“O q-que é isso?” Eu forcei a falar, depois de ficar igual uma idiota encarando aquela coisa deliciosamente cheirosa envolvida por papel alumínio.
Ainda sem me encarar, apenas segurava o bendito embrulho com uma mão, enquanto mexia no celular. Muito tedioso, respondeu:
“Comida.”
“Oh, jura?” Falei, sem paciência. “Mas está me dando?” Perguntei mais pra mim do que pra ele, com a voz por um fio.
rolou os olhos e encarou o teto do ônibus.
“Dai-me forças, Pai...” Ele disse em voz baixa, numa aparente conversa com Deus, e eu cerrei os olhos. Ele me encarou com tédio na cara.
“É claro que é pra você, estou lhe oferecendo.” E senti a entonação rude em sua voz.
Aquilo me fez involuntariamente cruzar os braços e virar para a janela.
“Muito obrigada, mas passo.” Devolvi no mesmo timbre e pude ouvir suspirar.
“Sempre tão teimosa... Não muda nunca.” Eu sabia que, pela forma como falou, estava conversando mais consigo mesmo do que comigo.
Porém, era de mim que aquele troglodita falava! E eu franzi o cenho, voltando a encará-lo.
“Qual é o problema agora? Fala na minha cara!” Eu bradei, irritada.
Já estávamos naquela situação, somando ao fato de que eu sentia fome...
Podem declarar a terceira guerra mundial.
“O problema é que você é incrivelmente teimosa quando claramente está morrendo de fome e negando a porra de um hambúrguer de forno porque tem problemas comigo!” Ele devolveu, franzindo o cenho e falando baixo, porém definitivamente enfezado. Pisquei umas cinco vezes enquanto ele continuava sua fala.
“Eu só estou oferecendo a merda de uma comida. É só e apenas isto! Mas se é tão difícil, que fique com fome até que seu estômago comece a dialogar comigo.”
Fazia um bom tempo que não tínhamos uma conversa tão extensa, e eu estava muito irritada com tudo que ele havia dito.
Principalmente porque era verdade.
Inclusive a parte do estômago dialogar.
E durante todo o tempo, sustentei seu olhar, que simplesmente desistiu daquele meu silêncio e assim, virou o rosto para frente.
Quando se moveu para guardar o hambúrguer, eu segurei seu braço.
Aquela era a primeira vez que nos tocávamos desde o abraço.
Minha mão tremeu um pouco, mas não desisti do leve aperto no pulso de , que me olhou surpreso. Suspirei, sem olhá-lo diretamente nos olhos.Tomei coragem, bufei, e ergui levemente a cabeça, fazendo contato visual.
“Você disse hambúrguer de forno?”
ficou me encarando por um longo tempo, e eu quase me arrependi de ter feito aquele comentário infame. Mas como luz no fim do túnel, ele suavizou a cara, olhou para o embrulho de alumínio e acenou com a cabeça, abrindo um sorriso mínimo no canto do rosto – o que significava muito, acredite.
“É. Com cheddar.”
Meu estômago roncou de novo, e eu o encarei com a cara completamente vermelha, enquanto ele comprimia uma risada. Em meio ao meu sorriso sem graça, eu pensava que tinha razão.
Eu estava sendo apenas teimosa por ter problemas pendentes com ele.
Ou seja, se fosse apenas e exclusivamente tratar da minha fome, não teria problema algum, não é?
“Me desculpe.” Eu respondi, ainda segurando seu braço.
Ele me encarou surpreso, deixando esvair qualquer rastro de sorriso ou graça em seu rosto.
Sei que era meio chocante ouvir o que eu acabara de dizer, mas não era como se fosse a coisa mais difícil do mundo.
Apenas se tratava do fato de que, historicamente, era mais teimoso que eu, e volta e meia, ele era quem pisava na bola, sendo a pessoa a pedir desculpas mais vezes em nossa amizade. Mas aquilo fazia tempo, bem como eu recitar perdões depois de tudo que aconteceu entre nós.
Percebi que ele olhou para minha mão agarrada a seu pulso, e engoliu a seco. Eu entendi aquilo como algo incômodo, e larguei na hora, retesando-a em meu colo, me sentindo estranhamente tímida e indevida.
"Come logo isso...” Ele sussurrou, colocando o hamburguer nas minhas mãos, se virando pra frente e visivelmente acuado.
A verdade era que estava preocupado e atento, sabendo da minha fome mesmo que eu não tenha feito nada para demonstrá-la.
E isso era foda, porque significava que me conhecia tão bem, que não precisávamos anunciar certas coisas. Fome era uma delas! E pelo visto, por mais que estivéssemos afastados, aquilo não mudara.
No fundo de minha mente, eu me perguntava o que ainda permanecia intacto e o que de fato mudara pra sempre.
"Obrigada... ." Falei, enquanto abria o embrulho sobre meu colo, vendo dar de ombros menear a cabeça, mexendo as pernas inquietamente.
"Como...?" Eu indaguei, curiosa demais para o meu próprio bem. virou o rosto em minha direção, prestando atenção em mim.
Era a primeira vez que ele me olhava nos olhos, depois de muito tempo, sem que estivéssemos afrontando um ao outro. E acredite, a falta de costume de não ver aqueles olhos há tempos, naquela atmosfera, me fez querer fazer coisas que tecnicamente só seriam permitidas se ele fosse o .
Ou eu fosse Lis.
"Como o quê?" Ele perguntou, se referindo ao que eu tinha 'balbuciado', antes de entrar em transe.
"Como você sabia que eu...?" Tentei concluir, mas ele riu sem humor, enquanto já respondia à questão que eu nem havia terminado.
"Por favor, . Sua barriga estava parecendo uma guitarra distorcida. Ela não é tão discreta quanto seu rosto tenta parecer."
Eu não sabia se era a euforia de ouvir aquela voz de um jeito descontraído.
Eu não sabia se era a ansiedade para comer o hambúrguer.
Eu não sabia se era porque ainda reparava em meu rosto.
Só sei que, de um pequeno sorriso, iniciou-se uma pequena risada, e, quando dei por mim, estava às gargalhadas, com aquela piada infame de . Fucking. .
Aquilo era felicidade, dor, frustração ou paixão em formas de risada? Quem sabia a verdadeira resposta pra aquilo? E quem ligava?
Qual não foi a minha surpresa quando percebi que não era só eu que estava rindo, mas sim, ninguém mais ninguém menos do que ele!
Sim, estava rindo comigo!
Aquilo parecia tão improvável quanto tudo ficar bem entre nós novamente.
Mas eu não foquei naquilo; apenas me permiti sentir feliz quando vivenciei um momento tão nostálgico.
Deus, como eu sentia falta daquilo!
O simples ato de rir com o fazia a vida parecer mais fácil, mais gostosa. E eu não sabia o tamanho da falta que me fazia, até de fato tê-lo de volta – mesmo que por alguns míseros minutos.
Ficamos nos olhando enquanto ríamos, vez ou outra, pegando ar pra rir mais.
Fomos aos poucos parando de rir, ainda nos encarando... tinha um brilho indecifrável no olhar, e eu poderia jurar que era alegria, como eu me sentia. Estávamos sorrindo de forma boba e infantil, um para o outro, quando senti meu celular vibrar.
"Mas, o que...?" Eu falei, puxando o aparelho do bolso.
Era uma mensagem de .
Minha primeira reação ao ler a mensagem, foi abrir um sorriso singelo. Mas daí, eu comecei a refletir, fazendo meu sorriso se desmanchar. Eu fiquei olhando para o visor, tentando entender a que ponto eu havia chegado – estando com um, gostando de outro. Sendo que os dois interagiam como companheiros de banda.
E agora, eu me via naquela situação, recebendo mensagem do meu pseudo namorado, usando a letra da música que eu fiz com o cara que eu realmente gosto. E a letra fazia parte de umas escritas autorais que fiz há anos atrás, quando gostava do meu pseudo namorado, que na época era só um garoto que não estava a fim de mim como eu estava na dele.
Putaquepariu, três mil vezes.
Nem novela mexicana tinha tanto plot twist.
Com calma, respondi qualquer coisa adorável e à altura, e logo bloqueei a tela do celular. Engoli à seco, sorrindo amarelo para e desfazendo o embrulho que encobria o hambúrguer por inteiro.
Eu não precisei dizer nada.
Não sei se leu a mensagem – estávamos próximos o suficiente para ele ver que eu falava com . Mas ele simplesmente deu um rápido e forçado sorriso, respirou fundo, se virou para frente e colocou os fones no ouvido, deixando-me de lado com o lanche que me dera.
“Bom apetite.” Ele comentou, antes de dar play em sua música e fechar os olhos, tentando dormir.
A entonação da sua voz continha algo pesado, diferente de momentos antes. Poderia ser só minha impressão, mas isso não impediu que eu suspirasse, apenas agradecendo com a cabeça.
Curiosamente, percebi que enquanto ria com (e sentia que aquilo era uma das coisas mais naturais e boas que eu vivenciava na vida), não queria pensar na nossa real situação, queria apenas vivenciar aquele maravilhoso e simples momento.
Ironicamente, significava que eu estava seguindo os conselhos de , sobre viver o presente, carpe diem, porém... com .
Aquele pensamento me fez ter voltas na boca do estômago, e nada tinha a ver com fome.
Coloquei o hambúrguer na boca, senti seu gosto.
Apesar do cheiro e do sabor delicioso, era fato: o gosto amargo não tinha nada a ver com o lanche.
Aquela seria uma longa viagem...
Capítulo 16 - And I know I'll be okay, though my skies are turning grey.
Chegamos ao local depois de longas horas. Tinha parado de chover, e o sol já estava no céu há algum tempo, o que, particularmente, me animava. Sempre relacionei sol com férias, até mesmo desejando algum friozinho às vezes.
O lugar era totalmente lindo, sério. Todo cheio de árvores, com vários tipos de cabanas de madeira, e com um prédio central em meio à tanta natureza. Sorri abertamente quando, ao longe, pude ver um lago. Eu adorei ver a luz do sol cintilar na água, a fazia parecer cristalina.
"É lindo, não é?" Ouvi a voz de atrás de mim, e quando fui me virar, senti seus braços envolverem minha cintura, e um beijo quente foi depositado na base de meu ombro. Sorri, enquanto voltava a olhar pra frente, com meus braços sobre os de .
"É maravilhoso. Não esperava que fosse tão bonito assim." Respondi sinceramente, olhando sorridente pra tudo que me cercava.
"Nem eu." Ele sussurrou com os lábios colados no meu pescoço. Senti um arrepio descer pela minha espinha, enquanto eu me virava apenas o pescoço para beijá-lo. Ele retribuiu o beijo, e eu pude sentir sua mão pousar na minha nuca, aprofundando o contato. Ficamos um tempo aproveitando o momento íntimo, até que eu finalizei com um leve encostar nos lábios dele.
“É melhor a gente se precaver...” Eu comentei, sorrindo sem graça, me virando de frente para . “Você sabe, tecnicamente estamos sob a tutela da escola. Regras...” Dei de ombros, sentindo as bochechas arderem.
riu e provavelmente era da minha cara de tacho.
“Você tem razão. É que essas horas no ônibus me deixaram com saudade.” Ele fez uma cara engraçada, rindo sacana.
“Que mentiroso!” Eu ri alto, dando um mini tapa em seu peito. “Você só arranja motivos pra me agarrar. Para de mentir, !” E cruzei os braços, me sentindo dona do pedaço.
Ele colocou os braços para trás e olhou o horizonte.
“Pode me culpar por você ser tão irresistível?” E me lançou um olhar de predador, com a face desproporcionalmente gentil.
Eu rolei os olhos e ri sem graça. Ainda não havia me acostumado com os elogios de , mas não poderia negar que era muito bom.
Quando puxei força para responder, senti meu celular vibrar no bolso.
Arqueei a sobrancelha, achando que era minha mãe já querendo saber se eu tinha chegado bem. Ledo engano; a progenitora sequer mandou mensagem!
Mas o celular seguia vibrando, o que indicava ser uma ligação. E com uma rápida olhada no visor, percebi que se tratava de um senhor bem desesperado.
“Fala aí meu docinho de côco!” Respondi, rindo levemente enquanto ouvia responder desanimadamente do outro lado da linha.
“...” Ele soou tão triste que eu fiz uma careta de dó, fazendo arquear uma sobrancelha enquanto cruzava os braços.
Sussurrei um “É o .” E ele fez cara de compreensão, suavizando a face e sorrindo novamente.
“O que foi, amigo?” Perguntei para o , já sabendo a resposta.
“A tá me ignorando!” Ele choramingou do outro lado. “Ela nem retornou mensagem ou ligação... E eu to sem saber o que fazer. Ela conversou com você?”
“Não...” Respondi, olhando pro céu azul. “Mas não fui no mesmo ônibus que ela, lembra?” Falei, respirando fundo ao ouvir suspirar do outro lado.
“Eu to exagerando?” Ele perguntou depois de um tempo.
“Acho que você tá reagindo normal pra quem deu a primeira cagada num relacionamento.” Respondi, dando de ombros. “Vamos, anime-se. Ou pelo menos não se cobre tanto, isso acontece. Discussões, pisadas de bola acontecem o tempo todo, o importante é como nos posicionamos pra resolver isso e não repetir as atitudes que ferem.” Percebi que e vinham logo em nossa direção, e olhei pro chão de forma aflita.
“É, eu acho que você tem razão...” respondeu, com a voz menos melancólica.
“Vamos pensar em alguma coisa, amigo. Prometo falar melhor com você mais tarde, certo? Agora preciso ir, está vindo, e algo me diz que vai ficar uma fera se souber que estamos tramando algo.” Encarei meus pés para disfarçar, e ri levemente enquanto se apressou em despedir.
“Eita porra, tá bem! Depois a gente se fala, tchau!” E desligou antes que eu retribuísse.
chegou com e eu ainda segurava o celular no ouvido.
“Certo, mãe, depois falo com você. Sim, cheguei bem, não se preocupe. Será uma semana rápida! Tá bem, vou me cuidar. Beijo, tchau.”
“Sua mãe sentiu seu cheiro? Ela foi certeira!” comentou, parecendo acreditar na minha encenação de ligação mãe-filha.
“É, o que posso dizer? A velha deve ter instalado um chip ou algo do tipo.” Dei de ombros, fazendo meu melhor fake smile enquanto segurava uma risada mal e porcamente.
“Que foi?” perguntou, olhando pra ele. Apenas lancei um olhar arregalado rapidamente, enquanto fingia coçar a nuca, e ele se recompôs.
“Apenas rindo de . Não sei de onde ela tira essas coisas. Chips de rastreamento!” E riu exageradamente, fazendo arquear uma sobrancelha. Eu conseguia ver seus pensamentos pipocando sobre ser fora da caixinha, e em algum ponto eu era obrigada a concordar.
“Bom, já sabem em qual cabana vão ficar?” perguntou com o olhar entediado, enquanto encarava o céu com os braços atrás de sua cabeça.
“Não.” Respondi, junto com .
“Tem uma lista lá na frente, no prédio central.” respondeu, sorrindo de lado. “Vim avisar que vamos ficar juntas!” E seu sorriso abriu enormemente, junto com seus braços, que me envolveram apertados.
“Que ótimo! Vai ser tipo festa do pijama toda noite!” Respondi igualmente feliz.
“Alguém viu o ?” perguntou aleatoriamente depois de um tempo. Até aquele momento, não tinha notado a ausência de meu melhor amigo.
“Não...” respondeu, me encarando, e eu apenas neguei com a cabeça, sem saber do paradeiro dele também.
“A última vez que o vi, ele estava saindo do meu lado enquanto pegava a mala pra descer do ônibus. Ele foi tão rápido que nem o vi depois disso.” Comentei encarando , que fez cara de compreensão.
“Espera. Ele estava do seu lado?” perguntou surpreso, e eu respondi dando de ombros.
“Sim.”
“Vocês foram... Tipo, dupla de ônibus?” Ele voltou a perguntar, com as sobrancelhas levemente erguidas e a boca entreaberta.
“Sim, fomos.” Respondi, encarando , que apenas piscava sem reação.
Um silêncio pairou no ar enquanto eu e nos olhávamos. Parece que ele se sentiu constrangido e pigarreou, ajeitando a postura. Eu apenas estranhei, mas sem dar muita bola, porque deu continuidade ao assunto.
“Ele deve ter descido com pressa então.” comentou enquanto coçava a nuca, e me virei para si, com um leve aceno em concordância.
“Ah, relaxa gente. Ele deve ter ido ao banheiro ou algo do tipo.” respondeu, colocando as mãos na cintura. “Vamos andando? O almoço será no prédio central!” Ela exclamou sorridente e me puxou, colocando meu braço entre os seus. Eu sorri com sua alegria, pensando em como ela era capaz de se animar do nada.
Meu sorriso ainda estava nos lábios quando chegamos ao destino, mas logo começou a murchar quando avistei falando animadamente com alguém no celular. Não sei quanto tempo fiquei observando-o, mas me assustei levemente quando nossos olhares se encontraram, e ele me pegou no flagra. Para disfarçar, dei um mínimo sorriso, o qual não foi correspondido. Seu semblante, que antes estava pra cima, ficara sério, e tratou de encerrar a ligação após breves palavras que não consegui escutar por não estar perto o suficiente. Ele guardou o celular no bolso e aguardou o grupo se aproximar, visivelmente incomodado, evitando contato visual comigo.
É. Infelizmente, outras coisas mudavam drasticamente.
Antes que eu pudesse tirar um tempo para sentir pena de mim mesma, o professor de educação física brotou no meio de todos, anunciando a hora do almoço:
“Vamos, vamos! Alinhem-se em filas, sirvam-se e encontrem um lugar aconchegante para comer... Temos muito o que conversar! Essa semana será incrível! Ei, você! Já lavou as mãos!?” Ele perguntou para um garoto que passava por si, que confirmou com a cabeça, levemente assustado com o questionamento do mestre.
“Onde tu se meteu, seu bocó?” perguntou, dando uma ombrada de leve em , que não fez nada além de lhe lançar um olhar felino, com a sobrancelha arqueada.
“Agora deu pra fazer mistério, ?” perguntou divertida, e apenas sorriu sem mostrar os dentes.
“Assim que cheguei aqui, fui informado por um dos funcionários que o almoço sairia em alguns minutos, então procurei minha cabana e guardei a mala. Vocês sabem, comer sem precisar ficar arrastando as coisas pra lá e pra cá.” Ele respondeu sem muita emoção, com um ar levemente entediante.
“Pelo visto eu não fui igualmente inteligente...” Pensei alto, ajeitando a bagagem em minhas costas.
virou o rosto pra mim e me analisou por alguns momentos. Desceu o olhar até minha mala e simplesmente deu um passo largo até chegar à minha frente. Me olhou dentro dos olhos enquanto pegava a bagagem de minha mão, e com uma facilidade invejável, jogou para trás de suas costas, finalmente quebrando contato visual ao encarar os outros.
“Vamos?” Ele saiu andando na minha frente, e todos apenas seguiram seus passos.
Eu demorei um pouco pra me mover, mas quando dei por mim, estava fazendo um pequeno trote para alcançá-lo, e quando o fiz, não consegui dizer nem fazer nada a não ser caminhar ao seu lado. Aquilo era educação, gentileza, ou um mínimo acordo de paz partindo de ? Meus pensamentos estavam borbulhando, tentando decifrar as ações do .
Só despertei do devaneio quando adentramos o prédio principal, que era lindo por fora e por dentro; com paredes bege, janelas e portas de madeira de um tamanho considerável; parecia um salão antigo, de tetos altos e proporções enormes. Conformes seguíamos pelo corredor após passarmos pelo hall, ao longe poderia ser visto refeitório grande o suficiente pra abarcar uma baleia.
Ou quase isso.
E a ornamentação do lugar era muito aconchegante; quadros por toda parte, mesas e cadeiras rústicas, e nas janelas, as cortinas brancas balançavam conforme a brisa passava por elas. Pra finalizar, a luz do sol invadia o local, iluminando-o e deixando-o com um ar gracioso, misturado ao cheiro de campo e ar fresco.
Sabe aquela sensação de “não sabia que precisava disso até de fato estar aqui”? Pois é, percebi que sair do mesmo ambiente de sempre era bom, mesmo sendo uma proposta escolar, com algumas regras. A mudança ajudava a rejar a cabeça, os pensamentos, ficando menos tensa com os problemas que me rodeavam.
Pensando nisso, me percebi caminhando ao lado de um deles, mais conhecido como . Sim, eu ainda estava ao seu lado, lhe acompanhando como a bela jovem educada que era.
Olhei para si, e tão despretensiosamente, ele seguia com minha mala nas costas, enquanto a outra mão encontrava-se dentro do bolso. Seu caminhar era tranquilo, com passos largos, e seu olhar estava perdido em um ponto qualquer à sua frente. Novamente, me perdi nos detalhes de , em seus trejeitos, seus traços, e suspirei fundo ao perceber que ele nem se esforçava para me encantar – e mesmo assim, conseguia fazê-lo magistralmente.
Quando voltei a mirar seus olhos, percebi que os mesmos me encaravam de volta.
Eu congelei e travei o maxilar, engolindo a seco. Aquela olhada parecia invadir a minha alma, e eu poderia jurar que sabia de tudo que eu estava pensando naquele exato momento.
Com uma força descomunal, fingi um sorriso amarelo e pigarrei antes de inicar uma conversa, sem quebrar o contato visual.
“Não... Não precisava carregar, eu consigo levar, sabe?” Falei a seu lado, apontando para minha mala. Ele arqueou uma sobrancelha, ainda me olhando.
Puta merda, porque ele fazia isso?
“Quer dizer, não estou fazendo desfeita, mas eu não comentei aquilo de propósito pra você levar pra mim, além do mais eu...”
“Você fala demais.” Ele simplesmente disse, e parou de me encarar, voltando a olhar pra frente, encerrando nossa conversa.
Eu respirei fundo, me sentindo confusa pelo seu comentário, e mordi minha bochecha direita enquanto tentava manter a calma para entender o que estava acontecendo. Voltei a olhar pra frente, ignorando-o de volta. O que ele queria, afinal? Continuei a andar ao seu lado, tentando entender aquela interação esquisita com meu melhor amigo.
Mantendo o silêncio, chegamos à uma mesa que comportava a todos. Eu sentei num banco e sentou à minha frente, logo depois de ter colocado minha mala debaixo da mesa, perto dos meus pés.
“Obrigada.” Agradeci com a voz firme, ainda incomodada com tudo aquilo.
Ele me olhou com uma sobrancelha arqueada e logo após, deu um mínimo sorriso de canto, acenando em resposta e me ignorando enquanto mexia em seu celular.
Porra de garoto esquisito!
Preferi disfarçar a frustração de não entender as ações de , e me ajeitei no assento, melhorando a postura, a roupa, fingindo analisar o lugar enquanto queria mesmo era pegar pelos ombros e questionar em alto e bom som “O QUE VOCÊ QUER DE MIM, INFERNO!?”
Meu pequeno devaneio foi interrompido por segundos depois, que se sentou ao meu lado, com um sorriso sem mostrar os dentes. Eu sorri de volta.
“Sabe...” Ele me abraçou por cima dos ombros e colocou os lábios perto da minha nuca. “Se estava pesado, era só você ter falado. Eu carregava pra você.”
Na sua voz tinha um certo incômodo, apesar da suavidade das palavras.
Eu me afastei para olhá-lo com um sorriso confuso e um olhar curioso.
“Não era nada, .” Expliquei, dando de ombros, enquanto virava a cabeça para o lado oposto de e respondia disfarçadamente. “Ele apenas fez, sem eu ter pedido. Foi só uma gentileza.”
“Tudo bem, sem problemas.” Ele respondeu, virando seu corpo pra trás e apoiando os cotovelos na mesa. Observou o lugar a nossa volta e eu fiquei encarando-o. Ele me olhou de volta e ergueu levemente as mãos, dando de ombros.
“Eu também posso ser gentil.” Sua voz saiu diferente, e eu arqueei a sobrancelha.
“Sei que pode. Não tenho essa dúvida, .” Respondi séria, me virando para encará-lo – e ambos ficamos de costas para . Ficamos nos olhando, e percebi que ambos estávamos com o muro alto, reparando nas ações do outro.
Antes que aquele pequeno diálogo continuasse – que estava me irritando, inclusive – fomos interrompidos por um jovem senhor que chamava a atenção de todos os presentes.
"Queridos jovens. Primeiramente, boa tarde a todos. Me chamo William Windenberg e é com enorme prazer que os recebo na minha querida casa, herança de meus pais. Geralmente, este lugar é atração para turistas que desejam passar o fim de semana num lugar tranquilo, que os permita relaxar e todas essas coisas boas que a paz daqui pode oferecer. Mas, quando o diretor da escola me telefonou dizendo o propósito do passeio para o ensino médio, não tive como negar... Meus pais eram professores, amantes e defensores da educação! Seria um ultraje negar tal proposta...”
“E imagino que a grana e a mídia envolvida não tenham nada a ver com isso...” sussurrou sem levantar o olhar; estava ocupado demais analisando as próprias unhas.
O proprietário, sem ouvir , apenas continuou seu discurso.
“E como a energia é jovem e cheia de animação, posso garantir que os próximos dias na Fazenda Paradise serão inesquecíveis, a depender da programação cuidadosamente planejada pela escola e por nós. Qualquer coisa, sintam-se à vontade para tirar dúvidas ou algo do tipo – estou à disposição de vocês! Sem mais delongas, tenham um ótimo almoço e sejam bem-vindos!” Winderberg terminou o seu discurso, sorrindo, enquanto os alunos e convidados da nossa escola partiam para a comida como canibais.
Tudo bem, eu era um deles.
Após o nosso querido e agradável almoço, todos nos direcionamos para as devidas cabanas, que, devo dizer, eram muitas. Elas estavam espalhadas, mas era possível ser visto claramente uma cerca de madeira dividindo a ala das meninas e dos meninos.
Piegas, eu sei.
Em cada cabana, haviam três camas (indicando que em cada cabana deveria ter apenas três pessoas) e 3 armários de tamanho médio. Os banheiros eram comunitários, numa área reservada, igual clubes e etc. E sim, divididos por binaridade de gênero.
Problemático, eu sei.
Mesmo depois da fatídica “cena” no almoço, estava visivelmente aéreo. Eu tentava puxar assunto ou comentava algo que nossos amigos conversavam, mas ele estava deveras pensativo, e eu não sabia dizer exatamente o motivo, mas sei que tinha a ver comigo – e aquilo me incomodava.
Decidi, todavia, que não iria resolver naquele instante. Se precisava de um tempo para refletir o que quer que estivesse acontecendo, mesmo depois de eu “insistir gentilmente” na socialização e ele visivelmente negar, então que ele interagisse quando se sentisse mais confortável para isso. Forçar a barra não era muito a minha onda, já me sentia estranha o bastante tentando incluí-lo em assuntos e diálogos que ele nitidamente não estava prestando atenção, ou sequer gostaria de participar.
Aquilo me fez pensar em nós, e uma careta surgiu na minha cara quando pensei que de fato, nosso relacionamento meio que girava em torno de uma questão fixa: a falta de reciprocidade nos sentimentos. Quer dizer, eu gostava demais do . Mas nada se comparava ao . E “tudo bem”, já que ambos sabíamos disso – e era legal o bastante pra simplesmente manter isso pra si, sem sequer comentar algo com ou forçar a barra em nosso “relacionamento”, se assim posso chamá-lo.
A questão é que, como tudo ficou focado em tentar viver um dia de cada vez e consequentemente me fazer “esquecer ”, nós nunca de fato ponderamos sobre como se sentia sobre isso tudo.
Na verdade, nós ponderamos. Mas no início. E agora, três meses depois, será que as coisas se mantinham na mesma intensidade, na mesma compreensão, na mesma paciência e vontade de estar junto?
Fiquei com essas questões na mente e só me toquei que havíamos terminado o pequeno “tour” pelo lugar ao chegarmos na nossa cabana – e eu.
"A cama perto da janela é minha!" gritou, entrando apressada, me assustando e fazendo arregalar os olhos.
“Precisa desse escândalo? Você me deu um baita susto.” Comentei, posicionando a mala na cama do meio, já que a outra do canto já tinha uma dona que não estava presente – apenas sua bagagem.
“Não enche!” Ela exclamou, se jogando em sua cama, enquanto pousava a mão em cima da barriga, acariciando-a.
“Tem bebê aí?” Brinquei, enquanto tirava algumas roupas da mala e colocava dentro do armário.
“Tem. Um bebê lombriga, devidamente alimentado.” Ela respondeu, enquanto ríamos juntas.
O sorriso do meu rosto se findou quando os pensamentos voltaram em minha mente.
Ficamos num silêncio ensurdecedor e eu só notei isso quando ela me chamou a atenção.
“?”
“Hm?” Respondi, sem olhá-la.
“O que foi aquilo na entrada do prédio central?” Eu a olhei, e ela estava deitada de forma mais confortável, com as mãos atrás da nuca, olhando pro teto.
Fiquei um tempo olhando pra si, sem saber exatamente o que responder.
“Ah, vai. Foi mó torta de climão!” Ela exclamou, virando-se pra mim segurando a cabeça com uma mão enquanto seu cotovelo apoiava-se no colchão. “ do nada pegou a sua mala e você seguiu com ele. Vocês não estavam tipo... brigados?”
Eu ri de nervoso, dobrando uma blusa bem lentamente.
“Se eu te disser que nem eu entendi, você acreditaria?” Eu desisti de ignorar o olhar de sobre mim e me sentei a cama, respirando fundo. “Quer dizer, eu balbucio comigo mesma sobre como seria mais lógico deixar a mala aqui ao invés de ir almoçar com o peso. Aí percebo que me escutou em meu momento interno e do nada pega minha mala e sai andando. E eu, sem notar, sigo a seu lado, deixando pra trás!” Ri mais nervosa do que antes, coçando a cabeça.
“Espera... ‘Deixando pra trás’ soa tão... forte!” comentou, sentando-se com pernas de chinês em cima da sua cama. “A não ser que tenha sido uma questão pra você. Ou pra ele. Foi?”
“Eu não sei! Pra dizer a verdade, só pensei nisso depois, quando sentamos para almoçar...” Expliquei, dando de ombros. “O que você acha?” Perguntei, roendo o canto do dedo.
“Sei lá!” Ela respondeu rindo de leve, mordendo o lábio e abraçando os joelhos, enquanto se balançava lentamente e encarava o teto, visivelmente refletindo sobre o caso. “Você quer saber o que eu acho como amiga ou como alguém que se coloca no lugar de alguém envolvido?”
“Os dois, talvez.” Respondi, confusa.
“Bem, como amiga eu diria que apenas ouviu seu comentário e foi gentil. E você, para não parecer mal agradecida, seguiu ao lado dele para fazer-lhe companhia. Coisa comum entre amigos.” Ela respondeu, dando de ombros.
“Entre amigos.” Repeti, torcendo o canto da boca.
“Ah, vocês ainda são. Quer dizer, nem precisa ser amigo pra ser prestativo, gentil. Precisa?” Ela me questionou, com a sobrancelha arqueada.
Eu suspirei, negando com a cabeça, encarando meus pés.
“E se você fosse , o que pensaria?” Perguntei, temerosa.
“Mas se fosse para me colocar no lugar de ...” Ela falou mais baixo, e percebi que sua cabeça pendeu para o lado direito, e suas sobrancelhas ergueram-se rapidamente, enquanto ela pensava.
“O que pensaria?” Eu indaguei, encarando-a.
“Bom, eu ficaria sem jeito, eu acho.” Ela fez um bico com os lábios, me olhando. “Bem, eu pensaria ‘o que diabos aconteceu naquele ônibus?’, já que antes vocês mal trocavam um bom dia, e agora ele está deliberadamente pegando a mala da minha namorada?”
“ e eu não so...”
“Ora, você entendeu!” Ela exclamou, me tacando uma almofada, enquanto eu sorria sem graça. “Mesmo que vocês sejam parceiros fixos sem um compromisso sério... É de se estranhar, não acha?”
“Eu acho que estranharia, se fosse o contrário...” Murmurei, fazendo uma careta.
“É, quer dizer... É meio aleatório que tenha feito isso do nada, diante da forma que vocês vinham se tratando... E ainda tem o agravante de saber dos seus sentimentos por .” Ela cruzou as mãos, me encarando sem jeito. “Eu no lugar dele ficaria inseguro, sei lá.”
“Oh.” Respondi, me lembrando da pequena conversa que tivemos quando sentamos no refeitório.
“O quê?” Ela me perguntou, curiosa.
“Isso faz sentido.” Eu falei, olhando pro nada e explicando a situação. “ disse que era só eu ter falado, que ele poderia ter levado a mala se eu tivesse falado. Aí expliquei que só estava fazendo uma gentileza, e retrucou dizendo que pode ser gentil também.” E mirei o olhar em , que prendeu um riso mal e porcamente.
Quando eu fiz minha cara de tédio, ela desatou a rir.
“Ai, me desculpe!” Ela disse, secando uma lacrimejada no canto do olho. “É que é engraçado como consegue ser indiscutivelmente direto em expressar ciúmes e você só se toca disso mó tempão depois!”
“Tá me chamando de lerda?” Questionei com as mãos na cintura, franzindo a testa.
“Você não me ajuda a te ajudar, vai...” Ela disse, rindo de novo, e eu bufei, rindo de volta.
“Eu estava tão no mundo da lua que nem notei...” Comentei, pesarosa. “Pelo menos não naquele momento.”
“Novidade, você sempre fica assim quando tá envolvido.” Ela comentou, sorrindo zoeira.
Eu a encarei com cara de tédio e me levantei, voltando a arrumar as coisas.
“Muito obrigada pela parte que me toca!” Reclamei, e ela riu mais ainda.
“Tô mentindo?” Ela perguntou, dando a língua. “O cara pode ter sido um cuzão com você, e isso não altera em nada na forma como você se ente em relação a ele.” E ela deu de ombros.
Apesar de se verdade, aquilo me irritou.
“Só porque você está brigada com seu docinho de côco, não significa que precisa sair por aí destilando verdades de forma grosseira!” Respondi, fechando a porta do armário com certa força.
O silêncio se estabeleceu, e apenas minha bufada de ar pode ser ouvida.
“Foi mal...” Respondi, depois de um tempo.
“Não, você tem razão.” Ela comentou, sorrindo sem graça. “Eu tô meio azeda, áspera. Escondendo minha chateação e tristeza por trás de comentários nada a ver pro momento... Me desculpa pela indiscrição.”
Dei de ombros.
“Tá todo mundo meio fudido mesmo... Esquece isso, sem problemas!” E me sentei a seu lado, segurando suas mãos. “Mas não acha que está na hora de deixar essa chateação de lado? Quer dizer, se esqueceu da data, mas não do que a história de vocês significa... e só está começando!”
Ela me encarou com os olhos levemente marejados.
“É importante pra mim...” E mordeu os lábios, fazendo uma força pra manter a voz uniforme.
“Eu sei...” E acariciei seus cabelos, enquanto ela suspirava.
“Eu sei que talvez seja exagerado, mas sei lá. Acho que coloquei mais expectativa do que o necessário. Eu pensei que ele estava realmente tão ansioso por hoje quanto eu. Acho que estou irritada por causa da vergonha em estar “sozinha” nessa, entende?”
“Mas isso é o que você não pode achar!” Segurei seus ombros e a encarei firmemente. “Você não está sozinha nessa! Sei que data é importante, mas não é tudo!”
“Você provavelmente tem razão.” Ela suspirou, vindo me abraçar. “Mas ainda estou chateada e não quero falar com ele agora e piorar as coisas por não ter digerido nada.”
“Bem, isso me parece sensato. O que é uma surpresa, vindo de você.” Respondi, levando um pequeno tapa no ombro, enquanto ríamos juntas.
“Falando em sensatez... o que realmente está sentindo? Quer dizer, você e estão voltando a se falar? Algo mudou pra vocês?”
A pergunta de um bilhão de dólares.
“Não sei...” Dei de ombros, unindo minhas mãos em meu colo. “Minha mãe conversou comigo antes da viagem, parece que tanto eu quanto ele estamos tendo tempos ruins por estarmos afastados... E aí meio que por obrigatoriedade do ônibus, a gente teve que conviver minimamente. Houve um momento nostálgico de amizade e tudo mais...” Percebi que sorri inconscientemente. “Eu estava com fome, com a barriga roncando, e ele me ofereceu um hamburguer de forno, sem eu nem pedir ou dizer nada...”
“Ele te conhece bem...” comentou com a voz baixa.
“Mas não achei que fosse só isso, entende? Havia algo a mais... Tipo, só dá pra oferecer ajuda em algo...”
“Se você estiver prestando atenção.” completou, com as sobrancelhas levantadas.
“É!” Respondi, exasperada. “O que me faz pensar que talvez, por mais que estivesse aparentemente “nem aí” pra mim, respeitando meu espaço e tempo como havíamos combinado há três meses... Ele não deixou de estar atento a mim.”
“É...” respondeu, maneando a cabeça. “Ou sua barriga roncou tão alto que ele ficou sem graça em negar ajuda.”
Nós duas nos entreolhamos e gargalhamos. Aquela conclusão era bem provável.
“A questão é que eu me senti bem depois de mó tempão, sabe? O bem-estar que ele me proporciona... Foi tão bom, tão nostálgico! Parecia que tudo estava bem de novo.” Suspirei, coçando a nuca. “Mas eu provavelmente estava apenas me iludindo, porque nossa relação mudou muito pra voltar ao que era antes...”
“Vocês mudaram, né ?” Ela completou, fazendo uma leve careta.
“Também...” Acenei positivamente a cabeça. “Mas certas coisas não mudam. Estar perto dele...” Suspirei, abraçando meus braços. “Uma pena que isso só seja reflexo do meu coração se iludindo, achando que migalhas de uma atenção e de uma pequena proximidade possa suprir a vontade de estar com ele como uma mulher. Como Lis é pra ele.” Meu rosto endureceu quando comentei isso.
O silêncio dizia tudo naqueles breves momentos.
“Não há muito o que fazer...” Concluí, me erguendo da cama. “Eu ainda gosto dele, por mais que nesses últimos tempos estivéssemos afastados. E por mais que estar com de certa forma tire do meu foco.” Coloquei as mãos nas têmporas, fechando os olhos.
“Eu gosto de , me dou super bem com ele, gosto de sermos esses “parceiros do crime”! Mas quando penso que pode ser algo maior... Bum!” Espalmei uma mão na outra, bufando. “Vem a sensação avassaladora de apenas trocar meias palavras com , me lembrando da discrepância de sentimentos entre uma pessoa e outra.” Bufei novamente, sentando na cama. “E isso me deixou na merda hoje.”
“Hoje?” Ela perguntou com a sobrancelha arqueada.
“Sim.” Acenei com a cabeça, comprimindo meus lábios pra dentro, umedecendo-os com a língua de forma ansiosa. “Eu... Fiquei pensando que talvez minha relação com seja muito focada em mim, no que eu sinto ou deixo de sentir. E nunca me perguntei como isso está pro , sabe? Pelo menos não atualmente...”
“Como assim, amiga?” perguntou com uma careta confusa.
“Bom... No início estava apto a lidar comigo, a estar comigo mesmo eu gostando de . Ele se comprometeu com paciência, com leveza, assumindo a vibe “vivendo um dia de cada vez”... Mas não sei se isso ainda é assim pra ele, entende?” Fiz uma cara de dor, e pareceu compreender. “E se ele não está mais tão paciente, ou com intensidade nos seus objetivos, ou não estiver mais querendo levar na leveza? E se a leveza esgotou?” Gesticulei com as mãos e me olhou surpresa.
“Você quer dizer que talvez esteja meio que de saco cheio disso tudo?”
Nossa. Ela era um doce quando estava magoada com . Precisava resolver aquela merda logo.
“Bem...” Respondi, depois de ficar em silêncio constrangedor.
felizmente notou.
“Ai, foi mal. É que eu to tentando ser direta, mas eu sei que hoje tá difícil ser assertiva.” E riu de si mesma, depois que concordei com uma cara óbvia. “Reformulando... Você acha que talvez queira um retorno de você? Talvez ele não esteja mais tão disposto a ser unilateral? Talvez não tão seguro de que isso possa continuar sendo mais leve entre vocês?”
“Eu não sei. A situação de hoje no refeitório alerta para algo, não? Algo que o incomodou... A ponto dele seguir estranhamente pensativo no tour da fazenda, logo após o almoço...” Expliquei, coçando a têmpora direita.
“Você tem ciúmes do ?” me perguntou do nada, e eu fiz um bico, pois nunca tinha pensado naquilo antes.
“Eu não sei.” Respondi, sem graça.
“É uma forma de saber a quantos anda seus sentimentos...” Ela elucidou, fazendo gestos com as mãos. “Sabemos que ciúmes do você tem de sobra.”
“Pula essa parte, por favor.” Rolei os olhos, cansada. Ela riu levemente, mas seguiu meu pedido.
“Você tem medo de perder ?”
Parei pra pensar. Pensei na possibilidade de ele simplesmente desistir do nosso esquema, e se interessar por outra garota. Talvez mais bonita, mais charmosa, mais inteligente, engraçada, e mais a fim dele do que eu.
Isso poderia facilmente acontecer! Quer dizer, ele era guitarrista de uma banda que começava a ter seu sucesso, ainda que apenas na cidade. Era bonito, simpático, um cavalheiro e um ótimo companheiro. Além de beijar bem.
Alguma coisa dentro de mim se alarmou com aquilo. Um certo incômodo. Mas comparei ao que sentia com , e mais uma vez, a diferença era abismal.
“Eu acho que tenho medo sim...” Falei, coçando a nuca, com vergonha do que estava prestes a dizer. “Mas não acho que seja por uma questão de sentimento. E sim de posse, talvez. Ego ferido, quem sabe? Tipo, eu estava num limbo do cacete apenas gostando do . E bem, não é que esse sentimento tenha ido embora, mas a situação é diferente, porque estou com alguém que gosta de mim, me acha interessante, pelo que eu sou! Sabe? Isso tudo me faz gostar do .”
“Entendi...” falou, cruzando os braços. “Mas não é um gostar genuíno, né? Ou melhor, o sentimento é real, mas é bem mais ameno do que . É isso?”
“Sim...” Suspirei, entristecida. “Vou conversar com mais tarde. Acho que independente de qualquer coisa, a gente tem que tentar dialogar, ser sincero... Né?”
“Sim...” respondeu, visivelmente com pena de mim.
“Essa situação toda é frustrante pra caralho.” Neguei com a cabeça, enquanto voltava a arrumar as coisas no armário.
“É, amiga... É sim.” concordou, se levantando da cama. “Mas você não pode fazer muita coisa além do que já faz. Vive sua vida, vai experimentando coisas novas, seguindo as alegrias de ser quem é. Não é como se você estivesse enganando alguém, tá todo mundo ciente das possíveis tretas, inclusive você! Então vá viver sem ficar pensando milimetricamente as coisas...”
“É...” Aquele assunto me deixava desanimada.
“E quando menos esperar, esses problemas terão passado. A gente ainda vai rir disso tudo!”
“Deus te ouça.” Sussurrei, desanimada.
“Nossa, nem parece que tem apenas 17 anos, garota.” Ela rebateu, tentando me animar.
“18 em breve.” Comentei por alto, me atentando ao aniversário. “Com um coração trouxa. Essa sou eu.”
“Porra, e depois eu que sou dramática!” comentou, fazendo nós duas rirmos alto.
***
Depois de arrumarmos as coisas, demos uma descansada e quando percebi, já estava anoitecendo enquanto eu e nos direcionávamos para o banheiro feminino comunitário.
Aquele não era o melhor lugar para pessoas tímidas ou inseguras com o próprio corpo, mas lá estava eu tentando agir normalmente enquanto tirava minha roupa e me enrolava numa toalha, no encalço de , que tentava fingir plenitude como eu.
Acho que nós duas estávamos falhando miseravelmente, mas tudo bem.
Entrei num box ao lado do dela, e só ali me senti segura de tirar a toalha, ligando o chuveiro e para minha alegria, a água veio quentinha. Depois de aproveitar um belo e bom banho, e eu saímos do banheiro para guardar nossos pertences em nossa cabana.
“Você tá sentindo esse cheiro?” perguntou assim que entramos e acendemos a luz do local.
Eu parei de frente para meu armário, guardando as coisas, e fazendo meu olfato funcionar.
“Cheiro de perfume, né?” Indaguei, fechando a porta do armário.
“É, e bem doce, não acha?” Ela fez uma careta, enrugando o nariz. Eu dei uma leve risada e olhei em volta, sem ver ninguém além de nós.
Mas pude ver que a mala que estava em cima da cama já não estava mais ali; e outros pequenos pertences estavam presentes na pequena mesa de cabeceira.
“Bem, não tem ninguém aqui, mas ao que tudo indica, a nossa companheira de cabana esteve há pouco tempo.” E apontei para a direção correspondente, vendo o semblante de compreensão alcançar a face de .
“Oh, é verdade.” E ela também fechou a porta de seu armário, trancando-o com cadeado. “Que engraçado não termos esbarrado com ela ainda.”
“É...” Comentei, vestindo um casaco, enquanto me analisava no espelho. Blusão, legging preta, casaco moletom, e um tênis velhinho. Confortável mode on! “Será que ela é uma pessoa legal?” Perguntei, me virando pra , que deu de ombros se dirigindo pra porta.
“Eu não sei, mas já vi que até o fim do passeio posso morrer intoxicada com esse cheiro tão doce!” Ela reclamou e eu ri, enquanto fechava a porta atrás de nós.
Estávamos saindo da cabana quando olhei para a do lado. A cabana dos meninos, a de . Estava há metros da nossa, separada pelo cercadinho de madeira.
“O que foi?” perguntou ao meu lado, enquanto eu encarava o local.
“Vou tentar resolver algumas coisas... Pode ir na frente.” Respondi, lançando um olhar agradecido para ela.
“Certo, boa sorte! E lembre-se de respirar, é o mínimo.” Ela me aconselhou, piscando o olho e seguindo para o prédio central, onde o professor de educação física solicitou que nos reuníssemos no início da noite.
Andei apressada à cabana, e sem permitir o nervosismo me travar, subi as escadinhas até à porta.
Bati três vezes, ansiosa. Brinquei de contar quantas manchas a porta de madeira tinha até que ouvi a tranca da porta ser acionada, e logo a maçaneta se moveu, revelando a pessoa que me atendeu.
“O-oi.” Gaguejei, sem saber se estava mais surpresa por quem estava na minha frente, ou a forma como ele se encontrava.
Com os cabelos molhados, de bermuda jeans preta, e... sem camisa. Que, de fato, estava pendurada no seu ombro.
“Oi.” Ele falou depois de um tempo, enquanto segurava a porta, fazendo com que os músculos se contraíssem com o esforço. E apesar de ter emagrecido, ele estava bem. Bem até demais para minha própria sanidade.
Fiquei babando uns poucos e eternos – e adoráveis, e maravilhosos, e tentadores – segundos, enquanto ele me olhava, esperando que eu dissesse alguma coisa. Foco, ! Por Deus, mulher!
"O... O...” Eu continuei gaguejando, pensando na ironia dele e dividirem a mesma cabana. arqueou uma sobrancelha, ficando inacreditavelmente mais irresistível com aquele semblante badboy que acabou de sair do banho, enquanto provavelmente duvidava da minha capacidade mental de formular uma pergunta direta e compreensível.
“O?” Ele perguntou, encostando no batente da porta e cruzando os braços, ressaltando as linhas do corpo incrivelmente lindo que ele tinha.
“!" Eu precisei falar alto, pra desfocar o olhar do corpo de e olhá-lo nos olhos, tentando passar o mínimo de seriedade. Com esta ação de supetão, acabei assustando levemente , que chegou a ir para trás, mas logo voltou ao lugar, me encarando com confusão no olhar. "...” Disse mais pra mim mesma, olhando pro chão e respirando fundo.
Ergui a cabeça novamente, focando no meu objetivo.
“E-Ele está aí?" Simplesmente perguntei, desviando o olhar do peito nu de , olhando só pro seu rosto.
"Ele foi tomar banho.” Ele comentou, olhando rapidamente para dentro da cabana, logo voltando para mim.
“Ah.” Eu respondi, sem saber o que dizer.
olhou de um lado para o outro e me perguntou.
“Quer entrar e esperar?”
“N-não precisa.” Falei rápido demais, sorrindo amarelo. “Posso esperar aqui fora até ele acabar.” E sem querer parecer idiota, me sentei ao pé da escada e dei um pequeno tchau para . “Pode fechar, eu não ligo. Fico aqui de boa.”
Ele apenas suspirou e entrou dentro da cabana, deixando a porta aberta. Não entendi nada, mas preferi não insistir naquele diálogo esquisito e me virei para frente, abraçando meus próprios joelhos enquanto apoiava meu queixo neles.
Como não estava sentindo frio?
Era uma pergunta hipócrita, porque eu estava sentindo calor diante daquela imagem que não saía de minha mente.
E, céus! Por que eu estava toda arrepiada?
Porra, aquela pele! Aquela textura, aquele cheiro bom de pós-banho...
Do nada minha atenção foi roubada para ninguém mais ninguém menos que o próprio dono dos meus pensamentos, sentando-se ao meu lado, devidamente vestido, com um casaco de moletom preto.
“Mas o que...” Eu indaguei, olhando-o surpresa.
“Não vou te deixar congelando aqui fora.” Ele comentou, puxando um maço de cigarro do bolso e tirando um dali, acendendo com um isqueiro vermelho.
Minha surpresa foi maior com aquela ação, não me lembrava de ter visto fumando na vida! Pelo menos não assim, do nada, como quem habitualmente fuma.
Ele tragou o cigarro com vontade, e fechou os olhos enquanto soltava a fumaça lentamente.
Fiquei encarando as formas que ela adquiria no ar, e em como se tornava mais visível devido ao frio.
“Alguém pode te ver.” Comentei, alertando em relação ao pessoal da escola.
“Podem ver que você está na cabana de meninos também.” Ele retrucou, com um sorriso mínimo no canto da boca, encarando a chama do cigarro.
“Tenho certeza que uma coisa é bem menos letal que a outra.” Respondi, cruzando meus braços logo abaixo dos seios e encarei meus pés, tentando entender que diabos de diálogo era aquele que eu estava tendo com – que simplesmente deu de ombros à minha frase, voltando a tragar.
Estávamos lado a lado, na presença do outro, e por mais que não nos encostássemos, eu poderia sentir o calor que ele emanava, e em como seria agradável estar debaixo de seus braços e afagos num clima ameno como o qual nos encontrávamos.
“Está tudo bem?” Sua voz soou baixa e rouca. Eu virei meu rosto para olhá-lo, e ele seguia com o olhar no cigarro.
“Sim...” Sussurrei, sem entender a pergunta que veio do nada.
“Espero não ter causado problemas.” Ele anunciou, depois de um tempo de silêncio. O encarei e ele puxava um novo trago.
“Problemas?” Perguntei, com a testa franzida.
Ele riu sarcasticamente, soltando a fumaça.
“Desculpe, eu esqueci.” E bateu a guimba do cigarro com o dedo indicador.
“Esqueceu do que?” Questionei, mais confusa.
“Nós não podemos falar sobre isso.” E pela primeira vez, ele se virou e olhou para mim, com um olhar zombeteiro e um sorriso cínico.
O que estava acontecendo?
“Não estou entendendo aonde você quer chegar com isso.” Respondi séria, sem quebrar o contato visual. Ele deu uma nova tragada, movendo levemente os ombros enquanto ria despretensiosamente, e encarou o cigarro.
“Na verdade, nem eu.” Apesar de ter um leve sorriso nos lábios, pude notar a entonação de mágoa que aquela frase carregava. Meu olhar foi parar no cigarro de , que rapidamente se consumia com a brisa gelada, e fiquei sem saber o que dizer. Afinal de contas, se nem ele sabia o que queria falar, quem era eu pra tentar entender?
“E você?” Eu quebrei o silêncio que já durava alguns bons minutos. tragava o final do cigarro com preguiça, como quem não quer parar de fumar.
“O que tem eu?” Ele perguntou, soltando a fumaça e me olhando de soslaio.
“Está bem?” Perguntei encarando meus pés, mas logo levantei a cabeça, olhando-o de volta.
Seu rosto virou-se diretamente pra mim, e me observou com um olhar indecifrável.
Nós ficamos naquele transe, e eu senti meu coração bater rápido. As palmas das minhas mãos estavam suadas, e eu senti a garganta ficar seca.
Me sentia nua diante de tanta atenção da parte de .
De repente, ele chegou mais perto de mim e eu senti meus olhos darem uma leve arregalada. O que ele estava fazendo?
colocou o cigarro na boca, e puxou a última tragada.
Seu rosto se iluminou com a chama incandescente, dando um ar mais misterioso aos seus olhos.
Ele tirou o que restara do cigarro com a mão direita, e a direcionou paralelamente ao meu rosto.
Apesar de estar levemente assustada, eu não mexi um dedo sequer.
apagou o cigarro na parede atrás de mim, e ainda me olhando, soltou a fumaça na minha cara de forma lenta e relaxada.
Sim, a fumaça.
Na minha cara.
O cheiro era de nicotina, menta e o perfume dele.
Sem conseguir me conter, me percebi fechando os olhos, me sentindo dividida; uma parte de mim, querendo fugir da fumaça, e outra parte se deliciando com o hálito de menta e o cheiro de .
Eu não fazia ideia do que aquela ação significava, mas estava mais confusa que antes.
Abri meus olhos, e curiosamente, sorria mais livremente, mesmo que ainda não mostrasse os dentes. Era como um repuxar dos lábios pelo canto esquerdo, e seu olhar passara de misterioso à debochado.
Ele estava visivelmente se divertindo com toda aquela cena, e eu seguia completamente sem entender cargas d’água.
“E então?” Eu indaguei, piscando várias vezes, até sentir a fumaça esvair. “O que exatamente foi isso?” Insisti, sentindo a voz falhar brevemente.
“Quer dizer que você é fumante passiva.” Ele respondeu, movendo com rapidez as sobrancelhas e eu rolei os olhos, cansada de ser o objeto de graça dele – no qual apenas e só se divertia.
Ajeitei minha postura, bufando e olhando para frente.
“Estou falando sério, “
“?” Minha fala foi interrompida por uma voz que soou trás de nós. Me virei imediatamente, e percebi que me imitou bem lentamente, e assim, estava parado na porta, nos encarando com um ponto de interrogação na testa.
“.” Falei, encarando-o com surpresa.
“Respondendo à sua pergunta...” falou baixo, enquanto se levantava. “Considere um talvez.” E desceu alguns degraus me encarando, como se nada tivesse nos interrompido.
Engoli a seco, ainda confusa.
“Até mais, . .” Ele acenou com a cabeça, e saiu em direção ao prédio central.
Acompanhei seus passos com o olhar, e logo depois me levantei, limpando a roupa e ajeitando minha postura, encarando com um sorriso educado.
“O que está fazendo aqui?” Ele perguntou, e eu percebi que seu rosto não tinha o sorriso de sempre. Ele ainda estava com aquele semblante reflexivo de antes. Eu pigarrei antes de responder.
“Quero falar com você. Podemos conversar?”
“Claro.” disse, colocando as mãos dentro do bolso do casaco amarelo. Ele vestia uma calça jeans e um tênis surrado. E ainda assim, estava incrivelmente charmoso com seu boné para trás.
“Certo.” Respondi sorridente, e fiz menção de descer as escadas. “Vamos?”
Ele apenas acenou a cabeça, fechou a porta da cabana e veio em minha direção.
Eu sinceramente não sabia como conseguiria dizer todas aquelas coisas depois de ter estado os últimos minutos com um , que me tirava do prumo. Mas sabia que, acima de qualquer coisa, era um assunto necessário; precisava tirar aquelas dúvidas do peito, esclarecer as coisas com e evitar mal-entendidos.
Aquela seria uma longa conversa.
O lugar era totalmente lindo, sério. Todo cheio de árvores, com vários tipos de cabanas de madeira, e com um prédio central em meio à tanta natureza. Sorri abertamente quando, ao longe, pude ver um lago. Eu adorei ver a luz do sol cintilar na água, a fazia parecer cristalina.
"É lindo, não é?" Ouvi a voz de atrás de mim, e quando fui me virar, senti seus braços envolverem minha cintura, e um beijo quente foi depositado na base de meu ombro. Sorri, enquanto voltava a olhar pra frente, com meus braços sobre os de .
"É maravilhoso. Não esperava que fosse tão bonito assim." Respondi sinceramente, olhando sorridente pra tudo que me cercava.
"Nem eu." Ele sussurrou com os lábios colados no meu pescoço. Senti um arrepio descer pela minha espinha, enquanto eu me virava apenas o pescoço para beijá-lo. Ele retribuiu o beijo, e eu pude sentir sua mão pousar na minha nuca, aprofundando o contato. Ficamos um tempo aproveitando o momento íntimo, até que eu finalizei com um leve encostar nos lábios dele.
“É melhor a gente se precaver...” Eu comentei, sorrindo sem graça, me virando de frente para . “Você sabe, tecnicamente estamos sob a tutela da escola. Regras...” Dei de ombros, sentindo as bochechas arderem.
riu e provavelmente era da minha cara de tacho.
“Você tem razão. É que essas horas no ônibus me deixaram com saudade.” Ele fez uma cara engraçada, rindo sacana.
“Que mentiroso!” Eu ri alto, dando um mini tapa em seu peito. “Você só arranja motivos pra me agarrar. Para de mentir, !” E cruzei os braços, me sentindo dona do pedaço.
Ele colocou os braços para trás e olhou o horizonte.
“Pode me culpar por você ser tão irresistível?” E me lançou um olhar de predador, com a face desproporcionalmente gentil.
Eu rolei os olhos e ri sem graça. Ainda não havia me acostumado com os elogios de , mas não poderia negar que era muito bom.
Quando puxei força para responder, senti meu celular vibrar no bolso.
Arqueei a sobrancelha, achando que era minha mãe já querendo saber se eu tinha chegado bem. Ledo engano; a progenitora sequer mandou mensagem!
Mas o celular seguia vibrando, o que indicava ser uma ligação. E com uma rápida olhada no visor, percebi que se tratava de um senhor bem desesperado.
“Fala aí meu docinho de côco!” Respondi, rindo levemente enquanto ouvia responder desanimadamente do outro lado da linha.
“...” Ele soou tão triste que eu fiz uma careta de dó, fazendo arquear uma sobrancelha enquanto cruzava os braços.
Sussurrei um “É o .” E ele fez cara de compreensão, suavizando a face e sorrindo novamente.
“O que foi, amigo?” Perguntei para o , já sabendo a resposta.
“A tá me ignorando!” Ele choramingou do outro lado. “Ela nem retornou mensagem ou ligação... E eu to sem saber o que fazer. Ela conversou com você?”
“Não...” Respondi, olhando pro céu azul. “Mas não fui no mesmo ônibus que ela, lembra?” Falei, respirando fundo ao ouvir suspirar do outro lado.
“Eu to exagerando?” Ele perguntou depois de um tempo.
“Acho que você tá reagindo normal pra quem deu a primeira cagada num relacionamento.” Respondi, dando de ombros. “Vamos, anime-se. Ou pelo menos não se cobre tanto, isso acontece. Discussões, pisadas de bola acontecem o tempo todo, o importante é como nos posicionamos pra resolver isso e não repetir as atitudes que ferem.” Percebi que e vinham logo em nossa direção, e olhei pro chão de forma aflita.
“É, eu acho que você tem razão...” respondeu, com a voz menos melancólica.
“Vamos pensar em alguma coisa, amigo. Prometo falar melhor com você mais tarde, certo? Agora preciso ir, está vindo, e algo me diz que vai ficar uma fera se souber que estamos tramando algo.” Encarei meus pés para disfarçar, e ri levemente enquanto se apressou em despedir.
“Eita porra, tá bem! Depois a gente se fala, tchau!” E desligou antes que eu retribuísse.
chegou com e eu ainda segurava o celular no ouvido.
“Certo, mãe, depois falo com você. Sim, cheguei bem, não se preocupe. Será uma semana rápida! Tá bem, vou me cuidar. Beijo, tchau.”
“Sua mãe sentiu seu cheiro? Ela foi certeira!” comentou, parecendo acreditar na minha encenação de ligação mãe-filha.
“É, o que posso dizer? A velha deve ter instalado um chip ou algo do tipo.” Dei de ombros, fazendo meu melhor fake smile enquanto segurava uma risada mal e porcamente.
“Que foi?” perguntou, olhando pra ele. Apenas lancei um olhar arregalado rapidamente, enquanto fingia coçar a nuca, e ele se recompôs.
“Apenas rindo de . Não sei de onde ela tira essas coisas. Chips de rastreamento!” E riu exageradamente, fazendo arquear uma sobrancelha. Eu conseguia ver seus pensamentos pipocando sobre ser fora da caixinha, e em algum ponto eu era obrigada a concordar.
“Bom, já sabem em qual cabana vão ficar?” perguntou com o olhar entediado, enquanto encarava o céu com os braços atrás de sua cabeça.
“Não.” Respondi, junto com .
“Tem uma lista lá na frente, no prédio central.” respondeu, sorrindo de lado. “Vim avisar que vamos ficar juntas!” E seu sorriso abriu enormemente, junto com seus braços, que me envolveram apertados.
“Que ótimo! Vai ser tipo festa do pijama toda noite!” Respondi igualmente feliz.
“Alguém viu o ?” perguntou aleatoriamente depois de um tempo. Até aquele momento, não tinha notado a ausência de meu melhor amigo.
“Não...” respondeu, me encarando, e eu apenas neguei com a cabeça, sem saber do paradeiro dele também.
“A última vez que o vi, ele estava saindo do meu lado enquanto pegava a mala pra descer do ônibus. Ele foi tão rápido que nem o vi depois disso.” Comentei encarando , que fez cara de compreensão.
“Espera. Ele estava do seu lado?” perguntou surpreso, e eu respondi dando de ombros.
“Sim.”
“Vocês foram... Tipo, dupla de ônibus?” Ele voltou a perguntar, com as sobrancelhas levemente erguidas e a boca entreaberta.
“Sim, fomos.” Respondi, encarando , que apenas piscava sem reação.
Um silêncio pairou no ar enquanto eu e nos olhávamos. Parece que ele se sentiu constrangido e pigarreou, ajeitando a postura. Eu apenas estranhei, mas sem dar muita bola, porque deu continuidade ao assunto.
“Ele deve ter descido com pressa então.” comentou enquanto coçava a nuca, e me virei para si, com um leve aceno em concordância.
“Ah, relaxa gente. Ele deve ter ido ao banheiro ou algo do tipo.” respondeu, colocando as mãos na cintura. “Vamos andando? O almoço será no prédio central!” Ela exclamou sorridente e me puxou, colocando meu braço entre os seus. Eu sorri com sua alegria, pensando em como ela era capaz de se animar do nada.
Meu sorriso ainda estava nos lábios quando chegamos ao destino, mas logo começou a murchar quando avistei falando animadamente com alguém no celular. Não sei quanto tempo fiquei observando-o, mas me assustei levemente quando nossos olhares se encontraram, e ele me pegou no flagra. Para disfarçar, dei um mínimo sorriso, o qual não foi correspondido. Seu semblante, que antes estava pra cima, ficara sério, e tratou de encerrar a ligação após breves palavras que não consegui escutar por não estar perto o suficiente. Ele guardou o celular no bolso e aguardou o grupo se aproximar, visivelmente incomodado, evitando contato visual comigo.
É. Infelizmente, outras coisas mudavam drasticamente.
Antes que eu pudesse tirar um tempo para sentir pena de mim mesma, o professor de educação física brotou no meio de todos, anunciando a hora do almoço:
“Vamos, vamos! Alinhem-se em filas, sirvam-se e encontrem um lugar aconchegante para comer... Temos muito o que conversar! Essa semana será incrível! Ei, você! Já lavou as mãos!?” Ele perguntou para um garoto que passava por si, que confirmou com a cabeça, levemente assustado com o questionamento do mestre.
“Onde tu se meteu, seu bocó?” perguntou, dando uma ombrada de leve em , que não fez nada além de lhe lançar um olhar felino, com a sobrancelha arqueada.
“Agora deu pra fazer mistério, ?” perguntou divertida, e apenas sorriu sem mostrar os dentes.
“Assim que cheguei aqui, fui informado por um dos funcionários que o almoço sairia em alguns minutos, então procurei minha cabana e guardei a mala. Vocês sabem, comer sem precisar ficar arrastando as coisas pra lá e pra cá.” Ele respondeu sem muita emoção, com um ar levemente entediante.
“Pelo visto eu não fui igualmente inteligente...” Pensei alto, ajeitando a bagagem em minhas costas.
virou o rosto pra mim e me analisou por alguns momentos. Desceu o olhar até minha mala e simplesmente deu um passo largo até chegar à minha frente. Me olhou dentro dos olhos enquanto pegava a bagagem de minha mão, e com uma facilidade invejável, jogou para trás de suas costas, finalmente quebrando contato visual ao encarar os outros.
“Vamos?” Ele saiu andando na minha frente, e todos apenas seguiram seus passos.
Eu demorei um pouco pra me mover, mas quando dei por mim, estava fazendo um pequeno trote para alcançá-lo, e quando o fiz, não consegui dizer nem fazer nada a não ser caminhar ao seu lado. Aquilo era educação, gentileza, ou um mínimo acordo de paz partindo de ? Meus pensamentos estavam borbulhando, tentando decifrar as ações do .
Só despertei do devaneio quando adentramos o prédio principal, que era lindo por fora e por dentro; com paredes bege, janelas e portas de madeira de um tamanho considerável; parecia um salão antigo, de tetos altos e proporções enormes. Conformes seguíamos pelo corredor após passarmos pelo hall, ao longe poderia ser visto refeitório grande o suficiente pra abarcar uma baleia.
Ou quase isso.
E a ornamentação do lugar era muito aconchegante; quadros por toda parte, mesas e cadeiras rústicas, e nas janelas, as cortinas brancas balançavam conforme a brisa passava por elas. Pra finalizar, a luz do sol invadia o local, iluminando-o e deixando-o com um ar gracioso, misturado ao cheiro de campo e ar fresco.
Sabe aquela sensação de “não sabia que precisava disso até de fato estar aqui”? Pois é, percebi que sair do mesmo ambiente de sempre era bom, mesmo sendo uma proposta escolar, com algumas regras. A mudança ajudava a rejar a cabeça, os pensamentos, ficando menos tensa com os problemas que me rodeavam.
Pensando nisso, me percebi caminhando ao lado de um deles, mais conhecido como . Sim, eu ainda estava ao seu lado, lhe acompanhando como a bela jovem educada que era.
Olhei para si, e tão despretensiosamente, ele seguia com minha mala nas costas, enquanto a outra mão encontrava-se dentro do bolso. Seu caminhar era tranquilo, com passos largos, e seu olhar estava perdido em um ponto qualquer à sua frente. Novamente, me perdi nos detalhes de , em seus trejeitos, seus traços, e suspirei fundo ao perceber que ele nem se esforçava para me encantar – e mesmo assim, conseguia fazê-lo magistralmente.
Quando voltei a mirar seus olhos, percebi que os mesmos me encaravam de volta.
Eu congelei e travei o maxilar, engolindo a seco. Aquela olhada parecia invadir a minha alma, e eu poderia jurar que sabia de tudo que eu estava pensando naquele exato momento.
Com uma força descomunal, fingi um sorriso amarelo e pigarrei antes de inicar uma conversa, sem quebrar o contato visual.
“Não... Não precisava carregar, eu consigo levar, sabe?” Falei a seu lado, apontando para minha mala. Ele arqueou uma sobrancelha, ainda me olhando.
Puta merda, porque ele fazia isso?
“Quer dizer, não estou fazendo desfeita, mas eu não comentei aquilo de propósito pra você levar pra mim, além do mais eu...”
“Você fala demais.” Ele simplesmente disse, e parou de me encarar, voltando a olhar pra frente, encerrando nossa conversa.
Eu respirei fundo, me sentindo confusa pelo seu comentário, e mordi minha bochecha direita enquanto tentava manter a calma para entender o que estava acontecendo. Voltei a olhar pra frente, ignorando-o de volta. O que ele queria, afinal? Continuei a andar ao seu lado, tentando entender aquela interação esquisita com meu melhor amigo.
Mantendo o silêncio, chegamos à uma mesa que comportava a todos. Eu sentei num banco e sentou à minha frente, logo depois de ter colocado minha mala debaixo da mesa, perto dos meus pés.
“Obrigada.” Agradeci com a voz firme, ainda incomodada com tudo aquilo.
Ele me olhou com uma sobrancelha arqueada e logo após, deu um mínimo sorriso de canto, acenando em resposta e me ignorando enquanto mexia em seu celular.
Porra de garoto esquisito!
Preferi disfarçar a frustração de não entender as ações de , e me ajeitei no assento, melhorando a postura, a roupa, fingindo analisar o lugar enquanto queria mesmo era pegar pelos ombros e questionar em alto e bom som “O QUE VOCÊ QUER DE MIM, INFERNO!?”
Meu pequeno devaneio foi interrompido por segundos depois, que se sentou ao meu lado, com um sorriso sem mostrar os dentes. Eu sorri de volta.
“Sabe...” Ele me abraçou por cima dos ombros e colocou os lábios perto da minha nuca. “Se estava pesado, era só você ter falado. Eu carregava pra você.”
Na sua voz tinha um certo incômodo, apesar da suavidade das palavras.
Eu me afastei para olhá-lo com um sorriso confuso e um olhar curioso.
“Não era nada, .” Expliquei, dando de ombros, enquanto virava a cabeça para o lado oposto de e respondia disfarçadamente. “Ele apenas fez, sem eu ter pedido. Foi só uma gentileza.”
“Tudo bem, sem problemas.” Ele respondeu, virando seu corpo pra trás e apoiando os cotovelos na mesa. Observou o lugar a nossa volta e eu fiquei encarando-o. Ele me olhou de volta e ergueu levemente as mãos, dando de ombros.
“Eu também posso ser gentil.” Sua voz saiu diferente, e eu arqueei a sobrancelha.
“Sei que pode. Não tenho essa dúvida, .” Respondi séria, me virando para encará-lo – e ambos ficamos de costas para . Ficamos nos olhando, e percebi que ambos estávamos com o muro alto, reparando nas ações do outro.
Antes que aquele pequeno diálogo continuasse – que estava me irritando, inclusive – fomos interrompidos por um jovem senhor que chamava a atenção de todos os presentes.
"Queridos jovens. Primeiramente, boa tarde a todos. Me chamo William Windenberg e é com enorme prazer que os recebo na minha querida casa, herança de meus pais. Geralmente, este lugar é atração para turistas que desejam passar o fim de semana num lugar tranquilo, que os permita relaxar e todas essas coisas boas que a paz daqui pode oferecer. Mas, quando o diretor da escola me telefonou dizendo o propósito do passeio para o ensino médio, não tive como negar... Meus pais eram professores, amantes e defensores da educação! Seria um ultraje negar tal proposta...”
“E imagino que a grana e a mídia envolvida não tenham nada a ver com isso...” sussurrou sem levantar o olhar; estava ocupado demais analisando as próprias unhas.
O proprietário, sem ouvir , apenas continuou seu discurso.
“E como a energia é jovem e cheia de animação, posso garantir que os próximos dias na Fazenda Paradise serão inesquecíveis, a depender da programação cuidadosamente planejada pela escola e por nós. Qualquer coisa, sintam-se à vontade para tirar dúvidas ou algo do tipo – estou à disposição de vocês! Sem mais delongas, tenham um ótimo almoço e sejam bem-vindos!” Winderberg terminou o seu discurso, sorrindo, enquanto os alunos e convidados da nossa escola partiam para a comida como canibais.
Tudo bem, eu era um deles.
Após o nosso querido e agradável almoço, todos nos direcionamos para as devidas cabanas, que, devo dizer, eram muitas. Elas estavam espalhadas, mas era possível ser visto claramente uma cerca de madeira dividindo a ala das meninas e dos meninos.
Piegas, eu sei.
Em cada cabana, haviam três camas (indicando que em cada cabana deveria ter apenas três pessoas) e 3 armários de tamanho médio. Os banheiros eram comunitários, numa área reservada, igual clubes e etc. E sim, divididos por binaridade de gênero.
Problemático, eu sei.
Mesmo depois da fatídica “cena” no almoço, estava visivelmente aéreo. Eu tentava puxar assunto ou comentava algo que nossos amigos conversavam, mas ele estava deveras pensativo, e eu não sabia dizer exatamente o motivo, mas sei que tinha a ver comigo – e aquilo me incomodava.
Decidi, todavia, que não iria resolver naquele instante. Se precisava de um tempo para refletir o que quer que estivesse acontecendo, mesmo depois de eu “insistir gentilmente” na socialização e ele visivelmente negar, então que ele interagisse quando se sentisse mais confortável para isso. Forçar a barra não era muito a minha onda, já me sentia estranha o bastante tentando incluí-lo em assuntos e diálogos que ele nitidamente não estava prestando atenção, ou sequer gostaria de participar.
Aquilo me fez pensar em nós, e uma careta surgiu na minha cara quando pensei que de fato, nosso relacionamento meio que girava em torno de uma questão fixa: a falta de reciprocidade nos sentimentos. Quer dizer, eu gostava demais do . Mas nada se comparava ao . E “tudo bem”, já que ambos sabíamos disso – e era legal o bastante pra simplesmente manter isso pra si, sem sequer comentar algo com ou forçar a barra em nosso “relacionamento”, se assim posso chamá-lo.
A questão é que, como tudo ficou focado em tentar viver um dia de cada vez e consequentemente me fazer “esquecer ”, nós nunca de fato ponderamos sobre como se sentia sobre isso tudo.
Na verdade, nós ponderamos. Mas no início. E agora, três meses depois, será que as coisas se mantinham na mesma intensidade, na mesma compreensão, na mesma paciência e vontade de estar junto?
Fiquei com essas questões na mente e só me toquei que havíamos terminado o pequeno “tour” pelo lugar ao chegarmos na nossa cabana – e eu.
"A cama perto da janela é minha!" gritou, entrando apressada, me assustando e fazendo arregalar os olhos.
“Precisa desse escândalo? Você me deu um baita susto.” Comentei, posicionando a mala na cama do meio, já que a outra do canto já tinha uma dona que não estava presente – apenas sua bagagem.
“Não enche!” Ela exclamou, se jogando em sua cama, enquanto pousava a mão em cima da barriga, acariciando-a.
“Tem bebê aí?” Brinquei, enquanto tirava algumas roupas da mala e colocava dentro do armário.
“Tem. Um bebê lombriga, devidamente alimentado.” Ela respondeu, enquanto ríamos juntas.
O sorriso do meu rosto se findou quando os pensamentos voltaram em minha mente.
Ficamos num silêncio ensurdecedor e eu só notei isso quando ela me chamou a atenção.
“?”
“Hm?” Respondi, sem olhá-la.
“O que foi aquilo na entrada do prédio central?” Eu a olhei, e ela estava deitada de forma mais confortável, com as mãos atrás da nuca, olhando pro teto.
Fiquei um tempo olhando pra si, sem saber exatamente o que responder.
“Ah, vai. Foi mó torta de climão!” Ela exclamou, virando-se pra mim segurando a cabeça com uma mão enquanto seu cotovelo apoiava-se no colchão. “ do nada pegou a sua mala e você seguiu com ele. Vocês não estavam tipo... brigados?”
Eu ri de nervoso, dobrando uma blusa bem lentamente.
“Se eu te disser que nem eu entendi, você acreditaria?” Eu desisti de ignorar o olhar de sobre mim e me sentei a cama, respirando fundo. “Quer dizer, eu balbucio comigo mesma sobre como seria mais lógico deixar a mala aqui ao invés de ir almoçar com o peso. Aí percebo que me escutou em meu momento interno e do nada pega minha mala e sai andando. E eu, sem notar, sigo a seu lado, deixando pra trás!” Ri mais nervosa do que antes, coçando a cabeça.
“Espera... ‘Deixando pra trás’ soa tão... forte!” comentou, sentando-se com pernas de chinês em cima da sua cama. “A não ser que tenha sido uma questão pra você. Ou pra ele. Foi?”
“Eu não sei! Pra dizer a verdade, só pensei nisso depois, quando sentamos para almoçar...” Expliquei, dando de ombros. “O que você acha?” Perguntei, roendo o canto do dedo.
“Sei lá!” Ela respondeu rindo de leve, mordendo o lábio e abraçando os joelhos, enquanto se balançava lentamente e encarava o teto, visivelmente refletindo sobre o caso. “Você quer saber o que eu acho como amiga ou como alguém que se coloca no lugar de alguém envolvido?”
“Os dois, talvez.” Respondi, confusa.
“Bem, como amiga eu diria que apenas ouviu seu comentário e foi gentil. E você, para não parecer mal agradecida, seguiu ao lado dele para fazer-lhe companhia. Coisa comum entre amigos.” Ela respondeu, dando de ombros.
“Entre amigos.” Repeti, torcendo o canto da boca.
“Ah, vocês ainda são. Quer dizer, nem precisa ser amigo pra ser prestativo, gentil. Precisa?” Ela me questionou, com a sobrancelha arqueada.
Eu suspirei, negando com a cabeça, encarando meus pés.
“E se você fosse , o que pensaria?” Perguntei, temerosa.
“Mas se fosse para me colocar no lugar de ...” Ela falou mais baixo, e percebi que sua cabeça pendeu para o lado direito, e suas sobrancelhas ergueram-se rapidamente, enquanto ela pensava.
“O que pensaria?” Eu indaguei, encarando-a.
“Bom, eu ficaria sem jeito, eu acho.” Ela fez um bico com os lábios, me olhando. “Bem, eu pensaria ‘o que diabos aconteceu naquele ônibus?’, já que antes vocês mal trocavam um bom dia, e agora ele está deliberadamente pegando a mala da minha namorada?”
“ e eu não so...”
“Ora, você entendeu!” Ela exclamou, me tacando uma almofada, enquanto eu sorria sem graça. “Mesmo que vocês sejam parceiros fixos sem um compromisso sério... É de se estranhar, não acha?”
“Eu acho que estranharia, se fosse o contrário...” Murmurei, fazendo uma careta.
“É, quer dizer... É meio aleatório que tenha feito isso do nada, diante da forma que vocês vinham se tratando... E ainda tem o agravante de saber dos seus sentimentos por .” Ela cruzou as mãos, me encarando sem jeito. “Eu no lugar dele ficaria inseguro, sei lá.”
“Oh.” Respondi, me lembrando da pequena conversa que tivemos quando sentamos no refeitório.
“O quê?” Ela me perguntou, curiosa.
“Isso faz sentido.” Eu falei, olhando pro nada e explicando a situação. “ disse que era só eu ter falado, que ele poderia ter levado a mala se eu tivesse falado. Aí expliquei que só estava fazendo uma gentileza, e retrucou dizendo que pode ser gentil também.” E mirei o olhar em , que prendeu um riso mal e porcamente.
Quando eu fiz minha cara de tédio, ela desatou a rir.
“Ai, me desculpe!” Ela disse, secando uma lacrimejada no canto do olho. “É que é engraçado como consegue ser indiscutivelmente direto em expressar ciúmes e você só se toca disso mó tempão depois!”
“Tá me chamando de lerda?” Questionei com as mãos na cintura, franzindo a testa.
“Você não me ajuda a te ajudar, vai...” Ela disse, rindo de novo, e eu bufei, rindo de volta.
“Eu estava tão no mundo da lua que nem notei...” Comentei, pesarosa. “Pelo menos não naquele momento.”
“Novidade, você sempre fica assim quando tá envolvido.” Ela comentou, sorrindo zoeira.
Eu a encarei com cara de tédio e me levantei, voltando a arrumar as coisas.
“Muito obrigada pela parte que me toca!” Reclamei, e ela riu mais ainda.
“Tô mentindo?” Ela perguntou, dando a língua. “O cara pode ter sido um cuzão com você, e isso não altera em nada na forma como você se ente em relação a ele.” E ela deu de ombros.
Apesar de se verdade, aquilo me irritou.
“Só porque você está brigada com seu docinho de côco, não significa que precisa sair por aí destilando verdades de forma grosseira!” Respondi, fechando a porta do armário com certa força.
O silêncio se estabeleceu, e apenas minha bufada de ar pode ser ouvida.
“Foi mal...” Respondi, depois de um tempo.
“Não, você tem razão.” Ela comentou, sorrindo sem graça. “Eu tô meio azeda, áspera. Escondendo minha chateação e tristeza por trás de comentários nada a ver pro momento... Me desculpa pela indiscrição.”
Dei de ombros.
“Tá todo mundo meio fudido mesmo... Esquece isso, sem problemas!” E me sentei a seu lado, segurando suas mãos. “Mas não acha que está na hora de deixar essa chateação de lado? Quer dizer, se esqueceu da data, mas não do que a história de vocês significa... e só está começando!”
Ela me encarou com os olhos levemente marejados.
“É importante pra mim...” E mordeu os lábios, fazendo uma força pra manter a voz uniforme.
“Eu sei...” E acariciei seus cabelos, enquanto ela suspirava.
“Eu sei que talvez seja exagerado, mas sei lá. Acho que coloquei mais expectativa do que o necessário. Eu pensei que ele estava realmente tão ansioso por hoje quanto eu. Acho que estou irritada por causa da vergonha em estar “sozinha” nessa, entende?”
“Mas isso é o que você não pode achar!” Segurei seus ombros e a encarei firmemente. “Você não está sozinha nessa! Sei que data é importante, mas não é tudo!”
“Você provavelmente tem razão.” Ela suspirou, vindo me abraçar. “Mas ainda estou chateada e não quero falar com ele agora e piorar as coisas por não ter digerido nada.”
“Bem, isso me parece sensato. O que é uma surpresa, vindo de você.” Respondi, levando um pequeno tapa no ombro, enquanto ríamos juntas.
“Falando em sensatez... o que realmente está sentindo? Quer dizer, você e estão voltando a se falar? Algo mudou pra vocês?”
A pergunta de um bilhão de dólares.
“Não sei...” Dei de ombros, unindo minhas mãos em meu colo. “Minha mãe conversou comigo antes da viagem, parece que tanto eu quanto ele estamos tendo tempos ruins por estarmos afastados... E aí meio que por obrigatoriedade do ônibus, a gente teve que conviver minimamente. Houve um momento nostálgico de amizade e tudo mais...” Percebi que sorri inconscientemente. “Eu estava com fome, com a barriga roncando, e ele me ofereceu um hamburguer de forno, sem eu nem pedir ou dizer nada...”
“Ele te conhece bem...” comentou com a voz baixa.
“Mas não achei que fosse só isso, entende? Havia algo a mais... Tipo, só dá pra oferecer ajuda em algo...”
“Se você estiver prestando atenção.” completou, com as sobrancelhas levantadas.
“É!” Respondi, exasperada. “O que me faz pensar que talvez, por mais que estivesse aparentemente “nem aí” pra mim, respeitando meu espaço e tempo como havíamos combinado há três meses... Ele não deixou de estar atento a mim.”
“É...” respondeu, maneando a cabeça. “Ou sua barriga roncou tão alto que ele ficou sem graça em negar ajuda.”
Nós duas nos entreolhamos e gargalhamos. Aquela conclusão era bem provável.
“A questão é que eu me senti bem depois de mó tempão, sabe? O bem-estar que ele me proporciona... Foi tão bom, tão nostálgico! Parecia que tudo estava bem de novo.” Suspirei, coçando a nuca. “Mas eu provavelmente estava apenas me iludindo, porque nossa relação mudou muito pra voltar ao que era antes...”
“Vocês mudaram, né ?” Ela completou, fazendo uma leve careta.
“Também...” Acenei positivamente a cabeça. “Mas certas coisas não mudam. Estar perto dele...” Suspirei, abraçando meus braços. “Uma pena que isso só seja reflexo do meu coração se iludindo, achando que migalhas de uma atenção e de uma pequena proximidade possa suprir a vontade de estar com ele como uma mulher. Como Lis é pra ele.” Meu rosto endureceu quando comentei isso.
O silêncio dizia tudo naqueles breves momentos.
“Não há muito o que fazer...” Concluí, me erguendo da cama. “Eu ainda gosto dele, por mais que nesses últimos tempos estivéssemos afastados. E por mais que estar com de certa forma tire do meu foco.” Coloquei as mãos nas têmporas, fechando os olhos.
“Eu gosto de , me dou super bem com ele, gosto de sermos esses “parceiros do crime”! Mas quando penso que pode ser algo maior... Bum!” Espalmei uma mão na outra, bufando. “Vem a sensação avassaladora de apenas trocar meias palavras com , me lembrando da discrepância de sentimentos entre uma pessoa e outra.” Bufei novamente, sentando na cama. “E isso me deixou na merda hoje.”
“Hoje?” Ela perguntou com a sobrancelha arqueada.
“Sim.” Acenei com a cabeça, comprimindo meus lábios pra dentro, umedecendo-os com a língua de forma ansiosa. “Eu... Fiquei pensando que talvez minha relação com seja muito focada em mim, no que eu sinto ou deixo de sentir. E nunca me perguntei como isso está pro , sabe? Pelo menos não atualmente...”
“Como assim, amiga?” perguntou com uma careta confusa.
“Bom... No início estava apto a lidar comigo, a estar comigo mesmo eu gostando de . Ele se comprometeu com paciência, com leveza, assumindo a vibe “vivendo um dia de cada vez”... Mas não sei se isso ainda é assim pra ele, entende?” Fiz uma cara de dor, e pareceu compreender. “E se ele não está mais tão paciente, ou com intensidade nos seus objetivos, ou não estiver mais querendo levar na leveza? E se a leveza esgotou?” Gesticulei com as mãos e me olhou surpresa.
“Você quer dizer que talvez esteja meio que de saco cheio disso tudo?”
Nossa. Ela era um doce quando estava magoada com . Precisava resolver aquela merda logo.
“Bem...” Respondi, depois de ficar em silêncio constrangedor.
felizmente notou.
“Ai, foi mal. É que eu to tentando ser direta, mas eu sei que hoje tá difícil ser assertiva.” E riu de si mesma, depois que concordei com uma cara óbvia. “Reformulando... Você acha que talvez queira um retorno de você? Talvez ele não esteja mais tão disposto a ser unilateral? Talvez não tão seguro de que isso possa continuar sendo mais leve entre vocês?”
“Eu não sei. A situação de hoje no refeitório alerta para algo, não? Algo que o incomodou... A ponto dele seguir estranhamente pensativo no tour da fazenda, logo após o almoço...” Expliquei, coçando a têmpora direita.
“Você tem ciúmes do ?” me perguntou do nada, e eu fiz um bico, pois nunca tinha pensado naquilo antes.
“Eu não sei.” Respondi, sem graça.
“É uma forma de saber a quantos anda seus sentimentos...” Ela elucidou, fazendo gestos com as mãos. “Sabemos que ciúmes do você tem de sobra.”
“Pula essa parte, por favor.” Rolei os olhos, cansada. Ela riu levemente, mas seguiu meu pedido.
“Você tem medo de perder ?”
Parei pra pensar. Pensei na possibilidade de ele simplesmente desistir do nosso esquema, e se interessar por outra garota. Talvez mais bonita, mais charmosa, mais inteligente, engraçada, e mais a fim dele do que eu.
Isso poderia facilmente acontecer! Quer dizer, ele era guitarrista de uma banda que começava a ter seu sucesso, ainda que apenas na cidade. Era bonito, simpático, um cavalheiro e um ótimo companheiro. Além de beijar bem.
Alguma coisa dentro de mim se alarmou com aquilo. Um certo incômodo. Mas comparei ao que sentia com , e mais uma vez, a diferença era abismal.
“Eu acho que tenho medo sim...” Falei, coçando a nuca, com vergonha do que estava prestes a dizer. “Mas não acho que seja por uma questão de sentimento. E sim de posse, talvez. Ego ferido, quem sabe? Tipo, eu estava num limbo do cacete apenas gostando do . E bem, não é que esse sentimento tenha ido embora, mas a situação é diferente, porque estou com alguém que gosta de mim, me acha interessante, pelo que eu sou! Sabe? Isso tudo me faz gostar do .”
“Entendi...” falou, cruzando os braços. “Mas não é um gostar genuíno, né? Ou melhor, o sentimento é real, mas é bem mais ameno do que . É isso?”
“Sim...” Suspirei, entristecida. “Vou conversar com mais tarde. Acho que independente de qualquer coisa, a gente tem que tentar dialogar, ser sincero... Né?”
“Sim...” respondeu, visivelmente com pena de mim.
“Essa situação toda é frustrante pra caralho.” Neguei com a cabeça, enquanto voltava a arrumar as coisas no armário.
“É, amiga... É sim.” concordou, se levantando da cama. “Mas você não pode fazer muita coisa além do que já faz. Vive sua vida, vai experimentando coisas novas, seguindo as alegrias de ser quem é. Não é como se você estivesse enganando alguém, tá todo mundo ciente das possíveis tretas, inclusive você! Então vá viver sem ficar pensando milimetricamente as coisas...”
“É...” Aquele assunto me deixava desanimada.
“E quando menos esperar, esses problemas terão passado. A gente ainda vai rir disso tudo!”
“Deus te ouça.” Sussurrei, desanimada.
“Nossa, nem parece que tem apenas 17 anos, garota.” Ela rebateu, tentando me animar.
“18 em breve.” Comentei por alto, me atentando ao aniversário. “Com um coração trouxa. Essa sou eu.”
“Porra, e depois eu que sou dramática!” comentou, fazendo nós duas rirmos alto.
Depois de arrumarmos as coisas, demos uma descansada e quando percebi, já estava anoitecendo enquanto eu e nos direcionávamos para o banheiro feminino comunitário.
Aquele não era o melhor lugar para pessoas tímidas ou inseguras com o próprio corpo, mas lá estava eu tentando agir normalmente enquanto tirava minha roupa e me enrolava numa toalha, no encalço de , que tentava fingir plenitude como eu.
Acho que nós duas estávamos falhando miseravelmente, mas tudo bem.
Entrei num box ao lado do dela, e só ali me senti segura de tirar a toalha, ligando o chuveiro e para minha alegria, a água veio quentinha. Depois de aproveitar um belo e bom banho, e eu saímos do banheiro para guardar nossos pertences em nossa cabana.
“Você tá sentindo esse cheiro?” perguntou assim que entramos e acendemos a luz do local.
Eu parei de frente para meu armário, guardando as coisas, e fazendo meu olfato funcionar.
“Cheiro de perfume, né?” Indaguei, fechando a porta do armário.
“É, e bem doce, não acha?” Ela fez uma careta, enrugando o nariz. Eu dei uma leve risada e olhei em volta, sem ver ninguém além de nós.
Mas pude ver que a mala que estava em cima da cama já não estava mais ali; e outros pequenos pertences estavam presentes na pequena mesa de cabeceira.
“Bem, não tem ninguém aqui, mas ao que tudo indica, a nossa companheira de cabana esteve há pouco tempo.” E apontei para a direção correspondente, vendo o semblante de compreensão alcançar a face de .
“Oh, é verdade.” E ela também fechou a porta de seu armário, trancando-o com cadeado. “Que engraçado não termos esbarrado com ela ainda.”
“É...” Comentei, vestindo um casaco, enquanto me analisava no espelho. Blusão, legging preta, casaco moletom, e um tênis velhinho. Confortável mode on! “Será que ela é uma pessoa legal?” Perguntei, me virando pra , que deu de ombros se dirigindo pra porta.
“Eu não sei, mas já vi que até o fim do passeio posso morrer intoxicada com esse cheiro tão doce!” Ela reclamou e eu ri, enquanto fechava a porta atrás de nós.
Estávamos saindo da cabana quando olhei para a do lado. A cabana dos meninos, a de . Estava há metros da nossa, separada pelo cercadinho de madeira.
“O que foi?” perguntou ao meu lado, enquanto eu encarava o local.
“Vou tentar resolver algumas coisas... Pode ir na frente.” Respondi, lançando um olhar agradecido para ela.
“Certo, boa sorte! E lembre-se de respirar, é o mínimo.” Ela me aconselhou, piscando o olho e seguindo para o prédio central, onde o professor de educação física solicitou que nos reuníssemos no início da noite.
Andei apressada à cabana, e sem permitir o nervosismo me travar, subi as escadinhas até à porta.
Bati três vezes, ansiosa. Brinquei de contar quantas manchas a porta de madeira tinha até que ouvi a tranca da porta ser acionada, e logo a maçaneta se moveu, revelando a pessoa que me atendeu.
“O-oi.” Gaguejei, sem saber se estava mais surpresa por quem estava na minha frente, ou a forma como ele se encontrava.
Com os cabelos molhados, de bermuda jeans preta, e... sem camisa. Que, de fato, estava pendurada no seu ombro.
“Oi.” Ele falou depois de um tempo, enquanto segurava a porta, fazendo com que os músculos se contraíssem com o esforço. E apesar de ter emagrecido, ele estava bem. Bem até demais para minha própria sanidade.
Fiquei babando uns poucos e eternos – e adoráveis, e maravilhosos, e tentadores – segundos, enquanto ele me olhava, esperando que eu dissesse alguma coisa. Foco, ! Por Deus, mulher!
"O... O...” Eu continuei gaguejando, pensando na ironia dele e dividirem a mesma cabana. arqueou uma sobrancelha, ficando inacreditavelmente mais irresistível com aquele semblante badboy que acabou de sair do banho, enquanto provavelmente duvidava da minha capacidade mental de formular uma pergunta direta e compreensível.
“O?” Ele perguntou, encostando no batente da porta e cruzando os braços, ressaltando as linhas do corpo incrivelmente lindo que ele tinha.
“!" Eu precisei falar alto, pra desfocar o olhar do corpo de e olhá-lo nos olhos, tentando passar o mínimo de seriedade. Com esta ação de supetão, acabei assustando levemente , que chegou a ir para trás, mas logo voltou ao lugar, me encarando com confusão no olhar. "...” Disse mais pra mim mesma, olhando pro chão e respirando fundo.
Ergui a cabeça novamente, focando no meu objetivo.
“E-Ele está aí?" Simplesmente perguntei, desviando o olhar do peito nu de , olhando só pro seu rosto.
"Ele foi tomar banho.” Ele comentou, olhando rapidamente para dentro da cabana, logo voltando para mim.
“Ah.” Eu respondi, sem saber o que dizer.
olhou de um lado para o outro e me perguntou.
“Quer entrar e esperar?”
“N-não precisa.” Falei rápido demais, sorrindo amarelo. “Posso esperar aqui fora até ele acabar.” E sem querer parecer idiota, me sentei ao pé da escada e dei um pequeno tchau para . “Pode fechar, eu não ligo. Fico aqui de boa.”
Ele apenas suspirou e entrou dentro da cabana, deixando a porta aberta. Não entendi nada, mas preferi não insistir naquele diálogo esquisito e me virei para frente, abraçando meus próprios joelhos enquanto apoiava meu queixo neles.
Como não estava sentindo frio?
Era uma pergunta hipócrita, porque eu estava sentindo calor diante daquela imagem que não saía de minha mente.
E, céus! Por que eu estava toda arrepiada?
Porra, aquela pele! Aquela textura, aquele cheiro bom de pós-banho...
Do nada minha atenção foi roubada para ninguém mais ninguém menos que o próprio dono dos meus pensamentos, sentando-se ao meu lado, devidamente vestido, com um casaco de moletom preto.
“Mas o que...” Eu indaguei, olhando-o surpresa.
“Não vou te deixar congelando aqui fora.” Ele comentou, puxando um maço de cigarro do bolso e tirando um dali, acendendo com um isqueiro vermelho.
Minha surpresa foi maior com aquela ação, não me lembrava de ter visto fumando na vida! Pelo menos não assim, do nada, como quem habitualmente fuma.
Ele tragou o cigarro com vontade, e fechou os olhos enquanto soltava a fumaça lentamente.
Fiquei encarando as formas que ela adquiria no ar, e em como se tornava mais visível devido ao frio.
“Alguém pode te ver.” Comentei, alertando em relação ao pessoal da escola.
“Podem ver que você está na cabana de meninos também.” Ele retrucou, com um sorriso mínimo no canto da boca, encarando a chama do cigarro.
“Tenho certeza que uma coisa é bem menos letal que a outra.” Respondi, cruzando meus braços logo abaixo dos seios e encarei meus pés, tentando entender que diabos de diálogo era aquele que eu estava tendo com – que simplesmente deu de ombros à minha frase, voltando a tragar.
Estávamos lado a lado, na presença do outro, e por mais que não nos encostássemos, eu poderia sentir o calor que ele emanava, e em como seria agradável estar debaixo de seus braços e afagos num clima ameno como o qual nos encontrávamos.
“Está tudo bem?” Sua voz soou baixa e rouca. Eu virei meu rosto para olhá-lo, e ele seguia com o olhar no cigarro.
“Sim...” Sussurrei, sem entender a pergunta que veio do nada.
“Espero não ter causado problemas.” Ele anunciou, depois de um tempo de silêncio. O encarei e ele puxava um novo trago.
“Problemas?” Perguntei, com a testa franzida.
Ele riu sarcasticamente, soltando a fumaça.
“Desculpe, eu esqueci.” E bateu a guimba do cigarro com o dedo indicador.
“Esqueceu do que?” Questionei, mais confusa.
“Nós não podemos falar sobre isso.” E pela primeira vez, ele se virou e olhou para mim, com um olhar zombeteiro e um sorriso cínico.
O que estava acontecendo?
“Não estou entendendo aonde você quer chegar com isso.” Respondi séria, sem quebrar o contato visual. Ele deu uma nova tragada, movendo levemente os ombros enquanto ria despretensiosamente, e encarou o cigarro.
“Na verdade, nem eu.” Apesar de ter um leve sorriso nos lábios, pude notar a entonação de mágoa que aquela frase carregava. Meu olhar foi parar no cigarro de , que rapidamente se consumia com a brisa gelada, e fiquei sem saber o que dizer. Afinal de contas, se nem ele sabia o que queria falar, quem era eu pra tentar entender?
“E você?” Eu quebrei o silêncio que já durava alguns bons minutos. tragava o final do cigarro com preguiça, como quem não quer parar de fumar.
“O que tem eu?” Ele perguntou, soltando a fumaça e me olhando de soslaio.
“Está bem?” Perguntei encarando meus pés, mas logo levantei a cabeça, olhando-o de volta.
Seu rosto virou-se diretamente pra mim, e me observou com um olhar indecifrável.
Nós ficamos naquele transe, e eu senti meu coração bater rápido. As palmas das minhas mãos estavam suadas, e eu senti a garganta ficar seca.
Me sentia nua diante de tanta atenção da parte de .
De repente, ele chegou mais perto de mim e eu senti meus olhos darem uma leve arregalada. O que ele estava fazendo?
colocou o cigarro na boca, e puxou a última tragada.
Seu rosto se iluminou com a chama incandescente, dando um ar mais misterioso aos seus olhos.
Ele tirou o que restara do cigarro com a mão direita, e a direcionou paralelamente ao meu rosto.
Apesar de estar levemente assustada, eu não mexi um dedo sequer.
apagou o cigarro na parede atrás de mim, e ainda me olhando, soltou a fumaça na minha cara de forma lenta e relaxada.
Sim, a fumaça.
Na minha cara.
O cheiro era de nicotina, menta e o perfume dele.
Sem conseguir me conter, me percebi fechando os olhos, me sentindo dividida; uma parte de mim, querendo fugir da fumaça, e outra parte se deliciando com o hálito de menta e o cheiro de .
Eu não fazia ideia do que aquela ação significava, mas estava mais confusa que antes.
Abri meus olhos, e curiosamente, sorria mais livremente, mesmo que ainda não mostrasse os dentes. Era como um repuxar dos lábios pelo canto esquerdo, e seu olhar passara de misterioso à debochado.
Ele estava visivelmente se divertindo com toda aquela cena, e eu seguia completamente sem entender cargas d’água.
“E então?” Eu indaguei, piscando várias vezes, até sentir a fumaça esvair. “O que exatamente foi isso?” Insisti, sentindo a voz falhar brevemente.
“Quer dizer que você é fumante passiva.” Ele respondeu, movendo com rapidez as sobrancelhas e eu rolei os olhos, cansada de ser o objeto de graça dele – no qual apenas e só se divertia.
Ajeitei minha postura, bufando e olhando para frente.
“Estou falando sério, “
“?” Minha fala foi interrompida por uma voz que soou trás de nós. Me virei imediatamente, e percebi que me imitou bem lentamente, e assim, estava parado na porta, nos encarando com um ponto de interrogação na testa.
“.” Falei, encarando-o com surpresa.
“Respondendo à sua pergunta...” falou baixo, enquanto se levantava. “Considere um talvez.” E desceu alguns degraus me encarando, como se nada tivesse nos interrompido.
Engoli a seco, ainda confusa.
“Até mais, . .” Ele acenou com a cabeça, e saiu em direção ao prédio central.
Acompanhei seus passos com o olhar, e logo depois me levantei, limpando a roupa e ajeitando minha postura, encarando com um sorriso educado.
“O que está fazendo aqui?” Ele perguntou, e eu percebi que seu rosto não tinha o sorriso de sempre. Ele ainda estava com aquele semblante reflexivo de antes. Eu pigarrei antes de responder.
“Quero falar com você. Podemos conversar?”
“Claro.” disse, colocando as mãos dentro do bolso do casaco amarelo. Ele vestia uma calça jeans e um tênis surrado. E ainda assim, estava incrivelmente charmoso com seu boné para trás.
“Certo.” Respondi sorridente, e fiz menção de descer as escadas. “Vamos?”
Ele apenas acenou a cabeça, fechou a porta da cabana e veio em minha direção.
Eu sinceramente não sabia como conseguiria dizer todas aquelas coisas depois de ter estado os últimos minutos com um , que me tirava do prumo. Mas sabia que, acima de qualquer coisa, era um assunto necessário; precisava tirar aquelas dúvidas do peito, esclarecer as coisas com e evitar mal-entendidos.
Aquela seria uma longa conversa.
Capítulo 17 - Funny but it seems I always wind up here with you.
Estávamos próximos à uma árvore, afastados ainda do prédio central. Eu mordia meu lábio inferior e estava encostado na árvore, de braços cruzados, encarando o chão.
Entendi que nem tão cedo ele seria a pessoa a quebrar o silêncio, e uma parte de mim se questionou porque ele deveria, já que quem chamou para conversar fui eu.
“Hm... Então, ...” Comecei pigarreando, me sentindo muito desconfortável.
Ele apenas levantou o rosto e me encarou.
“Bem...” Eu cocei a ponta do nariz, um pouco nervosa. “Por acaso você está chateado comigo?” Fui direto ao ponto, mordendo internamente minha bochecha.
estava com as mãos no bolso do casaco, e ainda olhava pra mim quando fiz a pergunta. Ele suspirou, negou com a cabeça e olhou para um ponto qualquer à sua direita.
“Não.” E pareceu ponderar, antes de continuar. “Realmente não estou chateado.”
Mas não estava no seu normal também, pensei. Respirei fundo, pelo visto precisaria cavar para entender.
“... Você sabe que pode ser sincero comigo, não é?” Me aproximei dele, com um olhar receoso, porém intenso.
“Eu sei.” Ele respondeu, finalmente me olhando nos olhos. “E estou sendo sincero, não estou... chateado com você. Estou apenas confuso.” Prendi meus lábios para dentro quando ouvi sua frase.
“E por que, exatamente?” Cruzei os braços, e senti a tensão nos ombros dele, que desviou o olhar para o chão.
“Por muitas coisas. Na verdade, estou bem confuso.” Ele riu sem humor, e levantou o rosto para olhar pra mim. “E receoso.”
“Receoso? Por que?” Senti minha testa franzir em confusão.
Ele me encarou com dor no olhar, e sua boca se tornou uma linha fina. Ele respirou fundo e fechou os olhos, antes de continuar.
“Isso é mais complicado do que pensei.” Ele assumiu, rindo de novo, mais nervoso. Se eu já estava confusa antes...
“.” Chamei sua atenção, e ele olhou pra mim com visível desconforto. “Não precisa pisar em ovos. Pode falar e vamos tentar entender da melhor forma. O que acha?” Tentei encorajá-lo com um sorriso, e ele pendeu a cabeça para o lado, coçando a nuca.
“Certo...” E suspirou, me olhando com incerteza.
“Ok...” Respondi, sentindo meu sorriso desaparecer aos poucos.
“Ok.” Ele respirou fundo e olhou pro chão. “Acho que tive uma crise de ciúmes hoje e não soube lidar. E depois de pensar, vi que talvez estivesse exagerando. Mas depois de abrir a porta da cabana e ver vocês ali, tão... não sei.” Ele gesticulou, com o cenho franzido. “Naturalmente íntimos?” Ele indagou, dando de ombros pra mim, que permaneci encarando-o com a sobrancelha erguida. Ele bufou. “Enfim. Algo dentro de mim se alarmou. E antes de pensar se é algo exagerado ou não de minha parte, eu fiquei pensando todo esse tempo, eu...” Ele estava falando muitas coisas de maneira rápida. “Eu...” E lentamente, levantou a cabeça para ver minha reação.
“Você?” Estimulei a continuar a frase, e ele franziu ainda mais o cenho, cruzando os braços e fechando os olhos momentaneamente.
Mais silêncio e mais tensão. Eu bufei discretamente, e ele finalmente prosseguiu.
“Por acaso eu tenho esse direito? Quer dizer, eu posso sentir ciúmes diante do que somos? Eu fiquei pensando nisso e me senti muito mal, porque independente de direito ou não, eu senti. E senti muita coisa, pensei muita coisa... que me deixou reflexivo.”
Eu pisquei algumas vezes e não consegui respondê-lo. A respiração estava presa dentro dos meus pulmões e eu, sem palavras. Segui no meu congelamento, com uma resposta óbvia na ponta da língua, mas um frio na barriga sobre a possibilidade de desencadear rumos para uma conversa que talvez, só talvez, eu tivesse medo de ter.
“É claro que você pode sentir ciúmes, ... Não tem essa de permitir ou não um sentimento. Não temos controle sobre o que sentimos, é... Natural.”. Expliquei, engolindo a seco para o que diria a seguir. “O que precisamos nos atentar é o que fazemos com aquilo que sentimos. Não acha?”
“Sim! É isso que eu penso!” Ele pontuou ao gesticular com as mãos. “Mas...”
“Mas...?” Indaguei, cruzando os braços e ficando atenta ao que ele dizia. Ele deu de ombros, e me encarou.
“Mas é uma situação... estranha.”
“Estranha?” Indaguei com a sobrancelha arqueada.
“Eu não consigo exatamente acompanhar as coisas entre você e . Tipo o modo como vocês estavam momentos atrás, me pegam de surpresa. Até ontem vocês mal se falavam, sabe? E cara, isso é estranho para mim. Porque num momento, um finge que o outro não existe, e aí no instante seguinte vocês estão numa conversa tão íntima que nem notam a minha presença na porta da cabana? Sério, o que há entre vocês?” Eu franzi o cenho, confusa.
“Estávamos apenas conversando na escada, . Mas antes de entrar em qualquer assunto sobre e eu, não estou entendendo o seu ponto.” Eu respondi, ajustando minha postura. “Na verdade, continuo sem entender no que isso interfere no que há entre eu e você.” Afirmei, levemente alarmada. Não estava gostando do que ele estava sugerindo com aquilo que dizia. Ele apenas balançou a cabeça, rindo nervoso enquanto eu o encarava.
“Ah, , sério? Se coloca no meu lugar!” Ele exclamou, impaciente. “Como não tem nada a ver entre você e eu? Não é óbvio como me sinto diante disso?”
“Você ficou com ciúmes, ok ! Mas acabei de falar sobre isso! Não é apenas sobre o que sentimos, mas sobre o que fazemos com isso! Eu no seu lugar, tentaria entender um pouco mais do que simplesmente começar a sugerir outras coisas!” Respondi sobressaltada.
“Eu estou tentando fazer isso!” Ele devolveu, e eu ri sarcasticamente.
“Não está não. Você está abordando pelas beiradas. Eu te conheço, . Fala logo o que você pensa realmente!” Sugeri, apontando pra si. Como combustão, ele respondeu com a face chateada.
“Me desculpe se eu estranho você conversando tão intimamente com o cara que é apaixonada!” Eu arregalei os olhos, incrédula. Ele realmente tinha dito aquilo?
“Nossa, ! Intimamente? Do jeito que você fala, é como se estivéssemos fazendo muito além do que conversar! Além do mais, isso não faz sentido de tantas formas que eu nem sei por onde começar!” Eu falei alto, bem irritada. Não conseguia acreditar que nas palavras que ele havia dito, tão fortes e absurdas. Respirei fundo e tentei me recompor, explicando o óbvio.
“ é meu melhor amigo e namora Elise, ! Não pode sair tirando conclusões tão pautadas em ciúmes!” Pontuei, sentindo minha mente trabalhar rápido.
“Aí!” Ele falou mais alto, me fazendo parar de falar. “É exatamente isso que me incomoda.”
“O que exatamente te incomoda?” Eu questionei, franzindo a testa.
“É sobre ele. é o foco.” Ele respondeu, e pude ver a dor em seu rosto. “Ele é seu melhor amigo. Ele namora Elise. Ele, ele, ele. Ele é o ponto de partida...” E riu, sem humor. “Eu não entendo porque nossas questões tem que partir dele!”
“...” Eu suspirei, me sentindo perdida diante de seu argumento. “Não é isso! É só que... Sério, o que quer que eu diga? Temos um combinado! Não temos um namo-“
“Eu sei disso!” Ele interrompeu, visivelmente chateado. “Mas significa que não temos nada? Nada que seja válido pra você?” Ele perguntou, apontando pra mim.
“É claro que temos!” Eu respondi de imediato, sentindo minha feição se tornar descrente. “Essa não é a questão!” Eu falei, sentindo minha voz elevar de entonação.
“É pra mim!” Sua voz saiu grossa e seus olhos arregalaram levemente enquanto gesticulava. “Não foi você quem perguntou se eu estava chateado? Não quer saber o que penso? Eu penso isso! Eu não sei porque nosso ‘o que quer que você queira chamar de relacionamento’ tem que ter uma terceira pessoa como foco!” Ele fez as aspas de modo desdenhoso, e eu senti meu peito doer. “E logo esta específica pessoa!”.
Houve um tempo de silêncio constrangedor, e só podíamos escutar nossas respirações descompassadas de raiva enquanto duelávamos em trocas de olhares franzidos.
“Eu só estava querendo saber se posso sentir ciúmes da garota que eu gosto e com quem venho me relacionando há três meses.” Ele comentou, com o olhar perdido.
“Eu já respondi isso...” Falei, num sussurro.
“Não...” Ele retrucou, voltando a cruzar os braços e trincando o maxilar. “Você respondeu aquilo que você quis.” Eu o encarei sem entender e quando abri a boca para falar, ele continuou.
“Isso é uma questão para mim, . E eu gostaria muito que você levasse isso à sério!” Ele explicou, tentando manter a calma, mas estava visivelmente nervoso. Respirou fundo e tirou o boné da cabeça enquanto passava a mão pelos cabelos, ansioso. “Eu... gosto de você.” E me olhou profundamente nos olhos, fazendo meu interior revirar. Vi sua boca tremer levemente com aquela fala, e eu senti minha respiração falhar. Ele prosseguiu após um breve momento de silêncio.
“E eu sei que não é recíproco na mesma medida, eu já sabia antes e sei que ainda é assim.” Mais silêncio, olhos nos olhos. Tínhamos finalmente chegado no ponto em que doía para ambos. E eu não sabia o que dizer.
quebrou o silêncio.
“Eu só quero que entenda que... Eu quero que seja sincera comigo quando isso aqui não funcionar mais pra você.”
“...” Minha voz saiu por um fio e eu tentei me aproximar, mas ele me interrompeu colocando a mão em meu ombro, e eu respeitei seu momento.
“Não, . É sério.” Ele fez uma careta antes de continuar. “Eu não estou pedindo pra você fazer nada que não queira. Eu sei que prometi ser o mais leve possível, mas não vou conseguir sempre. Você entende? Entende que às vezes a gente não vai concordar, não vai gostar de alguma coisa... Que vai se desentender?”
“Mas é claro!” Eu murmurei, aflita.
“Você entende que por mais que tenhamos um acordo, ele pode vir a ruir porque nada é pra sempre?” Eu apenas acenei, e ele prosseguiu, fungando. “Você entende que eu me sinto inseguro quando se trata da sua amizade com ele? Da sua aproximação repentina, de como vocês parecem tão juntos quando estão juntos? Eu não suporto isso! Eu não suporto ver vocês dois cheios de conversas mudas pelo olhar, cheios de sincronia, isso... Isso acaba comigo!” E uma lágrima de seu olho esquerdo desceu, mas eu estava tão chocada com o que ele dizia, que não consegui me ater a seu pranto.
“M-Mas ... Caralho!” Falei, colocando as mãos na cabeça. “Suportar? Como assim!? Não era você mesmo que há um tempo atrás estava sugerindo que eu voltasse a falar com ele? O que há agora? Você tá querendo que eu faça exatamente o contrário?” Eu desabafei, tendo dificuldades em manter a calma.
“Eu não estou dizendo pra que você se afaste dele!” Ele respondeu em urgência, e eu bufei.
“Então o que você está pedindo, merda?” Falei com rispidez e ele devolveu imediatamente.
“Compreensão! Paciência, porra!”
Era a primeira vez que eu direcionava um palavrão tão e diretamente pra ele e vice-versa, dentro de uma discussão, e aquilo... me assustou. Mesmo tendo certeza de minha face contorcida em susto, ele continuou no mesmo timbre de voz.
“Você por acaso sabe o que é estar com alguém e sentir que a qualquer momento essa pessoa, que é preciosa pra você, pode simplesmente ir embora?”
“Sei!” Falei alto, enfurecida. “O pior, , é que eu sei!” Bati com mão no peito, e vi um brilho passar pelos seu olhar, que se abaixou até o chão, envergonhado. “E se não é exatamente por isso que começamos a conversa que chegou ao nosso atual relacionamento, então eu não sei pelo que foi!” E cruzei meus braços, irada.
Como ele poderia considerar tanta coisa nada a ver? O que ele queria que eu fizesse? Que me afastasse de ? Ele estava agindo exatamente como meu melhor amigo há meses atrás, sendo um total sem noção! Eu não precisava abrir mão de ninguém que eu amava pra ser feliz, será que nenhum dos dois poderia entender isso?
O silêncio prolongado deixava apenas o som das folhas das árvores se batendo em meio ao vento que passava.
“E mais uma vez, o foco é ele...” Ele sorriu de forma amarga, olhando pro lado, e eu ri, incrédula.
“Não estou acreditando no que você acabou de dizer.” Falei, encarando o chão, com o olhar perdido.
“Sinto muito, mas é a verdade!” disse como se fosse óbvio, enquanto eu balançava a cabeça, desacreditada, com os braços cruzados.
“Você se ouviu, ?” Eu questionei, indignada. “Você se ouviu desde que abriu a boca pra falar?” Franzi a testa, sentindo uma raiva imensa dentro de mim. “Olha o absurdo! Se você não quer que eu me afaste de , afinal de contas o que quer? Está igual a ele, com argumentos infundados, insinuando que nossa aproximação pode evoluir para algo mais, mesmo quando nitidamente estamos com outras pessoas!” Contestei firmemente.
“Vocês estavam a menos de um palmo de distância um do outro naquela escada!” Ele acusou, visivelmente magoado. Senti minha boca abrir em um “o” enquanto eu mirava seu rosto, contorcido em raiva.
“Claro, . É óbvio seu pensamento, apenas... Perfeito!” Respondi, abrindo os braços no ar, debochada. “Porque, pense bem, não há um lugar melhor para trair você do que simplesmente a escada da sua cabana!” Eu falei alto, e ele riu, zombeteiro.
“Oh não, não há traição já que não namoramos!” Fechei a cara, irritada.
“Isso não é o ponto, !” Bufei rolando os olhos, sentindo minha energia ir aos poucos. Ele me olhou zangado, e eu molhei os lábios, respirando fundo antes de continuar falando.
“Você diz que se sente inseguro quando estou com ele, se baseando em dois fatos, cara.” Eu pontuei, com os dedos indicador e médio em riste. “O fato dele ser prestativo e levar minha mala. E o fato de estarmos conversando normalmente enquanto eu esperava você terminar seu banho. Entende como isso não faz sentido?” Indaguei, dando as costas e andando em círculos.
“Isso não é verdade! Eu falo baseado nos meus sentimentos e nos seus!” Ele acusou com o dedo apontado pra mim, e eu neguei com a cabeça.
“Se fosse assim, teríamos discutido muito antes, ! Na verdade, nem estaríamos juntos de alguma forma! Admita, você está apoiando a insegurança, o ciúme, a raiva, tudo em dois momentos completamente nada a ver!” Expliquei nervosa, e ele trincou o maxilar.
“Você falando desse jeito faz parecer ridículo.” Sua voz saiu seca.
“E não é?” Eu me virei de supetão, encarando-o. Ele me olhou chocado, e após um tempo, perguntou.
“Está dizendo que o que sinto é ridículo?”
“Meu Deus, não!” Rebati, jogando os braços pro alto. “Você deturpa tudo o que eu falo!”
“Pois é exatamente assim que me sinto também!”
“Bom, pelo menos concordamos em algo, olha que ótimo!” Respondi rispidamente, muito irritada.
Mais silêncio. Eu estava com calor, de tanta raiva.
“Essa conversa deveria ser um esclarecimento sobre como me sinto...” Ele comentou depois de um momento de silêncio, rindo de forma irônica.
“E eu entendi isso!” Falei, cansada.
“Pode até ter entendido, mas não liga muito, não é? Até agora, não vi você sugerir nada para me deixar mais seguro.” Ele perguntou retoricamente, me olhando com desprezo. Aquilo me alcançou num nível de chateação que eu nunca tinha chegado com . Suas palavras me fizeram aproximar dele com veemência, fazendo sua postura se enrijecer.
“Se eu estou te dando minha palavra que não há nada entre mim e , por mais óbvio que seja pra mim, não há o que ser feito, . Eu demonstro diariamente meu afeto por você, gosto de como as coisas fluem entre nós, mas sinceramente, não vejo outra coisa que possa ajudar.”
“Nós poderíamos namorar!” Ele exclamou e eu arregalei os olhos. Ficamos nos encarando num clima tenso: eu o olhando chocada, e ele dividindo o olhar entre o chão e eu, encabulado.
“... isso é sério?” Perguntei com a voz baixa. Ele deu de ombros, sem responder. “Eu... não entendo como as coisas mudariam entre nós.”
“Se não mudariam, porque não assumir que é isso que a gente tem? Eu só fico com você, você só fica comigo! Por que a resistência?” Ele abordou de forma incisiva e eu o encarei incrédula.
“A não ser...” Ele falou baixo e eu arqueei a sobrancelha.
“A não ser?” Repeti, com a voz mais imposta. Ele ficou em silêncio, mordendo o lábio inferior. “Fala, !”
“A não ser que você queira manter desse jeito para não se sentir tão culpada quando acontecer algo entre vocês dois!” Ele disparou e eu jurava que o chão tinha escapado debaixo dos meus pés.
“Você não disse isso...” Eu ri, descrente. “Você não disse isso. Retira essa merda, .”
“O que? Acha impossível?” Ele perguntou debochado e eu fiquei puta.
“Retira essa merda, !” Eu berrei, sentindo as mãos tremerem. Ele revidou à altura.
“Deixa de ser hipócrita! Fala a verdade, não me engana, cara! Como é possível que do nada ele volte a ser o seu melhor amigo, o cara que tem o posto mais alto de importância para você, mesmo depois de tudo que fez? Tá muito claro para mim que só tem um jeito possível, ! Então de uma vez por todas, me diz que merda aconteceu naquele ônibus!” Ele explodiu falando coisas que eu jamais esperava ouvir.
Eu arfei com sua fala final. Aquilo era o que ele realmente pensava? Que e eu passamos a viagem não só fazendo as pazes, como também traindo nossos respectivos parceiros?
Eu segui com a boca aberta, sem acreditar naquilo. batia o pé no chão enquanto os braços se mantinham cruzados. O olhar preso em qualquer coisa que não fosse eu, endurecido feito o maxilar trincado, indicando sua irritação.
“Então é isso que você pensa de verdade? Então esse é você?” Eu perguntei com a voz baixa. Ele me olhou e negou com a cabeça, sem exatamente falar nada.
“Você queria namorar desde o início, não é?” Perguntei retoricamente, e ele riu sem humor.
“Muito incomum querer namorar a garota que você tá afim, né? Mas fazer o que, se meus sentimentos não tem prioridades para você.” Ele devolveu com sarcasmo e foi minha vez de negar com a cabeça.
“Eu sei que você gosta de mim mais do que o contrário, e sei que devido a isso, as coisas sejam mais intensas para você em relação à insegurança, e eu respeito isso, . Mas daí concluir coisas tão... absurdas! Sério, o que você pensa sobre isso é tão tóxico, tão nada a ver que eu me pergunto se você sempre foi assim e eu que nunca vi. Porra, você quer falar que eu não respeito seus sentimentos? Eu fui a primeira a negar esse acordo entre nós justamente porque não queria ninguém mais sofrendo! Como pode dizer uma merda dessas pra mim? Dizer que você não é prioridade para mim?” E lá se foram as lágrimas, gotejando pelos olhos, o que fez mudar sua feição para frustração.
“...” Ele tentou e eu neguei com a cabeça.
“Eu posso ter uma série de defeitos! Mas dizer que não ligo pro que você sente, é injusto. É cruel!” E apontei para si, que suspirou cabisbaixo. “Entendo sua colocação sobre se sentir inseguro, e a única coisa que peço é que você acredite em mim. Mas não me force a fazer coisas que não tem sentido! Tipo me afastar de !”
“Eu não disse isso!” Ele exclamou de repente.
“Disse sim, porra! Disse sim! Não explicitamente, mas é isso que você quer! Então para que me falar tanta coisa? Dizer que a aproximação com ele te faz mal, que você suspeita que tivemos um caso no ônibus, e agora sugere namoro? Para que, ?”
“Eu me sentiria mais seguro! Seria um voto de confiança!” Ele respondeu irritado e eu retruquei.
“E que motivos eu te dei para não confiar em mim? Minha palavra não basta para você?”
“Então por que pisa em ovos quando te peço em namoro?”
“Porque eu só assumo um compromisso quando estou de corpo e alma para isso!” Exclamei, esbaforida. Ele me encarou incrédulo e eu suspirei cansada.
“Então você não gosta de mim o suficiente para me namorar?” Ele perguntou com a voz fraca e eu respirei fundo.
“Para o que eu entendo de namoro, não, . Quer me chamar de namorada? Quer chamar o que temos de namoro? Vá em frente. Isso não vai mudar de uma hora pra outra, só porque rotulamos o que temos. Eu vou seguir investindo o mesmo tipo de energia e compromisso de sempre, e afirmo com lucidez para você: eu gosto muito da sua pessoa, mas ainda não estou num nível de paixão, ou amor. Eu sei que dói ouvir isso, mas é a verdade. Eu não acredito em namoros que não sejam dedicação completa, quando tudo está de fato... pleno. Entende?” Ele riu sarcasticamente, balançando o dedo indicador para mim. Eu cruzei os braços, confusa.
“O que foi agora?”
“Você quer me convencer dessa desculpa esfarrapada? Quer dizer que não namora comigo porque não gosta o suficiente de mim? Sério, isso é tão inacreditável, . Vamos, você consegue ser melhor que isso.” Ele respondeu, rindo sem humor e eu franzi a testa. Ele estava batendo recordes em falar merda.
“Mas eu estou falando a verdade, ! Qual é o seu problema!?” Questionei furiosa e ele gesticulou com os olhos arregalados.
“Meu problema? Sério, quem na face da Terra já inicia um namoro apaixonado ou amando a outra pessoa? Isso leva tempo, cara! Namoro é uma tentativa, não é um compromisso vitalício contratual com multas a se pagar caso se encerre antes do esperado!” Ele explicou como se fosse óbvio e eu fechei os olhos para me concentrar.
“É o meu jeito de me relacionar, ! Eu não vou mudar isso porque você vê de modo diferente! Se não concorda, ao menos respeite!”
“Mais do que três meses como um cara compreensivo, paciente e apaixonado por você? Por favor, me ensine a ser melhor!” Sarcasmo no talo, e eu suspirei, rindo da sua atuação.
“Sinceramente, se você acredita que eu não quero assumir compromisso porque ‘não quero me sentir culpada quando ficar com ’, por outro lado me parece que você quer namorar para me chamar de sua, e torcer para que de fato eu te traia para que você se saia por cima. E se é principalmente por isso, você definitivamente tem problemas.”
Ele me encarou em silêncio, prendendo os lábios e me olhando sério. Ele não disse nada, e eu neguei com a cabeça ao pensar no ditado “Quem cala, consente.”. Mas que merda aquela conversa havia se tornado? Então era isso que ele pensava durante esse tempo todo, mas guardou para si por acreditar que não poderia me abordar por não ser sua namorada? Então, significava que ele faria u
m escarcéu, me acusando de inverdades caso tivéssemos um namoro de fato? Não sei quanto tempo ficamos em silêncio, mas foi o suficiente para minha voz sair um pouco rouca. A garganta estava seca quando comecei a falar.
“Sabe, ... Se de alguma forma eu sentisse que isso – e apontei dele para mim – não estivesse mais ‘dando certo’, eu conversaria com você. Não me agarraria com no ônibus, nem sentaria na escada da sua cabana e estaria aos beijos com ele ou qualquer outra pessoa. Então pense nisso da próxima vez que você quiser, de fato, conversar. Porque até então pareceu que você quis dar asas à sua insegurança, insinuando coisas que definitivamente não existem.” Cruzei os braços, mantendo o olhar no dele, que desviou para o lado, sussurrando algo que fez meu interior latejar.
“Não existem até então...” Foi baixo, mas eu ouvi perfeitamente.
“Como é, ?” Questionei, encarando-o literalmente puta da vida. E ele me retribuiu, visivelmente nervoso, enciumado, fora de si.
A verdade era que eu não esperava ter ouvido tanta coisa absurda numa só noite. Senti uma dor de cabeça se iniciar intensamente e respirei fundo, fechando os olhos com força.
Quando senti uma leve amenizada, abri meus olhos e percebi que ainda me encarava. Seu olhar parecia ser um misto de acusações com medo, e eu não entendia como ele poderia guardar tanta coisa consigo e parecer aquela pessoa tranquila e fluida que eu estava acostumada. Estava realmente chateada por ele nunca ter abordado nada daquilo, e ter sido pega de surpresa com tantas desconfianças e inseguranças em relação à nós, e a mim e . Coisas que às vezes poderiam parecer pequenas, e até de fácil resolução... Se de fato houvesse comunicação de ambas as partes. Eu tentei, fielmente. Mas falhou, e eu tinha a impressão de que não era o cara que eu tinha em mente, ou que achava que conhecia. Ele era maravilhoso em inúmeros aspectos, mas seu lado inseguro e ciumento dava poder a atitudes e falas inacreditáveis demais para simplesmente relevar e fingir que nunca existiram.
Ficamos assim por um tempo, até que eu suspirei, cansada. Senti uma nova pontada na cabeça e do nada ela começou a latejar bem nas têmporas, e eu levei meus dedos gélidos para a região, massageando-a.
Ali, naquele momento, percebi que precisava repensar o conceito de leveza do meu relacionamento com . Tudo bem que discussões eram normais, mas aquilo era uma lavação de roupa suja que parecia durar todo o tempo que estivemos juntos! Porra, o que aconteceu com o diálogo?
O que quer que fosse, era óbvio que não resolveríamos ali... Não daquele jeito, nem naquele momento.
“Olha...” Falei, depois de um tempo. “Tô cansada de brigar. De verdade.” E encarei com os olhos cerrados, sentindo as lágrimas virem novamente, ao vê-lo igualmente triste. “Eu não tô me sentindo muito bem. Depois a gente conversa, tá?” E me virei de costas, sem aguardar uma resposta.
“Peraí!” Ouvi dar largos passos até me segurar pelo braço, mas logo me desfiz de seu toque. Estava muito magoada com tudo, não queria seu contato. Vi que ele fungou novamente, tentando afastar sua tristeza, e eu apenas encarei o chão, esperando sua fala. “Você vai aonde? Não quer que eu...”
“Enfermaria.” Respondi, sem olhá-lo. “E não, não precisa vir. Eu quero ir sozinha. Quero ficar sozinha... Invente qualquer coisa caso perguntem.” Terminei, suspirando.
Ele murmurou um “sim” quase inaudível e eu acenei com a cabeça, me virando e indo embora. A dor de cabeça estava tão forte que as luzes dos postes me deixavam tonta.
Caminhei lenta e calmamente até chegar em meu destino, informando para a enfermeira o que estava sentindo. Estava insuportável, eu não conseguia nem abrir os olhos direito. Ela fez uma ficha minha, verificou os dados da escola e analisou se eu era alérgica à algum medicamento e me deu um para dor de cabeça, sugerindo que o tomasse logo após a refeição que já estava para acontecer.
Eu agradeci e saí de lá rumando diretamente para o bebedouro; não estava com fome nem com vontade de ver ninguém. Apenas tomei o remédio e caminhei quase me arrastando para minha cabana. A ideia era dormir, porém no meio do caminho vi um deque, de frente para o enorme lago que mais cedo apreciara.
Como uma resposta da natureza, fui atraída pelo vento, caminhando lado a lado com ele. Uma parte de mim se perguntava se a sensação de sentar naquele deque seria semelhante ao do balanço de meu condomínio, um dos meus lugares favoritos no mundo.
Com as expectativas altas, puxei o celular do bolso e desembolei o fone de ouvido, colocando-o corretamente e plugando ao aparelho. Corri pela lista de músicas e lá estava aquela perfeita, que casaria com o momento.
“Someone tell me how I got here
(Alguém me diz como fui parar aqui)
From the city to this frontier
(Da cidade até esta fronteira)
All the noises joined to make harmony
(Todos os sons se unem para fazer harmonia)”
Eu estava caminhando com as mãos no bolso do casaco, cantarolando a canção e cagando baldes para a reunião que o professor solicitou. Meu humor estava nitidamente alterado devido à discussão com – a dor de cabeça não deixava dizer o contrário – e naquele momento, nada melhor do que um analgésico e uma música tão pontual quanto a que eu ouvia.
“I was stranded on an island.
(Eu estava preso em uma ilha)
Where I run without Direction
(Onde eu corri sem nenhuma direção)
Is that the wind lifting me up?
(Isso é o vento me levantando?)”
Cheguei a rir comigo mesma, olhando para o céu absurdamente estrelado que aquela noite trazia. A graça era essa: minha relação com o tempo, o vento, as coisas estavam tão intimamente ligadas que de fato eu sentia o vento me animando, me erguendo. Como se estivesse me levando para um momento comigo mesma. De quem eu, no final das contas, precisava mais.
“Spirits flying at the speed of light
(Espíritos voando na velocidade da luz)
Travelling like a dream one night
(Viajando como um sonho em uma noite)
This hole in my heart's proof of life
(Esse buraco em meu coração é prova de vida)”
Cantei o refrão com mais afinco, chegando próximo à beirada do deque, admirando a imensidão azul daquele lago. Se eu tinha vontade de me jogar e nadar? Com certeza! Mas era inegável que o vento, bem como o clima, me convencia de que talvez, apenas talvez, seria interessante fazer isso outra hora... Uma na qual eu não me sentiria atravessada pelas palavras de , que não me sentisse mal por ele insinuar aquelas coisas que doíam feito o inferno...
“Life goes on, and the people sing their song
(A vida segue, e as pessoas cantam suas canções)
Love and hate together
(Amor e ódio, juntos)
They can make harmony
(Eles podem fazer harmonia)”
Quando finalmente decidi sentar num canto afastado (que não permitisse muita visão para alguém inspecionando o lugar), senti um arrepio gigante ao ver um par de sapatos à uns três metros de mim.
Como em cena de filme, fui subindo o olhar, até que encontrei quem eu menos esperava naquele momento. Rodeado de fumaça, ele me encarava de volta, com um uma sobrancelha erguida.
“Plunging back into the darkness
(Mergulhando de volta á escuridão)
It's not pain it's just uncertainty
(Não é dor, é só incerteza)”
Ficamos um momento curto nos observando, e ele agachou próximo a mim, puxando o fone direito e colocando em seu ouvido. O canto dos lábios se contorceu num pequeno sorriso e sua cabeça ritmou-se com a batida da música, ouvindo a estrofe final.
“I know my heart's missing her peace
(Eu sei que meu coração sente falta de sua paz (dela))
But it still beats
(Mas ele ainda bate)”
cantou a última parte, ainda me olhando, enquanto eu apenas piscava os olhos tentando entender o que estava acontecendo.
A música acabou, e ele retirou o fone, devolvendo-o para mim. Sentou-se ao meu lado e deu um trago em seu cigarro, encarando a natureza à sua frente. E eu permanecia naquele silêncio retardativo, como se tudo estivesse acontecendo em câmera lenta.
Os últimos cinco minutos eram amplamente refletidos em minha mente como um filme de antiguidade, no qual apenas as cores se diferenciavam da época em questão. E eu pensava em como as coincidências da vida ainda me deixariam louca, com toda essa mania de cruzar meu caminho com . Para ser mais exata, duas vezes na mesma noite.
Comprimi meus lábios enquanto observava a água escuro logo abaixo de meus pés. já estava lá antes de eu chegar, e era bizarro em como ele poderia estar em qualquer lugar, assim como eu. Mas não: novamente, estávamos juntos, unidos talvez pela mesma brisa envolvente, pelas estrelas tatuadas no céu, ou pelo lago e sua impotente presença.
Talvez isso tudo junto.
E uma bela música para acompanhar o momento.
Novamente a fumaça se fez presente, e eu fiquei olhando a água junto com . Se apenas naquela noite nós simplesmente deixássemos tudo de lado – e eu digo tudo mesmo, todas aquelas preocupações como ele descobrir que eu o amo, sobre os ciúmes sem noção dele e etc. – e fôssemos os amigos que sempre fomos... O quão feliz eu seria?
Com esse pensamento, apenas me deixei levar e o tratei como de costume.
“Fugindo da reunião?”
“Parece que você teve a mesma ideia.” Ele concluiu com o cigarro no canto da boca.
Sorri de uma forma zombeteira.
“Algo do tipo.” Dei de ombros, enquanto ele assoprava fumaça em direção ao lago, observando a escuridão do mesmo e o movimento oculto das águas.
“Está pensando em se jogar, não está?” Indaguei do nada, cruzando os braços.
Ele fez um “hm” com som de uma curta risada, e acenou com a cabeça.
“Você também?” Ele devolveu, virando metade de seu rosto pra mim.
“U-hum.” Eu confirmei, suspirando. “Acho que seria um belo jeito de começar o acampamento.”
“Morrendo de hipotermia. Gostei.” Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça enquanto matinha uma feição de quem aprovava meu “plano”. Eu ri abertamente, enquanto ele sorria.
“Vamos? Eu topo.” completou, e eu o encarei com as sobrancelhas erguidas.
“Você tá brincando, né?” Retruquei, levemente assustada.
“Ué, não. Por que eu estaria?”
Meus olhos analisaram a feição plena de e eu me vi rindo, nervosa.
“Está querendo morrer dessa forma? Congelado?” Ele deu de ombros, afirmando, e eu ri descrente. “Por que?” Me vi perguntando, com uma leve careta.
Ele tragou seu cigarro, logo liberando a fumaça com a cabeça erguida, e depois de admirar os formatos que a mesma desenvolvia no ar, deu um sorriso de canto e me olhou de soslaio. Buscou o lado do fone de ouvido que estava pendurado em seu pescoço e tateou minha orelha entre os fios de cabelo, colocando o aparelho corretamente para eu ouvir a melodia que tocava.
E assim, eu ouvi a frase que soava no fone, unindo-se com a voz de , que acompanhava a canção.
“To die by your side, it’s such a heavenly way to die... (Morrer ao seu lado é uma maneira tão divina de morrer).” Ele cantarolou, e voltou a encarar o horizonte, colocando o cigarro na boca.
Eu ri levemente, sem graça. Citar The Smiths naquela altura do campeonato era golpe baixo.
“Take me out tonight... Take me anywhere, I don’t care... (Me leve pra sair hoje à noite... Me leve a qualquer lugar, eu não me importo...)” Eu cantei baixinho, de olhos fechados, sentindo-me cansada de tudo, apenas querendo paz.
Fiquei um tempo assim, apenas respirando fundo e sentindo a brisa acariciar meu rosto, e a presença silenciosa de do meu lado. Sentia falta dessa tranquilidade, do silêncio confortável e não constrangedor entre nós; sentia falta de como convivíamos bem e raramente precisávamos explicar algo para o outro... Sentia falta de nossa intimidade e como nos conhecíamos tão bem que certas coisas e discussões eram desnecessárias.
Dentro de minha mente, eu pensava que mesmo com toda aquela conturbação que vivenciava nos últimos tempos com , a sua ausência era algo que superava todo o stress. Era difícil de admitir, mas era verdade. Entretanto, não significava que eu cederia e voltaríamos a ser amigos com ele fazendo o inferno diário em minha vida toda vez que me visse com – e algo me diz que depois de três meses, isso já estava mais ameno dentro de si. Pelo menos eu achava que sabia que não era o bicho de sete cabeças que ele julgava ser. Quer dizer, depois daquela briga, demonstrou ter algumas questões com ciúmes e insegurança, ok. Mas isso não justificava as desconfianças que tinha sobre ser um belo filho da mãe, e nunca deu motivos para que agisse daquele modo.
De toda forma, eu era adepta de um pensamento: se temos forças e capacidade para abrir a boca e magoar alguém com veemência – ainda que não seja nossa intenção – temos que ter a hombridade de se redimir na mesma ou semelhante proporção.
E mesmo com não criando nenhuma situação, mesmo ele tendo se afastado e estar visivelmente mais frio, calado, e respeitando meu espaço, ele ainda não tinha de fato verbalizado nada sobre suas suspeitas equivocadas em relação à . Por mais que ele expressasse isso em ações respeitosas, eu achava injusto que as palavras lhe faltassem apenas em momentos seletivos.
E por mais que naquele momento eu estivesse profundamente irritada com , não poderia ignorar todo o bem que ele havia me proporcionado antes dessa briga fora do comum. E que, em partes, ele trazia verdades no que dizia – principalmente no que sentia – só não achava justo que a partir disso, ele se achasse no direito de insinuar coisas que não existiam.
Coisas estas que, se fossem verdadeiras, eu seria a primeira a “terminar” com – porque pudera, meu desejo mais profundo de estar com estaria tornando-se realidade.
Mas aquilo não era realidade.
Meus olhos se abriram abertamente, e a imagem demorou a focar. Percebi que havia ficado de olhos fechados por um bom tempo – tempo o suficiente para perceber que me encarava de soslaio, com o cenho levemente franzido.
O encarei de volta, piscando algumas vezes e devolvi o fone para seu ombro, quebrando aquele clima intenso antes de conseguir falar algo.
“O que foi?” Perguntei, curiosa.
Ele permaneceu me olhando, até se virar pra frente e dar a tragada em seu cigarro. Esperei pacientemente que ele expelisse a fumaça até que, olhando o horizonte, me perguntou.
“Por que você estava chorando?”
Meu coração falhou uma batida com aquela pergunta. Como ele sabia!? Já fazia algum tempo que eu havia chorado enquanto discutia com , tinha até ido na enfermaria, passado um período lá... Como pode?
Engoli a seco, e não consegui responder. Fiquei encarando o chão, igual uma idiota, presa em meus próprios pensamentos. Não queria piorar as coisas, como também não queria ficar naquele impasse. Mas tudo que consegui foi manter o clima silencioso. Pelo menos até suspirar profundamente, o que me fez levantar a cabeça e olhá-lo.
soltou um “hm” sarcástico e deu uma nova tragada. Ficamos sem dizer nada, e por mais que estivéssemos num espaço aberto, eu me sentia sufocada por sua presença. Senti uma pontada da têmpora direita e suspirei, suplicando internamente que o remédio fizesse efeito logo.
“Sei que é algo.” Ele respondeu, terminando seu cigarro e jogando-o na lixeira. “Mas não se preocupe. Não vou insistir.” E mais rápido do que eu pude perceber, ele acenou com a cabeça e se virou para ir embora.
O que aconteceu logo depois foi inédito.
Eu simplesmente não entendi a mim mesma, mas era tarde para tentar de toda forma. Quando me dei conta de que aquele clima bom seria desfeito, simplesmente segurei o braço de , e ele estava parado de costas pra mim, visivelmente tensionado com meu toque.
Eu permaneci sentada, e ele em pé.
“Por favor... Fique.” As palavras simplesmente saíram da minha boca, e eu senti nó no peito insuportável. Eu não queria que ele fosse embora!
ficou um bom tempo na mesma posição, e se não o conhecesse tão bem, diria que ele simplesmente estava me sacaneando. Mas eu sabia que na verdade ele estava ponderando.
“Eu te fiz uma promessa...” Sua voz saiu mais grave do que de costume, e eu mordi meu lábio inferior, encarando suas costas subirem e descerem com sua respiração profunda.
Nós sabíamos do que sua frase falava.
Ele prometeu não se meter.
Prometeu ficar longe.
Mas se havia algo que nós também sabíamos, era que aquela promessa era impossível de ser cumprida... Pelo menos a longo prazo.
“Só... fique.” Eu falei, sentindo a voz embargar – e só aí senti seu corpo relaxar levemente.
Com a mudez imperando entre nós, e a ansiedade me corroendo, deduzi que ele estava silenciosamente negando minha solicitação – que mais soava como súplica – só estava constrangido demais para dizer em voz alta.
Fui aos poucos deslizando minha mão de seu braço, aceitando que aquilo era o melhor, e desisti de tentar convencê-lo a ficar. Eu realmente estava cansada demais para qualquer coisa. Estava, inclusive, cansada de perder algo em prol de outro. Era como se eu nunca pudesse ter a amizade e se estivesse com . Tanto pra um quanto pra outro. E aquilo, me deixava aflita num nível que eu simplesmente não conseguia mais lidar.
Mesmo no frio, decidi “libertar” de meu enlaço e me virei de costas, deixando-o ir sem que me sentisse mais ridícula do que já estava. As lágrimas desceram aos poucos, sem nenhum aviso prévio. O vento bateu forte dessa vez, e eu me permiti chorar de olhos fechados, deixando que a natureza me abraçasse em seu acalento.
Não havia som em meu choro, e eu apenas estava mergulhada em deixar aquela mágoa sair através do meu pranto. Estava tão cansada de tudo, de perceber que nada seria igual a antes... E aquilo me matava por dentro. Porque eu sentia muita falta da tranquilidade de tudo.
Eu estava aprendendo a lidar com meus pensamentos, tentando digerir junto com o que sentia, abraçada aos meus próprios joelhos. Foi quando percebi, pela visão periférica, que retrocedeu alguns passos, e estava novamente a meu lado. Prendi meus lábios aflita, e me encolhi, escondendo meu rosto molhado e meu choro. Mesmo tentando fugir de seu olhar, não consegui me impedir de seguí-lo pelo canto dos olhos. E percebi quando se sentou de costas para o poste, com uma perna apoiada na beirada do deque, e a outra flexionada. apoiou o braço direito no joelho erguido, e a outra mão retesou em seu colo.
Seu olhar queimava em mim, mas ele não dizia nada. Ele só estava ali, se fazendo presente, me observando de um jeito que se tornava insuportável. Tentei lutar mais um pouco contra o ímpeto de virar-me e encará-lo. Mas...
, mais uma vez, havia vencido.
Virei meu rosto cansado em sua direção, e por mais que sua feição fosse dura feito uma pedra, eu pude ver em seus olhos a preocupação que o cutucava a cada segundo.
Ficamos nos olhando por um bom tempo; eu, deixando as lágrimas silenciosamente caírem como cascata em meu rosto, e , pressionando o maxilar e fechando as mãos, como se fizesse um esforço crucial para se segurar de algo que o corroía por dentro. Só não sabia dizer o que, exatamente.
Quando um soluço tomou vida em minha boca, as coisas aconteceram muito depressa; a fortaleza presente no rosto de se desfez, e eu pude ver o momento em que ele murmurou um palavrão.
Ele veio rápido em minha direção, e eu lhe lancei um olhar alarmado – o que não foi capaz de pará-lo. Para minha surpresa, ele me envolveu em seus braços e com uma facilidade invejável, me trouxe pra perto de si, me abraçando apertado.
Eu demorei um pouco para entender o que tinha acontecido – ou acreditar no que estava acontecendo. Mas lá estava , encostado no poste, com as pernas abertas para me abarcar em seu colo-abraço. Ele me apertava contra si, e meu rosto estava apoiado em seu peito, que era encharcado pelo meu choro.
“, o q-que...” Eu tentei dizer, assustada, mas ele me interrompeu.
“Não, por favor.” Ele se ajeitou comigo em seu colo, e eu franzi a testa diante da interrupção gratuita. “Pelo amor de Deus, só fica quieta...”
Eu ainda fiquei alarmada, tensionada em seu colo, confusa. Até que, logo acima da minha cabeça, senti seu suspiro rebater em meus cabelos, e fechei os olhos levemente, tentando me acalmar.
“Eu não vou perguntar nada. Só me deixa fazer algo útil, para variar.”
Com aquela frase, eu senti um pequeno sorriso brotar entre minhas lágrimas. estava tentando me acolher, e manter sua promessa. Aquilo foi tão apaziguador dentro de mim, que me permiti abraçá-lo de volta com a mesma intensidade.
“Por favor, não me deixa sozinha.” Eu dei voz ao meu pensamento, e senti seu peito vibrar com uma leve risada.
“Eu não vou a lugar algum.” Ele disse de uma só vez, acariciando minha cabeça.
Ouvir aquilo me deixava extasiada.
Mesmo que as lágrimas descessem pelo meu rosto.
Mesmo que eu estivesse bem triste.
Mesmo que a dor de cabeça não tivesse dado uma trégua.
Mesmo que ainda tivéssemos nossos problemas.
Eu sabia, no fundo, que o que ele tinha dito era verdade. E a recíproca, era tão verdadeira quanto sua fala.
Ficamos um bom tempo assim, até que me acalmei a ponto de conseguir parar de chorar. Mas eu não queria sair daquele abraço – e algo me dizia que também não. Mas foi inevitável quando senti algo dentro do casaco dele vibrar; meu corpo tensionou levemente com aquilo e suspirou, impaciente. Levou sua mão foi até o bolso e pegou o aparelho, encarando o visor com ar de tédio. Era uma ligação, porque o celular vibrava e a tela piscava.
“Alô.” Ele atendeu, enquanto eu saía do enlace, me sentindo um pouco estranha, sem graça. “Hm.” Ele respondeu, e eu o encarei, percebendo que me olhava sério. “Hm. Uhum. Uhum. Ok.” E desligou, sem alterar o humor.
Ficamos mais um tempo em silêncio, até que percebi ele ajeitando a postura.
“Estão à nossa procura. Parece que Doug deu a desculpa de eu estar no banheiro, e você está na enfermaria, com enxaqueca. Confere?” Ele perguntou, com a sobrancelha arqueada.
Suspirei, pensando que quem deu a desculpa em meu nome, havia sido .
“Sim.” Respondi, me levantando sem a mínima vontade de encarar ninguém.
Logo fez o mesmo, e começamos a caminhar lado a lado, e assim que saímos do deque, ele comentou:
“Você não precisa ir, sabe...” E eu o olhei, confusa. “A minha desculpa era o banheiro. Você tem a enxaqueca. Bem mais válida pra fugir de uma chatice daquelas.” E eu sorri levemente, mesmo me sentindo triste.
“Não estava com vontade antes, mas sei lá. Acho que dá pra aguentar.” Se você estiver comigo, completei mentalmente. Dei de ombros, chutando pedrinhas pelo caminho. “Vai que é importante?”
“Ah, claro... Vai ser tão importante quanto o discurso do Windenberg.” Ele falou sarcasticamente, e eu ri.
“Tente se divertir, ao menos.” Retruquei, olhando para o prédio central, que se aproximava a cada passo.
“Eu estava fazendo isso momentos atrás.” Eu me virei para olhá-lo com uma feição sugestiva, e ele respondeu sem me encarar. “Fumando.”
Acenei com a cabeça, me sentindo lixo, mas fiz como sempre – disfarcei com uma piada irônica.
“Bela diversão.” Olhei para , que brincava de acender o isqueiro, e eu fiquei viajando na forma que a chama aparecia e desaparecia, repetidamente.
“Quando você começou a fumar?” Perguntei, levantando o olhar para seu rosto. Ele suspirou, e sem me olhar, respondeu.
“Eu sempre fumei de vez em quando... Socialmente.”
“Sim, em festas e tal...” Acrescentei, encarando o isqueiro. “Mas não estamos em uma.”
apenas murmurou um “hm” abafado e seguimos caminhando. Estávamos perto o suficiente para ouvir as vozes, mas antes de entrar, percebi que ele parou há alguns metros de distância.
“O que foi?” Perguntei, olhando-o.
“Vai na frente. Você sabe...” E suspirou, quando fiz cara de que não sabia de porra nenhuma. “Podem achar estranho e falar algo.” Ele explicou, gesticulando com a mão direita.
Eu cruzei os braços e sorri zombeteira.
“Desde quando você se importa com o que dizem de você?”
“De mim, desde nunca. A questão é você. Não quero arranjar problemas... Nem pra você, nem pra banda.” Ele respondeu numa tacada só, me encarando sério, e eu concordei, sem graça.
“Ok.” Não tinha mais nada pra falar, não é? Mas antes que eu entrasse, me virei para si e andei de costas em direção à porta, encarando meu melhor amigo. “Hm, ?”
Ele moveu a cabeça, como quem diz que está atento.
“Obrigada. Você sabe... Por tudo.” E sorri, genuinamente.
Ele olhou pro lado, e pude ver um sorriso brotar no canto dos seus lábios. Ele deu de ombros e voltou a me observar.
“Não por isso... Me paga um maço de cigarro e tá tudo certo.”
“Você é um mercenário filho da puta.” Eu respondi rindo, abrindo a porta.
“Conhece mamãe?” Pude ouvir enquanto eu entrava no ambiente – não sem antes mandar o dedo do meio para fora.
Fui caminhando até o local onde todos estavam, e sentei do lado vago de , que me olhava alarmada.
“Você poderia disfarçar melhor, sabe.” Eu comentei, mexendo a boca para o lado.
“Não me peça coisas impossíveis!” Ela sussurrou, e eu ri de leve. “Pela cara do , as coisas não foram lá muito boas, né?”
Eu olhei disfarçadamente para , que encarava as próprias mãos, sem realmente prestar atenção no que o professor falava. continuava esperando resposta, e eu suspirei, confirmando com a cabeça.
“O quão grave?” Ela perguntou, e eu encarei o chão.
“Grave.”
“Ai, Deus.” Ela comentou, e eu a olhei com uma careta de dor.
“Digamos que tinham coisas absurdas não ditas desde o início...” Cocei a nuca, incomodada por ter que repetir as frases que ouvi. “Basicamente ele deu a entender que a reaproximação com pode significar que estamos juntos ou algo do tipo. Dá pra acreditar nisso?”
Se não fosse tão trágica a situação, eu me permitiria rir com a cara de choque de . Sério, aquela pessoa merecia um programa só dela.
“Sério?”
“Muito sério. E que eu nunca assumi namoro para não me sentir culpada caso ficasse com .” Arregalei os olhos, fingindo prestar atenção no professor quando o mesmo olhou em minha direção. esperou que ele desviasse para continuar com seu questionário.
“Como ele pode deduzir um treco desses?”
“Ciúmes. Insegurança. E uma bela dose de machismo.” A encarei de lado e ela rolou os olhos, concordando com a cabeça.
“Foda, cara.” Ela falou e eu mordi o lábio inferior quando o professor novamente nos olhou. Acho que aquilo foi um sinal.
Olhei rapidamente de para ele, para que ela entendesse que precisávamos nos calar – por enquanto.
E inevitavelmente, foi impossível não ficar quieta – e um tanto contemplativa – quando a porta se abriu e eu avistei se aproximando. Era ridículo o quanto meu interior revirava de ansiedade só por vê-lo? Bastante.
Tentei disfarçar estalando os dedos e tentando focar na figura docente, mas era difícil. estava tão lindo sendo ele mesmo – e eu não tinha reparado devido à meia luz do poste, lá no deque.
Ele se aproximou e sentou relativamente afastado no grupo, devido a disponibilidade de lugares. Mas antes disso, me deu uma olhada significativa, prestando atenção no professor logo em seguida. E mais uma vez, meu estômago deu sinal de vida com isso, e eu me abracei, me sentindo sem graça.
“Parece que a história não foi totalmente contada...” cantarolou enquanto fingia um sorriso de mostrar os dentes, e eu tive que comprimir uma risada com sua observação.
“Tu é fofoqueira pra caralho...” Eu imitei seu gesto, e ela riu, se engasgando em sua própria saliva – sendo salva pelo gongo, pois estava prestes a gargalhar quando as risadas foram convertidas em tosses sufocantes. Com direito a batidinhas nas costas.
“A senhorita está bem?” O professor perguntou, e depois de pigarrear umas duas vezes, confirmou com a cabeça, fazendo-o prosseguir com sua fala.
“Ele disse alguma coisa importante?” Sussurrei e ela negou disfarçadamente com a cabeça, logo respondendo sem mexer a boca direito.
“Apenas uns detalhes. A parte importante vem agora.” Nos entreolhamos e decidimos que silenciosamente prestar atenção no que o professor dizia.
Só naquele momento percebi que outros professores e professoras estavam presentes, nos encarando com sorrisos gentis e outros nem tanto. Fiquei me perguntando se eles estavam ganhando hora-extra devida – e algo me dizia que não, pelas caras e posturas cansadas. Meus pensamentos foram interrompidos pela fala do professor de educação física.
“Bom, como este será um evento para todos, vamos avaliar não só as pessoas inscritas como atrações no Show de Talentos.”
Como é que é? Show de Talentos?
Encarei com o olhar alarmado, e ela fez uma careta óbvia, dando de ombros.
Putaquepariu.
“O que significa que vamos analisar a capacidade de vocês de construírem um projeto e conseguir colocá-lo em prática. Alguns critérios como: trabalho em equipe, criatividade, desenvolvimento, composição com todas as etapas do projeto, habilidades manuais, artísticas, espírito de liderança e finalização serão avaliados. Dependendo de como se saírem nesta mega atividade, grande parte dos pontos serão revertidos para notas em disciplinas, e isto será analisado junto aos outros professores diante de cada caso em particular.” Ele pontuou, sorridente, e se virou para a professora de matemática. “Dando um exemplo: Corinne está pendurada em matemática. A professora sugeriu que houvesse um tipo de gincana que envolvesse problemas matemáticos a fim de que Ana, coletiva e individualmente, alcance os objetivos propostos e ganhe pontos para a matéria que precisa. Bom, quem tiver dúvidas, levante a mão que eu responderei.”
Um monte de gente ergueu o braço e a cara do professor foi impagável. A professora de matemática não escondeu a frustração e suspirou, e eu me senti cansada só de vê-los naquela situação. De fato, eu ainda estava tentando entender “o espírito da coisa”, da proposta que eles fizeram, quando ouvi bufar do meu lado.
“To fudida.” Ela constatou, batendo na testa. “Fiquei por um e meio em matemática!”
“Porra, nem fala...” Respondi, suspirando. “E eu em Literatura. Dei mole...”
“Porra, sério?” Ela me encarou com o cenho franzido. “Mas você é ótima em Literatura!”
“Eu confundi algumas épocas clássicas e simplesmente perdi metade da prova nisso. Foi no mesmo dia da de química, que eu passei raspando, inclusive!” Expliquei, colocando a cabeça entre minhas mãos.
“Então isso é tipo férias pra alguns e um inferno pra outros?” Doug comentou, cruzando os braços. “Que sadismo.”
“Como assim?” perguntou, e ele deu de ombros pra explicar.
“Ué, os nerds, por exemplo, passaram direto. Pra eles, não tem nenhuma pressão.” Eu e ela acenamos a cabeça, compreendendo a colocação de Doug.
“Eu achei que só teríamos uma forma de lidar com isso; através da prova de recuperação, depois do acampamento.” Eu comentei, dando de ombros.
“Acho que todos pensavam assim.” acrescentou, fazendo uma careta de dor.
“Mas não é exatamente isso...” Doug explicou, encarando a multidão que cercava o professor. “A gente pode escolher participar, e se conseguirmos a nota, não precisamos fazer a prova. Agora quem não quiser, pode simplesmente curtir o acampamento e só fazer a avaliação quando voltarmos. Com o Show de Talentos e a prova de recuperação, você tem duas formas ao invés de apenas uma, de alcançar a pontuação que precisa. E uma chance a mais de terminar o Ensino Médio esse ano. Entenderam?”
“Ahhh.” Eu e encarávamos Doug com uma estranha surpresa, enquanto o mesmo sorria com cara de tédio.
“E você, bonitinho? Vai curtir ou vai precisar lutar igual nós?” Perguntei, sorrindo de forma debochada.
“Acreditem se quiser, mas fiquei em física. Dei mole.” Ele rolou os olhos, e tanto eu quanto ficamos com dó da criança.
Física? Química? Valei-me Cristo.
“E no que você está pensando para garantir sua nota?”
Doug deu um sorriso diabólico que me fez arquear a sobrancelha.
“O professor disse que tínhamos a possibilidade de abordar uma das matérias na ‘prática’, como foi o exemplo da gincana de matemática...” E cruzou os braços, olhando para o nada enquanto sua cara denunciava a mente trabalhando. “Estou pensando num plano muito bom, mas preciso reunir informações primeiro para colocá-lo em ação.”
Eu e nos olhamos prendendo a risada, enquanto viajava em seus próprios pensamentos.
“Atenção, atenção! Eu sei que muitos estamos em dúvida, e todas serão tiradas na medida do possível!” O Professor anunciou, um pouco desesperado. “Mas por favor, vamos nos sentar e responder um por cada, certo?” E uma penca de alunos se sentou com o braço erguido, fazendo a careta de dor do professor tornar-se visível.
“Lembrando que quanto mais demorarmos aqui, mais tempo vai levar para o jantar.” A professora de matemática anunciou, e vários braços foram abaixados. Os professores trocaram um sorriso cúmplice, e com mais tranquilidade, foram respondendo às questões.
Alguns estudantes já tinham ideias que gostariam de desenvolver, outros só perguntavam coisas na beira do desespero por estarem pendurados em muitas matérias. Com uma calma assustadora, o professor foi respondendo um por um, às vezes se tornando repetitivo em suas explicações, sem perder a pose.
“Pessoal, a ideia principal está sendo apresentada hoje, mas é óbvio que não vamos sanar todas as dúvidas agora. E esse nem é o objetivo, na verdade. O que esperamos é que vocês coloquem suas cabecinhas lindas e incríveis para pensar e que amanhã possamos discutir melhor sobre isso. Então aproveitem o jantar e o tempo restante até o toque de recolher para que vocês troquem ideias entre si, planos e o que mais desejarem. Lembrando que às 22h eu quero todo mundo indo dormir! Esse é o combinado!”
Algumas reclamações e vaias diante do horário proposto, mas a professora de matemática logo se colocou no meio, puxando o apito do professor e soando alto em nossos ouvidos. Nos encolhemos diante do som estridente, e recebemos uma cara séria da professora.
“Vocês são quase adultos, mas estão aqui sob nossa responsabilidade! Não esqueçam disso!”
O silêncio sepulcral entre o medo de levar um esporro ou perder pontos na disciplina era tão grande que poderíamos ouvir os grilos que cantavam há quilômetros de distância.
“Certo, agora educadamente vamos nos encaminhar para o jantar. Não esqueçam de lavar as mãos e agradecer à equipe da cozinha pelo trabalho maravilhoso!”
“Parece até a minha mãe.” comentou, piscando abismada. “É assustador.”
Eu e Doug rimos, e enquanto nos levantávamos, percebi que se aproximou timidamente de nós.
Eu e nos entreolhamos rapidamente, e ela fez uma cara como quem diz “e aí?” e eu simplesmente neguei com a cabeça, agarrando em seu braço.
O clima ficou esquisito, e , que já não olhava em meus olhos, decidiu fingir que o chão era interessante e ficou olhando pra ele, enquanto caminhava ao lado de Doug.
me olhou com a sobrancelha erguida e eu fiz uma cara apreensiva, negando com a cabeça. Ele suspirou e logo deu um tapinha no ombro de , que levou um susto.
“E aí, ! Já pensou no seu projeto?” Doug deu um sorriso de mostrar os dentes que lembrava o de Jack Nicholson em ‘O iluminado.’. Eu sei, bem medonho.
“Não sei ainda...” Ouvi responder, enquanto eu seguia mais atrás com . “Eu não tô conseguindo pensar muita coisa.” E olhou por cima do ombro, visivelmente me procurando, mas eu simplesmente virei a cara para o outro lado e fingi indiferença.
“Ora, vamos! Temos que animar, é uma chance de terminar o ensino médio!” Doug estava tão falsamente animado que chegava a doer, e simplesmente não conseguia não rir daquela cena. Minha cara estava quente e eu me sentia idiota. “Em qual matéria você está pendurado?”
“Física.” respondeu, e o olhar psicopata de brilhou no salão todo.
“Magnífico, meu caro!” E abraçou pelos ombros, caminhando mais rápido e forçando-o a fazer o mesmo. “Simplesmente magnífico! Eu tive uma ideia...” E devido à distância, não consegui mais ouví-los.
Suspirei aliviada enquanto me olhava com uma cara preocupada.
“Foi tão duro assim?”
“Eu sinceramente não tenho mais cabeça pra viver o dia de hoje, .” Comentei, instantaneamente me agarrando mais em seu braço. Ela me envolveu num abraço caloroso enquanto caminhávamos lado a lado.
“Relaxa, não precisamos falar disso agora. Ninguém merece se estressar tanto, não é?”
“Porra, nem fala. Eu fiquei com uma dor de cabeça que não passou completamente até agora...” Esfreguei minhas têmporas, enquanto fungava o nariz com uma careta estranha. Eu parei o que estava fazendo e a encarei, confusa. Ela veio com seu nariz pra cima de mim, cheirando o ar ao meu redor, até que pegou em meus cabelos e os cheirou.
“Eu tomei banho, cara.” Falei, fazendo uma careta óbvia. “Você estava comigo, inclusive.”
“.” Ela me olhou com uma sobrancelha arqueada. “Você andou fumando? Você tá cheirando a cigarro. E não é um dos vagabundos não.” E cheirou de novo meu cabelo, enquanto eu me afastava e batia na sua mão, que insistia em trazer meu cabelo pra perto de suas narinas.
“Como você sabe que não é barato?” Eu questionei, tentando disfarçar meu estado envergonhado.
“Meu irmão fuma uns desses de vez em quando...” Ela deu de ombros, olhando pra cima enquanto pensava. “Geralmente quando sai e volta três horas da manhã bem bêbado, com a roupa toda bagunçada e um sorriso desgraçado no rosto.”
Eu ri de seu comentário, imaginando Adam tropeçando nas coisas até chegar a seu quarto.
“Mas você não respondeu minha pergunta.” Ela olhou pra mim com um sorriso debochado e cruzou os braços, arqueando a sobrancelha. “Porque você estava fumando... qual é o nome mesmo? O...” Ela estava com a mão no queixo, tentando se lembrar, quando do nada brotou do seu lado, com uma cara aparentemente inabalável, respondendo sua pergunta.
“Black.” E nos olhou, sem alterar a feição. “Esse aqui.” Ele puxou rapidamente o maço do bolso, e mostrou o suficiente para que apenas nós víssemos, e logo guardou de volta.
Minha cara estava pelando enquanto não escondia a surpresa e o riso frouxo, olhando de mim para .
“Então...” Ela perguntou, prendendo os lábios num movimento ridículo e falho, tentando não rir, enquanto eu hiperventilava, e a olhava com cara de paisagem. “Você tá fumando?”
Ele deu de ombros, acenando rapidamente a cabeça e olhando para frente, com a maior naturalidade do mundo. Ela olhou pra mim, e sua cara era tão vergonhosa que eu mirei meus pés. Mas isso não impediu que ela seguisse com sua fala.
“Então por que você tá com o cheiro de...” Ela ia perguntar, e eu respirei fundo, rolando os olhos.
“Estava vindo para cá enquanto fumava, e encontrei no meio do caminho. Ela deve ter ficado com o cheiro.” Ele respondeu, dando de ombros, enquanto não escondia a cara de deboche, misturada com “me engana que eu gosto”.
Eu estava sentindo coceiras na nuca de tão sem graça que estava. estava nitidamente mentindo – ou omitindo fatos – e eu não conseguia acompanhá-lo com tanta naturalidade. Quer dizer, ficamos um bom tempo abraçados. Mas explicar isso para seria suicídio, dando asas à imaginação daquela mulher.
“Sério, ?” Ela se virou pra mim, e eu olhei dela para , com a maior cara lavada do mundo, e apenas acenei a cabeça.
“Por que?” indagou, arqueando uma sobrancelha para , que arregalou os olhos e prendia mais ainda os lábios para não rir. “No que está pensando, Amaral?”
Ela demorou um tempo para responder verbalmente. Sua cara mudava de feições, enquanto ela apenas negava com a cabeça – e eu simplesmente suspirava nervosa com aquilo tudo.
“Nada! Apenas pensei que estava fumando. Você sabe, o cheiro está bem forte... Pra quem só te acompanhou até aqui.” Ela se explicou, erguendo as palmas da mão pra cima.
sorriu de lado por um milésimo de segundo, e voltou à sua face de costume, dando de ombros.
“Ou você tem um belo olfato.” Ele respondeu, olhando para nós duas com naturalidade, e acenou com a cabeça, antes de entrar no banheiro masculino.
ficou me olhando e eu decidi andar um pouco mais na sua frente, entrando no banheiro feminino com pressa, enquanto escutava sua risada descrente.
“Você tá me escondendo algo, sua safada?”
“Cala a boca, cara.” Respondi, rindo sem graça, e nós duas nos entreolhamos pelo reflexo do espelho, enquanto outras garotas entravam e saíam do local.
Ficamos um tempo nos encarando, até que ela bufou e cruzou os braços.
“E então?” E eu juro, ela até bateu pezinho. Seria engraçado se não fosse trágico.
“Não é nada do que você está pensando, mas... Eu estava mal e ele me acolheu, me escutou, e abraçou. Só isso. Podemos por favor falar disso mais tarde?” Comentei com uma careta, e ela riu de novo, acenando com a cabeça.
“Vou te dar essa colher de chá.” E moveu o indicador na minha direção, enquanto entrava num dos boxs do banheiro. “Mas não se acostume!”
Eu ri e rolei os olhos, enquanto entrava no box vazio a seu lado.
Foi o xixi mais longo da minha vida.
***
Quando voltei do banheiro com , os meninos já estavam sentados em uma mesa, com seus pratos de comida. Estava entrando na fila com minha amiga tagarela, que não parava de especular o que poderia ter acontecido para que eu estivesse com o cheiro de cigarro de – segundo a mesma, a trégua que ela deu não incluía suas hipóteses malucas e um tanto efusivas diante dos últimos acontecimentos. Eu estava prestes a enfiar a faca em sua língua para simplesmente ter paz, quando finalmente chegamos à mesa com nossas comidas.
O clima estava visivelmente tenso, Doug me olhava com cara de socorro enquanto lançava olhares desesperados entre um cabisbaixo que mal tocava comida, e um muito indiferente mastigando seu macarrão ao molho branco, prestando atenção na arquitetura do local.
Respirei fundo, pensando que sim, aquilo estava insustentável.
“E então, gente...” Comentei, recebendo um olhar de agradecimento de Doug, enquanto mexia no meu brócolis, sem vontade. “Vocês já sabem o que vão fazer?”
Os meninos me olharam, e Doug pigarreou sem graça, batendo no ombro de – que parecia ter despertado apenas naquele instante.
“Eu e estamos tramando um bom plano. Ficamos em física.” E fez uma cara de dor (e eu sabia que não era sobre a matéria, e sim pelo clima da mesa).
“Bem, eu to fudida.” assumiu, enquanto terminava de mastigar um pedaço de sua lasanha. “Matemática, gente. Gincana! Sério?”
Todos acenaram, genuinamente sentidos pela situação de .
“Pelo menos Literatura não será tão difícil... Eu dei mole mesmo.” Comentei, dando de ombros.
O silêncio se seguiu, e todos olharam para , esperando sua fala. Ele estava mastigando pacientemente quando após alguns minutos, percebeu o olhar de todos sobre si. Ele engoliu rapidamente, com os olhos meio arregalados, e respondeu.
“Português e inglês.” E todos acenaram com a cabeça, enquanto eu franzia a testa.
“Sério?” E ele confirmou, com uma careta.
“Estranho, eu sei.” Ele disse, dando de ombros, enquanto eu concordava com a cabeça – me referindo ao fato de serem disciplinas nas quais ele não tinha dificuldades. “Não tinha dormido nada na noite anterior. Acordei com o sinal tocando, e entreguei as duas provas em branco, manchadas pela minha baba de sono.”
e Doug riram levemente, e eu sorri com pena. sequer disse ou fez nada.
“Sinto muito.” Comentei, comendo o brócolis. apenas deu de ombros, pegando o copo de mate.
“Não sinta. Vai dar tudo certo.”
Eu sorri mais genuinamente, afirmando com a cabeça, encarando , que me retribuiu o gesto. Estava retornando o olhar para o meu prato, quando senti os olhos de sobre mim. Nos olhamos brevemente, e o ressentimento em sua feição era nítido. Eu ignorei a pontada no peito e fechei a cara, focando em meu prato.
Estávamos comendo em silêncio, ouvindo apenas os barulhos dos talheres nos pratos, quando de repente engasgou violentamente com sua comida. Doug, que estava a seu lado (entre ele e ), deu alguns tapas em suas costas e ofereceu água – mas simplesmente ignorou, com o olhar fixo em um ponto atrás de nós, mais precisamente, pro centro do refeitório.
“O que foi, ?” Doug perguntou, e eu arqueei a sobrancelha.
“Atenção, pessoal! Desculpe interromper a refeição de vocês, mas agostaria de apresentar-lhes uma pessoa muito especial!” A voz do professor ecoou, fazendo com que todos, pouco a pouco, virassem para encará-lo. Como eu estava de costas, fui me virando, até que avistei o professor sorridente, de pé, ao lado de uma jovem de longos cabelos platinados e sedosos presos num rabo de cavalo alto. Olhos azuis parcialmente escondidos por sua franja milimetricamente ajeitada, e um corpo de dar inveja em todas as garotas presentes no salão.
Eu estava franzindo a testa, porque aquele rosto não me era estranho. Até que tudo aconteceu ao mesmo tempo;
Eu lembrei de quem se tratava – e era o mesmo motivo pelo qual havia se engasgado. E antes que eu pudesse falar qualquer coisa, a voz do professor ecoou, anunciando a surpresa da noite – particularmente endereçada para mim e para .
“Essa jovem, filha do Sr. Windenberg, gentilmente se voluntariou para nos ajudar no Show de Talentos.” O professor colocou as mãos nos ombros dela, que sorriu feito uma Miss Universo. “Por favor, recebam com muito carinho, nossa querida Charlotte!”
O garfo caiu da minha mão e meus olhos se arregalaram, sem acreditar no que estava acontecendo.
Aquela era Charlotte. Filha do dono do acampamento. Uma amiga que fiz num outro acampamento, anos atrás quando meus pais se divorciaram. Na mesma ocasião em que conheci e me apaixonei por .
A mesma amiga com quem ficou, anos atrás.
Estava ali, de pé. Linda, bela, estonteante. Fazendo se engasgar, e me fazendo derrubar o garfo da minha mão.
A vida, meus amigos... Não é para principiantes, nem amadores.
Entendi que nem tão cedo ele seria a pessoa a quebrar o silêncio, e uma parte de mim se questionou porque ele deveria, já que quem chamou para conversar fui eu.
“Hm... Então, ...” Comecei pigarreando, me sentindo muito desconfortável.
Ele apenas levantou o rosto e me encarou.
“Bem...” Eu cocei a ponta do nariz, um pouco nervosa. “Por acaso você está chateado comigo?” Fui direto ao ponto, mordendo internamente minha bochecha.
estava com as mãos no bolso do casaco, e ainda olhava pra mim quando fiz a pergunta. Ele suspirou, negou com a cabeça e olhou para um ponto qualquer à sua direita.
“Não.” E pareceu ponderar, antes de continuar. “Realmente não estou chateado.”
Mas não estava no seu normal também, pensei. Respirei fundo, pelo visto precisaria cavar para entender.
“... Você sabe que pode ser sincero comigo, não é?” Me aproximei dele, com um olhar receoso, porém intenso.
“Eu sei.” Ele respondeu, finalmente me olhando nos olhos. “E estou sendo sincero, não estou... chateado com você. Estou apenas confuso.” Prendi meus lábios para dentro quando ouvi sua frase.
“E por que, exatamente?” Cruzei os braços, e senti a tensão nos ombros dele, que desviou o olhar para o chão.
“Por muitas coisas. Na verdade, estou bem confuso.” Ele riu sem humor, e levantou o rosto para olhar pra mim. “E receoso.”
“Receoso? Por que?” Senti minha testa franzir em confusão.
Ele me encarou com dor no olhar, e sua boca se tornou uma linha fina. Ele respirou fundo e fechou os olhos, antes de continuar.
“Isso é mais complicado do que pensei.” Ele assumiu, rindo de novo, mais nervoso. Se eu já estava confusa antes...
“.” Chamei sua atenção, e ele olhou pra mim com visível desconforto. “Não precisa pisar em ovos. Pode falar e vamos tentar entender da melhor forma. O que acha?” Tentei encorajá-lo com um sorriso, e ele pendeu a cabeça para o lado, coçando a nuca.
“Certo...” E suspirou, me olhando com incerteza.
“Ok...” Respondi, sentindo meu sorriso desaparecer aos poucos.
“Ok.” Ele respirou fundo e olhou pro chão. “Acho que tive uma crise de ciúmes hoje e não soube lidar. E depois de pensar, vi que talvez estivesse exagerando. Mas depois de abrir a porta da cabana e ver vocês ali, tão... não sei.” Ele gesticulou, com o cenho franzido. “Naturalmente íntimos?” Ele indagou, dando de ombros pra mim, que permaneci encarando-o com a sobrancelha erguida. Ele bufou. “Enfim. Algo dentro de mim se alarmou. E antes de pensar se é algo exagerado ou não de minha parte, eu fiquei pensando todo esse tempo, eu...” Ele estava falando muitas coisas de maneira rápida. “Eu...” E lentamente, levantou a cabeça para ver minha reação.
“Você?” Estimulei a continuar a frase, e ele franziu ainda mais o cenho, cruzando os braços e fechando os olhos momentaneamente.
Mais silêncio e mais tensão. Eu bufei discretamente, e ele finalmente prosseguiu.
“Por acaso eu tenho esse direito? Quer dizer, eu posso sentir ciúmes diante do que somos? Eu fiquei pensando nisso e me senti muito mal, porque independente de direito ou não, eu senti. E senti muita coisa, pensei muita coisa... que me deixou reflexivo.”
Eu pisquei algumas vezes e não consegui respondê-lo. A respiração estava presa dentro dos meus pulmões e eu, sem palavras. Segui no meu congelamento, com uma resposta óbvia na ponta da língua, mas um frio na barriga sobre a possibilidade de desencadear rumos para uma conversa que talvez, só talvez, eu tivesse medo de ter.
“É claro que você pode sentir ciúmes, ... Não tem essa de permitir ou não um sentimento. Não temos controle sobre o que sentimos, é... Natural.”. Expliquei, engolindo a seco para o que diria a seguir. “O que precisamos nos atentar é o que fazemos com aquilo que sentimos. Não acha?”
“Sim! É isso que eu penso!” Ele pontuou ao gesticular com as mãos. “Mas...”
“Mas...?” Indaguei, cruzando os braços e ficando atenta ao que ele dizia. Ele deu de ombros, e me encarou.
“Mas é uma situação... estranha.”
“Estranha?” Indaguei com a sobrancelha arqueada.
“Eu não consigo exatamente acompanhar as coisas entre você e . Tipo o modo como vocês estavam momentos atrás, me pegam de surpresa. Até ontem vocês mal se falavam, sabe? E cara, isso é estranho para mim. Porque num momento, um finge que o outro não existe, e aí no instante seguinte vocês estão numa conversa tão íntima que nem notam a minha presença na porta da cabana? Sério, o que há entre vocês?” Eu franzi o cenho, confusa.
“Estávamos apenas conversando na escada, . Mas antes de entrar em qualquer assunto sobre e eu, não estou entendendo o seu ponto.” Eu respondi, ajustando minha postura. “Na verdade, continuo sem entender no que isso interfere no que há entre eu e você.” Afirmei, levemente alarmada. Não estava gostando do que ele estava sugerindo com aquilo que dizia. Ele apenas balançou a cabeça, rindo nervoso enquanto eu o encarava.
“Ah, , sério? Se coloca no meu lugar!” Ele exclamou, impaciente. “Como não tem nada a ver entre você e eu? Não é óbvio como me sinto diante disso?”
“Você ficou com ciúmes, ok ! Mas acabei de falar sobre isso! Não é apenas sobre o que sentimos, mas sobre o que fazemos com isso! Eu no seu lugar, tentaria entender um pouco mais do que simplesmente começar a sugerir outras coisas!” Respondi sobressaltada.
“Eu estou tentando fazer isso!” Ele devolveu, e eu ri sarcasticamente.
“Não está não. Você está abordando pelas beiradas. Eu te conheço, . Fala logo o que você pensa realmente!” Sugeri, apontando pra si. Como combustão, ele respondeu com a face chateada.
“Me desculpe se eu estranho você conversando tão intimamente com o cara que é apaixonada!” Eu arregalei os olhos, incrédula. Ele realmente tinha dito aquilo?
“Nossa, ! Intimamente? Do jeito que você fala, é como se estivéssemos fazendo muito além do que conversar! Além do mais, isso não faz sentido de tantas formas que eu nem sei por onde começar!” Eu falei alto, bem irritada. Não conseguia acreditar que nas palavras que ele havia dito, tão fortes e absurdas. Respirei fundo e tentei me recompor, explicando o óbvio.
“ é meu melhor amigo e namora Elise, ! Não pode sair tirando conclusões tão pautadas em ciúmes!” Pontuei, sentindo minha mente trabalhar rápido.
“Aí!” Ele falou mais alto, me fazendo parar de falar. “É exatamente isso que me incomoda.”
“O que exatamente te incomoda?” Eu questionei, franzindo a testa.
“É sobre ele. é o foco.” Ele respondeu, e pude ver a dor em seu rosto. “Ele é seu melhor amigo. Ele namora Elise. Ele, ele, ele. Ele é o ponto de partida...” E riu, sem humor. “Eu não entendo porque nossas questões tem que partir dele!”
“...” Eu suspirei, me sentindo perdida diante de seu argumento. “Não é isso! É só que... Sério, o que quer que eu diga? Temos um combinado! Não temos um namo-“
“Eu sei disso!” Ele interrompeu, visivelmente chateado. “Mas significa que não temos nada? Nada que seja válido pra você?” Ele perguntou, apontando pra mim.
“É claro que temos!” Eu respondi de imediato, sentindo minha feição se tornar descrente. “Essa não é a questão!” Eu falei, sentindo minha voz elevar de entonação.
“É pra mim!” Sua voz saiu grossa e seus olhos arregalaram levemente enquanto gesticulava. “Não foi você quem perguntou se eu estava chateado? Não quer saber o que penso? Eu penso isso! Eu não sei porque nosso ‘o que quer que você queira chamar de relacionamento’ tem que ter uma terceira pessoa como foco!” Ele fez as aspas de modo desdenhoso, e eu senti meu peito doer. “E logo esta específica pessoa!”.
Houve um tempo de silêncio constrangedor, e só podíamos escutar nossas respirações descompassadas de raiva enquanto duelávamos em trocas de olhares franzidos.
“Eu só estava querendo saber se posso sentir ciúmes da garota que eu gosto e com quem venho me relacionando há três meses.” Ele comentou, com o olhar perdido.
“Eu já respondi isso...” Falei, num sussurro.
“Não...” Ele retrucou, voltando a cruzar os braços e trincando o maxilar. “Você respondeu aquilo que você quis.” Eu o encarei sem entender e quando abri a boca para falar, ele continuou.
“Isso é uma questão para mim, . E eu gostaria muito que você levasse isso à sério!” Ele explicou, tentando manter a calma, mas estava visivelmente nervoso. Respirou fundo e tirou o boné da cabeça enquanto passava a mão pelos cabelos, ansioso. “Eu... gosto de você.” E me olhou profundamente nos olhos, fazendo meu interior revirar. Vi sua boca tremer levemente com aquela fala, e eu senti minha respiração falhar. Ele prosseguiu após um breve momento de silêncio.
“E eu sei que não é recíproco na mesma medida, eu já sabia antes e sei que ainda é assim.” Mais silêncio, olhos nos olhos. Tínhamos finalmente chegado no ponto em que doía para ambos. E eu não sabia o que dizer.
quebrou o silêncio.
“Eu só quero que entenda que... Eu quero que seja sincera comigo quando isso aqui não funcionar mais pra você.”
“...” Minha voz saiu por um fio e eu tentei me aproximar, mas ele me interrompeu colocando a mão em meu ombro, e eu respeitei seu momento.
“Não, . É sério.” Ele fez uma careta antes de continuar. “Eu não estou pedindo pra você fazer nada que não queira. Eu sei que prometi ser o mais leve possível, mas não vou conseguir sempre. Você entende? Entende que às vezes a gente não vai concordar, não vai gostar de alguma coisa... Que vai se desentender?”
“Mas é claro!” Eu murmurei, aflita.
“Você entende que por mais que tenhamos um acordo, ele pode vir a ruir porque nada é pra sempre?” Eu apenas acenei, e ele prosseguiu, fungando. “Você entende que eu me sinto inseguro quando se trata da sua amizade com ele? Da sua aproximação repentina, de como vocês parecem tão juntos quando estão juntos? Eu não suporto isso! Eu não suporto ver vocês dois cheios de conversas mudas pelo olhar, cheios de sincronia, isso... Isso acaba comigo!” E uma lágrima de seu olho esquerdo desceu, mas eu estava tão chocada com o que ele dizia, que não consegui me ater a seu pranto.
“M-Mas ... Caralho!” Falei, colocando as mãos na cabeça. “Suportar? Como assim!? Não era você mesmo que há um tempo atrás estava sugerindo que eu voltasse a falar com ele? O que há agora? Você tá querendo que eu faça exatamente o contrário?” Eu desabafei, tendo dificuldades em manter a calma.
“Eu não estou dizendo pra que você se afaste dele!” Ele respondeu em urgência, e eu bufei.
“Então o que você está pedindo, merda?” Falei com rispidez e ele devolveu imediatamente.
“Compreensão! Paciência, porra!”
Era a primeira vez que eu direcionava um palavrão tão e diretamente pra ele e vice-versa, dentro de uma discussão, e aquilo... me assustou. Mesmo tendo certeza de minha face contorcida em susto, ele continuou no mesmo timbre de voz.
“Você por acaso sabe o que é estar com alguém e sentir que a qualquer momento essa pessoa, que é preciosa pra você, pode simplesmente ir embora?”
“Sei!” Falei alto, enfurecida. “O pior, , é que eu sei!” Bati com mão no peito, e vi um brilho passar pelos seu olhar, que se abaixou até o chão, envergonhado. “E se não é exatamente por isso que começamos a conversa que chegou ao nosso atual relacionamento, então eu não sei pelo que foi!” E cruzei meus braços, irada.
Como ele poderia considerar tanta coisa nada a ver? O que ele queria que eu fizesse? Que me afastasse de ? Ele estava agindo exatamente como meu melhor amigo há meses atrás, sendo um total sem noção! Eu não precisava abrir mão de ninguém que eu amava pra ser feliz, será que nenhum dos dois poderia entender isso?
O silêncio prolongado deixava apenas o som das folhas das árvores se batendo em meio ao vento que passava.
“E mais uma vez, o foco é ele...” Ele sorriu de forma amarga, olhando pro lado, e eu ri, incrédula.
“Não estou acreditando no que você acabou de dizer.” Falei, encarando o chão, com o olhar perdido.
“Sinto muito, mas é a verdade!” disse como se fosse óbvio, enquanto eu balançava a cabeça, desacreditada, com os braços cruzados.
“Você se ouviu, ?” Eu questionei, indignada. “Você se ouviu desde que abriu a boca pra falar?” Franzi a testa, sentindo uma raiva imensa dentro de mim. “Olha o absurdo! Se você não quer que eu me afaste de , afinal de contas o que quer? Está igual a ele, com argumentos infundados, insinuando que nossa aproximação pode evoluir para algo mais, mesmo quando nitidamente estamos com outras pessoas!” Contestei firmemente.
“Vocês estavam a menos de um palmo de distância um do outro naquela escada!” Ele acusou, visivelmente magoado. Senti minha boca abrir em um “o” enquanto eu mirava seu rosto, contorcido em raiva.
“Claro, . É óbvio seu pensamento, apenas... Perfeito!” Respondi, abrindo os braços no ar, debochada. “Porque, pense bem, não há um lugar melhor para trair você do que simplesmente a escada da sua cabana!” Eu falei alto, e ele riu, zombeteiro.
“Oh não, não há traição já que não namoramos!” Fechei a cara, irritada.
“Isso não é o ponto, !” Bufei rolando os olhos, sentindo minha energia ir aos poucos. Ele me olhou zangado, e eu molhei os lábios, respirando fundo antes de continuar falando.
“Você diz que se sente inseguro quando estou com ele, se baseando em dois fatos, cara.” Eu pontuei, com os dedos indicador e médio em riste. “O fato dele ser prestativo e levar minha mala. E o fato de estarmos conversando normalmente enquanto eu esperava você terminar seu banho. Entende como isso não faz sentido?” Indaguei, dando as costas e andando em círculos.
“Isso não é verdade! Eu falo baseado nos meus sentimentos e nos seus!” Ele acusou com o dedo apontado pra mim, e eu neguei com a cabeça.
“Se fosse assim, teríamos discutido muito antes, ! Na verdade, nem estaríamos juntos de alguma forma! Admita, você está apoiando a insegurança, o ciúme, a raiva, tudo em dois momentos completamente nada a ver!” Expliquei nervosa, e ele trincou o maxilar.
“Você falando desse jeito faz parecer ridículo.” Sua voz saiu seca.
“E não é?” Eu me virei de supetão, encarando-o. Ele me olhou chocado, e após um tempo, perguntou.
“Está dizendo que o que sinto é ridículo?”
“Meu Deus, não!” Rebati, jogando os braços pro alto. “Você deturpa tudo o que eu falo!”
“Pois é exatamente assim que me sinto também!”
“Bom, pelo menos concordamos em algo, olha que ótimo!” Respondi rispidamente, muito irritada.
Mais silêncio. Eu estava com calor, de tanta raiva.
“Essa conversa deveria ser um esclarecimento sobre como me sinto...” Ele comentou depois de um momento de silêncio, rindo de forma irônica.
“E eu entendi isso!” Falei, cansada.
“Pode até ter entendido, mas não liga muito, não é? Até agora, não vi você sugerir nada para me deixar mais seguro.” Ele perguntou retoricamente, me olhando com desprezo. Aquilo me alcançou num nível de chateação que eu nunca tinha chegado com . Suas palavras me fizeram aproximar dele com veemência, fazendo sua postura se enrijecer.
“Se eu estou te dando minha palavra que não há nada entre mim e , por mais óbvio que seja pra mim, não há o que ser feito, . Eu demonstro diariamente meu afeto por você, gosto de como as coisas fluem entre nós, mas sinceramente, não vejo outra coisa que possa ajudar.”
“Nós poderíamos namorar!” Ele exclamou e eu arregalei os olhos. Ficamos nos encarando num clima tenso: eu o olhando chocada, e ele dividindo o olhar entre o chão e eu, encabulado.
“... isso é sério?” Perguntei com a voz baixa. Ele deu de ombros, sem responder. “Eu... não entendo como as coisas mudariam entre nós.”
“Se não mudariam, porque não assumir que é isso que a gente tem? Eu só fico com você, você só fica comigo! Por que a resistência?” Ele abordou de forma incisiva e eu o encarei incrédula.
“A não ser...” Ele falou baixo e eu arqueei a sobrancelha.
“A não ser?” Repeti, com a voz mais imposta. Ele ficou em silêncio, mordendo o lábio inferior. “Fala, !”
“A não ser que você queira manter desse jeito para não se sentir tão culpada quando acontecer algo entre vocês dois!” Ele disparou e eu jurava que o chão tinha escapado debaixo dos meus pés.
“Você não disse isso...” Eu ri, descrente. “Você não disse isso. Retira essa merda, .”
“O que? Acha impossível?” Ele perguntou debochado e eu fiquei puta.
“Retira essa merda, !” Eu berrei, sentindo as mãos tremerem. Ele revidou à altura.
“Deixa de ser hipócrita! Fala a verdade, não me engana, cara! Como é possível que do nada ele volte a ser o seu melhor amigo, o cara que tem o posto mais alto de importância para você, mesmo depois de tudo que fez? Tá muito claro para mim que só tem um jeito possível, ! Então de uma vez por todas, me diz que merda aconteceu naquele ônibus!” Ele explodiu falando coisas que eu jamais esperava ouvir.
Eu arfei com sua fala final. Aquilo era o que ele realmente pensava? Que e eu passamos a viagem não só fazendo as pazes, como também traindo nossos respectivos parceiros?
Eu segui com a boca aberta, sem acreditar naquilo. batia o pé no chão enquanto os braços se mantinham cruzados. O olhar preso em qualquer coisa que não fosse eu, endurecido feito o maxilar trincado, indicando sua irritação.
“Então é isso que você pensa de verdade? Então esse é você?” Eu perguntei com a voz baixa. Ele me olhou e negou com a cabeça, sem exatamente falar nada.
“Você queria namorar desde o início, não é?” Perguntei retoricamente, e ele riu sem humor.
“Muito incomum querer namorar a garota que você tá afim, né? Mas fazer o que, se meus sentimentos não tem prioridades para você.” Ele devolveu com sarcasmo e foi minha vez de negar com a cabeça.
“Eu sei que você gosta de mim mais do que o contrário, e sei que devido a isso, as coisas sejam mais intensas para você em relação à insegurança, e eu respeito isso, . Mas daí concluir coisas tão... absurdas! Sério, o que você pensa sobre isso é tão tóxico, tão nada a ver que eu me pergunto se você sempre foi assim e eu que nunca vi. Porra, você quer falar que eu não respeito seus sentimentos? Eu fui a primeira a negar esse acordo entre nós justamente porque não queria ninguém mais sofrendo! Como pode dizer uma merda dessas pra mim? Dizer que você não é prioridade para mim?” E lá se foram as lágrimas, gotejando pelos olhos, o que fez mudar sua feição para frustração.
“...” Ele tentou e eu neguei com a cabeça.
“Eu posso ter uma série de defeitos! Mas dizer que não ligo pro que você sente, é injusto. É cruel!” E apontei para si, que suspirou cabisbaixo. “Entendo sua colocação sobre se sentir inseguro, e a única coisa que peço é que você acredite em mim. Mas não me force a fazer coisas que não tem sentido! Tipo me afastar de !”
“Eu não disse isso!” Ele exclamou de repente.
“Disse sim, porra! Disse sim! Não explicitamente, mas é isso que você quer! Então para que me falar tanta coisa? Dizer que a aproximação com ele te faz mal, que você suspeita que tivemos um caso no ônibus, e agora sugere namoro? Para que, ?”
“Eu me sentiria mais seguro! Seria um voto de confiança!” Ele respondeu irritado e eu retruquei.
“E que motivos eu te dei para não confiar em mim? Minha palavra não basta para você?”
“Então por que pisa em ovos quando te peço em namoro?”
“Porque eu só assumo um compromisso quando estou de corpo e alma para isso!” Exclamei, esbaforida. Ele me encarou incrédulo e eu suspirei cansada.
“Então você não gosta de mim o suficiente para me namorar?” Ele perguntou com a voz fraca e eu respirei fundo.
“Para o que eu entendo de namoro, não, . Quer me chamar de namorada? Quer chamar o que temos de namoro? Vá em frente. Isso não vai mudar de uma hora pra outra, só porque rotulamos o que temos. Eu vou seguir investindo o mesmo tipo de energia e compromisso de sempre, e afirmo com lucidez para você: eu gosto muito da sua pessoa, mas ainda não estou num nível de paixão, ou amor. Eu sei que dói ouvir isso, mas é a verdade. Eu não acredito em namoros que não sejam dedicação completa, quando tudo está de fato... pleno. Entende?” Ele riu sarcasticamente, balançando o dedo indicador para mim. Eu cruzei os braços, confusa.
“O que foi agora?”
“Você quer me convencer dessa desculpa esfarrapada? Quer dizer que não namora comigo porque não gosta o suficiente de mim? Sério, isso é tão inacreditável, . Vamos, você consegue ser melhor que isso.” Ele respondeu, rindo sem humor e eu franzi a testa. Ele estava batendo recordes em falar merda.
“Mas eu estou falando a verdade, ! Qual é o seu problema!?” Questionei furiosa e ele gesticulou com os olhos arregalados.
“Meu problema? Sério, quem na face da Terra já inicia um namoro apaixonado ou amando a outra pessoa? Isso leva tempo, cara! Namoro é uma tentativa, não é um compromisso vitalício contratual com multas a se pagar caso se encerre antes do esperado!” Ele explicou como se fosse óbvio e eu fechei os olhos para me concentrar.
“É o meu jeito de me relacionar, ! Eu não vou mudar isso porque você vê de modo diferente! Se não concorda, ao menos respeite!”
“Mais do que três meses como um cara compreensivo, paciente e apaixonado por você? Por favor, me ensine a ser melhor!” Sarcasmo no talo, e eu suspirei, rindo da sua atuação.
“Sinceramente, se você acredita que eu não quero assumir compromisso porque ‘não quero me sentir culpada quando ficar com ’, por outro lado me parece que você quer namorar para me chamar de sua, e torcer para que de fato eu te traia para que você se saia por cima. E se é principalmente por isso, você definitivamente tem problemas.”
Ele me encarou em silêncio, prendendo os lábios e me olhando sério. Ele não disse nada, e eu neguei com a cabeça ao pensar no ditado “Quem cala, consente.”. Mas que merda aquela conversa havia se tornado? Então era isso que ele pensava durante esse tempo todo, mas guardou para si por acreditar que não poderia me abordar por não ser sua namorada? Então, significava que ele faria u
m escarcéu, me acusando de inverdades caso tivéssemos um namoro de fato? Não sei quanto tempo ficamos em silêncio, mas foi o suficiente para minha voz sair um pouco rouca. A garganta estava seca quando comecei a falar.
“Sabe, ... Se de alguma forma eu sentisse que isso – e apontei dele para mim – não estivesse mais ‘dando certo’, eu conversaria com você. Não me agarraria com no ônibus, nem sentaria na escada da sua cabana e estaria aos beijos com ele ou qualquer outra pessoa. Então pense nisso da próxima vez que você quiser, de fato, conversar. Porque até então pareceu que você quis dar asas à sua insegurança, insinuando coisas que definitivamente não existem.” Cruzei os braços, mantendo o olhar no dele, que desviou para o lado, sussurrando algo que fez meu interior latejar.
“Não existem até então...” Foi baixo, mas eu ouvi perfeitamente.
“Como é, ?” Questionei, encarando-o literalmente puta da vida. E ele me retribuiu, visivelmente nervoso, enciumado, fora de si.
A verdade era que eu não esperava ter ouvido tanta coisa absurda numa só noite. Senti uma dor de cabeça se iniciar intensamente e respirei fundo, fechando os olhos com força.
Quando senti uma leve amenizada, abri meus olhos e percebi que ainda me encarava. Seu olhar parecia ser um misto de acusações com medo, e eu não entendia como ele poderia guardar tanta coisa consigo e parecer aquela pessoa tranquila e fluida que eu estava acostumada. Estava realmente chateada por ele nunca ter abordado nada daquilo, e ter sido pega de surpresa com tantas desconfianças e inseguranças em relação à nós, e a mim e . Coisas que às vezes poderiam parecer pequenas, e até de fácil resolução... Se de fato houvesse comunicação de ambas as partes. Eu tentei, fielmente. Mas falhou, e eu tinha a impressão de que não era o cara que eu tinha em mente, ou que achava que conhecia. Ele era maravilhoso em inúmeros aspectos, mas seu lado inseguro e ciumento dava poder a atitudes e falas inacreditáveis demais para simplesmente relevar e fingir que nunca existiram.
Ficamos assim por um tempo, até que eu suspirei, cansada. Senti uma nova pontada na cabeça e do nada ela começou a latejar bem nas têmporas, e eu levei meus dedos gélidos para a região, massageando-a.
Ali, naquele momento, percebi que precisava repensar o conceito de leveza do meu relacionamento com . Tudo bem que discussões eram normais, mas aquilo era uma lavação de roupa suja que parecia durar todo o tempo que estivemos juntos! Porra, o que aconteceu com o diálogo?
O que quer que fosse, era óbvio que não resolveríamos ali... Não daquele jeito, nem naquele momento.
“Olha...” Falei, depois de um tempo. “Tô cansada de brigar. De verdade.” E encarei com os olhos cerrados, sentindo as lágrimas virem novamente, ao vê-lo igualmente triste. “Eu não tô me sentindo muito bem. Depois a gente conversa, tá?” E me virei de costas, sem aguardar uma resposta.
“Peraí!” Ouvi dar largos passos até me segurar pelo braço, mas logo me desfiz de seu toque. Estava muito magoada com tudo, não queria seu contato. Vi que ele fungou novamente, tentando afastar sua tristeza, e eu apenas encarei o chão, esperando sua fala. “Você vai aonde? Não quer que eu...”
“Enfermaria.” Respondi, sem olhá-lo. “E não, não precisa vir. Eu quero ir sozinha. Quero ficar sozinha... Invente qualquer coisa caso perguntem.” Terminei, suspirando.
Ele murmurou um “sim” quase inaudível e eu acenei com a cabeça, me virando e indo embora. A dor de cabeça estava tão forte que as luzes dos postes me deixavam tonta.
Caminhei lenta e calmamente até chegar em meu destino, informando para a enfermeira o que estava sentindo. Estava insuportável, eu não conseguia nem abrir os olhos direito. Ela fez uma ficha minha, verificou os dados da escola e analisou se eu era alérgica à algum medicamento e me deu um para dor de cabeça, sugerindo que o tomasse logo após a refeição que já estava para acontecer.
Eu agradeci e saí de lá rumando diretamente para o bebedouro; não estava com fome nem com vontade de ver ninguém. Apenas tomei o remédio e caminhei quase me arrastando para minha cabana. A ideia era dormir, porém no meio do caminho vi um deque, de frente para o enorme lago que mais cedo apreciara.
Como uma resposta da natureza, fui atraída pelo vento, caminhando lado a lado com ele. Uma parte de mim se perguntava se a sensação de sentar naquele deque seria semelhante ao do balanço de meu condomínio, um dos meus lugares favoritos no mundo.
Com as expectativas altas, puxei o celular do bolso e desembolei o fone de ouvido, colocando-o corretamente e plugando ao aparelho. Corri pela lista de músicas e lá estava aquela perfeita, que casaria com o momento.
(Alguém me diz como fui parar aqui)
From the city to this frontier
(Da cidade até esta fronteira)
All the noises joined to make harmony
(Todos os sons se unem para fazer harmonia)”
Eu estava caminhando com as mãos no bolso do casaco, cantarolando a canção e cagando baldes para a reunião que o professor solicitou. Meu humor estava nitidamente alterado devido à discussão com – a dor de cabeça não deixava dizer o contrário – e naquele momento, nada melhor do que um analgésico e uma música tão pontual quanto a que eu ouvia.
(Eu estava preso em uma ilha)
Where I run without Direction
(Onde eu corri sem nenhuma direção)
Is that the wind lifting me up?
(Isso é o vento me levantando?)”
Cheguei a rir comigo mesma, olhando para o céu absurdamente estrelado que aquela noite trazia. A graça era essa: minha relação com o tempo, o vento, as coisas estavam tão intimamente ligadas que de fato eu sentia o vento me animando, me erguendo. Como se estivesse me levando para um momento comigo mesma. De quem eu, no final das contas, precisava mais.
(Espíritos voando na velocidade da luz)
Travelling like a dream one night
(Viajando como um sonho em uma noite)
This hole in my heart's proof of life
(Esse buraco em meu coração é prova de vida)”
Cantei o refrão com mais afinco, chegando próximo à beirada do deque, admirando a imensidão azul daquele lago. Se eu tinha vontade de me jogar e nadar? Com certeza! Mas era inegável que o vento, bem como o clima, me convencia de que talvez, apenas talvez, seria interessante fazer isso outra hora... Uma na qual eu não me sentiria atravessada pelas palavras de , que não me sentisse mal por ele insinuar aquelas coisas que doíam feito o inferno...
(A vida segue, e as pessoas cantam suas canções)
Love and hate together
(Amor e ódio, juntos)
They can make harmony
(Eles podem fazer harmonia)”
Quando finalmente decidi sentar num canto afastado (que não permitisse muita visão para alguém inspecionando o lugar), senti um arrepio gigante ao ver um par de sapatos à uns três metros de mim.
Como em cena de filme, fui subindo o olhar, até que encontrei quem eu menos esperava naquele momento. Rodeado de fumaça, ele me encarava de volta, com um uma sobrancelha erguida.
(Mergulhando de volta á escuridão)
It's not pain it's just uncertainty
(Não é dor, é só incerteza)”
Ficamos um momento curto nos observando, e ele agachou próximo a mim, puxando o fone direito e colocando em seu ouvido. O canto dos lábios se contorceu num pequeno sorriso e sua cabeça ritmou-se com a batida da música, ouvindo a estrofe final.
(Eu sei que meu coração sente falta de sua paz (dela))
But it still beats
(Mas ele ainda bate)”
cantou a última parte, ainda me olhando, enquanto eu apenas piscava os olhos tentando entender o que estava acontecendo.
A música acabou, e ele retirou o fone, devolvendo-o para mim. Sentou-se ao meu lado e deu um trago em seu cigarro, encarando a natureza à sua frente. E eu permanecia naquele silêncio retardativo, como se tudo estivesse acontecendo em câmera lenta.
Os últimos cinco minutos eram amplamente refletidos em minha mente como um filme de antiguidade, no qual apenas as cores se diferenciavam da época em questão. E eu pensava em como as coincidências da vida ainda me deixariam louca, com toda essa mania de cruzar meu caminho com . Para ser mais exata, duas vezes na mesma noite.
Comprimi meus lábios enquanto observava a água escuro logo abaixo de meus pés. já estava lá antes de eu chegar, e era bizarro em como ele poderia estar em qualquer lugar, assim como eu. Mas não: novamente, estávamos juntos, unidos talvez pela mesma brisa envolvente, pelas estrelas tatuadas no céu, ou pelo lago e sua impotente presença.
Talvez isso tudo junto.
E uma bela música para acompanhar o momento.
Novamente a fumaça se fez presente, e eu fiquei olhando a água junto com . Se apenas naquela noite nós simplesmente deixássemos tudo de lado – e eu digo tudo mesmo, todas aquelas preocupações como ele descobrir que eu o amo, sobre os ciúmes sem noção dele e etc. – e fôssemos os amigos que sempre fomos... O quão feliz eu seria?
Com esse pensamento, apenas me deixei levar e o tratei como de costume.
“Fugindo da reunião?”
“Parece que você teve a mesma ideia.” Ele concluiu com o cigarro no canto da boca.
Sorri de uma forma zombeteira.
“Algo do tipo.” Dei de ombros, enquanto ele assoprava fumaça em direção ao lago, observando a escuridão do mesmo e o movimento oculto das águas.
“Está pensando em se jogar, não está?” Indaguei do nada, cruzando os braços.
Ele fez um “hm” com som de uma curta risada, e acenou com a cabeça.
“Você também?” Ele devolveu, virando metade de seu rosto pra mim.
“U-hum.” Eu confirmei, suspirando. “Acho que seria um belo jeito de começar o acampamento.”
“Morrendo de hipotermia. Gostei.” Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça enquanto matinha uma feição de quem aprovava meu “plano”. Eu ri abertamente, enquanto ele sorria.
“Vamos? Eu topo.” completou, e eu o encarei com as sobrancelhas erguidas.
“Você tá brincando, né?” Retruquei, levemente assustada.
“Ué, não. Por que eu estaria?”
Meus olhos analisaram a feição plena de e eu me vi rindo, nervosa.
“Está querendo morrer dessa forma? Congelado?” Ele deu de ombros, afirmando, e eu ri descrente. “Por que?” Me vi perguntando, com uma leve careta.
Ele tragou seu cigarro, logo liberando a fumaça com a cabeça erguida, e depois de admirar os formatos que a mesma desenvolvia no ar, deu um sorriso de canto e me olhou de soslaio. Buscou o lado do fone de ouvido que estava pendurado em seu pescoço e tateou minha orelha entre os fios de cabelo, colocando o aparelho corretamente para eu ouvir a melodia que tocava.
E assim, eu ouvi a frase que soava no fone, unindo-se com a voz de , que acompanhava a canção.
“To die by your side, it’s such a heavenly way to die... (Morrer ao seu lado é uma maneira tão divina de morrer).” Ele cantarolou, e voltou a encarar o horizonte, colocando o cigarro na boca.
Eu ri levemente, sem graça. Citar The Smiths naquela altura do campeonato era golpe baixo.
“Take me out tonight... Take me anywhere, I don’t care... (Me leve pra sair hoje à noite... Me leve a qualquer lugar, eu não me importo...)” Eu cantei baixinho, de olhos fechados, sentindo-me cansada de tudo, apenas querendo paz.
Fiquei um tempo assim, apenas respirando fundo e sentindo a brisa acariciar meu rosto, e a presença silenciosa de do meu lado. Sentia falta dessa tranquilidade, do silêncio confortável e não constrangedor entre nós; sentia falta de como convivíamos bem e raramente precisávamos explicar algo para o outro... Sentia falta de nossa intimidade e como nos conhecíamos tão bem que certas coisas e discussões eram desnecessárias.
Dentro de minha mente, eu pensava que mesmo com toda aquela conturbação que vivenciava nos últimos tempos com , a sua ausência era algo que superava todo o stress. Era difícil de admitir, mas era verdade. Entretanto, não significava que eu cederia e voltaríamos a ser amigos com ele fazendo o inferno diário em minha vida toda vez que me visse com – e algo me diz que depois de três meses, isso já estava mais ameno dentro de si. Pelo menos eu achava que sabia que não era o bicho de sete cabeças que ele julgava ser. Quer dizer, depois daquela briga, demonstrou ter algumas questões com ciúmes e insegurança, ok. Mas isso não justificava as desconfianças que tinha sobre ser um belo filho da mãe, e nunca deu motivos para que agisse daquele modo.
De toda forma, eu era adepta de um pensamento: se temos forças e capacidade para abrir a boca e magoar alguém com veemência – ainda que não seja nossa intenção – temos que ter a hombridade de se redimir na mesma ou semelhante proporção.
E mesmo com não criando nenhuma situação, mesmo ele tendo se afastado e estar visivelmente mais frio, calado, e respeitando meu espaço, ele ainda não tinha de fato verbalizado nada sobre suas suspeitas equivocadas em relação à . Por mais que ele expressasse isso em ações respeitosas, eu achava injusto que as palavras lhe faltassem apenas em momentos seletivos.
E por mais que naquele momento eu estivesse profundamente irritada com , não poderia ignorar todo o bem que ele havia me proporcionado antes dessa briga fora do comum. E que, em partes, ele trazia verdades no que dizia – principalmente no que sentia – só não achava justo que a partir disso, ele se achasse no direito de insinuar coisas que não existiam.
Coisas estas que, se fossem verdadeiras, eu seria a primeira a “terminar” com – porque pudera, meu desejo mais profundo de estar com estaria tornando-se realidade.
Mas aquilo não era realidade.
Meus olhos se abriram abertamente, e a imagem demorou a focar. Percebi que havia ficado de olhos fechados por um bom tempo – tempo o suficiente para perceber que me encarava de soslaio, com o cenho levemente franzido.
O encarei de volta, piscando algumas vezes e devolvi o fone para seu ombro, quebrando aquele clima intenso antes de conseguir falar algo.
“O que foi?” Perguntei, curiosa.
Ele permaneceu me olhando, até se virar pra frente e dar a tragada em seu cigarro. Esperei pacientemente que ele expelisse a fumaça até que, olhando o horizonte, me perguntou.
“Por que você estava chorando?”
Meu coração falhou uma batida com aquela pergunta. Como ele sabia!? Já fazia algum tempo que eu havia chorado enquanto discutia com , tinha até ido na enfermaria, passado um período lá... Como pode?
Engoli a seco, e não consegui responder. Fiquei encarando o chão, igual uma idiota, presa em meus próprios pensamentos. Não queria piorar as coisas, como também não queria ficar naquele impasse. Mas tudo que consegui foi manter o clima silencioso. Pelo menos até suspirar profundamente, o que me fez levantar a cabeça e olhá-lo.
soltou um “hm” sarcástico e deu uma nova tragada. Ficamos sem dizer nada, e por mais que estivéssemos num espaço aberto, eu me sentia sufocada por sua presença. Senti uma pontada da têmpora direita e suspirei, suplicando internamente que o remédio fizesse efeito logo.
“Sei que é algo.” Ele respondeu, terminando seu cigarro e jogando-o na lixeira. “Mas não se preocupe. Não vou insistir.” E mais rápido do que eu pude perceber, ele acenou com a cabeça e se virou para ir embora.
O que aconteceu logo depois foi inédito.
Eu simplesmente não entendi a mim mesma, mas era tarde para tentar de toda forma. Quando me dei conta de que aquele clima bom seria desfeito, simplesmente segurei o braço de , e ele estava parado de costas pra mim, visivelmente tensionado com meu toque.
Eu permaneci sentada, e ele em pé.
“Por favor... Fique.” As palavras simplesmente saíram da minha boca, e eu senti nó no peito insuportável. Eu não queria que ele fosse embora!
ficou um bom tempo na mesma posição, e se não o conhecesse tão bem, diria que ele simplesmente estava me sacaneando. Mas eu sabia que na verdade ele estava ponderando.
“Eu te fiz uma promessa...” Sua voz saiu mais grave do que de costume, e eu mordi meu lábio inferior, encarando suas costas subirem e descerem com sua respiração profunda.
Nós sabíamos do que sua frase falava.
Ele prometeu não se meter.
Prometeu ficar longe.
Mas se havia algo que nós também sabíamos, era que aquela promessa era impossível de ser cumprida... Pelo menos a longo prazo.
“Só... fique.” Eu falei, sentindo a voz embargar – e só aí senti seu corpo relaxar levemente.
Com a mudez imperando entre nós, e a ansiedade me corroendo, deduzi que ele estava silenciosamente negando minha solicitação – que mais soava como súplica – só estava constrangido demais para dizer em voz alta.
Fui aos poucos deslizando minha mão de seu braço, aceitando que aquilo era o melhor, e desisti de tentar convencê-lo a ficar. Eu realmente estava cansada demais para qualquer coisa. Estava, inclusive, cansada de perder algo em prol de outro. Era como se eu nunca pudesse ter a amizade e se estivesse com . Tanto pra um quanto pra outro. E aquilo, me deixava aflita num nível que eu simplesmente não conseguia mais lidar.
Mesmo no frio, decidi “libertar” de meu enlaço e me virei de costas, deixando-o ir sem que me sentisse mais ridícula do que já estava. As lágrimas desceram aos poucos, sem nenhum aviso prévio. O vento bateu forte dessa vez, e eu me permiti chorar de olhos fechados, deixando que a natureza me abraçasse em seu acalento.
Não havia som em meu choro, e eu apenas estava mergulhada em deixar aquela mágoa sair através do meu pranto. Estava tão cansada de tudo, de perceber que nada seria igual a antes... E aquilo me matava por dentro. Porque eu sentia muita falta da tranquilidade de tudo.
Eu estava aprendendo a lidar com meus pensamentos, tentando digerir junto com o que sentia, abraçada aos meus próprios joelhos. Foi quando percebi, pela visão periférica, que retrocedeu alguns passos, e estava novamente a meu lado. Prendi meus lábios aflita, e me encolhi, escondendo meu rosto molhado e meu choro. Mesmo tentando fugir de seu olhar, não consegui me impedir de seguí-lo pelo canto dos olhos. E percebi quando se sentou de costas para o poste, com uma perna apoiada na beirada do deque, e a outra flexionada. apoiou o braço direito no joelho erguido, e a outra mão retesou em seu colo.
Seu olhar queimava em mim, mas ele não dizia nada. Ele só estava ali, se fazendo presente, me observando de um jeito que se tornava insuportável. Tentei lutar mais um pouco contra o ímpeto de virar-me e encará-lo. Mas...
, mais uma vez, havia vencido.
Virei meu rosto cansado em sua direção, e por mais que sua feição fosse dura feito uma pedra, eu pude ver em seus olhos a preocupação que o cutucava a cada segundo.
Ficamos nos olhando por um bom tempo; eu, deixando as lágrimas silenciosamente caírem como cascata em meu rosto, e , pressionando o maxilar e fechando as mãos, como se fizesse um esforço crucial para se segurar de algo que o corroía por dentro. Só não sabia dizer o que, exatamente.
Quando um soluço tomou vida em minha boca, as coisas aconteceram muito depressa; a fortaleza presente no rosto de se desfez, e eu pude ver o momento em que ele murmurou um palavrão.
Ele veio rápido em minha direção, e eu lhe lancei um olhar alarmado – o que não foi capaz de pará-lo. Para minha surpresa, ele me envolveu em seus braços e com uma facilidade invejável, me trouxe pra perto de si, me abraçando apertado.
Eu demorei um pouco para entender o que tinha acontecido – ou acreditar no que estava acontecendo. Mas lá estava , encostado no poste, com as pernas abertas para me abarcar em seu colo-abraço. Ele me apertava contra si, e meu rosto estava apoiado em seu peito, que era encharcado pelo meu choro.
“, o q-que...” Eu tentei dizer, assustada, mas ele me interrompeu.
“Não, por favor.” Ele se ajeitou comigo em seu colo, e eu franzi a testa diante da interrupção gratuita. “Pelo amor de Deus, só fica quieta...”
Eu ainda fiquei alarmada, tensionada em seu colo, confusa. Até que, logo acima da minha cabeça, senti seu suspiro rebater em meus cabelos, e fechei os olhos levemente, tentando me acalmar.
“Eu não vou perguntar nada. Só me deixa fazer algo útil, para variar.”
Com aquela frase, eu senti um pequeno sorriso brotar entre minhas lágrimas. estava tentando me acolher, e manter sua promessa. Aquilo foi tão apaziguador dentro de mim, que me permiti abraçá-lo de volta com a mesma intensidade.
“Por favor, não me deixa sozinha.” Eu dei voz ao meu pensamento, e senti seu peito vibrar com uma leve risada.
“Eu não vou a lugar algum.” Ele disse de uma só vez, acariciando minha cabeça.
Ouvir aquilo me deixava extasiada.
Mesmo que as lágrimas descessem pelo meu rosto.
Mesmo que eu estivesse bem triste.
Mesmo que a dor de cabeça não tivesse dado uma trégua.
Mesmo que ainda tivéssemos nossos problemas.
Eu sabia, no fundo, que o que ele tinha dito era verdade. E a recíproca, era tão verdadeira quanto sua fala.
Ficamos um bom tempo assim, até que me acalmei a ponto de conseguir parar de chorar. Mas eu não queria sair daquele abraço – e algo me dizia que também não. Mas foi inevitável quando senti algo dentro do casaco dele vibrar; meu corpo tensionou levemente com aquilo e suspirou, impaciente. Levou sua mão foi até o bolso e pegou o aparelho, encarando o visor com ar de tédio. Era uma ligação, porque o celular vibrava e a tela piscava.
“Alô.” Ele atendeu, enquanto eu saía do enlace, me sentindo um pouco estranha, sem graça. “Hm.” Ele respondeu, e eu o encarei, percebendo que me olhava sério. “Hm. Uhum. Uhum. Ok.” E desligou, sem alterar o humor.
Ficamos mais um tempo em silêncio, até que percebi ele ajeitando a postura.
“Estão à nossa procura. Parece que Doug deu a desculpa de eu estar no banheiro, e você está na enfermaria, com enxaqueca. Confere?” Ele perguntou, com a sobrancelha arqueada.
Suspirei, pensando que quem deu a desculpa em meu nome, havia sido .
“Sim.” Respondi, me levantando sem a mínima vontade de encarar ninguém.
Logo fez o mesmo, e começamos a caminhar lado a lado, e assim que saímos do deque, ele comentou:
“Você não precisa ir, sabe...” E eu o olhei, confusa. “A minha desculpa era o banheiro. Você tem a enxaqueca. Bem mais válida pra fugir de uma chatice daquelas.” E eu sorri levemente, mesmo me sentindo triste.
“Não estava com vontade antes, mas sei lá. Acho que dá pra aguentar.” Se você estiver comigo, completei mentalmente. Dei de ombros, chutando pedrinhas pelo caminho. “Vai que é importante?”
“Ah, claro... Vai ser tão importante quanto o discurso do Windenberg.” Ele falou sarcasticamente, e eu ri.
“Tente se divertir, ao menos.” Retruquei, olhando para o prédio central, que se aproximava a cada passo.
“Eu estava fazendo isso momentos atrás.” Eu me virei para olhá-lo com uma feição sugestiva, e ele respondeu sem me encarar. “Fumando.”
Acenei com a cabeça, me sentindo lixo, mas fiz como sempre – disfarcei com uma piada irônica.
“Bela diversão.” Olhei para , que brincava de acender o isqueiro, e eu fiquei viajando na forma que a chama aparecia e desaparecia, repetidamente.
“Quando você começou a fumar?” Perguntei, levantando o olhar para seu rosto. Ele suspirou, e sem me olhar, respondeu.
“Eu sempre fumei de vez em quando... Socialmente.”
“Sim, em festas e tal...” Acrescentei, encarando o isqueiro. “Mas não estamos em uma.”
apenas murmurou um “hm” abafado e seguimos caminhando. Estávamos perto o suficiente para ouvir as vozes, mas antes de entrar, percebi que ele parou há alguns metros de distância.
“O que foi?” Perguntei, olhando-o.
“Vai na frente. Você sabe...” E suspirou, quando fiz cara de que não sabia de porra nenhuma. “Podem achar estranho e falar algo.” Ele explicou, gesticulando com a mão direita.
Eu cruzei os braços e sorri zombeteira.
“Desde quando você se importa com o que dizem de você?”
“De mim, desde nunca. A questão é você. Não quero arranjar problemas... Nem pra você, nem pra banda.” Ele respondeu numa tacada só, me encarando sério, e eu concordei, sem graça.
“Ok.” Não tinha mais nada pra falar, não é? Mas antes que eu entrasse, me virei para si e andei de costas em direção à porta, encarando meu melhor amigo. “Hm, ?”
Ele moveu a cabeça, como quem diz que está atento.
“Obrigada. Você sabe... Por tudo.” E sorri, genuinamente.
Ele olhou pro lado, e pude ver um sorriso brotar no canto dos seus lábios. Ele deu de ombros e voltou a me observar.
“Não por isso... Me paga um maço de cigarro e tá tudo certo.”
“Você é um mercenário filho da puta.” Eu respondi rindo, abrindo a porta.
“Conhece mamãe?” Pude ouvir enquanto eu entrava no ambiente – não sem antes mandar o dedo do meio para fora.
Fui caminhando até o local onde todos estavam, e sentei do lado vago de , que me olhava alarmada.
“Você poderia disfarçar melhor, sabe.” Eu comentei, mexendo a boca para o lado.
“Não me peça coisas impossíveis!” Ela sussurrou, e eu ri de leve. “Pela cara do , as coisas não foram lá muito boas, né?”
Eu olhei disfarçadamente para , que encarava as próprias mãos, sem realmente prestar atenção no que o professor falava. continuava esperando resposta, e eu suspirei, confirmando com a cabeça.
“O quão grave?” Ela perguntou, e eu encarei o chão.
“Grave.”
“Ai, Deus.” Ela comentou, e eu a olhei com uma careta de dor.
“Digamos que tinham coisas absurdas não ditas desde o início...” Cocei a nuca, incomodada por ter que repetir as frases que ouvi. “Basicamente ele deu a entender que a reaproximação com pode significar que estamos juntos ou algo do tipo. Dá pra acreditar nisso?”
Se não fosse tão trágica a situação, eu me permitiria rir com a cara de choque de . Sério, aquela pessoa merecia um programa só dela.
“Sério?”
“Muito sério. E que eu nunca assumi namoro para não me sentir culpada caso ficasse com .” Arregalei os olhos, fingindo prestar atenção no professor quando o mesmo olhou em minha direção. esperou que ele desviasse para continuar com seu questionário.
“Como ele pode deduzir um treco desses?”
“Ciúmes. Insegurança. E uma bela dose de machismo.” A encarei de lado e ela rolou os olhos, concordando com a cabeça.
“Foda, cara.” Ela falou e eu mordi o lábio inferior quando o professor novamente nos olhou. Acho que aquilo foi um sinal.
Olhei rapidamente de para ele, para que ela entendesse que precisávamos nos calar – por enquanto.
E inevitavelmente, foi impossível não ficar quieta – e um tanto contemplativa – quando a porta se abriu e eu avistei se aproximando. Era ridículo o quanto meu interior revirava de ansiedade só por vê-lo? Bastante.
Tentei disfarçar estalando os dedos e tentando focar na figura docente, mas era difícil. estava tão lindo sendo ele mesmo – e eu não tinha reparado devido à meia luz do poste, lá no deque.
Ele se aproximou e sentou relativamente afastado no grupo, devido a disponibilidade de lugares. Mas antes disso, me deu uma olhada significativa, prestando atenção no professor logo em seguida. E mais uma vez, meu estômago deu sinal de vida com isso, e eu me abracei, me sentindo sem graça.
“Parece que a história não foi totalmente contada...” cantarolou enquanto fingia um sorriso de mostrar os dentes, e eu tive que comprimir uma risada com sua observação.
“Tu é fofoqueira pra caralho...” Eu imitei seu gesto, e ela riu, se engasgando em sua própria saliva – sendo salva pelo gongo, pois estava prestes a gargalhar quando as risadas foram convertidas em tosses sufocantes. Com direito a batidinhas nas costas.
“A senhorita está bem?” O professor perguntou, e depois de pigarrear umas duas vezes, confirmou com a cabeça, fazendo-o prosseguir com sua fala.
“Ele disse alguma coisa importante?” Sussurrei e ela negou disfarçadamente com a cabeça, logo respondendo sem mexer a boca direito.
“Apenas uns detalhes. A parte importante vem agora.” Nos entreolhamos e decidimos que silenciosamente prestar atenção no que o professor dizia.
Só naquele momento percebi que outros professores e professoras estavam presentes, nos encarando com sorrisos gentis e outros nem tanto. Fiquei me perguntando se eles estavam ganhando hora-extra devida – e algo me dizia que não, pelas caras e posturas cansadas. Meus pensamentos foram interrompidos pela fala do professor de educação física.
“Bom, como este será um evento para todos, vamos avaliar não só as pessoas inscritas como atrações no Show de Talentos.”
Como é que é? Show de Talentos?
Encarei com o olhar alarmado, e ela fez uma careta óbvia, dando de ombros.
Putaquepariu.
“O que significa que vamos analisar a capacidade de vocês de construírem um projeto e conseguir colocá-lo em prática. Alguns critérios como: trabalho em equipe, criatividade, desenvolvimento, composição com todas as etapas do projeto, habilidades manuais, artísticas, espírito de liderança e finalização serão avaliados. Dependendo de como se saírem nesta mega atividade, grande parte dos pontos serão revertidos para notas em disciplinas, e isto será analisado junto aos outros professores diante de cada caso em particular.” Ele pontuou, sorridente, e se virou para a professora de matemática. “Dando um exemplo: Corinne está pendurada em matemática. A professora sugeriu que houvesse um tipo de gincana que envolvesse problemas matemáticos a fim de que Ana, coletiva e individualmente, alcance os objetivos propostos e ganhe pontos para a matéria que precisa. Bom, quem tiver dúvidas, levante a mão que eu responderei.”
Um monte de gente ergueu o braço e a cara do professor foi impagável. A professora de matemática não escondeu a frustração e suspirou, e eu me senti cansada só de vê-los naquela situação. De fato, eu ainda estava tentando entender “o espírito da coisa”, da proposta que eles fizeram, quando ouvi bufar do meu lado.
“To fudida.” Ela constatou, batendo na testa. “Fiquei por um e meio em matemática!”
“Porra, nem fala...” Respondi, suspirando. “E eu em Literatura. Dei mole...”
“Porra, sério?” Ela me encarou com o cenho franzido. “Mas você é ótima em Literatura!”
“Eu confundi algumas épocas clássicas e simplesmente perdi metade da prova nisso. Foi no mesmo dia da de química, que eu passei raspando, inclusive!” Expliquei, colocando a cabeça entre minhas mãos.
“Então isso é tipo férias pra alguns e um inferno pra outros?” Doug comentou, cruzando os braços. “Que sadismo.”
“Como assim?” perguntou, e ele deu de ombros pra explicar.
“Ué, os nerds, por exemplo, passaram direto. Pra eles, não tem nenhuma pressão.” Eu e ela acenamos a cabeça, compreendendo a colocação de Doug.
“Eu achei que só teríamos uma forma de lidar com isso; através da prova de recuperação, depois do acampamento.” Eu comentei, dando de ombros.
“Acho que todos pensavam assim.” acrescentou, fazendo uma careta de dor.
“Mas não é exatamente isso...” Doug explicou, encarando a multidão que cercava o professor. “A gente pode escolher participar, e se conseguirmos a nota, não precisamos fazer a prova. Agora quem não quiser, pode simplesmente curtir o acampamento e só fazer a avaliação quando voltarmos. Com o Show de Talentos e a prova de recuperação, você tem duas formas ao invés de apenas uma, de alcançar a pontuação que precisa. E uma chance a mais de terminar o Ensino Médio esse ano. Entenderam?”
“Ahhh.” Eu e encarávamos Doug com uma estranha surpresa, enquanto o mesmo sorria com cara de tédio.
“E você, bonitinho? Vai curtir ou vai precisar lutar igual nós?” Perguntei, sorrindo de forma debochada.
“Acreditem se quiser, mas fiquei em física. Dei mole.” Ele rolou os olhos, e tanto eu quanto ficamos com dó da criança.
Física? Química? Valei-me Cristo.
“E no que você está pensando para garantir sua nota?”
Doug deu um sorriso diabólico que me fez arquear a sobrancelha.
“O professor disse que tínhamos a possibilidade de abordar uma das matérias na ‘prática’, como foi o exemplo da gincana de matemática...” E cruzou os braços, olhando para o nada enquanto sua cara denunciava a mente trabalhando. “Estou pensando num plano muito bom, mas preciso reunir informações primeiro para colocá-lo em ação.”
Eu e nos olhamos prendendo a risada, enquanto viajava em seus próprios pensamentos.
“Atenção, atenção! Eu sei que muitos estamos em dúvida, e todas serão tiradas na medida do possível!” O Professor anunciou, um pouco desesperado. “Mas por favor, vamos nos sentar e responder um por cada, certo?” E uma penca de alunos se sentou com o braço erguido, fazendo a careta de dor do professor tornar-se visível.
“Lembrando que quanto mais demorarmos aqui, mais tempo vai levar para o jantar.” A professora de matemática anunciou, e vários braços foram abaixados. Os professores trocaram um sorriso cúmplice, e com mais tranquilidade, foram respondendo às questões.
Alguns estudantes já tinham ideias que gostariam de desenvolver, outros só perguntavam coisas na beira do desespero por estarem pendurados em muitas matérias. Com uma calma assustadora, o professor foi respondendo um por um, às vezes se tornando repetitivo em suas explicações, sem perder a pose.
“Pessoal, a ideia principal está sendo apresentada hoje, mas é óbvio que não vamos sanar todas as dúvidas agora. E esse nem é o objetivo, na verdade. O que esperamos é que vocês coloquem suas cabecinhas lindas e incríveis para pensar e que amanhã possamos discutir melhor sobre isso. Então aproveitem o jantar e o tempo restante até o toque de recolher para que vocês troquem ideias entre si, planos e o que mais desejarem. Lembrando que às 22h eu quero todo mundo indo dormir! Esse é o combinado!”
Algumas reclamações e vaias diante do horário proposto, mas a professora de matemática logo se colocou no meio, puxando o apito do professor e soando alto em nossos ouvidos. Nos encolhemos diante do som estridente, e recebemos uma cara séria da professora.
“Vocês são quase adultos, mas estão aqui sob nossa responsabilidade! Não esqueçam disso!”
O silêncio sepulcral entre o medo de levar um esporro ou perder pontos na disciplina era tão grande que poderíamos ouvir os grilos que cantavam há quilômetros de distância.
“Certo, agora educadamente vamos nos encaminhar para o jantar. Não esqueçam de lavar as mãos e agradecer à equipe da cozinha pelo trabalho maravilhoso!”
“Parece até a minha mãe.” comentou, piscando abismada. “É assustador.”
Eu e Doug rimos, e enquanto nos levantávamos, percebi que se aproximou timidamente de nós.
Eu e nos entreolhamos rapidamente, e ela fez uma cara como quem diz “e aí?” e eu simplesmente neguei com a cabeça, agarrando em seu braço.
O clima ficou esquisito, e , que já não olhava em meus olhos, decidiu fingir que o chão era interessante e ficou olhando pra ele, enquanto caminhava ao lado de Doug.
me olhou com a sobrancelha erguida e eu fiz uma cara apreensiva, negando com a cabeça. Ele suspirou e logo deu um tapinha no ombro de , que levou um susto.
“E aí, ! Já pensou no seu projeto?” Doug deu um sorriso de mostrar os dentes que lembrava o de Jack Nicholson em ‘O iluminado.’. Eu sei, bem medonho.
“Não sei ainda...” Ouvi responder, enquanto eu seguia mais atrás com . “Eu não tô conseguindo pensar muita coisa.” E olhou por cima do ombro, visivelmente me procurando, mas eu simplesmente virei a cara para o outro lado e fingi indiferença.
“Ora, vamos! Temos que animar, é uma chance de terminar o ensino médio!” Doug estava tão falsamente animado que chegava a doer, e simplesmente não conseguia não rir daquela cena. Minha cara estava quente e eu me sentia idiota. “Em qual matéria você está pendurado?”
“Física.” respondeu, e o olhar psicopata de brilhou no salão todo.
“Magnífico, meu caro!” E abraçou pelos ombros, caminhando mais rápido e forçando-o a fazer o mesmo. “Simplesmente magnífico! Eu tive uma ideia...” E devido à distância, não consegui mais ouví-los.
Suspirei aliviada enquanto me olhava com uma cara preocupada.
“Foi tão duro assim?”
“Eu sinceramente não tenho mais cabeça pra viver o dia de hoje, .” Comentei, instantaneamente me agarrando mais em seu braço. Ela me envolveu num abraço caloroso enquanto caminhávamos lado a lado.
“Relaxa, não precisamos falar disso agora. Ninguém merece se estressar tanto, não é?”
“Porra, nem fala. Eu fiquei com uma dor de cabeça que não passou completamente até agora...” Esfreguei minhas têmporas, enquanto fungava o nariz com uma careta estranha. Eu parei o que estava fazendo e a encarei, confusa. Ela veio com seu nariz pra cima de mim, cheirando o ar ao meu redor, até que pegou em meus cabelos e os cheirou.
“Eu tomei banho, cara.” Falei, fazendo uma careta óbvia. “Você estava comigo, inclusive.”
“.” Ela me olhou com uma sobrancelha arqueada. “Você andou fumando? Você tá cheirando a cigarro. E não é um dos vagabundos não.” E cheirou de novo meu cabelo, enquanto eu me afastava e batia na sua mão, que insistia em trazer meu cabelo pra perto de suas narinas.
“Como você sabe que não é barato?” Eu questionei, tentando disfarçar meu estado envergonhado.
“Meu irmão fuma uns desses de vez em quando...” Ela deu de ombros, olhando pra cima enquanto pensava. “Geralmente quando sai e volta três horas da manhã bem bêbado, com a roupa toda bagunçada e um sorriso desgraçado no rosto.”
Eu ri de seu comentário, imaginando Adam tropeçando nas coisas até chegar a seu quarto.
“Mas você não respondeu minha pergunta.” Ela olhou pra mim com um sorriso debochado e cruzou os braços, arqueando a sobrancelha. “Porque você estava fumando... qual é o nome mesmo? O...” Ela estava com a mão no queixo, tentando se lembrar, quando do nada brotou do seu lado, com uma cara aparentemente inabalável, respondendo sua pergunta.
“Black.” E nos olhou, sem alterar a feição. “Esse aqui.” Ele puxou rapidamente o maço do bolso, e mostrou o suficiente para que apenas nós víssemos, e logo guardou de volta.
Minha cara estava pelando enquanto não escondia a surpresa e o riso frouxo, olhando de mim para .
“Então...” Ela perguntou, prendendo os lábios num movimento ridículo e falho, tentando não rir, enquanto eu hiperventilava, e a olhava com cara de paisagem. “Você tá fumando?”
Ele deu de ombros, acenando rapidamente a cabeça e olhando para frente, com a maior naturalidade do mundo. Ela olhou pra mim, e sua cara era tão vergonhosa que eu mirei meus pés. Mas isso não impediu que ela seguisse com sua fala.
“Então por que você tá com o cheiro de...” Ela ia perguntar, e eu respirei fundo, rolando os olhos.
“Estava vindo para cá enquanto fumava, e encontrei no meio do caminho. Ela deve ter ficado com o cheiro.” Ele respondeu, dando de ombros, enquanto não escondia a cara de deboche, misturada com “me engana que eu gosto”.
Eu estava sentindo coceiras na nuca de tão sem graça que estava. estava nitidamente mentindo – ou omitindo fatos – e eu não conseguia acompanhá-lo com tanta naturalidade. Quer dizer, ficamos um bom tempo abraçados. Mas explicar isso para seria suicídio, dando asas à imaginação daquela mulher.
“Sério, ?” Ela se virou pra mim, e eu olhei dela para , com a maior cara lavada do mundo, e apenas acenei a cabeça.
“Por que?” indagou, arqueando uma sobrancelha para , que arregalou os olhos e prendia mais ainda os lábios para não rir. “No que está pensando, Amaral?”
Ela demorou um tempo para responder verbalmente. Sua cara mudava de feições, enquanto ela apenas negava com a cabeça – e eu simplesmente suspirava nervosa com aquilo tudo.
“Nada! Apenas pensei que estava fumando. Você sabe, o cheiro está bem forte... Pra quem só te acompanhou até aqui.” Ela se explicou, erguendo as palmas da mão pra cima.
sorriu de lado por um milésimo de segundo, e voltou à sua face de costume, dando de ombros.
“Ou você tem um belo olfato.” Ele respondeu, olhando para nós duas com naturalidade, e acenou com a cabeça, antes de entrar no banheiro masculino.
ficou me olhando e eu decidi andar um pouco mais na sua frente, entrando no banheiro feminino com pressa, enquanto escutava sua risada descrente.
“Você tá me escondendo algo, sua safada?”
“Cala a boca, cara.” Respondi, rindo sem graça, e nós duas nos entreolhamos pelo reflexo do espelho, enquanto outras garotas entravam e saíam do local.
Ficamos um tempo nos encarando, até que ela bufou e cruzou os braços.
“E então?” E eu juro, ela até bateu pezinho. Seria engraçado se não fosse trágico.
“Não é nada do que você está pensando, mas... Eu estava mal e ele me acolheu, me escutou, e abraçou. Só isso. Podemos por favor falar disso mais tarde?” Comentei com uma careta, e ela riu de novo, acenando com a cabeça.
“Vou te dar essa colher de chá.” E moveu o indicador na minha direção, enquanto entrava num dos boxs do banheiro. “Mas não se acostume!”
Eu ri e rolei os olhos, enquanto entrava no box vazio a seu lado.
Foi o xixi mais longo da minha vida.
Quando voltei do banheiro com , os meninos já estavam sentados em uma mesa, com seus pratos de comida. Estava entrando na fila com minha amiga tagarela, que não parava de especular o que poderia ter acontecido para que eu estivesse com o cheiro de cigarro de – segundo a mesma, a trégua que ela deu não incluía suas hipóteses malucas e um tanto efusivas diante dos últimos acontecimentos. Eu estava prestes a enfiar a faca em sua língua para simplesmente ter paz, quando finalmente chegamos à mesa com nossas comidas.
O clima estava visivelmente tenso, Doug me olhava com cara de socorro enquanto lançava olhares desesperados entre um cabisbaixo que mal tocava comida, e um muito indiferente mastigando seu macarrão ao molho branco, prestando atenção na arquitetura do local.
Respirei fundo, pensando que sim, aquilo estava insustentável.
“E então, gente...” Comentei, recebendo um olhar de agradecimento de Doug, enquanto mexia no meu brócolis, sem vontade. “Vocês já sabem o que vão fazer?”
Os meninos me olharam, e Doug pigarreou sem graça, batendo no ombro de – que parecia ter despertado apenas naquele instante.
“Eu e estamos tramando um bom plano. Ficamos em física.” E fez uma cara de dor (e eu sabia que não era sobre a matéria, e sim pelo clima da mesa).
“Bem, eu to fudida.” assumiu, enquanto terminava de mastigar um pedaço de sua lasanha. “Matemática, gente. Gincana! Sério?”
Todos acenaram, genuinamente sentidos pela situação de .
“Pelo menos Literatura não será tão difícil... Eu dei mole mesmo.” Comentei, dando de ombros.
O silêncio se seguiu, e todos olharam para , esperando sua fala. Ele estava mastigando pacientemente quando após alguns minutos, percebeu o olhar de todos sobre si. Ele engoliu rapidamente, com os olhos meio arregalados, e respondeu.
“Português e inglês.” E todos acenaram com a cabeça, enquanto eu franzia a testa.
“Sério?” E ele confirmou, com uma careta.
“Estranho, eu sei.” Ele disse, dando de ombros, enquanto eu concordava com a cabeça – me referindo ao fato de serem disciplinas nas quais ele não tinha dificuldades. “Não tinha dormido nada na noite anterior. Acordei com o sinal tocando, e entreguei as duas provas em branco, manchadas pela minha baba de sono.”
e Doug riram levemente, e eu sorri com pena. sequer disse ou fez nada.
“Sinto muito.” Comentei, comendo o brócolis. apenas deu de ombros, pegando o copo de mate.
“Não sinta. Vai dar tudo certo.”
Eu sorri mais genuinamente, afirmando com a cabeça, encarando , que me retribuiu o gesto. Estava retornando o olhar para o meu prato, quando senti os olhos de sobre mim. Nos olhamos brevemente, e o ressentimento em sua feição era nítido. Eu ignorei a pontada no peito e fechei a cara, focando em meu prato.
Estávamos comendo em silêncio, ouvindo apenas os barulhos dos talheres nos pratos, quando de repente engasgou violentamente com sua comida. Doug, que estava a seu lado (entre ele e ), deu alguns tapas em suas costas e ofereceu água – mas simplesmente ignorou, com o olhar fixo em um ponto atrás de nós, mais precisamente, pro centro do refeitório.
“O que foi, ?” Doug perguntou, e eu arqueei a sobrancelha.
“Atenção, pessoal! Desculpe interromper a refeição de vocês, mas agostaria de apresentar-lhes uma pessoa muito especial!” A voz do professor ecoou, fazendo com que todos, pouco a pouco, virassem para encará-lo. Como eu estava de costas, fui me virando, até que avistei o professor sorridente, de pé, ao lado de uma jovem de longos cabelos platinados e sedosos presos num rabo de cavalo alto. Olhos azuis parcialmente escondidos por sua franja milimetricamente ajeitada, e um corpo de dar inveja em todas as garotas presentes no salão.
Eu estava franzindo a testa, porque aquele rosto não me era estranho. Até que tudo aconteceu ao mesmo tempo;
Eu lembrei de quem se tratava – e era o mesmo motivo pelo qual havia se engasgado. E antes que eu pudesse falar qualquer coisa, a voz do professor ecoou, anunciando a surpresa da noite – particularmente endereçada para mim e para .
“Essa jovem, filha do Sr. Windenberg, gentilmente se voluntariou para nos ajudar no Show de Talentos.” O professor colocou as mãos nos ombros dela, que sorriu feito uma Miss Universo. “Por favor, recebam com muito carinho, nossa querida Charlotte!”
O garfo caiu da minha mão e meus olhos se arregalaram, sem acreditar no que estava acontecendo.
Aquela era Charlotte. Filha do dono do acampamento. Uma amiga que fiz num outro acampamento, anos atrás quando meus pais se divorciaram. Na mesma ocasião em que conheci e me apaixonei por .
A mesma amiga com quem ficou, anos atrás.
Estava ali, de pé. Linda, bela, estonteante. Fazendo se engasgar, e me fazendo derrubar o garfo da minha mão.
A vida, meus amigos... Não é para principiantes, nem amadores.
Capítulo 18 - The sky it burns bright with your presence tonight.
“Você pode pedir pra trocar de cabana.” dizia, enquanto andávamos lado a lado pela área livre do acampamento. Eu apenas neguei com a cabeça, bufando.
“Todo castigo pra corno é pouco, não é?” Murmurei, chutando pedrinhas. Ela me direcionou um olhar sem graça, e eu constatei que de fato, eu tinha tacado pedra na cruz com chiclete.
“Calma, não é tão ruim assim!” Ela tentou amenizar, e eu rolei os olhos.
“Como não é tão ruim assim, !?” Eu indaguei, parando de andar e a encarando confusa. “Eu sou apaixonada pelo meu melhor amigo, estou num rolo sério há três meses com um cara que já gostei, os dois fazem parte da mesma banda, e simplesmente minha mais nova colega de quarto é a menina com quem ficou anos atrás enquanto eu sofria por ele.” Gesticulei, fazendo movimentos exagerados. “Como se já não fosse o suficiente, eu tive uma discussão séria com ele antes de Charlotte dar o ar da graça. E eu nem sei se deveria estar sentindo ciúmes ou insegurança, porque de fato não tenho nada sério com ! Na verdade, eu nem sei o que tenho mais com , e ao mesmo tempo que rola essa insegurança, também bate uma raiva ao lembrar das merdas que ele disse!” Exclamei nervosa, e simplesmente me abraçou forte, colocando minha cabeça em cima de seu ombro e fazendo um carinho em meus cabelos.
“Calma, calma... Vamos por partes, ok? Não é o fim do mundo.”
Eu fiquei respirando fundo, sentindo o cheiro dos cabelos dela invadirem minhas narinas e me permiti tranquilizar por um momento. Talvez não fosse exatamente o fim do mundo, e desconfio que de fato eu não tinha um PROBLEMÃO nas mãos... Mas sim, eu tinha coisas a lidar. E eu estava completamente cansada de tanta treta.
“O verdadeiro problema é ter que aturar aquele perfume nojento...” Ela falou, e eu ri, me deixando levar pela piada sem graça.
“Que que eu faço, ?” Perguntei, perdida.
Ela se afastou de mim, e deu de ombros.
“Acho que só você pode saber. Precisa entender o que está sentindo, acima de qualquer coisa. Como foi pra você aquela cena no jantar?”
Eu suspirei, fechando os olhos por uns momentos. Aquela situação foi tão esquisita que poderia entrar pros momentos mais inusitados do ano, com facilidade.
Na ocasião, eu ainda estava me recuperando do choque de ver Charlotte ali, diante de nós. Peguei o garfo do chão e caminhei mecanicamente até a pequena pia atrás da mesa. Eu fui marchando enquanto sentia os olhares sobre mim. , , e . Mas os ignorei, e fui ao meu destino como um verdadeiro zumbi que apenas caminha em direção à sangue fresco. No meu caso, sangue fresco era igual a qualquer coisa possível que me tirasse dali.
Enquanto lavava o garfo, eu ficava tentando entender o que estava acontecendo, e porque eu estava aflita. Por um lado, eu pensava que, mesmo com aquela briga toda, e eu estávamos juntos, então não tinha porquê ficar preocupada. Em contrapartida, as coisas ditas naquela discussão eram muitas pra serem digeriridas. Coisas estas que deixavam nossa relação mais indefinida do que já era. Tínhamos algo, mas até que ponto era sério? Até que ponto aquele status definia nosso relacionamento, sem que as tretas chegassem?
Impossível, eu sei. Se problemas já existiam em casais normativos, com seus namoros fechados e bem “delimitados”, porque o meu seria diferente, haja vista que foge do padrão? Ok, fugir dos padrões não era um problema, mas a falta de comunicação e compreensão sim. Era fato que tínhamos questões. Uma delas foi o que sabiamente colocou na discussão; “Posso sentir ciúmes de você?”. Eu entendia melhor o que quis dizer com isso. Eu posso me sentir insegura diante da chegada de Charlotte? Tenho esse direito, partindo da premissa que não temos nada... sério? Ainda mais depois de tudo?
O que éramos depois daquela briga? Eu estava de verdade com medo? Com receio? Se sim, de quê exatamente? De perder ? Ou da possibilidade de perder algo bom, independente da pessoa que seja? Estou com medo de me sentir numa competição com Charlotte, sendo ela a própria pessoa que no passado ficou com alguém que eu queria? Me sinto inferior a ela? Me sinto mais do que ela por ter “finalmente” estado com ? Sinto necessidade de “demarcar território” diante do histórico dos dois, e da situação que me encontro com o ? Teria algum problema se ele ficasse com ela, diante do que éramos e do que não éramos?
Muitas perguntas, é. E isso tudo eu pensava ao lavar o garfo. Sim, a ansiedade fazia minha mente numa velocidade assustadora. Mas eu descobriria em cerca de cinco segundos que seria um desperdício ter lavado o talher. Porque ele logo caiu da minha mão quando me virei, e me deparei com a cena de Charlotte notando a presença de ali.
Meu coração bombeou rápido, a respiração acelerou, e eu não consegui mais acompanhar os pensamentos. Tudo ficou misturado, parecia que muitas vozes falavam comigo ao mesmo tempo e eu não era capaz de entender nenhuma frase. A minha confusão era notável; poderia dizer pela cara de me encarando preocupada. Mas eu só fiquei ali, encarando a cena se desenrolar, como uma plateia passiva.
“Meu Deus, é você !?” A voz de Charlotte saiu animada e surpresa, e ela não poupou movimentos exagerados em sua direção, o aproximando para um abraço apertado. Bem apertado.
“Charlotte!” Ele exclamou, sua voz era incerta e ele pousou as mãos na base de suas costas, retribuindo levemente o gesto. “Que coisa, você por aqui...” Eu estava um pouco confusa demais para reparar no que ele dizia; eu reparava nos detalhes, no tom de voz, no olhar, na disposição corporal... Eu sei, perceptiva demais até.
“Pois é! Quem diria que nos reencontraríamos num acampamento de novo!” Ela riu e jogou o rabo de cavalo para trás graciosamente. “E ainda mais no do meu padrasto!”
“Oh, ele não é seu pai?” perguntou, sorridente, e se afastou levemente, colocando as mãos no bolso.
“Não! Ele é o marido da minha mãe, mas é como um pai pra mim. Meu sobrenome segue sendo Deville.” E lá estava mais um sorriso belamente estampado no rosto, e a pequena conversa chamava não só atenção da nossa mesa, como das pessoas ao redor. A beleza padrão de Charlotte era algo que qualquer um notaria.
“Entendo...” respondeu, e colocou a mão no ombro dela. Nesse momento, eu senti uma pontada no peito, mas me mantive imóvel. “É muito bom vê-la. Bom saber que está bem depois de tanto tempo.”
“Nem tanto tempo assim, né?” Ela comentou e pegou na mão dele e a envolveu com as suas. “Mas é muito bom te ver também. Você... Me parece bem também.” Ela falou e eu finalmente decidi respirar, depois de prender o ar nos pulmões. Eu não sabia o que achar daquilo, não sabia direito o que estava sentindo. A sensação era que eu conseguia sentir tudo e nada ao mesmo tempo.
Eles ficaram se encarando e foi o primeiro a quebrar contato, sorrindo sem graça e acenando com a cabeça.
“Obrigado.” E encarou o chão, visivelmente desconcertado. Eu suspirei e catei o garfo do chão, desistindo de lavá-lo. A fome havia passado num piscar de olhos.
“Mas espere...” Charlotte disse, me fazendo olhá-la atenta. Ela posicionou as mãos na cintura, enquanto fazia uma cara de sabichona. “Se você está aqui, significa que você estuda na mesma escola que a ! Ou eu estou maluca?”
Como assim? Como ela sabia?
“É...” Ele confirmou e sorriu, acenando a cabeça. “Aliás, ela...” E me procurou com o olhar, apenas me dando um tempo para melhorar a postura e a cara.
Quando seus olhos me alcançaram, eu vi a mesma incerteza que eu sentia dentro de mim. E era impossível não me sentir um pouco triste vendo aquilo – porque por mais que não fosse nada demais os dois se cumprimentando, era difícil desvencilhar a cena atual das memórias do acampamento de anos atrás. E eu não queria me sentir daquele jeito de novo, definitivamente.
“Ah meu Deus, você tá aí!” Charlotte berrou, vindo em minha direção, e antes que eu pudesse expressar qualquer coisa, ela me puxou para um abraço apertado, e eu mantive meus braços paralelos ao meu corpo, chocada com sua reação. “Quanto tempo, hein!” E me segurou nos ombros, sorridente. “Como você está?”
A pergunta de um bilhão de dólares, sim ou claro?
“Bem...” Eu respondi fracamente, sorrindo da melhor forma que consegui – e sei que mal consegui mover um músculo da cara. “E você? Que mundo pequeno né?”
“Bota pequeno nisso!” Ela exclamou, como se não percebesse minha total falta de animação, e gesticulou, enquanto jogava um braço em volta dos meus ombros, e caminhava lado a lado comigo, me forçando a voltar para a mesa. “Eu tô bem, mas não precisamos resumir isso agora! Tem muita coisa para colocarmos em dia!”
Ela sorriu e segurou na mão de e na minha. Nos encaramos meio incertos enquanto ela comemorava o encontro inusitado.
“Eu já sabia que a estava aqui, mas não esperava encontrar você!” Ela se virou para , debruçando o indicador no peito dele e retirando tempos depois.
“Espera.” Primeira vez que fui tão sincera naquela situação. “Você sabia que eu estava aqui?”
“Mas é claro!” Ela riu animadamente. “Reconheci seu nome na hora, quando vi em qual cabana eu ficaria. Não é maravilhoso? Podemos fazer uma festa do pijama!” Ela comentou a última frase em forma de sussurro, e comentava tagarelamente o quanto ficou feliz com a coincidência.
“Mas você é a filha, ou sei lá, do dono. Pra que vai dormir conosco? Sem ofensas.” se meteu no meio da conversa, se debruçando na mesa e fazendo a segunda pergunta de um bilhão de dólares. E eu agradeci intimamente por isso, porque estava doida para saber também.
“Bem, achei que não tinha problema em solicitar uma cama na cabana para me enturmar melhor, já que serei monitora.” Charlotte explicou, dando de ombros. “E você é...?” Completou sua fala com certa soberba.
“.” Minha amiga respondeu com um sorrisinho cínico, enquanto dava um tchauzinho. “É que eu quis saber porque no caso, seremos colegas de cabana. Bem-vinda!” Quem não conhecesse , acreditaria em sua curiosidade genuína. Mas eu sabia que ela estava coletando informações para trocarmos uma com a outra.
“Ah, obrigada!” Charlotte voltou a responder de forma graciosa, e seus olhos correram pela mesa, parando sobre e . “Imagino que vocês sejam o resto dos amigos, certo?”
“.” O disse educadamente, levantando o braço, com um sorriso de canto.
“.” Meu melhor amigo respondeu apenas, encarando-a.
“Prazer em conhecê-los. De verdade!” E exclamou, ficando entre mim e com os braços apoiados em nossos ombros. “Os amigos de e são meus amigos também. Será tão divertido passar esse tempo com vocês!” E deu um grito fininho, antes de se desgrudar e eu agradecer internamente por alguém tê-la chamado.
“Preciso ir, mas nos falamos melhor depois, certo?” Ela nos encarou sorridente, e piscou enquanto mandava um beijo voador em nossa direção, seguindo para longe da mesa e de nós.
Ficamos em silêncio constrangedor; eu e nos olhávamos incertos, e a mesa nos observava.
“Enérgica, não?” comentou, e eu caminhei em direção ao meu lugar (ao seu lado) pedindo socorro com os olhos.
“Eu diria efusiva.” completou, dando continuidade ao seu jantar, inabalável.
“É, essa é a Charlotte.” respondeu, sem graça, e eu não disse nada enquanto me sentava, encarando o prato.
Mais silêncio e já estava se tornando insuportável, mas eu simplesmente não conseguia sair daquele torpor. Era muita coisa para digerir.
“Sua comida vai esfriar.” disse quase num sussurro, sem me encarar. Eu levantei a cabeça e o olhei por um bom tempo, até que ele retribuísse o gesto.
“Não estou com fome.” Respondi, após me sentir mais perdida em seus olhos.
Decidi que já não havia nada a fazer ali, e simplesmente me levantei da mesa, pedindo licença e levando o prato comigo.
“Não vai comer nada?” insistiu, e eu parei de costas pra mesa. Dei um suspiro e respondi desanimada.
“Não, estou cansada. Preciso dormir... Boa noite.” E segui meu trajeto, sentindo algo tão estranho e incômodo dentro de mim.
Eu estava saindo do refeitório, quando me alcançou, e juntas andamos sem dizer exatamente algo, até àquele momento, em que eu me via refletindo sobre a pergunta de .
“E então? Como se sente?”
“Confusa.” Respondi. “Eu realmente preciso dormir.” E encerrei a conversa. Não dava pra falar sobre algo que nem eu sabia o que era ao certo. E para minha sorte, ao chegar na cabana, Charlotte não estava, o que facilitou meu processo de colocar o pijama e mergulhar no mundo de Morfeu.
***
Nenhum sonho de beleza seria capaz de me deixar tranquila, eu sabia disso. Mas precisava eu acordar com aquela cara tão amassada, como se um trator tivesse passado por cima de mim?
“Puta merda.” Eu comentava enquanto desativava o despertador e me olhava no espelho de cabeceira, sentando-me na cama. Eram nove horas da manhã e eu parecia ter levado um eletrochoque.
“Você sequer dormiu?” perguntou, enquanto tirava uma muda de roupa de seu armário. “Sem ofensas.”
“Bom dia para você também, amiga. Obrigada!” Eu bufei, jogando o corpo no colchão. “Parece que foram quinze minutos. Me sinto uma merda!”
“Se te tranquiliza, eu também dormi mal, mas pelo menos temos maquiagem e sarcasmo. Eu adoro utilizar esses dois itens para dias assim!” Ela sorriu e aquilo me fez rir levemente.
“Como você consegue ser tão afiada logo de manhã cedo?” Indaguei, suspirando e me arrastando para o armário, pegando um short jeans e uma blusa de manga curta preta com as palavras “NOT TODAY, SATAN.” em letras brancas e garrafais. Providencial!
“A pergunta certa é quando eu não acordo assim, querida!” E ela jogou a minha toalha na minha cara, rindo de sua brincadeira.
Eu decidi apenas rir forçadamente antes que arrancasse sua cabeça com uma única mão. Peguei as coisas e segui o projeto de Palhacitos porta a fora, rumo ao banheiro.
Admito que passei mais tempo debaixo d’água do que o aconselhável – mas não seria aquele dia que eu contribuiria para a o meio-ambiente, infelizmente. Meu mau humor era palpável, e eu curiosamente me energizava com aquela água quente e relaxante caindo bem no meio da minha cabeça.
Saí do banho menos estressada, me enrolei na toalha e tirei o excesso de água do cabelo enquanto sentava no banco, procurando o creme de pentear e a escova. já estava vestida, penteando o cabelo e murmurava algo sobre algum maldito nó que não dava trégua, quando do nada uma pessoa muito conhecida saiu de um dos boxes, da forma mais natural que veio ao mundo.
Eu literalmente parei o que estava fazendo e senti minha boca abrir levemente com a cena. Charlotte estava simplesmente nua com uma toalha na cabeça, e andava com uma tranquilidade invejável. Não sei ao certo em que momento aconteceu, mas ela logo percebeu minha presença e, obviamente, não poderia me cumprimentar de forma polida.
“Bom dia, dorminhoca!!!” Exclamou e veio em minha direção, me abraçando. Minha mente estava dividida entre reparar no corpo esbelto da loira, e na confusão de abraçá-la nua.
“Bom dia, Charlotte.” Me forcei a dizer, e ela saiu do abraço colocando as mãos na cintura, me lançando um sorriso.
“Bom dia! Perdeu sua toalha?” novamente veio com a melhor pergunta do mundo, e eu não poderia ser mais grata. Charlotte lhe sorriu sem graça, e deu de ombros.
“Eu esqueci de pegar uma extra para o cabelo, e só lembrei disso quando já era tarde! Acredita? Muito burra, né?” E riu acenando com a cabeça. “Mas aí eu pensei ‘Estamos todas num banheiro feminino, não há nada de diferente aqui!’ Além do mais, meu corpo secará mais rápido que meu cabelo com o clima de hoje, não acha?” E propositalmente, Charlotte deu uma voltinha, e foi impossível não reparar que a jovem tinha tudo no lugar, e que sim, provavelmente tudo o que os rapazes imaginavam de seu corpo era real.
Uma parte de mim ficou quebrada com aquilo, e automaticamente encarei meu corpo debaixo da toalha, já enumerando uma lista de imperfeições que eu tinha de mais ou de menos em comparação ao corpo de Charlotte.
Eu sei, isso é uma merda.
“Sei como é... prioridades!” respondeu rindo de leve, enquanto guardava a escova de cabelo em sua necessaire.
“Mas isso não incomoda vocês, né?” Charlotte perguntou fazendo uma careta. “Por favor, meninas! Todas nós somos iguais!” Ela disse apontando pro próprio corpo, e seus seios fartos balançaram com o movimento exagerado. “Quer dizer, não tão iguais, mas vocês entenderam.” E deu de ombros, rindo de sua própria piada, enquanto eu e nos entreolhávamos sem entender muito bem a graça.
“Eu tô de boa.” respondeu com um sorriso tranquilo.
“E você, ? Não tem problema, né?” Charlotte perguntou com a mão acima dos seios, encostando as pontas dos dedos em seu peitoral, e eu fiz um esforço para encará-la nos olhos, ignorando os faróis acesos da loira que me julgavam com sua prepotência.
“Devo assumir que depois do abraço, se havia algum constrangimento...” E sorri sem mostrar os dentes, enquanto ouvia a risada de soar ao meu lado. Charlotte deu uma risadinha e fez uma careta.
“Oops! Agora já foi, né?” E deu de ombros de novo, caminhando para as suas coisas e colocando uma calcinha de renda preta, a qual fiquei me perguntando como ela conseguia usar sem assar o olho que nada vê – se é que vocês entendem.
“Relaxa, também tô de boa.” Menti na cara dura, passando o creme no cabelo e penteando-o, enquanto suspirava ao pensar que tinha mais uma neura recém-adquirida: ficar me comparando ao corpo escultural de Charlotte.
“Que bom!” Ela falou, colocando um vestido de malha azul bebê que combinavam com seus olhos, e sentou-se para calçar os adidas brancos. “Estão animadas para as atividades de hoje?”
Eu e nos entreolhamos novamente, nos questionando silenciosamente se deveríamos dizer a verdade ou não, já que Charlotte era simplesmente a monitora e enteada do dono do acampamento.
“Um pouco.” Falei e concordou, coçando a nuca.
“Poxa, mas só um pouco? Por quê? Preocupada em não tirar a pontuação necessária para passar?” E me olhou rapidamente, enquanto tirava a toalha da cabeça, soltando os cabelos longos e .
“Algo do tipo.” Respondi, terminando um lado do meu cabelo e partindo para o outro.
“Eu lembro de você ser nerd, ! O que aconteceu?” Ela perguntou com numa entonação materna que me deu certo asco.
“A vida, né. Imagina sair da educação básica sem ter a noção da recuperação de uma prova final? O friozinho na barriga? Preciso de história para contar pros meus filhos e netos.” Respondi a coisa mais chula que apareceu em minha mente, mas pelo visto havia sido o bastante para despertar as risadas de e Charlotte.
“Bom, não se empenhe muito nisso de experiências e não se coloque em encrencas.” De novo o tom materno e eu rolei os olhos enquanto finalizava o cabelo, colocando a escova na minha bolsa de mão.
“Deixa comigo.” Respondi, colocando a calcinha por debaixo da toalha e catei o sutiã, me sentindo no BBB.
“E se precisar de alguma coisa, pode contar comigo!” Ela sorriu graciosa, mas logo seu rosto denunciou se lembrar de algo. “E ah, desculpa por não esperar vocês hoje. Quer dizer, ontem eu cheguei um pouco depois de vocês, mas já estavam dormindo. E hoje eu precisei sair mais cedo para resolver algumas coisas, além de cuidar dessa belezinha aqui, né?” Ela explicou, penteando o cabelo com um cuidado que me fazia sentir o próprio carrasco do meu cabelo.
“Sem problemas, entendemos perfeitamente.” respondeu, e eu discordava só da última parte, mas tudo bem.
“Posso prometer tentar amanhã, o que acham?” Ela perguntou sorridente, e eu terminei de colocar o short e tirava a toalha, colocando desodorante nas axilas.
“Não precisa se esforçar, a gente sabe que você tem mais afazeres e tal. Sem problemas, sério. A gente pode almoçar juntas ou algo do tipo.” Falei tentando ser educada, mas eu mal sabia na merda que estava sugerindo, porque só ali parei pra pensar em como a situação seria. Pois é, a sobremesa seria a famosa torta de climão.
“Ah, ótimo! Combinado então!” Charlotte parecia realmente empolgada e eu me senti um pouco mal com isso, enquanto colocava minha blusa. Eu não tinha nada de ruim para falar dela ou de fato me sentir mal com alguma atitude sua. Mas ela representava certas coisas que me desestabilizavam – e conseguia ativar minhas inseguranças com uma habilidade incrível. Eu sei, ela tinha zero responsabilidades nisso. Eu que precisava lidar com meus próprios demônios. E torcia intimamente que eles pelo menos pegassem leve comigo.
“Combinado.” Respondi, depois de passar a cabeça pelo buraco da blusa e tirar os cabelos das costas. “Te vejo mais tarde então.” Acenei junto com , e Charlotte retribuiu com um sorriso amigável.
“Eu me sinto péssima, cara.” Sussurrei ao lado de , quando já estávamos do lado de fora, seguindo para a nossa cabana.
“Não se culpe! Ela não é exatamente o cão chupando manga, mas definitivamente não é nossa vibe.” E riu, provavelmente lembrando das falas da loira.
“Mesmo assim. Ela parece realmente feliz em me ver, e eu tô aqui me sentindo um lixo como amiga. Porque a presença dela me deixa bem...”
“Cagada?” perguntou, enquanto abria a porta da cabana.
“Eu ia dizer receosa, mas prefiro o peso das suas palavras.” Ela riu e me deu o dedo do meio, abrindo o armário e guardando suas coisas.
“Mas você já se perguntou porque se sente assim?” Essa garota deveria investir em psicologia no ensino superior, na moral.
“Eu sei o que significa.” Comentei fazendo uma careta. “Me comparo a ela e me sinto algo tão pequeno, como há anos atrás, e principalmente depois de vê-la nua.”
me encarou com a sobrancelha erguida e eu bufei rolando os olhos.
“Vai me dizer que não reparou naquela bunda? Porra, toda empinada, a diaba nem treme!” Exclamei indignada e gargalhou com gosto.
“Eu vi. Realmente, muita academia.” Ela disse depois de se recuperar, e eu suspirei. “A minha tá mais pra uma gelatina.” E se tremeu imitando a maleabilidade, me fazendo rir levemente.
“!” Chamei, me tacando na minha cama.
“Ah, ! E daí, cara? Cada um é cada um! Sinceramente, ela tem um corpo bonito sim, mas ela não é só isso. A gente não deveria ficar se comparando, muito menos nos dando mais ou menos “pontos” pela nossa aparência.” Ela usou as aspas com vigor e eu suspirei, concordando com ela – apenas teoricamente.
“É difícil isso. Eu sei que você tem razão, mas não paro de me comparar com ela. E de certa forma, as memórias de anos atrás estão me atravessando desde o momento que a vi. Fiquei com medo de me sentir mal como me senti na época em que ela e ficaram.” Me sentei na cama e fui guardar meus pertences, verificando o celular carregando na tomada. Havia uma mensagem de , que eu veria depois de despistar , é claro.
“Hum, então chegamos no x da questão!” Ela comentou, colocando perfume nos pulsos e espalhando por detrás das orelhas. “Você está com medo de que e ela fiquem? Tipo, tá achando que com a briga entre você e , ele se sinta balançado pela presença da Charlotte e queira ter uns flashbacks?”
“Eu fico impressionada com sua capacidade de síntese, mulher.” Comentei, sincera. “Acho que sim.” Respondi, voltando à questão.
“Então, você assume que sente ciúmes de ?” Ela indagou, com uma cara de mistério.
“Talvez. Mas acho que não são os motivos certos... Ou sei lá se existe motivo errado. Sinto que é mais baseado no que conversamos, sabe? Medo de sentir o que senti, medo de me sentir trocada, de me sentir uma merda caso ele a escolha. Medo do abandono... Mas eu não poderia realmente culpá-lo, não é? Não temos nada sério, e eu já sou toda desgraçada de amor por outra pessoa, então...”
“Entendi.” Ela respondeu, com os braços cruzados, me encarando. “E o que você vai fazer diante disso? Vai conversar com ele hoje? O que você quer fazer? Quer esclarecer as coisas?”
“Aí é que tá!” Respondi, ansiosa. “Esclarecer o que, exatamente? Brigamos? Brigamos! Mas existe uma coisa pulsante entre nós que é essa merda de sermos ou não namorados!” Rolei os olhos, irritada. “Eu sei que a gente não precisa de um estereótipo pra se relacionar. Mas fico pensando que precisamos definir algumas coisas. Dentre elas, saber se nosso relacionamento é aberto, ou não. Se a gente tem esse direito de se cobrar alguma coisa, sei lá. Por um lado eu quero que seja leve. Por outro, eu sei que tem que ter um mínimo de responsabilidade afetiva que implica em combinados bem estabelecidos, né? Mas a briga de ontem só me faz pensar se fiz bem em concordar com isso tudo que vivo com ...”
“Você quer estar com ele?” perguntou, me segurando pelos ombros. “Ou você ficaria com qualquer pessoa, apenas por carência?” Meus olhos se escancararam diante daquela pergunta.
“Eu não estou com por carência!” Respondi irritada, e me olhou desconfiada.
“Tem certeza?”
E não. Eu não tinha.
“Por que você tá me perguntando isso agora, cara? Não foi você que me deu o maior apoio de ficar com ele?” Perguntei, cruzando os braços, vendo minha amiga tirar as mãos de meus ombros e sentar-se na minha frente. “Que merda é essa, ?”
“, foi mal tá!? Sem estresse! Mas cara, essa pergunta é necessária!” Ela advertiu, gesticulando com as mãos. Me olhou seriamente após um momento, e cruzou os braços. “Venhamos e convenhamos, você pode ter todo o direito em não querer ver depois da briga de ontem. Mas isso não ignora o fato de que você precisa pelo menos saber o que tá sentindo em relação a ele e o que quer com essa relação. Afinal de contas, nem tudo que ele disse é uma tremenda merda que você deve descartar! Tem pontos a serem resolvidos aí, e ao que parece, urgentemente! Uma coisa é vocês combinarem de serem leves. Outra é você fingir que tá tudo bem para os dois, quando nitidamente não está, e seguir num relacionamento porque você tem medo de dores passadas! Ou de até mesmo ficar sozinha! Não acha?”
Mordi o lábio inferior ao ouvir aquela frase. Aquilo havia doído demais, tanto quanto era verdade. E eu acho que ficava mais triste e chateada por ter razão.
Olhei pro chão, ignorando a ardência nos meus olhos, mas sabia que meu rosto já denunciava a vermelhidão e eu mal conseguia enxergar um palmo à minha frente sem ver tudo embaçado por causa das lágrimas.
Fiquei quieta, balançando minha perna impaciente enquanto cada segundo de silêncio me fazia sentir raiva; de mim, de , de estar certa, do mundo.
“Eu não falei isso por mal.” Ela disse com a voz bem mais calma, e se levantou vindo até mim, sentando na cama. “Eu não quero que você fique chateada comigo, nem que se sinta obrigada a nada, amiga. Desculpa se eu falei de uma forma rígida, minha intenção não foi te magoar. Mas eu não gosto de te ver nessas pirações por coisas que você pode e deve resolver com mais tranquilidade, sabe?” Eu suspirei fundo, ainda sem olhá-la nos olhos. “Por favor, não me ignora.”
“Não estou te ignorando.” Falei coma voz grave, devido ao nó na garganta. Enxuguei lágrimas dos olhos e respirei fundo. “Só estou tentando digerir. Apesar da rigidez das suas palavras, elas são verdadeiras, necessárias. E eu só preciso entender o que há aqui dentro. Mas tem muita coisa rolando, e eu me sinto numa estação de trem, onde eles vêm e vão, e eu não entro em nenhum; só fico na plataforma sentindo o vento bater no rosto, perdida, sem saber para onde ir.” Apoiei os cotovelos nas pernas, e segurei a cabeça entre minhas mãos.
“Eu sinto muito.” Ela comentou, com notável preocupação na voz. “Eu não disse as coisas para te ferir, de verdade. Mas você precisa tentar entender o que tá acontecendo antes que acabe trazendo mais mágoa para si e para , ou antes que você se consuma de pensamentos e emoções ruins. E você não merece nada disso, sabe? Não merece se sentir menos porque Charlotte é padrãozinho, não deve se sentir menos amada caso vá embora e fique com ela ou outra pessoa qualquer, não deve se sentir um lixo na não reciprocidade de . Você é muito mais que isso, e tem uma vida cheia de oportunidades!” Ela falava enquanto enumerava com os dedos. “Amiga, você é incrível. Pare de sentir pena de si mesma, pare de ter medo do que sente. Sabe? Assume, você não gosta de desse jeito. E se tá ficando insuportável lidar com as expectativas dele, dos outros, ou dos seus próprios achismos em tentar retribuir algo que você não tem pra dar... Dá um tempo! Respira, sei lá, vai pensar sozinha. Mas não cria coisa que não existe. Tipo, acreditar que você vai ficar pra sempre só, que ninguém vai te amar, que você não é boa o bastante. Essas merdas! E por causa delas, se prender a relações ou pessoas que simplesmente não encaixam, por medo de estar só.”
“C-Como você...” Eu perguntei, sentindo meu rosto se banhar com as lágrimas. Minha voz saiu tão fina que precisei repetir a frase, após pigarrear. “Como você sabe que eu sinto isso? Que eu... penso essas coisas?” Questionei, a encarando com certo medo. Ela havia sido tão assertiva que chegava a doer.
apenas sorriu pra mim de lado, e veio até mim, enxugando minhas lágrimas. Eu apenas acompanhei seus movimentos.
“Eu conheço você. E também sou mulher. Eu sei que a gente se sente assim muitas vezes... E quer saber?” Ela perguntou, segurando meu rosto em suas mãos. “Não é justo fazer isso consigo. Você é incrível. Maravilhosa. Dona da porra toda. Então limpa esse rosto, endireita a postura, e passe por aquela porta como a rainha que tu é, entendeu? Sem medo de sentir o que quer que venha a sentir, sem medo de suas decisões ou de errar. Tudo faz parte, e independente de qualquer coisa, eu estarei aqui.”
Sorri quase involuntariamente, e a puxei para um abraço apertado. Me permiti chorar até soluçar no seu ombro, e ela devolveu o gesto com o carinho acalentador de sempre. Sua amizade era capaz de me erguer em momentos como esse, em que eu estava visivelmente pirando, mas disfarçava com piadinhas e ilusões próprias, me convencendo de que as coisas não estavam doendo como realmente estavam.
E isso, definitivamente, me cansava mais do que qualquer coisa. Fingir ser forte, quando na verdade, agir daquela forma não tinha nada de fortaleza. Que idiota eu era... E a vida era legal o suficiente pra colocar uma pessoa como no meu caminho.
“Já te disse que te amo hoje?” Perguntei, saindo do abraço.
“Hoje não!” Ela respondeu, jogando o cabelo e fazendo-nos rir. “Mas pode começar, tá na hora.”
“Eu amo você, sua escrota!” Dei um tapinha em seu ombro, e ela levantou-se, fazendo uma dancinha da vitória bem tosca.
“Eu sabia! Eu sabia! Eu sa-biiii-a!” A dancinha piorara estratosfericamente, e eu rolei os olhos rindo.
“Deixe-me salvá-la da vergonha alheia!” Falei, levantando da cama, e segurando em seus ombros. “Vamos tomar nosso café. Precisamos nos alimentar, a fome já tá deixando a gente pirada.” Eu disse indo em direção à porta, mas me impediu ao segurar meu braço.
“Não mesmo!” Ela sorriu malignamente e eu arregalei os olhos. “Eu falei que sarcasmo e maquiagem salvariam o dia. Deixe-me brincar um pouco, mocinha!” E antes que eu pudesse contestar, ela me puxou para sua cama e retirou o estojo de maquiagem do armário.
“Por favor, nada exagerado, tá?”
“É só pra melhorar um pouco a cara de morte atropelada, tá? Confia em mim.” A facilidade com que ela tinha de me jogar para cima e para baixo era surreal.
Sabendo que não seria capaz de teimar com ela, apenas permiti que fizesse seu trabalho – que por acaso não demorou muito – e eu consegui ficar com uma aparência mais saudável, disfarçando o rosto de choro de momentos atrás.
“Agora podemos ir?” Perguntei, depois de agradecê-la.
“Agora sim. A fome já era real antes, agora é um fato histórico!” Ela exclamou enquanto saíamos da cabana, rindo.
***
“Eu não sabia que precisava de um pão francês até este exato momento!” falava enquanto beijava seu café da manhã, empolgado.
“Isso tudo é fome?” perguntou, e eu ri quando o respondeu com apenas um olhar óbvio, antes de abocanhar o pão com manteiga, queijo e presunto.
“Mas tá uma delícia mesmo.” Comentei baixinho, depois de mastigar. Estávamos eu, , e sentados à mesa. Meu melhor amigo tinha um humor melhor do que eu, apesar de apenas rir de nossas conversas paralelas, sem exatamente dizer algo. E obviamente não pude deixar de reparar em como sua cara de sono era linda – em contrapartida, a minha estava mais para uma maritaca arrependida, como diria minha avó.
“Eu não consigo sentir tanta fome logo de manhã...” comentou, tomando um gole do seu suco de manga. “Sei lá, acho que acostumei a não comer nada pesado e partir direto para o almoço.”
“E é por isso que eu nunca mais te convido pra almoçar lá em casa.” Comentei escondendo o riso, e os meninos riram enquanto ela fingia indignação.
“Como é que você fala um negócio desses com essa naturalidade, sua sem-coração?”
“Você simplesmente matou uma lasanha quatro-queijos sozinha, cara. Das grandes!” Eu justifiquei, dando de ombros.
“Que mentira! A gente dividiu!” Ela arregalou os olhos e apontou para . “, me defenda. Você estava lá naquele dia!”
apenas a olhou divertido e me encarou curioso. Nós partilhamos um olhar cúmplice e ele deu de ombros.
“Eu lembro que tinham duas lasanhas. E sim, dividimos.” Ele respondeu, tomando um gole do café, enquanto comemorava.
“Yes! Viu só? Você fica criando intriga à toa!” Ela respondeu, apontando o dedo bem no meio da minha cara. Mas toda sua atuação foi interrompida por um pigarro vindo de .
“Eu quis dizer eu e dividimos uma lasanha. Você comeu a outra inteira.” E ele fez cara de paisagem enquanto eu e ríamos da cara de choque de .
“Como vocês podem falar uma coisa dessas? Isso tudo é mágoa? Gente, mágoa faz mal pro coração, hein!” Ela tentou se justificar e todos caímos na gargalhada.
“Desiste, Amaral. Você perdeu essa.” anunciou, antes de dar uma nova mordida no pão.
“Vai se ferrar que você é outro esfomeado! Fica fazendo sonetos pro café da manhã igual a um nerdzão e quer falar de mim!” Ela brincou, ameaçando pegar o pão da mão dele, que logo recuou, atento.
“Você nem é maluca de fazer isso, garota. Eu acabo com a tua vida!” Ela falou ainda de boca cheia, e deu um pescotapa pela falta de educação. “Ei!”
“Estava caindo migalhas no meu café, cara. Na moral.” explicou com a maior cara lavada do mundo, e eu ri abertamente, junto com a galera. Estávamos num clima tão bom que eu sorri, pensando há quanto tempo aquilo não acontecia.
“Bom dia, pessoal. Vejo que estão animados hoje, né?” Ouvi a voz de soar atrás de mim e senti na hora meu corpo endurecer. olhou pra mim com uma sobrancelha arqueada, sem entender minha reação.
Demorei alguns segundos até que virasse meu rosto na direção de . Todos haviam respondido o bom dia dele, menos eu.
“Bom dia.” Eu me obriguei a dizer, com um sorriso mínimo – totalmente forçado.
“Posso me sentar aqui?” Ele perguntou, apontando pro lugar vazio ao meu lado, e eu concordei com a cabeça, sentindo meu interior ficar tenso.
“Do que estavam falando?” Ele perguntou apoiando os cotovelos em cima da mesa e olhando para todos de uma maneira curiosa. Ele estava com os cabelos molhados e vestia uma camisa verde escura de manga curta, e eu percebi que seu perfume estava mais acentuado. O bom humor de sempre estava de volta à , mas eu conseguia ver a aflição escondida por detrás do olhar ansioso que ele me dava de tempos em tempos. E eu não estava muito diferente dele.
“Estávamos só falando do apetite voraz da , que acabou com a despensa da num belo dia de verão.” respondeu, e eu agradeci pela quebra de gelo que ele conseguiu inserir no ambiente.
“Na verdade, era outono, mas tudo bem.” corrigiu, terminando seu suco.
“Então você assume que é uma esfomeada?” Perguntei encarando minha amiga com um sorriso de canto, e os meninos riram (com exceção de ).
“Ai gente, não vamos discutir pequenezas, né?” Ela sorriu forçadamente e eu rolei os olhos, risonha.
Eu decidi colocar uma porção de ovos mexidos na boca e me permiti mastigar com uma calma incomum. Me mantive a olhar pro prato, como se estivesse concentrada em contar quantas mastigações eu conseguia dar antes de engolir – e isso tudo para não ceder ao olhar que queimava em mim, vindo de . Mas meus planos não deram certo por muito tempo.
“Dormiu bem?” Ouvi sua voz soar ao meu lado, e os ovos passaram pela minha garganta como se fossem pedras. Eu respirei fundo e virei meu rosto para olhá-lo nos olhos. Ambos apreensivos, e eu só sentia a conversa de reverberando em mim. O que eu verdadeiramente sentia por ? O que eu queria com aquela relação? Fiquei tempo demais encarando seus olhos, até que num suspiro, consegui responder sua pergunta.
“Sim.” Menti, forçando um sorriso breve. “E você?”
“Demorei para pegar no sono, mas até que descansei um pouco.” Ele deu de ombros, estava sendo sincero. “E a dor de cabeça? Melhorou?”
“Sim.” Respondi, apertando meus lábios enquanto me sentia perdida. “O remédio fez efeito.”
“Oh, que bom!” Ele sorriu abertamente, e eu sorri de leve. Me sentia péssima por dentro. Sabia que ele estava tentando ficar de boa, mas estávamos estranhando um ao outro nitidamente. Eu apenas acenei com a cabeça e fiquei encarando-o. O silêncio constrangedor perdurou, e coçou a nuca num movimento nervoso.
“, eu...” Ele começou a dizer, mas sua fala foi interrompida pelo apito estridente do professor.
“Bom dia, pessoal!” Ele falou no meio do refeitório, chamando a atenção de todos. “Vamos finalizando nosso café e nos reunir no lindo campo verdejante que há lá fora?” Ele estava tão feliz e radiante que era impossível negá-lo apoio.
Olhei pra e pro professor, e voltei o olhar pro com uma cara de pena. Ele suspirou e sorriu conformado.
“Depois eu falo com você.” Visivelmente frustrado, ele avisou. “Isso é, se você quiser também.” Se apressou a dizer e eu apenas acenei com a cabeça.
“Tudo bem. Mais tarde nos falamos.” Confirmei e ele deu um pequeno sorriso antes de se levantar. Eu olhei pro meu café da manhã, tinha colocado pouca coisa, e mesmo assim havia sobrado comida. De repente, não estava mais com muita fome, todavia decidi me forçar a comer um pouco mais, pois na noite passada não tinha comido nada, e isso poderia me fazer mal.
“E então, pessoal. Vamos?” perguntou se levantando da mesa e se juntando à . a seguiu, e eu os encarei sem graça.
“Vou terminar minha refeição. Vão indo, eu alcanço vocês.”
“Ora, mas é chato comer sozinha.” falou, olhando pra mim.
“Eu...” começou a dizer, mas uma voz o interrompeu.
“Eu fico. Podem ir.” respondeu, dando uma mordida no melão. “Ainda estou comendo também.” E encarou os três com uma feição tranquila como quem diz algo óbvio.
“Hm, ok então! Esperamos vocês lá fora.” Ela disse, e antes de ir, me lançou um olhar que eu não entendi, mas decidi não tentar compreender na hora.
Enquanto minha amiga e se afastavam, ainda ficou em pé nos olhando. Na verdade, ele olhava de mim para , e mordeu o lábio inferior antes de se aproximar de mim e apoiar a mão na mesa. Notei sua proximidade e levantei a cabeça para olhá-lo. Ele abaixou e aproximou seu rosto do meu.
“Quer que eu te espere? Eu fico, sem problemas.” Em seu olhar continha um certo tipo de ansiedade que me fez afastar levemente de si.
“E-Eu estou bem, . Pode ir. Daqui há pouco chego lá.” E coloquei uma mecha atrás da orelha, sorrindo sem graça. “Obrigada, de toda forma.”
“Tudo bem. Te espero...” Ele respondeu, olhando dentro da minha alma, e num ato breve, encostou seus lábios no meu, roubando um selinho que quase não existiu de tão rápido que foi.
Antes que eu pudesse me dar conta do que fez, já estava de costas e andando rápido com as mãos no bolso, longe de nós. Eu fiquei olhando-o partir, até que tive coragem o suficiente de voltar meu rosto à mesa, um tanto desconcertada pela ação de .
Meu olhar recaiu sobre , que comia tranquilamente sua fruta enquanto me encarava sem dizer nada. Eu suspirei e decidi voltar para os ovos mexidos, mas a paz não estava a meu favor.
“Problemas no paraíso?” Ele perguntou de uma forma divertida e eu voltei a olhá-lo com olhar de tédio.
“...” Eu comecei, mas ele ergueu as mãos em defesa.
“Ok, ok. Esquece o que eu disse.” Ele disse e pegou um novo pedaço de melão. Segurou nas pontas dos dedos e mirou a fruta com admiração. “Não que precisasse de uma resposta, no final das contas.”
Eu estava prestes a dar mais uma garfada nos ovos quando o olhei, atônita.
“Como é?” Eu perguntei com a voz baixa, e ele deu de ombros.
“O mijando ao seu redor, demarcando território feito um cachorro? Essa é nova. E um tanto desesperada, com o devido respeito.” Ele projetou os lábios para frente e acenou a cabeça, como se concordasse consigo mesmo, e eu senti meus olhos se arregalarem.
“!” Exclamei, me sentindo sem graça.
“O que foi? Você perguntou!” Ele me olhou com a cara mais lavada do mundo, e um sorriso mínimo surgiu no canto dos seus lábios.
“Você é uma pessoa horrível.” Eu falei, me concentrando em finalizar a refeição, um pouco emburrada.
“Isso mesmo, continue dizendo isso até que você acredite de verdade.” Ele respondeu com uma feição marota e eu bufei, o encarando sem paciência.
“Já te mandaram ir à merda hoje?” Perguntei, antes de ingerir mais uma garfada de ovos mexidos. Ele sorriu abertamente.
“Não te contaram? Fizemos uma viagem até esse local.” E eu prendi um riso com sua frase. “E o desafio é sobreviver à merda enquanto o acampamento durar.” Ele gesticulou com as mãos e eu sorri debochada.
“Hm, desafio?” Eu o incentivei a continuar, separando mais uma porção no meu garfo.
“Isso mesmo.” Ele disse, animado com sua teoria. “E dia após dia, as pessoas que não suportam vão desaparecendo.”
“Óh, sério?” Eu questionei ironicamente, e ele cruzou os braços, me olhando com falsa feição de esnobe.
“Já percebeu que aquele aluno de cabelos de franja emo não apareceu hoje?” Ele sussurrou, aproximando o rosto ao meu, e sugou a ponta do dedão na minha frente, limpando os rastros do sabor do melão. Aquilo me desnorteou e me fez corar, mas consegui seguir com o pequeno diálogo.
“Hm, não. Não notei, Sherlock.” Comentei, quebrando o contato visual e separando a última porção no garfo, levando-a à boca.
“Elementar, minha cara .” Ele piscou confiante, enquanto se aproximava mais ainda de mim, deixando seu rosto à centímetros do meu. “Fique atenta. Vai que hoje quem some é você?” Ele sussurrou, dando uma cutucada com o dedo indicador e médio no meio da minha testa, e eu a franzi, surpresa com aquele ato tão íntimo que ele não fazia há tempos. Observei sua face divertida e suspirei, decidindo me levantar antes que eu o agarrasse para um beijo e mandasse tudo à merda.
“Se eu sumir, eu levo você junto comigo, . Não vou passar por isso sozinha.” E dei um peteleco na sua mão, levando a bandeja para seu local, há poucos metros dali. Ouvi sua risada logo atrás de mim, e ele finalizou a conversa.
“E quem disse que você iria sozinha?” E rumou para fora do refeitório, me deixando sozinha com uma bandeja vazia nas mãos e um coração acelerado dentro do peito.
***
“Ok, galera! Eu quero que prestem muita atenção aqui!” O professor falava com uma impostação de voz digna de cantor de ópera.
“Meu Deus, esse homem vai me deixar surda!” reclamou do meu lado, e eu prendi o riso. estava do outro lado dela e apenas sorriu sem mostrar os dentes.
“Presta atenção, demônia.” deu um peteleco no meu ombro e eu me virei para encará-lo, e cerrei os olhos ao dar uma bundada em si, que o fez esbarrar em .
“Mas que porra?” perguntou pro , que rolou os olhos.
“Levei uma bundada da , cara.” Ele se explicou, ajeitando-se no lugar. “Que isso hein, ? Que poder é esse?” Ele comentou, fazendo cara de “fuck yeah” e eu dei o dedo do meio pra ele.
“Não era você quem estava dizendo pra prestar atenção?” Sussurrei perto de seu ouvido, e ele riu baixinho.
“Calem a boca, caralho.” falou com a voz grave e eu dei língua, antes de voltar a olhar o professor, sentindo me encarar pelo canto dos olhos.
“Ui, que másculo.” falou perto do , e se aproximou do mesmo, sussurrando. “Fala ‘caralho’ de novo, tesão.” Eu, e rimos disfarçadamente enquanto apenas suspirava, rolando os olhos.
Nossa pequena brincadeira foi interrompida pela voz mais aguda do professor, sendo propositalmente projetada em nossa direção.
“E ISSO TUDO SIGNIFICA...” Nos ajeitamos, ficando sérios e encarando seu olhar impositor. Ele suspirou e voltou a falar na entonação de costume. “Significa que dividiremos vocês por áreas de conhecimento. Como isso vai funcionar?” Ele gesticulava se sentindo o próprio Albus Dumbledore e eu admirava sua animação com a docência.
Ele apontou para os professores que estavam atrás de nós, alinhados separadamente, com fichas e pastas nas mãos. Lá estavam a professora de matemática, a professora de literatura, o de história e a de biologia. Todos com sorrisos amigáveis nos rostos, apesar do visível cansaço.
“Os alunos que estão pendurados em física e matemática, por favor, dirijam-se à professora de matemática, Srta. Wright. Os que estão em português, inglês e literatura e espanhol, com a professora de literatura! Sra. Strauss. Os que estão em história, geografia, filosofia e sociologia, com o Sr. Dawn, professor de história. Os de química e biologia, com o Sr. Petterson, professor desta última matéria.” Ele suspirou, antes de continuar. “Para aqueles que estão em artes e educação física...” E abriu os braços sorridente. “Comigo, é claro!”
“Lembrando que quem estiver pendurado em mais de uma matéria que não esteja no grupo, por favor escolham um e venham conversar com os professores responsáveis! E quanto àqueles que não estão em nenhuma matéria, sintam-se à vontade para entrar no grupo que bem entenderem ou se inscrevam como monitores gerais!” A Srta. Wright falou, enquanto todos já se dispersavam para os respectivos grupos.
“Preciso sair correndo!” disse, puxando o pelo braço, que não entendeu nada.
“Por que?” perguntou, com a sobrancelha erguida.
“Meu projeto, lembra?” Ele parou no caminho, e colocou o indicador no queixo enquanto pensava. Logo sua feição foi de surpresa, e ele voltou alguns passos, agarrando-a pelo pulso. “Você ficou em matemática, não foi?”
mal acenou positivamente, e ele apenas a puxou junto com . Apressado, partiu com os outros dois, que reclamavam da euforia do ao tentar acompanhar seus passos. Ri comigo mesma ao ver quase tropeçando no meio do caminho e dando um tapa no ombro de , que tentou se defender enquanto tentava separar os dois. Apesar das dificuldades, ainda havia certa leveza graças aos amigos.
Ao pensar nisso, puxei meu celular do bolso, me lembrando do pobre do , que já devia estar morto de tanta preocupação e ansiedade. Ao desbloquear o aparelho, sua mensagem triste pairava na minha tela:
“Você se esqueceu da Ohana... :(”.
Eu ri do drama que ele inseriu e ao perceber que estava online, logo respondi de volta.
“Não esqueci! É que muita coisa aconteceu. Acredite, você e ainda são um casal. Já eu e ...” Suspirei ao enviar, sabendo que aquilo era uma possibilidade – e só me toquei do peso da realidade ao escrever.
“Eita porra, como assim? O que aconteceu? Você tá bem?” Eu quase pude ouvir a voz de ao ler a mensagem.
“Tretas. Pendências a resolver, mas vamos ver no que dá... Eu tô “bem” sim, não se preocupe. E as coisas vão se ajeitar, tanto pra mim quanto pra você e . Só tente respeitar o tempo dela, logo ela dá uma abertura tá?” Respondi numa tacada só, sem me alongar.
“Qualquer coisa, se eu puder ajudar... Me Fala! E sobre a , você acha que ela tá mais tranquila? Eu ainda não mandei nada hoje...” O coitado já estava sem esperanças, e eu sorri pensando em como importava pra ele. Também, não poderia culpá-lo; ela era uma garota incrível.
“Manda um bom dia. Quem sabe um ato de educação não resulte numa conversa? ;) E obrigada pelo apoio, amigo! Agora preciso ir, mas mais tarde nos falamos. Beijos!” Sorri pensando em como era fofinho também. Aqueles dois eram perfeitos um para o outro!
Bloqueando o aparelho e guardando-o no bolso, suspirei pensativa enquanto tentava me achar no meio daquela multidão. Pela explicação do professor de educação física, eu deveria me unir à professora Strauss, de literatura. Fiquei tão entretida com a coincidência do trio parada dura (, e ) que esqueci que eu estava sozinha nessa bosta de projeto. Meu ânimo era menor que zero, e eu começava a me arrepender pouco a pouco de ter me juntado àquele acampamento.
Ao encarar a multidão que sufocava a professora, soltei o ar com forças do pulmão, o que aparentemente chamou a atenção da pessoa ao meu lado:
“Pronta pra encarar o destino?” Sua voz soou tão próxima que eu levei um susto, colocando a mão no peito sobressaltada.
“Que susto, garoto! Quer me matar do coração!?” Eu questionei brava, percebendo a feição de Thomas mudar de tédio para estranhamento.
“Eu estava aqui o tempo todo, quieto. Você que é lerda e não percebeu. Eu hein.” Ele respondeu, colocando as mãos na nuca e se espreguiçando. Ao fazer isso, fechou os olhos e projetou seu peitoral pra frente, o que consequentemente fez com que seu cheiro alcançasse minhas narinas. E como um patinho, lá eu caía no aroma dele e esquecia qualquer preocupação – pelo menos momentaneamente.
Não percebi que encarava Thomas fixamente até o mesmo me olhar de volta com a sobrancelha arqueada.
“Que foi?” Ele indagou, ainda mantendo as mãos na nuca, e eu balancei a cabeça, tentando recobrar a consciência.
“Nada...” Eu respondi, igual uma idiota, e me xinguei mentalmente por isso. Logo um pensamento perpassou minha mente e eu me vi questionando-o. “E o que você faz aqui? Não achou seu grupo?”
“Sim, eu achei.” Ele respondeu, dando de ombros enquanto colocava as mãos no bolso. “Mas estava aguardando você.” Completou com uma entonação óbvia na voz, e eu não entendi sua explicação.
“A mim? Por que?”
Thomas me encarou de uma forma engraçada e riu rolando os olhos. Eu continuei sem entender nada daquela cena e esperei pacientemente que ele terminasse seu momento de prazer e decidisse me responder.
“Você é mesmo muito lerda. Ainda não entendeu, não é?” Ele disse, e se aproximou de mim, segurando meu queixo com a mão direita. Eu dei um leve recuo para trás, me sentindo instantaneamente nervosa.
“E-entender o q-que?” Praticamente sussurrei, sem conseguir de fato raciocinar.
“Estou pendurado em português e inglês, . E você, em literatura. Sabe o que isso significa?” E me olhou diretamente nos olhos por um bom tempo. Eu pisquei, completamente perdida nos detalhes dos traços de seu rosto, e não me atrevi a respondê-lo.
E sem esperar algum retorno meu, ele retirou a mão do meu queixo e se afastou com um sorriso de canto, provavelmente se divertindo com a minha cara de idiota. E sem mais nem menos, saiu caminhando lentamente na minha frente.
Como se fosse algum tipo de interferência, o afastamento de Thomas desencadeou no retorno dos meus pensamentos e em meu raciocínio lógico – que estava profundamente comprometido diante daquela proximidade toda. Minha mente berrava “QUE QUE FOI ISSO?” sem realmente entender aquelas “brincadeiras” de Thomas, como se ele arranjasse qualquer desculpa para se aproximar. E de alguma forma, acabávamos nos tocando, e isso despertava em mim sensações inapropriadas de se sentir com alguém comprometido como ele (e “enrolada”, como eu).
Me xinguei novamente quando meu cérebro parou de pensar em todas aquelas informações que envolviam – o olhar de , o cabelo de , o corpo de , o sorriso de ... – e começou a trabalhar no diálogo que estávamos tendo antes de todo meu devaneio.
E juntando uma coisa com a outra, eu deveria concordar em três questões que havia me dito ou tentado dizer:
1) Eu era lerda;
2) e eu estávamos no mesmo grupo – e foi essa informação que ele quis explicar momentos atrás, mas fui impedida pelo seu poder de sedução sobre mim;
3) Estávamos na merda. Ou talvez só eu, encarando o fato de que passaria mais tempo com nos próximos dias do que nos últimos tempos. Longe de , de e principalmente... de .
“Você não vem?” Ele perguntou, com o rosto parcialmente virado pra mim, ainda de costas, há alguns passos à frente.
Talvez, só talvez aquela teoria boba que contou no café da manhã fosse verdadeira. Talvez estivéssemos vivendo um certo tipo de desafio para sobreviver à merda. E talvez, só talvez, eu desejava sumir aquela noite, porque os próximos dias seriam torturantes ao lado do cara que eu amava.
E respondendo à pergunta inicial de Thomas “Pronta para encarar o destino?” eu poderia dizer que não. Mas coloquei um pé atrás do outro, e respirando fundo, caminhei até alcançá-lo e assim, caminhamos lado a lado rumo ao que quer que nos aguardava.
“Todo castigo pra corno é pouco, não é?” Murmurei, chutando pedrinhas. Ela me direcionou um olhar sem graça, e eu constatei que de fato, eu tinha tacado pedra na cruz com chiclete.
“Calma, não é tão ruim assim!” Ela tentou amenizar, e eu rolei os olhos.
“Como não é tão ruim assim, !?” Eu indaguei, parando de andar e a encarando confusa. “Eu sou apaixonada pelo meu melhor amigo, estou num rolo sério há três meses com um cara que já gostei, os dois fazem parte da mesma banda, e simplesmente minha mais nova colega de quarto é a menina com quem ficou anos atrás enquanto eu sofria por ele.” Gesticulei, fazendo movimentos exagerados. “Como se já não fosse o suficiente, eu tive uma discussão séria com ele antes de Charlotte dar o ar da graça. E eu nem sei se deveria estar sentindo ciúmes ou insegurança, porque de fato não tenho nada sério com ! Na verdade, eu nem sei o que tenho mais com , e ao mesmo tempo que rola essa insegurança, também bate uma raiva ao lembrar das merdas que ele disse!” Exclamei nervosa, e simplesmente me abraçou forte, colocando minha cabeça em cima de seu ombro e fazendo um carinho em meus cabelos.
“Calma, calma... Vamos por partes, ok? Não é o fim do mundo.”
Eu fiquei respirando fundo, sentindo o cheiro dos cabelos dela invadirem minhas narinas e me permiti tranquilizar por um momento. Talvez não fosse exatamente o fim do mundo, e desconfio que de fato eu não tinha um PROBLEMÃO nas mãos... Mas sim, eu tinha coisas a lidar. E eu estava completamente cansada de tanta treta.
“O verdadeiro problema é ter que aturar aquele perfume nojento...” Ela falou, e eu ri, me deixando levar pela piada sem graça.
“Que que eu faço, ?” Perguntei, perdida.
Ela se afastou de mim, e deu de ombros.
“Acho que só você pode saber. Precisa entender o que está sentindo, acima de qualquer coisa. Como foi pra você aquela cena no jantar?”
Eu suspirei, fechando os olhos por uns momentos. Aquela situação foi tão esquisita que poderia entrar pros momentos mais inusitados do ano, com facilidade.
Na ocasião, eu ainda estava me recuperando do choque de ver Charlotte ali, diante de nós. Peguei o garfo do chão e caminhei mecanicamente até a pequena pia atrás da mesa. Eu fui marchando enquanto sentia os olhares sobre mim. , , e . Mas os ignorei, e fui ao meu destino como um verdadeiro zumbi que apenas caminha em direção à sangue fresco. No meu caso, sangue fresco era igual a qualquer coisa possível que me tirasse dali.
Enquanto lavava o garfo, eu ficava tentando entender o que estava acontecendo, e porque eu estava aflita. Por um lado, eu pensava que, mesmo com aquela briga toda, e eu estávamos juntos, então não tinha porquê ficar preocupada. Em contrapartida, as coisas ditas naquela discussão eram muitas pra serem digeriridas. Coisas estas que deixavam nossa relação mais indefinida do que já era. Tínhamos algo, mas até que ponto era sério? Até que ponto aquele status definia nosso relacionamento, sem que as tretas chegassem?
Impossível, eu sei. Se problemas já existiam em casais normativos, com seus namoros fechados e bem “delimitados”, porque o meu seria diferente, haja vista que foge do padrão? Ok, fugir dos padrões não era um problema, mas a falta de comunicação e compreensão sim. Era fato que tínhamos questões. Uma delas foi o que sabiamente colocou na discussão; “Posso sentir ciúmes de você?”. Eu entendia melhor o que quis dizer com isso. Eu posso me sentir insegura diante da chegada de Charlotte? Tenho esse direito, partindo da premissa que não temos nada... sério? Ainda mais depois de tudo?
O que éramos depois daquela briga? Eu estava de verdade com medo? Com receio? Se sim, de quê exatamente? De perder ? Ou da possibilidade de perder algo bom, independente da pessoa que seja? Estou com medo de me sentir numa competição com Charlotte, sendo ela a própria pessoa que no passado ficou com alguém que eu queria? Me sinto inferior a ela? Me sinto mais do que ela por ter “finalmente” estado com ? Sinto necessidade de “demarcar território” diante do histórico dos dois, e da situação que me encontro com o ? Teria algum problema se ele ficasse com ela, diante do que éramos e do que não éramos?
Muitas perguntas, é. E isso tudo eu pensava ao lavar o garfo. Sim, a ansiedade fazia minha mente numa velocidade assustadora. Mas eu descobriria em cerca de cinco segundos que seria um desperdício ter lavado o talher. Porque ele logo caiu da minha mão quando me virei, e me deparei com a cena de Charlotte notando a presença de ali.
Meu coração bombeou rápido, a respiração acelerou, e eu não consegui mais acompanhar os pensamentos. Tudo ficou misturado, parecia que muitas vozes falavam comigo ao mesmo tempo e eu não era capaz de entender nenhuma frase. A minha confusão era notável; poderia dizer pela cara de me encarando preocupada. Mas eu só fiquei ali, encarando a cena se desenrolar, como uma plateia passiva.
“Meu Deus, é você !?” A voz de Charlotte saiu animada e surpresa, e ela não poupou movimentos exagerados em sua direção, o aproximando para um abraço apertado. Bem apertado.
“Charlotte!” Ele exclamou, sua voz era incerta e ele pousou as mãos na base de suas costas, retribuindo levemente o gesto. “Que coisa, você por aqui...” Eu estava um pouco confusa demais para reparar no que ele dizia; eu reparava nos detalhes, no tom de voz, no olhar, na disposição corporal... Eu sei, perceptiva demais até.
“Pois é! Quem diria que nos reencontraríamos num acampamento de novo!” Ela riu e jogou o rabo de cavalo para trás graciosamente. “E ainda mais no do meu padrasto!”
“Oh, ele não é seu pai?” perguntou, sorridente, e se afastou levemente, colocando as mãos no bolso.
“Não! Ele é o marido da minha mãe, mas é como um pai pra mim. Meu sobrenome segue sendo Deville.” E lá estava mais um sorriso belamente estampado no rosto, e a pequena conversa chamava não só atenção da nossa mesa, como das pessoas ao redor. A beleza padrão de Charlotte era algo que qualquer um notaria.
“Entendo...” respondeu, e colocou a mão no ombro dela. Nesse momento, eu senti uma pontada no peito, mas me mantive imóvel. “É muito bom vê-la. Bom saber que está bem depois de tanto tempo.”
“Nem tanto tempo assim, né?” Ela comentou e pegou na mão dele e a envolveu com as suas. “Mas é muito bom te ver também. Você... Me parece bem também.” Ela falou e eu finalmente decidi respirar, depois de prender o ar nos pulmões. Eu não sabia o que achar daquilo, não sabia direito o que estava sentindo. A sensação era que eu conseguia sentir tudo e nada ao mesmo tempo.
Eles ficaram se encarando e foi o primeiro a quebrar contato, sorrindo sem graça e acenando com a cabeça.
“Obrigado.” E encarou o chão, visivelmente desconcertado. Eu suspirei e catei o garfo do chão, desistindo de lavá-lo. A fome havia passado num piscar de olhos.
“Mas espere...” Charlotte disse, me fazendo olhá-la atenta. Ela posicionou as mãos na cintura, enquanto fazia uma cara de sabichona. “Se você está aqui, significa que você estuda na mesma escola que a ! Ou eu estou maluca?”
Como assim? Como ela sabia?
“É...” Ele confirmou e sorriu, acenando a cabeça. “Aliás, ela...” E me procurou com o olhar, apenas me dando um tempo para melhorar a postura e a cara.
Quando seus olhos me alcançaram, eu vi a mesma incerteza que eu sentia dentro de mim. E era impossível não me sentir um pouco triste vendo aquilo – porque por mais que não fosse nada demais os dois se cumprimentando, era difícil desvencilhar a cena atual das memórias do acampamento de anos atrás. E eu não queria me sentir daquele jeito de novo, definitivamente.
“Ah meu Deus, você tá aí!” Charlotte berrou, vindo em minha direção, e antes que eu pudesse expressar qualquer coisa, ela me puxou para um abraço apertado, e eu mantive meus braços paralelos ao meu corpo, chocada com sua reação. “Quanto tempo, hein!” E me segurou nos ombros, sorridente. “Como você está?”
A pergunta de um bilhão de dólares, sim ou claro?
“Bem...” Eu respondi fracamente, sorrindo da melhor forma que consegui – e sei que mal consegui mover um músculo da cara. “E você? Que mundo pequeno né?”
“Bota pequeno nisso!” Ela exclamou, como se não percebesse minha total falta de animação, e gesticulou, enquanto jogava um braço em volta dos meus ombros, e caminhava lado a lado comigo, me forçando a voltar para a mesa. “Eu tô bem, mas não precisamos resumir isso agora! Tem muita coisa para colocarmos em dia!”
Ela sorriu e segurou na mão de e na minha. Nos encaramos meio incertos enquanto ela comemorava o encontro inusitado.
“Eu já sabia que a estava aqui, mas não esperava encontrar você!” Ela se virou para , debruçando o indicador no peito dele e retirando tempos depois.
“Espera.” Primeira vez que fui tão sincera naquela situação. “Você sabia que eu estava aqui?”
“Mas é claro!” Ela riu animadamente. “Reconheci seu nome na hora, quando vi em qual cabana eu ficaria. Não é maravilhoso? Podemos fazer uma festa do pijama!” Ela comentou a última frase em forma de sussurro, e comentava tagarelamente o quanto ficou feliz com a coincidência.
“Mas você é a filha, ou sei lá, do dono. Pra que vai dormir conosco? Sem ofensas.” se meteu no meio da conversa, se debruçando na mesa e fazendo a segunda pergunta de um bilhão de dólares. E eu agradeci intimamente por isso, porque estava doida para saber também.
“Bem, achei que não tinha problema em solicitar uma cama na cabana para me enturmar melhor, já que serei monitora.” Charlotte explicou, dando de ombros. “E você é...?” Completou sua fala com certa soberba.
“.” Minha amiga respondeu com um sorrisinho cínico, enquanto dava um tchauzinho. “É que eu quis saber porque no caso, seremos colegas de cabana. Bem-vinda!” Quem não conhecesse , acreditaria em sua curiosidade genuína. Mas eu sabia que ela estava coletando informações para trocarmos uma com a outra.
“Ah, obrigada!” Charlotte voltou a responder de forma graciosa, e seus olhos correram pela mesa, parando sobre e . “Imagino que vocês sejam o resto dos amigos, certo?”
“.” O disse educadamente, levantando o braço, com um sorriso de canto.
“.” Meu melhor amigo respondeu apenas, encarando-a.
“Prazer em conhecê-los. De verdade!” E exclamou, ficando entre mim e com os braços apoiados em nossos ombros. “Os amigos de e são meus amigos também. Será tão divertido passar esse tempo com vocês!” E deu um grito fininho, antes de se desgrudar e eu agradecer internamente por alguém tê-la chamado.
“Preciso ir, mas nos falamos melhor depois, certo?” Ela nos encarou sorridente, e piscou enquanto mandava um beijo voador em nossa direção, seguindo para longe da mesa e de nós.
Ficamos em silêncio constrangedor; eu e nos olhávamos incertos, e a mesa nos observava.
“Enérgica, não?” comentou, e eu caminhei em direção ao meu lugar (ao seu lado) pedindo socorro com os olhos.
“Eu diria efusiva.” completou, dando continuidade ao seu jantar, inabalável.
“É, essa é a Charlotte.” respondeu, sem graça, e eu não disse nada enquanto me sentava, encarando o prato.
Mais silêncio e já estava se tornando insuportável, mas eu simplesmente não conseguia sair daquele torpor. Era muita coisa para digerir.
“Sua comida vai esfriar.” disse quase num sussurro, sem me encarar. Eu levantei a cabeça e o olhei por um bom tempo, até que ele retribuísse o gesto.
“Não estou com fome.” Respondi, após me sentir mais perdida em seus olhos.
Decidi que já não havia nada a fazer ali, e simplesmente me levantei da mesa, pedindo licença e levando o prato comigo.
“Não vai comer nada?” insistiu, e eu parei de costas pra mesa. Dei um suspiro e respondi desanimada.
“Não, estou cansada. Preciso dormir... Boa noite.” E segui meu trajeto, sentindo algo tão estranho e incômodo dentro de mim.
Eu estava saindo do refeitório, quando me alcançou, e juntas andamos sem dizer exatamente algo, até àquele momento, em que eu me via refletindo sobre a pergunta de .
“E então? Como se sente?”
“Confusa.” Respondi. “Eu realmente preciso dormir.” E encerrei a conversa. Não dava pra falar sobre algo que nem eu sabia o que era ao certo. E para minha sorte, ao chegar na cabana, Charlotte não estava, o que facilitou meu processo de colocar o pijama e mergulhar no mundo de Morfeu.
Nenhum sonho de beleza seria capaz de me deixar tranquila, eu sabia disso. Mas precisava eu acordar com aquela cara tão amassada, como se um trator tivesse passado por cima de mim?
“Puta merda.” Eu comentava enquanto desativava o despertador e me olhava no espelho de cabeceira, sentando-me na cama. Eram nove horas da manhã e eu parecia ter levado um eletrochoque.
“Você sequer dormiu?” perguntou, enquanto tirava uma muda de roupa de seu armário. “Sem ofensas.”
“Bom dia para você também, amiga. Obrigada!” Eu bufei, jogando o corpo no colchão. “Parece que foram quinze minutos. Me sinto uma merda!”
“Se te tranquiliza, eu também dormi mal, mas pelo menos temos maquiagem e sarcasmo. Eu adoro utilizar esses dois itens para dias assim!” Ela sorriu e aquilo me fez rir levemente.
“Como você consegue ser tão afiada logo de manhã cedo?” Indaguei, suspirando e me arrastando para o armário, pegando um short jeans e uma blusa de manga curta preta com as palavras “NOT TODAY, SATAN.” em letras brancas e garrafais. Providencial!
“A pergunta certa é quando eu não acordo assim, querida!” E ela jogou a minha toalha na minha cara, rindo de sua brincadeira.
Eu decidi apenas rir forçadamente antes que arrancasse sua cabeça com uma única mão. Peguei as coisas e segui o projeto de Palhacitos porta a fora, rumo ao banheiro.
Admito que passei mais tempo debaixo d’água do que o aconselhável – mas não seria aquele dia que eu contribuiria para a o meio-ambiente, infelizmente. Meu mau humor era palpável, e eu curiosamente me energizava com aquela água quente e relaxante caindo bem no meio da minha cabeça.
Saí do banho menos estressada, me enrolei na toalha e tirei o excesso de água do cabelo enquanto sentava no banco, procurando o creme de pentear e a escova. já estava vestida, penteando o cabelo e murmurava algo sobre algum maldito nó que não dava trégua, quando do nada uma pessoa muito conhecida saiu de um dos boxes, da forma mais natural que veio ao mundo.
Eu literalmente parei o que estava fazendo e senti minha boca abrir levemente com a cena. Charlotte estava simplesmente nua com uma toalha na cabeça, e andava com uma tranquilidade invejável. Não sei ao certo em que momento aconteceu, mas ela logo percebeu minha presença e, obviamente, não poderia me cumprimentar de forma polida.
“Bom dia, dorminhoca!!!” Exclamou e veio em minha direção, me abraçando. Minha mente estava dividida entre reparar no corpo esbelto da loira, e na confusão de abraçá-la nua.
“Bom dia, Charlotte.” Me forcei a dizer, e ela saiu do abraço colocando as mãos na cintura, me lançando um sorriso.
“Bom dia! Perdeu sua toalha?” novamente veio com a melhor pergunta do mundo, e eu não poderia ser mais grata. Charlotte lhe sorriu sem graça, e deu de ombros.
“Eu esqueci de pegar uma extra para o cabelo, e só lembrei disso quando já era tarde! Acredita? Muito burra, né?” E riu acenando com a cabeça. “Mas aí eu pensei ‘Estamos todas num banheiro feminino, não há nada de diferente aqui!’ Além do mais, meu corpo secará mais rápido que meu cabelo com o clima de hoje, não acha?” E propositalmente, Charlotte deu uma voltinha, e foi impossível não reparar que a jovem tinha tudo no lugar, e que sim, provavelmente tudo o que os rapazes imaginavam de seu corpo era real.
Uma parte de mim ficou quebrada com aquilo, e automaticamente encarei meu corpo debaixo da toalha, já enumerando uma lista de imperfeições que eu tinha de mais ou de menos em comparação ao corpo de Charlotte.
Eu sei, isso é uma merda.
“Sei como é... prioridades!” respondeu rindo de leve, enquanto guardava a escova de cabelo em sua necessaire.
“Mas isso não incomoda vocês, né?” Charlotte perguntou fazendo uma careta. “Por favor, meninas! Todas nós somos iguais!” Ela disse apontando pro próprio corpo, e seus seios fartos balançaram com o movimento exagerado. “Quer dizer, não tão iguais, mas vocês entenderam.” E deu de ombros, rindo de sua própria piada, enquanto eu e nos entreolhávamos sem entender muito bem a graça.
“Eu tô de boa.” respondeu com um sorriso tranquilo.
“E você, ? Não tem problema, né?” Charlotte perguntou com a mão acima dos seios, encostando as pontas dos dedos em seu peitoral, e eu fiz um esforço para encará-la nos olhos, ignorando os faróis acesos da loira que me julgavam com sua prepotência.
“Devo assumir que depois do abraço, se havia algum constrangimento...” E sorri sem mostrar os dentes, enquanto ouvia a risada de soar ao meu lado. Charlotte deu uma risadinha e fez uma careta.
“Oops! Agora já foi, né?” E deu de ombros de novo, caminhando para as suas coisas e colocando uma calcinha de renda preta, a qual fiquei me perguntando como ela conseguia usar sem assar o olho que nada vê – se é que vocês entendem.
“Relaxa, também tô de boa.” Menti na cara dura, passando o creme no cabelo e penteando-o, enquanto suspirava ao pensar que tinha mais uma neura recém-adquirida: ficar me comparando ao corpo escultural de Charlotte.
“Que bom!” Ela falou, colocando um vestido de malha azul bebê que combinavam com seus olhos, e sentou-se para calçar os adidas brancos. “Estão animadas para as atividades de hoje?”
Eu e nos entreolhamos novamente, nos questionando silenciosamente se deveríamos dizer a verdade ou não, já que Charlotte era simplesmente a monitora e enteada do dono do acampamento.
“Um pouco.” Falei e concordou, coçando a nuca.
“Poxa, mas só um pouco? Por quê? Preocupada em não tirar a pontuação necessária para passar?” E me olhou rapidamente, enquanto tirava a toalha da cabeça, soltando os cabelos longos e .
“Algo do tipo.” Respondi, terminando um lado do meu cabelo e partindo para o outro.
“Eu lembro de você ser nerd, ! O que aconteceu?” Ela perguntou com numa entonação materna que me deu certo asco.
“A vida, né. Imagina sair da educação básica sem ter a noção da recuperação de uma prova final? O friozinho na barriga? Preciso de história para contar pros meus filhos e netos.” Respondi a coisa mais chula que apareceu em minha mente, mas pelo visto havia sido o bastante para despertar as risadas de e Charlotte.
“Bom, não se empenhe muito nisso de experiências e não se coloque em encrencas.” De novo o tom materno e eu rolei os olhos enquanto finalizava o cabelo, colocando a escova na minha bolsa de mão.
“Deixa comigo.” Respondi, colocando a calcinha por debaixo da toalha e catei o sutiã, me sentindo no BBB.
“E se precisar de alguma coisa, pode contar comigo!” Ela sorriu graciosa, mas logo seu rosto denunciou se lembrar de algo. “E ah, desculpa por não esperar vocês hoje. Quer dizer, ontem eu cheguei um pouco depois de vocês, mas já estavam dormindo. E hoje eu precisei sair mais cedo para resolver algumas coisas, além de cuidar dessa belezinha aqui, né?” Ela explicou, penteando o cabelo com um cuidado que me fazia sentir o próprio carrasco do meu cabelo.
“Sem problemas, entendemos perfeitamente.” respondeu, e eu discordava só da última parte, mas tudo bem.
“Posso prometer tentar amanhã, o que acham?” Ela perguntou sorridente, e eu terminei de colocar o short e tirava a toalha, colocando desodorante nas axilas.
“Não precisa se esforçar, a gente sabe que você tem mais afazeres e tal. Sem problemas, sério. A gente pode almoçar juntas ou algo do tipo.” Falei tentando ser educada, mas eu mal sabia na merda que estava sugerindo, porque só ali parei pra pensar em como a situação seria. Pois é, a sobremesa seria a famosa torta de climão.
“Ah, ótimo! Combinado então!” Charlotte parecia realmente empolgada e eu me senti um pouco mal com isso, enquanto colocava minha blusa. Eu não tinha nada de ruim para falar dela ou de fato me sentir mal com alguma atitude sua. Mas ela representava certas coisas que me desestabilizavam – e conseguia ativar minhas inseguranças com uma habilidade incrível. Eu sei, ela tinha zero responsabilidades nisso. Eu que precisava lidar com meus próprios demônios. E torcia intimamente que eles pelo menos pegassem leve comigo.
“Combinado.” Respondi, depois de passar a cabeça pelo buraco da blusa e tirar os cabelos das costas. “Te vejo mais tarde então.” Acenei junto com , e Charlotte retribuiu com um sorriso amigável.
“Eu me sinto péssima, cara.” Sussurrei ao lado de , quando já estávamos do lado de fora, seguindo para a nossa cabana.
“Não se culpe! Ela não é exatamente o cão chupando manga, mas definitivamente não é nossa vibe.” E riu, provavelmente lembrando das falas da loira.
“Mesmo assim. Ela parece realmente feliz em me ver, e eu tô aqui me sentindo um lixo como amiga. Porque a presença dela me deixa bem...”
“Cagada?” perguntou, enquanto abria a porta da cabana.
“Eu ia dizer receosa, mas prefiro o peso das suas palavras.” Ela riu e me deu o dedo do meio, abrindo o armário e guardando suas coisas.
“Mas você já se perguntou porque se sente assim?” Essa garota deveria investir em psicologia no ensino superior, na moral.
“Eu sei o que significa.” Comentei fazendo uma careta. “Me comparo a ela e me sinto algo tão pequeno, como há anos atrás, e principalmente depois de vê-la nua.”
me encarou com a sobrancelha erguida e eu bufei rolando os olhos.
“Vai me dizer que não reparou naquela bunda? Porra, toda empinada, a diaba nem treme!” Exclamei indignada e gargalhou com gosto.
“Eu vi. Realmente, muita academia.” Ela disse depois de se recuperar, e eu suspirei. “A minha tá mais pra uma gelatina.” E se tremeu imitando a maleabilidade, me fazendo rir levemente.
“!” Chamei, me tacando na minha cama.
“Ah, ! E daí, cara? Cada um é cada um! Sinceramente, ela tem um corpo bonito sim, mas ela não é só isso. A gente não deveria ficar se comparando, muito menos nos dando mais ou menos “pontos” pela nossa aparência.” Ela usou as aspas com vigor e eu suspirei, concordando com ela – apenas teoricamente.
“É difícil isso. Eu sei que você tem razão, mas não paro de me comparar com ela. E de certa forma, as memórias de anos atrás estão me atravessando desde o momento que a vi. Fiquei com medo de me sentir mal como me senti na época em que ela e ficaram.” Me sentei na cama e fui guardar meus pertences, verificando o celular carregando na tomada. Havia uma mensagem de , que eu veria depois de despistar , é claro.
“Hum, então chegamos no x da questão!” Ela comentou, colocando perfume nos pulsos e espalhando por detrás das orelhas. “Você está com medo de que e ela fiquem? Tipo, tá achando que com a briga entre você e , ele se sinta balançado pela presença da Charlotte e queira ter uns flashbacks?”
“Eu fico impressionada com sua capacidade de síntese, mulher.” Comentei, sincera. “Acho que sim.” Respondi, voltando à questão.
“Então, você assume que sente ciúmes de ?” Ela indagou, com uma cara de mistério.
“Talvez. Mas acho que não são os motivos certos... Ou sei lá se existe motivo errado. Sinto que é mais baseado no que conversamos, sabe? Medo de sentir o que senti, medo de me sentir trocada, de me sentir uma merda caso ele a escolha. Medo do abandono... Mas eu não poderia realmente culpá-lo, não é? Não temos nada sério, e eu já sou toda desgraçada de amor por outra pessoa, então...”
“Entendi.” Ela respondeu, com os braços cruzados, me encarando. “E o que você vai fazer diante disso? Vai conversar com ele hoje? O que você quer fazer? Quer esclarecer as coisas?”
“Aí é que tá!” Respondi, ansiosa. “Esclarecer o que, exatamente? Brigamos? Brigamos! Mas existe uma coisa pulsante entre nós que é essa merda de sermos ou não namorados!” Rolei os olhos, irritada. “Eu sei que a gente não precisa de um estereótipo pra se relacionar. Mas fico pensando que precisamos definir algumas coisas. Dentre elas, saber se nosso relacionamento é aberto, ou não. Se a gente tem esse direito de se cobrar alguma coisa, sei lá. Por um lado eu quero que seja leve. Por outro, eu sei que tem que ter um mínimo de responsabilidade afetiva que implica em combinados bem estabelecidos, né? Mas a briga de ontem só me faz pensar se fiz bem em concordar com isso tudo que vivo com ...”
“Você quer estar com ele?” perguntou, me segurando pelos ombros. “Ou você ficaria com qualquer pessoa, apenas por carência?” Meus olhos se escancararam diante daquela pergunta.
“Eu não estou com por carência!” Respondi irritada, e me olhou desconfiada.
“Tem certeza?”
E não. Eu não tinha.
“Por que você tá me perguntando isso agora, cara? Não foi você que me deu o maior apoio de ficar com ele?” Perguntei, cruzando os braços, vendo minha amiga tirar as mãos de meus ombros e sentar-se na minha frente. “Que merda é essa, ?”
“, foi mal tá!? Sem estresse! Mas cara, essa pergunta é necessária!” Ela advertiu, gesticulando com as mãos. Me olhou seriamente após um momento, e cruzou os braços. “Venhamos e convenhamos, você pode ter todo o direito em não querer ver depois da briga de ontem. Mas isso não ignora o fato de que você precisa pelo menos saber o que tá sentindo em relação a ele e o que quer com essa relação. Afinal de contas, nem tudo que ele disse é uma tremenda merda que você deve descartar! Tem pontos a serem resolvidos aí, e ao que parece, urgentemente! Uma coisa é vocês combinarem de serem leves. Outra é você fingir que tá tudo bem para os dois, quando nitidamente não está, e seguir num relacionamento porque você tem medo de dores passadas! Ou de até mesmo ficar sozinha! Não acha?”
Mordi o lábio inferior ao ouvir aquela frase. Aquilo havia doído demais, tanto quanto era verdade. E eu acho que ficava mais triste e chateada por ter razão.
Olhei pro chão, ignorando a ardência nos meus olhos, mas sabia que meu rosto já denunciava a vermelhidão e eu mal conseguia enxergar um palmo à minha frente sem ver tudo embaçado por causa das lágrimas.
Fiquei quieta, balançando minha perna impaciente enquanto cada segundo de silêncio me fazia sentir raiva; de mim, de , de estar certa, do mundo.
“Eu não falei isso por mal.” Ela disse com a voz bem mais calma, e se levantou vindo até mim, sentando na cama. “Eu não quero que você fique chateada comigo, nem que se sinta obrigada a nada, amiga. Desculpa se eu falei de uma forma rígida, minha intenção não foi te magoar. Mas eu não gosto de te ver nessas pirações por coisas que você pode e deve resolver com mais tranquilidade, sabe?” Eu suspirei fundo, ainda sem olhá-la nos olhos. “Por favor, não me ignora.”
“Não estou te ignorando.” Falei coma voz grave, devido ao nó na garganta. Enxuguei lágrimas dos olhos e respirei fundo. “Só estou tentando digerir. Apesar da rigidez das suas palavras, elas são verdadeiras, necessárias. E eu só preciso entender o que há aqui dentro. Mas tem muita coisa rolando, e eu me sinto numa estação de trem, onde eles vêm e vão, e eu não entro em nenhum; só fico na plataforma sentindo o vento bater no rosto, perdida, sem saber para onde ir.” Apoiei os cotovelos nas pernas, e segurei a cabeça entre minhas mãos.
“Eu sinto muito.” Ela comentou, com notável preocupação na voz. “Eu não disse as coisas para te ferir, de verdade. Mas você precisa tentar entender o que tá acontecendo antes que acabe trazendo mais mágoa para si e para , ou antes que você se consuma de pensamentos e emoções ruins. E você não merece nada disso, sabe? Não merece se sentir menos porque Charlotte é padrãozinho, não deve se sentir menos amada caso vá embora e fique com ela ou outra pessoa qualquer, não deve se sentir um lixo na não reciprocidade de . Você é muito mais que isso, e tem uma vida cheia de oportunidades!” Ela falava enquanto enumerava com os dedos. “Amiga, você é incrível. Pare de sentir pena de si mesma, pare de ter medo do que sente. Sabe? Assume, você não gosta de desse jeito. E se tá ficando insuportável lidar com as expectativas dele, dos outros, ou dos seus próprios achismos em tentar retribuir algo que você não tem pra dar... Dá um tempo! Respira, sei lá, vai pensar sozinha. Mas não cria coisa que não existe. Tipo, acreditar que você vai ficar pra sempre só, que ninguém vai te amar, que você não é boa o bastante. Essas merdas! E por causa delas, se prender a relações ou pessoas que simplesmente não encaixam, por medo de estar só.”
“C-Como você...” Eu perguntei, sentindo meu rosto se banhar com as lágrimas. Minha voz saiu tão fina que precisei repetir a frase, após pigarrear. “Como você sabe que eu sinto isso? Que eu... penso essas coisas?” Questionei, a encarando com certo medo. Ela havia sido tão assertiva que chegava a doer.
apenas sorriu pra mim de lado, e veio até mim, enxugando minhas lágrimas. Eu apenas acompanhei seus movimentos.
“Eu conheço você. E também sou mulher. Eu sei que a gente se sente assim muitas vezes... E quer saber?” Ela perguntou, segurando meu rosto em suas mãos. “Não é justo fazer isso consigo. Você é incrível. Maravilhosa. Dona da porra toda. Então limpa esse rosto, endireita a postura, e passe por aquela porta como a rainha que tu é, entendeu? Sem medo de sentir o que quer que venha a sentir, sem medo de suas decisões ou de errar. Tudo faz parte, e independente de qualquer coisa, eu estarei aqui.”
Sorri quase involuntariamente, e a puxei para um abraço apertado. Me permiti chorar até soluçar no seu ombro, e ela devolveu o gesto com o carinho acalentador de sempre. Sua amizade era capaz de me erguer em momentos como esse, em que eu estava visivelmente pirando, mas disfarçava com piadinhas e ilusões próprias, me convencendo de que as coisas não estavam doendo como realmente estavam.
E isso, definitivamente, me cansava mais do que qualquer coisa. Fingir ser forte, quando na verdade, agir daquela forma não tinha nada de fortaleza. Que idiota eu era... E a vida era legal o suficiente pra colocar uma pessoa como no meu caminho.
“Já te disse que te amo hoje?” Perguntei, saindo do abraço.
“Hoje não!” Ela respondeu, jogando o cabelo e fazendo-nos rir. “Mas pode começar, tá na hora.”
“Eu amo você, sua escrota!” Dei um tapinha em seu ombro, e ela levantou-se, fazendo uma dancinha da vitória bem tosca.
“Eu sabia! Eu sabia! Eu sa-biiii-a!” A dancinha piorara estratosfericamente, e eu rolei os olhos rindo.
“Deixe-me salvá-la da vergonha alheia!” Falei, levantando da cama, e segurando em seus ombros. “Vamos tomar nosso café. Precisamos nos alimentar, a fome já tá deixando a gente pirada.” Eu disse indo em direção à porta, mas me impediu ao segurar meu braço.
“Não mesmo!” Ela sorriu malignamente e eu arregalei os olhos. “Eu falei que sarcasmo e maquiagem salvariam o dia. Deixe-me brincar um pouco, mocinha!” E antes que eu pudesse contestar, ela me puxou para sua cama e retirou o estojo de maquiagem do armário.
“Por favor, nada exagerado, tá?”
“É só pra melhorar um pouco a cara de morte atropelada, tá? Confia em mim.” A facilidade com que ela tinha de me jogar para cima e para baixo era surreal.
Sabendo que não seria capaz de teimar com ela, apenas permiti que fizesse seu trabalho – que por acaso não demorou muito – e eu consegui ficar com uma aparência mais saudável, disfarçando o rosto de choro de momentos atrás.
“Agora podemos ir?” Perguntei, depois de agradecê-la.
“Agora sim. A fome já era real antes, agora é um fato histórico!” Ela exclamou enquanto saíamos da cabana, rindo.
“Eu não sabia que precisava de um pão francês até este exato momento!” falava enquanto beijava seu café da manhã, empolgado.
“Isso tudo é fome?” perguntou, e eu ri quando o respondeu com apenas um olhar óbvio, antes de abocanhar o pão com manteiga, queijo e presunto.
“Mas tá uma delícia mesmo.” Comentei baixinho, depois de mastigar. Estávamos eu, , e sentados à mesa. Meu melhor amigo tinha um humor melhor do que eu, apesar de apenas rir de nossas conversas paralelas, sem exatamente dizer algo. E obviamente não pude deixar de reparar em como sua cara de sono era linda – em contrapartida, a minha estava mais para uma maritaca arrependida, como diria minha avó.
“Eu não consigo sentir tanta fome logo de manhã...” comentou, tomando um gole do seu suco de manga. “Sei lá, acho que acostumei a não comer nada pesado e partir direto para o almoço.”
“E é por isso que eu nunca mais te convido pra almoçar lá em casa.” Comentei escondendo o riso, e os meninos riram enquanto ela fingia indignação.
“Como é que você fala um negócio desses com essa naturalidade, sua sem-coração?”
“Você simplesmente matou uma lasanha quatro-queijos sozinha, cara. Das grandes!” Eu justifiquei, dando de ombros.
“Que mentira! A gente dividiu!” Ela arregalou os olhos e apontou para . “, me defenda. Você estava lá naquele dia!”
apenas a olhou divertido e me encarou curioso. Nós partilhamos um olhar cúmplice e ele deu de ombros.
“Eu lembro que tinham duas lasanhas. E sim, dividimos.” Ele respondeu, tomando um gole do café, enquanto comemorava.
“Yes! Viu só? Você fica criando intriga à toa!” Ela respondeu, apontando o dedo bem no meio da minha cara. Mas toda sua atuação foi interrompida por um pigarro vindo de .
“Eu quis dizer eu e dividimos uma lasanha. Você comeu a outra inteira.” E ele fez cara de paisagem enquanto eu e ríamos da cara de choque de .
“Como vocês podem falar uma coisa dessas? Isso tudo é mágoa? Gente, mágoa faz mal pro coração, hein!” Ela tentou se justificar e todos caímos na gargalhada.
“Desiste, Amaral. Você perdeu essa.” anunciou, antes de dar uma nova mordida no pão.
“Vai se ferrar que você é outro esfomeado! Fica fazendo sonetos pro café da manhã igual a um nerdzão e quer falar de mim!” Ela brincou, ameaçando pegar o pão da mão dele, que logo recuou, atento.
“Você nem é maluca de fazer isso, garota. Eu acabo com a tua vida!” Ela falou ainda de boca cheia, e deu um pescotapa pela falta de educação. “Ei!”
“Estava caindo migalhas no meu café, cara. Na moral.” explicou com a maior cara lavada do mundo, e eu ri abertamente, junto com a galera. Estávamos num clima tão bom que eu sorri, pensando há quanto tempo aquilo não acontecia.
“Bom dia, pessoal. Vejo que estão animados hoje, né?” Ouvi a voz de soar atrás de mim e senti na hora meu corpo endurecer. olhou pra mim com uma sobrancelha arqueada, sem entender minha reação.
Demorei alguns segundos até que virasse meu rosto na direção de . Todos haviam respondido o bom dia dele, menos eu.
“Bom dia.” Eu me obriguei a dizer, com um sorriso mínimo – totalmente forçado.
“Posso me sentar aqui?” Ele perguntou, apontando pro lugar vazio ao meu lado, e eu concordei com a cabeça, sentindo meu interior ficar tenso.
“Do que estavam falando?” Ele perguntou apoiando os cotovelos em cima da mesa e olhando para todos de uma maneira curiosa. Ele estava com os cabelos molhados e vestia uma camisa verde escura de manga curta, e eu percebi que seu perfume estava mais acentuado. O bom humor de sempre estava de volta à , mas eu conseguia ver a aflição escondida por detrás do olhar ansioso que ele me dava de tempos em tempos. E eu não estava muito diferente dele.
“Estávamos só falando do apetite voraz da , que acabou com a despensa da num belo dia de verão.” respondeu, e eu agradeci pela quebra de gelo que ele conseguiu inserir no ambiente.
“Na verdade, era outono, mas tudo bem.” corrigiu, terminando seu suco.
“Então você assume que é uma esfomeada?” Perguntei encarando minha amiga com um sorriso de canto, e os meninos riram (com exceção de ).
“Ai gente, não vamos discutir pequenezas, né?” Ela sorriu forçadamente e eu rolei os olhos, risonha.
Eu decidi colocar uma porção de ovos mexidos na boca e me permiti mastigar com uma calma incomum. Me mantive a olhar pro prato, como se estivesse concentrada em contar quantas mastigações eu conseguia dar antes de engolir – e isso tudo para não ceder ao olhar que queimava em mim, vindo de . Mas meus planos não deram certo por muito tempo.
“Dormiu bem?” Ouvi sua voz soar ao meu lado, e os ovos passaram pela minha garganta como se fossem pedras. Eu respirei fundo e virei meu rosto para olhá-lo nos olhos. Ambos apreensivos, e eu só sentia a conversa de reverberando em mim. O que eu verdadeiramente sentia por ? O que eu queria com aquela relação? Fiquei tempo demais encarando seus olhos, até que num suspiro, consegui responder sua pergunta.
“Sim.” Menti, forçando um sorriso breve. “E você?”
“Demorei para pegar no sono, mas até que descansei um pouco.” Ele deu de ombros, estava sendo sincero. “E a dor de cabeça? Melhorou?”
“Sim.” Respondi, apertando meus lábios enquanto me sentia perdida. “O remédio fez efeito.”
“Oh, que bom!” Ele sorriu abertamente, e eu sorri de leve. Me sentia péssima por dentro. Sabia que ele estava tentando ficar de boa, mas estávamos estranhando um ao outro nitidamente. Eu apenas acenei com a cabeça e fiquei encarando-o. O silêncio constrangedor perdurou, e coçou a nuca num movimento nervoso.
“, eu...” Ele começou a dizer, mas sua fala foi interrompida pelo apito estridente do professor.
“Bom dia, pessoal!” Ele falou no meio do refeitório, chamando a atenção de todos. “Vamos finalizando nosso café e nos reunir no lindo campo verdejante que há lá fora?” Ele estava tão feliz e radiante que era impossível negá-lo apoio.
Olhei pra e pro professor, e voltei o olhar pro com uma cara de pena. Ele suspirou e sorriu conformado.
“Depois eu falo com você.” Visivelmente frustrado, ele avisou. “Isso é, se você quiser também.” Se apressou a dizer e eu apenas acenei com a cabeça.
“Tudo bem. Mais tarde nos falamos.” Confirmei e ele deu um pequeno sorriso antes de se levantar. Eu olhei pro meu café da manhã, tinha colocado pouca coisa, e mesmo assim havia sobrado comida. De repente, não estava mais com muita fome, todavia decidi me forçar a comer um pouco mais, pois na noite passada não tinha comido nada, e isso poderia me fazer mal.
“E então, pessoal. Vamos?” perguntou se levantando da mesa e se juntando à . a seguiu, e eu os encarei sem graça.
“Vou terminar minha refeição. Vão indo, eu alcanço vocês.”
“Ora, mas é chato comer sozinha.” falou, olhando pra mim.
“Eu...” começou a dizer, mas uma voz o interrompeu.
“Eu fico. Podem ir.” respondeu, dando uma mordida no melão. “Ainda estou comendo também.” E encarou os três com uma feição tranquila como quem diz algo óbvio.
“Hm, ok então! Esperamos vocês lá fora.” Ela disse, e antes de ir, me lançou um olhar que eu não entendi, mas decidi não tentar compreender na hora.
Enquanto minha amiga e se afastavam, ainda ficou em pé nos olhando. Na verdade, ele olhava de mim para , e mordeu o lábio inferior antes de se aproximar de mim e apoiar a mão na mesa. Notei sua proximidade e levantei a cabeça para olhá-lo. Ele abaixou e aproximou seu rosto do meu.
“Quer que eu te espere? Eu fico, sem problemas.” Em seu olhar continha um certo tipo de ansiedade que me fez afastar levemente de si.
“E-Eu estou bem, . Pode ir. Daqui há pouco chego lá.” E coloquei uma mecha atrás da orelha, sorrindo sem graça. “Obrigada, de toda forma.”
“Tudo bem. Te espero...” Ele respondeu, olhando dentro da minha alma, e num ato breve, encostou seus lábios no meu, roubando um selinho que quase não existiu de tão rápido que foi.
Antes que eu pudesse me dar conta do que fez, já estava de costas e andando rápido com as mãos no bolso, longe de nós. Eu fiquei olhando-o partir, até que tive coragem o suficiente de voltar meu rosto à mesa, um tanto desconcertada pela ação de .
Meu olhar recaiu sobre , que comia tranquilamente sua fruta enquanto me encarava sem dizer nada. Eu suspirei e decidi voltar para os ovos mexidos, mas a paz não estava a meu favor.
“Problemas no paraíso?” Ele perguntou de uma forma divertida e eu voltei a olhá-lo com olhar de tédio.
“...” Eu comecei, mas ele ergueu as mãos em defesa.
“Ok, ok. Esquece o que eu disse.” Ele disse e pegou um novo pedaço de melão. Segurou nas pontas dos dedos e mirou a fruta com admiração. “Não que precisasse de uma resposta, no final das contas.”
Eu estava prestes a dar mais uma garfada nos ovos quando o olhei, atônita.
“Como é?” Eu perguntei com a voz baixa, e ele deu de ombros.
“O mijando ao seu redor, demarcando território feito um cachorro? Essa é nova. E um tanto desesperada, com o devido respeito.” Ele projetou os lábios para frente e acenou a cabeça, como se concordasse consigo mesmo, e eu senti meus olhos se arregalarem.
“!” Exclamei, me sentindo sem graça.
“O que foi? Você perguntou!” Ele me olhou com a cara mais lavada do mundo, e um sorriso mínimo surgiu no canto dos seus lábios.
“Você é uma pessoa horrível.” Eu falei, me concentrando em finalizar a refeição, um pouco emburrada.
“Isso mesmo, continue dizendo isso até que você acredite de verdade.” Ele respondeu com uma feição marota e eu bufei, o encarando sem paciência.
“Já te mandaram ir à merda hoje?” Perguntei, antes de ingerir mais uma garfada de ovos mexidos. Ele sorriu abertamente.
“Não te contaram? Fizemos uma viagem até esse local.” E eu prendi um riso com sua frase. “E o desafio é sobreviver à merda enquanto o acampamento durar.” Ele gesticulou com as mãos e eu sorri debochada.
“Hm, desafio?” Eu o incentivei a continuar, separando mais uma porção no meu garfo.
“Isso mesmo.” Ele disse, animado com sua teoria. “E dia após dia, as pessoas que não suportam vão desaparecendo.”
“Óh, sério?” Eu questionei ironicamente, e ele cruzou os braços, me olhando com falsa feição de esnobe.
“Já percebeu que aquele aluno de cabelos de franja emo não apareceu hoje?” Ele sussurrou, aproximando o rosto ao meu, e sugou a ponta do dedão na minha frente, limpando os rastros do sabor do melão. Aquilo me desnorteou e me fez corar, mas consegui seguir com o pequeno diálogo.
“Hm, não. Não notei, Sherlock.” Comentei, quebrando o contato visual e separando a última porção no garfo, levando-a à boca.
“Elementar, minha cara .” Ele piscou confiante, enquanto se aproximava mais ainda de mim, deixando seu rosto à centímetros do meu. “Fique atenta. Vai que hoje quem some é você?” Ele sussurrou, dando uma cutucada com o dedo indicador e médio no meio da minha testa, e eu a franzi, surpresa com aquele ato tão íntimo que ele não fazia há tempos. Observei sua face divertida e suspirei, decidindo me levantar antes que eu o agarrasse para um beijo e mandasse tudo à merda.
“Se eu sumir, eu levo você junto comigo, . Não vou passar por isso sozinha.” E dei um peteleco na sua mão, levando a bandeja para seu local, há poucos metros dali. Ouvi sua risada logo atrás de mim, e ele finalizou a conversa.
“E quem disse que você iria sozinha?” E rumou para fora do refeitório, me deixando sozinha com uma bandeja vazia nas mãos e um coração acelerado dentro do peito.
“Ok, galera! Eu quero que prestem muita atenção aqui!” O professor falava com uma impostação de voz digna de cantor de ópera.
“Meu Deus, esse homem vai me deixar surda!” reclamou do meu lado, e eu prendi o riso. estava do outro lado dela e apenas sorriu sem mostrar os dentes.
“Presta atenção, demônia.” deu um peteleco no meu ombro e eu me virei para encará-lo, e cerrei os olhos ao dar uma bundada em si, que o fez esbarrar em .
“Mas que porra?” perguntou pro , que rolou os olhos.
“Levei uma bundada da , cara.” Ele se explicou, ajeitando-se no lugar. “Que isso hein, ? Que poder é esse?” Ele comentou, fazendo cara de “fuck yeah” e eu dei o dedo do meio pra ele.
“Não era você quem estava dizendo pra prestar atenção?” Sussurrei perto de seu ouvido, e ele riu baixinho.
“Calem a boca, caralho.” falou com a voz grave e eu dei língua, antes de voltar a olhar o professor, sentindo me encarar pelo canto dos olhos.
“Ui, que másculo.” falou perto do , e se aproximou do mesmo, sussurrando. “Fala ‘caralho’ de novo, tesão.” Eu, e rimos disfarçadamente enquanto apenas suspirava, rolando os olhos.
Nossa pequena brincadeira foi interrompida pela voz mais aguda do professor, sendo propositalmente projetada em nossa direção.
“E ISSO TUDO SIGNIFICA...” Nos ajeitamos, ficando sérios e encarando seu olhar impositor. Ele suspirou e voltou a falar na entonação de costume. “Significa que dividiremos vocês por áreas de conhecimento. Como isso vai funcionar?” Ele gesticulava se sentindo o próprio Albus Dumbledore e eu admirava sua animação com a docência.
Ele apontou para os professores que estavam atrás de nós, alinhados separadamente, com fichas e pastas nas mãos. Lá estavam a professora de matemática, a professora de literatura, o de história e a de biologia. Todos com sorrisos amigáveis nos rostos, apesar do visível cansaço.
“Os alunos que estão pendurados em física e matemática, por favor, dirijam-se à professora de matemática, Srta. Wright. Os que estão em português, inglês e literatura e espanhol, com a professora de literatura! Sra. Strauss. Os que estão em história, geografia, filosofia e sociologia, com o Sr. Dawn, professor de história. Os de química e biologia, com o Sr. Petterson, professor desta última matéria.” Ele suspirou, antes de continuar. “Para aqueles que estão em artes e educação física...” E abriu os braços sorridente. “Comigo, é claro!”
“Lembrando que quem estiver pendurado em mais de uma matéria que não esteja no grupo, por favor escolham um e venham conversar com os professores responsáveis! E quanto àqueles que não estão em nenhuma matéria, sintam-se à vontade para entrar no grupo que bem entenderem ou se inscrevam como monitores gerais!” A Srta. Wright falou, enquanto todos já se dispersavam para os respectivos grupos.
“Preciso sair correndo!” disse, puxando o pelo braço, que não entendeu nada.
“Por que?” perguntou, com a sobrancelha erguida.
“Meu projeto, lembra?” Ele parou no caminho, e colocou o indicador no queixo enquanto pensava. Logo sua feição foi de surpresa, e ele voltou alguns passos, agarrando-a pelo pulso. “Você ficou em matemática, não foi?”
mal acenou positivamente, e ele apenas a puxou junto com . Apressado, partiu com os outros dois, que reclamavam da euforia do ao tentar acompanhar seus passos. Ri comigo mesma ao ver quase tropeçando no meio do caminho e dando um tapa no ombro de , que tentou se defender enquanto tentava separar os dois. Apesar das dificuldades, ainda havia certa leveza graças aos amigos.
Ao pensar nisso, puxei meu celular do bolso, me lembrando do pobre do , que já devia estar morto de tanta preocupação e ansiedade. Ao desbloquear o aparelho, sua mensagem triste pairava na minha tela:
“Você se esqueceu da Ohana... :(”.
Eu ri do drama que ele inseriu e ao perceber que estava online, logo respondi de volta.
“Não esqueci! É que muita coisa aconteceu. Acredite, você e ainda são um casal. Já eu e ...” Suspirei ao enviar, sabendo que aquilo era uma possibilidade – e só me toquei do peso da realidade ao escrever.
“Eita porra, como assim? O que aconteceu? Você tá bem?” Eu quase pude ouvir a voz de ao ler a mensagem.
“Tretas. Pendências a resolver, mas vamos ver no que dá... Eu tô “bem” sim, não se preocupe. E as coisas vão se ajeitar, tanto pra mim quanto pra você e . Só tente respeitar o tempo dela, logo ela dá uma abertura tá?” Respondi numa tacada só, sem me alongar.
“Qualquer coisa, se eu puder ajudar... Me Fala! E sobre a , você acha que ela tá mais tranquila? Eu ainda não mandei nada hoje...” O coitado já estava sem esperanças, e eu sorri pensando em como importava pra ele. Também, não poderia culpá-lo; ela era uma garota incrível.
“Manda um bom dia. Quem sabe um ato de educação não resulte numa conversa? ;) E obrigada pelo apoio, amigo! Agora preciso ir, mas mais tarde nos falamos. Beijos!” Sorri pensando em como era fofinho também. Aqueles dois eram perfeitos um para o outro!
Bloqueando o aparelho e guardando-o no bolso, suspirei pensativa enquanto tentava me achar no meio daquela multidão. Pela explicação do professor de educação física, eu deveria me unir à professora Strauss, de literatura. Fiquei tão entretida com a coincidência do trio parada dura (, e ) que esqueci que eu estava sozinha nessa bosta de projeto. Meu ânimo era menor que zero, e eu começava a me arrepender pouco a pouco de ter me juntado àquele acampamento.
Ao encarar a multidão que sufocava a professora, soltei o ar com forças do pulmão, o que aparentemente chamou a atenção da pessoa ao meu lado:
“Pronta pra encarar o destino?” Sua voz soou tão próxima que eu levei um susto, colocando a mão no peito sobressaltada.
“Que susto, garoto! Quer me matar do coração!?” Eu questionei brava, percebendo a feição de Thomas mudar de tédio para estranhamento.
“Eu estava aqui o tempo todo, quieto. Você que é lerda e não percebeu. Eu hein.” Ele respondeu, colocando as mãos na nuca e se espreguiçando. Ao fazer isso, fechou os olhos e projetou seu peitoral pra frente, o que consequentemente fez com que seu cheiro alcançasse minhas narinas. E como um patinho, lá eu caía no aroma dele e esquecia qualquer preocupação – pelo menos momentaneamente.
Não percebi que encarava Thomas fixamente até o mesmo me olhar de volta com a sobrancelha arqueada.
“Que foi?” Ele indagou, ainda mantendo as mãos na nuca, e eu balancei a cabeça, tentando recobrar a consciência.
“Nada...” Eu respondi, igual uma idiota, e me xinguei mentalmente por isso. Logo um pensamento perpassou minha mente e eu me vi questionando-o. “E o que você faz aqui? Não achou seu grupo?”
“Sim, eu achei.” Ele respondeu, dando de ombros enquanto colocava as mãos no bolso. “Mas estava aguardando você.” Completou com uma entonação óbvia na voz, e eu não entendi sua explicação.
“A mim? Por que?”
Thomas me encarou de uma forma engraçada e riu rolando os olhos. Eu continuei sem entender nada daquela cena e esperei pacientemente que ele terminasse seu momento de prazer e decidisse me responder.
“Você é mesmo muito lerda. Ainda não entendeu, não é?” Ele disse, e se aproximou de mim, segurando meu queixo com a mão direita. Eu dei um leve recuo para trás, me sentindo instantaneamente nervosa.
“E-entender o q-que?” Praticamente sussurrei, sem conseguir de fato raciocinar.
“Estou pendurado em português e inglês, . E você, em literatura. Sabe o que isso significa?” E me olhou diretamente nos olhos por um bom tempo. Eu pisquei, completamente perdida nos detalhes dos traços de seu rosto, e não me atrevi a respondê-lo.
E sem esperar algum retorno meu, ele retirou a mão do meu queixo e se afastou com um sorriso de canto, provavelmente se divertindo com a minha cara de idiota. E sem mais nem menos, saiu caminhando lentamente na minha frente.
Como se fosse algum tipo de interferência, o afastamento de Thomas desencadeou no retorno dos meus pensamentos e em meu raciocínio lógico – que estava profundamente comprometido diante daquela proximidade toda. Minha mente berrava “QUE QUE FOI ISSO?” sem realmente entender aquelas “brincadeiras” de Thomas, como se ele arranjasse qualquer desculpa para se aproximar. E de alguma forma, acabávamos nos tocando, e isso despertava em mim sensações inapropriadas de se sentir com alguém comprometido como ele (e “enrolada”, como eu).
Me xinguei novamente quando meu cérebro parou de pensar em todas aquelas informações que envolviam – o olhar de , o cabelo de , o corpo de , o sorriso de ... – e começou a trabalhar no diálogo que estávamos tendo antes de todo meu devaneio.
E juntando uma coisa com a outra, eu deveria concordar em três questões que havia me dito ou tentado dizer:
1) Eu era lerda;
2) e eu estávamos no mesmo grupo – e foi essa informação que ele quis explicar momentos atrás, mas fui impedida pelo seu poder de sedução sobre mim;
3) Estávamos na merda. Ou talvez só eu, encarando o fato de que passaria mais tempo com nos próximos dias do que nos últimos tempos. Longe de , de e principalmente... de .
“Você não vem?” Ele perguntou, com o rosto parcialmente virado pra mim, ainda de costas, há alguns passos à frente.
Talvez, só talvez aquela teoria boba que contou no café da manhã fosse verdadeira. Talvez estivéssemos vivendo um certo tipo de desafio para sobreviver à merda. E talvez, só talvez, eu desejava sumir aquela noite, porque os próximos dias seriam torturantes ao lado do cara que eu amava.
E respondendo à pergunta inicial de Thomas “Pronta para encarar o destino?” eu poderia dizer que não. Mas coloquei um pé atrás do outro, e respirando fundo, caminhei até alcançá-lo e assim, caminhamos lado a lado rumo ao que quer que nos aguardava.
Capítulo 19: I tried to forget you, I tried to stay away, but its too late...
“Eu AMO esse garoto, namoral!” dizia animada enquanto abraçava Doug, que ria da empolgação da amiga.
“Por que?” Perguntei, dando de ombros. Estávamos almoçando no refeitório, todos sentados à mesa, logo após sairmos das reuniões de nossos respectivos grupos.
“Porra, ! Já imaginou euzinha fazendo parte de uma gincana de matemática? Eu ia me foder de verde, amarelo e todas as cores do mundo!” Eu ri alto de sua resposta e concordei.
“Mas não chegaram a sugerir a gincana?” perguntou, enquanto mastigava seu tomate.
“Teve um grupo super empolgado... E certas pessoas estavam realmente felizes com isso.” respondeu dando uma olhada em que deu de ombros.
“A proposta era realmente maneira, ué!” Ele respondeu risonho, e eu não consegui segurar uma risada pela cara ingênua que ele fez. Nos olhamos por alguns segundos e logo o clima estranho estava de volta.
“Mas poxa, melhor que a minha ideia?” Doug perguntou, fazendo o contato visual entre mim e quebrar. Eu mexi na minha comida disfarçando o mal-estar e respondeu sorridente. “Claro que não! Mas eu ainda não tinha ouvido sua sugestão quando lançaram a gincana.”
“Então, vocês vão tocar na apresentação e ganhar nota com isso?” perguntou encarando Doug, que sorriu triunfante.
“Claro! Vamos falar sobre ondas sonoras e abordá-las através da nossa música! Não acha legal?”
“ISSO É GENIAL!” Ouvimos uma voz estridente soar e todos se viraram para a figurinha que sentava à nossa mesa. Charlotte depositou o prato de cesar salad e gesticulou animada. “Sério, isso é muito irado! E como você foi capaz de esconder isso de mim? Ficamos mó tempão conversando, !” Ela disse, dando um tapinha no ombro do , que sorriu sem graça. Sim, ela sentou-se ao lado dele.
“É que nós estávamos falando de muitas coisas, relembrando outras. Acabou que não deu tempo de mencionar isso.” Ele respondeu, dando um peteleco na mão dela, que riu abraçando-o de lado.
“É verdade.” Ela retrucou sorrindo abertamente pra ele, que retribuiu gentilmente. Eu olhei para aquela cena sem exatamente saber o que dizer ou como reagir, e apenas troquei olhares com , que arregalou levemente os olhos e fez um sinal rotativo com o dedo ao indicar que conversaríamos depois.
“Mas então, meu querido amigo gênio! Já tem ideia de como será isso?” perguntou para Doug, chamando a atenção de todos para ele. Notei que apenas nesse momento Charlote retirou o braço ao redor de .
“Bom, a ideia é criar um roteiro explicativo e as pessoas vão indicando os fenômenos conforme eles acontecem, enquanto tocamos. Simples porém infalível, não acha?” Doug falou com o rosto empinado e exibido, arrancando sorrisos da galera.
“Eu achei incrível! Foi muita sorte cair como monitora desse grupo, simplesmente adorei! Mal posso esperar para iniciar o projeto, ver os ensaios de vocês e ajudar no que for preciso...” Charlotte disse empolgada, e a olhou com um sorriso de canto.
“Muito obrigado pelo apoio, Charlotte.” Ele respondeu com sinceridade e ela sorriu mais ainda.
“Imagina, eu tô feliz em presenciar isso!” E depositou uma mão no ombro dele, apertando-o levemente. “E ainda dá pra divulgar a banda! Não tenho dúvidas de que vai ser um sucesso!” Ele acenou com a cabeça e encostou na mão dela, agradecido. Logo ela se virou para nós, desencostando do .
“Uma pena não estar no grupo... Ficou pendurado na matéria errada, não acha?” Ela comentou rindo levemente ao se virar para meu amigo e estendeu sua mão até colocá-la em cima da dele.
Que porra de mania de encostar nos outros era essa!?
Eu estava me controlando para disfarçar a minha cara e apertei o garfo em minha mão para aliviar a tensão. Mas logo toda aquela sensação ruim foi embora, quando retirou a sua mão debaixo da dela e depositou em minhas costas.
“Não se preocupe, estou bem onde estou. está comigo.” E sua mão deslizou pelas minhas costas graciosamente até meu ombro, me dando um abraço de lado.
A cena não poderia ser menos embaraçosa. Lá estava com a cara mais lavada do mundo encarando Charlotte, enquanto tinha parado de mastigar e nos olhava tão intensamente que eu não sabia o que aquilo significava. E Charlotte estava totalmente sem graça pela ação de , que gentilmente rejeitou seu toque e seu sentimento de “pena”. Eu estava com tudo isso em mente, tentando processar todos os detalhes. Mas a verdade era que eu estava muito feliz pela atitude de meu melhor amigo, talvez feliz até demais, e um sorrisinho alegre surgiu em meu rosto.
“Que bom, não?” Charlotte disfarçou com um sorriso forçado e uniu as mãos embaixo do queixo, enquanto apoiava-o ali num gesto polido. “E do que se trata o projeto de vocês?” Ela me olhou com os olhos bem abertos e eu percebi que me encarava mais do que o costume.
“Bom...” Me ajeitei na cadeira e retirou sorrateiramente seu braço dos meus ombros. Pigarrei ao sentir a ausência e segui respondendo. “Acabamos de sair de uma reunião na qual discutíamos sobre protagonistas mulheres e suas atuações em obras famosas, tipo em “Romeu e Julieta” do Shakespeare... E decidimos fazer uma pequena peça baseada no livro “Senhora”, de José de Alencar. A professora Strauss já tinha um texto encaminhado, então estamos apenas fazendo algumas adaptações para apresentá-la; será um pouco maior do que um esquete.”
“Uau! Então vocês ficaram presos em literatura?” De tudo o que eu disse, foi só nisso que ela reparou? Charlotte fez a pergunta com uma feição de dor, e eu fiquei olhando para a cara dela sem saber exatamente o que responder. Ela deu um sorriso mínimo e colocou seu corpo para frente.
“Eu lembro que você comentou algo do tipo no banheiro, . Foram as fases da Literatura que te pegaram, não é? Você precisa de ajuda, meu bem?” Ela continuou com aquele “semblante” dolorido eu não me segurei e ri, atraindo seu olhar confuso.
“Eu disse alguma coisa?” Ela perguntou numa entonação ingênua e eu neguei, me recuperando da crise de riso. Passei uns bons segundos imaginando a garota com dor de barriga enquanto me fazia aquelas perguntas aleatórias e aquilo foi o auge do meu pensamento interno. Entretanto, eu tinha uma pergunta para responder; uma pergunta que me colocava numa posição de coitada, e eu não ia bancar aquele lugar no qual Charlotte estava me colocando.
“Não se preocupe, gata! Meu mal não é o Classicismo, o Parnasianismo, muito menos o Barroco. Meu mal era sono na prova, sabe? Pensa numa vida atarefada, numa mente que pensa muito em muita coisa, o tempo todo! Pois é, essa sou eu. Enfim, foi isso.” E puxei suas mãos debaixo de seu queixo e as segurei nas minhas. “Mas não tenho dúvidas de suas intenções. Tenho certeza de que teremos muitas pessoas que se beneficiarão com sua ajuda.”
Admito que estava com raiva das suas atitudes cheia de toques pra cima de e . E não, eu não tinha direito algum em exigir nada em nenhuma das situações, mas a emoção tá cagando pra razão, não é mesmo? E confesso que naquele momento, eu era movida a isso, e sequer estava me dando conta. Eu apenas quis devolver parte da soberba com a qual ela falava.
Ela me encarou com um sorriso murcho e o meu, tão forçado em meus lábios, seguia implacável. Seguimos nos encarando e um silêncio desconfortável habitou o local. Aos poucos fui sentindo seus dedos se movimentarem pedindo passagem e eu só afrouxei o enlace de minhas mãos nas suas quando se levantou e deu uns tapinhas em meus ombros, se pronunciando para todos.
“Certo, galera. Muito bom almoçar todo mundo junto, papeando e tal, mas temos hora! Vamos?” E assim soltei as mãos dela. Charlotte imediatamente as posicionou sobre seu colo embaixo da mesa e sorriu sem mostrar os dentes, um tanto sem graça. Eu estava pouco me lixando na hora e apenas mantive a mesma feição.
Algo me dizia que meu rosto se equiparava ao ar macabro da boneca Annabelle, mas não me importei. Não naquele momento.
Charlotte se levantou e levou o prato para a cozinha, sendo seguida por um a um que abandonava a mesa. Quando dei por mim, só restou e eu. Inconscientemente, nossos corpos se aproximaram após depositarmos os pratos no local da limpeza.
“Então... Animada para a peça?” Ele perguntou visivelmente sem graça, colocando as mãos nos bolsos. Eu imitei seus gestos, dando de ombros.
“Eu acho que estou ansiosa para que tudo isso acabe logo. Achei que viríamos para curtir, mas tenho me sentido mais cansada do que na rotina escolar.” Sorri sem graça e fez o mesmo, concordando com um aceno de cabeça.
“Acho que sei como se sente.” Ele respondeu fazendo uma cara de compreensão e eu mordi meu lábio inferior, sentindo a boca do estômago vibrar ao encarar os olhos de . Ele me observava com certa apreensão, e acho que eu fazia o mesmo.
Fiquei surpresa de ter dito tanto em uma única frase, depois da briga que tivemos. Acho que tinha algo a ver com minhas últimas reflexões, quer dizer; eu estava magoada com alguns bons pontos abordados por , mas a conversa com latejava na mente, principalmente em como me sentia quando estava com ele. Essa tensão de saber se “continuaríamos ou não” estava se tornando maior do que o ressentimento das coisas ditas.
Entretanto, não sabia quando nem como teríamos esse tipo de diálogo. E aquilo me matava, ao mesmo tempo que me aliviava devido a falta de coragem em iniciar o assunto. Eu tinha medo de encontrar a expectativa nos olhos de , em sua voz... Tinha medo de dizer o que já se consolidava como verdade em mim: eu gostava dele, mas não achava que poderia dar aquilo que ele buscava ao estar comigo.
E foi ali que percebi: eu não estava só com medo do que o futuro me reservava; eu tinha medo de decepcioná-lo.
O estalo dentro da minha mente foi tão grande que não consegui falar absolutamente nada. E aparentemente, se encontrava na mesma mudez, então ficamos naquele silêncio esquisito, sem saber o que fazer.
Aquela sensação ruim do medo me fazia abrir e fechar a boca inúmeras vezes... E eu notei que também receava em perder a parte boa da nossa relação.
Quando me dei conta daquilo, senti uma súbita vergonha de mim mesma. Aquilo soava tão egoísta! Porém, era também verdade. E um receio tão forte que sequer me permitia estabelecer uma conversa com ele.
Às vezes eu conseguia ser tão ridiculamente fraca. E outras, tão inusitadamente forte... O que havia de errado com meu bom senso?
Cacete, eu ia surtar com tanta coisa na cabeça!!!
“Tá tudo bem?” me perguntou com o rosto preocupado. Eu provavelmente devia estar quieta por tempo demais, encarando o chão e fazendo caras e bocas, sem sequer falar nada. Suspirei derrotada, voltando a olhar dentro de seus olhos.
“Eu... Não.” Consegui responder, com a voz baixa e falha.
“Está passando mal? Quer que eu te leve para a enfermaria?” colocou as mãos nos meus ombros e eu fechei os olhos com força, negando com um aceno rápido.
O jeito dele solícito só dificultava as coisas.
‘Eu queria tanto corresponder aos teus sentimentos, . Que merda!’ Pensei comigo mesma enquanto cerrava os punhos em frustração.
Respirei fundo uma, duas vezes. Abri os olhos e o encarei.
Analisei sua feição, completamente atenta em mim. Seus olhos refletiam minha pessoa, e eu vi que, por mais que ele tenha dito coisas inacreditáveis, eu não poderia julgá-lo apenas por aquilo e esquecer todo o resto que compunha sua essência.
Aquele que se preocupava, que me ouvia, que me encarava com atenção... Era o com quem estive durante esses meses. Se tratava do cara que reconheceu meus sentimentos pelo meu melhor amigo, em apenas alguns dias depois de retornar à minha vida.
Ele nunca me exigiu nada. Mas estava na cara que seus esforços tinham chegado ao limite; queria mais. E ele merecia mais, merecia alguém que fosse tão profundo quanto ele era.
E eu não era essa pessoa.
Naquele momento, a cena de Charlotte o apoiando tão animadamente no projeto surgiu na minha mente. Dei um sorriso triste, e acabei pensando em voz alta.
“Talvez ela seja.”
“Ela quem, ? Seja o que?” Ele perguntou confuso, e eu me toquei do que tinha acabado de fazer. Me assustei e prestei atenção na feição de , que parecia tentar entender o que eu disse.
“Er...” Fiquei sem saber o que dizer, sentindo a cabeça trabalhando a mil por hora. Visivelmente coloquei uma terceira pessoa na situação, sem querer. Puta que pariu!
“Talvez a outra colega da sala seja uma boa atriz! Eu... estou morrendo de medo do palco! N-Não consigo pensar como vai ser, mas já vou me candidatar ao pessoal do figurino! Sabe como é, né? Hehehe”. Respondi a primeira coisa que veio à mente.
Uma resposta totalmente torta e mal feita, mas era apenas o que eu tinha em mente no momento. Que merda! Eu estava indo bem! Por que fui falar alto o que pensava? Ainda mais após pensar em Charlotte!
deu um sorriso amarelo, me olhando esquisito.
“Ah... Bom, eu não vejo problemas em falar com a professora. Você não é obrigada a fazer nada, sabe disso.” Ele aconselhou de forma sucinta, e eu concordei com a cabeça, mordendo meu lábio inferior.
“Não sou obrigada a nada...” Repeti a frase, me chutando mentalmente.
“Hm... não é. Você é... livre.” disse de uma maneira tão direta que eu senti a respiração falhar.
“Nós somos... livres.” Eu completei, sem saber exatamente o porquê.
Nessa hora, ergueu levemente as sobrancelhas e umedeceu os lábios, dando de ombros.
“Você tem razão... Somos.” Ele afirmou após suspirar audivelmente.
E de repente, nos encarávamos como se o assunto não fosse mais sobre peça alguma. Eu prendia o lábio inferior em meus dentes e nossos olhares pareciam dizer tudo o que a gente não conseguia verbalizar.
Cerca de alguns momentos depois, aquela conversa foi brutalmente interrompida por uma voz estridente, longe de nós.
“Por favor, todos os alunos queiram se apresentar a seus respectivos grupos. Esta é uma chamada a pedido do professor de Educação Física.”
A voz de Charlotte soou no que parecia ser um megafone, e mantinha um sorriso cativante no rosto, passando o olhar em todos que a observavam. Seus olhos repousaram em nós e ela acenou para que seguíssemos sua orientação. Eu suspirei e passei as mãos no rosto, sentindo o cansaço pesar mais ainda.
riu sem humor, coçando a nuca.
“Cara, parece que tudo tá conspirando contra!” Ele falou como um desabafo, e eu joguei as mãos pro ar, gesticulando em resposta.
“Não é!? Que... raiva!” Respondi com sinceridade, e ele bufou, fechando os olhos.
“Eu só... queria que tudo voltasse ao normal.” E abriu novamente sua vista, me encarando aflito. Engoliu a seco e segurou em meus ombros. “A gente não pode... passar uma borracha em tudo? Não podemos deixar as coisas ruins de lado e focar nas boas?”
Meu coração deu uma parada abrupta naquele momento. Senti meu corpo endurecer e levei um tempo até responder o .
“... Acho que se deixarmos todas as pendências de lado, não sobra muita coisa.” Falei com uma honestidade assustadora, e vi dor em seus olhos. “Eu também quero ficar de boa, mas...”
E então, ele me interrompeu, irritado.
“Então por que não ficamos? Não pode ser tão difícil! Estávamos bem, o que pode ter mudado tanto para não voltarmos ao normal!?”
Ele me olhava como se fosse um absurdo não concordar consigo. E eu achava coisa de outro mundo o que ele sugeria.
“É sério, ?” Encarei sua face, com o cenho franzido, sem acreditar no que ele sugeriu. “Você por acaso esqueceu do que dissemos um pro outro?”
Ele me olhou com a cara fechada e eu suspirei, desviando o olhar. Coloquei as mãos nas têmporas, tentando me acalmar e diminuindo a rispidez na fala.
“Olha, numa boa... Acho que o que podemos fazer por hora é nos tratar com educação e dignidade, até que possamos conversar com calma. Até lá, podemos simplesmente pensar bem sobre tudo o que foi dito, e o que não foi também.” Eu abaixei o rosto, mas tocou meu queixo e o ergueu, me fazendo encontrar seus olhos.
“Cara, eu não quero brigar e nem que fique esse clima chato entre a gente. Eu não quero ficar focando no que a gente disse quando estava puto!” Sua voz saiu alterada e eu arfei com aquela afirmação.
“Não era porque estávamos com raiva que dissemos inverdades, . Você acha que nada do que foi dito tem alguma relevância daqui para frente? É sério isso?” Ele respirou fundo e negou com a cabeça.
“Não é isso! Eu só... estou dizendo que estou disposto a esquecer as desavenças e seguir, como antes!”
“Não tem como ignorar isso!” Exclamei aflita, e prendeu os lábios numa linha fina, desviando o olhar raivoso. Eu bufei e encarei o chão.
“Depois do que foi falado, nada será como antes, .” Respondi com verdadeira tristeza na voz, e ele finalmente me encarou com outro sentimento que não fosse irritação ou raiva.
Ele devolvia a tristeza que eu emanava pela frase dita.
Eu esperava que ele insistisse, mas não foi o que aconteceu. finalmente me deu o silêncio das palavras, e o olhar de quem sabia exatamente o que eu queria dizer. No fundo, parecia que ele não queria enxergar a verdade na qual ele secretamente acreditava, confirmando que ele também já não tinha tanta certeza de “nós”.
“Pessoal, por favor! Queiram se reunir na parte externa do refeitório? Atrasos também serão observados... Vocês estão sendo avaliados!” Virei minha cabeça para encontrar o professor falando no megafone com Charlotte a seu lado, que mantinha o mesmo sorriso. Meus amigos que estavam parados aguardando na saída, foram andando lentamente para a parte externa. deu uma olhada para nós e logo nos deu as costas.
“É melhor irmos andando.” falou depois do que pareceu uma década de silêncio. Ele caminhou a meu lado, sem dizer uma única palavra.
Eu estava sem saber o que dizer também. E mesmo incomodada com aquilo, preferi manter aquele assunto em stand by até que de fato batêssemos o martelo de uma só vez. E eu torcia para que estivéssemos decididos quando esse momento chegasse.
***
“Eu acho a história de Romeu e Julieta tão linda, professora! Não podemos fazer uma nova votação?” Uma menina do primeiro ano implorava indignada com as mãos unidas, enquanto a Sra. Strauss anotava algumas coisas na prancheta.
“Eu já disse que aqui tudo se decide democraticamente. Porque deveríamos fazer uma nova eleição? ‘Senhora’ ganhou de ‘Romeu e Julieta’.” Ela explicou sem retirar os olhos do que estava fazendo.
“Mas tecnicamente você não considerou a margem de erros, professora.” A menina argumentou com as mãos para trás e um sorriso irônico. A mais velha apenas subiu os olhos por cima dos óculos e encarou a aluna.
“Prossiga.” Ela falou, piscando impaciente.
“Considerando que a margem de erros eram três votos pra cima ou três pra baixo, existe um empate técnico, não acha?” A jovem mostrou um papel no qual provavelmente os cálculos estavam presentes e a professora observou rapidamente.
“Então a sua proposta é uma nova votação?” Strauss perguntou com a cara desconfiada. “E se der um novo empate técnico?”
“Aí nós podemos solicitar um voto de minerva seu ou de outro professor.” A garota disse com um sorriso alargado. “Apesar de achar que isso não será necessário... Eu realmente acho que os jovens aqui não tiveram a clareza para escolher. Romeu e Julieta é uma obra grandiosa!”
Após ouvir aquilo, eu ri audivelmente, chamando atenção de todos.
“Alguma consideração a fazer, Srta. ?” A voz imponente da professora questionou, e eu dei de ombros, cruzando os braços.
“Eu só acho desesperador usar “empate técnico” para fazer a vontade de uma menina apaixonada por Shakespeare.” Expliquei recebendo um olhar fuzilador da estudante. Sim, meu humor estava péssimo e ácido.
“Empate técnico é tão democrático quanto votação, para seu conhecimento.” Ela retrucou com o rosto fechado.
“Eu não disse que não era... Só acho que você está se esforçando muito para fazer valer a sua vontade. Tivemos três votos a mais a favor de ‘Senhora’, e eu me pergunto caso estivéssemos numa situação contrária, se você estaria tão disposta a pedir uma recontagem de votos ou nova votação...” Respondi com um sorriso debochado.
que estava sentado do meu lado, apenas me olhou de soslaio com um sorriso de canto. Ele sabia que eu não estava pra brincadeiras depois de retornar do almoço, e que tinha muitas coisas em mente. Provavelmente também sabia o quão irritada eu estava com aquela apelação toda pela merda do “Romeu e Julieta”.
“Você subestima a grandeza de Shakespeare! É injusto que não possamos ter uma nova votação, os alunos não sabem como essa obra pode ser capaz de mudar nossas vidas!” Ela pontuou com veemência, e eu percebi que a galera reunida me olhava, esperando meu retorno. Incluindo a professora Strauss, que reservava um sorriso miúdo no rosto. Sim, a desgraçada estava se divertindo.
“Shakespeare era um cara legal, não me leve a mal. Mas sério, qual é a fixação com Romeu e Julieta? Deixe descansarem um pouco, toda hora temos essa peça habitando nossos debates. Mudar faz bem, não acha?” Perguntei de forma mais gentil, dobrando uma perna em cima da outra e apoiando meu cotovelo no joelho, enquanto gesticulava.
“O romance dessa peça é inigualável, garota!” Ela respondeu com raiva, e todos se assustaram levemente. Eu permaneci como estava, com um olhar tedioso. “Nada se compara à Romeu e Julieta; a impossibilidade de amar devido a intriga das famílias, a forma como a sociedade se posicionava naquela época, a riqueza e a subversão de simplesmente não aceitar uma vida sem amor! Um tapa de pelica na cara daqueles que acham que podem impor suas vontades na vida alheia!” Ela exclamou com tanta força que uma veia saltou de sua testa. Eu alarguei meu sorriso e apontei um dedo para si.
“Engraçado essa sua última frase. Como foi que disse mesmo? ‘Um tapa de pelica na cara daqueles que acham que podem impor suas vontades na vida alheia’. Interessante! Você poderia seguir seu próprio conselho.” Apoiei meu queixo em minha mão erguendo uma sobrancelha, e pequenas risadas puderam ser ouvidas – incluindo a de , que estava visivelmente curtindo aquele debate. Aliás, todos ali. Menos a jovem morena de rosto vermelho, prestes a explodir.
“IMPOSSÍVEL!” Ela berrou, batendo em sua própria coxa, dando um ataque. “Não dá pra ter uma conversa civilizada com essa pessoa, professora!” Ela diminuiu a entonação, se ajeitando enquanto pedia ajuda da Sra. Strauss que encarava com tédio.
“Srta. Mitsuhi, eu realmente não estou vendo um ato incivilizado da Srta. . Ao contrário de você, que está nitidamente alterada. Por favor, continue a defender seu ponto de vista de maneira idônea. Isto também está sendo avaliado.” A professora indicou com a mão, e logo retornou para a prancheta, tomando notas do que quer que estivesse acontecendo ali. A morena se virou para mim furiosa.
“Romeu e Julieta tem tudo que um jovem precisa para entender sobre a vida.” Ela articulou enquanto colocava as mãos na cintura. “‘Senhora’ é uma história boa, mas o que fala do amor? O que fala de vontades, de lutas? Aurélia é um mau exemplo para as pessoas porque não entende as dificuldades da vida e simplesmente age como uma garota mimada, mal amada vingativa, fazendo seu par romântico sofrer o pão que o diabo amassou em nome do que ela chama de amor!” Ela apontou pra mim, e de alguma forma senti que ela me comparava à Aurélia.
Ah não. Fala mal de mim, mas não fala mal da Aurélia.
“Como é que é?” Eu perguntei incrédula, descruzando as pernas e abrindo os braços em questionamento.
“Fodeu.” Ouvi falar baixinho enquanto segurava um riso sacana.
“É isso mesmo! Aurélia acha que toda e qualquer vingancinha resolverá o problema dela, quando na verdade ela precisa parar de bancar a dona do pedaço e admitir que tudo nela exala ‘dor de cotovelo’! Ela é uma covarde!” A tal da Mitsuhi pontuou, e eu ri descaradamente da sua fala.
“Você não entendeu nada, não é mesmo? Romeu e Julieta é uma bela história, mas tenha bom senso! Ele tinha 17 anos e ela, 13! O que você acha que aconteceria se eles tivessem vivido esse amor? O que vem depois do ‘felizes para sempre’? Como eles iriam se sustentar? Julieta estaria disposta a pegar no batente, Romeu conseguiria trabalhar todo dia, o amor ainda seria puro, belo, vital diante de todas as intempéries da vida? Acorda, garota!” Rebati, retirando minhas costas da cadeira e gesticulando com rapidez. “Você tem o quê, 14, 15 anos? Eu mesma que estou prestes a fazer 18 também acreditava nessa de amor pra vida toda, mas isso não existe! E ‘Senhora’ traz muito bem isso! Aurélia sofreu horrores antes de herdar a grana do avô, e ao se tornar rica, não perdeu o foco e o que realmente importava na vida! E mesmo sem fazer aquilo com intencionalidade, prova pro Seixas de que é preciso ter responsabilidade afetiva antes de qualquer coisa! De uma maneira um pouco vingativa? Sim, mas ela é humana, erra, e dentro do seu próprio esquema de ‘vingança’, não sai ilesa. Ao longo da história dá para notar que Aurélia entende de amor sim! Tanto que não se deixa pra trás, porque o amor próprio é importante, é primeiro! E é nessa potência, sendo dona de si que ela não deixa o cara pisar em seus sentimentos novamente! E no fim das contas ela consegue encontrar o equilíbrio entre esses dois polos! Isso nos mostra que desistir do amor por questões sociais acontecem o tempo todo, mas exige no mínimo bom senso! Exige diálogo, compreensão, respeito, coisas que o Seixas deixou passar batido. Isso, Romeu e Julieta nunca poderia nos mostrar porque eles morreram antes de viver todas essas dificuldades! Você por acaso tomaria um veneno se não pudesse ficar com a pessoa que você gosta? Realmente não há outra forma de resolver isso?”
Quando terminei minha fala, minha respiração estava ofegante e todos me encaravam com surpresa. Os olhos da professora Strauss estavam levemente arregalados e sua boca entreaberta. Eu me endireitei na cadeira e ajeitei o cabelo, me sentindo bem exposta. Olhei discretamente para que me dava um sorriso desgraçado e orgulhoso. Eu me senti sem graça e voltei a olhar para a garota, que mordia o lábio inferior e me encarava, perdida.
“Nós não podemos ser anacrônicos e analisar as questões foram de época, Srta. .” A professora Strauss falou após algum tempo, e eu rolei os olhos discretamente. “É importante entender que o contexto de Romeu e Julieta não permitia nenhuma quebra de paradigma como você sugere, até porque, pudera, é uma tragédia escrita entre os anos de 1591 e 1596. Aquilo não era simples nem comum de acontecer para os envolvidos. Apesar de ainda vivermos numa época patriarcal, sem dúvidas estamos anos luz à frente no que se concerne a direitos das mulheres, ascensão social, disputa de classes e etc. Aurélia era uma mulher a frente de seu tempo em “Senhora”, mas estava, literalmente, séculos a frente de “Romeu e Julieta”. É por isso que faz sentido que você, uma garota do século XXI com quase 18 anos tenha um entendimento que provavelmente Julieta não teria com a mesma idade caso vivesse, porque simplesmente as coisas não eram assim no fim do século XVI.” A garota Mitsuhi sorriu aliviada e me lançou um olhar esnobe.
“Entretanto, não podemos deixar de pensar que todas as grandes mudanças da história se deram por pensamentos subversivos e pontuais como o da Srta. .” Ela apontou pra mim enquanto limpava as lentes de seus óculos. “E acho que nossa sociedade, principalmente as jovens meninas, precisam de outros referenciais além de Julieta. Não precisamos excluir sua personalidade, mas é necessário considerar que há tanta potência nela quanto em Aurélia. Precisamos, além de expandir o repertório de mulheres e histórias potentes, parar de romantizar o amor e entender que há muito além na vida do que o sentimento em si, apenas.” O sorriso da Mitsuhi murchou e eu suspirei mais tranquila. Sensatez era Strauss, anota aí.
“Então acho que podemos abrir uma nova votação, sem consideração de margens de erros. Depois da defesa de ambas histórias e os argumentos utilizados pelas Srtas. e Mitsuhi, acredito que todos aqui possam votar com maior nitidez e compreendimento das obras disponíveis para a peça. Então, todos a favor de Julieta, ergam os braços.”
Na sala haviam cerca de vinte pessoas. Seis braços se ergueram, contando com os de Mitsuhi, e eu arregalei os olhos, estupefata.
“Todos a favor de ‘Senhora’...” E catorze braços foram postos em riste.
estava com o braço erguido, me encarando com um sorriso de canto que me fez ruborizar.
“Zero abstenções... Então está decidido: ‘Senhora’ será a nossa peça. E isso é tudo, pessoal.” A professora comentou sorridente e a garota se enfureceu por completo.
“Dane-se! Eu não vou fazer parte de um grupo que não entende a complexidade de “Romeu e Julieta”! Eu posso muito bem ir para outro, estou aqui porque acreditava lidar com pessoas lúcidas da grandeza de Shakespeare!” Mitsuhi bradou, literalmente batendo o pé no chão. A professora Strauss a olhou tediosamente e apenas indicou com a mão, a direção da saída.
“À vontade, Srta. Mitsuhi. Também não vou trabalhar com quem não sabe perder e aceitar a decisão democrática. Você precisa aprender a lidar com o ‘não’. Sugiro que procure imediatamente outro grupo para não ser mais prejudicada em sua avaliação.” A garota nem esperou ela terminar e saiu batendo pé. “Se alguém quiser acompanhá-la...”
O silêncio sepulcral anunciou que ninguém estava a fim de seguir a garota puta revolts.
“Ótimo!” A professora anotou algo mais na prancheta e me encarou. “Srta. , desde que demonstrou conhecimento sobre a obra e identificação com a personagem, gostaria de indicá-la ao papel de Aurélia.”
“Eu!?” Indaguei chocada e a professora me sorriu.
“Acho mais que indicado. E você? Lembre-se que isso está valendo nota, certo?” E piscou pra mim antes que eu pudesse sequer retrucar, derrotada pelo argumento da nota. Apenas concordei com a cabeça, me sentindo estranha.
Minha boca pairava aberta enquanto eu processava aquela informação. Eu seria Aurélia!? riu alto e eu lhe lancei um olhar aborrecido, fazendo com que sua risada soasse mais alta.
“Você não pode negar, vai ficar ótima de Aurélia.” Ele apertou minha bochecha e eu estapeei sua mão, irritada.
“Vai se ferrar!” Eu falei entre os dentes, cruzando os braços.
“E pelo visto você tá tão dentro da personagem que estraçalharia o Seixas em cinco segundos, mesmo se aquelas irmãs chatas pra caralho viessem defender o cara...” Ele apoiou as mãos na nuca, fazendo os músculos do braço sobressaírem enquanto ria da minha situação.
Lá estava eu, imaginando inúmeras formas de obter uma morte lenta e dolorosa para o meu melhor amigo, tentando disfarçar a onda de calor que me acometeu ao vê-lo numa pose sexy, quando a professora chamou seu nome.
“Sr. , você conhece a história?” A professora perguntou e se virou com o sorriso amarelo no rosto.
“Hm... Um pouco.”
“Pouco o suficiente para achar as irmãs do Seixas insuportáveis, pelo visto?” Ela disse com um sorriso pequeno e anotou algo em sua prancheta. “Que tal ser o Seixas?”
parou de sorrir na hora e seus olhos se arregalaram. Os meus também, só que em minha boca começava a se formar um sorriso, enquanto a dele simplesmente pairava aberta em choque.
“C-Como assim, professora?” Ele indagou retirando as mãos da cabeça e erguendo-as em protesto.
“Estou lhe convidando para ser o Seixas. Qual o problema?” Ela retrucou, arqueando a sobrancelha. respondeu, sem filtros.
“Na moral professora, o Seixas é mó cuzão!” Ele falou sério e a galera riu alto. A professora rolou os olhos ao respondê-lo.
“Não que eu não concorde com o senhor, mas poderia evitar o uso de palavras de baixo calão? Ainda estamos em atividades escolares e ao que tudo indica, o senhor está pendurado em duas disciplinas, ambas pertencentes a este grupo. E pelo visto, o senhor tem familiaridade com a personagem, haja vista os elogios direcionados ao pobre Seixas... O que facilita o processo de assimilação para as falas da peça. Se quer um conselho, eu diria que não seria sábio da sua parte recusar este papel e a oportunidade em reaver sua média final, sabendo que minha avaliação escrita está, como vocês mesmo dizem, ‘o cão chupando manga’.” Ela riu levemente enquanto o encarava por cima dos óculos com um sorriso diabólico.
ainda estava de boca aberta com os braços virados pra cima, apoiados na perna. Ele estava derrotado, e sussurrou um ‘merda’, sem dizer mais nada; apenas cruzou os braços e fechou a cara.
“E então?” Ela insistiu com falsa cara de gente boa, e o apenas concordou com um aceno, encarando o chão de forma tediosa.
Eu estava rindo não tão discretamente de seu estado.
“Seeeei-xaaaas...” Cantarolei, apoiando o cotovelo em seu ombro. Ele me lançou um olhar mortal sem virar o rosto, e eu ri mais ainda.
“Cala. A. Boca.” Ele ameaçou e eu gargalhei, levantando as mãos em rendição.
“Não soa minimamente cavalheiro da sua parte utilizar uma expressão tão grosseira com uma dama, Sr. Seixas!” Falei ainda risonha e ele virou o rosto para mim, com uma cara zombeteira.
“Você não viu nada, Aurélia Camargo... Eu posso ser bem rude quando quero.” E se aproximou de meu rosto com um sorriso sádico ao me responder com uma entonação grave.
Eu fiquei um pouco atordoada com aquela aproximação, encarando aqueles olhos que refletiam uma imagem desconcertada de mim. Mas logo me recompus, jogando o cabelo na sua cara, disfarçando com literatura.
“Está se esquecendo do dote combinado, Fernando Seixas? Ainda não casamos.”
Decidi jogar o jogo de e aproximei meu rosto do seu, ficando a um palmo de distância. Eu percebi que seu pomo de Adão subiu e desceu rapidamente, e sua mandíbula estava tensionada. Ergui meu olhar e encontrei o seu na mais profunda atenção. Ele me olhava intensamente, sem dizer nada. Eu senti meu sorriso aos poucos perdendo força e me percebi presa nos detalhes do seu rosto, e em como ele tinha pequenas e quase imperceptíveis pintas no rosto, pouco abaixo dos olhos. Antes que o feitiço virasse contra o feiticeiro, eu voltei a encará-lo nos olhos e dei um peteleco na ponta do seu nariz, me afastando com um pequeno sorriso.
“Seja um bom garoto, para o seu próprio bem.” Pisquei marota e virei para frente, fingindo prestar atenção na professora que delegava os outros papeis. Eu estava com as pernas cruzadas, balançando em nervosismo. Estava tão empenhada em fingir plenitude que mal notei quando a professora estendeu um maço de folhas em minha direção.
“Espero que entendam que não há como fazer uma peça bem estruturada, já que temos pouco tempo. Por isso estamos reunindo as melhores partes e adaptando os acontecimentos principais. As pessoas que não estão com os papeis, podem ir se articulando em relação ao figurino e a montagem de palco; trouxemos alguns materiais que podem ajudar nisso. Mas é claro que contaremos com o improviso e a imaginação de vocês. A ideia é ser simplista e fazer muito com pouco. Menos é mais, queridos.” A Sra. Strauss explicou com um sorriso genuíno no rosto, e eu peguei as folhas de sua mão, analisando o script da peça. Pairava um enorme “AURÉLIA” no topo da página, e suspirei olhando de soslaio, imóvel com os braços cruzados, prestando atenção na professora.
“Então, vamos começar?” Ela perguntou sorridente, chamando o elenco de atores e atrizes para um canto da sala.
Enquanto a professora dialogava sobre o enredo e discutia sobre os pontos altos a serem trabalhados, eu começava a prestar atenção em como aquilo era sério, e assim senti que a ficha caía aos poucos; eu estaria numa apresentação em frente de todos, interpretando Aurélia Camargo para passar de ano e finalizar o ensino médio. E mesmo tentando focar nos debates que surgiam entre o elenco da peça, minha cabeça não parava de martelar isso: eu estaria atuando em público! Estava tão imersa nessa questão que só despertei quando senti algo leve bater em minha cabeça. Ergui o olhar e notei que havia transformado seus papeis em um tipo de funil e batido em minha cabeça, enquanto todos olhavam para mim como se aguardassem uma resposta.
“Então, Srta. ...” A professora fez um movimento rotativo com a mão, apontando seu rosto para mim. “Tudo bem para você?”
Merda, eu não sabia qual era a pergunta. Olhei ao redor e todos mantinham o olhar sobre mim. A professora acenava positivamente a cabeça, como se quisesse que eu confirmasse seu questionamento. Eu precisava de nota, precisava ficar bem e passar de ano. Então não pensei duas vezes quando abri a boca.
“Sim, claro!” E sorri nervosa, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha. “Sem problema algum, tudo pela peça!”
Minha frase pareceu animá-la, e ela sorriu anotando algo em sua prancheta, enquanto a galera escondeu o rosto e disfarçava em risinhos. Senti meu sorriso desfazer aos poucos pensando que tinha aceitado algo não tão legal e começava a me arrepender de não ter perguntado do que se tratava. Me virei para para tirar aquela dúvida, mas ele não me olhava; apenas mexia as pernas incansavelmente – elas estavam esticadas, uma em cima da outra – enquanto cruzava os braços, mordendo o lábio inferior com certa força. Estranhei sua atitude e quando fiz menção de indagar o que estava acontecendo, a professora ergueu o rosto da prancheta.
“Certo, então está fechado. Ninguém com problemas de interpretação, e o casal principal não se opõe ao momento final com um beijo romântico. Perfeito!” Ela sorriu abertamente, colocando a mão no peito e suspirando aliviada. “Vou ser sincera, é ótimo trabalhar com jovens maduros que não ficam de gracinhas com essas coisas... Como se nunca tivessem visto ou feito isso, sabe?” Ela segredou, fazendo uma careta engraçada, enquanto todos acenavam e davam pequenas risadas.
Menos eu e . Eu estava piscando mais do que de costume, e as palavras da Sra. Strauss ecoavam na minha mente. “Casal Principal. Momento final. Beijo romântico.”. Isso, num looping eterno. Então eu não só contracenaria com como meu... esposo, como nos beijaríamos no final da peça?
Era bem capaz que fumaças estivessem saindo da minha cabeça naquele instante. Eu estava me sentindo quente, e provavelmente meu rosto adquiriu todas as cores possíveis e impossíveis do mundo. E nada seria capaz de expressar a minha vergonha naquele momento.
Até que eu passei a imaginar a cena do beijo entre e eu. Simplesmente um calor subiu pelas minhas costas e pairou na minha nuca, me obrigando a morder o lábio inferior para manter o controle.
Será que estava de acordo com isso? Aparentemente sim, já que depois da minha resposta, a professora concluiu que ninguém se negava a nada, né? Então ele estava ok em me beijar? Mas e a Lis? O que aquele beijo significava pra ele? Era por isso que ele estava estranho, meio ansioso? Será que ele se sentia desconfortável com aquilo? Será que ele se sentia obrigado a fazer aquilo por causa da média final? Será que ele sentia uma fagulha da não tão secreta alegria que brotava dentro de mim ao pensar naquele beijo?
Eu estava fazendo um esforço do caralho para não deixar nada daquilo transparecer em mim. Mas a verdade é que eu estava dentro do olho do furacão com todos aqueles pensamentos. A única coisa nítida era que eu não sabia o quanto ansiava por aquele furacão, até a sua chegada.
Quer dizer, antes eu pensava que sofreria o pão que o diabo amassou até finalmente deixar de gostar de como um homem e passar a vê-lo como meu melhor amigo novamente. Mas nunca, nem nos meus melhores sonhos, pensei que teria uma chance de beijá-lo nesse processo tão solitário que era gostar dele em segredo.
E quando eu permiti sonhar acordada, pensando em mim e nele com vestes antigas, nos abraçando e trocando olhares apaixonados, a cena do beijo foi interrompida pelos barulhos de cadeiras se arrastando no chão e uma professora irada berrava com os alunos.
“LEVANTEM A CADEIRA!” Ela esbravejou, fazendo conforme orientou e levando seu assento para o lugar de origem. “Céus, vocês são seres educados, não me desapontem!” Eu riria se minha mente estivesse de boa, mas só segui observando o nervosismo da Sra. Strauss e pouco a pouco, a bagunça se harmonizou, apenas sobrando eu sentada no mesmo local, encarando o chão igual uma idiota.
“Srta. e Sr. ...” A professora disse, me fazendo sair do transe e olhá-la sobressaltada. A maior parte da galera já tinha ido embora, só sobrando eu sentada e em pé, de braços cruzados e semblante sério. “Quero agradecer mais uma vez pela disponibilidade de vocês e pelo amadurecimento. Sei que são grandes amigos e talvez a cena final não seja lá grande coisa para vocês, mas o comprometimento e a forma que conhecem a obra de José de Alencar torna tudo bem encaminhado para ser um sucesso. Então, mais uma vez obrigada e boa sorte!” Ela sorriu e acenou, enquanto caminhava para fora da sala, não sem antes virar-se brevemente. “Ah, os ensaios começam amanhã de manhã, não se atrasem! E , guarde a cadeira no lugar e desligue tudo ao sair.” E piscou de forma cúmplice, saindo dali.
Eu fiquei observando ela ir embora, sem exatamente focar na cena. Minhas mãos estavam suadas e eu as enxugava em meus joelhos. O nervosismo fazia o tempo passar de forma engraçada e percebi que meus lábios estavam dentro de minha boca quando começou a andar, indo em direção a saída. Me apressei em deixar a cadeira no local certo e me aprumei para caminhar ao lado de .
“Achei que teria que te arrastar.” Ele comentou sem olhar pra mim, andando devagar. O clima estava meio estranho, mas eu decidi dar continuidade ao diálogo.
“Assumo que não estou a pessoa mais empolgada para este papel.” Respondi, sentindo minha garganta reclamar de falta de água.
“Não está pronta para lidar com o Seixas?” Ele ainda não me olhava, mas manteve um pequeno sorriso no canto da boca. Aquela frase poderia ser entendida de tantas formas... Mordi meu lábio inferior, negando sua pergunta.
“Não é isso que me preocupa... Aurélia come o couro do Seixas. É a escola inteira me ver no palco.” Admiti em parte o meu medo, fazendo uma careta. riu baixo e chocou seu ombro levemente no meu.
“Você vai se sair bem, para de graça.” Mesmo receosa, senti um conforto ao ouvir sua voz mais amena, e sorri levemente enquanto acenava com a cabeça.
“Além do mais, estaremos juntos. Prometo pegar leve com você.” Sua voz saiu mais grave do que de costume e eu precisei fingir uma risada enquanto pensava em uma resposta.
“Como assim ‘pegar leve’?” Me atrevi a perguntar e ele me lançou um olhar de canto de olho, como se estivesse vendo minha alma. E ali, eu sabia que ele sabia que nós sabíamos... Que tínhamos a mesma coisa em mente: a bendita cena do beijo.
“Não se faz de desentendida. Você é uma garota esperta.” Ele respondeu, colocando as mãos dentro do bolso da calça enquanto saíamos daquele lugar, desligando as luzes e fechando as portas atrás de nós. “Como você me pediu para ser um bom garoto, eu preciso perguntar: com língua ou sem língua?”
“Por que?” Perguntei, dando de ombros. Estávamos almoçando no refeitório, todos sentados à mesa, logo após sairmos das reuniões de nossos respectivos grupos.
“Porra, ! Já imaginou euzinha fazendo parte de uma gincana de matemática? Eu ia me foder de verde, amarelo e todas as cores do mundo!” Eu ri alto de sua resposta e concordei.
“Mas não chegaram a sugerir a gincana?” perguntou, enquanto mastigava seu tomate.
“Teve um grupo super empolgado... E certas pessoas estavam realmente felizes com isso.” respondeu dando uma olhada em que deu de ombros.
“A proposta era realmente maneira, ué!” Ele respondeu risonho, e eu não consegui segurar uma risada pela cara ingênua que ele fez. Nos olhamos por alguns segundos e logo o clima estranho estava de volta.
“Mas poxa, melhor que a minha ideia?” Doug perguntou, fazendo o contato visual entre mim e quebrar. Eu mexi na minha comida disfarçando o mal-estar e respondeu sorridente. “Claro que não! Mas eu ainda não tinha ouvido sua sugestão quando lançaram a gincana.”
“Então, vocês vão tocar na apresentação e ganhar nota com isso?” perguntou encarando Doug, que sorriu triunfante.
“Claro! Vamos falar sobre ondas sonoras e abordá-las através da nossa música! Não acha legal?”
“ISSO É GENIAL!” Ouvimos uma voz estridente soar e todos se viraram para a figurinha que sentava à nossa mesa. Charlotte depositou o prato de cesar salad e gesticulou animada. “Sério, isso é muito irado! E como você foi capaz de esconder isso de mim? Ficamos mó tempão conversando, !” Ela disse, dando um tapinha no ombro do , que sorriu sem graça. Sim, ela sentou-se ao lado dele.
“É que nós estávamos falando de muitas coisas, relembrando outras. Acabou que não deu tempo de mencionar isso.” Ele respondeu, dando um peteleco na mão dela, que riu abraçando-o de lado.
“É verdade.” Ela retrucou sorrindo abertamente pra ele, que retribuiu gentilmente. Eu olhei para aquela cena sem exatamente saber o que dizer ou como reagir, e apenas troquei olhares com , que arregalou levemente os olhos e fez um sinal rotativo com o dedo ao indicar que conversaríamos depois.
“Mas então, meu querido amigo gênio! Já tem ideia de como será isso?” perguntou para Doug, chamando a atenção de todos para ele. Notei que apenas nesse momento Charlote retirou o braço ao redor de .
“Bom, a ideia é criar um roteiro explicativo e as pessoas vão indicando os fenômenos conforme eles acontecem, enquanto tocamos. Simples porém infalível, não acha?” Doug falou com o rosto empinado e exibido, arrancando sorrisos da galera.
“Eu achei incrível! Foi muita sorte cair como monitora desse grupo, simplesmente adorei! Mal posso esperar para iniciar o projeto, ver os ensaios de vocês e ajudar no que for preciso...” Charlotte disse empolgada, e a olhou com um sorriso de canto.
“Muito obrigado pelo apoio, Charlotte.” Ele respondeu com sinceridade e ela sorriu mais ainda.
“Imagina, eu tô feliz em presenciar isso!” E depositou uma mão no ombro dele, apertando-o levemente. “E ainda dá pra divulgar a banda! Não tenho dúvidas de que vai ser um sucesso!” Ele acenou com a cabeça e encostou na mão dela, agradecido. Logo ela se virou para nós, desencostando do .
“Uma pena não estar no grupo... Ficou pendurado na matéria errada, não acha?” Ela comentou rindo levemente ao se virar para meu amigo e estendeu sua mão até colocá-la em cima da dele.
Que porra de mania de encostar nos outros era essa!?
Eu estava me controlando para disfarçar a minha cara e apertei o garfo em minha mão para aliviar a tensão. Mas logo toda aquela sensação ruim foi embora, quando retirou a sua mão debaixo da dela e depositou em minhas costas.
“Não se preocupe, estou bem onde estou. está comigo.” E sua mão deslizou pelas minhas costas graciosamente até meu ombro, me dando um abraço de lado.
A cena não poderia ser menos embaraçosa. Lá estava com a cara mais lavada do mundo encarando Charlotte, enquanto tinha parado de mastigar e nos olhava tão intensamente que eu não sabia o que aquilo significava. E Charlotte estava totalmente sem graça pela ação de , que gentilmente rejeitou seu toque e seu sentimento de “pena”. Eu estava com tudo isso em mente, tentando processar todos os detalhes. Mas a verdade era que eu estava muito feliz pela atitude de meu melhor amigo, talvez feliz até demais, e um sorrisinho alegre surgiu em meu rosto.
“Que bom, não?” Charlotte disfarçou com um sorriso forçado e uniu as mãos embaixo do queixo, enquanto apoiava-o ali num gesto polido. “E do que se trata o projeto de vocês?” Ela me olhou com os olhos bem abertos e eu percebi que me encarava mais do que o costume.
“Bom...” Me ajeitei na cadeira e retirou sorrateiramente seu braço dos meus ombros. Pigarrei ao sentir a ausência e segui respondendo. “Acabamos de sair de uma reunião na qual discutíamos sobre protagonistas mulheres e suas atuações em obras famosas, tipo em “Romeu e Julieta” do Shakespeare... E decidimos fazer uma pequena peça baseada no livro “Senhora”, de José de Alencar. A professora Strauss já tinha um texto encaminhado, então estamos apenas fazendo algumas adaptações para apresentá-la; será um pouco maior do que um esquete.”
“Uau! Então vocês ficaram presos em literatura?” De tudo o que eu disse, foi só nisso que ela reparou? Charlotte fez a pergunta com uma feição de dor, e eu fiquei olhando para a cara dela sem saber exatamente o que responder. Ela deu um sorriso mínimo e colocou seu corpo para frente.
“Eu lembro que você comentou algo do tipo no banheiro, . Foram as fases da Literatura que te pegaram, não é? Você precisa de ajuda, meu bem?” Ela continuou com aquele “semblante” dolorido eu não me segurei e ri, atraindo seu olhar confuso.
“Eu disse alguma coisa?” Ela perguntou numa entonação ingênua e eu neguei, me recuperando da crise de riso. Passei uns bons segundos imaginando a garota com dor de barriga enquanto me fazia aquelas perguntas aleatórias e aquilo foi o auge do meu pensamento interno. Entretanto, eu tinha uma pergunta para responder; uma pergunta que me colocava numa posição de coitada, e eu não ia bancar aquele lugar no qual Charlotte estava me colocando.
“Não se preocupe, gata! Meu mal não é o Classicismo, o Parnasianismo, muito menos o Barroco. Meu mal era sono na prova, sabe? Pensa numa vida atarefada, numa mente que pensa muito em muita coisa, o tempo todo! Pois é, essa sou eu. Enfim, foi isso.” E puxei suas mãos debaixo de seu queixo e as segurei nas minhas. “Mas não tenho dúvidas de suas intenções. Tenho certeza de que teremos muitas pessoas que se beneficiarão com sua ajuda.”
Admito que estava com raiva das suas atitudes cheia de toques pra cima de e . E não, eu não tinha direito algum em exigir nada em nenhuma das situações, mas a emoção tá cagando pra razão, não é mesmo? E confesso que naquele momento, eu era movida a isso, e sequer estava me dando conta. Eu apenas quis devolver parte da soberba com a qual ela falava.
Ela me encarou com um sorriso murcho e o meu, tão forçado em meus lábios, seguia implacável. Seguimos nos encarando e um silêncio desconfortável habitou o local. Aos poucos fui sentindo seus dedos se movimentarem pedindo passagem e eu só afrouxei o enlace de minhas mãos nas suas quando se levantou e deu uns tapinhas em meus ombros, se pronunciando para todos.
“Certo, galera. Muito bom almoçar todo mundo junto, papeando e tal, mas temos hora! Vamos?” E assim soltei as mãos dela. Charlotte imediatamente as posicionou sobre seu colo embaixo da mesa e sorriu sem mostrar os dentes, um tanto sem graça. Eu estava pouco me lixando na hora e apenas mantive a mesma feição.
Algo me dizia que meu rosto se equiparava ao ar macabro da boneca Annabelle, mas não me importei. Não naquele momento.
Charlotte se levantou e levou o prato para a cozinha, sendo seguida por um a um que abandonava a mesa. Quando dei por mim, só restou e eu. Inconscientemente, nossos corpos se aproximaram após depositarmos os pratos no local da limpeza.
“Então... Animada para a peça?” Ele perguntou visivelmente sem graça, colocando as mãos nos bolsos. Eu imitei seus gestos, dando de ombros.
“Eu acho que estou ansiosa para que tudo isso acabe logo. Achei que viríamos para curtir, mas tenho me sentido mais cansada do que na rotina escolar.” Sorri sem graça e fez o mesmo, concordando com um aceno de cabeça.
“Acho que sei como se sente.” Ele respondeu fazendo uma cara de compreensão e eu mordi meu lábio inferior, sentindo a boca do estômago vibrar ao encarar os olhos de . Ele me observava com certa apreensão, e acho que eu fazia o mesmo.
Fiquei surpresa de ter dito tanto em uma única frase, depois da briga que tivemos. Acho que tinha algo a ver com minhas últimas reflexões, quer dizer; eu estava magoada com alguns bons pontos abordados por , mas a conversa com latejava na mente, principalmente em como me sentia quando estava com ele. Essa tensão de saber se “continuaríamos ou não” estava se tornando maior do que o ressentimento das coisas ditas.
Entretanto, não sabia quando nem como teríamos esse tipo de diálogo. E aquilo me matava, ao mesmo tempo que me aliviava devido a falta de coragem em iniciar o assunto. Eu tinha medo de encontrar a expectativa nos olhos de , em sua voz... Tinha medo de dizer o que já se consolidava como verdade em mim: eu gostava dele, mas não achava que poderia dar aquilo que ele buscava ao estar comigo.
E foi ali que percebi: eu não estava só com medo do que o futuro me reservava; eu tinha medo de decepcioná-lo.
O estalo dentro da minha mente foi tão grande que não consegui falar absolutamente nada. E aparentemente, se encontrava na mesma mudez, então ficamos naquele silêncio esquisito, sem saber o que fazer.
Aquela sensação ruim do medo me fazia abrir e fechar a boca inúmeras vezes... E eu notei que também receava em perder a parte boa da nossa relação.
Quando me dei conta daquilo, senti uma súbita vergonha de mim mesma. Aquilo soava tão egoísta! Porém, era também verdade. E um receio tão forte que sequer me permitia estabelecer uma conversa com ele.
Às vezes eu conseguia ser tão ridiculamente fraca. E outras, tão inusitadamente forte... O que havia de errado com meu bom senso?
Cacete, eu ia surtar com tanta coisa na cabeça!!!
“Tá tudo bem?” me perguntou com o rosto preocupado. Eu provavelmente devia estar quieta por tempo demais, encarando o chão e fazendo caras e bocas, sem sequer falar nada. Suspirei derrotada, voltando a olhar dentro de seus olhos.
“Eu... Não.” Consegui responder, com a voz baixa e falha.
“Está passando mal? Quer que eu te leve para a enfermaria?” colocou as mãos nos meus ombros e eu fechei os olhos com força, negando com um aceno rápido.
O jeito dele solícito só dificultava as coisas.
‘Eu queria tanto corresponder aos teus sentimentos, . Que merda!’ Pensei comigo mesma enquanto cerrava os punhos em frustração.
Respirei fundo uma, duas vezes. Abri os olhos e o encarei.
Analisei sua feição, completamente atenta em mim. Seus olhos refletiam minha pessoa, e eu vi que, por mais que ele tenha dito coisas inacreditáveis, eu não poderia julgá-lo apenas por aquilo e esquecer todo o resto que compunha sua essência.
Aquele que se preocupava, que me ouvia, que me encarava com atenção... Era o com quem estive durante esses meses. Se tratava do cara que reconheceu meus sentimentos pelo meu melhor amigo, em apenas alguns dias depois de retornar à minha vida.
Ele nunca me exigiu nada. Mas estava na cara que seus esforços tinham chegado ao limite; queria mais. E ele merecia mais, merecia alguém que fosse tão profundo quanto ele era.
E eu não era essa pessoa.
Naquele momento, a cena de Charlotte o apoiando tão animadamente no projeto surgiu na minha mente. Dei um sorriso triste, e acabei pensando em voz alta.
“Talvez ela seja.”
“Ela quem, ? Seja o que?” Ele perguntou confuso, e eu me toquei do que tinha acabado de fazer. Me assustei e prestei atenção na feição de , que parecia tentar entender o que eu disse.
“Er...” Fiquei sem saber o que dizer, sentindo a cabeça trabalhando a mil por hora. Visivelmente coloquei uma terceira pessoa na situação, sem querer. Puta que pariu!
“Talvez a outra colega da sala seja uma boa atriz! Eu... estou morrendo de medo do palco! N-Não consigo pensar como vai ser, mas já vou me candidatar ao pessoal do figurino! Sabe como é, né? Hehehe”. Respondi a primeira coisa que veio à mente.
Uma resposta totalmente torta e mal feita, mas era apenas o que eu tinha em mente no momento. Que merda! Eu estava indo bem! Por que fui falar alto o que pensava? Ainda mais após pensar em Charlotte!
deu um sorriso amarelo, me olhando esquisito.
“Ah... Bom, eu não vejo problemas em falar com a professora. Você não é obrigada a fazer nada, sabe disso.” Ele aconselhou de forma sucinta, e eu concordei com a cabeça, mordendo meu lábio inferior.
“Não sou obrigada a nada...” Repeti a frase, me chutando mentalmente.
“Hm... não é. Você é... livre.” disse de uma maneira tão direta que eu senti a respiração falhar.
“Nós somos... livres.” Eu completei, sem saber exatamente o porquê.
Nessa hora, ergueu levemente as sobrancelhas e umedeceu os lábios, dando de ombros.
“Você tem razão... Somos.” Ele afirmou após suspirar audivelmente.
E de repente, nos encarávamos como se o assunto não fosse mais sobre peça alguma. Eu prendia o lábio inferior em meus dentes e nossos olhares pareciam dizer tudo o que a gente não conseguia verbalizar.
Cerca de alguns momentos depois, aquela conversa foi brutalmente interrompida por uma voz estridente, longe de nós.
“Por favor, todos os alunos queiram se apresentar a seus respectivos grupos. Esta é uma chamada a pedido do professor de Educação Física.”
A voz de Charlotte soou no que parecia ser um megafone, e mantinha um sorriso cativante no rosto, passando o olhar em todos que a observavam. Seus olhos repousaram em nós e ela acenou para que seguíssemos sua orientação. Eu suspirei e passei as mãos no rosto, sentindo o cansaço pesar mais ainda.
riu sem humor, coçando a nuca.
“Cara, parece que tudo tá conspirando contra!” Ele falou como um desabafo, e eu joguei as mãos pro ar, gesticulando em resposta.
“Não é!? Que... raiva!” Respondi com sinceridade, e ele bufou, fechando os olhos.
“Eu só... queria que tudo voltasse ao normal.” E abriu novamente sua vista, me encarando aflito. Engoliu a seco e segurou em meus ombros. “A gente não pode... passar uma borracha em tudo? Não podemos deixar as coisas ruins de lado e focar nas boas?”
Meu coração deu uma parada abrupta naquele momento. Senti meu corpo endurecer e levei um tempo até responder o .
“... Acho que se deixarmos todas as pendências de lado, não sobra muita coisa.” Falei com uma honestidade assustadora, e vi dor em seus olhos. “Eu também quero ficar de boa, mas...”
E então, ele me interrompeu, irritado.
“Então por que não ficamos? Não pode ser tão difícil! Estávamos bem, o que pode ter mudado tanto para não voltarmos ao normal!?”
Ele me olhava como se fosse um absurdo não concordar consigo. E eu achava coisa de outro mundo o que ele sugeria.
“É sério, ?” Encarei sua face, com o cenho franzido, sem acreditar no que ele sugeriu. “Você por acaso esqueceu do que dissemos um pro outro?”
Ele me olhou com a cara fechada e eu suspirei, desviando o olhar. Coloquei as mãos nas têmporas, tentando me acalmar e diminuindo a rispidez na fala.
“Olha, numa boa... Acho que o que podemos fazer por hora é nos tratar com educação e dignidade, até que possamos conversar com calma. Até lá, podemos simplesmente pensar bem sobre tudo o que foi dito, e o que não foi também.” Eu abaixei o rosto, mas tocou meu queixo e o ergueu, me fazendo encontrar seus olhos.
“Cara, eu não quero brigar e nem que fique esse clima chato entre a gente. Eu não quero ficar focando no que a gente disse quando estava puto!” Sua voz saiu alterada e eu arfei com aquela afirmação.
“Não era porque estávamos com raiva que dissemos inverdades, . Você acha que nada do que foi dito tem alguma relevância daqui para frente? É sério isso?” Ele respirou fundo e negou com a cabeça.
“Não é isso! Eu só... estou dizendo que estou disposto a esquecer as desavenças e seguir, como antes!”
“Não tem como ignorar isso!” Exclamei aflita, e prendeu os lábios numa linha fina, desviando o olhar raivoso. Eu bufei e encarei o chão.
“Depois do que foi falado, nada será como antes, .” Respondi com verdadeira tristeza na voz, e ele finalmente me encarou com outro sentimento que não fosse irritação ou raiva.
Ele devolvia a tristeza que eu emanava pela frase dita.
Eu esperava que ele insistisse, mas não foi o que aconteceu. finalmente me deu o silêncio das palavras, e o olhar de quem sabia exatamente o que eu queria dizer. No fundo, parecia que ele não queria enxergar a verdade na qual ele secretamente acreditava, confirmando que ele também já não tinha tanta certeza de “nós”.
“Pessoal, por favor! Queiram se reunir na parte externa do refeitório? Atrasos também serão observados... Vocês estão sendo avaliados!” Virei minha cabeça para encontrar o professor falando no megafone com Charlotte a seu lado, que mantinha o mesmo sorriso. Meus amigos que estavam parados aguardando na saída, foram andando lentamente para a parte externa. deu uma olhada para nós e logo nos deu as costas.
“É melhor irmos andando.” falou depois do que pareceu uma década de silêncio. Ele caminhou a meu lado, sem dizer uma única palavra.
Eu estava sem saber o que dizer também. E mesmo incomodada com aquilo, preferi manter aquele assunto em stand by até que de fato batêssemos o martelo de uma só vez. E eu torcia para que estivéssemos decididos quando esse momento chegasse.
“Eu acho a história de Romeu e Julieta tão linda, professora! Não podemos fazer uma nova votação?” Uma menina do primeiro ano implorava indignada com as mãos unidas, enquanto a Sra. Strauss anotava algumas coisas na prancheta.
“Eu já disse que aqui tudo se decide democraticamente. Porque deveríamos fazer uma nova eleição? ‘Senhora’ ganhou de ‘Romeu e Julieta’.” Ela explicou sem retirar os olhos do que estava fazendo.
“Mas tecnicamente você não considerou a margem de erros, professora.” A menina argumentou com as mãos para trás e um sorriso irônico. A mais velha apenas subiu os olhos por cima dos óculos e encarou a aluna.
“Prossiga.” Ela falou, piscando impaciente.
“Considerando que a margem de erros eram três votos pra cima ou três pra baixo, existe um empate técnico, não acha?” A jovem mostrou um papel no qual provavelmente os cálculos estavam presentes e a professora observou rapidamente.
“Então a sua proposta é uma nova votação?” Strauss perguntou com a cara desconfiada. “E se der um novo empate técnico?”
“Aí nós podemos solicitar um voto de minerva seu ou de outro professor.” A garota disse com um sorriso alargado. “Apesar de achar que isso não será necessário... Eu realmente acho que os jovens aqui não tiveram a clareza para escolher. Romeu e Julieta é uma obra grandiosa!”
Após ouvir aquilo, eu ri audivelmente, chamando atenção de todos.
“Alguma consideração a fazer, Srta. ?” A voz imponente da professora questionou, e eu dei de ombros, cruzando os braços.
“Eu só acho desesperador usar “empate técnico” para fazer a vontade de uma menina apaixonada por Shakespeare.” Expliquei recebendo um olhar fuzilador da estudante. Sim, meu humor estava péssimo e ácido.
“Empate técnico é tão democrático quanto votação, para seu conhecimento.” Ela retrucou com o rosto fechado.
“Eu não disse que não era... Só acho que você está se esforçando muito para fazer valer a sua vontade. Tivemos três votos a mais a favor de ‘Senhora’, e eu me pergunto caso estivéssemos numa situação contrária, se você estaria tão disposta a pedir uma recontagem de votos ou nova votação...” Respondi com um sorriso debochado.
que estava sentado do meu lado, apenas me olhou de soslaio com um sorriso de canto. Ele sabia que eu não estava pra brincadeiras depois de retornar do almoço, e que tinha muitas coisas em mente. Provavelmente também sabia o quão irritada eu estava com aquela apelação toda pela merda do “Romeu e Julieta”.
“Você subestima a grandeza de Shakespeare! É injusto que não possamos ter uma nova votação, os alunos não sabem como essa obra pode ser capaz de mudar nossas vidas!” Ela pontuou com veemência, e eu percebi que a galera reunida me olhava, esperando meu retorno. Incluindo a professora Strauss, que reservava um sorriso miúdo no rosto. Sim, a desgraçada estava se divertindo.
“Shakespeare era um cara legal, não me leve a mal. Mas sério, qual é a fixação com Romeu e Julieta? Deixe descansarem um pouco, toda hora temos essa peça habitando nossos debates. Mudar faz bem, não acha?” Perguntei de forma mais gentil, dobrando uma perna em cima da outra e apoiando meu cotovelo no joelho, enquanto gesticulava.
“O romance dessa peça é inigualável, garota!” Ela respondeu com raiva, e todos se assustaram levemente. Eu permaneci como estava, com um olhar tedioso. “Nada se compara à Romeu e Julieta; a impossibilidade de amar devido a intriga das famílias, a forma como a sociedade se posicionava naquela época, a riqueza e a subversão de simplesmente não aceitar uma vida sem amor! Um tapa de pelica na cara daqueles que acham que podem impor suas vontades na vida alheia!” Ela exclamou com tanta força que uma veia saltou de sua testa. Eu alarguei meu sorriso e apontei um dedo para si.
“Engraçado essa sua última frase. Como foi que disse mesmo? ‘Um tapa de pelica na cara daqueles que acham que podem impor suas vontades na vida alheia’. Interessante! Você poderia seguir seu próprio conselho.” Apoiei meu queixo em minha mão erguendo uma sobrancelha, e pequenas risadas puderam ser ouvidas – incluindo a de , que estava visivelmente curtindo aquele debate. Aliás, todos ali. Menos a jovem morena de rosto vermelho, prestes a explodir.
“IMPOSSÍVEL!” Ela berrou, batendo em sua própria coxa, dando um ataque. “Não dá pra ter uma conversa civilizada com essa pessoa, professora!” Ela diminuiu a entonação, se ajeitando enquanto pedia ajuda da Sra. Strauss que encarava com tédio.
“Srta. Mitsuhi, eu realmente não estou vendo um ato incivilizado da Srta. . Ao contrário de você, que está nitidamente alterada. Por favor, continue a defender seu ponto de vista de maneira idônea. Isto também está sendo avaliado.” A professora indicou com a mão, e logo retornou para a prancheta, tomando notas do que quer que estivesse acontecendo ali. A morena se virou para mim furiosa.
“Romeu e Julieta tem tudo que um jovem precisa para entender sobre a vida.” Ela articulou enquanto colocava as mãos na cintura. “‘Senhora’ é uma história boa, mas o que fala do amor? O que fala de vontades, de lutas? Aurélia é um mau exemplo para as pessoas porque não entende as dificuldades da vida e simplesmente age como uma garota mimada, mal amada vingativa, fazendo seu par romântico sofrer o pão que o diabo amassou em nome do que ela chama de amor!” Ela apontou pra mim, e de alguma forma senti que ela me comparava à Aurélia.
Ah não. Fala mal de mim, mas não fala mal da Aurélia.
“Como é que é?” Eu perguntei incrédula, descruzando as pernas e abrindo os braços em questionamento.
“Fodeu.” Ouvi falar baixinho enquanto segurava um riso sacana.
“É isso mesmo! Aurélia acha que toda e qualquer vingancinha resolverá o problema dela, quando na verdade ela precisa parar de bancar a dona do pedaço e admitir que tudo nela exala ‘dor de cotovelo’! Ela é uma covarde!” A tal da Mitsuhi pontuou, e eu ri descaradamente da sua fala.
“Você não entendeu nada, não é mesmo? Romeu e Julieta é uma bela história, mas tenha bom senso! Ele tinha 17 anos e ela, 13! O que você acha que aconteceria se eles tivessem vivido esse amor? O que vem depois do ‘felizes para sempre’? Como eles iriam se sustentar? Julieta estaria disposta a pegar no batente, Romeu conseguiria trabalhar todo dia, o amor ainda seria puro, belo, vital diante de todas as intempéries da vida? Acorda, garota!” Rebati, retirando minhas costas da cadeira e gesticulando com rapidez. “Você tem o quê, 14, 15 anos? Eu mesma que estou prestes a fazer 18 também acreditava nessa de amor pra vida toda, mas isso não existe! E ‘Senhora’ traz muito bem isso! Aurélia sofreu horrores antes de herdar a grana do avô, e ao se tornar rica, não perdeu o foco e o que realmente importava na vida! E mesmo sem fazer aquilo com intencionalidade, prova pro Seixas de que é preciso ter responsabilidade afetiva antes de qualquer coisa! De uma maneira um pouco vingativa? Sim, mas ela é humana, erra, e dentro do seu próprio esquema de ‘vingança’, não sai ilesa. Ao longo da história dá para notar que Aurélia entende de amor sim! Tanto que não se deixa pra trás, porque o amor próprio é importante, é primeiro! E é nessa potência, sendo dona de si que ela não deixa o cara pisar em seus sentimentos novamente! E no fim das contas ela consegue encontrar o equilíbrio entre esses dois polos! Isso nos mostra que desistir do amor por questões sociais acontecem o tempo todo, mas exige no mínimo bom senso! Exige diálogo, compreensão, respeito, coisas que o Seixas deixou passar batido. Isso, Romeu e Julieta nunca poderia nos mostrar porque eles morreram antes de viver todas essas dificuldades! Você por acaso tomaria um veneno se não pudesse ficar com a pessoa que você gosta? Realmente não há outra forma de resolver isso?”
Quando terminei minha fala, minha respiração estava ofegante e todos me encaravam com surpresa. Os olhos da professora Strauss estavam levemente arregalados e sua boca entreaberta. Eu me endireitei na cadeira e ajeitei o cabelo, me sentindo bem exposta. Olhei discretamente para que me dava um sorriso desgraçado e orgulhoso. Eu me senti sem graça e voltei a olhar para a garota, que mordia o lábio inferior e me encarava, perdida.
“Nós não podemos ser anacrônicos e analisar as questões foram de época, Srta. .” A professora Strauss falou após algum tempo, e eu rolei os olhos discretamente. “É importante entender que o contexto de Romeu e Julieta não permitia nenhuma quebra de paradigma como você sugere, até porque, pudera, é uma tragédia escrita entre os anos de 1591 e 1596. Aquilo não era simples nem comum de acontecer para os envolvidos. Apesar de ainda vivermos numa época patriarcal, sem dúvidas estamos anos luz à frente no que se concerne a direitos das mulheres, ascensão social, disputa de classes e etc. Aurélia era uma mulher a frente de seu tempo em “Senhora”, mas estava, literalmente, séculos a frente de “Romeu e Julieta”. É por isso que faz sentido que você, uma garota do século XXI com quase 18 anos tenha um entendimento que provavelmente Julieta não teria com a mesma idade caso vivesse, porque simplesmente as coisas não eram assim no fim do século XVI.” A garota Mitsuhi sorriu aliviada e me lançou um olhar esnobe.
“Entretanto, não podemos deixar de pensar que todas as grandes mudanças da história se deram por pensamentos subversivos e pontuais como o da Srta. .” Ela apontou pra mim enquanto limpava as lentes de seus óculos. “E acho que nossa sociedade, principalmente as jovens meninas, precisam de outros referenciais além de Julieta. Não precisamos excluir sua personalidade, mas é necessário considerar que há tanta potência nela quanto em Aurélia. Precisamos, além de expandir o repertório de mulheres e histórias potentes, parar de romantizar o amor e entender que há muito além na vida do que o sentimento em si, apenas.” O sorriso da Mitsuhi murchou e eu suspirei mais tranquila. Sensatez era Strauss, anota aí.
“Então acho que podemos abrir uma nova votação, sem consideração de margens de erros. Depois da defesa de ambas histórias e os argumentos utilizados pelas Srtas. e Mitsuhi, acredito que todos aqui possam votar com maior nitidez e compreendimento das obras disponíveis para a peça. Então, todos a favor de Julieta, ergam os braços.”
Na sala haviam cerca de vinte pessoas. Seis braços se ergueram, contando com os de Mitsuhi, e eu arregalei os olhos, estupefata.
“Todos a favor de ‘Senhora’...” E catorze braços foram postos em riste.
estava com o braço erguido, me encarando com um sorriso de canto que me fez ruborizar.
“Zero abstenções... Então está decidido: ‘Senhora’ será a nossa peça. E isso é tudo, pessoal.” A professora comentou sorridente e a garota se enfureceu por completo.
“Dane-se! Eu não vou fazer parte de um grupo que não entende a complexidade de “Romeu e Julieta”! Eu posso muito bem ir para outro, estou aqui porque acreditava lidar com pessoas lúcidas da grandeza de Shakespeare!” Mitsuhi bradou, literalmente batendo o pé no chão. A professora Strauss a olhou tediosamente e apenas indicou com a mão, a direção da saída.
“À vontade, Srta. Mitsuhi. Também não vou trabalhar com quem não sabe perder e aceitar a decisão democrática. Você precisa aprender a lidar com o ‘não’. Sugiro que procure imediatamente outro grupo para não ser mais prejudicada em sua avaliação.” A garota nem esperou ela terminar e saiu batendo pé. “Se alguém quiser acompanhá-la...”
O silêncio sepulcral anunciou que ninguém estava a fim de seguir a garota puta revolts.
“Ótimo!” A professora anotou algo mais na prancheta e me encarou. “Srta. , desde que demonstrou conhecimento sobre a obra e identificação com a personagem, gostaria de indicá-la ao papel de Aurélia.”
“Eu!?” Indaguei chocada e a professora me sorriu.
“Acho mais que indicado. E você? Lembre-se que isso está valendo nota, certo?” E piscou pra mim antes que eu pudesse sequer retrucar, derrotada pelo argumento da nota. Apenas concordei com a cabeça, me sentindo estranha.
Minha boca pairava aberta enquanto eu processava aquela informação. Eu seria Aurélia!? riu alto e eu lhe lancei um olhar aborrecido, fazendo com que sua risada soasse mais alta.
“Você não pode negar, vai ficar ótima de Aurélia.” Ele apertou minha bochecha e eu estapeei sua mão, irritada.
“Vai se ferrar!” Eu falei entre os dentes, cruzando os braços.
“E pelo visto você tá tão dentro da personagem que estraçalharia o Seixas em cinco segundos, mesmo se aquelas irmãs chatas pra caralho viessem defender o cara...” Ele apoiou as mãos na nuca, fazendo os músculos do braço sobressaírem enquanto ria da minha situação.
Lá estava eu, imaginando inúmeras formas de obter uma morte lenta e dolorosa para o meu melhor amigo, tentando disfarçar a onda de calor que me acometeu ao vê-lo numa pose sexy, quando a professora chamou seu nome.
“Sr. , você conhece a história?” A professora perguntou e se virou com o sorriso amarelo no rosto.
“Hm... Um pouco.”
“Pouco o suficiente para achar as irmãs do Seixas insuportáveis, pelo visto?” Ela disse com um sorriso pequeno e anotou algo em sua prancheta. “Que tal ser o Seixas?”
parou de sorrir na hora e seus olhos se arregalaram. Os meus também, só que em minha boca começava a se formar um sorriso, enquanto a dele simplesmente pairava aberta em choque.
“C-Como assim, professora?” Ele indagou retirando as mãos da cabeça e erguendo-as em protesto.
“Estou lhe convidando para ser o Seixas. Qual o problema?” Ela retrucou, arqueando a sobrancelha. respondeu, sem filtros.
“Na moral professora, o Seixas é mó cuzão!” Ele falou sério e a galera riu alto. A professora rolou os olhos ao respondê-lo.
“Não que eu não concorde com o senhor, mas poderia evitar o uso de palavras de baixo calão? Ainda estamos em atividades escolares e ao que tudo indica, o senhor está pendurado em duas disciplinas, ambas pertencentes a este grupo. E pelo visto, o senhor tem familiaridade com a personagem, haja vista os elogios direcionados ao pobre Seixas... O que facilita o processo de assimilação para as falas da peça. Se quer um conselho, eu diria que não seria sábio da sua parte recusar este papel e a oportunidade em reaver sua média final, sabendo que minha avaliação escrita está, como vocês mesmo dizem, ‘o cão chupando manga’.” Ela riu levemente enquanto o encarava por cima dos óculos com um sorriso diabólico.
ainda estava de boca aberta com os braços virados pra cima, apoiados na perna. Ele estava derrotado, e sussurrou um ‘merda’, sem dizer mais nada; apenas cruzou os braços e fechou a cara.
“E então?” Ela insistiu com falsa cara de gente boa, e o apenas concordou com um aceno, encarando o chão de forma tediosa.
Eu estava rindo não tão discretamente de seu estado.
“Seeeei-xaaaas...” Cantarolei, apoiando o cotovelo em seu ombro. Ele me lançou um olhar mortal sem virar o rosto, e eu ri mais ainda.
“Cala. A. Boca.” Ele ameaçou e eu gargalhei, levantando as mãos em rendição.
“Não soa minimamente cavalheiro da sua parte utilizar uma expressão tão grosseira com uma dama, Sr. Seixas!” Falei ainda risonha e ele virou o rosto para mim, com uma cara zombeteira.
“Você não viu nada, Aurélia Camargo... Eu posso ser bem rude quando quero.” E se aproximou de meu rosto com um sorriso sádico ao me responder com uma entonação grave.
Eu fiquei um pouco atordoada com aquela aproximação, encarando aqueles olhos que refletiam uma imagem desconcertada de mim. Mas logo me recompus, jogando o cabelo na sua cara, disfarçando com literatura.
“Está se esquecendo do dote combinado, Fernando Seixas? Ainda não casamos.”
Decidi jogar o jogo de e aproximei meu rosto do seu, ficando a um palmo de distância. Eu percebi que seu pomo de Adão subiu e desceu rapidamente, e sua mandíbula estava tensionada. Ergui meu olhar e encontrei o seu na mais profunda atenção. Ele me olhava intensamente, sem dizer nada. Eu senti meu sorriso aos poucos perdendo força e me percebi presa nos detalhes do seu rosto, e em como ele tinha pequenas e quase imperceptíveis pintas no rosto, pouco abaixo dos olhos. Antes que o feitiço virasse contra o feiticeiro, eu voltei a encará-lo nos olhos e dei um peteleco na ponta do seu nariz, me afastando com um pequeno sorriso.
“Seja um bom garoto, para o seu próprio bem.” Pisquei marota e virei para frente, fingindo prestar atenção na professora que delegava os outros papeis. Eu estava com as pernas cruzadas, balançando em nervosismo. Estava tão empenhada em fingir plenitude que mal notei quando a professora estendeu um maço de folhas em minha direção.
“Espero que entendam que não há como fazer uma peça bem estruturada, já que temos pouco tempo. Por isso estamos reunindo as melhores partes e adaptando os acontecimentos principais. As pessoas que não estão com os papeis, podem ir se articulando em relação ao figurino e a montagem de palco; trouxemos alguns materiais que podem ajudar nisso. Mas é claro que contaremos com o improviso e a imaginação de vocês. A ideia é ser simplista e fazer muito com pouco. Menos é mais, queridos.” A Sra. Strauss explicou com um sorriso genuíno no rosto, e eu peguei as folhas de sua mão, analisando o script da peça. Pairava um enorme “AURÉLIA” no topo da página, e suspirei olhando de soslaio, imóvel com os braços cruzados, prestando atenção na professora.
“Então, vamos começar?” Ela perguntou sorridente, chamando o elenco de atores e atrizes para um canto da sala.
Enquanto a professora dialogava sobre o enredo e discutia sobre os pontos altos a serem trabalhados, eu começava a prestar atenção em como aquilo era sério, e assim senti que a ficha caía aos poucos; eu estaria numa apresentação em frente de todos, interpretando Aurélia Camargo para passar de ano e finalizar o ensino médio. E mesmo tentando focar nos debates que surgiam entre o elenco da peça, minha cabeça não parava de martelar isso: eu estaria atuando em público! Estava tão imersa nessa questão que só despertei quando senti algo leve bater em minha cabeça. Ergui o olhar e notei que havia transformado seus papeis em um tipo de funil e batido em minha cabeça, enquanto todos olhavam para mim como se aguardassem uma resposta.
“Então, Srta. ...” A professora fez um movimento rotativo com a mão, apontando seu rosto para mim. “Tudo bem para você?”
Merda, eu não sabia qual era a pergunta. Olhei ao redor e todos mantinham o olhar sobre mim. A professora acenava positivamente a cabeça, como se quisesse que eu confirmasse seu questionamento. Eu precisava de nota, precisava ficar bem e passar de ano. Então não pensei duas vezes quando abri a boca.
“Sim, claro!” E sorri nervosa, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha. “Sem problema algum, tudo pela peça!”
Minha frase pareceu animá-la, e ela sorriu anotando algo em sua prancheta, enquanto a galera escondeu o rosto e disfarçava em risinhos. Senti meu sorriso desfazer aos poucos pensando que tinha aceitado algo não tão legal e começava a me arrepender de não ter perguntado do que se tratava. Me virei para para tirar aquela dúvida, mas ele não me olhava; apenas mexia as pernas incansavelmente – elas estavam esticadas, uma em cima da outra – enquanto cruzava os braços, mordendo o lábio inferior com certa força. Estranhei sua atitude e quando fiz menção de indagar o que estava acontecendo, a professora ergueu o rosto da prancheta.
“Certo, então está fechado. Ninguém com problemas de interpretação, e o casal principal não se opõe ao momento final com um beijo romântico. Perfeito!” Ela sorriu abertamente, colocando a mão no peito e suspirando aliviada. “Vou ser sincera, é ótimo trabalhar com jovens maduros que não ficam de gracinhas com essas coisas... Como se nunca tivessem visto ou feito isso, sabe?” Ela segredou, fazendo uma careta engraçada, enquanto todos acenavam e davam pequenas risadas.
Menos eu e . Eu estava piscando mais do que de costume, e as palavras da Sra. Strauss ecoavam na minha mente. “Casal Principal. Momento final. Beijo romântico.”. Isso, num looping eterno. Então eu não só contracenaria com como meu... esposo, como nos beijaríamos no final da peça?
Era bem capaz que fumaças estivessem saindo da minha cabeça naquele instante. Eu estava me sentindo quente, e provavelmente meu rosto adquiriu todas as cores possíveis e impossíveis do mundo. E nada seria capaz de expressar a minha vergonha naquele momento.
Até que eu passei a imaginar a cena do beijo entre e eu. Simplesmente um calor subiu pelas minhas costas e pairou na minha nuca, me obrigando a morder o lábio inferior para manter o controle.
Será que estava de acordo com isso? Aparentemente sim, já que depois da minha resposta, a professora concluiu que ninguém se negava a nada, né? Então ele estava ok em me beijar? Mas e a Lis? O que aquele beijo significava pra ele? Era por isso que ele estava estranho, meio ansioso? Será que ele se sentia desconfortável com aquilo? Será que ele se sentia obrigado a fazer aquilo por causa da média final? Será que ele sentia uma fagulha da não tão secreta alegria que brotava dentro de mim ao pensar naquele beijo?
Eu estava fazendo um esforço do caralho para não deixar nada daquilo transparecer em mim. Mas a verdade é que eu estava dentro do olho do furacão com todos aqueles pensamentos. A única coisa nítida era que eu não sabia o quanto ansiava por aquele furacão, até a sua chegada.
Quer dizer, antes eu pensava que sofreria o pão que o diabo amassou até finalmente deixar de gostar de como um homem e passar a vê-lo como meu melhor amigo novamente. Mas nunca, nem nos meus melhores sonhos, pensei que teria uma chance de beijá-lo nesse processo tão solitário que era gostar dele em segredo.
E quando eu permiti sonhar acordada, pensando em mim e nele com vestes antigas, nos abraçando e trocando olhares apaixonados, a cena do beijo foi interrompida pelos barulhos de cadeiras se arrastando no chão e uma professora irada berrava com os alunos.
“LEVANTEM A CADEIRA!” Ela esbravejou, fazendo conforme orientou e levando seu assento para o lugar de origem. “Céus, vocês são seres educados, não me desapontem!” Eu riria se minha mente estivesse de boa, mas só segui observando o nervosismo da Sra. Strauss e pouco a pouco, a bagunça se harmonizou, apenas sobrando eu sentada no mesmo local, encarando o chão igual uma idiota.
“Srta. e Sr. ...” A professora disse, me fazendo sair do transe e olhá-la sobressaltada. A maior parte da galera já tinha ido embora, só sobrando eu sentada e em pé, de braços cruzados e semblante sério. “Quero agradecer mais uma vez pela disponibilidade de vocês e pelo amadurecimento. Sei que são grandes amigos e talvez a cena final não seja lá grande coisa para vocês, mas o comprometimento e a forma que conhecem a obra de José de Alencar torna tudo bem encaminhado para ser um sucesso. Então, mais uma vez obrigada e boa sorte!” Ela sorriu e acenou, enquanto caminhava para fora da sala, não sem antes virar-se brevemente. “Ah, os ensaios começam amanhã de manhã, não se atrasem! E , guarde a cadeira no lugar e desligue tudo ao sair.” E piscou de forma cúmplice, saindo dali.
Eu fiquei observando ela ir embora, sem exatamente focar na cena. Minhas mãos estavam suadas e eu as enxugava em meus joelhos. O nervosismo fazia o tempo passar de forma engraçada e percebi que meus lábios estavam dentro de minha boca quando começou a andar, indo em direção a saída. Me apressei em deixar a cadeira no local certo e me aprumei para caminhar ao lado de .
“Achei que teria que te arrastar.” Ele comentou sem olhar pra mim, andando devagar. O clima estava meio estranho, mas eu decidi dar continuidade ao diálogo.
“Assumo que não estou a pessoa mais empolgada para este papel.” Respondi, sentindo minha garganta reclamar de falta de água.
“Não está pronta para lidar com o Seixas?” Ele ainda não me olhava, mas manteve um pequeno sorriso no canto da boca. Aquela frase poderia ser entendida de tantas formas... Mordi meu lábio inferior, negando sua pergunta.
“Não é isso que me preocupa... Aurélia come o couro do Seixas. É a escola inteira me ver no palco.” Admiti em parte o meu medo, fazendo uma careta. riu baixo e chocou seu ombro levemente no meu.
“Você vai se sair bem, para de graça.” Mesmo receosa, senti um conforto ao ouvir sua voz mais amena, e sorri levemente enquanto acenava com a cabeça.
“Além do mais, estaremos juntos. Prometo pegar leve com você.” Sua voz saiu mais grave do que de costume e eu precisei fingir uma risada enquanto pensava em uma resposta.
“Como assim ‘pegar leve’?” Me atrevi a perguntar e ele me lançou um olhar de canto de olho, como se estivesse vendo minha alma. E ali, eu sabia que ele sabia que nós sabíamos... Que tínhamos a mesma coisa em mente: a bendita cena do beijo.
“Não se faz de desentendida. Você é uma garota esperta.” Ele respondeu, colocando as mãos dentro do bolso da calça enquanto saíamos daquele lugar, desligando as luzes e fechando as portas atrás de nós. “Como você me pediu para ser um bom garoto, eu preciso perguntar: com língua ou sem língua?”
Capítulo 20: Just cause you feel it, doesn’t mean it’s there.
“Q-QUÊ?” Eu não consegui não gaguejar, muito menos segurar aquela pergunta. Ele me encarou por alguns segundos e começou a rir da minha cara. Suspirei impaciente, aguardando a sessão de risadas em meio à caminhada pelo gramado, naquela tarde ensolarada de clima fresco.
“Sério, você deveria ter visto sua cara... Estava demais!” E riu mais um pouco, colocando a mão na barriga. Eu me irritei com sua graça e comecei a andar disparada na frente, ignorando sua presença ou seus chamados por mim. Enquanto ele brincava, eu sonhava com aquela merda daquele beijo – mesmo que estivéssemos em situações completamente desfavoráveis para isso. Mas ninguém manda nos sentimentos né?
“!” Ele se apressou segurando meu pulso, me fazendo virar para si. Eu estava com a cara emburrada e ele sorriu debochado. “Desfaz essa cara que pra mim é fome. E você sempre tá com fome.” Eu rolei os olhos e fiz menção em me virar e ignorá-lo novamente, quando ele me puxou de volta. “Okay, okay, foi mal. Parei, juro.” E fez sinal de oração com as mãos. Fiquei olhando em seus olhos, aguardando o momento em que ele falaria sério.
“E então?” Perguntei depois de um tempo de silêncio. Estava ficando incomodada com seu olhar sobre mim, e isso só me remetia ao beijo.
“Eu realmente estou perguntando numa boa, sabe? Tipo, você tá bem com isso ou não? E se está de acordo, como quer fazer? Afinal de contas, você ficou tensa com a minha pergunta, e imagino que tenha a ver com... bem, você sabe. .” Ele explicou e eu percebi que ele estava sem graça enquanto gesticulava com as mãos. Eu suspirei, olhando para o chão.
“Não acho que seja uma questão... não mais.” Disse sem me tocar que estava pensando alto demais. estava me olhando normal, mas depois de minha resposta, ele franziu o cenho e ergueu a sobrancelha.
“Como assim?” Ele questionou com curiosidade. Eu gemi frustrada, com ódio de mim mesma e bufei.
“Nem eu sei explicar, na verdade.” Fui sincera e fechei os olhos, segurando meus ombros num gesto cansado.
“Quer conversar?” Ele me perguntou e eu abri os olhos, piscando enquanto ponderava. O encarei, perdida.
“Não sei nem por onde começar.” Novamente, falei o que estava em minha mente e ele acenou a cabeça, como quem entende o que digo, e colocou as mãos no bolso.
“Apenas comece a falar. Eu darei meu jeito de entender... Se você quiser.”
O olhar de era reticente e um pouco temeroso. Particularmente, fiquei um pouco mais alegre com suas palavras. Apesar daquilo significar pisar em “terrenos duvidosos” (que já abalaram nossa amizade uma vez), ele estava disposto a correr esse risco para tentar me ajudar, e de alguma forma isso me acalentava.
Suspirei e dei de ombros, começando a andar para perto do deque, no qual estávamos na outra noite.
Sem precisar chamá-lo, me acompanhou e juntos seguimos em silêncio, até que estivéssemos sentados no chão de madeira, com as pernas balançando no ar acima do lago.
“Estou ouvindo.” Ele disse ao jogar uma pedrinha na água. A reverberação em círculos se propagou até onde os olhos não mais podiam acompanhar, e eu respirei fundo antes de responder.
“Eu... Hum, bom. Nós nunca fomos namorados. e eu... Mas não dá pra dizer que não temos uma relação.” Comecei a falar, analisando as cutículas das unhas. não me encarava, mas me ouvia. “Isso nunca me incomodou. E achei que não incomodava também, sabe? Mas sei lá. Depois da briga, um monte de coisa foi falada, coisas que ambos não sabiam que existiam. E isso muda tudo! Porque a verdade é...” Minha voz diminuiu até que nenhuma palavra a mais saísse da minha boca.
Foi a primeira vez que se virou para me olhar, mas eu não tive coragem em retribuí-lo e segui olhando para minhas mãos, trêmulas.
“A verdade é...?” Ele encorajou e eu respirei fundo.
As palavras pesavam na minha boca, mas saíram.
“É que eu não gosto de como ele gosta de mim.” A frase saiu tão baixa que eu achei que não tivesse me ouvido. Mas ele ouviu.
“O-k...” Ele disse calmamente, enquanto pegava outra pedrinha. Ele pigarreou, como se estivesse digerindo o que eu disse, e ergueu a cabeça, encarando o lago. “E você disse isso para ele?”
A pedrinha deslizou pela superfície, e só afundou depois de muito quicar na derme da água.
“Ele sabe.” Respondi e senti uma dor no peito ao falar isso em voz alta. Na verdade, sabia desde o começo. Tinha medo de comentar isso com e o assunto se tornar mais delicado do que já era. Imagina ele descobrir ali que eu era apaixonada por ele?
Balancei a cabeça como se espantasse o pensamento. Já era difícil o suficiente minha situação com . Com , seria mais tenso ainda.
“Certo...” Ele disse, ficando em silêncio logo depois, respeitando meu momento. Eu suspirei, sem saber o que dizer. Ficamos assim por um tempo, até que ele novamente se manifestou. “Você... quer continuar com ele?” perguntou e eu virei meu rosto para encará-lo. Ele olhava para nova pedra que tacou no lago, e eu engoli a seco com a sua pergunta. Nunca havíamos chegado tão longe sobre aquele assunto, e de alguma forma era estranho conversar com ele sobre isso.
“Eu honestamente não sei.” Desci o olhar para o lago, me perdendo em pensamentos.
“Mas ele te quer.” Sua fala saiu grave, e eu me senti sem graça.
“É, bem. Acho que sim. Estamos juntos por isso também. Não sei responder essa pergunta com certeza...” Dei de ombros sem entender muito bem, e ele riu, ainda sem me olhar.
“Acho que você não entendeu. Não foi uma pergunta, . te quer. Te quer de verdade; quer te namorar, ter um compromisso com você, berrar para o mundo todo que você é a namorada dele. Ou você não percebe isso tão nitidamente?” E finalmente seu olhar cintilou sobre o meu.
Ficamos assim durante um tempo, e ele voltou a prestar atenção nas pedras que tacava, enquanto eu engolia a seco.
“A questão não é querer, . Pelo menos, não mais. Tem... outros fatores envolvidos. Eu realmente fiquei muito chateada com inúmeras coisas ditas, com ideias que eram necessárias terem sido expostas – e assumo que também deixei algumas coisas para mim. Mas ele... Nossa! Sabe quando você pensa uma coisa e na verdade aquela coisa até existe, mas está junta de mil outras coisas que você simplesmente não sabe de onde surgiu? E definitivamente não te agrada? Então, é por aí. Naquela briga, parece que meus olhos foram realmente abertos e uma luz focou no relacionamento, me mostrando a verdadeira situação na qual se encontra. E é essa discrepância de antes e depois da discussão que muito me confunde.”
me olhou de um jeito confuso e estranho, como se eu tivesse dito algo sem noção, mas sua pergunta me surpreendeu.
“Foi realmente tão ruim assim?”
Suspirei coçando a nuca. Aquela situação estava ficando insuportável, então apenas afirmei com a cabeça, lembrando das acusações infundadas de , que me irritavam e muito.
O ar saindo das narinas de me fizeram prestar atenção em si, que começou a falar.
“Deixa eu ver se entendi... Existe uma relação, mas depois da briga, perceberam que cada um tem perspectivas diferentes sobre ela. E são coisas tão pontuais que não se trata apenas de querer continuar? O que pode ser maior do que a vontade de estar junto?”
Eu neguei com a cabeça, sentindo o cerco fechar.
Em partes, ele tinha razão. Principalmente porque ele não sabia dos meus sentimentos por ele; apenas tinha noção de que eu não retribuía os sentimentos de na mesma intensidade.
Além disso, as acusações ditas na briga, alguns posicionamentos... Era difícil aceitar aquilo! Realmente não tínhamos condição de continuar, e se de alguma forma decidíssemos estar juntos, precisaríamos de uma nova configuração, porque a antiga já não nos contemplava mais.
E a verdade era que, só de pensar nisso tudo, eu já ficava cansada, e com muita vontade de parar aquilo que mais parecia uma bola de neve de problemas do que um relacionamento em si.
“É complicado explicar.” Me detive a essa simples frase, me abraçando enquanto olhava pro chão. concordou com um aceno. Deu de ombros e depois de um tempo e voltou a falar.
“Me parece que a questão principal é que você não sabe se quer continuar porque não sente o mesmo por . E tem certos posicionamentos que mais afastam do que contribuem para a relação continuar, além do fato de que ele quer namoro e você não. Estou muito errado?”
Eu pisquei aturdida.
Precisava conversar mais vezes com .
“Não... Você conseguiu resumir bem.” Respondi, num misto de surpresa e desânimo. Respirei fundo, tomando coragem para dizer em voz alta o que pensava. “Depois da briga, percebi que tínhamos outras visões em mente... Muito conflitantes. E a falta de diálogo comprometeu muita coisa. Parece que tá tudo muito distante. Distante demais para encontrar um meio termo.” Me virei para ele, que afirmou com a cabeça, enquanto me olhava atento.
Ficamos assim por um tempo, e eu voltei o olhar para o céu, com um pesar estranho no peito.
“Na real, eu acho que ninguém tá disposto a ir mais além do que já foi. E é por isso que eu não sei se quero continuar.” Respondi sincera, e vi que sua cabeça estava virada em minha direção. Voltei a encará-lo e encontrei seu semblante preocupado, enquanto um vento forte passava por nós.
Os cabelos de se debateram com a ventania, e naquela fração de segundo, me perguntei se ele podia enxergar minha alma através do contato visual. Me indagava se ele sabia que o motivo de tudo aquilo... era ele.
“Me parece que você tem sua resposta.” Sua voz soou após um tempo, e eu mordi o lábio inferior.
“Talvez.”
“A sensação que dá é que você já sabe há algum tempo... e na verdade o que te prende não é a indecisão, mas o medo.” Ele sorriu de forma amena, e olhou para o céu. “Medo de errar, medo de magoar... Medo daquilo que pode acontecer e você não ter controle algum.”
Meu queixo caiu com aquilo. Como ele era capaz de perceber aquilo? Como ele conseguia falar com tanta prioridade?
Me senti tão contemplada e ao mesmo tempo, assustada por ser tão assertivo, que senti um frio na barriga. O medo era a coisa mais presente desde que comecei a cogitar a ideia do término de , e na verdade eu sofria por antecipação ao pensar em tanta coisa além da qual eu sequer tinha domínio.
Era difícil assumir aquela verdade.
Mas mais difícil era acreditar que estava certo.
O mesmo que foi completamente idiota enquanto bancava o super-amigo-protetor... O mesmo cara cujas inseguranças o levaram a fazer e a falar várias coisas que comprometeram nossa amizade.
Depois de três meses afastados, eu tinha um amigo mais sensato, era isso mesmo?
Ou ele estava sendo apenas mais tranquilo porque eu estava terminando o relacionamento com ?
Aquela preocupação passou pela minha cabeça durante alguns segundos, mas depois escolhi não acreditar naquilo, já que ele parecia estar disposto a conversar e me ajudar, me escutando pacientemente e analisando tudo com muita cautela.
E ele sequer demonstrou alguma felicidade diante da minha decisão em relação a . Mesmo com o melhor dos disfarces, eu perceberia seu contentamento, caso existisse.
Porque era , e de , eu conhecia um bocado.
“Você sabe que eu tô com você, não sabe? Não importa o que aconteça.” Ele abaixou o olhar e encarou o chão de madeira no qual estávamos sentados. Suspirei e acenei positivamente, sentindo uma faísca aquecer meu peito com aquela frase. Num movimento sutil, encostei minha cabeça em seu ombro e fechei os olhos, me permitindo respirar com mais calma.
“Eu sei. Eu também tô aqui por você... sempre.” Falei com tanta sinceridade, que não lembrava quando foi a última vez que disse algo tão sem filtro para .
Senti a vibração em seu corpo, indicando que ele tinha rido levemente com aquilo, como se gostasse do que ouviu. Graciosamente, ele me trouxe pra perto de si com seu braço ao redor de meus ombros, e o manteve lá, fazendo um carinho gostoso com a mão.
Como se não fosse o bastante, senti virar o rosto acima de minha cabeça, e sem nenhum aviso prévio, depositou um longo beijo em minha testa, em sinal de respeito.
Ainda de olhos fechados, arfei com ele tão próximo, tão quente e carinhoso.
Foi quando pensei no beijo da peça, e aí meu corpo estremeceu levemente debaixo do seu.
Céus, eu queria tanto aquele beijo! Merda!
Os lábios de saíram de minha testa, à medida que eu começava a refletir sobre os ciclos que se fechavam em minha mente.
Lá estava eu, inegavelmente ansiosa pela peça de teatro para receber um beijo de . Mesmo que fosse um beijo falso, técnico, ensaiado. Eu ansiava por aquilo mais do que gostaria de admitir.
Mais do que queria estar com .
E então, havia ...
Pensei nele, pelos momentos que partilhamos, desde quando abri a porta da casa de e dei de cara com o novo guitarrista da banda, até as cenas da nossa briga. E as tentativas de reconciliação, frustradas sim, mas não menos legítimas.
Mesmo que no fim das contas significasse estar sozinha, eu não poderia ser egoísta a ponto de prendê-lo numa relação com falsas esperanças, apenas tratando como ficante, sendo que nitidamente ele queria mais. E era uma parte de mim que eu simplesmente não poderia dar, porque... ela já pertencia a outra pessoa.
Mesmo que ele não usufruísse.
Mesmo que ele sequer soubesse.
Aquela parte de mim já tinha dono, e eu não tinha como mudar isso.
Um sorriso triste surgiu no rosto, e senti em meu interior que aos poucos, o término com passava de uma possibilidade, e tornava-se realidade.
Eu era grata por tudo, mas precisava seguir em frente. Não temer o que não poderia controlar, o que não poderia ser previsto, e principalmente: deixar a vida seguir conforme seu fluxo.
“Obrigada, .” Eu disse, levantando o rosto para encará-lo. Minha respiração atingiu seu pescoço, e vi que seu maxilar deu uma leve trincada com aquilo. Ele apenas abaixou o olhar e deixou um sorriso escapar no canto da boca. Deu de ombros e voltou a olhar o lago.
“Obrigada nada, cem conto na minha mão agora!” Ele respondeu divertido, e começamos a rir de forma leve, enquanto nos levantávamos dali, caminhando lado a lado para fora dali.
“Como está se sentindo?” Ele perguntou depois de um tempo, e eu suspirei dando de ombros.
“Tão plena quanto alguém que acabou de ser atingido por um caminhão.” Comentei com um sorriso zombeteiro e ele deu uma pequena risada.
“Não parece, mas tudo vai ficar bem.” Ele disse depois de um tempo, com um sorriso ameno no rosto.
“Claro que vai! Eu sou Aurélia Camargo, afinal de contas.” Fiz uma careta esnobe e ele colocou a mão no peito enquanto acenava com a cabeça.
“A dona do meu coração.”
Eu ri e dei língua, engolindo a seco a vontade de ouvir aquilo fora de um contexto ficcional.
“Por mim, tanto faz.” Falei, sentindo a bochecha arder. me olhou com a sobrancelha erguida, e eu o encarei sem graça. “Sobre o beijo.”
Por um segundo, os olhos dele se arregalaram, mas logo voltaram ao normal. Sua cabeça foi para cima e para baixo repetidamente, informando que entendia o que eu dizia.
“Vai deixar para que a gente decida no dia?” Ele perguntou com um meio sorriso e eu ri.
“Algo do tipo.” Dei de ombros.
“E se eu estiver empolgado no Seixas?” Eu ri alto daquilo, tentando disfarçar o nervosinho na boca do estômago. sorria abertamente.
“Eu só quero passar de ano, mas você tá querendo um dez em tudo, né?” Perguntei, cruzando os braços.
“Sei lá né, pega mal não me dedicar contigo. Que moral eu vou ter se você espalhar para meio mundo que eu beijo mal?” Ele deu de ombros e eu gargalhei alto. No fundo, eu sabia que ele estava apenas brincando, tentando distrair a minha cabeça. E sim, ele tinha conseguido com maestria.
“Só deixe claro para Lis que se trata de uma peça. Não quero problemas.” Comentei, me sentindo imediatamente mais séria. O sorriso de diminuiu, e ele concordou com um aceno.
“Não se preocupe com isso.”
“Se você diz...” Dei de ombros, e aproveitei para perguntar. “E como ela está? Como vocês estão?”
A pergunta poderia soar bem simples, mas me fazia tremer por dentro.
colocou as mãos no bolso, e umedeceu os lábios antes de responder.
“Ah, ela tá bem. E tá tudo bem entre nós também.” E deu um pequeno sorriso com o olhar no chão. Eu suspirei, me chutando mentalmente.
“Pelo menos um de nós está bem.” Foi a vez de ele rir. Seu braço alcançou meu ombro e ele me abraçou de lado.
“Ficar solteira não significa estar mal.”
“Mas eu vou sentir saudades dos amassos...” Pensei alto e me encarou com a face em falso choque, me fazendo gargalhar.
“Tá nesse nível, minha filha?” Dei de ombros e ele riu, balançando a cabeça. “Você pode conhecer outras pessoas também... Ou pode desfrutar da sua companhia. Você pode ser feliz de várias formas... É contigo.”
Aquilo era verdade, e eu concordei com um aceno.
“Não acredito que estou dizendo isso, mas... Você tem razão.” Ele me olhou com a cara fechada e um bico nos lábios.
“Eu vou fingir que você não acabou de ofender, fedelha.” Eu sorri abertamente.
“Fedelha nada! Falando nisso, meu aniversário tá chegando, o que vai me dar de presente?” Perguntei sorridente.
“Já vai ganhar um beijo meu, quer mais o que?” Ele cruzou os braços e fez uma careta indignada, e eu ri debochadamente.
“Eu vou beijar o Seixas, que por conseguinte, vai ganhar um beijo de Aurélia. Então não está valendo.” Disse com o dedo em riste. Ele logo retrucou.
“Não seja mesquinha, já dizia São Francisco de Assis: é dando que se recebe!” Eu parei de andar, antes de nos separarmos para nossas devidas cabanas. Ri da cara sonsa de , e o respondi:
“Você deveria fazer curso de direito caso a música não dê certo. Sério, seus argumentos vencem pelo absurdo e pelo cansaço!” Ele riu convencido.
“Fazer o que se Deus me deu um dom?” Ele fez uma cara linda e debochada.
“De me irritar, só se for.” Respondi risonha enquanto voltava a andar e ele bateu seu ombro no meu propositalmente, me fazendo rir mais ainda.
“Ainda assim é um dom.” Ele disse faceiro.
Percebi que ele me acompanhava até as escadas da minha cabana, e eu levantei a sobrancelha, questionando-o silenciosamente.
“Que?”
“Vai entrar na cabana?” Perguntei prendendo um riso. Ele suspirou, colocando as mãos no bolso.
“Eu... só não queria ir sem falar algo antes.” Sua voz saiu mais baixa, e eu automaticamente fiquei atenta.
“Ok... sou toda ouvidos.” Respondi mais séria.
“Então... Eu sei que a gente teve nossas questões, mas... Merda. Tá mais difícil falar do que pensar.” Ele disse num sorriso nervoso, e coçou a nuca devagar. Não falei nada, apenas o observei e deixei seu tempo fluir.
respirou fundo e voltou a falar.
“Eu não torço pelo término de vocês.” Suas mãos estavam erguidas no ar, abertas, enquanto ele me encarava receoso.
“Hã?” Perguntei, confusa.
“Eu não torço para que você e terminem. Eu sei que é difícil acreditar, mas é a verdade.”
Fiquei encarando seu rosto, percebendo o conflito na feição aflita.
“...” Chamei seu nome, me virando de frente pra ele, que suspirou enquanto fechava os olhos. Logo os abriu, me encarando.
“Me escuta. Eu preciso dizer isso.” Sua frase soou mais grave e eu cruzei os braços, acenando afirmativamente com a cabeça. Logo ele recomeçou.
“Eu tive um bom tempo para refletir sobre as minhas atitudes, e... Eu nem sei se tenho direito de te pedir desculpas, mas estou pedindo mesmo assim. Você não sabe o quão feliz fiquei de termos conversado há pouco, e eu pude me mostrar bem menos babaca do que das últimas vezes. Eu enfiei os pés pelas mãos, mas acho que esse tempo afastado me fez perceber muita coisa.” O pomo de adão subiu e desceu, e seu olhar rastreavam meu rosto. Eu estava sem reação, com os olhos levemente arregalados.
“Tipo o que?” Me vi perguntando, sentindo meu coração batendo forte. respirou fundo, sem deixar de me encarar.
“Que não posso simplesmente agir como um idiota mimado toda vez que eu supor que você tá em uma furada. Eu posso estar enganado, e mesmo se não tiver, tem outras formas de lidar com isso.” Ele me olhou com pesar e eu concordei, olhando para o chão.
“Isso é verdade.” Eu sussurrei, me sentindo estranha. “O tempo te fez bem.” Acrescentei, voltando a olhá-lo. Ele sorriu de forma triste, me encarando de volta.
“Mas doeu para um caralho ficar sem você.”
Aquilo me pegou desprevenida, e eu prendi a respiração, sentindo a boca secar.
“...” Minha voz saiu um pouco falha. Ele ergueu a mão, balançando a cabeça.
“É sério, . Eu fiz merda, e acho que, por mais doído que tenha sido, os últimos meses foram cruciais para enxergar melhor ao meu redor... Hoje só quero ter nossa parceria de volta, ser a pessoa que você nem precisa dizer um “ai” e já saber do que se trata, ir te ajudar, te acolher... Rir das coisas, chorar com as coisas, vibrar com as vitórias e se unir nas derrotas. Isso tudo faz parte de quem eu sou, e eu entendi nesses três meses infernais. Então agora eu quero fazer as coisas mais certas possíveis pra que a gente não precise abrir mão... da gente. Quero ter uma chance de ficar ao seu lado, entende?”
Eu prendi meus lábios, me sentindo confusa. Era tudo o que eu queria ouvir, há três messes... Queria acreditar nele, da mesma forma que acreditava antes. Entretanto, tinha um pé, ou talvez dois atrás. Eu sei que poderia ser diferente, eu só tinha muito medo de perdê-lo também, ou pelo menos o pouco que retomamos nos últimos tempos... E se de alguma forma, voltássemos a nos estranhar? Eu não queria isso, de jeito algum.
“, eu nem sei o que te dizer.” Fui sincera, me abraçando enquanto espantava o nó na garganta. “Eu senti muito sua falta também. Eu só tenho medo de que tudo volte a dar merda, sabe?”
“Eu sei.” Ele disse com o rosto endurecido, olhando para o chão. Aquela feição indicava que ele estava longe dali, pensando nas situações passadas. Decidi continuar a falar.
“Eu acho que toda relação passa por mudanças, nuances. E a gente tá indo bem ao retomar o contato. Tem muita coisa acontecendo na vida, não precisamos nos pressionar tentando comparar nossa amizade ao que foi, mas se empenhar e pensar ao que podemos ser, talvez até melhor do que antes. Mas tudo com calma e leveza. O que acha?”
Eu sei, parecia que tinha sido outra pessoa que respondeu aquela pergunta. Mas a realidade é que eu já tinha pensado sobre aquilo; passei tempos e tempos remontando um script de conversa entre mim e nos últimos meses, pensando como seria uma possível reconciliação, e cheguei na conclusão que acabava de expressar para ele.
concordou vagarosamente e se aproximou, colocando as mãos em meus ombros e me olhando firme.
O ar voltou a ficar preso nos pulmões diante daquilo, mas decidi me manter quieta, diferente de .
“Eu topo qualquer coisa que indique um retorno nosso. Você é muito importante para mim. Quero ser alguém com quem você possa contar, estar ao seu lado e ser uma companhia saudável, independentemente de você continuar com ou não.”
Meus olhos estavam lacrimejando, e eu tinha certeza que nunca tinha sentido meu peito bater tão forte. Minha boca estava entreaberta e eu puxei o ar por ali mesmo, totalmente tocada pelo que ele disse.
Apesar dos meus medos, eram três meses sem uma das pessoas mais importantes da minha vida – e felizmente, eu sabia que essa recíproca era verdadeira. Era muito tempo longe um do outro, sem partilhar as coisas mais banais ou as mais sérias. Se aquele tempo me mudou, de alguma forma também atingiu , e eu poderia ver o resultado ali diante de mim. Eu só não queria que toda vez que acontecesse uma merda, precisássemos recorrer a estratégias tão... extremas.
Eu sorri genuinamente, deixando uma lágrima solitária descer no canto do olho direito.
“Você sempre vai ter um lugar aqui dentro, . Um lugar muito especial.”
O rosto dele se contorceu em um riso frouxo e um olhar extasiado. Raramente aquela feição se apresentava, o que me deixou mais aquecida porque indicava o quanto era importante pra ele.
O quanto eu era importante pra ele.
ergueu a mão e tocou minha bochecha, limpando a lágrima que caiu. Seu toque permaneceu em minha pele, fazendo um carinho devagar e gostoso.
“Eu—”
“Filho da puta!” Uma terceira voz surgiu, nos assustando e fazendo com que automaticamente nos afastássemos. Olhamos para a direção do dono da voz, e meu corpo estremeceu ao ver em pé, nos encarando com uma cara nada boa.
Ficamos um tempo apenas digerindo a situação; tinha o cenho franzido e eu estava petrificada no lugar, com medo do estado de .
E então, sem avisos, ele foi na direção de com passos largos e velozes, e sem mais nem menos empurrou o peito dele, fazendo com que meu melhor amigo cambaleasse para trás, com as mãos erguidas em defesa.
“!” Exclamei assustada.
“Mas que merda é essa?” disse logo em seguida, com a cara fechada.
o encarava com o olhar furioso e os punhos cerrados.
“Faz tudo parte do seu joguinho sujo, não é? Você é um desgraçado de merda!” E empurrou de novo, fazendo com que caísse no chão, espantado demais com aquela atitude para reagir.
“, para com isso!” Berrei com as mãos abertas, me colocando entre ele e , mas ele agiu como se eu nem estivesse ali. Seu foco era totalmente em , que levantou de prontidão e pousou a mão em meu ombro, fazendo com que eu fosse para o lado, mais afastado dos dois. Ele carregava um olhar predatório quando confrontou .
“Eu não sei o que você tem na sua cabeça, mas é melhor parar com isso ou eu não respondo por mim!” Apontou um dedo na direção do outro, que riu debochado e deu de ombros.
“Ou o que? Vai se esconder atrás da ou reclamar com o diretor? Seja homem e resolva as coisas sozinho, !” E num movimento rápido, empurrou novamente , que reagiu e o empurrou de volta, arrancando uma risada debochada do .
“Eu já falei pra parar, caralho!” retrucou com a voz mais áspera, e eu tentava manter a respiração calma, mas não conseguia sentir o ar entrando. Mesmo assim, tentei fazer algo.
“, para com isso por favor!” Me aproximei e toquei sem braço, mas ele se desfez do toque como se tivesse causado um choque, ignorando totalmente meu pedido.
“Se afasta, .” disse, me olhando rápido, voltando a encarar . “Qual é o seu problema, cara!?” Questionou com uma cara furiosa. deixou de rir e apontou para o outro, com a expressão fechada.
“Você! Você é meu problema! Você sempre foi meu problema! A pedra na porra do meu sapato, e agora eu entendo o porquê! Você se fez de coitado o tempo todo para dar o bote quando as coisas entre e eu não estivessem bem! Pensa que eu não percebi?”
“Quê!?” o encarou como se fosse maluco, e eu senti o coração ficar mais acelerado, enquanto o corpo tremia de nervoso.
“!” Berrei tentando chamar sua atenção em vão, e ele seguiu a falar.
“Não mete essa de melhor amigo, cara! Eu ouvi a porra toda! Então você quer estar do lado dela independente dela estar comigo, não é?”
“Você tá doido, cara?” ergueu as mãos, balançando a cabeça. “Você não tá falando coisa com coisa, entendendo tudo errado!”
parou por um segundo e riu sem humor, se aproximando mais ainda de .
“Quer saber? Eu já cansei desse teu cinismo. Vai se foder, seu otário.”
E então, tudo aconteceu muito rápido.
tomou impulso para trás, e socou o rosto de numa velocidade que eu mal consegui acompanhar. Meu melhor amigo se desequilibrou para o lado, desnorteado com o golpe.
Eu dei um grito de susto e coloquei as mãos na boca, sem acreditar no que ele acabava de fazer.
não sossegou, e foi novamente para cima de , acertando um outro soco no mesmo lado.
“! Para com isso!” Eu tentei me meter entre eles, mas me afastou com uma mão, e logo em seguida foi para cima de com força total.
literalmente correu na direção do , e deu um soco que fez cair das escadas; a sorte é que a distância dos degraus para o chão não era muita, então caiu sentado graças a isso e ao apoio do próprio braço antes de atingir o chão.
desceu sem nem pestanejar, e o levantou pela gola da camisa, acertando outro soco, fazendo sorrir com a boca cheia de sangue.
tinha um hematoma escuro logo acima da bochecha, mas agia como se não tivesse sofrido nenhum arranhão.
E então, os dois começaram a se embolar na grama, trocando socos, chutes, e eu comecei a chorar desesperada, sem acreditar no que estava acontecendo diante de mim.
“Sério, você deveria ter visto sua cara... Estava demais!” E riu mais um pouco, colocando a mão na barriga. Eu me irritei com sua graça e comecei a andar disparada na frente, ignorando sua presença ou seus chamados por mim. Enquanto ele brincava, eu sonhava com aquela merda daquele beijo – mesmo que estivéssemos em situações completamente desfavoráveis para isso. Mas ninguém manda nos sentimentos né?
“!” Ele se apressou segurando meu pulso, me fazendo virar para si. Eu estava com a cara emburrada e ele sorriu debochado. “Desfaz essa cara que pra mim é fome. E você sempre tá com fome.” Eu rolei os olhos e fiz menção em me virar e ignorá-lo novamente, quando ele me puxou de volta. “Okay, okay, foi mal. Parei, juro.” E fez sinal de oração com as mãos. Fiquei olhando em seus olhos, aguardando o momento em que ele falaria sério.
“E então?” Perguntei depois de um tempo de silêncio. Estava ficando incomodada com seu olhar sobre mim, e isso só me remetia ao beijo.
“Eu realmente estou perguntando numa boa, sabe? Tipo, você tá bem com isso ou não? E se está de acordo, como quer fazer? Afinal de contas, você ficou tensa com a minha pergunta, e imagino que tenha a ver com... bem, você sabe. .” Ele explicou e eu percebi que ele estava sem graça enquanto gesticulava com as mãos. Eu suspirei, olhando para o chão.
“Não acho que seja uma questão... não mais.” Disse sem me tocar que estava pensando alto demais. estava me olhando normal, mas depois de minha resposta, ele franziu o cenho e ergueu a sobrancelha.
“Como assim?” Ele questionou com curiosidade. Eu gemi frustrada, com ódio de mim mesma e bufei.
“Nem eu sei explicar, na verdade.” Fui sincera e fechei os olhos, segurando meus ombros num gesto cansado.
“Quer conversar?” Ele me perguntou e eu abri os olhos, piscando enquanto ponderava. O encarei, perdida.
“Não sei nem por onde começar.” Novamente, falei o que estava em minha mente e ele acenou a cabeça, como quem entende o que digo, e colocou as mãos no bolso.
“Apenas comece a falar. Eu darei meu jeito de entender... Se você quiser.”
O olhar de era reticente e um pouco temeroso. Particularmente, fiquei um pouco mais alegre com suas palavras. Apesar daquilo significar pisar em “terrenos duvidosos” (que já abalaram nossa amizade uma vez), ele estava disposto a correr esse risco para tentar me ajudar, e de alguma forma isso me acalentava.
Suspirei e dei de ombros, começando a andar para perto do deque, no qual estávamos na outra noite.
Sem precisar chamá-lo, me acompanhou e juntos seguimos em silêncio, até que estivéssemos sentados no chão de madeira, com as pernas balançando no ar acima do lago.
“Estou ouvindo.” Ele disse ao jogar uma pedrinha na água. A reverberação em círculos se propagou até onde os olhos não mais podiam acompanhar, e eu respirei fundo antes de responder.
“Eu... Hum, bom. Nós nunca fomos namorados. e eu... Mas não dá pra dizer que não temos uma relação.” Comecei a falar, analisando as cutículas das unhas. não me encarava, mas me ouvia. “Isso nunca me incomodou. E achei que não incomodava também, sabe? Mas sei lá. Depois da briga, um monte de coisa foi falada, coisas que ambos não sabiam que existiam. E isso muda tudo! Porque a verdade é...” Minha voz diminuiu até que nenhuma palavra a mais saísse da minha boca.
Foi a primeira vez que se virou para me olhar, mas eu não tive coragem em retribuí-lo e segui olhando para minhas mãos, trêmulas.
“A verdade é...?” Ele encorajou e eu respirei fundo.
As palavras pesavam na minha boca, mas saíram.
“É que eu não gosto de como ele gosta de mim.” A frase saiu tão baixa que eu achei que não tivesse me ouvido. Mas ele ouviu.
“O-k...” Ele disse calmamente, enquanto pegava outra pedrinha. Ele pigarreou, como se estivesse digerindo o que eu disse, e ergueu a cabeça, encarando o lago. “E você disse isso para ele?”
A pedrinha deslizou pela superfície, e só afundou depois de muito quicar na derme da água.
“Ele sabe.” Respondi e senti uma dor no peito ao falar isso em voz alta. Na verdade, sabia desde o começo. Tinha medo de comentar isso com e o assunto se tornar mais delicado do que já era. Imagina ele descobrir ali que eu era apaixonada por ele?
Balancei a cabeça como se espantasse o pensamento. Já era difícil o suficiente minha situação com . Com , seria mais tenso ainda.
“Certo...” Ele disse, ficando em silêncio logo depois, respeitando meu momento. Eu suspirei, sem saber o que dizer. Ficamos assim por um tempo, até que ele novamente se manifestou. “Você... quer continuar com ele?” perguntou e eu virei meu rosto para encará-lo. Ele olhava para nova pedra que tacou no lago, e eu engoli a seco com a sua pergunta. Nunca havíamos chegado tão longe sobre aquele assunto, e de alguma forma era estranho conversar com ele sobre isso.
“Eu honestamente não sei.” Desci o olhar para o lago, me perdendo em pensamentos.
“Mas ele te quer.” Sua fala saiu grave, e eu me senti sem graça.
“É, bem. Acho que sim. Estamos juntos por isso também. Não sei responder essa pergunta com certeza...” Dei de ombros sem entender muito bem, e ele riu, ainda sem me olhar.
“Acho que você não entendeu. Não foi uma pergunta, . te quer. Te quer de verdade; quer te namorar, ter um compromisso com você, berrar para o mundo todo que você é a namorada dele. Ou você não percebe isso tão nitidamente?” E finalmente seu olhar cintilou sobre o meu.
Ficamos assim durante um tempo, e ele voltou a prestar atenção nas pedras que tacava, enquanto eu engolia a seco.
“A questão não é querer, . Pelo menos, não mais. Tem... outros fatores envolvidos. Eu realmente fiquei muito chateada com inúmeras coisas ditas, com ideias que eram necessárias terem sido expostas – e assumo que também deixei algumas coisas para mim. Mas ele... Nossa! Sabe quando você pensa uma coisa e na verdade aquela coisa até existe, mas está junta de mil outras coisas que você simplesmente não sabe de onde surgiu? E definitivamente não te agrada? Então, é por aí. Naquela briga, parece que meus olhos foram realmente abertos e uma luz focou no relacionamento, me mostrando a verdadeira situação na qual se encontra. E é essa discrepância de antes e depois da discussão que muito me confunde.”
me olhou de um jeito confuso e estranho, como se eu tivesse dito algo sem noção, mas sua pergunta me surpreendeu.
“Foi realmente tão ruim assim?”
Suspirei coçando a nuca. Aquela situação estava ficando insuportável, então apenas afirmei com a cabeça, lembrando das acusações infundadas de , que me irritavam e muito.
O ar saindo das narinas de me fizeram prestar atenção em si, que começou a falar.
“Deixa eu ver se entendi... Existe uma relação, mas depois da briga, perceberam que cada um tem perspectivas diferentes sobre ela. E são coisas tão pontuais que não se trata apenas de querer continuar? O que pode ser maior do que a vontade de estar junto?”
Eu neguei com a cabeça, sentindo o cerco fechar.
Em partes, ele tinha razão. Principalmente porque ele não sabia dos meus sentimentos por ele; apenas tinha noção de que eu não retribuía os sentimentos de na mesma intensidade.
Além disso, as acusações ditas na briga, alguns posicionamentos... Era difícil aceitar aquilo! Realmente não tínhamos condição de continuar, e se de alguma forma decidíssemos estar juntos, precisaríamos de uma nova configuração, porque a antiga já não nos contemplava mais.
E a verdade era que, só de pensar nisso tudo, eu já ficava cansada, e com muita vontade de parar aquilo que mais parecia uma bola de neve de problemas do que um relacionamento em si.
“É complicado explicar.” Me detive a essa simples frase, me abraçando enquanto olhava pro chão. concordou com um aceno. Deu de ombros e depois de um tempo e voltou a falar.
“Me parece que a questão principal é que você não sabe se quer continuar porque não sente o mesmo por . E tem certos posicionamentos que mais afastam do que contribuem para a relação continuar, além do fato de que ele quer namoro e você não. Estou muito errado?”
Eu pisquei aturdida.
Precisava conversar mais vezes com .
“Não... Você conseguiu resumir bem.” Respondi, num misto de surpresa e desânimo. Respirei fundo, tomando coragem para dizer em voz alta o que pensava. “Depois da briga, percebi que tínhamos outras visões em mente... Muito conflitantes. E a falta de diálogo comprometeu muita coisa. Parece que tá tudo muito distante. Distante demais para encontrar um meio termo.” Me virei para ele, que afirmou com a cabeça, enquanto me olhava atento.
Ficamos assim por um tempo, e eu voltei o olhar para o céu, com um pesar estranho no peito.
“Na real, eu acho que ninguém tá disposto a ir mais além do que já foi. E é por isso que eu não sei se quero continuar.” Respondi sincera, e vi que sua cabeça estava virada em minha direção. Voltei a encará-lo e encontrei seu semblante preocupado, enquanto um vento forte passava por nós.
Os cabelos de se debateram com a ventania, e naquela fração de segundo, me perguntei se ele podia enxergar minha alma através do contato visual. Me indagava se ele sabia que o motivo de tudo aquilo... era ele.
“Me parece que você tem sua resposta.” Sua voz soou após um tempo, e eu mordi o lábio inferior.
“Talvez.”
“A sensação que dá é que você já sabe há algum tempo... e na verdade o que te prende não é a indecisão, mas o medo.” Ele sorriu de forma amena, e olhou para o céu. “Medo de errar, medo de magoar... Medo daquilo que pode acontecer e você não ter controle algum.”
Meu queixo caiu com aquilo. Como ele era capaz de perceber aquilo? Como ele conseguia falar com tanta prioridade?
Me senti tão contemplada e ao mesmo tempo, assustada por ser tão assertivo, que senti um frio na barriga. O medo era a coisa mais presente desde que comecei a cogitar a ideia do término de , e na verdade eu sofria por antecipação ao pensar em tanta coisa além da qual eu sequer tinha domínio.
Era difícil assumir aquela verdade.
Mas mais difícil era acreditar que estava certo.
O mesmo que foi completamente idiota enquanto bancava o super-amigo-protetor... O mesmo cara cujas inseguranças o levaram a fazer e a falar várias coisas que comprometeram nossa amizade.
Depois de três meses afastados, eu tinha um amigo mais sensato, era isso mesmo?
Ou ele estava sendo apenas mais tranquilo porque eu estava terminando o relacionamento com ?
Aquela preocupação passou pela minha cabeça durante alguns segundos, mas depois escolhi não acreditar naquilo, já que ele parecia estar disposto a conversar e me ajudar, me escutando pacientemente e analisando tudo com muita cautela.
E ele sequer demonstrou alguma felicidade diante da minha decisão em relação a . Mesmo com o melhor dos disfarces, eu perceberia seu contentamento, caso existisse.
Porque era , e de , eu conhecia um bocado.
“Você sabe que eu tô com você, não sabe? Não importa o que aconteça.” Ele abaixou o olhar e encarou o chão de madeira no qual estávamos sentados. Suspirei e acenei positivamente, sentindo uma faísca aquecer meu peito com aquela frase. Num movimento sutil, encostei minha cabeça em seu ombro e fechei os olhos, me permitindo respirar com mais calma.
“Eu sei. Eu também tô aqui por você... sempre.” Falei com tanta sinceridade, que não lembrava quando foi a última vez que disse algo tão sem filtro para .
Senti a vibração em seu corpo, indicando que ele tinha rido levemente com aquilo, como se gostasse do que ouviu. Graciosamente, ele me trouxe pra perto de si com seu braço ao redor de meus ombros, e o manteve lá, fazendo um carinho gostoso com a mão.
Como se não fosse o bastante, senti virar o rosto acima de minha cabeça, e sem nenhum aviso prévio, depositou um longo beijo em minha testa, em sinal de respeito.
Ainda de olhos fechados, arfei com ele tão próximo, tão quente e carinhoso.
Foi quando pensei no beijo da peça, e aí meu corpo estremeceu levemente debaixo do seu.
Céus, eu queria tanto aquele beijo! Merda!
Os lábios de saíram de minha testa, à medida que eu começava a refletir sobre os ciclos que se fechavam em minha mente.
Lá estava eu, inegavelmente ansiosa pela peça de teatro para receber um beijo de . Mesmo que fosse um beijo falso, técnico, ensaiado. Eu ansiava por aquilo mais do que gostaria de admitir.
Mais do que queria estar com .
E então, havia ...
Pensei nele, pelos momentos que partilhamos, desde quando abri a porta da casa de e dei de cara com o novo guitarrista da banda, até as cenas da nossa briga. E as tentativas de reconciliação, frustradas sim, mas não menos legítimas.
Mesmo que no fim das contas significasse estar sozinha, eu não poderia ser egoísta a ponto de prendê-lo numa relação com falsas esperanças, apenas tratando como ficante, sendo que nitidamente ele queria mais. E era uma parte de mim que eu simplesmente não poderia dar, porque... ela já pertencia a outra pessoa.
Mesmo que ele não usufruísse.
Mesmo que ele sequer soubesse.
Aquela parte de mim já tinha dono, e eu não tinha como mudar isso.
Um sorriso triste surgiu no rosto, e senti em meu interior que aos poucos, o término com passava de uma possibilidade, e tornava-se realidade.
Eu era grata por tudo, mas precisava seguir em frente. Não temer o que não poderia controlar, o que não poderia ser previsto, e principalmente: deixar a vida seguir conforme seu fluxo.
“Obrigada, .” Eu disse, levantando o rosto para encará-lo. Minha respiração atingiu seu pescoço, e vi que seu maxilar deu uma leve trincada com aquilo. Ele apenas abaixou o olhar e deixou um sorriso escapar no canto da boca. Deu de ombros e voltou a olhar o lago.
“Obrigada nada, cem conto na minha mão agora!” Ele respondeu divertido, e começamos a rir de forma leve, enquanto nos levantávamos dali, caminhando lado a lado para fora dali.
“Como está se sentindo?” Ele perguntou depois de um tempo, e eu suspirei dando de ombros.
“Tão plena quanto alguém que acabou de ser atingido por um caminhão.” Comentei com um sorriso zombeteiro e ele deu uma pequena risada.
“Não parece, mas tudo vai ficar bem.” Ele disse depois de um tempo, com um sorriso ameno no rosto.
“Claro que vai! Eu sou Aurélia Camargo, afinal de contas.” Fiz uma careta esnobe e ele colocou a mão no peito enquanto acenava com a cabeça.
“A dona do meu coração.”
Eu ri e dei língua, engolindo a seco a vontade de ouvir aquilo fora de um contexto ficcional.
“Por mim, tanto faz.” Falei, sentindo a bochecha arder. me olhou com a sobrancelha erguida, e eu o encarei sem graça. “Sobre o beijo.”
Por um segundo, os olhos dele se arregalaram, mas logo voltaram ao normal. Sua cabeça foi para cima e para baixo repetidamente, informando que entendia o que eu dizia.
“Vai deixar para que a gente decida no dia?” Ele perguntou com um meio sorriso e eu ri.
“Algo do tipo.” Dei de ombros.
“E se eu estiver empolgado no Seixas?” Eu ri alto daquilo, tentando disfarçar o nervosinho na boca do estômago. sorria abertamente.
“Eu só quero passar de ano, mas você tá querendo um dez em tudo, né?” Perguntei, cruzando os braços.
“Sei lá né, pega mal não me dedicar contigo. Que moral eu vou ter se você espalhar para meio mundo que eu beijo mal?” Ele deu de ombros e eu gargalhei alto. No fundo, eu sabia que ele estava apenas brincando, tentando distrair a minha cabeça. E sim, ele tinha conseguido com maestria.
“Só deixe claro para Lis que se trata de uma peça. Não quero problemas.” Comentei, me sentindo imediatamente mais séria. O sorriso de diminuiu, e ele concordou com um aceno.
“Não se preocupe com isso.”
“Se você diz...” Dei de ombros, e aproveitei para perguntar. “E como ela está? Como vocês estão?”
A pergunta poderia soar bem simples, mas me fazia tremer por dentro.
colocou as mãos no bolso, e umedeceu os lábios antes de responder.
“Ah, ela tá bem. E tá tudo bem entre nós também.” E deu um pequeno sorriso com o olhar no chão. Eu suspirei, me chutando mentalmente.
“Pelo menos um de nós está bem.” Foi a vez de ele rir. Seu braço alcançou meu ombro e ele me abraçou de lado.
“Ficar solteira não significa estar mal.”
“Mas eu vou sentir saudades dos amassos...” Pensei alto e me encarou com a face em falso choque, me fazendo gargalhar.
“Tá nesse nível, minha filha?” Dei de ombros e ele riu, balançando a cabeça. “Você pode conhecer outras pessoas também... Ou pode desfrutar da sua companhia. Você pode ser feliz de várias formas... É contigo.”
Aquilo era verdade, e eu concordei com um aceno.
“Não acredito que estou dizendo isso, mas... Você tem razão.” Ele me olhou com a cara fechada e um bico nos lábios.
“Eu vou fingir que você não acabou de ofender, fedelha.” Eu sorri abertamente.
“Fedelha nada! Falando nisso, meu aniversário tá chegando, o que vai me dar de presente?” Perguntei sorridente.
“Já vai ganhar um beijo meu, quer mais o que?” Ele cruzou os braços e fez uma careta indignada, e eu ri debochadamente.
“Eu vou beijar o Seixas, que por conseguinte, vai ganhar um beijo de Aurélia. Então não está valendo.” Disse com o dedo em riste. Ele logo retrucou.
“Não seja mesquinha, já dizia São Francisco de Assis: é dando que se recebe!” Eu parei de andar, antes de nos separarmos para nossas devidas cabanas. Ri da cara sonsa de , e o respondi:
“Você deveria fazer curso de direito caso a música não dê certo. Sério, seus argumentos vencem pelo absurdo e pelo cansaço!” Ele riu convencido.
“Fazer o que se Deus me deu um dom?” Ele fez uma cara linda e debochada.
“De me irritar, só se for.” Respondi risonha enquanto voltava a andar e ele bateu seu ombro no meu propositalmente, me fazendo rir mais ainda.
“Ainda assim é um dom.” Ele disse faceiro.
Percebi que ele me acompanhava até as escadas da minha cabana, e eu levantei a sobrancelha, questionando-o silenciosamente.
“Que?”
“Vai entrar na cabana?” Perguntei prendendo um riso. Ele suspirou, colocando as mãos no bolso.
“Eu... só não queria ir sem falar algo antes.” Sua voz saiu mais baixa, e eu automaticamente fiquei atenta.
“Ok... sou toda ouvidos.” Respondi mais séria.
“Então... Eu sei que a gente teve nossas questões, mas... Merda. Tá mais difícil falar do que pensar.” Ele disse num sorriso nervoso, e coçou a nuca devagar. Não falei nada, apenas o observei e deixei seu tempo fluir.
respirou fundo e voltou a falar.
“Eu não torço pelo término de vocês.” Suas mãos estavam erguidas no ar, abertas, enquanto ele me encarava receoso.
“Hã?” Perguntei, confusa.
“Eu não torço para que você e terminem. Eu sei que é difícil acreditar, mas é a verdade.”
Fiquei encarando seu rosto, percebendo o conflito na feição aflita.
“...” Chamei seu nome, me virando de frente pra ele, que suspirou enquanto fechava os olhos. Logo os abriu, me encarando.
“Me escuta. Eu preciso dizer isso.” Sua frase soou mais grave e eu cruzei os braços, acenando afirmativamente com a cabeça. Logo ele recomeçou.
“Eu tive um bom tempo para refletir sobre as minhas atitudes, e... Eu nem sei se tenho direito de te pedir desculpas, mas estou pedindo mesmo assim. Você não sabe o quão feliz fiquei de termos conversado há pouco, e eu pude me mostrar bem menos babaca do que das últimas vezes. Eu enfiei os pés pelas mãos, mas acho que esse tempo afastado me fez perceber muita coisa.” O pomo de adão subiu e desceu, e seu olhar rastreavam meu rosto. Eu estava sem reação, com os olhos levemente arregalados.
“Tipo o que?” Me vi perguntando, sentindo meu coração batendo forte. respirou fundo, sem deixar de me encarar.
“Que não posso simplesmente agir como um idiota mimado toda vez que eu supor que você tá em uma furada. Eu posso estar enganado, e mesmo se não tiver, tem outras formas de lidar com isso.” Ele me olhou com pesar e eu concordei, olhando para o chão.
“Isso é verdade.” Eu sussurrei, me sentindo estranha. “O tempo te fez bem.” Acrescentei, voltando a olhá-lo. Ele sorriu de forma triste, me encarando de volta.
“Mas doeu para um caralho ficar sem você.”
Aquilo me pegou desprevenida, e eu prendi a respiração, sentindo a boca secar.
“...” Minha voz saiu um pouco falha. Ele ergueu a mão, balançando a cabeça.
“É sério, . Eu fiz merda, e acho que, por mais doído que tenha sido, os últimos meses foram cruciais para enxergar melhor ao meu redor... Hoje só quero ter nossa parceria de volta, ser a pessoa que você nem precisa dizer um “ai” e já saber do que se trata, ir te ajudar, te acolher... Rir das coisas, chorar com as coisas, vibrar com as vitórias e se unir nas derrotas. Isso tudo faz parte de quem eu sou, e eu entendi nesses três meses infernais. Então agora eu quero fazer as coisas mais certas possíveis pra que a gente não precise abrir mão... da gente. Quero ter uma chance de ficar ao seu lado, entende?”
Eu prendi meus lábios, me sentindo confusa. Era tudo o que eu queria ouvir, há três messes... Queria acreditar nele, da mesma forma que acreditava antes. Entretanto, tinha um pé, ou talvez dois atrás. Eu sei que poderia ser diferente, eu só tinha muito medo de perdê-lo também, ou pelo menos o pouco que retomamos nos últimos tempos... E se de alguma forma, voltássemos a nos estranhar? Eu não queria isso, de jeito algum.
“, eu nem sei o que te dizer.” Fui sincera, me abraçando enquanto espantava o nó na garganta. “Eu senti muito sua falta também. Eu só tenho medo de que tudo volte a dar merda, sabe?”
“Eu sei.” Ele disse com o rosto endurecido, olhando para o chão. Aquela feição indicava que ele estava longe dali, pensando nas situações passadas. Decidi continuar a falar.
“Eu acho que toda relação passa por mudanças, nuances. E a gente tá indo bem ao retomar o contato. Tem muita coisa acontecendo na vida, não precisamos nos pressionar tentando comparar nossa amizade ao que foi, mas se empenhar e pensar ao que podemos ser, talvez até melhor do que antes. Mas tudo com calma e leveza. O que acha?”
Eu sei, parecia que tinha sido outra pessoa que respondeu aquela pergunta. Mas a realidade é que eu já tinha pensado sobre aquilo; passei tempos e tempos remontando um script de conversa entre mim e nos últimos meses, pensando como seria uma possível reconciliação, e cheguei na conclusão que acabava de expressar para ele.
concordou vagarosamente e se aproximou, colocando as mãos em meus ombros e me olhando firme.
O ar voltou a ficar preso nos pulmões diante daquilo, mas decidi me manter quieta, diferente de .
“Eu topo qualquer coisa que indique um retorno nosso. Você é muito importante para mim. Quero ser alguém com quem você possa contar, estar ao seu lado e ser uma companhia saudável, independentemente de você continuar com ou não.”
Meus olhos estavam lacrimejando, e eu tinha certeza que nunca tinha sentido meu peito bater tão forte. Minha boca estava entreaberta e eu puxei o ar por ali mesmo, totalmente tocada pelo que ele disse.
Apesar dos meus medos, eram três meses sem uma das pessoas mais importantes da minha vida – e felizmente, eu sabia que essa recíproca era verdadeira. Era muito tempo longe um do outro, sem partilhar as coisas mais banais ou as mais sérias. Se aquele tempo me mudou, de alguma forma também atingiu , e eu poderia ver o resultado ali diante de mim. Eu só não queria que toda vez que acontecesse uma merda, precisássemos recorrer a estratégias tão... extremas.
Eu sorri genuinamente, deixando uma lágrima solitária descer no canto do olho direito.
“Você sempre vai ter um lugar aqui dentro, . Um lugar muito especial.”
O rosto dele se contorceu em um riso frouxo e um olhar extasiado. Raramente aquela feição se apresentava, o que me deixou mais aquecida porque indicava o quanto era importante pra ele.
O quanto eu era importante pra ele.
ergueu a mão e tocou minha bochecha, limpando a lágrima que caiu. Seu toque permaneceu em minha pele, fazendo um carinho devagar e gostoso.
“Eu—”
“Filho da puta!” Uma terceira voz surgiu, nos assustando e fazendo com que automaticamente nos afastássemos. Olhamos para a direção do dono da voz, e meu corpo estremeceu ao ver em pé, nos encarando com uma cara nada boa.
Ficamos um tempo apenas digerindo a situação; tinha o cenho franzido e eu estava petrificada no lugar, com medo do estado de .
E então, sem avisos, ele foi na direção de com passos largos e velozes, e sem mais nem menos empurrou o peito dele, fazendo com que meu melhor amigo cambaleasse para trás, com as mãos erguidas em defesa.
“!” Exclamei assustada.
“Mas que merda é essa?” disse logo em seguida, com a cara fechada.
o encarava com o olhar furioso e os punhos cerrados.
“Faz tudo parte do seu joguinho sujo, não é? Você é um desgraçado de merda!” E empurrou de novo, fazendo com que caísse no chão, espantado demais com aquela atitude para reagir.
“, para com isso!” Berrei com as mãos abertas, me colocando entre ele e , mas ele agiu como se eu nem estivesse ali. Seu foco era totalmente em , que levantou de prontidão e pousou a mão em meu ombro, fazendo com que eu fosse para o lado, mais afastado dos dois. Ele carregava um olhar predatório quando confrontou .
“Eu não sei o que você tem na sua cabeça, mas é melhor parar com isso ou eu não respondo por mim!” Apontou um dedo na direção do outro, que riu debochado e deu de ombros.
“Ou o que? Vai se esconder atrás da ou reclamar com o diretor? Seja homem e resolva as coisas sozinho, !” E num movimento rápido, empurrou novamente , que reagiu e o empurrou de volta, arrancando uma risada debochada do .
“Eu já falei pra parar, caralho!” retrucou com a voz mais áspera, e eu tentava manter a respiração calma, mas não conseguia sentir o ar entrando. Mesmo assim, tentei fazer algo.
“, para com isso por favor!” Me aproximei e toquei sem braço, mas ele se desfez do toque como se tivesse causado um choque, ignorando totalmente meu pedido.
“Se afasta, .” disse, me olhando rápido, voltando a encarar . “Qual é o seu problema, cara!?” Questionou com uma cara furiosa. deixou de rir e apontou para o outro, com a expressão fechada.
“Você! Você é meu problema! Você sempre foi meu problema! A pedra na porra do meu sapato, e agora eu entendo o porquê! Você se fez de coitado o tempo todo para dar o bote quando as coisas entre e eu não estivessem bem! Pensa que eu não percebi?”
“Quê!?” o encarou como se fosse maluco, e eu senti o coração ficar mais acelerado, enquanto o corpo tremia de nervoso.
“!” Berrei tentando chamar sua atenção em vão, e ele seguiu a falar.
“Não mete essa de melhor amigo, cara! Eu ouvi a porra toda! Então você quer estar do lado dela independente dela estar comigo, não é?”
“Você tá doido, cara?” ergueu as mãos, balançando a cabeça. “Você não tá falando coisa com coisa, entendendo tudo errado!”
parou por um segundo e riu sem humor, se aproximando mais ainda de .
“Quer saber? Eu já cansei desse teu cinismo. Vai se foder, seu otário.”
E então, tudo aconteceu muito rápido.
tomou impulso para trás, e socou o rosto de numa velocidade que eu mal consegui acompanhar. Meu melhor amigo se desequilibrou para o lado, desnorteado com o golpe.
Eu dei um grito de susto e coloquei as mãos na boca, sem acreditar no que ele acabava de fazer.
não sossegou, e foi novamente para cima de , acertando um outro soco no mesmo lado.
“! Para com isso!” Eu tentei me meter entre eles, mas me afastou com uma mão, e logo em seguida foi para cima de com força total.
literalmente correu na direção do , e deu um soco que fez cair das escadas; a sorte é que a distância dos degraus para o chão não era muita, então caiu sentado graças a isso e ao apoio do próprio braço antes de atingir o chão.
desceu sem nem pestanejar, e o levantou pela gola da camisa, acertando outro soco, fazendo sorrir com a boca cheia de sangue.
tinha um hematoma escuro logo acima da bochecha, mas agia como se não tivesse sofrido nenhum arranhão.
E então, os dois começaram a se embolar na grama, trocando socos, chutes, e eu comecei a chorar desesperada, sem acreditar no que estava acontecendo diante de mim.
Capítulo 21 - I don’t love you
“PAREM COM ISSO, PORRA!” Pedi alarmada, tentando me aproximar, sem sucesso. Era uma cena de apertar o peito, desesperadora. Procurei em volta, e a maioria das pessoas estavam no refeitório – já tinha escurecido e o jantar estava para ser servido.
A minha sorte foi quando, do outro lado, alguém abriu a cabana, chamando minha atenção. Por sorte ou por fé, se tratava de descendo as escadas.
“! Socorro, me ajuda!” Eu berrei para ele, que se virou alarmado e precisou apenas de um segundo para entender o que estava acontecendo. Saiu correndo na direção dos meninos e se meteu no meio.
“Que merda é essa, gente? Parem com isso, porra!” Ele tentava separar os dois, sem muito sucesso; parecia que ambos estavam num modo alucinado de briga, e só viam o oponente como foco a ser atingido.
Sem ter mais o que fazer, eu saí correndo em direção ao refeitório, e nunca fiz um trajeto tão rápido em tão pouco tempo. Entrei no local arfando, e felizmente esbarrei em , que estava na fila para pegar comida.
“, me ajuda! e estão brigando!” A segurei pelos ombros, desesperada. Ela arregalou os olhos em choque.
“O quê? Como assim? Ai Meu Deus!” E olhou em volta, chamando a atenção do professor de educação física. “Professor, tem briga rolando lá fora!” Ela berrou enquanto segurava minhas mãos.
O homem logo se virou em nossa direção, e andou a passos largos, sendo seguido pela professora de literatura.
“Briga? Onde!?” Ele perguntou com firmeza, passando por nós apressadamente.
“Perto da minha cabana!” Eu respondi com a voz chorosa, e quando ele avistou tentando separar os meninos inutilmente, saiu correndo, sendo seguido pela professora, dois rapazes monitores e... Charlotte.
Ignorei a presença dela, seguindo com logo atrás do professor. Pude ver o momento no qual ele se atirou entre e , nervoso.
“MAS QUE DIABOS ESTÁ ACONTECENDO AQUI?” Ele bradou, separando os dois com facilidade, mantendo os braços abertos e abrindo espaço entre os garotos.
Nenhum deles respondeu; era segurado por e , por um dos monitores. Ambos se debatiam, tentando se soltar, e o professor tornou a falar.
“EU PERGUNTEI O QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI, SENHORES?” A voz imperativa fez com que os dois parassem de se mover, mas ainda trocavam olhares assassinos.
O estrago era grande.
estava com o supercílio sangrando e a boca também, com um hematoma no alto da bochecha esquerda. Segurava as costelas como se tivesse sido atingido ali, e respirava com rapidez.
estava com o hematoma no rosto, o nariz sangrando, e a blusa rasgada. Cuspiu sangue perto dos pés de , provocando o mesmo, que deu um impulso para frente, como se não estivesse satisfeito de tudo que já tinha acontecido.
“Já chega! Os dois, para a enfermaria!” O professor mandou, e todos presentes seguiram para o local. Charlotte seguiu logo atrás de , com as mãos unidas perto do peito. Sua cara era de aflição, e eu encarei aquilo sem saber o que sentir.
me abraçou e percebi que meu corpo ainda estava trêmulo.
“, o que aconteceu?” Ela perguntou preocupada, caminhando ao meu lado com os braços ao meu redor. Eu me encolhi, tentando encontrar as palavras, mas nada fazia sentido.
“, ele... empurrou, falou aquelas... Coisas! Socou depois de falar e... Briga! Eu não consegui fazer parar.” Levantei o olhar para , sentindo a respiração falhar e tendo dificuldade para falar.
“Shhh, tá tudo bem agora, . Calma, a gente vai resolver isso. Vamos, eu vou pegar um copo d’água para você.” Ela disse me apertando delicadamente e eu voltei a chorar, assustada com tudo que aconteceu.
Chegamos na enfermaria, e o professor colocou e sentados na recepção, consideravelmente afastados um do outro, enquanto o resto do pessoal se mantinha no outro canto da sala, observando tudo. E então, o homem de meia idade começou a falar.
“Inadmissível! Inacreditável! Dois rapazes, prestes a se formar no ensino médio, brigando no meio do passeio a ponto de irem pra enfermaria! Qual é o problema de vocês, hein!?” O silêncio dos garotos fez uma veia saltar na testa do professor. “Eu quero uma explicação agora!” O berro fez com que os olhares dos meninos encarassem o homem, e estalou a língua ao cruzar os braços.
“Pergunta para o ele, professor. Foi quem começou tudo, vindo para cima de mim completamente louco.” Sua voz saiu grave e áspera, e logo o se irritou com aquela acusação, virando-se indignado para .
“Você é um filho da puta manipulador, me apunhalou pelas costas!”
“Ei! Olha o palavreado, Sr. !” O professor se irritou, voltando o olhar para . “Pode explicar o que ele quis dizer com isso, Sr. ?”
bufou, rolando os olhos.
“Ele é maluco e quando vê uma coisa, interpreta de qualquer jeito! Viajou em tudo que pensou e fez!”
“Então você não nega que começou a briga, Sr. ?” se virou para o professor com o maxilar trincado e suspirou, concordando com o que foi dito. “Qual foi a causa?”
e se olharam por um tempo; o primeiro estava irado, o segundo mantinha um olhar cerrado, como se a qualquer minuto pudesse eliminá-lo só por observá-lo.
“Ah, então para brigar vocês têm disposição, mas para se explicarem preferem o silêncio? Que... ótimo!” Ele respirou fundo, segurando a base do nariz enquanto fechava os olhos. Se manteve assim por um tempo, e quando os abriu, começou a falar mais baixo, sem perder a aspereza na voz. “Querem saber? Eu não me importo com o motivo, nada justifica uma briga entre pessoas totalmente capazes de estabelecer um diálogo!”
“Ele me empurrou e me socou duas vezes antes de eu revidar!” se defendeu com as mãos voltadas para si, e riu sarcástico.
“Deveria ter ficado quieto enquanto eu acabava com você, seu talarico de mer—”
“CHEGA!” O professor berrou, se virando para . “Mais uma dessa e faço voltar para casa na força da luz, diretamente para a recuperação final, por comportamento e linguajar indevido, entendeu?”
Eu nunca tinha visto a cara do professor ficar tão irritada. Ele realmente estava chateado com aquilo. ficou olhando para o superior com um leve receio, e o professor continuou a falar.
“Se acalmem. Por hora, vocês vão receber tratamento, jantar e ir direto para o quarto de vocês. Hoje mesmo retiro você da cabana, já que foi quem começou e quem aparenta estar mais descontrolado!” A rispidez do professor finalmente conseguiu balançar , que suspirou e abaixou a cabeça, vencido. O garoto fez uma cara de dor e segurou novamente a costela, chamando a atenção do professor. “Está sentindo dor?”
nada disse; apenas trincou o maxilar e encarou o chão. O professor respirou fundo, se aproximou a passos lentos e com o indicador, cutucou o local que segurava, arrancando um gemido de dor do rapaz.
“Isso é ótimo! Você começa uma briga e ainda pode ter machucado sua costela, ? Você tem noção de que estamos num acampamento, de que vamos precisar partir para um pronto-socorro e acionar o seguro estudantil, não por uma fatalidade, mas por uma atitude descabida sua? E sua também, jovem !” encarou o professor com a boca aberta e o olhar arregalado.
“Eu deveria deixar ele me bater sem fazer nada, professor? Ninguém é de ferro!”
“Chega!” O professor berrou, passando as mãos pelo rosto, nervoso. Olhou para o chão por alguns segundos, e umedeceu os lábios antes de voltar a falar. “Levante-se, . Vou te levar ao pronto-socorro. Pegue seus documentos na cabana e vamos.”
“Eu...”
“AGORA!” O homem falou incisivamente e chegou a engolir seco, levemente assustado. Negando com a cabeça, se levantou com dificuldade e foi até a cabana. Charlotte olhou para o rapaz e para o professor, receosa.
“Vou ajudá-lo, professor.” Ela avisou, e recebeu um aceno em concordância do mestre, que respirava pesadamente. Por fim, ele olhou para e voltou a falar.
“, você é amigo do , certo?” concordou com a cabeça, e ele respirou fundo. “Se importa de nos acompanhar? Por mais que ele não mereça, seria interessante alguém mais próximo conversar com ele para ver se algum juízo entra ali. Estou nervoso e chateado demais para ter uma conversa amena...” Ele foi sincero e se levantou de prontidão.
“Relaxa, fessô. Vou lá pegar minha carteira e encontro vocês.” O professor agradeceu com um manejar de cabeça e olhou para .
“Amanhã conversaremos sobre o que será feito. Aguarde as orientações e esteja disposto, pois já adianto que nem você nem ele ficarão impunes, entendeu? Agora pode ir para a sala ambulatorial, que eu levarei para a emergência.”
levantou a contragosto, e caminhou para o ambulatório, dando uma última olhada para trás e encontrando meus olhos marejados. Deu um fraco sorriso e desapareceu no corredor, me dando um aperto no peito só por não vê-lo – mesmo sabendo que estava logo ali.
“Charlotte também lhe acompanhará?” A professora perguntou e ele olhou para mim e , sendo minha amiga a portadora da voz sensata e direta.
“Professor, numa boa. Não bota mais lenha na fogueira. Manda essa garota sossegar o facho aqui no acampamento mesmo.” O professor arregalou levemente os olhos e fez uma cara de compreensão. Ele me olhou mais uma vez e eu fechei a cara, olhando pro chão.
Não que Charlotte fosse o foco de alguma coisa, mas só de pensar nela, ainda mais naquele momento, me irritava muito. Ele suspirou e deu de ombros.
“Obrigada pela sinceridade, Srta. Amaral. Charlotte fica e ajuda na supervisão enquanto estou fora.” Respirei mais fundo, aliviada ao ouvir aquilo. “Você dá conta do resto?” Ele perguntou ao se virar para a professora, que respondeu afirmativamente com um aceno, e ambos se despediram com um olhar significativo. Ele saiu a passos apressados e a mulher nos olhou com seriedade.
“O resto está dispensado!” Ela disse, se virando para o resto do pessoal.
Ninguém ousou questioná-la, e eu me abracei mais ainda quando saí dali sendo amparada por e a própria professora de literatura.
“Querida, o que aconteceu?” A mais velha me perguntou quando saímos do local, e eu respirei fundo, parando de andar. Percebi que os outros monitores pararam também, se voltando para mim.
Me senti sufocada pela atenção recebida, e os olhares indagadores. Entretanto, precisava dar uma justificativa. Então juntei forças e comecei a narrar o ocorrido.
“ começou a dizer coisas sem nexo depois de aparecer de supetão, enquanto eu conversava com . Ele o acusou de coisas nada a ver e começou a empurrá-lo e então o socou. revidou e... foi isso.”
Tentei ser o mais sucinta possível, sentindo minha garganta arranhar enquanto falava. Ainda fungava quando um dos monitores sorriu sem graça e se pronunciou.
“Pô, mas o chamou o de talarico, dizendo que o apunhalou pelas costas... então eles estavam brigando por causa de você, né?”
A professora bufou, rolou os olhos e eu suspirei ao encarar o rapaz. Apesar de ter razão, aquilo não era mesmo o que eu precisava ouvir no momento! Acho que minha feição disse tudo, e a autoridade do recinto interviu por mim.
“Não importa o motivo, foi como o professor falou: eles eram capazes de dialogar. Agora vamos cada um cuidar da própria vida e seguir para o jantar. Vamos circulando!” A frase final foi dita de forma mais imperativa, e os monitores se puseram a andar apressados, com receio de receber mais um esporro da professora.
Ela suspirou e me olhou de forma reflexiva.
“Eu não sei se foi por isso mesmo, Srta. . Mas não se sinta culpada pelas atitudes deles. Entendo que essa fase é delicada, hormônios à flor da pele, tudo parece ser muito intenso e realmente é. Então essas coisas acabam acontecendo, e tivemos que ser duros com os garotos para que entendam que não é assim que se resolvem os problemas. Espero que tudo fique bem e se precisar, conte comigo, tá bem?”
Foram poucas e simples palavras, mas aquilo me deixou levemente mais calma.
“Obrigada, professora.” Eu respondi e ela me olhou carinhosamente, colocando a mão no meu ombro.
“Por acaso isso tem a ver com a cena final da peça?” Indagou de forma tranquila, e eu neguei. “Bom, menos mal. Eu não quero causar problemas para você.”
“Não causou, professora. É realmente o que foi dito, as coisas não se resolvem assim. Enfim... vai ficar tudo bem.”
Ela me olhou por um momento e concordou, apontando o refeitório com a cabeça.
“Vamos jantar, sim?” E começou a andar na nossa frente, fazendo com que eu e seguíssemos um pouco mais atrás.
Eu não queria ir, então meus passos e tornaram vagarosos e meus olhares iam vez ou outra para a enfermaria, atrás de mim; queria saber de , se estava bem, se precisava de algo. A minha raiva com era tão grande que eu sequer estava ligando para fato de Charlotte ter sumido ao ir atrás dele.
Bem no fundo, estava preocupada com a costela do , mas foi o que o professor havia dito: ele provocou, ele pediu por aquilo! Teve consequências! E mesmo não merecendo, uma pequena parte de mim se preocupava com ele, apenas nesse aspecto.
Na verdade, a sensação que dava era que eu queria ver bem para poder arrebentá-lo com todos socos e pontapés possíveis!
Sim, a minha raiva era bem grande.
Felizmente, eu não estava em condições de dar asas àquela vontade, então apenas me detive em caminhar em direção ao refeitório com ao meu lado.
“Você não precisa falar mais nada, . Dá um descanso pra si mesma, tá bem?” Ela me confortou e eu afirmei com a cabeça, respirando fundo.
Chegamos lá e eu só agia no modo automático. Não consegui comer quase nada; apenas ingeri uma maçã forçadamente, porque praticamente me deu na boca.
Percebi que Charlotte entrou no local sem falar com ninguém, cabisbaixa. Pegou um prato de comida e sentou-se isolada de todos. Eu observei a cena sem dizer nada, apenas cansada demais com tudo, voltando a encarar meus próprios dedos.
tentou iniciar um assunto aleatório, mas eu não reagia; a conversa permaneceu um verdadeiro monólogo sobre o molho delicioso que eu estava perdendo, e eu só sentia meu corpo pesar, exausto. As cenas da briga estavam na minha cabeça, presas como um inseto na teia de aranha. Não era possível que as coisas tivessem chegado àquele ponto!
Por que? Por minha causa? estava completamente enganado, ouviu as coisas e pensou um monte de besteiras! Pegou o bonde andando e tomou suas próprias conclusões, arriscando sua integridade física e a de !
E eu não pude fazer nada além de gritar... Ele sequer me ouvia!
Definitivamente as coisas precisavam ser resolvidas.
Curiosamente, quando esse pensamento passou pela minha cabeça, um vulto na porta do refeitório chamou minha atenção e eu levantei a cabeça alarmada, notando com um curativo no rosto inchado e ferido.
não tinha percebido ainda a presença dele, mas eu nem liguei para isso: saí correndo na direção de e, sem nem pensar duas vezes, o abracei chorosa. Seus braços me envolveram de prontidão, na mesma intensidade.
“Me desculpa!” Eu me ouvi falando de forma abafada, por estar com a cara enfiada no seu peito. Ele me manteve um pouco no abraço, mas logo segurou meus ombros me afastando de si para olhar nos meus olhos. Doía só de reparar nas feridas causadas pela briga. Mas seguia sendo uma das coisas mais lindas que eu já tinha visto na vida, com um sorriso doce e calmo – tudo que eu não sentia naquele momento.
“Você tá de sacanagem, né?” Eu arregalei os olhos e neguei com veemência, não entendendo a fala de .
“Se não fosse por mim, vocês não teriam brigado, e nada disso teria—” Ele me interrompeu, com o sorriso abandonando seus lábios.
“Ei, eu não quero ouvir isso! Você não tem culpa de nada! Ele que é maluco e fez merda.” Eu respirei fundo, com os olhos marejados.
“Você se machucou por minha causa...” Eu disse com a voz embargada e ele negou com a cabeça, com o cenho franzido.
“Não mesmo. Foi tudo entre e eu! Você não tem nada a ver com isso. Para de pensar essas coisas sem sentido. Repete comigo: não é minha culpa.” Eu o olhei chorosa, prendendo o lábio inferior nos meus dentes. me olhou sério.
“... Por favor, vai?” Eu soltei o ar pelos lábios trêmulos.
“Não é minha culpa.” Falei as palavras depois de um tempo. Elas saíam de minha garganta como se fossem pedras.
“De novo.” Ele pediu, atento.
“Não é minha culpa...” A frase saiu mais leve e ele sorriu conforme eu ficava mais calma.
“Isso. Agora repete comigo: é um cuzão.”
Eu automaticamente parei, olhei pra ele e soltei uma risada misturada com choro, limpando meu rosto.
“...” Falei encarando o chão, embora concordasse com ele de alguma forma.
“Tá, tá... Foda-se ele. Já jantou?” Ele perguntou como se fosse nada. Eu afirmei, dando de ombros.
“Comi uma maçã.” Respondi enquanto terminava de limpar o rosto.
“Então não jantou. Vamos, não vai deixar de se alimentar por causa disso. E eu estou faminto também.”
Eu não consegui argumentar, já que ele envolveu meus ombros e me puxou para dentro, me obrigando a fazer um prato decente de strogonoff, com direito a camada extra de batata palha.
“Do jeito que tu gosta.” Ele disse sorridente, e eu afirmei com um sorriso mínimo.
Pegou nossos pratos e foi até a mesa, encontrando , que nos esperava com olhares curiosos.
“E aí, Amaral.” disse, colocando o meu prato do lado dele, me fazendo sentar logo ali. me olhou como se buscasse algum sinal de tristeza, e sorriu quando eu fiz o mesmo, segundos antes. Queria assegurá-la de que tudo estava se encaminhando pra ficar bem, mesmo que eu me sentisse na merda. Não queria ninguém se preocupando demais comigo.
“Gostei do curativo!” comentou malandramente e deixou uma risadinha escapar.
“Vai se ferrar, garota.” E comeu com cuidado, sentindo o ferimento da boca reclamar. Eu suspeitava que ele tivesse ferido o lábio inferior na parte interna, pela forma que ele desviava a comida do local, mas estava sem forças para perguntar. Ele também se sentiria obrigado a disfarçar e talvez até desistisse de comer para não me deixar preocupada.
Encarei , que o olhava com o sorriso murchando, provavelmente percebendo a mesma coisa que eu. Após respirar fundo, tornou-se mais séria ao confrontá-lo.
“Falando numa boa, cara... Você tá bem?”
parou por um instante e afirmou com a cabeça, me olhando logo em seguida. Eu encolhi os ombros, sentindo certo remorso. Cocei o canto da testa, mordendo o lábio inferior enquanto pensava. Ela estava visivelmente curiosa, e igualmente preocupada com . Me senti na obrigação de esclarecer as coisas, então decidi quebrar aquele silêncio com minha fala.
“ acha que está se aproveitando do momento ruim entre e eu, para se aproximar e... ficar comigo.” Engoli a seco, sentindo os dois me olharem. Voltei a mirar meu prato, brincando com o garfo, e continuei a falar logo após respirar fundo. “Isso é uma mentira, obviamente. namora Lis e é meu melhor amigo. Estávamos resolvendo nossas questões de amizade, e ouviu frases que na cabeça dele, soavam como algo mais romântico, íntimo, e não como dois amigos se entendendo. O que ele ouviu estava completamente descontextualizado; estava apenas... sendo sincero e fazendo as pazes comigo.”
“E então ele tirou conclusões precipitadas?” completou, me olhando com uma careta de dor.
“Exatamente.” Respondi, sentindo o peito doer. deixou o garfo descansando. Cruzou os braços, enquanto me olhava de soslaio sem dizer nada.
“E aí... partiu pra cima de ?” completou e eu afirmei com um aceno.
“Que merda.” Ela disse, balançando a cabeça em negação. “E agora?” Nos olhamos por um tempo, e foi quem quebrou o clima, me olhando sério.
“E agora você vai comer, tomar um banho e dormir.” Falou peremptório, se virando pra mim e apontando pro meu prato. “Vamos, pequena. Prova aí, tá bonzão.”
Eu sorri sem mostrar os dentes, e suspirei, começando a comer.
Não fiz questão de comer tudo, mas consegui boa parte, o que deixou meus amigos mais tranquilos. Acabei fazendo exatamente o disse e me banhei após o jantar, indo dormir com me amparando. Em nenhum momento vi chegando, o que particularmente me deixava menos tensa, já que eu tinha tantos sentimentos dentro de mim que não sabia o que faria primeiro: se gritava, se esperneava, se chorava, se ignorava, se xingava.
Além disso, adormeci sem precisar lidar com Charlotte e, quando acordei no dia seguinte, ela não estava na cabana, o que me fez respirar menos aflita. Apesar das coisas da noite passada estarem mais assentadas dentro de mim, o sentimento de decepção era grande, e eu finalmente tinha decidido sobre minha relação com .
Isso significava que, quando a rotina dos grupos terminasse, eu o chamaria para conversar e terminaria tudo. Estava insustentável continuar, mesmo antes de qualquer briga com ou coisa do tipo. Depois de tudo então... ficou pior ainda.
No início da manhã, não encontrei ninguém além de , mas na hora do almoço, todos menos almoçamos juntos, apesar do refeitório estar cheio. nos revelou que não apresentou nenhuma costela fraturada no raio-x feito, entretanto, o local estava com hematomas, o que fez com que o se mantivesse sem esforços desnecessários no acampamento. O também disse que isso deixou o professor irritado, uma vez que o mais velho gostaria de colocar para ajudar nos trabalhos braçais dos projetos.
Sem puxar mais o assunto dos motivos do em começar uma briga, comentou sobre as obrigações que ele e teriam de fazer por terem brigado, e meu melhor amigo acabou aceitando participar de mais um projeto para não precisar ir direto para a prova de recuperação.
explicou que, depois que tudo foi dito, não negou as merdas que fez mas ainda demonstrou-se raivoso, o que fez com que o professor ficasse irredutível, não dando outra chance para ele. Além de ser obrigado a sair dos projetos, iria direto para as provas de recuperação quando retornássemos do passeio, com o agravante de ter a briga registrada em seu histórico escolar.
Sobre o segundo projeto de , ele preferiu entrar no grupo de no lugar de , para ajudar o , além de não precisar se integrar à um novo, com outras pessoas.
Depois do almoço, tivemos um tempo de descanso no qual jogamos conversa fora. Estávamos sentados nos bancos de madeira quando vi ao longe andando devagar, com Charlotte ao seu lado. Ele conversava com ela, cabisbaixo, e ela parecia atenta ao que ele dizia.
Fiquei olhando para eles, me sentindo uma invasora de privacidade, mas isso não me fez desviar o olhar. Muito menos quando ergueu a cabeça e, curiosamente, olhou em minha direção.
Eu estava sentada com as pernas em chinês, ao lado de uma falante com o . estava do meu outro lado e mexia no celular, provavelmente falando com Lis. E eu estava li, com a cabeça encostada em seu ombro e recebendo um afago nos cabelos, imersa na imagem de me encarando de volta, com muitos sentimentos inexplicáveis fluindo através daquele contato visual.
Ergui minha cabeça, saindo do carinho de , que de prontidão ergueu os olhos do celular e me observou, buscando silenciosamente o motivo da mudança de postura. Rapidamente, seguiu meu olhar e logo entendeu ao avistar nos olhando, parado em pé, com Charlotte ao seu lado.
Nós ficamos assim por um tempo, até que eu decidi que faria nada naquele momento; estávamos prestes a retornar às atividades e eu não me desgastaria com uma conversa com , tendo nossos amigos e o resto do acampamento de plateia. Eu sabia que era o foco das fofocas do dia, então já era difícil o suficiente ignorar os olhares e cochichos. Não queria dar mais motivos para a proliferação dessas coisas.
Por isso, apenas voltei a retesar a cabeça no ombro de , que pousou a mão sobre meus cabelos, continuando com o carinho lento e ritmado, me trazendo calma. Vi o momento que expirou com força e disse algo para Charlotte, voltando a caminhar mais rápido, mesmo com a dificuldade de fazê-lo. Seu olhar endurecido se desgrudou do meu, segundos depois, e eu fiquei acompanhando os dois até sumirem pela entrada da sala de um outro projeto; provavelmente um que Charlotte supervisionava, já que não tinha mais nenhum envolvimento.
“Está tudo bem?” A voz aveludada e sutil de vibrou perto do meu ouvido – ele aproximou sua boca para perto de mim e eu ignorei um arrepio solitário passeando pela coluna. Ergui a cabeça lentamente e olhei dentro dos seus olhos, sentindo dificuldade em encará-lo.
Ficamos um tempo assim e eu suspirei, apenas acenando e voltando a me aninhar em seu ombro como um bichinho indefeso. Ele me acolheu num abraço de lado e pousou seu queixo em minha cabeça.
“Vai ficar tudo bem. Você vai ver.”
Era o que eu mais desejava, enquanto reprimia a vontade de me esconder em seu pescoço e jamais ter que lidar com todas aquelas sensações que tomavam minha mente.
Eu só queria paz.
[...]
“Tu me pertences, Fernando; és meu, meu só, comprei-te, oh! Sim, comprei-te muito caro...” Falei com a feição fechada, e , encarnado no Seixas, franziu os olhos e se virou, aturdido. “Pois foi ao preço de minhas lágrimas e das ilusões de minha vida...” Concluí, sabendo que o script indicava que Seixas não ouvira a última frase.
virou-se para mim, sarcástico e fingido.
“O lenço?”
“O lenço?...” Repeti, propositalmente olhando o chão e avistando o pequeno tecido. A frase de Seixas indicava-o como alguém que não ouvira Aurélia, e essa, por sua vez, de branda tornou-se brava.
“Tem razão!... É o único amor que pode haver entre nós! Se fosse possível que eu decaísse de minha virtude, e até da minha altivez, havia um homem a quem não me rebaixaria jamais! De todas as indignidades, a maior seria a profanação do único amor de minha vida!” Minha voz soou imperativa, e eu fui para o que seria a janela, ficando ali com uma postura austera e indignada.
se aproximou com um semblante arrependido, tal qual Seixas, e depois de um tempo, timidamente se pronunciou.
“O ar da noite deve fazer-lhe mal, sobretudo agitada como está.” Sua voz soou complacente e suave.
“Engana-se! Estou calma; perfeitamente calma!” Bradei, seguindo para a porta. me seguiu a passos incertos, como quem quisesse se desculpar, mas a porta abriu, indicando a jovem que interpretava D. Firmina.
“Bravo! Já de pé?” Ela perguntava, depois do mal súbito que acometera minha personagem.
“E pronta para dançar!” Respondi, risonha, e assim, o ato se findava.
A professora Strauss bateu palmas, com um sorriso iluminado no rosto.
“Agora sim! Aurélia cheia de atitudes, Seixas completamente confuso! Estou muito orgulhosa de vocês, meus jovens! Fica apenas faltando a cena final, mas por hoje é só! Vamos arrumar o local e depois disso estão dispensados, pessoal! Parabéns pelo ensaio!” Ela puxou uma salva de palmas e todos nós repetimos, sorridentes.
Enquanto arrumávamos o local, eu ainda pensava no rebuliço de coisas dentro de mim; principalmente tomada por Aurélia e os sentimentos confusos em relação ao Seixas.
Talvez tivéssemos algumas semelhanças entre personagem e atriz, mas balancei a cabeça ao pensar que, novamente, estava viajando nos pensamentos, correndo sério risco de me perder por lá.
Eu ainda estava tremendo por dentro só de pensar na cena final, quando se aproximou de mim com um sorriso ligeiramente indecente. Estávamos terminando a arrumação, rumando para a saída, quando eu desisti de disfarçar o incômodo de seu olhar sobre mim. O encarei com a sobrancelha erguida, mascarando o nervosismo.
“Que foi?” A feição dele se tornou mais expressiva e deu de ombros.
“Você, toda pomposa de Aurélia! Quem diria, hein?” Ele deu um soquinho no meu ombro, enquanto eu ria levemente, ao sair do lugar com meu melhor amigo ao lado.
“Usando toda raiva para interpretar uma mulher como a Dona Camargo! Descobri um dom, curtiu?” Brinquei sorridente e ele umedeceu os lábios, sorrindo de volta enquanto concordava.
“Você tá se saindo muito bem, mas não é nenhuma novidade pra mim.” E me olhou de soslaio. Eu sorri abertamente.
“E você de Seixas? Tá fazendo um ótimo papel de cuzão!” Eu ri da cara dele debochada.
“Será que é meu dom?” Ele perguntou com uma careta e eu gargalhei, dando um tapa no seu ombro.
“Idiota.” Ele colocou a mão no peito de forma dramática.
“Você não tem pena de agredir verbal e fisicamente um ferido? Olha bem pro meu estado!” Eu rolei os olhos.
“O ensaio já acabou, .”
“Você é uma pessoa sem coração, . Francamente...” Ele falou falsamente indignado. Eu fiz um carinho em seu ombro, olhando pra si.
“Vai ficar tudo bem, você supera.” E, quando olhei para frente, avistei ao longe entrando em sua nova cabana.
Meu sorriso murchou e eu respirei fundo.
Estava sozinho e talvez aquela fosse a minha deixa.
Engoli a seco e parei de andar, me virando para meu melhor amigo.
“, eu... preciso fazer uma coisa agora.” Ele parou e me encarou por um tempo, sério, e apenas acenou com a cabeça. Era bom saber que com ele, eu não precisava explicar tanta coisa...
“Tem algo que eu possa ajudar?” Ele perguntou preocupado e eu suspirei, negando.
“Preciso fazer sozinha...” Respondi, e ele concordou, me olhando. “Depois eu encontro você e o pessoal, tá?”
“Tá certo. Boa sorte, e se lembra de que vai ficar tudo bem. Vou estar te esperando quando... acabar.” A última palavra teve um sentido maior, diante do contexto, e eu apenas afirmei, me despedindo com um pequeno sorriso e me dirigindo na direção de .
Eu andei a passos rápidos, sentindo a coragem, o nervosismo, a ansiedade... Tudo vir de uma vez só. Mas eu faria aquilo.
Quando dei por mim, estava diante da entrada da cabana.
Respirei fundo umas duas vezes e ergui a mão para bater na porta, quando a percebi entreaberta. Prendi a respiração quando ouvi a voz de .
“Eu não aguento mais isso, sabe? É muito pra mim.” Ele dizia de forma dolorida, e eu prendi o lábio inferior.
“Eu imagino...”
Meus olhos se arregalaram quando eu escutei a outra voz. Era uma voz feminina, que eu conhecia muito bem. Então, ele não estava sozinho como eu imaginava. Mas o que ela fazia ali?
“Pior de tudo é ter que vê-los tão juntos mesmo depois de tudo, Charlotte. Ela nem sequer me procurou pra nada! Por quê?”
O frio na minha barriga era grande, e minhas mãos suavam demais. Ele obviamente falava de mim e , mas depois de tudo, ele esperava uma ação de minha parte!?
A voz de Charlotte soou novamente.
“Eu não sei dizer, . Mas ela não me parecia bem ontem. Por que fez isso?” Surpreendentemente, ela faz uma pergunta sensata e nem um pouco tendenciosa.
Ouvi suspirar.
“Eu pirei ao ver aquilo, cara! E aquelas falas, aquela aproximação... Você tinha que ver como eles estavam, Charlotte! Porra! Eu não significo... nada?” A voz dele saiu trêmula, e então eu ouvi o fungar.
Ele estava chorando.
Minha respiração falhou quando constatei isso.
“Calma... Vem cá, não fica assim.” Ela falou, e por um tempo, era só o barulho da respiração pesada de .
O silêncio dentro da cabana só indicava o quanto ele deveria estar mal, chorando no colo de Charlotte.
Eu estava sentindo meu coração apertado, engolindo a seco. Apesar de todas as coisas erradas que ele fez, também sofria. No fim das contas, estava ruim para nós dois, e eu não queria que aquilo continuasse.
Tomei alguns momentos de coragem, até que meus dedos tocaram levemente a madeira da porta, e eu abri, entrando com passos incertos.
Eu abri a boca para falar, mas nenhum som saiu.
Meus olhos estavam grudados na cena diante de mim, e eu não consegui reagir nem falar nada; tamanho era meu choque ao ver aquilo.
Meus olhos piscaram duas, três vezes, e então eu percebi que era real.
Havia .
Havia Charlotte.
E havia um beijo entre eles.
A minha sorte foi quando, do outro lado, alguém abriu a cabana, chamando minha atenção. Por sorte ou por fé, se tratava de descendo as escadas.
“! Socorro, me ajuda!” Eu berrei para ele, que se virou alarmado e precisou apenas de um segundo para entender o que estava acontecendo. Saiu correndo na direção dos meninos e se meteu no meio.
“Que merda é essa, gente? Parem com isso, porra!” Ele tentava separar os dois, sem muito sucesso; parecia que ambos estavam num modo alucinado de briga, e só viam o oponente como foco a ser atingido.
Sem ter mais o que fazer, eu saí correndo em direção ao refeitório, e nunca fiz um trajeto tão rápido em tão pouco tempo. Entrei no local arfando, e felizmente esbarrei em , que estava na fila para pegar comida.
“, me ajuda! e estão brigando!” A segurei pelos ombros, desesperada. Ela arregalou os olhos em choque.
“O quê? Como assim? Ai Meu Deus!” E olhou em volta, chamando a atenção do professor de educação física. “Professor, tem briga rolando lá fora!” Ela berrou enquanto segurava minhas mãos.
O homem logo se virou em nossa direção, e andou a passos largos, sendo seguido pela professora de literatura.
“Briga? Onde!?” Ele perguntou com firmeza, passando por nós apressadamente.
“Perto da minha cabana!” Eu respondi com a voz chorosa, e quando ele avistou tentando separar os meninos inutilmente, saiu correndo, sendo seguido pela professora, dois rapazes monitores e... Charlotte.
Ignorei a presença dela, seguindo com logo atrás do professor. Pude ver o momento no qual ele se atirou entre e , nervoso.
“MAS QUE DIABOS ESTÁ ACONTECENDO AQUI?” Ele bradou, separando os dois com facilidade, mantendo os braços abertos e abrindo espaço entre os garotos.
Nenhum deles respondeu; era segurado por e , por um dos monitores. Ambos se debatiam, tentando se soltar, e o professor tornou a falar.
“EU PERGUNTEI O QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI, SENHORES?” A voz imperativa fez com que os dois parassem de se mover, mas ainda trocavam olhares assassinos.
O estrago era grande.
estava com o supercílio sangrando e a boca também, com um hematoma no alto da bochecha esquerda. Segurava as costelas como se tivesse sido atingido ali, e respirava com rapidez.
estava com o hematoma no rosto, o nariz sangrando, e a blusa rasgada. Cuspiu sangue perto dos pés de , provocando o mesmo, que deu um impulso para frente, como se não estivesse satisfeito de tudo que já tinha acontecido.
“Já chega! Os dois, para a enfermaria!” O professor mandou, e todos presentes seguiram para o local. Charlotte seguiu logo atrás de , com as mãos unidas perto do peito. Sua cara era de aflição, e eu encarei aquilo sem saber o que sentir.
me abraçou e percebi que meu corpo ainda estava trêmulo.
“, o que aconteceu?” Ela perguntou preocupada, caminhando ao meu lado com os braços ao meu redor. Eu me encolhi, tentando encontrar as palavras, mas nada fazia sentido.
“, ele... empurrou, falou aquelas... Coisas! Socou depois de falar e... Briga! Eu não consegui fazer parar.” Levantei o olhar para , sentindo a respiração falhar e tendo dificuldade para falar.
“Shhh, tá tudo bem agora, . Calma, a gente vai resolver isso. Vamos, eu vou pegar um copo d’água para você.” Ela disse me apertando delicadamente e eu voltei a chorar, assustada com tudo que aconteceu.
Chegamos na enfermaria, e o professor colocou e sentados na recepção, consideravelmente afastados um do outro, enquanto o resto do pessoal se mantinha no outro canto da sala, observando tudo. E então, o homem de meia idade começou a falar.
“Inadmissível! Inacreditável! Dois rapazes, prestes a se formar no ensino médio, brigando no meio do passeio a ponto de irem pra enfermaria! Qual é o problema de vocês, hein!?” O silêncio dos garotos fez uma veia saltar na testa do professor. “Eu quero uma explicação agora!” O berro fez com que os olhares dos meninos encarassem o homem, e estalou a língua ao cruzar os braços.
“Pergunta para o ele, professor. Foi quem começou tudo, vindo para cima de mim completamente louco.” Sua voz saiu grave e áspera, e logo o se irritou com aquela acusação, virando-se indignado para .
“Você é um filho da puta manipulador, me apunhalou pelas costas!”
“Ei! Olha o palavreado, Sr. !” O professor se irritou, voltando o olhar para . “Pode explicar o que ele quis dizer com isso, Sr. ?”
bufou, rolando os olhos.
“Ele é maluco e quando vê uma coisa, interpreta de qualquer jeito! Viajou em tudo que pensou e fez!”
“Então você não nega que começou a briga, Sr. ?” se virou para o professor com o maxilar trincado e suspirou, concordando com o que foi dito. “Qual foi a causa?”
e se olharam por um tempo; o primeiro estava irado, o segundo mantinha um olhar cerrado, como se a qualquer minuto pudesse eliminá-lo só por observá-lo.
“Ah, então para brigar vocês têm disposição, mas para se explicarem preferem o silêncio? Que... ótimo!” Ele respirou fundo, segurando a base do nariz enquanto fechava os olhos. Se manteve assim por um tempo, e quando os abriu, começou a falar mais baixo, sem perder a aspereza na voz. “Querem saber? Eu não me importo com o motivo, nada justifica uma briga entre pessoas totalmente capazes de estabelecer um diálogo!”
“Ele me empurrou e me socou duas vezes antes de eu revidar!” se defendeu com as mãos voltadas para si, e riu sarcástico.
“Deveria ter ficado quieto enquanto eu acabava com você, seu talarico de mer—”
“CHEGA!” O professor berrou, se virando para . “Mais uma dessa e faço voltar para casa na força da luz, diretamente para a recuperação final, por comportamento e linguajar indevido, entendeu?”
Eu nunca tinha visto a cara do professor ficar tão irritada. Ele realmente estava chateado com aquilo. ficou olhando para o superior com um leve receio, e o professor continuou a falar.
“Se acalmem. Por hora, vocês vão receber tratamento, jantar e ir direto para o quarto de vocês. Hoje mesmo retiro você da cabana, já que foi quem começou e quem aparenta estar mais descontrolado!” A rispidez do professor finalmente conseguiu balançar , que suspirou e abaixou a cabeça, vencido. O garoto fez uma cara de dor e segurou novamente a costela, chamando a atenção do professor. “Está sentindo dor?”
nada disse; apenas trincou o maxilar e encarou o chão. O professor respirou fundo, se aproximou a passos lentos e com o indicador, cutucou o local que segurava, arrancando um gemido de dor do rapaz.
“Isso é ótimo! Você começa uma briga e ainda pode ter machucado sua costela, ? Você tem noção de que estamos num acampamento, de que vamos precisar partir para um pronto-socorro e acionar o seguro estudantil, não por uma fatalidade, mas por uma atitude descabida sua? E sua também, jovem !” encarou o professor com a boca aberta e o olhar arregalado.
“Eu deveria deixar ele me bater sem fazer nada, professor? Ninguém é de ferro!”
“Chega!” O professor berrou, passando as mãos pelo rosto, nervoso. Olhou para o chão por alguns segundos, e umedeceu os lábios antes de voltar a falar. “Levante-se, . Vou te levar ao pronto-socorro. Pegue seus documentos na cabana e vamos.”
“Eu...”
“AGORA!” O homem falou incisivamente e chegou a engolir seco, levemente assustado. Negando com a cabeça, se levantou com dificuldade e foi até a cabana. Charlotte olhou para o rapaz e para o professor, receosa.
“Vou ajudá-lo, professor.” Ela avisou, e recebeu um aceno em concordância do mestre, que respirava pesadamente. Por fim, ele olhou para e voltou a falar.
“, você é amigo do , certo?” concordou com a cabeça, e ele respirou fundo. “Se importa de nos acompanhar? Por mais que ele não mereça, seria interessante alguém mais próximo conversar com ele para ver se algum juízo entra ali. Estou nervoso e chateado demais para ter uma conversa amena...” Ele foi sincero e se levantou de prontidão.
“Relaxa, fessô. Vou lá pegar minha carteira e encontro vocês.” O professor agradeceu com um manejar de cabeça e olhou para .
“Amanhã conversaremos sobre o que será feito. Aguarde as orientações e esteja disposto, pois já adianto que nem você nem ele ficarão impunes, entendeu? Agora pode ir para a sala ambulatorial, que eu levarei para a emergência.”
levantou a contragosto, e caminhou para o ambulatório, dando uma última olhada para trás e encontrando meus olhos marejados. Deu um fraco sorriso e desapareceu no corredor, me dando um aperto no peito só por não vê-lo – mesmo sabendo que estava logo ali.
“Charlotte também lhe acompanhará?” A professora perguntou e ele olhou para mim e , sendo minha amiga a portadora da voz sensata e direta.
“Professor, numa boa. Não bota mais lenha na fogueira. Manda essa garota sossegar o facho aqui no acampamento mesmo.” O professor arregalou levemente os olhos e fez uma cara de compreensão. Ele me olhou mais uma vez e eu fechei a cara, olhando pro chão.
Não que Charlotte fosse o foco de alguma coisa, mas só de pensar nela, ainda mais naquele momento, me irritava muito. Ele suspirou e deu de ombros.
“Obrigada pela sinceridade, Srta. Amaral. Charlotte fica e ajuda na supervisão enquanto estou fora.” Respirei mais fundo, aliviada ao ouvir aquilo. “Você dá conta do resto?” Ele perguntou ao se virar para a professora, que respondeu afirmativamente com um aceno, e ambos se despediram com um olhar significativo. Ele saiu a passos apressados e a mulher nos olhou com seriedade.
“O resto está dispensado!” Ela disse, se virando para o resto do pessoal.
Ninguém ousou questioná-la, e eu me abracei mais ainda quando saí dali sendo amparada por e a própria professora de literatura.
“Querida, o que aconteceu?” A mais velha me perguntou quando saímos do local, e eu respirei fundo, parando de andar. Percebi que os outros monitores pararam também, se voltando para mim.
Me senti sufocada pela atenção recebida, e os olhares indagadores. Entretanto, precisava dar uma justificativa. Então juntei forças e comecei a narrar o ocorrido.
“ começou a dizer coisas sem nexo depois de aparecer de supetão, enquanto eu conversava com . Ele o acusou de coisas nada a ver e começou a empurrá-lo e então o socou. revidou e... foi isso.”
Tentei ser o mais sucinta possível, sentindo minha garganta arranhar enquanto falava. Ainda fungava quando um dos monitores sorriu sem graça e se pronunciou.
“Pô, mas o chamou o de talarico, dizendo que o apunhalou pelas costas... então eles estavam brigando por causa de você, né?”
A professora bufou, rolou os olhos e eu suspirei ao encarar o rapaz. Apesar de ter razão, aquilo não era mesmo o que eu precisava ouvir no momento! Acho que minha feição disse tudo, e a autoridade do recinto interviu por mim.
“Não importa o motivo, foi como o professor falou: eles eram capazes de dialogar. Agora vamos cada um cuidar da própria vida e seguir para o jantar. Vamos circulando!” A frase final foi dita de forma mais imperativa, e os monitores se puseram a andar apressados, com receio de receber mais um esporro da professora.
Ela suspirou e me olhou de forma reflexiva.
“Eu não sei se foi por isso mesmo, Srta. . Mas não se sinta culpada pelas atitudes deles. Entendo que essa fase é delicada, hormônios à flor da pele, tudo parece ser muito intenso e realmente é. Então essas coisas acabam acontecendo, e tivemos que ser duros com os garotos para que entendam que não é assim que se resolvem os problemas. Espero que tudo fique bem e se precisar, conte comigo, tá bem?”
Foram poucas e simples palavras, mas aquilo me deixou levemente mais calma.
“Obrigada, professora.” Eu respondi e ela me olhou carinhosamente, colocando a mão no meu ombro.
“Por acaso isso tem a ver com a cena final da peça?” Indagou de forma tranquila, e eu neguei. “Bom, menos mal. Eu não quero causar problemas para você.”
“Não causou, professora. É realmente o que foi dito, as coisas não se resolvem assim. Enfim... vai ficar tudo bem.”
Ela me olhou por um momento e concordou, apontando o refeitório com a cabeça.
“Vamos jantar, sim?” E começou a andar na nossa frente, fazendo com que eu e seguíssemos um pouco mais atrás.
Eu não queria ir, então meus passos e tornaram vagarosos e meus olhares iam vez ou outra para a enfermaria, atrás de mim; queria saber de , se estava bem, se precisava de algo. A minha raiva com era tão grande que eu sequer estava ligando para fato de Charlotte ter sumido ao ir atrás dele.
Bem no fundo, estava preocupada com a costela do , mas foi o que o professor havia dito: ele provocou, ele pediu por aquilo! Teve consequências! E mesmo não merecendo, uma pequena parte de mim se preocupava com ele, apenas nesse aspecto.
Na verdade, a sensação que dava era que eu queria ver bem para poder arrebentá-lo com todos socos e pontapés possíveis!
Sim, a minha raiva era bem grande.
Felizmente, eu não estava em condições de dar asas àquela vontade, então apenas me detive em caminhar em direção ao refeitório com ao meu lado.
“Você não precisa falar mais nada, . Dá um descanso pra si mesma, tá bem?” Ela me confortou e eu afirmei com a cabeça, respirando fundo.
Chegamos lá e eu só agia no modo automático. Não consegui comer quase nada; apenas ingeri uma maçã forçadamente, porque praticamente me deu na boca.
Percebi que Charlotte entrou no local sem falar com ninguém, cabisbaixa. Pegou um prato de comida e sentou-se isolada de todos. Eu observei a cena sem dizer nada, apenas cansada demais com tudo, voltando a encarar meus próprios dedos.
tentou iniciar um assunto aleatório, mas eu não reagia; a conversa permaneceu um verdadeiro monólogo sobre o molho delicioso que eu estava perdendo, e eu só sentia meu corpo pesar, exausto. As cenas da briga estavam na minha cabeça, presas como um inseto na teia de aranha. Não era possível que as coisas tivessem chegado àquele ponto!
Por que? Por minha causa? estava completamente enganado, ouviu as coisas e pensou um monte de besteiras! Pegou o bonde andando e tomou suas próprias conclusões, arriscando sua integridade física e a de !
E eu não pude fazer nada além de gritar... Ele sequer me ouvia!
Definitivamente as coisas precisavam ser resolvidas.
Curiosamente, quando esse pensamento passou pela minha cabeça, um vulto na porta do refeitório chamou minha atenção e eu levantei a cabeça alarmada, notando com um curativo no rosto inchado e ferido.
não tinha percebido ainda a presença dele, mas eu nem liguei para isso: saí correndo na direção de e, sem nem pensar duas vezes, o abracei chorosa. Seus braços me envolveram de prontidão, na mesma intensidade.
“Me desculpa!” Eu me ouvi falando de forma abafada, por estar com a cara enfiada no seu peito. Ele me manteve um pouco no abraço, mas logo segurou meus ombros me afastando de si para olhar nos meus olhos. Doía só de reparar nas feridas causadas pela briga. Mas seguia sendo uma das coisas mais lindas que eu já tinha visto na vida, com um sorriso doce e calmo – tudo que eu não sentia naquele momento.
“Você tá de sacanagem, né?” Eu arregalei os olhos e neguei com veemência, não entendendo a fala de .
“Se não fosse por mim, vocês não teriam brigado, e nada disso teria—” Ele me interrompeu, com o sorriso abandonando seus lábios.
“Ei, eu não quero ouvir isso! Você não tem culpa de nada! Ele que é maluco e fez merda.” Eu respirei fundo, com os olhos marejados.
“Você se machucou por minha causa...” Eu disse com a voz embargada e ele negou com a cabeça, com o cenho franzido.
“Não mesmo. Foi tudo entre e eu! Você não tem nada a ver com isso. Para de pensar essas coisas sem sentido. Repete comigo: não é minha culpa.” Eu o olhei chorosa, prendendo o lábio inferior nos meus dentes. me olhou sério.
“... Por favor, vai?” Eu soltei o ar pelos lábios trêmulos.
“Não é minha culpa.” Falei as palavras depois de um tempo. Elas saíam de minha garganta como se fossem pedras.
“De novo.” Ele pediu, atento.
“Não é minha culpa...” A frase saiu mais leve e ele sorriu conforme eu ficava mais calma.
“Isso. Agora repete comigo: é um cuzão.”
Eu automaticamente parei, olhei pra ele e soltei uma risada misturada com choro, limpando meu rosto.
“...” Falei encarando o chão, embora concordasse com ele de alguma forma.
“Tá, tá... Foda-se ele. Já jantou?” Ele perguntou como se fosse nada. Eu afirmei, dando de ombros.
“Comi uma maçã.” Respondi enquanto terminava de limpar o rosto.
“Então não jantou. Vamos, não vai deixar de se alimentar por causa disso. E eu estou faminto também.”
Eu não consegui argumentar, já que ele envolveu meus ombros e me puxou para dentro, me obrigando a fazer um prato decente de strogonoff, com direito a camada extra de batata palha.
“Do jeito que tu gosta.” Ele disse sorridente, e eu afirmei com um sorriso mínimo.
Pegou nossos pratos e foi até a mesa, encontrando , que nos esperava com olhares curiosos.
“E aí, Amaral.” disse, colocando o meu prato do lado dele, me fazendo sentar logo ali. me olhou como se buscasse algum sinal de tristeza, e sorriu quando eu fiz o mesmo, segundos antes. Queria assegurá-la de que tudo estava se encaminhando pra ficar bem, mesmo que eu me sentisse na merda. Não queria ninguém se preocupando demais comigo.
“Gostei do curativo!” comentou malandramente e deixou uma risadinha escapar.
“Vai se ferrar, garota.” E comeu com cuidado, sentindo o ferimento da boca reclamar. Eu suspeitava que ele tivesse ferido o lábio inferior na parte interna, pela forma que ele desviava a comida do local, mas estava sem forças para perguntar. Ele também se sentiria obrigado a disfarçar e talvez até desistisse de comer para não me deixar preocupada.
Encarei , que o olhava com o sorriso murchando, provavelmente percebendo a mesma coisa que eu. Após respirar fundo, tornou-se mais séria ao confrontá-lo.
“Falando numa boa, cara... Você tá bem?”
parou por um instante e afirmou com a cabeça, me olhando logo em seguida. Eu encolhi os ombros, sentindo certo remorso. Cocei o canto da testa, mordendo o lábio inferior enquanto pensava. Ela estava visivelmente curiosa, e igualmente preocupada com . Me senti na obrigação de esclarecer as coisas, então decidi quebrar aquele silêncio com minha fala.
“ acha que está se aproveitando do momento ruim entre e eu, para se aproximar e... ficar comigo.” Engoli a seco, sentindo os dois me olharem. Voltei a mirar meu prato, brincando com o garfo, e continuei a falar logo após respirar fundo. “Isso é uma mentira, obviamente. namora Lis e é meu melhor amigo. Estávamos resolvendo nossas questões de amizade, e ouviu frases que na cabeça dele, soavam como algo mais romântico, íntimo, e não como dois amigos se entendendo. O que ele ouviu estava completamente descontextualizado; estava apenas... sendo sincero e fazendo as pazes comigo.”
“E então ele tirou conclusões precipitadas?” completou, me olhando com uma careta de dor.
“Exatamente.” Respondi, sentindo o peito doer. deixou o garfo descansando. Cruzou os braços, enquanto me olhava de soslaio sem dizer nada.
“E aí... partiu pra cima de ?” completou e eu afirmei com um aceno.
“Que merda.” Ela disse, balançando a cabeça em negação. “E agora?” Nos olhamos por um tempo, e foi quem quebrou o clima, me olhando sério.
“E agora você vai comer, tomar um banho e dormir.” Falou peremptório, se virando pra mim e apontando pro meu prato. “Vamos, pequena. Prova aí, tá bonzão.”
Eu sorri sem mostrar os dentes, e suspirei, começando a comer.
Não fiz questão de comer tudo, mas consegui boa parte, o que deixou meus amigos mais tranquilos. Acabei fazendo exatamente o disse e me banhei após o jantar, indo dormir com me amparando. Em nenhum momento vi chegando, o que particularmente me deixava menos tensa, já que eu tinha tantos sentimentos dentro de mim que não sabia o que faria primeiro: se gritava, se esperneava, se chorava, se ignorava, se xingava.
Além disso, adormeci sem precisar lidar com Charlotte e, quando acordei no dia seguinte, ela não estava na cabana, o que me fez respirar menos aflita. Apesar das coisas da noite passada estarem mais assentadas dentro de mim, o sentimento de decepção era grande, e eu finalmente tinha decidido sobre minha relação com .
Isso significava que, quando a rotina dos grupos terminasse, eu o chamaria para conversar e terminaria tudo. Estava insustentável continuar, mesmo antes de qualquer briga com ou coisa do tipo. Depois de tudo então... ficou pior ainda.
No início da manhã, não encontrei ninguém além de , mas na hora do almoço, todos menos almoçamos juntos, apesar do refeitório estar cheio. nos revelou que não apresentou nenhuma costela fraturada no raio-x feito, entretanto, o local estava com hematomas, o que fez com que o se mantivesse sem esforços desnecessários no acampamento. O também disse que isso deixou o professor irritado, uma vez que o mais velho gostaria de colocar para ajudar nos trabalhos braçais dos projetos.
Sem puxar mais o assunto dos motivos do em começar uma briga, comentou sobre as obrigações que ele e teriam de fazer por terem brigado, e meu melhor amigo acabou aceitando participar de mais um projeto para não precisar ir direto para a prova de recuperação.
explicou que, depois que tudo foi dito, não negou as merdas que fez mas ainda demonstrou-se raivoso, o que fez com que o professor ficasse irredutível, não dando outra chance para ele. Além de ser obrigado a sair dos projetos, iria direto para as provas de recuperação quando retornássemos do passeio, com o agravante de ter a briga registrada em seu histórico escolar.
Sobre o segundo projeto de , ele preferiu entrar no grupo de no lugar de , para ajudar o , além de não precisar se integrar à um novo, com outras pessoas.
Depois do almoço, tivemos um tempo de descanso no qual jogamos conversa fora. Estávamos sentados nos bancos de madeira quando vi ao longe andando devagar, com Charlotte ao seu lado. Ele conversava com ela, cabisbaixo, e ela parecia atenta ao que ele dizia.
Fiquei olhando para eles, me sentindo uma invasora de privacidade, mas isso não me fez desviar o olhar. Muito menos quando ergueu a cabeça e, curiosamente, olhou em minha direção.
Eu estava sentada com as pernas em chinês, ao lado de uma falante com o . estava do meu outro lado e mexia no celular, provavelmente falando com Lis. E eu estava li, com a cabeça encostada em seu ombro e recebendo um afago nos cabelos, imersa na imagem de me encarando de volta, com muitos sentimentos inexplicáveis fluindo através daquele contato visual.
Ergui minha cabeça, saindo do carinho de , que de prontidão ergueu os olhos do celular e me observou, buscando silenciosamente o motivo da mudança de postura. Rapidamente, seguiu meu olhar e logo entendeu ao avistar nos olhando, parado em pé, com Charlotte ao seu lado.
Nós ficamos assim por um tempo, até que eu decidi que faria nada naquele momento; estávamos prestes a retornar às atividades e eu não me desgastaria com uma conversa com , tendo nossos amigos e o resto do acampamento de plateia. Eu sabia que era o foco das fofocas do dia, então já era difícil o suficiente ignorar os olhares e cochichos. Não queria dar mais motivos para a proliferação dessas coisas.
Por isso, apenas voltei a retesar a cabeça no ombro de , que pousou a mão sobre meus cabelos, continuando com o carinho lento e ritmado, me trazendo calma. Vi o momento que expirou com força e disse algo para Charlotte, voltando a caminhar mais rápido, mesmo com a dificuldade de fazê-lo. Seu olhar endurecido se desgrudou do meu, segundos depois, e eu fiquei acompanhando os dois até sumirem pela entrada da sala de um outro projeto; provavelmente um que Charlotte supervisionava, já que não tinha mais nenhum envolvimento.
“Está tudo bem?” A voz aveludada e sutil de vibrou perto do meu ouvido – ele aproximou sua boca para perto de mim e eu ignorei um arrepio solitário passeando pela coluna. Ergui a cabeça lentamente e olhei dentro dos seus olhos, sentindo dificuldade em encará-lo.
Ficamos um tempo assim e eu suspirei, apenas acenando e voltando a me aninhar em seu ombro como um bichinho indefeso. Ele me acolheu num abraço de lado e pousou seu queixo em minha cabeça.
“Vai ficar tudo bem. Você vai ver.”
Era o que eu mais desejava, enquanto reprimia a vontade de me esconder em seu pescoço e jamais ter que lidar com todas aquelas sensações que tomavam minha mente.
Eu só queria paz.
“Tu me pertences, Fernando; és meu, meu só, comprei-te, oh! Sim, comprei-te muito caro...” Falei com a feição fechada, e , encarnado no Seixas, franziu os olhos e se virou, aturdido. “Pois foi ao preço de minhas lágrimas e das ilusões de minha vida...” Concluí, sabendo que o script indicava que Seixas não ouvira a última frase.
virou-se para mim, sarcástico e fingido.
“O lenço?”
“O lenço?...” Repeti, propositalmente olhando o chão e avistando o pequeno tecido. A frase de Seixas indicava-o como alguém que não ouvira Aurélia, e essa, por sua vez, de branda tornou-se brava.
“Tem razão!... É o único amor que pode haver entre nós! Se fosse possível que eu decaísse de minha virtude, e até da minha altivez, havia um homem a quem não me rebaixaria jamais! De todas as indignidades, a maior seria a profanação do único amor de minha vida!” Minha voz soou imperativa, e eu fui para o que seria a janela, ficando ali com uma postura austera e indignada.
se aproximou com um semblante arrependido, tal qual Seixas, e depois de um tempo, timidamente se pronunciou.
“O ar da noite deve fazer-lhe mal, sobretudo agitada como está.” Sua voz soou complacente e suave.
“Engana-se! Estou calma; perfeitamente calma!” Bradei, seguindo para a porta. me seguiu a passos incertos, como quem quisesse se desculpar, mas a porta abriu, indicando a jovem que interpretava D. Firmina.
“Bravo! Já de pé?” Ela perguntava, depois do mal súbito que acometera minha personagem.
“E pronta para dançar!” Respondi, risonha, e assim, o ato se findava.
A professora Strauss bateu palmas, com um sorriso iluminado no rosto.
“Agora sim! Aurélia cheia de atitudes, Seixas completamente confuso! Estou muito orgulhosa de vocês, meus jovens! Fica apenas faltando a cena final, mas por hoje é só! Vamos arrumar o local e depois disso estão dispensados, pessoal! Parabéns pelo ensaio!” Ela puxou uma salva de palmas e todos nós repetimos, sorridentes.
Enquanto arrumávamos o local, eu ainda pensava no rebuliço de coisas dentro de mim; principalmente tomada por Aurélia e os sentimentos confusos em relação ao Seixas.
Talvez tivéssemos algumas semelhanças entre personagem e atriz, mas balancei a cabeça ao pensar que, novamente, estava viajando nos pensamentos, correndo sério risco de me perder por lá.
Eu ainda estava tremendo por dentro só de pensar na cena final, quando se aproximou de mim com um sorriso ligeiramente indecente. Estávamos terminando a arrumação, rumando para a saída, quando eu desisti de disfarçar o incômodo de seu olhar sobre mim. O encarei com a sobrancelha erguida, mascarando o nervosismo.
“Que foi?” A feição dele se tornou mais expressiva e deu de ombros.
“Você, toda pomposa de Aurélia! Quem diria, hein?” Ele deu um soquinho no meu ombro, enquanto eu ria levemente, ao sair do lugar com meu melhor amigo ao lado.
“Usando toda raiva para interpretar uma mulher como a Dona Camargo! Descobri um dom, curtiu?” Brinquei sorridente e ele umedeceu os lábios, sorrindo de volta enquanto concordava.
“Você tá se saindo muito bem, mas não é nenhuma novidade pra mim.” E me olhou de soslaio. Eu sorri abertamente.
“E você de Seixas? Tá fazendo um ótimo papel de cuzão!” Eu ri da cara dele debochada.
“Será que é meu dom?” Ele perguntou com uma careta e eu gargalhei, dando um tapa no seu ombro.
“Idiota.” Ele colocou a mão no peito de forma dramática.
“Você não tem pena de agredir verbal e fisicamente um ferido? Olha bem pro meu estado!” Eu rolei os olhos.
“O ensaio já acabou, .”
“Você é uma pessoa sem coração, . Francamente...” Ele falou falsamente indignado. Eu fiz um carinho em seu ombro, olhando pra si.
“Vai ficar tudo bem, você supera.” E, quando olhei para frente, avistei ao longe entrando em sua nova cabana.
Meu sorriso murchou e eu respirei fundo.
Estava sozinho e talvez aquela fosse a minha deixa.
Engoli a seco e parei de andar, me virando para meu melhor amigo.
“, eu... preciso fazer uma coisa agora.” Ele parou e me encarou por um tempo, sério, e apenas acenou com a cabeça. Era bom saber que com ele, eu não precisava explicar tanta coisa...
“Tem algo que eu possa ajudar?” Ele perguntou preocupado e eu suspirei, negando.
“Preciso fazer sozinha...” Respondi, e ele concordou, me olhando. “Depois eu encontro você e o pessoal, tá?”
“Tá certo. Boa sorte, e se lembra de que vai ficar tudo bem. Vou estar te esperando quando... acabar.” A última palavra teve um sentido maior, diante do contexto, e eu apenas afirmei, me despedindo com um pequeno sorriso e me dirigindo na direção de .
Eu andei a passos rápidos, sentindo a coragem, o nervosismo, a ansiedade... Tudo vir de uma vez só. Mas eu faria aquilo.
Quando dei por mim, estava diante da entrada da cabana.
Respirei fundo umas duas vezes e ergui a mão para bater na porta, quando a percebi entreaberta. Prendi a respiração quando ouvi a voz de .
“Eu não aguento mais isso, sabe? É muito pra mim.” Ele dizia de forma dolorida, e eu prendi o lábio inferior.
“Eu imagino...”
Meus olhos se arregalaram quando eu escutei a outra voz. Era uma voz feminina, que eu conhecia muito bem. Então, ele não estava sozinho como eu imaginava. Mas o que ela fazia ali?
“Pior de tudo é ter que vê-los tão juntos mesmo depois de tudo, Charlotte. Ela nem sequer me procurou pra nada! Por quê?”
O frio na minha barriga era grande, e minhas mãos suavam demais. Ele obviamente falava de mim e , mas depois de tudo, ele esperava uma ação de minha parte!?
A voz de Charlotte soou novamente.
“Eu não sei dizer, . Mas ela não me parecia bem ontem. Por que fez isso?” Surpreendentemente, ela faz uma pergunta sensata e nem um pouco tendenciosa.
Ouvi suspirar.
“Eu pirei ao ver aquilo, cara! E aquelas falas, aquela aproximação... Você tinha que ver como eles estavam, Charlotte! Porra! Eu não significo... nada?” A voz dele saiu trêmula, e então eu ouvi o fungar.
Ele estava chorando.
Minha respiração falhou quando constatei isso.
“Calma... Vem cá, não fica assim.” Ela falou, e por um tempo, era só o barulho da respiração pesada de .
O silêncio dentro da cabana só indicava o quanto ele deveria estar mal, chorando no colo de Charlotte.
Eu estava sentindo meu coração apertado, engolindo a seco. Apesar de todas as coisas erradas que ele fez, também sofria. No fim das contas, estava ruim para nós dois, e eu não queria que aquilo continuasse.
Tomei alguns momentos de coragem, até que meus dedos tocaram levemente a madeira da porta, e eu abri, entrando com passos incertos.
Eu abri a boca para falar, mas nenhum som saiu.
Meus olhos estavam grudados na cena diante de mim, e eu não consegui reagir nem falar nada; tamanho era meu choque ao ver aquilo.
Meus olhos piscaram duas, três vezes, e então eu percebi que era real.
Havia .
Havia Charlotte.
E havia um beijo entre eles.
Capítulo 22 - Other plans fell through, and put a heavy load on you
Uma pontada.
Uma pontada bem na boca do estômago.
Foi a única coisa que senti ao presenciar aquela cena.
O beijo intenso dos dois, bem diante dos meus olhos.
segurava os ombros de Charlotte de um jeito firme, e seus olhos estavam bem fechados enquanto seus lábios avançavam nos dela.
Por sua vez, Charlotte segurava a nuca de , como se a qualquer momento ele pudesse escapar pelas suas mãos... Ainda que os corpos dos dois estivessem cada vez mais um próximo do outro, a ponto de se friccionarem durante o beijo.
Era uma sensação muito esquisita.
Conscientemente, eu sabia que estava vendo e Charlotte se beijando com vontade. E eu sabia que estava ali, vendo tudo de camarote.
Entretanto, na minha mente, as coisas ocorriam de uma maneira mais intrigante; conseguia ver e Charlotte de anos atrás, e às vezes as imagens pareciam se mesclar. Era como se automaticamente, meus olhos fossem capazes de fazer uma comparação entre o ontem, e o hoje.
E lá estava eu testemunhando tudo, novamente.
O curioso foi perceber que, por mais envolvimento que eu tivesse com ele no presente, não estava doendo tanto quanto no passado. Aquilo era, no mínimo, estranho.
Ou talvez, se tratasse apenas da confirmação que eu ansiava em ter: eu não gostava de o suficiente para me sentir profundamente magoada. Em silêncio, me fiz a pergunta de um milhão de dólares: o que diabos eu sentia então, ao ver aquilo bem ali, na minha cara?
Uma pontada bem na boca do estômago significava o que, exatamente?
E então, eu entendi. Enquanto meus olhos acompanhavam as mãos de descerem dos ombros até à cintura dela, eu comecei a sentir um incômodo muito específico, reparando que aquele mesmo movimento das mãos dele, foi sentido pelo meu corpo, pela minha pele.
Mas não era eu ali, e eu me indagava se sentia-se melhor na companhia de Charlotte, tocando seu corpo, beijando seus lábios, sentindo seu gosto, seu cheiro, seu toque, o mordiscar no meio do beijo...
Era aquilo. Eu estava sentindo um peso no peito por estar sendo trocada por alguém que, na minha cabeça, era mais bonita, mais interessante, melhor do que eu.
Minha mente instantaneamente revisitou a imagem do corpo nu de Charlotte, perfeito e livre, naquela manhã incomum, dentro do banheiro feminino do acampamento. A confiança que ela emanava em cada ato, em cada pequeno gesto, era proporcional à minha insegurança em relação à imagem que eu tinha de mim.
Minha visão captou o momento em que a mão de alcançou o início do glúteo de Charlotte, e desceu lentamente, até trazer o corpo dela mais para si; outro movimento que meu corpo também reconheceu – já vivenciado pelo toque do .
Era isso? Eu estava me sentindo trocada, invalidada, menor ou pior do que alguém?
As coisas não estavam boas entre nós. Eu tinha ido ali para terminar todo meu envolvimento com ele, inclusive.
Então por que a pontada no estômago insistia? Por que tinha feito aquilo? Eu havia jogado ele para cima de Charlotte? Era culpa minha ele ter feito o que fez? Eu tinha direito de me sentir traída? Havia como mandar nos sentimentos?
Mesmo não gostando de , eu me sentia péssima! Descartável! Como se fosse qualquer coisa!
Apesar de toda a confusão, em momento nenhum eu fiquei com alguém ou passei por cima do meu relacionamento com ele – por mais falido que estivesse, nos últimos tempos. Ainda que eu estivesse prestes a terminar, as coisas precisavam ser feitas da maneira certa, uma vez que começaram assim.
Por que ele fez isso? Por que ele não veio conversar comigo? Será que aquilo estava acontecendo há mais tempo e eu não sabia? Pela forma como Charlotte o seguia para cima e para baixo...
A verdade é que eu não fazia ideia do quanto tempo fiquei ali, porém, tinha plena noção do quão nocivo estava sendo presenciar aquela situação toda sem fazer ou falar nada.
Independentemente de qualquer erro meu, a realidade era nua e crua – existia um limite para mim, que visivelmente, avançou a passos largos. E eu não lidaria com aquela merda sozinha.
Então decidi, pelo menos uma vez na vida, agir sem antes pensar trezentas mil vezes.
Dei um passo para frente e escancarei a porta, fazendo com que ela batesse na parede com força, e chamasse a atenção do mais novo casal, que no momento me olhava assustado. Charlotte me encarava com os olhos arregalados e o queixo caído, enquanto franzia a testa, com a boca escancarada. Sua feição se alterava para algo que eu simplesmente não consegui descrever; talvez um misto das sensações que ele sentia no momento: nervosismo, decepção, dor, descrença, medo...
Ficamos assim por alguns segundos, e eu não consegui dizer nada.
Eu estava muito decepcionada.
Olhei bem dentro dos olhos do , e fiz um movimento de negação com a cabeça.
“Eu vim aqui para conversar, mas... Acho que tá tudo resolvido, não é?” E ri sem humor, dando de ombros. “Então tá certo. Com licença.” E saí, deixando a porta aberta, enquanto descia as escadas, sentindo meu maxilar doer de tão trincado que estava.
“!” saiu apressado pela porta, correndo até me alcançar. Ele estava ofegante e me procurava com urgência. “Por favor, me escuta! E-Eu não quis, não era para ter acontecido desse jeito e—"
“Foda-se.” Eu respondi, parando de andar e me virando para ele, ao cruzar os braços. Encarava com raiva quando o interrompi.
“O-O que?” perguntou confuso.
“Eu disse ‘foda-se’, .” Respondi, respirando fundo pela primeira vez desde que vi a cena. Balancei a cabeça de um lado pro outro, pensando na ironia da vida. gostava mais de mim do que eu dele, e eu que fui ‘traída’ – se é que aquele termo cabia na nossa relação.
Comecei a rir levemente, e percebi o corpo de Charlotte parado na porta, com metade dele para fora e a outra escondendo-se na cabana. A olhei com desprezo no olhar, e devolvi a mesma emoção para , quando encarei seus olhos.
“Que se foda você, que se foda ela...” Minha voz saiu amarga e grave, e eu sorri de forma sarcástica. “Simplesmente... Foda-se.”
“, por favor, cara...” me chamou de novo, bem perturbado pelo meu estado. Eu soltei uma risada incrédula e neguei com a cabeça.
“Por favor o quê, ? Acabou.” Respondi depois de dar um longo suspiro. “Acabou, sabe? Acabou.” Eu dei de ombros, abraçando a mim mesma.
Os lábios dele se curvaram para baixo e sua voz saiu trêmula.
“Não, . Sério! Por favor, me deixa explicar!” A feição de dor se atenuou e eu respirei fundo, olhando para si.
“Não tem o que explicar. Eu não tenho nenhuma dúvida do que aconteceu ali, cara!” Apontei para a cabana e automaticamente Charlotte se encolheu no lugar. “Acabou, . Acabou, fim, já deu.”
“Não, cara! Isso foi impensado, não—”
“Tinha acabado antes de eu presenciar isso.” Expliquei olhando bem séria para ele, e os olhos do garoto começaram a liberar as lágrimas que já marejavam por debaixo dos cílios.
“Por favor...” Sua voz pediu, mas eu neguei.
“Eu sei, você sabe, nós sabemos. Não dá para continuar.” Falei encarando o chão, sentindo um bolo na garganta. “Eu vim aqui para acertar as coisas e terminar de uma forma... digna. Mas acho que, no fim das contas, só eu tinha essa postura.” E sorri zombeteira, apontando pra ele e para Charlotte.
“Cara, vamos tent-”
“Não, .” Eu respondi áspera, mudando minha feição. “Mesmo que você não tivesse se agarrado com Charlotte momentos atrás, nada mudaria. Eu tinha vindo aqui para terminar o que tínhamos, e tentar ficar amigos, quem sabe. Mas você me surpreendeu. De uma maneira que eu jamais imaginei ser surpreendida...” Falei com a voz embargada, sentindo o bolo vir à tona. “Eu achava você incrível. Confiava em você. Mas nos últimos dias, você tem mostrado facetas que eu nunca tinha visto. Coisas que eu não gostei de ver. E essa última atitude, definitivamente era tudo que eu precisava para entender que realmente não dá para forçar uma relação como a que tínhamos. Principalmente porque, seu maior medo era que eu fizesse, o que você acabou de fazer comigo.” Me obriguei a encará-lo nos olhos, e foi terrível me ver chorosa pelo olhar dele.
Ele deu um passo em minha direção, e eu dei outro para trás, erguendo a mão e solicitando silenciosamente que não tentasse. O braço erguido de que buscava me alcançar vacilou e caiu ao lado do corpo, enquanto ele chorava mais.
“Por favor, me perdoa e me dá uma chance! Eu sou apaixonado por você, cara!” Sua voz saiu levemente esganiçada. Eu o olhei impaciente.
“Qualquer um que visse o que eu vi há cinco minutos atrás jamais acreditaria nas suas palavras, .” Respondi enquanto enxugava as lágrimas. “Sério, eu esperava qualquer coisa, menos isso! Conversasse comigo, cara! Para que fazer um negócio desses!? Para que magoar deliberadamente, quando você pode dialogar? Ainda que muitas vezes eu tenha me sentido culpada por não retribuir os sentimentos, eu tinha consideração por você! Não, não namorávamos, mas a gente tinha algo! E foi acreditando nisso que eu vim falar com você! Fazer do jeito certo, . E não deixar o outro mais fodido por uma traição! Ainda mais com alguém como ela! De novo, cara!?” Esbravejei, gesticulando de maneira nervosa, sentindo a cabeça latejar e as lágrimas molharem meu rosto. “E aqui estou eu. Passando dias e dias pensando em como fazer isso de uma maneira responsável, para dar de cara com essa merda. Mas se é para ser assim, então eu digo e repito: foda-se! Foda-se, foda-se tudo e todo mundo!”
não tinha o que dizer.
Charlotte, muito menos.
Eu estava ofegante quando o vi chorar em frustração, e segurar o rosto, envergonhado.
“Merda!” Ele xingou em meio ao um berro. Eu apenas respirei fundo, sentindo meu pranto descer.
Ficamos num silêncio pesado até que aos poucos soltou as mãos do rosto e me encarou, perdido.
Começou a perder as forças na perna e quando dei por mim, ele estava ajoelhado, com as mãos viradas pra cima, encostada nas coxas – como quem suplica por algo.
“... Por favor, me perdoa! Eu fui um imbecil, mas... Tudo que eu sinto por você é real! E dói como um inferno te ver partir!” Ele se aproximou, andando de joelhos, e eu me afastei, achando um absurdo ele fazer aquilo.
“Por favor, pare! Levanta daí, !” Respondi nervosa, mas ele não parou. As lágrimas desciam de seu rosto, e ele seguiu se aproximando. Eu coloquei a mão na boca e fechei meus olhos com força, negando com a cabeça.
Aquilo não poderia estar acontecendo.
Até quando eu sempre seria a trocada?
, ... Algum momento eu seria a primeira opção de alguém?
Os braços de envolveram minha cintura e ele me abraçou, encostando seu rosto em minha barriga.
Enquanto seu pranto molhava o tecido da minha roupa, eu sentia seu corpo tremular com aquilo. Mas não fiz nada além de negar, de perceber que não queria aquele toque, não queria lidar com , não queria sentir aquela sensação de novo!
“Chega, chega! Não, não quero isso!” Consegui dar voz aos meus sentimentos e coloquei as mãos nos ombros dele, o afastando.
Ele me soltou, derrotado, e chorava olhando para as próprias mãos.
“Eu não quero humilhação. Não quero isso, . Por favor, entenda! Já não dava mais! Nós dois... não éramos pra ser.” Respondi com amargor, sentindo o bolo subir na garganta. Olhei para Charlotte, que tinha um semblante culpado, e seguia se escondendo por trás da porta, sem tirar os olhos de nós.
chamou minha atenção ao levantar devagar, e respirou fundo algumas vezes, tentando se acalmar. As lágrimas ainda desciam de seu rosto quando ele começou a falar.
“Eu não queria que fosse desse jeito. Errei feio com você... O que eu fiz não tem desculpa e eu vou entender se me odiar. Eu estou me odiando também.” Ele respondeu com a feição envergonhada e seus olhos, avermelhados do choro, me olharam receosos, aguardando uma resposta.
“Eu não queria que as coisas terminassem desse jeito também, . Mas sinceramente? Não tenho mais nada para te falar. Não agora, e acho que vai ser assim por um algum tempo.” Respondi depois de respirar fundo.
Ele me olhava negando com a cabeça, mordendo os lábios enquanto mais lágrimas caíam. Ele sabia que não havia volta, mas seguia pedindo sussurradas e sôfregas desculpas.
“Então é isso? Acabou?” Ele perguntou baixinho e eu vi um filme passar na minha cabeça, com pequenos recortes da nossa relação.
“Acabou. Independentemente de qualquer coisa... com ou sem isso tudo...” Apontei para Charlotte, me sentindo ridícula. “Acabou, . É isso”.
Ele me olhou sério, respirando fundo, e cruzou os braços. Prendeu os lábios numa linha fina, e sorriu sem um pingo de humor na face, encarando o chão.
“Você realmente o ama.” Ele disse, voltando a me olhar como se eu fosse uma preciosidade. “Você o ama de verdade.”
Meus olhos voltaram a lacrimejar e eu travei o maxilar, negando com a cabeça.
“Não mete essa agora, . É sobre mim e você. É sobre terminar algo que se iniciou. Com mais cuidado do que você teve comigo...” Levantei o olhar e engoli a seco, sentindo o bolo na garganta aumentar cada vez mais. “Mas não o coloque no meio disso. É sobre nós dois. Na verdade, sobre o fim de nós dois.”
Ele chorou mais um pouco, concordando com um aceno ínfimo.
“Você sempre o amou...” Ele encarou o chão, com o olhar perdido, e eu arfei.
Me endireitei no lugar e prendi os lábios na boca, antes de respondê-lo.
“Eu nunca escondi isso de você.” O olhei com a feição fechada, e ele voltou a me observar, com o semblante dolorido.
“Eu nunca pensei que fosse tão forte... esse amor.” Ele riu sem achar a mínima graça no que dizia, deixando as lágrimas caírem. As minhas caíram logo em seguida, conforme fui atingida pela fala legítima de .
“Eu tentei lutar contra isso, em algum ponto do nosso relacionamento, . Mas a verdade é que sim, é forte... Sempre foi.” O peito doeu ao falar aquilo, e o pranto escorreu mais, perante àquela constatação.
“Você deveria contar para ele.” disse num sussurro, com os olhos caídos em tristeza. “Deveria falar sobre seus sentimentos, .”
Eu o encarei por um momento, sem saber o que dizer. Meu coração batia rápido dentro do peito só de pensar naquela ideia, e minha mente tentava entender o diálogo que estávamos tendo, tão peculiar.
Pela primeira vez, eu ri levemente e movi os ombros sem uma resposta concreta. Apenas olhei dentro dos olhos do rapaz diante de mim e disse algo genérico:
“Se cuida, .”
Logo depois, olhei para Charlotte, que me encarava receosa. Eu sorri de maneira sarcástica e apontei para o .
“Faça bom proveito.”
Me afastei aos poucos, dando passos para trás, até que me virei para sair dali. E então, eu corri. Corri muito, corri absurdamente rápido, corri demais sentindo o vento chicotear meu rosto. E lá estava eu, de volta ao deque, sentada num canto quase imperceptível, agarrada aos próprios joelhos enquanto chorava copiosamente.
Não fui seguida e eu agradeci internamente por isso.
Olhei ao redor, e ergui a cabeça para o céu, fechando meus olhos ao sentir a brisa passar.
Inspira.
Expira.
Inspira.
Expira.
Era o que eu fazia, tentando vencer aquela sensação de invalidez, de ser descartável, de não ter valor algum.
Por que eu me sentia tão mal?
“, ... Acho que no fim das contas eu não sou boa opção pra ninguém.” Falei comigo mesma, enquanto me perdia naquela vista incrível. Eu estava pensando em como minha tristeza contrastava com a beleza daquele lugar, perfeito para sorrisos, com um pôr-do-sol digno de aplausos e alegrias. Eu me sentia exatamente o contrário: sentia-me nublada, garoando por dentro com vez ou outra um raio me partindo o peito.
Estava completamente submersa nesses sentimentos e não tinha a mínima vontade de falar com ninguém. Não queria ter que explicar toda a cena que vivi, muito menos aquilo que tinha presenciado com e Charlotte.
Era tanta coisa que eu simplesmente queria apagar e sumir.
Eu sentei num canto do deque, sumindo de qualquer brecha pra que fosse vista por alguém. Fechei os olhos e desejei, do fundo do coração, que eu estivesse vivendo outra vida, outro contexto, porque estava cansada de carregar tanta coisa e sempre ponderar horrores antes de agir.
Entretanto, algo era verdade: de uma forma ou de outra, a situação com estava resolvida.
Expirei com mais força do que costume e ri da minha própria desgraça. Contando migalhas para me sentir em vantagem em alguma coisa.
Coloquei os fones de ouvido, botei numa música calma e coloquei o celular no silencioso para não ser perturbada por ninguém.
Aquele era o meu momento, e eu me permiti estar comigo sem precisar disfarçar sentimento nenhum, ou tentar conciliar algo por pensar demais nos outros. Em algum momento, eu passei dos limites de ‘segurar a barra’, e deveria estar fazendo isso há tanto tempo que sequer notei a exaustão em mim.
Eu também me merecia.
Merecia um autocuidado.
Não consegui impedir umas lágrimas e também não fiz força para isso. Só deixei o vento secá-las, fechando os olhos e me permitindo descansar.
A melodia da música me acalmava, e em algum lugar da minha mente, eu estava distante dali, volitando um mundo completamente diferente, do qual eu já não tivesse tantas coisas para sentir, tantos pontos para pensar.
Talvez eu tornasse tudo difícil ao guardar a maior parte pra mim, também.
“Uma hora isso passa.” Falei, acreditando em zero por cento, mas repeti mentalmente até que o convencimento fosse real.
A leveza do lugar, da música nos ouvidos, o som da minha respiração, aos poucos me ajudou a acalmar. De alguma maneira, eu estaria comigo, e aquilo significava muito, porque cada vez mais me sentia amiga de mim mesma. Eu sabia dos problemas que passava, das coisas que sentia, como sentia, de seus motivos... E eu finalmente, pouco a pouco, me tornava alguém de quem me orgulhava.
Então, independente do que havia feito, independente de não me retribuir, eu sabia que merecia a felicidade. Mesmo que não fosse pelo amor de ninguém.
Talvez, apenas talvez, eu devesse ficar um tempo sozinha e aceitar que não tenha nascido para essas coisas...
Não consegui mensurar quanto tempo fiquei pensando nisso, mas uma coisa era certa: eu estava exausta. Tanto que nem percebi que havia cochilado ali, pois acordei com uma me chamando apavorada.
“!? Você tá bem!?” Eu abri os olhos alarmada, respirando com dificuldade devido ao susto.
“T-Tô, ué. O que houve?” Perguntei esfregando os olhos e só então percebi que ela estava com a feição pesada, enquanto segurava meus ombros.
“Cara! Por que você não atendeu seu telefone, sua desgraçada!?” Eu franzi o cenho e olhei em volta.
Estava tudo escuro, bem escuro. Tinha anoitecido e eu fiquei confusa devido ao estado de minha amiga.
“Eu acabei cochilando, ué! Acho que não vi...” Comentei e automaticamente conferi o celular, percebendo que tinha chamadas perdidas dela, de , de , ... Tinha até de !
Olhei para , que segurava o celular com a mão trêmula, enquanto prendia os lábios dentro da boca.
“Tá todo mundo atrás de você, cara! Não faz mais isso!” Ela reclamou chorosa e eu senti um peso no peito. Não soube reagir, até que ela começou a falar com alguém pelo telefone. “Oi, achei. Sim, estava num canto bem escondido do deque! Eu sei, você veio aqui várias vezes, mas é realmente um ponto cego... Tá, só vem!” E desligou.
Digitou algumas coisas no visor e por fim, colocou as mãos na cintura, me olhando preocupada.
“Quanto tempo eu dormi?” Perguntei, receosa. Ela suspirou, passando a mão no rosto e limpando os olhos. Por fim, me olhou de novo e respondeu.
“Estamos te procurando há quase uma hora...”
“Sério?” Retruquei, assustada. Ela acenou e eu mordi o lábio inferior, dando de ombros.
“Foi mal, eu realmente nem me toquei que tinha cochilado. O celular estava no silencioso também e... Enfim, não queria causar problemas.”
fechou os olhos e umedeceu os lábios, negando com a cabeça. Soltou um riso frouxo e veio em minha direção, me abraçando forte.
“Eu sei! Desculpa também por ter ficado nervosa. Não é culpa sua... Eu também iria querer dormir e esquecer o mundo se tivesse visto o que você viu.”
Meu corpo congelou e eu segurei minha amiga pelos ombros, para olhá-la.
“Como assim? Você já sabe?”
Ela me olhou com cara de pena e deu de ombros.
“Quando vimos que você não estava me lugar nenhum, nos contou o que tinha acontecido, e que você provavelmente estava muito chateada depois que saiu correndo. Eu fiquei muito preocupada, pensando que talvez você estivesse fazendo algo de cabeça quente, sei lá!” Ela se explicou enquanto gesticulava com rapidez.
Eu pisquei algumas vezes, sentindo o incômodo pesar.
“Então quem já sabe que ele me... traiu?” Minha voz saiu meio falha e ela bufou, coçando a nuca.
“Todo mundo.”
“Todo mundo quem, ?” Agora, a voz entoava mais aguda.
“Todo. Mundo.” Ela uniu as mãos enquanto me olhava apreensiva. “Precisávamos de mais gente pra te procurar.”
Coloquei as mãos no rosto e respirei fundo.
“Então todo mundo sabe da minha vida amorosa? Que me chifrou? Que ótimo!” Berrei, socando a minha coxa. “Porra, eu não tenho um minuto de paz nessa merda!”
“Você estava desaparecida, cara!” tentou explicar.
“Uma hora, ! Por uma santa hora, e a minha vida fica exposta!” Bradei, raivosa.
“Porque estávamos tentando saber se você ainda tinha vida!” Ela explicou alarmada e eu franzi o cenho.
“Quê!?”
“Eu... Argh, sei lá! Eu estava nervosa, o professor começou a falar algumas coisas, eu fiquei com medo que você fizesse besteira!”
“Você achou que por causa disso eu faria mal a mim mesma!? É sério!?” Minha voz estava grave e ela se adiantou em explicar.
“Cada um reage de um jeito, ! E eu não sabia se você tinha sido chifrada antes, sei lá como seria!”
“Essa é a melhor frase que já ouvi em tempos, sério.” Comentei zombeteira, levantando e andando, sem acreditar.
“Então todo mundo sabe. Legal. Ótimo. Simplesmente... perfeito!” Cruzei os braços, enquanto negava com a cabeça.
me puxou para que eu a olhasse.
“Por um segundo pensamos que você poderia ter feito algo preocupante, . Seria legal se você levasse isso em consideração. Levar um chifre não é o ideal, mas é melhor isso do que comprometer sua vida, por exemplo.”
“Eu não faria nada, ! Céus, foi quem fez merda, por que eu faria isso?” Berrei, frustrada. “Estou chateada? Estou me sentindo um lixo, uma merda? Uma pessoa completamente descartável incapaz de amar e ser amada!? Pode acreditar que sim! Mas se é isso que a vida tem pra mim, eu vou mandar um belo foda-se e fazer um novo caminho! Nem sei por onde começar, mas foda-se! Se não tem amor pra mim, eu também não vou ter pra ninguém! Acabou essa merda! Dane-se essa porra toda!”
Quando terminei o meu desabafo, não foi nenhuma surpresa perceber que estava chorando, sentindo os solavancos no peito enquanto tentava respirar.
me olhou com pesar e eu neguei com a cabeça.
“E é isso que eu menos quero agora. Pena! Pena de mim? Pra quê? O que eu faço com isso, sabe? Eu só queria que nada disso tivesse acontecido, que eu não tivesse sentindo tanta coisa, que tivesse chegado a essa conclusão antes!” Respondi com raiva, fechando as mãos em punho.
“Que conclusão?” Ela perguntou com a voz baixa e eu respirei fundo, sentindo as lágrimas caírem livremente.
Tentei limpar o rosto, mas eu mesmo soluçava enquanto o pranto seguia. Ergui as mãos pra cima, num movimento indeciso, e dei de ombros, olhando pra minha amiga.
“De que o amor não é pra mim.”
“Impossível.”
O timbre de voz decisivo me fez alarmar.
Não foi quem tinha me respondido.
A resposta vinha pelas minhas costas, e quando me virei, me olhava com a feição dolorida, os olhos bem abertos, e a boca travada.
Eu não consegui distinguir o que ele estava sentindo, pelo seu semblante, mas com certeza não era bom.
Ele deu alguns passos e por fim ficou diante de mim, segurando meu queixo e erguendo meu rosto, fazendo com que eu olhasse para si.
“...” Murmurei, me sentindo frágil. Apesar de sua feição, ele riu descrente, negando com a cabeça enquanto me respondia.
“É impossível. Simplesmente... Não faz sentido.” E voltou a ficar sério, me olhando enquanto piscava. Parecia ponderar sobre o que dizia, e eu estava sem saber como agir.
“O quê?” Perguntei com a voz baixa e ele subiu os dedos para meu rosto, fazendo um carinho com seu polegar, limpando as minhas lágrimas.
“Você é amor da cabeça aos pés, . Merece todo amor do mundo.”
Eu fiquei encarando-o, me sentindo tocada com aquilo. Não só com o que foi dito, mas como foi dito.
A expressão na face dele me levava a acreditar que aquilo era uma certeza na qual ele acreditava com toda força.
E testemunhar isso me deixava... leve.
Na verdade, até zonza.
Prendi os lábios com força para tentar parar de chorar, mas até nisso era implacável; ele negou com a cabeça, segurando meu rosto com as duas mãos e me olhando seriamente.
“Não precisa disfarçar o choro. Não pra mim.”
Estava tremendo tentando me conter, enquanto os olhos de se conectavam aos meus, mas a vergonha que eu sentia era tanta que nem tive coragem de retribuir seu gesto.
“Vem cá.” Ele me chamou, me puxando para um abraço apertado.
Eu não tardei a ceder e afundei meu rosto em seu peito, molhando sua blusa, respirando seu cheiro inebriante, enquanto deixava a dor me desabar... Era assim que eu me encontrava.
“Ele me traiu, .” Eu disse com a voz trêmula, e ele endureceu ao ouvir aquilo. “Com Charlotte. E-Eu fui conversar e... Terminar numa boa! E lá estavam os dois... juntos! Eu estou cansada... Muito cansada!”
Ouvi o exato momento em que ele engoliu a seco, e logo após respirou fundo, me abraçando mais apertado.
“Vai ficar tudo bem. Eu to aqui com você. Vai ficar tudo bem...” Ele me balançava levemente, como se estivesse me ninando, e eu me agarrei mais a seu corpo, pedindo a qualquer força do universo para que os dizeres de se tornassem realidade.
“Eu sei... Só que. Por quê assim, sabe?” Indaguei em meio ao pranto, e ouvi beijar o topo da minha cabeça, demoradamente.
“Às vezes, as pessoas são babacas, e a culpa não é sua. A boa notícia é que você não precisa de pra porra nenhuma.”
Eu soltei uma risada em meio as lágrimas, devido ao timbre de voz que ele usou.
estava visivelmente puto.
“ tem razão, . Infelizmente, o mundo não é feito de pessoas maravilhosas como você. Quem dera se fosse.” respondeu e eu me virei para encará-la.
Apenas sorri fracamente e a chamei para o abraço, ainda acoplada à .
Ela veio até nós e os três se abraçaram por um tempo.
“Vai ficar tudo bem, amiga...” Ela falou, depois que saímos do enlace. Ela olhou para e emendou a fala. “Vou acalmar os outros. Você fica com ela?”
Ele acenou positivamente, fazendo uma cara óbvia de quem não iria sair por perto nem tão cedo. Ela riu levemente e beijou minha testa, antes de nos deixar a sós.
“E então?” Ele perguntou com a voz grave, me analisando com o olhar.
“Eu me sinto terrível...” Resmunguei, enquanto respirava pela boca; meu nariz entupiu e eu provavelmente estava com a voz fanha.
“E o que a gente pode fazer pra melhorar isso?”
Eu encarei o chão, absorvendo sua pergunta.
Respirei fundo, porque só conseguia sentir um misto de tristeza e baixa autoestima.
Mesmo estando no melhor lugar do mundo; no abraço de ...
Eu me sentia muito mal. Eu me sentia preterida, me sentia substituída, como se não fosse o suficiente pros dois caras que eu gostei, na vida.
Estalei a língua, dando de ombros.
“Não há nada, eu acho.” Comentei com a voz falha. “Acho que só o tempo mesmo...”
A cena de e Charlotte se beijando começou a misturar com o passado e eu fechei os olhos com força, enquanto sentia aquela sensação sufocante na boca do estômago.
“O que foi?” Ele perguntou numa entonação preocupada e eu respirei fundo, tentando escapar as armadilhas da minha mente.
“Eu só não queria me sentir tão descartável... Substituível, entende?” Falei, ainda sem coragem de abrir os olhos, e encontrar o rosto de ... Pensando que de certa forma, também me comparava à Lis, no sentido de ‘Por que ela e não eu?’
Eu sei, era uma pergunta injusta, talvez uma comparação descabida.
Mas não havia razão naquilo que eu sentia, e os pensamentos que me atravessavam não ajudavam a me situar, a ficar firme!
Mas... será que ser firme era não ceder ao momento ruim que eu passava?
Ou ser firme, poderia significar outra coisa?
Mais saudável e respeitosa comigo, talvez?
As lágrimas desceram silenciosas e eu desisti de manter os olhos tão fechados; doloridos e inchados, eles apenas abriram uma pequena brecha, enquanto eu voltava a encarar o chão.
Ouvi suspirar antes de falar:
“É totalmente compreensível que se sinta assim, mas acredite: você é insubstituível.”
Eu ergui o olhar, sentindo um bolo na garganta. Olhei para ele, respirando fundo, e me senti desnorteada.
“Você só está falando isso para que eu me sinta melhor.” Comentei num riso com pouco humor, e ele negou veemente.
“Você sabe do inferno que foi ficar afastado de você durante esses últimos meses? Sabe como foi tentar preencher o vazio que você deixou?”
Minhas sobrancelhas levantaram e os olhos arregalaram levemente.
não estava brincando. E eu engoli a seco, soltando um sorriso tímido.
“Acho que tenho uma ideia...” Falei de maneira reticente, olhando para o lado, me sentindo encurralada.
“Então sabe que não minto quando digo que você é insubstituível.”
Virei para encará-lo, e ficar sem saber o que dizer já tinha se tornado uma rotina perto de meu melhor amigo.
passou os olhos pelo meu rosto, e voltou a tocar minha bochecha, fazendo um carinho devagar.
Os seus dedos estavam levemente gélidos, como os meus.
Sua feição amenizou, e ele continuou com o afago, se permitindo dar um pequeno sorriso.
Eu não sei quanto tempo a gente ficou naquele contato visual, mas prendi a respiração quando percebi que estava encarando sua boca tão de perto.
E então, eu lembrei de Lis.
E de quem éramos, em nossas vidas.
Eu era a melhor amiga apaixonada.
Ele era um bom melhor amigo... Tentando consolar sua amiga desolada.
E só.
Abaixei minha cabeça, me sentindo amarga.
Meus braços ainda estavam ao seu redor, quando decidi que aquilo não era certo.
Muito à contragosto, fui saindo daquele abraço tão íntimo e me pus a seu lado, respirando fundo. Ele se virou para me olhar e perguntou com a maior cara confusa do mundo.
“O que foi?”
“O que foi o que?” Perguntei, sem olhá-lo.
“Por que fez isso?” Sua voz indicava o estranhamento e eu engoli a seco.
“Isso o que?”
“Sair... de mim.” Ele disse, quase como se estivesse reclamando.
E acho que estava.
Eu pisquei algumas vezes, totalmente desconcertada pela sua fala.
Sair de mim... Deus sabe o quanto eu gostaria de ter ficado.
Respirei fundo, coçando a têmpora para tentar respondê-lo, e me virei para encará-lo.
“Hm, bom... Se alguém nos vir aqui, vão pensar besteiras... E você tem a Lis, não é certo criar problemas desnec—”
“Tsc” Ele me interrompeu, literalmente me colocando de volta como estávamos momentos antes, e eu soltei um pequeno berro de susto pela sua ação.
“!?” Falei exasperada, me sentindo um bichinho diante de um urso. Ele me abraçou de novo, me encaixando em seu peitoral. Me olhou sério e respondeu:
“Eu to pouco me fodendo pro que vão dizer. Pare de se preocupar com tudo o tempo todo. Foca em você, que é o que importa agora.”
Eu fiquei sem reação sobre tudo aquilo. Mas aos poucos, fiz o que ele pediu, cedendo ao enlace e de fato, parando me importar tanto com as coisas.
O ‘colo’ de era muito, muito bom.
E aquele sentimento todo arrebatador mais uma vez me tomava...
Céus, aquilo estava ficando complicado.
“Melhor?” Perguntou próximo ao meu ouvido e eu estremeci levemente.
Acenei ao concordar, pensando que melhor do que aquilo, só um beijo mesmo.
Expirei, deixando o ar escapar pelas narinas e apertando mais o abraço.
Parar de me importar tanto com as coisas, certo?
“Eu poderia ficar assim pra sempre...”
Meus braços se afrouxaram.
Meus olhos se arregalaram.
“Quê!?” Perguntei ao me afastar levemente, sem sair do abraço. E só aí abriu os seus olhos, depois que soltei a coisa mais sincera em tempos.
Não consegui controlar a entonação de choque, e percebi que sua feição ficou um pouco rígida. Seu pomo de adão subiu e desceu e, aos poucos, ele desceu o rosto até me encarar.
Ficamos naquele contato visual e ele perguntou, após muito piscar:
“Oi?” Ele perguntou. Eu franzi o cenho, sorrindo sem graça.
“O que disse?”
Ele umedeceu os lábios, rindo levemente. Deu de ombros e olhou para frente, bem acima de minha cabeça.
“Você não gostaria de ficar assim pra sempre? Num abraço, sem preocupações, o clima ameno...” Explicou com a voz mais contida e voltou a me olhar, atento.
Apesar da sua feição parecer tranquila, eu senti que ele estava um pouco encabulado.
Talvez pelo fato de ter dito algo que possa ser interpretado de outra forma, mas... Era .
E no fim das contas, não tinha nada de segundas intenções ali, por motivos óbvios... então deixei para lá.
“Ah... Claro.” Respondi ao vestir uma máscara impenetrável. “Eu adoraria.”
Nós sorrimos um para o outro, mas a sensação era que o clima estava estranho.
Curiosamente estranho.
“Hm, então... Tá com fome? Eu ouvi dizer que hoje é lasanha.” Ele sugeriu, com um sorriso mais aberto que de costume.
Realmente, a fome era real. Foi só ele falar que meu estômago deu sinal de vida.
Eu ri levemente e concordei.
“Vamos comer. Porque até pra chorar, precisamos de energia.” Comentei qualquer bobeira, saindo de seu enlace e colocando minhas mãos para trás, sorrindo sem mostrar os dentes.
Estava difícil controlar as piruetas na boca do estômago.
Comecei a caminhar sorrateiramente e fez o mesmo, andando ao meu lado.
Permanecemos num silêncio constrangedor, até que ele me chamou.
“?” Perguntou ao segurar minha mão com firmeza.
Eu o olhei, atenta. parecia querer dizer algo, e estava levemente nervoso.
Eu disse nervoso?
Ok, isso era... estranho.
“O que foi?” Perguntei retoricamente.
Ele sorriu enquanto coçava a nuca e eu achei aquilo, acima de tudo, inédito.
Dificilmente ele ficava assim... Meio sem graça.
E o que eu me perguntava era: por que ele estava assim?
Meus pensamentos foram interrompidos por um pigarro dele.
“Não esquece do que eu te disse, tá?” Eu fiquei olhando, sem entender. Ele sorriu, deixando a cabeça pender um pouco pro lado. “Sobre você ser totalmente feita de amor. O amor é para todos. E isso inclui você, sem dúvida.”
Eu sorri, agradecida. acreditava piamente naquilo, e eu achava no mínimo acolhedor de sua parte.
Queria acreditar nisso também. Mas não disse nada, e só agradeci com um aceno. Entretanto, ele não parou por aí e acrescentou:
“Ainda há muita coisa pra nós.”
“Nós?” Perguntei sem filtrar e ficou corado.
Caralho, eu tinha perguntado aquilo mesmo? O que estava acontecendo comigo!?
riu levemente, concordando com a cabeça.
“É... Todos nós.” Respondeu depois de mordiscar o lábio inferior.
“Ah.” Eu respondi, tentando disfarçar, como se tivesse entendido. “Pode crer.”
Pode crer!? Pode crer!? Quem diabos responde uma coisa dessas!?
Engoli a seco e plantei meu melhor sorriso. Ele deu uma piscada e voltou a andar tranquilamente. Eu o segui um pouco mais atrás, viajando naquele diálogo doido.
“Não deixe que uma experiência ruim te convença do contrário.” Ele alertou ao me olhar por cima de seus ombros e eu concordei com um sorriso amarelo, não sentindo minhas pernas.
“Você tem razão, . Obrigada por isso.” Minha voz saiu mais automática que de costume e eu respirei fundo, sentindo um aperto no peito, encarando o chão, quando tive uma ideia. “Você pode ir caminhando pro refeitório? Eu... preciso ir no banheiro!” Apontei para o local, sorrindo forçadamente e dando um tchauzinho, enquanto me afastava. “Te encontro lá!”
“Ok.” Ele disse de maneira meio estranha, arqueando a sobrancelha ao me ver minimamente suspeita.
Essa era a merda de estar apaixonada pelo seu melhor amigo: ele sabe quando não tem algo certo.
E definitivamente, não tinha.
Caminhei a passos rápidos e logo estava no banheiro.
Fechei a porta, respirando fundo, e encostando minha testa na madeira gélida.
“Deus... Por quê?” Indaguei, me sentindo boba, e ri da minha própria desgraça.
Não bastava ser corna, eu também era caidinha por uma pessoa que não estava nem aí pra mim nesse sentido.
E ainda por cima, eu tinha a audácia de criar situações constrangedoras como as de momentos atrás.
Eu precisava dar um jeito na minha vida.
Respirei fundo, quando ouvi a porta se abrir e vozes femininas soarem no recinto.
“Sério que ele fez isso?”
“Sim, e fez debaixo do nariz dela!”
“Como assim!? Que babaca!”
“E o pior era que a outra era amiga dela há anos!”
Prendi a respiração, sabendo muito bem que estavam falando de Charlotte, e... de mim.
“Nossa, que horror! Eu não queria viver isso não.”
“Ninguém, né? Mas eu acho que ela também estava de caso com aquele ...”
“Quem, a Charlotte?”
“Não, a corna!”
“Sério?”
“Sim! Afinal de contas, por que ele e o brigariam!? Foi por causa dela, mas o namorado não tinha provas de que estava sendo corno também. Mó novela!”
Meu sangue ferveu naquele momento e eu simplesmente abri a porta do banheiro, fazendo um barulhão quando fechou atrás de mim.
As duas jovens, que eram do segundo ano, me olharam chocadas e surpresas.
Eu andei até a pia e abri o registro de água, lavando minhas mãos enquanto respondia numa entonação irritada.
“É . Meu nome é , e não corna.” Peguei o sabonete e passei pelas mãos, criando uma espuma sob a pele. “Vocês também são mulheres, não acham simplesmente ridículo quando quem faz a merda é o homem e você é quem paga o pato no fim das contas? Quando te reduzem a algo desse jeito?” Fechei a pia, sequei minhas mãos e cruzei os braços, sorrindo ironicamente para as meninas. “Não é da conta de ninguém o que acontece ou deixa de acontecer na minha vida, mas tem muito furo na história de vocês. Então da próxima vez que fofocarem, façam o favor de saber tudo direito, desde o começo. E antes que eu me esqueça: a vida de vocês deve ser uma grande merda para ficar se entretendo com acontecimentos de pessoas que vocês nem conhecem! Vão estudar, caralho!”
Berrei na hora do palavrão e as garotas deram um passo para trás, assustadas.
Eu não vi meu reflexo, mas era bem provável que até o diabo tivesse medo de mim, pois eu estava num estado de irritação absurdo.
Decidi saí dali antes que fizesse uma besteira, e andei a passos pesados para fora do banheiro, sem receber nenhuma resposta das garotas.
Fui nessa mesma energia até o refeitório, e respirei fundo antes de passar pela porta.
Os olhares foram instantâneos, e os cochichos também.
Respirei de novo e avistei meu grupo me esperando com feições terrivelmente forçadas e bufei com aquilo.
Antes que os alcançasse, o professor veio junto com a professora me receber com um sorriso amarelo.
A paciência estava mínima.
“Srta. ... Receio que tudo foi um mal entendido, certo?” Ele perguntou enquanto colocava as mãos no bolso. “Você sabe, do sumiço e... Você está bem?”
Sua pergunta foi numa entonação completamente diferente do resto da fala e eu consegui ver sinceridade em sua preocupação.
Encarei a professora, que tinha um olhar solícito e expectativa em minha resposta.
Suspirei, concordando com ambos.
“Sim, um mal entendido. Estou bem, não fiz nada demais. Apenas cochilei e não percebi o celular tocando insistentemente. Desculpe o transtorno.” Nunca fui tão sucinta e educada ao mesmo tempo.
Os mestres se entreolharam rapidamente, como se concordassem em silêncio que estava tudo ‘sob controle’.
“Certo, é ótimo saber disso e... caso precise conversar...”
“Estamos aqui para ajudar, querida. Sabemos que tudo é muito intenso nessa fase e que é bom saber que não está sozinha. Não hesite em nos chamar, certo?” A professora completou a frase iniciada pelo professor e eu poderia jurar que eles eram algum tipo de “Super gêmeos – ativar!” com aquela coisa de um concluir a frase do outro.
Mas era bonitinho em algum ponto.
E bem legal por se demonstrarem disponíveis.
“Agradeço a preocupação, se precisar chamo sim. Agora vou tentar comer alguma coisa, estou faminta. Obrigada e com licença.” Respondi com um aceno educado e me redirecionei para a fila, pegando a bendita lasanha.
Pelo menos alguma boa notícia no dia.
Depois de enfrentar filas, olhares e fofocas perto de mim, consegui finalmente me sentar com meus amigos – exceto , que estava num canto distante, sozinho.
O que eu achei particularmente hipócrita, pois ninguém, absolutamente ninguém mais duvidava que ele e Charlotte tinham alguma coisa. Todos tinham certeza; inclusive eu, por motivos óbvios.
“E aí! Muita fome?” perguntou com um sorriso exagerado e eu ergui a cara para encontrar uma do mesmo jeito, e os olhava com pena.
Eu bufei e rolei os olhos.
“Por favor, não façam isso. É pior.” Pedi silenciosamente, enquanto separava uma porção de comida no garfo. “Eu sei que tá geral sabendo, que tá todo mundo falando, e eu só quero não ser o centro das atenções. Então para dar fim ao assunto: fui terminar com , ele estava beijando Charlotte, fim do nosso lance, fui espairecer no deque, acabei cochilando e não vi nenhuma ligação no celular pois estava no silencioso. Vocês deduziram outra coisa e assim o auê foi instalado. Então, foi mal pela preocupação desnecessária, mas eu to viva e amanhã é um novo dia. É isso. Podemos comer e falar de outra coisa?” Perguntei enquanto os olhava de maneira séria.
suspirou e engoliu a seco.
mexeu na comida e retrucou de forma convincente.
“Eu falei que isso era uma ideia ruim.” Olhou os dois que o encaravam com tédio. “O que foi? Eu avisei mesmo! Vocês insistiram. Ela não ia bancar essa, mas vocês são teimosos.”
“A gente só estava tentando ajudar!” retrucou chateada e rolou os olhos.
“Eu sei, não estou julgando. Mas vocês poderiam ouvir o melhor amigo dela para ter uma alternativa melhor do que essa.”
“Chega dessa discussão sem sentido. A já deu o papo e a verdade é simples: essa lasanha tá do caralho.”
Eu soltei uma risada pela forma que interviu na situação, e isso acabou contagiando a mesa. Quando vimos, estávamos todos rindo daquilo.
“O mundo pode estar caindo, mas se tiver comida, tá tudo certo.” Comentei risonha, experimentando a lasanha e concordando com . Estava uma delícia!
“Só faltou o queijo ralado.” reclamou com um bico e deu de ombros.
“Aí tu pediu demais, Amaral. Tá achando que é Mia Thermopolis, a princesa de Genovia?”
“Mas gente, um queijo ralado não é coisa da realeza e...” argumentou, mas foi brutalmente interrompido por uma estupefata.
“Você tá citando ‘O Diário da princesa’!?” Os olhos arregalados e incisivos em cima de eram reais.
O parou de mastigar na hora e olhou para a amiga com cara de quem acabava de entrar numa fria.
“Hm... não, eu só...”
“Meu Deus, você é fã da Meg Cabot!” berrou, espalmando suas mãos na mesa com um sorriso enorme no rosto. “A precisa saber disso A-GO-RA!” e saiu catando o celular com um sorriso demoníaco, deixando um bem desesperado.
“Não, ! Na moral, minha reputação, cara!”
“Você não tem uma, tá querendo enganar a quem?” Ela perguntou com uma cara convencida e ele bufou, dando de ombros.
“Eu tinha uma banda, né...”
“Vai ser legal quando souberem que você curte Meg Cabot. Quer dizer, eu prefiro ‘A mediadora’, mas entendo o hype da princesa de Genóvia.” Comentei com um sorriso encorajador e ele me olhou sério.
“Ah, mas são duas pegadas diferentes! E venhamos e convenhamos que ‘O diário da princesa’ é aquele primeiro amor, todo mundo fica naquele enredo feliz e encantado...”
“Você é maluco. A Mediadora é bem melhor! Deixa de ser apegado com os filmes da Anne Hathaway!” retrucou com o cenho franzido e um sorriso de canto. fechou a cara.
“Não me peça o impossível, cara.” riu e encarou o , chocada.
“Você também curte?” Ele a olhou com cara de culpado.
“ me obrigou a ler com ela. Confesso que gostei.” explicou com um sorriso maior e me olhou terno.
“Talvez eu tenha obrigado no primeiro livro, mas os outros da saga, eu praticamente fui intimada a continuar lendo com um certo senhor ...” Comentei sarcasticamente e ele deu de ombros.
“É pra isso que a gente serve, né? Pra estar juntos nos bons e maus momentos da vida.” Eu ri ao concordar consigo.
“A gente mal sabia que as partes tensas dos livros eram os bons momentos...” Sorri, mexendo no meu prato, pensando na época que nos reunimos no nosso clube do livro de duas pessoas.
Ridículo, eu sei.
“Não mesmo... Mas faz parte também.” Ele respondeu sorridente, e ofereceu o punho para que eu desse uma batidinha nele. “O importante é que a gente tá junto.”
Eu abri um sorriso sincero e juntei meu punho ao seu.
“É isso aí.” Respondi mais alegre, voltando a comer meu prato.
Felizmente, nenhuma grande novidade nos acometeu naquela noite. Eu terminei de comer, tomei um banho relaxante e fui dormir – tudo acompanhada por , minha fiel companheira.
Uma pontada bem na boca do estômago.
Foi a única coisa que senti ao presenciar aquela cena.
O beijo intenso dos dois, bem diante dos meus olhos.
segurava os ombros de Charlotte de um jeito firme, e seus olhos estavam bem fechados enquanto seus lábios avançavam nos dela.
Por sua vez, Charlotte segurava a nuca de , como se a qualquer momento ele pudesse escapar pelas suas mãos... Ainda que os corpos dos dois estivessem cada vez mais um próximo do outro, a ponto de se friccionarem durante o beijo.
Era uma sensação muito esquisita.
Conscientemente, eu sabia que estava vendo e Charlotte se beijando com vontade. E eu sabia que estava ali, vendo tudo de camarote.
Entretanto, na minha mente, as coisas ocorriam de uma maneira mais intrigante; conseguia ver e Charlotte de anos atrás, e às vezes as imagens pareciam se mesclar. Era como se automaticamente, meus olhos fossem capazes de fazer uma comparação entre o ontem, e o hoje.
E lá estava eu testemunhando tudo, novamente.
O curioso foi perceber que, por mais envolvimento que eu tivesse com ele no presente, não estava doendo tanto quanto no passado. Aquilo era, no mínimo, estranho.
Ou talvez, se tratasse apenas da confirmação que eu ansiava em ter: eu não gostava de o suficiente para me sentir profundamente magoada. Em silêncio, me fiz a pergunta de um milhão de dólares: o que diabos eu sentia então, ao ver aquilo bem ali, na minha cara?
Uma pontada bem na boca do estômago significava o que, exatamente?
E então, eu entendi. Enquanto meus olhos acompanhavam as mãos de descerem dos ombros até à cintura dela, eu comecei a sentir um incômodo muito específico, reparando que aquele mesmo movimento das mãos dele, foi sentido pelo meu corpo, pela minha pele.
Mas não era eu ali, e eu me indagava se sentia-se melhor na companhia de Charlotte, tocando seu corpo, beijando seus lábios, sentindo seu gosto, seu cheiro, seu toque, o mordiscar no meio do beijo...
Era aquilo. Eu estava sentindo um peso no peito por estar sendo trocada por alguém que, na minha cabeça, era mais bonita, mais interessante, melhor do que eu.
Minha mente instantaneamente revisitou a imagem do corpo nu de Charlotte, perfeito e livre, naquela manhã incomum, dentro do banheiro feminino do acampamento. A confiança que ela emanava em cada ato, em cada pequeno gesto, era proporcional à minha insegurança em relação à imagem que eu tinha de mim.
Minha visão captou o momento em que a mão de alcançou o início do glúteo de Charlotte, e desceu lentamente, até trazer o corpo dela mais para si; outro movimento que meu corpo também reconheceu – já vivenciado pelo toque do .
Era isso? Eu estava me sentindo trocada, invalidada, menor ou pior do que alguém?
As coisas não estavam boas entre nós. Eu tinha ido ali para terminar todo meu envolvimento com ele, inclusive.
Então por que a pontada no estômago insistia? Por que tinha feito aquilo? Eu havia jogado ele para cima de Charlotte? Era culpa minha ele ter feito o que fez? Eu tinha direito de me sentir traída? Havia como mandar nos sentimentos?
Mesmo não gostando de , eu me sentia péssima! Descartável! Como se fosse qualquer coisa!
Apesar de toda a confusão, em momento nenhum eu fiquei com alguém ou passei por cima do meu relacionamento com ele – por mais falido que estivesse, nos últimos tempos. Ainda que eu estivesse prestes a terminar, as coisas precisavam ser feitas da maneira certa, uma vez que começaram assim.
Por que ele fez isso? Por que ele não veio conversar comigo? Será que aquilo estava acontecendo há mais tempo e eu não sabia? Pela forma como Charlotte o seguia para cima e para baixo...
A verdade é que eu não fazia ideia do quanto tempo fiquei ali, porém, tinha plena noção do quão nocivo estava sendo presenciar aquela situação toda sem fazer ou falar nada.
Independentemente de qualquer erro meu, a realidade era nua e crua – existia um limite para mim, que visivelmente, avançou a passos largos. E eu não lidaria com aquela merda sozinha.
Então decidi, pelo menos uma vez na vida, agir sem antes pensar trezentas mil vezes.
Dei um passo para frente e escancarei a porta, fazendo com que ela batesse na parede com força, e chamasse a atenção do mais novo casal, que no momento me olhava assustado. Charlotte me encarava com os olhos arregalados e o queixo caído, enquanto franzia a testa, com a boca escancarada. Sua feição se alterava para algo que eu simplesmente não consegui descrever; talvez um misto das sensações que ele sentia no momento: nervosismo, decepção, dor, descrença, medo...
Ficamos assim por alguns segundos, e eu não consegui dizer nada.
Eu estava muito decepcionada.
Olhei bem dentro dos olhos do , e fiz um movimento de negação com a cabeça.
“Eu vim aqui para conversar, mas... Acho que tá tudo resolvido, não é?” E ri sem humor, dando de ombros. “Então tá certo. Com licença.” E saí, deixando a porta aberta, enquanto descia as escadas, sentindo meu maxilar doer de tão trincado que estava.
“!” saiu apressado pela porta, correndo até me alcançar. Ele estava ofegante e me procurava com urgência. “Por favor, me escuta! E-Eu não quis, não era para ter acontecido desse jeito e—"
“Foda-se.” Eu respondi, parando de andar e me virando para ele, ao cruzar os braços. Encarava com raiva quando o interrompi.
“O-O que?” perguntou confuso.
“Eu disse ‘foda-se’, .” Respondi, respirando fundo pela primeira vez desde que vi a cena. Balancei a cabeça de um lado pro outro, pensando na ironia da vida. gostava mais de mim do que eu dele, e eu que fui ‘traída’ – se é que aquele termo cabia na nossa relação.
Comecei a rir levemente, e percebi o corpo de Charlotte parado na porta, com metade dele para fora e a outra escondendo-se na cabana. A olhei com desprezo no olhar, e devolvi a mesma emoção para , quando encarei seus olhos.
“Que se foda você, que se foda ela...” Minha voz saiu amarga e grave, e eu sorri de forma sarcástica. “Simplesmente... Foda-se.”
“, por favor, cara...” me chamou de novo, bem perturbado pelo meu estado. Eu soltei uma risada incrédula e neguei com a cabeça.
“Por favor o quê, ? Acabou.” Respondi depois de dar um longo suspiro. “Acabou, sabe? Acabou.” Eu dei de ombros, abraçando a mim mesma.
Os lábios dele se curvaram para baixo e sua voz saiu trêmula.
“Não, . Sério! Por favor, me deixa explicar!” A feição de dor se atenuou e eu respirei fundo, olhando para si.
“Não tem o que explicar. Eu não tenho nenhuma dúvida do que aconteceu ali, cara!” Apontei para a cabana e automaticamente Charlotte se encolheu no lugar. “Acabou, . Acabou, fim, já deu.”
“Não, cara! Isso foi impensado, não—”
“Tinha acabado antes de eu presenciar isso.” Expliquei olhando bem séria para ele, e os olhos do garoto começaram a liberar as lágrimas que já marejavam por debaixo dos cílios.
“Por favor...” Sua voz pediu, mas eu neguei.
“Eu sei, você sabe, nós sabemos. Não dá para continuar.” Falei encarando o chão, sentindo um bolo na garganta. “Eu vim aqui para acertar as coisas e terminar de uma forma... digna. Mas acho que, no fim das contas, só eu tinha essa postura.” E sorri zombeteira, apontando pra ele e para Charlotte.
“Cara, vamos tent-”
“Não, .” Eu respondi áspera, mudando minha feição. “Mesmo que você não tivesse se agarrado com Charlotte momentos atrás, nada mudaria. Eu tinha vindo aqui para terminar o que tínhamos, e tentar ficar amigos, quem sabe. Mas você me surpreendeu. De uma maneira que eu jamais imaginei ser surpreendida...” Falei com a voz embargada, sentindo o bolo vir à tona. “Eu achava você incrível. Confiava em você. Mas nos últimos dias, você tem mostrado facetas que eu nunca tinha visto. Coisas que eu não gostei de ver. E essa última atitude, definitivamente era tudo que eu precisava para entender que realmente não dá para forçar uma relação como a que tínhamos. Principalmente porque, seu maior medo era que eu fizesse, o que você acabou de fazer comigo.” Me obriguei a encará-lo nos olhos, e foi terrível me ver chorosa pelo olhar dele.
Ele deu um passo em minha direção, e eu dei outro para trás, erguendo a mão e solicitando silenciosamente que não tentasse. O braço erguido de que buscava me alcançar vacilou e caiu ao lado do corpo, enquanto ele chorava mais.
“Por favor, me perdoa e me dá uma chance! Eu sou apaixonado por você, cara!” Sua voz saiu levemente esganiçada. Eu o olhei impaciente.
“Qualquer um que visse o que eu vi há cinco minutos atrás jamais acreditaria nas suas palavras, .” Respondi enquanto enxugava as lágrimas. “Sério, eu esperava qualquer coisa, menos isso! Conversasse comigo, cara! Para que fazer um negócio desses!? Para que magoar deliberadamente, quando você pode dialogar? Ainda que muitas vezes eu tenha me sentido culpada por não retribuir os sentimentos, eu tinha consideração por você! Não, não namorávamos, mas a gente tinha algo! E foi acreditando nisso que eu vim falar com você! Fazer do jeito certo, . E não deixar o outro mais fodido por uma traição! Ainda mais com alguém como ela! De novo, cara!?” Esbravejei, gesticulando de maneira nervosa, sentindo a cabeça latejar e as lágrimas molharem meu rosto. “E aqui estou eu. Passando dias e dias pensando em como fazer isso de uma maneira responsável, para dar de cara com essa merda. Mas se é para ser assim, então eu digo e repito: foda-se! Foda-se, foda-se tudo e todo mundo!”
não tinha o que dizer.
Charlotte, muito menos.
Eu estava ofegante quando o vi chorar em frustração, e segurar o rosto, envergonhado.
“Merda!” Ele xingou em meio ao um berro. Eu apenas respirei fundo, sentindo meu pranto descer.
Ficamos num silêncio pesado até que aos poucos soltou as mãos do rosto e me encarou, perdido.
Começou a perder as forças na perna e quando dei por mim, ele estava ajoelhado, com as mãos viradas pra cima, encostada nas coxas – como quem suplica por algo.
“... Por favor, me perdoa! Eu fui um imbecil, mas... Tudo que eu sinto por você é real! E dói como um inferno te ver partir!” Ele se aproximou, andando de joelhos, e eu me afastei, achando um absurdo ele fazer aquilo.
“Por favor, pare! Levanta daí, !” Respondi nervosa, mas ele não parou. As lágrimas desciam de seu rosto, e ele seguiu se aproximando. Eu coloquei a mão na boca e fechei meus olhos com força, negando com a cabeça.
Aquilo não poderia estar acontecendo.
Até quando eu sempre seria a trocada?
, ... Algum momento eu seria a primeira opção de alguém?
Os braços de envolveram minha cintura e ele me abraçou, encostando seu rosto em minha barriga.
Enquanto seu pranto molhava o tecido da minha roupa, eu sentia seu corpo tremular com aquilo. Mas não fiz nada além de negar, de perceber que não queria aquele toque, não queria lidar com , não queria sentir aquela sensação de novo!
“Chega, chega! Não, não quero isso!” Consegui dar voz aos meus sentimentos e coloquei as mãos nos ombros dele, o afastando.
Ele me soltou, derrotado, e chorava olhando para as próprias mãos.
“Eu não quero humilhação. Não quero isso, . Por favor, entenda! Já não dava mais! Nós dois... não éramos pra ser.” Respondi com amargor, sentindo o bolo subir na garganta. Olhei para Charlotte, que tinha um semblante culpado, e seguia se escondendo por trás da porta, sem tirar os olhos de nós.
chamou minha atenção ao levantar devagar, e respirou fundo algumas vezes, tentando se acalmar. As lágrimas ainda desciam de seu rosto quando ele começou a falar.
“Eu não queria que fosse desse jeito. Errei feio com você... O que eu fiz não tem desculpa e eu vou entender se me odiar. Eu estou me odiando também.” Ele respondeu com a feição envergonhada e seus olhos, avermelhados do choro, me olharam receosos, aguardando uma resposta.
“Eu não queria que as coisas terminassem desse jeito também, . Mas sinceramente? Não tenho mais nada para te falar. Não agora, e acho que vai ser assim por um algum tempo.” Respondi depois de respirar fundo.
Ele me olhava negando com a cabeça, mordendo os lábios enquanto mais lágrimas caíam. Ele sabia que não havia volta, mas seguia pedindo sussurradas e sôfregas desculpas.
“Então é isso? Acabou?” Ele perguntou baixinho e eu vi um filme passar na minha cabeça, com pequenos recortes da nossa relação.
“Acabou. Independentemente de qualquer coisa... com ou sem isso tudo...” Apontei para Charlotte, me sentindo ridícula. “Acabou, . É isso”.
Ele me olhou sério, respirando fundo, e cruzou os braços. Prendeu os lábios numa linha fina, e sorriu sem um pingo de humor na face, encarando o chão.
“Você realmente o ama.” Ele disse, voltando a me olhar como se eu fosse uma preciosidade. “Você o ama de verdade.”
Meus olhos voltaram a lacrimejar e eu travei o maxilar, negando com a cabeça.
“Não mete essa agora, . É sobre mim e você. É sobre terminar algo que se iniciou. Com mais cuidado do que você teve comigo...” Levantei o olhar e engoli a seco, sentindo o bolo na garganta aumentar cada vez mais. “Mas não o coloque no meio disso. É sobre nós dois. Na verdade, sobre o fim de nós dois.”
Ele chorou mais um pouco, concordando com um aceno ínfimo.
“Você sempre o amou...” Ele encarou o chão, com o olhar perdido, e eu arfei.
Me endireitei no lugar e prendi os lábios na boca, antes de respondê-lo.
“Eu nunca escondi isso de você.” O olhei com a feição fechada, e ele voltou a me observar, com o semblante dolorido.
“Eu nunca pensei que fosse tão forte... esse amor.” Ele riu sem achar a mínima graça no que dizia, deixando as lágrimas caírem. As minhas caíram logo em seguida, conforme fui atingida pela fala legítima de .
“Eu tentei lutar contra isso, em algum ponto do nosso relacionamento, . Mas a verdade é que sim, é forte... Sempre foi.” O peito doeu ao falar aquilo, e o pranto escorreu mais, perante àquela constatação.
“Você deveria contar para ele.” disse num sussurro, com os olhos caídos em tristeza. “Deveria falar sobre seus sentimentos, .”
Eu o encarei por um momento, sem saber o que dizer. Meu coração batia rápido dentro do peito só de pensar naquela ideia, e minha mente tentava entender o diálogo que estávamos tendo, tão peculiar.
Pela primeira vez, eu ri levemente e movi os ombros sem uma resposta concreta. Apenas olhei dentro dos olhos do rapaz diante de mim e disse algo genérico:
“Se cuida, .”
Logo depois, olhei para Charlotte, que me encarava receosa. Eu sorri de maneira sarcástica e apontei para o .
“Faça bom proveito.”
Me afastei aos poucos, dando passos para trás, até que me virei para sair dali. E então, eu corri. Corri muito, corri absurdamente rápido, corri demais sentindo o vento chicotear meu rosto. E lá estava eu, de volta ao deque, sentada num canto quase imperceptível, agarrada aos próprios joelhos enquanto chorava copiosamente.
Não fui seguida e eu agradeci internamente por isso.
Olhei ao redor, e ergui a cabeça para o céu, fechando meus olhos ao sentir a brisa passar.
Inspira.
Expira.
Inspira.
Expira.
Era o que eu fazia, tentando vencer aquela sensação de invalidez, de ser descartável, de não ter valor algum.
Por que eu me sentia tão mal?
“, ... Acho que no fim das contas eu não sou boa opção pra ninguém.” Falei comigo mesma, enquanto me perdia naquela vista incrível. Eu estava pensando em como minha tristeza contrastava com a beleza daquele lugar, perfeito para sorrisos, com um pôr-do-sol digno de aplausos e alegrias. Eu me sentia exatamente o contrário: sentia-me nublada, garoando por dentro com vez ou outra um raio me partindo o peito.
Estava completamente submersa nesses sentimentos e não tinha a mínima vontade de falar com ninguém. Não queria ter que explicar toda a cena que vivi, muito menos aquilo que tinha presenciado com e Charlotte.
Era tanta coisa que eu simplesmente queria apagar e sumir.
Eu sentei num canto do deque, sumindo de qualquer brecha pra que fosse vista por alguém. Fechei os olhos e desejei, do fundo do coração, que eu estivesse vivendo outra vida, outro contexto, porque estava cansada de carregar tanta coisa e sempre ponderar horrores antes de agir.
Entretanto, algo era verdade: de uma forma ou de outra, a situação com estava resolvida.
Expirei com mais força do que costume e ri da minha própria desgraça. Contando migalhas para me sentir em vantagem em alguma coisa.
Coloquei os fones de ouvido, botei numa música calma e coloquei o celular no silencioso para não ser perturbada por ninguém.
Aquele era o meu momento, e eu me permiti estar comigo sem precisar disfarçar sentimento nenhum, ou tentar conciliar algo por pensar demais nos outros. Em algum momento, eu passei dos limites de ‘segurar a barra’, e deveria estar fazendo isso há tanto tempo que sequer notei a exaustão em mim.
Eu também me merecia.
Merecia um autocuidado.
Não consegui impedir umas lágrimas e também não fiz força para isso. Só deixei o vento secá-las, fechando os olhos e me permitindo descansar.
A melodia da música me acalmava, e em algum lugar da minha mente, eu estava distante dali, volitando um mundo completamente diferente, do qual eu já não tivesse tantas coisas para sentir, tantos pontos para pensar.
Talvez eu tornasse tudo difícil ao guardar a maior parte pra mim, também.
“Uma hora isso passa.” Falei, acreditando em zero por cento, mas repeti mentalmente até que o convencimento fosse real.
A leveza do lugar, da música nos ouvidos, o som da minha respiração, aos poucos me ajudou a acalmar. De alguma maneira, eu estaria comigo, e aquilo significava muito, porque cada vez mais me sentia amiga de mim mesma. Eu sabia dos problemas que passava, das coisas que sentia, como sentia, de seus motivos... E eu finalmente, pouco a pouco, me tornava alguém de quem me orgulhava.
Então, independente do que havia feito, independente de não me retribuir, eu sabia que merecia a felicidade. Mesmo que não fosse pelo amor de ninguém.
Talvez, apenas talvez, eu devesse ficar um tempo sozinha e aceitar que não tenha nascido para essas coisas...
Não consegui mensurar quanto tempo fiquei pensando nisso, mas uma coisa era certa: eu estava exausta. Tanto que nem percebi que havia cochilado ali, pois acordei com uma me chamando apavorada.
“!? Você tá bem!?” Eu abri os olhos alarmada, respirando com dificuldade devido ao susto.
“T-Tô, ué. O que houve?” Perguntei esfregando os olhos e só então percebi que ela estava com a feição pesada, enquanto segurava meus ombros.
“Cara! Por que você não atendeu seu telefone, sua desgraçada!?” Eu franzi o cenho e olhei em volta.
Estava tudo escuro, bem escuro. Tinha anoitecido e eu fiquei confusa devido ao estado de minha amiga.
“Eu acabei cochilando, ué! Acho que não vi...” Comentei e automaticamente conferi o celular, percebendo que tinha chamadas perdidas dela, de , de , ... Tinha até de !
Olhei para , que segurava o celular com a mão trêmula, enquanto prendia os lábios dentro da boca.
“Tá todo mundo atrás de você, cara! Não faz mais isso!” Ela reclamou chorosa e eu senti um peso no peito. Não soube reagir, até que ela começou a falar com alguém pelo telefone. “Oi, achei. Sim, estava num canto bem escondido do deque! Eu sei, você veio aqui várias vezes, mas é realmente um ponto cego... Tá, só vem!” E desligou.
Digitou algumas coisas no visor e por fim, colocou as mãos na cintura, me olhando preocupada.
“Quanto tempo eu dormi?” Perguntei, receosa. Ela suspirou, passando a mão no rosto e limpando os olhos. Por fim, me olhou de novo e respondeu.
“Estamos te procurando há quase uma hora...”
“Sério?” Retruquei, assustada. Ela acenou e eu mordi o lábio inferior, dando de ombros.
“Foi mal, eu realmente nem me toquei que tinha cochilado. O celular estava no silencioso também e... Enfim, não queria causar problemas.”
fechou os olhos e umedeceu os lábios, negando com a cabeça. Soltou um riso frouxo e veio em minha direção, me abraçando forte.
“Eu sei! Desculpa também por ter ficado nervosa. Não é culpa sua... Eu também iria querer dormir e esquecer o mundo se tivesse visto o que você viu.”
Meu corpo congelou e eu segurei minha amiga pelos ombros, para olhá-la.
“Como assim? Você já sabe?”
Ela me olhou com cara de pena e deu de ombros.
“Quando vimos que você não estava me lugar nenhum, nos contou o que tinha acontecido, e que você provavelmente estava muito chateada depois que saiu correndo. Eu fiquei muito preocupada, pensando que talvez você estivesse fazendo algo de cabeça quente, sei lá!” Ela se explicou enquanto gesticulava com rapidez.
Eu pisquei algumas vezes, sentindo o incômodo pesar.
“Então quem já sabe que ele me... traiu?” Minha voz saiu meio falha e ela bufou, coçando a nuca.
“Todo mundo.”
“Todo mundo quem, ?” Agora, a voz entoava mais aguda.
“Todo. Mundo.” Ela uniu as mãos enquanto me olhava apreensiva. “Precisávamos de mais gente pra te procurar.”
Coloquei as mãos no rosto e respirei fundo.
“Então todo mundo sabe da minha vida amorosa? Que me chifrou? Que ótimo!” Berrei, socando a minha coxa. “Porra, eu não tenho um minuto de paz nessa merda!”
“Você estava desaparecida, cara!” tentou explicar.
“Uma hora, ! Por uma santa hora, e a minha vida fica exposta!” Bradei, raivosa.
“Porque estávamos tentando saber se você ainda tinha vida!” Ela explicou alarmada e eu franzi o cenho.
“Quê!?”
“Eu... Argh, sei lá! Eu estava nervosa, o professor começou a falar algumas coisas, eu fiquei com medo que você fizesse besteira!”
“Você achou que por causa disso eu faria mal a mim mesma!? É sério!?” Minha voz estava grave e ela se adiantou em explicar.
“Cada um reage de um jeito, ! E eu não sabia se você tinha sido chifrada antes, sei lá como seria!”
“Essa é a melhor frase que já ouvi em tempos, sério.” Comentei zombeteira, levantando e andando, sem acreditar.
“Então todo mundo sabe. Legal. Ótimo. Simplesmente... perfeito!” Cruzei os braços, enquanto negava com a cabeça.
me puxou para que eu a olhasse.
“Por um segundo pensamos que você poderia ter feito algo preocupante, . Seria legal se você levasse isso em consideração. Levar um chifre não é o ideal, mas é melhor isso do que comprometer sua vida, por exemplo.”
“Eu não faria nada, ! Céus, foi quem fez merda, por que eu faria isso?” Berrei, frustrada. “Estou chateada? Estou me sentindo um lixo, uma merda? Uma pessoa completamente descartável incapaz de amar e ser amada!? Pode acreditar que sim! Mas se é isso que a vida tem pra mim, eu vou mandar um belo foda-se e fazer um novo caminho! Nem sei por onde começar, mas foda-se! Se não tem amor pra mim, eu também não vou ter pra ninguém! Acabou essa merda! Dane-se essa porra toda!”
Quando terminei o meu desabafo, não foi nenhuma surpresa perceber que estava chorando, sentindo os solavancos no peito enquanto tentava respirar.
me olhou com pesar e eu neguei com a cabeça.
“E é isso que eu menos quero agora. Pena! Pena de mim? Pra quê? O que eu faço com isso, sabe? Eu só queria que nada disso tivesse acontecido, que eu não tivesse sentindo tanta coisa, que tivesse chegado a essa conclusão antes!” Respondi com raiva, fechando as mãos em punho.
“Que conclusão?” Ela perguntou com a voz baixa e eu respirei fundo, sentindo as lágrimas caírem livremente.
Tentei limpar o rosto, mas eu mesmo soluçava enquanto o pranto seguia. Ergui as mãos pra cima, num movimento indeciso, e dei de ombros, olhando pra minha amiga.
“De que o amor não é pra mim.”
“Impossível.”
O timbre de voz decisivo me fez alarmar.
Não foi quem tinha me respondido.
A resposta vinha pelas minhas costas, e quando me virei, me olhava com a feição dolorida, os olhos bem abertos, e a boca travada.
Eu não consegui distinguir o que ele estava sentindo, pelo seu semblante, mas com certeza não era bom.
Ele deu alguns passos e por fim ficou diante de mim, segurando meu queixo e erguendo meu rosto, fazendo com que eu olhasse para si.
“...” Murmurei, me sentindo frágil. Apesar de sua feição, ele riu descrente, negando com a cabeça enquanto me respondia.
“É impossível. Simplesmente... Não faz sentido.” E voltou a ficar sério, me olhando enquanto piscava. Parecia ponderar sobre o que dizia, e eu estava sem saber como agir.
“O quê?” Perguntei com a voz baixa e ele subiu os dedos para meu rosto, fazendo um carinho com seu polegar, limpando as minhas lágrimas.
“Você é amor da cabeça aos pés, . Merece todo amor do mundo.”
Eu fiquei encarando-o, me sentindo tocada com aquilo. Não só com o que foi dito, mas como foi dito.
A expressão na face dele me levava a acreditar que aquilo era uma certeza na qual ele acreditava com toda força.
E testemunhar isso me deixava... leve.
Na verdade, até zonza.
Prendi os lábios com força para tentar parar de chorar, mas até nisso era implacável; ele negou com a cabeça, segurando meu rosto com as duas mãos e me olhando seriamente.
“Não precisa disfarçar o choro. Não pra mim.”
Estava tremendo tentando me conter, enquanto os olhos de se conectavam aos meus, mas a vergonha que eu sentia era tanta que nem tive coragem de retribuir seu gesto.
“Vem cá.” Ele me chamou, me puxando para um abraço apertado.
Eu não tardei a ceder e afundei meu rosto em seu peito, molhando sua blusa, respirando seu cheiro inebriante, enquanto deixava a dor me desabar... Era assim que eu me encontrava.
“Ele me traiu, .” Eu disse com a voz trêmula, e ele endureceu ao ouvir aquilo. “Com Charlotte. E-Eu fui conversar e... Terminar numa boa! E lá estavam os dois... juntos! Eu estou cansada... Muito cansada!”
Ouvi o exato momento em que ele engoliu a seco, e logo após respirou fundo, me abraçando mais apertado.
“Vai ficar tudo bem. Eu to aqui com você. Vai ficar tudo bem...” Ele me balançava levemente, como se estivesse me ninando, e eu me agarrei mais a seu corpo, pedindo a qualquer força do universo para que os dizeres de se tornassem realidade.
“Eu sei... Só que. Por quê assim, sabe?” Indaguei em meio ao pranto, e ouvi beijar o topo da minha cabeça, demoradamente.
“Às vezes, as pessoas são babacas, e a culpa não é sua. A boa notícia é que você não precisa de pra porra nenhuma.”
Eu soltei uma risada em meio as lágrimas, devido ao timbre de voz que ele usou.
estava visivelmente puto.
“ tem razão, . Infelizmente, o mundo não é feito de pessoas maravilhosas como você. Quem dera se fosse.” respondeu e eu me virei para encará-la.
Apenas sorri fracamente e a chamei para o abraço, ainda acoplada à .
Ela veio até nós e os três se abraçaram por um tempo.
“Vai ficar tudo bem, amiga...” Ela falou, depois que saímos do enlace. Ela olhou para e emendou a fala. “Vou acalmar os outros. Você fica com ela?”
Ele acenou positivamente, fazendo uma cara óbvia de quem não iria sair por perto nem tão cedo. Ela riu levemente e beijou minha testa, antes de nos deixar a sós.
“E então?” Ele perguntou com a voz grave, me analisando com o olhar.
“Eu me sinto terrível...” Resmunguei, enquanto respirava pela boca; meu nariz entupiu e eu provavelmente estava com a voz fanha.
“E o que a gente pode fazer pra melhorar isso?”
Eu encarei o chão, absorvendo sua pergunta.
Respirei fundo, porque só conseguia sentir um misto de tristeza e baixa autoestima.
Mesmo estando no melhor lugar do mundo; no abraço de ...
Eu me sentia muito mal. Eu me sentia preterida, me sentia substituída, como se não fosse o suficiente pros dois caras que eu gostei, na vida.
Estalei a língua, dando de ombros.
“Não há nada, eu acho.” Comentei com a voz falha. “Acho que só o tempo mesmo...”
A cena de e Charlotte se beijando começou a misturar com o passado e eu fechei os olhos com força, enquanto sentia aquela sensação sufocante na boca do estômago.
“O que foi?” Ele perguntou numa entonação preocupada e eu respirei fundo, tentando escapar as armadilhas da minha mente.
“Eu só não queria me sentir tão descartável... Substituível, entende?” Falei, ainda sem coragem de abrir os olhos, e encontrar o rosto de ... Pensando que de certa forma, também me comparava à Lis, no sentido de ‘Por que ela e não eu?’
Eu sei, era uma pergunta injusta, talvez uma comparação descabida.
Mas não havia razão naquilo que eu sentia, e os pensamentos que me atravessavam não ajudavam a me situar, a ficar firme!
Mas... será que ser firme era não ceder ao momento ruim que eu passava?
Ou ser firme, poderia significar outra coisa?
Mais saudável e respeitosa comigo, talvez?
As lágrimas desceram silenciosas e eu desisti de manter os olhos tão fechados; doloridos e inchados, eles apenas abriram uma pequena brecha, enquanto eu voltava a encarar o chão.
Ouvi suspirar antes de falar:
“É totalmente compreensível que se sinta assim, mas acredite: você é insubstituível.”
Eu ergui o olhar, sentindo um bolo na garganta. Olhei para ele, respirando fundo, e me senti desnorteada.
“Você só está falando isso para que eu me sinta melhor.” Comentei num riso com pouco humor, e ele negou veemente.
“Você sabe do inferno que foi ficar afastado de você durante esses últimos meses? Sabe como foi tentar preencher o vazio que você deixou?”
Minhas sobrancelhas levantaram e os olhos arregalaram levemente.
não estava brincando. E eu engoli a seco, soltando um sorriso tímido.
“Acho que tenho uma ideia...” Falei de maneira reticente, olhando para o lado, me sentindo encurralada.
“Então sabe que não minto quando digo que você é insubstituível.”
Virei para encará-lo, e ficar sem saber o que dizer já tinha se tornado uma rotina perto de meu melhor amigo.
passou os olhos pelo meu rosto, e voltou a tocar minha bochecha, fazendo um carinho devagar.
Os seus dedos estavam levemente gélidos, como os meus.
Sua feição amenizou, e ele continuou com o afago, se permitindo dar um pequeno sorriso.
Eu não sei quanto tempo a gente ficou naquele contato visual, mas prendi a respiração quando percebi que estava encarando sua boca tão de perto.
E então, eu lembrei de Lis.
E de quem éramos, em nossas vidas.
Eu era a melhor amiga apaixonada.
Ele era um bom melhor amigo... Tentando consolar sua amiga desolada.
E só.
Abaixei minha cabeça, me sentindo amarga.
Meus braços ainda estavam ao seu redor, quando decidi que aquilo não era certo.
Muito à contragosto, fui saindo daquele abraço tão íntimo e me pus a seu lado, respirando fundo. Ele se virou para me olhar e perguntou com a maior cara confusa do mundo.
“O que foi?”
“O que foi o que?” Perguntei, sem olhá-lo.
“Por que fez isso?” Sua voz indicava o estranhamento e eu engoli a seco.
“Isso o que?”
“Sair... de mim.” Ele disse, quase como se estivesse reclamando.
E acho que estava.
Eu pisquei algumas vezes, totalmente desconcertada pela sua fala.
Sair de mim... Deus sabe o quanto eu gostaria de ter ficado.
Respirei fundo, coçando a têmpora para tentar respondê-lo, e me virei para encará-lo.
“Hm, bom... Se alguém nos vir aqui, vão pensar besteiras... E você tem a Lis, não é certo criar problemas desnec—”
“Tsc” Ele me interrompeu, literalmente me colocando de volta como estávamos momentos antes, e eu soltei um pequeno berro de susto pela sua ação.
“!?” Falei exasperada, me sentindo um bichinho diante de um urso. Ele me abraçou de novo, me encaixando em seu peitoral. Me olhou sério e respondeu:
“Eu to pouco me fodendo pro que vão dizer. Pare de se preocupar com tudo o tempo todo. Foca em você, que é o que importa agora.”
Eu fiquei sem reação sobre tudo aquilo. Mas aos poucos, fiz o que ele pediu, cedendo ao enlace e de fato, parando me importar tanto com as coisas.
O ‘colo’ de era muito, muito bom.
E aquele sentimento todo arrebatador mais uma vez me tomava...
Céus, aquilo estava ficando complicado.
“Melhor?” Perguntou próximo ao meu ouvido e eu estremeci levemente.
Acenei ao concordar, pensando que melhor do que aquilo, só um beijo mesmo.
Expirei, deixando o ar escapar pelas narinas e apertando mais o abraço.
Parar de me importar tanto com as coisas, certo?
“Eu poderia ficar assim pra sempre...”
Meus braços se afrouxaram.
Meus olhos se arregalaram.
“Quê!?” Perguntei ao me afastar levemente, sem sair do abraço. E só aí abriu os seus olhos, depois que soltei a coisa mais sincera em tempos.
Não consegui controlar a entonação de choque, e percebi que sua feição ficou um pouco rígida. Seu pomo de adão subiu e desceu e, aos poucos, ele desceu o rosto até me encarar.
Ficamos naquele contato visual e ele perguntou, após muito piscar:
“Oi?” Ele perguntou. Eu franzi o cenho, sorrindo sem graça.
“O que disse?”
Ele umedeceu os lábios, rindo levemente. Deu de ombros e olhou para frente, bem acima de minha cabeça.
“Você não gostaria de ficar assim pra sempre? Num abraço, sem preocupações, o clima ameno...” Explicou com a voz mais contida e voltou a me olhar, atento.
Apesar da sua feição parecer tranquila, eu senti que ele estava um pouco encabulado.
Talvez pelo fato de ter dito algo que possa ser interpretado de outra forma, mas... Era .
E no fim das contas, não tinha nada de segundas intenções ali, por motivos óbvios... então deixei para lá.
“Ah... Claro.” Respondi ao vestir uma máscara impenetrável. “Eu adoraria.”
Nós sorrimos um para o outro, mas a sensação era que o clima estava estranho.
Curiosamente estranho.
“Hm, então... Tá com fome? Eu ouvi dizer que hoje é lasanha.” Ele sugeriu, com um sorriso mais aberto que de costume.
Realmente, a fome era real. Foi só ele falar que meu estômago deu sinal de vida.
Eu ri levemente e concordei.
“Vamos comer. Porque até pra chorar, precisamos de energia.” Comentei qualquer bobeira, saindo de seu enlace e colocando minhas mãos para trás, sorrindo sem mostrar os dentes.
Estava difícil controlar as piruetas na boca do estômago.
Comecei a caminhar sorrateiramente e fez o mesmo, andando ao meu lado.
Permanecemos num silêncio constrangedor, até que ele me chamou.
“?” Perguntou ao segurar minha mão com firmeza.
Eu o olhei, atenta. parecia querer dizer algo, e estava levemente nervoso.
Eu disse nervoso?
Ok, isso era... estranho.
“O que foi?” Perguntei retoricamente.
Ele sorriu enquanto coçava a nuca e eu achei aquilo, acima de tudo, inédito.
Dificilmente ele ficava assim... Meio sem graça.
E o que eu me perguntava era: por que ele estava assim?
Meus pensamentos foram interrompidos por um pigarro dele.
“Não esquece do que eu te disse, tá?” Eu fiquei olhando, sem entender. Ele sorriu, deixando a cabeça pender um pouco pro lado. “Sobre você ser totalmente feita de amor. O amor é para todos. E isso inclui você, sem dúvida.”
Eu sorri, agradecida. acreditava piamente naquilo, e eu achava no mínimo acolhedor de sua parte.
Queria acreditar nisso também. Mas não disse nada, e só agradeci com um aceno. Entretanto, ele não parou por aí e acrescentou:
“Ainda há muita coisa pra nós.”
“Nós?” Perguntei sem filtrar e ficou corado.
Caralho, eu tinha perguntado aquilo mesmo? O que estava acontecendo comigo!?
riu levemente, concordando com a cabeça.
“É... Todos nós.” Respondeu depois de mordiscar o lábio inferior.
“Ah.” Eu respondi, tentando disfarçar, como se tivesse entendido. “Pode crer.”
Pode crer!? Pode crer!? Quem diabos responde uma coisa dessas!?
Engoli a seco e plantei meu melhor sorriso. Ele deu uma piscada e voltou a andar tranquilamente. Eu o segui um pouco mais atrás, viajando naquele diálogo doido.
“Não deixe que uma experiência ruim te convença do contrário.” Ele alertou ao me olhar por cima de seus ombros e eu concordei com um sorriso amarelo, não sentindo minhas pernas.
“Você tem razão, . Obrigada por isso.” Minha voz saiu mais automática que de costume e eu respirei fundo, sentindo um aperto no peito, encarando o chão, quando tive uma ideia. “Você pode ir caminhando pro refeitório? Eu... preciso ir no banheiro!” Apontei para o local, sorrindo forçadamente e dando um tchauzinho, enquanto me afastava. “Te encontro lá!”
“Ok.” Ele disse de maneira meio estranha, arqueando a sobrancelha ao me ver minimamente suspeita.
Essa era a merda de estar apaixonada pelo seu melhor amigo: ele sabe quando não tem algo certo.
E definitivamente, não tinha.
Caminhei a passos rápidos e logo estava no banheiro.
Fechei a porta, respirando fundo, e encostando minha testa na madeira gélida.
“Deus... Por quê?” Indaguei, me sentindo boba, e ri da minha própria desgraça.
Não bastava ser corna, eu também era caidinha por uma pessoa que não estava nem aí pra mim nesse sentido.
E ainda por cima, eu tinha a audácia de criar situações constrangedoras como as de momentos atrás.
Eu precisava dar um jeito na minha vida.
Respirei fundo, quando ouvi a porta se abrir e vozes femininas soarem no recinto.
“Sério que ele fez isso?”
“Sim, e fez debaixo do nariz dela!”
“Como assim!? Que babaca!”
“E o pior era que a outra era amiga dela há anos!”
Prendi a respiração, sabendo muito bem que estavam falando de Charlotte, e... de mim.
“Nossa, que horror! Eu não queria viver isso não.”
“Ninguém, né? Mas eu acho que ela também estava de caso com aquele ...”
“Quem, a Charlotte?”
“Não, a corna!”
“Sério?”
“Sim! Afinal de contas, por que ele e o brigariam!? Foi por causa dela, mas o namorado não tinha provas de que estava sendo corno também. Mó novela!”
Meu sangue ferveu naquele momento e eu simplesmente abri a porta do banheiro, fazendo um barulhão quando fechou atrás de mim.
As duas jovens, que eram do segundo ano, me olharam chocadas e surpresas.
Eu andei até a pia e abri o registro de água, lavando minhas mãos enquanto respondia numa entonação irritada.
“É . Meu nome é , e não corna.” Peguei o sabonete e passei pelas mãos, criando uma espuma sob a pele. “Vocês também são mulheres, não acham simplesmente ridículo quando quem faz a merda é o homem e você é quem paga o pato no fim das contas? Quando te reduzem a algo desse jeito?” Fechei a pia, sequei minhas mãos e cruzei os braços, sorrindo ironicamente para as meninas. “Não é da conta de ninguém o que acontece ou deixa de acontecer na minha vida, mas tem muito furo na história de vocês. Então da próxima vez que fofocarem, façam o favor de saber tudo direito, desde o começo. E antes que eu me esqueça: a vida de vocês deve ser uma grande merda para ficar se entretendo com acontecimentos de pessoas que vocês nem conhecem! Vão estudar, caralho!”
Berrei na hora do palavrão e as garotas deram um passo para trás, assustadas.
Eu não vi meu reflexo, mas era bem provável que até o diabo tivesse medo de mim, pois eu estava num estado de irritação absurdo.
Decidi saí dali antes que fizesse uma besteira, e andei a passos pesados para fora do banheiro, sem receber nenhuma resposta das garotas.
Fui nessa mesma energia até o refeitório, e respirei fundo antes de passar pela porta.
Os olhares foram instantâneos, e os cochichos também.
Respirei de novo e avistei meu grupo me esperando com feições terrivelmente forçadas e bufei com aquilo.
Antes que os alcançasse, o professor veio junto com a professora me receber com um sorriso amarelo.
A paciência estava mínima.
“Srta. ... Receio que tudo foi um mal entendido, certo?” Ele perguntou enquanto colocava as mãos no bolso. “Você sabe, do sumiço e... Você está bem?”
Sua pergunta foi numa entonação completamente diferente do resto da fala e eu consegui ver sinceridade em sua preocupação.
Encarei a professora, que tinha um olhar solícito e expectativa em minha resposta.
Suspirei, concordando com ambos.
“Sim, um mal entendido. Estou bem, não fiz nada demais. Apenas cochilei e não percebi o celular tocando insistentemente. Desculpe o transtorno.” Nunca fui tão sucinta e educada ao mesmo tempo.
Os mestres se entreolharam rapidamente, como se concordassem em silêncio que estava tudo ‘sob controle’.
“Certo, é ótimo saber disso e... caso precise conversar...”
“Estamos aqui para ajudar, querida. Sabemos que tudo é muito intenso nessa fase e que é bom saber que não está sozinha. Não hesite em nos chamar, certo?” A professora completou a frase iniciada pelo professor e eu poderia jurar que eles eram algum tipo de “Super gêmeos – ativar!” com aquela coisa de um concluir a frase do outro.
Mas era bonitinho em algum ponto.
E bem legal por se demonstrarem disponíveis.
“Agradeço a preocupação, se precisar chamo sim. Agora vou tentar comer alguma coisa, estou faminta. Obrigada e com licença.” Respondi com um aceno educado e me redirecionei para a fila, pegando a bendita lasanha.
Pelo menos alguma boa notícia no dia.
Depois de enfrentar filas, olhares e fofocas perto de mim, consegui finalmente me sentar com meus amigos – exceto , que estava num canto distante, sozinho.
O que eu achei particularmente hipócrita, pois ninguém, absolutamente ninguém mais duvidava que ele e Charlotte tinham alguma coisa. Todos tinham certeza; inclusive eu, por motivos óbvios.
“E aí! Muita fome?” perguntou com um sorriso exagerado e eu ergui a cara para encontrar uma do mesmo jeito, e os olhava com pena.
Eu bufei e rolei os olhos.
“Por favor, não façam isso. É pior.” Pedi silenciosamente, enquanto separava uma porção de comida no garfo. “Eu sei que tá geral sabendo, que tá todo mundo falando, e eu só quero não ser o centro das atenções. Então para dar fim ao assunto: fui terminar com , ele estava beijando Charlotte, fim do nosso lance, fui espairecer no deque, acabei cochilando e não vi nenhuma ligação no celular pois estava no silencioso. Vocês deduziram outra coisa e assim o auê foi instalado. Então, foi mal pela preocupação desnecessária, mas eu to viva e amanhã é um novo dia. É isso. Podemos comer e falar de outra coisa?” Perguntei enquanto os olhava de maneira séria.
suspirou e engoliu a seco.
mexeu na comida e retrucou de forma convincente.
“Eu falei que isso era uma ideia ruim.” Olhou os dois que o encaravam com tédio. “O que foi? Eu avisei mesmo! Vocês insistiram. Ela não ia bancar essa, mas vocês são teimosos.”
“A gente só estava tentando ajudar!” retrucou chateada e rolou os olhos.
“Eu sei, não estou julgando. Mas vocês poderiam ouvir o melhor amigo dela para ter uma alternativa melhor do que essa.”
“Chega dessa discussão sem sentido. A já deu o papo e a verdade é simples: essa lasanha tá do caralho.”
Eu soltei uma risada pela forma que interviu na situação, e isso acabou contagiando a mesa. Quando vimos, estávamos todos rindo daquilo.
“O mundo pode estar caindo, mas se tiver comida, tá tudo certo.” Comentei risonha, experimentando a lasanha e concordando com . Estava uma delícia!
“Só faltou o queijo ralado.” reclamou com um bico e deu de ombros.
“Aí tu pediu demais, Amaral. Tá achando que é Mia Thermopolis, a princesa de Genovia?”
“Mas gente, um queijo ralado não é coisa da realeza e...” argumentou, mas foi brutalmente interrompido por uma estupefata.
“Você tá citando ‘O Diário da princesa’!?” Os olhos arregalados e incisivos em cima de eram reais.
O parou de mastigar na hora e olhou para a amiga com cara de quem acabava de entrar numa fria.
“Hm... não, eu só...”
“Meu Deus, você é fã da Meg Cabot!” berrou, espalmando suas mãos na mesa com um sorriso enorme no rosto. “A precisa saber disso A-GO-RA!” e saiu catando o celular com um sorriso demoníaco, deixando um bem desesperado.
“Não, ! Na moral, minha reputação, cara!”
“Você não tem uma, tá querendo enganar a quem?” Ela perguntou com uma cara convencida e ele bufou, dando de ombros.
“Eu tinha uma banda, né...”
“Vai ser legal quando souberem que você curte Meg Cabot. Quer dizer, eu prefiro ‘A mediadora’, mas entendo o hype da princesa de Genóvia.” Comentei com um sorriso encorajador e ele me olhou sério.
“Ah, mas são duas pegadas diferentes! E venhamos e convenhamos que ‘O diário da princesa’ é aquele primeiro amor, todo mundo fica naquele enredo feliz e encantado...”
“Você é maluco. A Mediadora é bem melhor! Deixa de ser apegado com os filmes da Anne Hathaway!” retrucou com o cenho franzido e um sorriso de canto. fechou a cara.
“Não me peça o impossível, cara.” riu e encarou o , chocada.
“Você também curte?” Ele a olhou com cara de culpado.
“ me obrigou a ler com ela. Confesso que gostei.” explicou com um sorriso maior e me olhou terno.
“Talvez eu tenha obrigado no primeiro livro, mas os outros da saga, eu praticamente fui intimada a continuar lendo com um certo senhor ...” Comentei sarcasticamente e ele deu de ombros.
“É pra isso que a gente serve, né? Pra estar juntos nos bons e maus momentos da vida.” Eu ri ao concordar consigo.
“A gente mal sabia que as partes tensas dos livros eram os bons momentos...” Sorri, mexendo no meu prato, pensando na época que nos reunimos no nosso clube do livro de duas pessoas.
Ridículo, eu sei.
“Não mesmo... Mas faz parte também.” Ele respondeu sorridente, e ofereceu o punho para que eu desse uma batidinha nele. “O importante é que a gente tá junto.”
Eu abri um sorriso sincero e juntei meu punho ao seu.
“É isso aí.” Respondi mais alegre, voltando a comer meu prato.
Felizmente, nenhuma grande novidade nos acometeu naquela noite. Eu terminei de comer, tomei um banho relaxante e fui dormir – tudo acompanhada por , minha fiel companheira.
Capítulo 23 - I wanna live a life from a new perspective
No dia seguinte, parecia que eu não tinha dormido nada; entretanto, não acordei indisposta, apenas cansada mentalmente de tudo que precisaria enfrentar: os típicos olhares, ou até mesmo os comentários maldosos como os que ouvi no banheiro.
Ao longo do dia, tudo fluiu normalmente; exceto pelo fato de que seguia sozinho, enquanto eu ignorava solenemente a sua existência, bem como a de Charlotte, que já não se encontrava hospedada em nossa cabana.
Bom senso tardio ainda serve? Enfim.
Os ensaios da peça aconteceram normalmente, mesmo que eu estivesse um pouco aérea. A sorte era que a parte ensaiada era mais voltada para os convidados de um jantar pomposo que Aurélia havia proposto; basicamente eu desmaiava enquanto todos me acudiam e, no fim de tudo, eu travava uma briga com , interpretando a discussão entre Aurélia e Seixas, respectivamente dois apaixonados teimosos que tinham suas mágoas e pendências de questões passadas.
Pois é, nada de beijo.
Depois do fim das atividades, adiantei o meu banho, pois o dia estava mais calor do que de costume, e finalmente segui para o refeitório, feliz da vida por saber que teríamos macarronada. Eu estava massívora, confesso.
“E então ela desmaiou, mas na hora que caiu, parecia um saco de batatas!” me zoava enquanto explicava para e o ensaio que tivemos.
Todos rimos e eu dei o dedo do meio para meu melhor amigo.
“Você vive para tirar meu sossego, cara? Me erra! Eu não sou atriz, só tô tentando fazer uma boa nota.”
“Acho que vale treinar os desmaios então, pequena.” Ele brincou, dando uma piscadela, e eu dei um peteleco em sua testa, deixando a gente sorridente.
Estava voltando a atenção para meu prato quando ouvi alguém passar atrás de mim, cochichando.
“Ali, não te disse? Já tá na cola do outro!”
“Ela nem sequer gostava do outro cara! E esse aí namora outra! Aí depois reclama que foi corna.”
“É, quem quer tudo, nada tem.”
Meu sorriso murchou na hora. abriu a boca, chocada com a capacidade das pessoas falarem aquilo não tão disfarçadamente de propósito.
encarou as meninas com o cenho franzido e o queixo caído.
E estava com a cara fechada enquanto seu olhar se fixava nas garotas.
Eu umedeci os lábios, tentando jogar ar para os pulmões, sem muito sucesso.
Senti olhares sobre mim, e eu não estava alucinando – muitos me olhavam, como se esperassem uma reação minha.
Eu engoli a seco e me levantei com força.
“Como é que é?” Perguntei, me virando com raiva.
As jovens tinham um olhar sonso para cima de mim.
“Hm... nada, ué.” Uma delas comentou tentando disfarçar.
Elas não eram do mesmo nível que as outras do banheiro, e estavam propositalmente me desafiando. A troco de nada.
Eu ri, descrente.
“Eu fui traída, mas a culpa é minha? É essa a conclusão que todos chegam?” Perguntei com os braços abertos e olhei em volta. Algumas pessoas me olhavam como se quisessem conversar e compreender, outras como se apoiassem, e algumas como as jovens diante de mim; debochadas, achando que eu tinha feito por merecer toda aquela situação.
“Qual é o problema de vocês, na boa?” perguntou, se levantando e ficando ao meu lado.
Uma das jovens ergueu as mãos em defesa.
“Ah, pera lá. Você não pode nos culpar se a história vazou.”
“É, principalmente depois que você sumiu, quando todo mundo pensou que você estivesse fazendo algo contra si mesma...” Uma delas me olhou com um olhar óbvio e eu olhei para com uma risada sem humor.
“E aí, todos se acham no direito de comentar os acontecimentos sem nem fazer questão de disfarçar! Virou tribunal do júri, essa porra!?” Reclamei, voltando a encará-las bastante irritada, e as duas me olharam receosas.
“Cara, não precisa pirar. Todo mundo vai ser corno ou vai cornear alguém um dia.” A primeira falou como se fosse óbvio, dando de ombros. “Não é um grande problema.”
“QUE MERDA VOCÊ TEM NA CABEÇA!?” perguntou, indo pra cima delas, mas eu a segurei a tempo, ainda sem reação pelo que ouvi.
“Olha, você não precisava falar desse jeito, amiga.” A outra falou, repreendendo a primeira, que a olhou com tédio e concordou a contragosto. Por fim, a conciliadora sorriu tentando ser simpática e explicou: “O que estamos tentando dizer é que essas coisas fazem parte, não precisa ser o fim do mundo.”
“É, são só coisas que aconteceram e bem, acabou servindo de entretenimento pra todo mundo, entende? Hehehe.” A outra voltou a falar bosta, enquanto sua amiga batia na testa.
Meus braços, que seguravam , caíram inertes ao ouvir aquilo. Tanto eu quanto minha amiga ficamos embasbacadas, mas uma terceira pessoa se pronunciou, tomando nossa defesa.
“Então é isso que todo mundo quer? Entretenimento?” perguntou, e todos se viraram para olhá-lo.
Estava visivelmente puto, quando se ergueu da cadeira e começou a andar apressadamente em nossa direção.
“Hm, ignora a...” Uma delas tentou falar, mas ele interrompeu, furioso.
“Eu ouvi muito bem! A sua amiga é sem noção, mas certamente tem uma porrada de gente aqui que concorda com ela! Olha em volta!” Ele explicou, se colocando ao meu lado e gesticulando abertamente com os braços.
Todos nos encaravam.
“Ah, qual é! Um triângulo amoroso? É sempre uma boa história, vai?” A sem noção novamente se pronunciou e sua amiga deu um tapa no seu ombro. “O que foi?”
“Não há triângulo amoroso!” bradou, olhando sério para a garota, que pela primeira vez parecia considerar aquilo que lhe era dito. “Você não tá vendo? Aliás, vocês não estão vendo? A única história que existe aqui é de uma garota incrível que foi passada pra trás por uma atitude de um cara imbecil e uma pseudo-amiga, igualmente imbecil!” passou o olhar em , que o encarava com o maxilar travado, sem fazer nada além.
voltou a observá-las, irritado.
“Isso aqui não é uma novela pra vocês opinarem porra nenhuma. Deixem a em paz! Não sejam imbecis também, respeitem pessoas! É tão difícil assim!?”
O silêncio arrebatador no refeitório era geral. Mesmo com a ausência dos professores, alguns monitores presentes sequer interviram na situação, e encaravam a gente tão chocados quanto o resto do público.
Puta que pariu. Sim, eu disse público.
bufou e soltou um palavrão, me olhando com preocupação. Eu só o encarei de volta, atordoada com a situação.
“Hm, foi mal...” A sem noção disse de novo, olhando para os próprios pés, chamando nossa atenção.
“É o mínimo.” falou baixo, de braços cruzados, enquanto negava com a cabeça.
“Não levem ela tão a sério. Os filtros às vezes não funcionam, sabe?” A outra amiga tentou ajudar e a sem noção acenou rapidamente com um sorriso efusivo.
“Sim, eu não queria magoar ninguém! É só que, bem... Acho que a gente estava precisando de um pouco de emoção por aqui. Realmente, nenhuma novela seria à altura. Nota dez!”
Novamente, a outra amiga bateu na própria testa e eu suspirei pesado.
Me virei para meus amigos, com um sorriso falso e dei de ombros.
“Pra mim já deu. Vejo vocês depois.” E caminhei três passos, quando ouvi me chamar.
“, fica!” Ela me pediu e eu virei nos meus calcanhares, olhando pra minha amiga com uma cara dolorida.
“Não dá. Não agora. Desculpa.”
Quando me virei para continuar saindo, uma mão me segurou.
“Espera!” me chamou firme, e eu me virei surpresa.
Ele não olhava pra mim, e sim para as pessoas ao redor.
“Então é tudo sobre isso? Vocês querem entretenimento? Emoção?” Ele perguntou de forma irônica, sorrindo de um jeito debochado que eu raramente presenciava.
Engoli a seco, porque quando ele chegava naquele estado, era indicação de que alguma coisa ia acontecer.
Alguma coisa grande.
“É!” Uma pessoa longe berrou, e ele se virou com a cara fechada.
“É? Emoção, uh? Ok.” E se afastou alguns passos, respirou fundo e me olhou diretamente nos olhos, assumindo uma postura altiva.
E então, vestiu um semblante dolorido e ergueu as mãos em minha direção, começando a falar com a voz bem imposta.
“Aquela que me humilhou, aqui a tenho abatida, no mesmo lugar onde ultrajou-me, nas iras de minha paixão...!” E caminhou em minha direção, rondando meu corpo enquanto me olhava sem pestanejar.
“O que...” Eu me virei confusa, percebendo um levemente nervoso, mas decidido enquanto continuava com sua... sei lá o que era aquilo.
“Aqui a tenho, implorando meu perdão!?” Ele falou mais alto, parando diante de mim e se ajoelhando.
Eu pude ouvir os sons de surpresa saindo das bocas das pessoas.
Inclusive o meu.
Aquela frase, tão típica, tão... incomum.
Aquilo vibrou dentro de mim.
“...” Eu perguntei, sentindo meu coração bater rápido e as mãos suarem frio.
Ele esticou seus braços e seus dedos me tocaram.
Estavam mais gélidos e suados do que os meus.
“O que está fazendo?” Sussurrei, tentando disfarçar a nítida timidez.
tinha um brilho no olhar diferente, e me encarava num misto de alegria e efusividade.
“Confia em mim e só acene.” Ele disse, numa entonação normal, e beijou a pele da minha mão.
Olhei pelo canto dos olhos e todos nos olhavam, tão perdidos quanto eu.
voltou a falar.
“Então, a tenho implorando meu perdão?” Ele disse novamente, levantando-se pomposo e me segurando delicadamente pelos braços, me olhando como se fosse a coisa mais preciosa do mundo.
Eu acenei, conforme ele havia pedido, e deixei escapar um “sim” muito fraco pelos lábios.
“A tenho feliz porque me adora, e por fim, me tens como o senhor de sua alma?”
Puta que pariu.
Meu coração errou uma batida, e o ar não entrava pelo nariz.
Contudo, isso não me impediu de responder.
“Sim.” Eu disse com mais força, ao entender o que ele estava prestes a fazer.
sorriu abertamente, a ponto de seus olhos fecharem sutilmente.
E assim, tudo aconteceu depressa.
Suas mãos seguraram meu rosto com carinho; o polegar brincou com minha bochecha esquerda e seu nariz tocou o meu.
Os olhos dele fecharam primeiro do que os meus, e eu ainda não respirava.
Seu lábio inferior chegou a roçar no meu, e no segundo seguinte...
Nada.
se virou de costas pra mim, de frente para todos.
“Se querem saber como isso termina, não deixem de conferir a nossa releitura de ‘Senhora’, projeto da professora de literatura que eu e estamos participando, junto com uma equipe incrível. Entretenimento e emoção aqui, só assim! AGORA CUIDEM DAS SUAS VIDAS!”
E voltou caminhando para o seu lugar, com a feição fechada e sem olhar para ninguém.
Nem para mim.
Eu literalmente abri a boca para respirar, encarando o chão.
Que merda tinha acontecido aqui!?
tocou meu ombro e me olhou assustada, enquanto eu piscava inúmeras vezes. Encarei minha amiga momentos depois, pedindo ajuda pelo olhar desesperado, e ela sorriu teatralmente.
“Nossa, mas eu tô apertadíssima para ir no banheiro! , vem comigo?” E saiu me puxando apressadamente, sem nem precisar ouvir minha resposta.
Conforme caminhávamos, fomos recebidas com aplausos de todos. Eu rolei os olhos e sorriu amarelo, até chegarmos no banheiro.
Ao entrar no recinto, ela logo fechou a porta e trancou.
“Caraaaaalho, que foi isso!?” falou, se aproximando de mim. Eu estava me segurando na pia, me sentindo trêmula.
Os lábios comichavam com a sensação do quase beijo com .
“Puta que pariu, por que esse filho da puta fez isso?” Eu perguntei, encostando a testa no espelho e fechando os olhos, apertados.
“Bom... Ele não sabe de tudo, . Dá uma colher de chá, só tentou te ajudar. De um jeito bem doido e incrivelmente didático? Sim!” Ela explicou nervosa e eu choraminguei.
“Ele resolveu um incêndio de um quarto, inundando a casa!” Comentei com a voz embargada. “Caralho, por quê? Por quê? Eu quero muito esse beijo! Você não tá entendendo, ! Argh!” E escondi o rosto nas mãos. “Eu sou ruim?” E abri uma brecha para encarar minha amiga.
me olhou assustada.
“Não! Não mesmo! Olha, eu imagino que seja foda-“
“Bota foda nisso!” Reclamei, abrindo a torneira e molhando meu rosto.
“Ok, bem foda. Mas calma, uma coisa de cada vez. Isso tudo aconteceu, mas já passou e... Merda, eu não sei o que dizer, mas... Você não é ruim!”
“Não sou?” Perguntei com a voz fraca e ela negou com a cabeça.
“Não! Eu sei que pode ser difícil, mas que tal pensar pelo lado positivo? Esse beijo vai sair de uma forma ou de outra e por mais escroto que isso talvez soe, não é mais uma preocupação.”
O sorriso amarelo dela brilhou no reflexo do espelho, e eu ri da minha desgraça.
“É ruim estar triste e aliviada ao mesmo tempo?”
“Sim, . Isso não te faz uma pessoa ruim, só te faz humana. Relaxa um pouco!”
Respirei fundo, acenando.
“Relaxar um pouco. É, eu consigo fazer isso. Eu consigo.” Eu repetia enquanto olhava pro espelho. Até que fiz uma careta falsa de choro. “A gente quase se beijou, cara!”
soltou o ar com pena de mim e me abraçou.
“Uma coisa de cada vez. Só volte lá, termine sua janta e vá deitar. Não fica pensando nisso, e amanhã é outro dia. Ok?”
“Ok.”
“Ok?”
“Ok.”
“Você não está só repetindo o que eu tô falando não, né?”
“Não, né?” Retruquei com um meio sorriso, e nós nos encaramos por um segundo, antes de desatar a rir.
No meu caso, era riso de desgraça mesmo.
“É impressão minha ou eu terei de ser eternamente grata à Sra. Strauss?” Indaguei, reparando na minha feição abatida.
Nós duas nos olhamos e ela prendeu a risada, enquanto eu gemi em reclamação.
“Que droga de acampamento é esse que no quarto dia, tudo tá diferente do primeiro!? E agora eu me encontro numa contagem regressiva para um beijo fictício! Só tenho mais alguns dois dias até a peça! Que merda!” Afoguei minha cara na pia e logo veio tirar meu rosto dali.
“Calma, cacete! Calma, uma coisa de cada vez!” E me segurou pelos ombros, me olhando séria. Ficamos assim por um tempo e ela arqueou uma sobrancelha, com um sorriso pequeno.
“Que foi?” Perguntei, com medo. Ela sorriu mais ainda.
“Por que você não sugere um ensaio do beijo?” Eu fiz uma careta.
“Mas e a Lis?” Indaguei retoricamente, com a careta de dor e o rosto todo ensopado. suspirou.
“Cara, então... Entendo que isso possa ser delicado, mas teoricamente é só uma cena de uma peça. aceitou isso sabendo que essas coisas faziam parte do acordo! Então na real, isso nem é problema seu.”
Mas eu sentia um peso absurdo no peito só de pensar naquilo.
“Céus, por que é tudo tão complicado!?” Por que eu tinha que pensar tanto, meu Deus?
bufou.
“Não é! Acabou de descomplicar: você tá solteira, o parece super dentro do papel e ele sequer abre a boca para falar de Lis, ao contrário de você, que ele só falta usar um megafone pra dizer o quanto é maravilhosa!”
Eu estava prestes a mergulhar minha cara na pia de novo quando aquilo me fez parar.
“Como é?” Perguntei com o cenho franzido.
deu de ombros.
“Você não notou que ele parece mais alegrinho com esse lance da peça não? Tô passando a acreditar que sua mãe estava certa.”
Eu olhei para minha amiga por uns cinco segundos.
E depois comecei a gargalhar.
“Você é ótima, sério!” Eu disse, depois de me recuperar. “Ai, eu não pensei que riria tanto depois de tanto estresse. Obrigada.”
“De nada. Eu acho.” Ela comentou confusa, com os braços cruzados. “Mas isso não foi uma piada.”
“O quê!?” Me virei, descrente pelas palavras dela. “O que você tá insinuando?”
coçou a cabeça.
“Nada a princípio, mas... Digamos apenas que não me parece tão preocupado em te beijar enquanto namora Lis. Eu não moro no coração de ninguém, mas dá pra perceber que ele tá com um humor melhor. E eu acho que tem tudo a ver com você.”
“Tem, porque voltamos a nos falar!?” Disse em modo óbvio.
“Tá, pode ser... Mas sei lá. É muito pra pouco.” Ela deu de ombros e eu suspirei, pegando papel para enxugar meu rosto.
“Sério , é até compreensível que mamãe fique nessa sina porque ela me viu crescer com , mas até você? Nada a ver. Vai por mim, é que a gente nunca tinha ficado tanto tempo afastado, e retomar a amizade significa realmente algo essencial pra nós. Nada mais que isso.”
“Se você tem certeza...” Ela comentou, zombando de mim com o olhar. Eu suspirei.
“Acredite, eu adoraria estar errada.” Falei enquanto jogava o papel no lixo e reparei na minha mão. “Merda. Ainda estou me sentindo nervosa.”
“Pudera, né. Mó tensão, mó climão. Até eu ficaria desnorteada com uma declaração daquelas.” Ela disse de olhos bem abertos enquanto destrancava a porta.
“Era cena.” Reclamei de cara fechada.
“Bem vívida. Me pergunto se seria assim se Aurélia fosse outra garota.” Ela zombou com um sorriso de canto e eu dei o dedo do meio, rindo levemente.
“Vai à merda.”
Voltamos andando, algumas pessoas ainda nos olhavam, mas seguiram com suas conversas, interações.
Eram bem verdade que o refeitório estava mais vazio, e ao chegar perto da mesa, percebi que não estava lá. Apenas , que mexia no celular.
“Cadê o ?” perguntou, sentando-se. Eu sentei, esperando a resposta do , que deu de ombros.
“Ele terminou de comer e depois disse que ia fumar um cigarro.” E desgrudou os olhos do celular com um sorriso aberto. “Aliás, que cena! Até comentei com . Realmente, estou ansioso para o grande dia!”
Eu suspirei enquanto dava uma risadinha infame.
“Alguém mais ficou enchendo o saco?” Perguntei, comendo minha macarronada fria. A fome era real e eu nem liguei.
“Hm, não. Parece que a galera meio que se tocou.”
“ foi bem didático, né?” disse, rindo.
“E ?” Perguntei, sem tirar os olhos do meu prato.
Ouvi suspirar e responder:
“Ah cara, tá naquela. Cabisbaixo, sozinho, mó cara de enterro.”
“Fez merda, né?” disse de maneira óbvia e concordou, dando de ombros.
“Bom, eu só estou respondendo o que me perguntaram. Mas ele parece estar mexido com tudo isso.”
“É remorso. Que fique.” disse com raiva e eu e nos olhamos risonhos.
“Eu não tenho que aturar essa galera fazendo o auê todo? Ele que lute um pouco também.” Respondi com uma careta.
“Na verdade, você não é obrigada a nada, mas entendi seu ponto.” comentou sorridente e eu concordei com um aceno.
Ele e continuaram falando da reação dos outros, enquanto eu foquei em terminar meu prato. Assim que o fiz, puxei meu celular e vi que eram quase 21 horas. Apesar disso, o cansaço era real, e eu dormiria cedo.
“Galera, ótimo dividir todas as loucuras que a adolescência pode propor com vocês, mas eu vou tomar um banho e dormir, que pra mim já deu. Boa noite!”
Eles me olharam atentos, mas não disseram nada. Apenas desejaram boa noite e eu retribuí, com um meio sorriso cansado.
Fiz tudo automaticamente: passei na cabana, peguei minhas coisas, fui ao banheiro, e me banhei.
A temperatura da água estava ótima, e eu me permiti ficar uns momentos debaixo do chuveiro apenas pensando em nada.
Quer dizer, eu merecia isso, não é?
Sequei os cabelos, e fui rebelde ao molhá-lo de noite, mas eu literalmente precisava esfriar a cabeça. Perdão, Pai, pois eu pequei.
Depois de colocar o casaco, fui caminhando até a minha cabana preguiçosamente, quase me arrastando de cansaço.
O mental pressionava o físico, e eu realmente senti que poderia dormir em qualquer lugar que encostasse.
Mas tudo mudou quando reparei um vulto parado nas escadas de meus aposentos.
O frio na barriga voltou, ainda que não fosse na mesma pressão que antes.
Entretanto, usei meu sorriso educado e me aproximei, decidida a ser mais leve.
“Fumando antes de dormir?” Perguntei com um ar simpático e concordou com um aceno, se livrando da guimba no lixo.
“Algo do tipo. Jantou direito?” Perguntou com as mãos no bolso do casaco e eu finalmente fiquei a um passo de si, olhando-o nos olhos.
“Sim, pai. Tudo certo.” Brinquei, mas apenas sorriu de canto.
Seus pés se mexiam irrequietos e eu reparei naquilo, erguendo uma sobrancelha.
“Algum problema?” Indaguei o óbvio e ele expirou com força.
“Eu... acho que devo desculpas. Pela cena.” Ele prendeu os lábios numa linha fina e me olhou nervoso. “Eu deveria ter perguntado de alguma forma se você concordava com aquilo, então eu... Acho que meti os pés pelas mãos.”
Eu fiquei olhando sua feição, enquanto ele visivelmente lutava contra seu nervosismo.
“Me desculpe. Passei dos limites e acho que foi indevido, porque de certa forma acabei te expondo, e essa não era a intenção. A ideia era bem melhor na minha cabeça, confesso...” E encarou o chão, com uma cara chateada.
Eu pigarreei, pensando no que dizer.
“Eu entendi.”
“Entendeu?” Levantou a cabeça rápido, me encarando atento.
“Sim. Foi... inusitado, eu diria. Mas acho que funcionou.” Eu respondi, um pouco sem graça. Encarei seu rosto e estava me dando nervoso vê-lo aflito, mas logo um sorriso aliviado surgiu, me deixando mais tranquila também.
“Você não sabe quantos cigarros eu fumei depois do jantar.” Ele comentou enquanto sorria encabulado, olhando para o chão.
“Ok, isso me irrita mais do que seu ato galã, Seixas.” Cruzei os braços, com uma sobrancelha franzida.
Ele deu de ombros, prendendo uma risada.
“Talvez um dia eu pare... Aurélia.”
Nós dois rimos e ficamos nos olhando.
E então, respirei antes de continuar com aquela conversa.
“Só... me avisa melhor quando for fazer algo do tipo. Tá bem?” Pontuei com uma feição séria. “Foi um dia cheio de emoções e bem confuso. A última coisa que eu quero é ser pega de surpresa quando não estou tendo um dia bom e acabar exagerando em alguma reação. Acho que você entende...”
“Perfeitamente.” Ele concordou, novamente tenso.
“Mas hey, fica tranquilo. Tudo certo entre nós.” Encorajei, batendo levemente no seu ombro, enquanto ele perguntava desconfiado.
“Sério mesmo?”
“Muito sério. Além do mais...” Eu olhei pro lado, pensando no que ia falar, mas me calei.
“O que?” Ele perguntou atento.
“Nah, esquece. Não é importante.” Eu disse, abanando com a mão.
“Fala, cara.” Ele insistiu e eu ri sem graça.
“Esquece! Não era nada demais.”
“Você sabe que eu odeio quando você faz isso...” Ele resmungou e eu ri.
Olhei dentro dos olhos de e respirei fundo, tomando coragem.
Eu ia dizer aquilo mesmo?
Pelo visto, sim.
“Eu ia dizer que faz parte... O beijo.”
O pomo de adão de subiu e desceu rapidamente, e ele arqueou a sobrancelha, me olhando ressabiado.
Me apressei em explicar.
“Você sabe, a peça e tudo mais... Estamos de acordo ao treinar aquela cena. A cena final! Do... beijo e—”
Ele prendeu uma risada e expirou forte, me olhando carinhoso.
“O que foi?” Eu questionei, meio confusa, com as mãos erguidas por estar gesticulando.
“Eu tô zoando. Eu sei do beijo. Só fingi que não sabia para ver sua reação.”
Eu bufei enquanto ele tentava controlar a risada mal e porcamente.
“Porra, !” Reclamei, dando um tapinha em seu ombro. Ele tentou se defender, sem muito sucesso.
“Porra o que? Ficou nervosa?”
Meu olhar cintilou no dele, que me encarava debochado.
“Não.” Respondi levemente irritada, e ele cruzou os braços.
“Não?”
“Não, ué. Mas você tem de convir que isso é uma situação meio constrangedora.” Dei de ombros, olhando-o com a cara óbvia.
O ar brincalhão em sua feição sumiu na hora.
Ele ficou um tempo em silêncio, me encarando de forma atônita.
“Tá com vergonha de mim?” Ele soltou essa, franzindo o cenho.
Eu não acreditei que ele tinha dito aquilo.
“Claro que não! Mas se tratam de dois melhores amigos que se beijam, e um deles namora. Não é a coisa mais confortável do mundo.” Expliquei, enquanto gesticulava rapidamente, e ele bufou, negando com a cabeça.
“Céus, por que você tá com medo?” Ele indagou de braços cruzados e eu o imitei.
“O quê!?” Eu perguntei apenas para tentar bolar algo na cabeça. Porque a real era que eu estava sim me cagando de medo do que seria minha vida pós-beijo do . Mas não do beijo em si.
Ele riu com escárnio.
“Você consegue ficar de boa depois de uma cena daquelas, mas fica com medo de um simples beijo numa peça?”
“Medo, ?” Perguntei debochada e ele respondeu incisivamente.
“É, medo! Por que tanta preocupação? Não há nada demais! É só uma peça! É só um beijo!” Ele desabafou enquanto jogava as mãos para o ar, parecendo levemente irritado.
Não era só um beijo para mim.
Mas eu não diria aquilo.
Não ali, não daquele jeito.
Então, uma ideia começou a se formar na minha mente, conforme me puxava conscientemente ou não, me pressionava.
“É só um beijo?” Eu repeti, colocando as mãos na cintura.
“É! Só um beijo!” Ele deu de ombros, me encarando sério.
“Só um beijo?” Eu dei mais um passo para frente, olhando bem dentro de seus olhos, a ponto de nossas respirações se misturarem.
“...É.” Ele respondeu com o cenho franzido, enquanto analisava a minha aproximação.
O clima havia mudado da água para o vinho; havia tensão entre nós.
Tensão... sexual.
Medo? Eu mostraria a ele quem tem medo.
“Medo, é?” Zombei, fixando o olhar descaradamente em seus lábios.
“Hm.” Ele respondeu automaticamente, analisando minha feição com seus olhos correndo sobre meu rosto.
Até que... pararam na minha boca.
E ficaram ali.
Percebi que o maxilar de se tensionou e eu não vou mentir: gostei muito do que vi, ainda que tudo fosse inédito naquela situação.
Não sei o que aquilo poderia significar, mas eu estava longe de parar com aquela investida.
Uma parte de mim não acreditava que eu estava prestes a fazer o que iria fazer, mas a outra parte – a grandíssima parte – não estava nem aí para refletir nas consequências dos atos.
Fiquei nas pontas dos pés e larguei minhas coisas na escada, deixando as mãos livres.
piscou algumas vezes ao ouvir o barulho das coisas se chocando contra os degraus.
Eu sequer pisquei.
“?” Chamei seu nome, e uma pequena brecha entre seus lábios se abriu, enquanto ele me observava fixamente.
“Hm?” Ele soltou em uma entonação baixa, baixando seu olhar novamente pros meus lábios.
Automaticamente, os umedeci e engoli a seco, segurando o rosto de sutilmente em minhas mãos.
Olhei bem dentro de seus olhos e decidi.
Eu ia fazer isso.
Eu ia fazer isso.
Eu... ia fazer isso!
“É só um beijo.” Falei, e logo depois puxei seu rosto em minha direção, chocando meus lábios nos seus.
E por fim, todo aquele frio na barriga voltou com força total.
Porque eu acabava de beijar meu melhor amigo, .
Ao longo do dia, tudo fluiu normalmente; exceto pelo fato de que seguia sozinho, enquanto eu ignorava solenemente a sua existência, bem como a de Charlotte, que já não se encontrava hospedada em nossa cabana.
Bom senso tardio ainda serve? Enfim.
Os ensaios da peça aconteceram normalmente, mesmo que eu estivesse um pouco aérea. A sorte era que a parte ensaiada era mais voltada para os convidados de um jantar pomposo que Aurélia havia proposto; basicamente eu desmaiava enquanto todos me acudiam e, no fim de tudo, eu travava uma briga com , interpretando a discussão entre Aurélia e Seixas, respectivamente dois apaixonados teimosos que tinham suas mágoas e pendências de questões passadas.
Pois é, nada de beijo.
Depois do fim das atividades, adiantei o meu banho, pois o dia estava mais calor do que de costume, e finalmente segui para o refeitório, feliz da vida por saber que teríamos macarronada. Eu estava massívora, confesso.
“E então ela desmaiou, mas na hora que caiu, parecia um saco de batatas!” me zoava enquanto explicava para e o ensaio que tivemos.
Todos rimos e eu dei o dedo do meio para meu melhor amigo.
“Você vive para tirar meu sossego, cara? Me erra! Eu não sou atriz, só tô tentando fazer uma boa nota.”
“Acho que vale treinar os desmaios então, pequena.” Ele brincou, dando uma piscadela, e eu dei um peteleco em sua testa, deixando a gente sorridente.
Estava voltando a atenção para meu prato quando ouvi alguém passar atrás de mim, cochichando.
“Ali, não te disse? Já tá na cola do outro!”
“Ela nem sequer gostava do outro cara! E esse aí namora outra! Aí depois reclama que foi corna.”
“É, quem quer tudo, nada tem.”
Meu sorriso murchou na hora. abriu a boca, chocada com a capacidade das pessoas falarem aquilo não tão disfarçadamente de propósito.
encarou as meninas com o cenho franzido e o queixo caído.
E estava com a cara fechada enquanto seu olhar se fixava nas garotas.
Eu umedeci os lábios, tentando jogar ar para os pulmões, sem muito sucesso.
Senti olhares sobre mim, e eu não estava alucinando – muitos me olhavam, como se esperassem uma reação minha.
Eu engoli a seco e me levantei com força.
“Como é que é?” Perguntei, me virando com raiva.
As jovens tinham um olhar sonso para cima de mim.
“Hm... nada, ué.” Uma delas comentou tentando disfarçar.
Elas não eram do mesmo nível que as outras do banheiro, e estavam propositalmente me desafiando. A troco de nada.
Eu ri, descrente.
“Eu fui traída, mas a culpa é minha? É essa a conclusão que todos chegam?” Perguntei com os braços abertos e olhei em volta. Algumas pessoas me olhavam como se quisessem conversar e compreender, outras como se apoiassem, e algumas como as jovens diante de mim; debochadas, achando que eu tinha feito por merecer toda aquela situação.
“Qual é o problema de vocês, na boa?” perguntou, se levantando e ficando ao meu lado.
Uma das jovens ergueu as mãos em defesa.
“Ah, pera lá. Você não pode nos culpar se a história vazou.”
“É, principalmente depois que você sumiu, quando todo mundo pensou que você estivesse fazendo algo contra si mesma...” Uma delas me olhou com um olhar óbvio e eu olhei para com uma risada sem humor.
“E aí, todos se acham no direito de comentar os acontecimentos sem nem fazer questão de disfarçar! Virou tribunal do júri, essa porra!?” Reclamei, voltando a encará-las bastante irritada, e as duas me olharam receosas.
“Cara, não precisa pirar. Todo mundo vai ser corno ou vai cornear alguém um dia.” A primeira falou como se fosse óbvio, dando de ombros. “Não é um grande problema.”
“QUE MERDA VOCÊ TEM NA CABEÇA!?” perguntou, indo pra cima delas, mas eu a segurei a tempo, ainda sem reação pelo que ouvi.
“Olha, você não precisava falar desse jeito, amiga.” A outra falou, repreendendo a primeira, que a olhou com tédio e concordou a contragosto. Por fim, a conciliadora sorriu tentando ser simpática e explicou: “O que estamos tentando dizer é que essas coisas fazem parte, não precisa ser o fim do mundo.”
“É, são só coisas que aconteceram e bem, acabou servindo de entretenimento pra todo mundo, entende? Hehehe.” A outra voltou a falar bosta, enquanto sua amiga batia na testa.
Meus braços, que seguravam , caíram inertes ao ouvir aquilo. Tanto eu quanto minha amiga ficamos embasbacadas, mas uma terceira pessoa se pronunciou, tomando nossa defesa.
“Então é isso que todo mundo quer? Entretenimento?” perguntou, e todos se viraram para olhá-lo.
Estava visivelmente puto, quando se ergueu da cadeira e começou a andar apressadamente em nossa direção.
“Hm, ignora a...” Uma delas tentou falar, mas ele interrompeu, furioso.
“Eu ouvi muito bem! A sua amiga é sem noção, mas certamente tem uma porrada de gente aqui que concorda com ela! Olha em volta!” Ele explicou, se colocando ao meu lado e gesticulando abertamente com os braços.
Todos nos encaravam.
“Ah, qual é! Um triângulo amoroso? É sempre uma boa história, vai?” A sem noção novamente se pronunciou e sua amiga deu um tapa no seu ombro. “O que foi?”
“Não há triângulo amoroso!” bradou, olhando sério para a garota, que pela primeira vez parecia considerar aquilo que lhe era dito. “Você não tá vendo? Aliás, vocês não estão vendo? A única história que existe aqui é de uma garota incrível que foi passada pra trás por uma atitude de um cara imbecil e uma pseudo-amiga, igualmente imbecil!” passou o olhar em , que o encarava com o maxilar travado, sem fazer nada além.
voltou a observá-las, irritado.
“Isso aqui não é uma novela pra vocês opinarem porra nenhuma. Deixem a em paz! Não sejam imbecis também, respeitem pessoas! É tão difícil assim!?”
O silêncio arrebatador no refeitório era geral. Mesmo com a ausência dos professores, alguns monitores presentes sequer interviram na situação, e encaravam a gente tão chocados quanto o resto do público.
Puta que pariu. Sim, eu disse público.
bufou e soltou um palavrão, me olhando com preocupação. Eu só o encarei de volta, atordoada com a situação.
“Hm, foi mal...” A sem noção disse de novo, olhando para os próprios pés, chamando nossa atenção.
“É o mínimo.” falou baixo, de braços cruzados, enquanto negava com a cabeça.
“Não levem ela tão a sério. Os filtros às vezes não funcionam, sabe?” A outra amiga tentou ajudar e a sem noção acenou rapidamente com um sorriso efusivo.
“Sim, eu não queria magoar ninguém! É só que, bem... Acho que a gente estava precisando de um pouco de emoção por aqui. Realmente, nenhuma novela seria à altura. Nota dez!”
Novamente, a outra amiga bateu na própria testa e eu suspirei pesado.
Me virei para meus amigos, com um sorriso falso e dei de ombros.
“Pra mim já deu. Vejo vocês depois.” E caminhei três passos, quando ouvi me chamar.
“, fica!” Ela me pediu e eu virei nos meus calcanhares, olhando pra minha amiga com uma cara dolorida.
“Não dá. Não agora. Desculpa.”
Quando me virei para continuar saindo, uma mão me segurou.
“Espera!” me chamou firme, e eu me virei surpresa.
Ele não olhava pra mim, e sim para as pessoas ao redor.
“Então é tudo sobre isso? Vocês querem entretenimento? Emoção?” Ele perguntou de forma irônica, sorrindo de um jeito debochado que eu raramente presenciava.
Engoli a seco, porque quando ele chegava naquele estado, era indicação de que alguma coisa ia acontecer.
Alguma coisa grande.
“É!” Uma pessoa longe berrou, e ele se virou com a cara fechada.
“É? Emoção, uh? Ok.” E se afastou alguns passos, respirou fundo e me olhou diretamente nos olhos, assumindo uma postura altiva.
E então, vestiu um semblante dolorido e ergueu as mãos em minha direção, começando a falar com a voz bem imposta.
“Aquela que me humilhou, aqui a tenho abatida, no mesmo lugar onde ultrajou-me, nas iras de minha paixão...!” E caminhou em minha direção, rondando meu corpo enquanto me olhava sem pestanejar.
“O que...” Eu me virei confusa, percebendo um levemente nervoso, mas decidido enquanto continuava com sua... sei lá o que era aquilo.
“Aqui a tenho, implorando meu perdão!?” Ele falou mais alto, parando diante de mim e se ajoelhando.
Eu pude ouvir os sons de surpresa saindo das bocas das pessoas.
Inclusive o meu.
Aquela frase, tão típica, tão... incomum.
Aquilo vibrou dentro de mim.
“...” Eu perguntei, sentindo meu coração bater rápido e as mãos suarem frio.
Ele esticou seus braços e seus dedos me tocaram.
Estavam mais gélidos e suados do que os meus.
“O que está fazendo?” Sussurrei, tentando disfarçar a nítida timidez.
tinha um brilho no olhar diferente, e me encarava num misto de alegria e efusividade.
“Confia em mim e só acene.” Ele disse, numa entonação normal, e beijou a pele da minha mão.
Olhei pelo canto dos olhos e todos nos olhavam, tão perdidos quanto eu.
voltou a falar.
“Então, a tenho implorando meu perdão?” Ele disse novamente, levantando-se pomposo e me segurando delicadamente pelos braços, me olhando como se fosse a coisa mais preciosa do mundo.
Eu acenei, conforme ele havia pedido, e deixei escapar um “sim” muito fraco pelos lábios.
“A tenho feliz porque me adora, e por fim, me tens como o senhor de sua alma?”
Puta que pariu.
Meu coração errou uma batida, e o ar não entrava pelo nariz.
Contudo, isso não me impediu de responder.
“Sim.” Eu disse com mais força, ao entender o que ele estava prestes a fazer.
sorriu abertamente, a ponto de seus olhos fecharem sutilmente.
E assim, tudo aconteceu depressa.
Suas mãos seguraram meu rosto com carinho; o polegar brincou com minha bochecha esquerda e seu nariz tocou o meu.
Os olhos dele fecharam primeiro do que os meus, e eu ainda não respirava.
Seu lábio inferior chegou a roçar no meu, e no segundo seguinte...
Nada.
se virou de costas pra mim, de frente para todos.
“Se querem saber como isso termina, não deixem de conferir a nossa releitura de ‘Senhora’, projeto da professora de literatura que eu e estamos participando, junto com uma equipe incrível. Entretenimento e emoção aqui, só assim! AGORA CUIDEM DAS SUAS VIDAS!”
E voltou caminhando para o seu lugar, com a feição fechada e sem olhar para ninguém.
Nem para mim.
Eu literalmente abri a boca para respirar, encarando o chão.
Que merda tinha acontecido aqui!?
tocou meu ombro e me olhou assustada, enquanto eu piscava inúmeras vezes. Encarei minha amiga momentos depois, pedindo ajuda pelo olhar desesperado, e ela sorriu teatralmente.
“Nossa, mas eu tô apertadíssima para ir no banheiro! , vem comigo?” E saiu me puxando apressadamente, sem nem precisar ouvir minha resposta.
Conforme caminhávamos, fomos recebidas com aplausos de todos. Eu rolei os olhos e sorriu amarelo, até chegarmos no banheiro.
Ao entrar no recinto, ela logo fechou a porta e trancou.
“Caraaaaalho, que foi isso!?” falou, se aproximando de mim. Eu estava me segurando na pia, me sentindo trêmula.
Os lábios comichavam com a sensação do quase beijo com .
“Puta que pariu, por que esse filho da puta fez isso?” Eu perguntei, encostando a testa no espelho e fechando os olhos, apertados.
“Bom... Ele não sabe de tudo, . Dá uma colher de chá, só tentou te ajudar. De um jeito bem doido e incrivelmente didático? Sim!” Ela explicou nervosa e eu choraminguei.
“Ele resolveu um incêndio de um quarto, inundando a casa!” Comentei com a voz embargada. “Caralho, por quê? Por quê? Eu quero muito esse beijo! Você não tá entendendo, ! Argh!” E escondi o rosto nas mãos. “Eu sou ruim?” E abri uma brecha para encarar minha amiga.
me olhou assustada.
“Não! Não mesmo! Olha, eu imagino que seja foda-“
“Bota foda nisso!” Reclamei, abrindo a torneira e molhando meu rosto.
“Ok, bem foda. Mas calma, uma coisa de cada vez. Isso tudo aconteceu, mas já passou e... Merda, eu não sei o que dizer, mas... Você não é ruim!”
“Não sou?” Perguntei com a voz fraca e ela negou com a cabeça.
“Não! Eu sei que pode ser difícil, mas que tal pensar pelo lado positivo? Esse beijo vai sair de uma forma ou de outra e por mais escroto que isso talvez soe, não é mais uma preocupação.”
O sorriso amarelo dela brilhou no reflexo do espelho, e eu ri da minha desgraça.
“É ruim estar triste e aliviada ao mesmo tempo?”
“Sim, . Isso não te faz uma pessoa ruim, só te faz humana. Relaxa um pouco!”
Respirei fundo, acenando.
“Relaxar um pouco. É, eu consigo fazer isso. Eu consigo.” Eu repetia enquanto olhava pro espelho. Até que fiz uma careta falsa de choro. “A gente quase se beijou, cara!”
soltou o ar com pena de mim e me abraçou.
“Uma coisa de cada vez. Só volte lá, termine sua janta e vá deitar. Não fica pensando nisso, e amanhã é outro dia. Ok?”
“Ok.”
“Ok?”
“Ok.”
“Você não está só repetindo o que eu tô falando não, né?”
“Não, né?” Retruquei com um meio sorriso, e nós nos encaramos por um segundo, antes de desatar a rir.
No meu caso, era riso de desgraça mesmo.
“É impressão minha ou eu terei de ser eternamente grata à Sra. Strauss?” Indaguei, reparando na minha feição abatida.
Nós duas nos olhamos e ela prendeu a risada, enquanto eu gemi em reclamação.
“Que droga de acampamento é esse que no quarto dia, tudo tá diferente do primeiro!? E agora eu me encontro numa contagem regressiva para um beijo fictício! Só tenho mais alguns dois dias até a peça! Que merda!” Afoguei minha cara na pia e logo veio tirar meu rosto dali.
“Calma, cacete! Calma, uma coisa de cada vez!” E me segurou pelos ombros, me olhando séria. Ficamos assim por um tempo e ela arqueou uma sobrancelha, com um sorriso pequeno.
“Que foi?” Perguntei, com medo. Ela sorriu mais ainda.
“Por que você não sugere um ensaio do beijo?” Eu fiz uma careta.
“Mas e a Lis?” Indaguei retoricamente, com a careta de dor e o rosto todo ensopado. suspirou.
“Cara, então... Entendo que isso possa ser delicado, mas teoricamente é só uma cena de uma peça. aceitou isso sabendo que essas coisas faziam parte do acordo! Então na real, isso nem é problema seu.”
Mas eu sentia um peso absurdo no peito só de pensar naquilo.
“Céus, por que é tudo tão complicado!?” Por que eu tinha que pensar tanto, meu Deus?
bufou.
“Não é! Acabou de descomplicar: você tá solteira, o parece super dentro do papel e ele sequer abre a boca para falar de Lis, ao contrário de você, que ele só falta usar um megafone pra dizer o quanto é maravilhosa!”
Eu estava prestes a mergulhar minha cara na pia de novo quando aquilo me fez parar.
“Como é?” Perguntei com o cenho franzido.
deu de ombros.
“Você não notou que ele parece mais alegrinho com esse lance da peça não? Tô passando a acreditar que sua mãe estava certa.”
Eu olhei para minha amiga por uns cinco segundos.
E depois comecei a gargalhar.
“Você é ótima, sério!” Eu disse, depois de me recuperar. “Ai, eu não pensei que riria tanto depois de tanto estresse. Obrigada.”
“De nada. Eu acho.” Ela comentou confusa, com os braços cruzados. “Mas isso não foi uma piada.”
“O quê!?” Me virei, descrente pelas palavras dela. “O que você tá insinuando?”
coçou a cabeça.
“Nada a princípio, mas... Digamos apenas que não me parece tão preocupado em te beijar enquanto namora Lis. Eu não moro no coração de ninguém, mas dá pra perceber que ele tá com um humor melhor. E eu acho que tem tudo a ver com você.”
“Tem, porque voltamos a nos falar!?” Disse em modo óbvio.
“Tá, pode ser... Mas sei lá. É muito pra pouco.” Ela deu de ombros e eu suspirei, pegando papel para enxugar meu rosto.
“Sério , é até compreensível que mamãe fique nessa sina porque ela me viu crescer com , mas até você? Nada a ver. Vai por mim, é que a gente nunca tinha ficado tanto tempo afastado, e retomar a amizade significa realmente algo essencial pra nós. Nada mais que isso.”
“Se você tem certeza...” Ela comentou, zombando de mim com o olhar. Eu suspirei.
“Acredite, eu adoraria estar errada.” Falei enquanto jogava o papel no lixo e reparei na minha mão. “Merda. Ainda estou me sentindo nervosa.”
“Pudera, né. Mó tensão, mó climão. Até eu ficaria desnorteada com uma declaração daquelas.” Ela disse de olhos bem abertos enquanto destrancava a porta.
“Era cena.” Reclamei de cara fechada.
“Bem vívida. Me pergunto se seria assim se Aurélia fosse outra garota.” Ela zombou com um sorriso de canto e eu dei o dedo do meio, rindo levemente.
“Vai à merda.”
Voltamos andando, algumas pessoas ainda nos olhavam, mas seguiram com suas conversas, interações.
Eram bem verdade que o refeitório estava mais vazio, e ao chegar perto da mesa, percebi que não estava lá. Apenas , que mexia no celular.
“Cadê o ?” perguntou, sentando-se. Eu sentei, esperando a resposta do , que deu de ombros.
“Ele terminou de comer e depois disse que ia fumar um cigarro.” E desgrudou os olhos do celular com um sorriso aberto. “Aliás, que cena! Até comentei com . Realmente, estou ansioso para o grande dia!”
Eu suspirei enquanto dava uma risadinha infame.
“Alguém mais ficou enchendo o saco?” Perguntei, comendo minha macarronada fria. A fome era real e eu nem liguei.
“Hm, não. Parece que a galera meio que se tocou.”
“ foi bem didático, né?” disse, rindo.
“E ?” Perguntei, sem tirar os olhos do meu prato.
Ouvi suspirar e responder:
“Ah cara, tá naquela. Cabisbaixo, sozinho, mó cara de enterro.”
“Fez merda, né?” disse de maneira óbvia e concordou, dando de ombros.
“Bom, eu só estou respondendo o que me perguntaram. Mas ele parece estar mexido com tudo isso.”
“É remorso. Que fique.” disse com raiva e eu e nos olhamos risonhos.
“Eu não tenho que aturar essa galera fazendo o auê todo? Ele que lute um pouco também.” Respondi com uma careta.
“Na verdade, você não é obrigada a nada, mas entendi seu ponto.” comentou sorridente e eu concordei com um aceno.
Ele e continuaram falando da reação dos outros, enquanto eu foquei em terminar meu prato. Assim que o fiz, puxei meu celular e vi que eram quase 21 horas. Apesar disso, o cansaço era real, e eu dormiria cedo.
“Galera, ótimo dividir todas as loucuras que a adolescência pode propor com vocês, mas eu vou tomar um banho e dormir, que pra mim já deu. Boa noite!”
Eles me olharam atentos, mas não disseram nada. Apenas desejaram boa noite e eu retribuí, com um meio sorriso cansado.
Fiz tudo automaticamente: passei na cabana, peguei minhas coisas, fui ao banheiro, e me banhei.
A temperatura da água estava ótima, e eu me permiti ficar uns momentos debaixo do chuveiro apenas pensando em nada.
Quer dizer, eu merecia isso, não é?
Sequei os cabelos, e fui rebelde ao molhá-lo de noite, mas eu literalmente precisava esfriar a cabeça. Perdão, Pai, pois eu pequei.
Depois de colocar o casaco, fui caminhando até a minha cabana preguiçosamente, quase me arrastando de cansaço.
O mental pressionava o físico, e eu realmente senti que poderia dormir em qualquer lugar que encostasse.
Mas tudo mudou quando reparei um vulto parado nas escadas de meus aposentos.
O frio na barriga voltou, ainda que não fosse na mesma pressão que antes.
Entretanto, usei meu sorriso educado e me aproximei, decidida a ser mais leve.
“Fumando antes de dormir?” Perguntei com um ar simpático e concordou com um aceno, se livrando da guimba no lixo.
“Algo do tipo. Jantou direito?” Perguntou com as mãos no bolso do casaco e eu finalmente fiquei a um passo de si, olhando-o nos olhos.
“Sim, pai. Tudo certo.” Brinquei, mas apenas sorriu de canto.
Seus pés se mexiam irrequietos e eu reparei naquilo, erguendo uma sobrancelha.
“Algum problema?” Indaguei o óbvio e ele expirou com força.
“Eu... acho que devo desculpas. Pela cena.” Ele prendeu os lábios numa linha fina e me olhou nervoso. “Eu deveria ter perguntado de alguma forma se você concordava com aquilo, então eu... Acho que meti os pés pelas mãos.”
Eu fiquei olhando sua feição, enquanto ele visivelmente lutava contra seu nervosismo.
“Me desculpe. Passei dos limites e acho que foi indevido, porque de certa forma acabei te expondo, e essa não era a intenção. A ideia era bem melhor na minha cabeça, confesso...” E encarou o chão, com uma cara chateada.
Eu pigarreei, pensando no que dizer.
“Eu entendi.”
“Entendeu?” Levantou a cabeça rápido, me encarando atento.
“Sim. Foi... inusitado, eu diria. Mas acho que funcionou.” Eu respondi, um pouco sem graça. Encarei seu rosto e estava me dando nervoso vê-lo aflito, mas logo um sorriso aliviado surgiu, me deixando mais tranquila também.
“Você não sabe quantos cigarros eu fumei depois do jantar.” Ele comentou enquanto sorria encabulado, olhando para o chão.
“Ok, isso me irrita mais do que seu ato galã, Seixas.” Cruzei os braços, com uma sobrancelha franzida.
Ele deu de ombros, prendendo uma risada.
“Talvez um dia eu pare... Aurélia.”
Nós dois rimos e ficamos nos olhando.
E então, respirei antes de continuar com aquela conversa.
“Só... me avisa melhor quando for fazer algo do tipo. Tá bem?” Pontuei com uma feição séria. “Foi um dia cheio de emoções e bem confuso. A última coisa que eu quero é ser pega de surpresa quando não estou tendo um dia bom e acabar exagerando em alguma reação. Acho que você entende...”
“Perfeitamente.” Ele concordou, novamente tenso.
“Mas hey, fica tranquilo. Tudo certo entre nós.” Encorajei, batendo levemente no seu ombro, enquanto ele perguntava desconfiado.
“Sério mesmo?”
“Muito sério. Além do mais...” Eu olhei pro lado, pensando no que ia falar, mas me calei.
“O que?” Ele perguntou atento.
“Nah, esquece. Não é importante.” Eu disse, abanando com a mão.
“Fala, cara.” Ele insistiu e eu ri sem graça.
“Esquece! Não era nada demais.”
“Você sabe que eu odeio quando você faz isso...” Ele resmungou e eu ri.
Olhei dentro dos olhos de e respirei fundo, tomando coragem.
Eu ia dizer aquilo mesmo?
Pelo visto, sim.
“Eu ia dizer que faz parte... O beijo.”
O pomo de adão de subiu e desceu rapidamente, e ele arqueou a sobrancelha, me olhando ressabiado.
Me apressei em explicar.
“Você sabe, a peça e tudo mais... Estamos de acordo ao treinar aquela cena. A cena final! Do... beijo e—”
Ele prendeu uma risada e expirou forte, me olhando carinhoso.
“O que foi?” Eu questionei, meio confusa, com as mãos erguidas por estar gesticulando.
“Eu tô zoando. Eu sei do beijo. Só fingi que não sabia para ver sua reação.”
Eu bufei enquanto ele tentava controlar a risada mal e porcamente.
“Porra, !” Reclamei, dando um tapinha em seu ombro. Ele tentou se defender, sem muito sucesso.
“Porra o que? Ficou nervosa?”
Meu olhar cintilou no dele, que me encarava debochado.
“Não.” Respondi levemente irritada, e ele cruzou os braços.
“Não?”
“Não, ué. Mas você tem de convir que isso é uma situação meio constrangedora.” Dei de ombros, olhando-o com a cara óbvia.
O ar brincalhão em sua feição sumiu na hora.
Ele ficou um tempo em silêncio, me encarando de forma atônita.
“Tá com vergonha de mim?” Ele soltou essa, franzindo o cenho.
Eu não acreditei que ele tinha dito aquilo.
“Claro que não! Mas se tratam de dois melhores amigos que se beijam, e um deles namora. Não é a coisa mais confortável do mundo.” Expliquei, enquanto gesticulava rapidamente, e ele bufou, negando com a cabeça.
“Céus, por que você tá com medo?” Ele indagou de braços cruzados e eu o imitei.
“O quê!?” Eu perguntei apenas para tentar bolar algo na cabeça. Porque a real era que eu estava sim me cagando de medo do que seria minha vida pós-beijo do . Mas não do beijo em si.
Ele riu com escárnio.
“Você consegue ficar de boa depois de uma cena daquelas, mas fica com medo de um simples beijo numa peça?”
“Medo, ?” Perguntei debochada e ele respondeu incisivamente.
“É, medo! Por que tanta preocupação? Não há nada demais! É só uma peça! É só um beijo!” Ele desabafou enquanto jogava as mãos para o ar, parecendo levemente irritado.
Não era só um beijo para mim.
Mas eu não diria aquilo.
Não ali, não daquele jeito.
Então, uma ideia começou a se formar na minha mente, conforme me puxava conscientemente ou não, me pressionava.
“É só um beijo?” Eu repeti, colocando as mãos na cintura.
“É! Só um beijo!” Ele deu de ombros, me encarando sério.
“Só um beijo?” Eu dei mais um passo para frente, olhando bem dentro de seus olhos, a ponto de nossas respirações se misturarem.
“...É.” Ele respondeu com o cenho franzido, enquanto analisava a minha aproximação.
O clima havia mudado da água para o vinho; havia tensão entre nós.
Tensão... sexual.
Medo? Eu mostraria a ele quem tem medo.
“Medo, é?” Zombei, fixando o olhar descaradamente em seus lábios.
“Hm.” Ele respondeu automaticamente, analisando minha feição com seus olhos correndo sobre meu rosto.
Até que... pararam na minha boca.
E ficaram ali.
Percebi que o maxilar de se tensionou e eu não vou mentir: gostei muito do que vi, ainda que tudo fosse inédito naquela situação.
Não sei o que aquilo poderia significar, mas eu estava longe de parar com aquela investida.
Uma parte de mim não acreditava que eu estava prestes a fazer o que iria fazer, mas a outra parte – a grandíssima parte – não estava nem aí para refletir nas consequências dos atos.
Fiquei nas pontas dos pés e larguei minhas coisas na escada, deixando as mãos livres.
piscou algumas vezes ao ouvir o barulho das coisas se chocando contra os degraus.
Eu sequer pisquei.
“?” Chamei seu nome, e uma pequena brecha entre seus lábios se abriu, enquanto ele me observava fixamente.
“Hm?” Ele soltou em uma entonação baixa, baixando seu olhar novamente pros meus lábios.
Automaticamente, os umedeci e engoli a seco, segurando o rosto de sutilmente em minhas mãos.
Olhei bem dentro de seus olhos e decidi.
Eu ia fazer isso.
Eu ia fazer isso.
Eu... ia fazer isso!
“É só um beijo.” Falei, e logo depois puxei seu rosto em minha direção, chocando meus lábios nos seus.
E por fim, todo aquele frio na barriga voltou com força total.
Porque eu acabava de beijar meu melhor amigo, .
Ir para os próximos capítulos
Nota da autora:PARA PARA PARA PARA TUDO
APAGUE A LUZ, APAGUE A LUZ
QUÊ ISSO AMÔ?
Que que isso, pp querida???
Afrontando meio mundo com essa atitude muito destemida?
DOBRADINHA DE CAPS PQ EU SOU MT AMÔ! 33 páginas de puro suco de Ironic Lovers e eu nem sei como a Ana Ammon não me matou! Beta querida e amada, não me deixe! Me ame e não desiste de mim ♥
E vamos de análise:
Não sei se deu pra perceber, mas as coisas estão ficando cada vez mais difíceis de sustentar xD
O forninho, inclusive.
Quer dizer, tempos o pp2 arrependido cuja pp não quer ver nem a pau, Juvenal.
A galera quase infartando com o susto que a pp deu ao se isolar do mundo pra digerir os acontecimentos.
O julgamento da galera sobre ELA, e não sobre o pp2 - aqueles momentos que a gente pensa se a arte imita a vida ou o contrário...
E um pp1 super ator, inusitadíssimo, cheio de cenas, caras e bocas, chocando todo mundo...
Mas não mais que nossa pp com esse final aí.
Pois é, gente. Não teve POV de pp1 ainda, mas teve beijo.
Vamos fazer o seguinte?
Comentem aí o que acharam, que eu vou ali pirar um pouquinho, porque eu to simplesmente há uns... sei lá, dez anos, esperando por esse momento? Tá, que a fic sofreu alterações, mas vamos lá: desde que voltei a reescrevê-la, eu to nessa expectativa há uns dois anos, talvez. ROLOU C@R@I! Nem to crendo ♥
Agora, o enredo tá tomando oooooooutro rumo. Massssss a gente ainda tem muito Ironic pra curtir, galere! Fiquem tranks ♥ E o POV do pp1? Sai, tenham calmaaaaa. A tendinite é braba, mas a autora é mais xD.
E vamos de jabá!
Bring me Home (Restrita, short finalizada) - em breve tem spin off hein!
Bendição (Espiritual, short finalizada)
My stardust (Kpop, com Jungkook fixo ♥, long em andamento, só vem que tá mt lindo!)
06.Crazy (Ficstape Simple Plan, Lefebvre fixo ♥, finalizada)
Vou ficando por aqui e já sabem: qualquer coisa, berra lá no twitter! (@lullymaniac)
Beijos e até breve! ♥
Outras Fanfics:
Longfic
My stardust
Shortfic
Bring Me Home
Bendição
Ficstape
06.Crazy
O Disqus tem estado instável, caso não apareça a caixa de comentários e vocês queiram deixar um pouco do seu amor para a autora clique aqui
Eu não escrevo nenhuma dessas fanfics, apenas scripto elas, qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.
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