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Última atualização:09/05/2024

Capítulo 24 - All I wanted was you.

Menta.
O sabor predominante era menta.
Havia algo de tabaco aqui e ali, mas menta reinava nos lábios de .
E que lábios.
E que beijo.
Apesar de ter tido uma atitude para lá de inovadora, eu estava literalmente vibrando por dentro, de forma totalmente involuntária.
Enquanto minhas mãos estavam em si, e meus lábios investiam nos seus, eu repetia um mantra na minha mente.
Eu estou beijando meu melhor amigo.
Eu estou beijando o cara pelo qual sou apaixonada.

Quer dizer, eu estava contando com um beijo de peça? É claro!
Eu estava completamente apaixonada por ele? É claro!
Eu sonhava em ser a pessoa que o beijaria, do nada? Nem fodendo!
Mas não me arrependi nenhum segundo sequer.
Eu estava tomada pelo momento, pelo sabor dos seus lábios, pelos cheiros, pela sensação de beijá-lo...
Aquilo era simplesmente surreal.
Sinceramente? Nunca fiquei tão feliz de tomar uma decisão sem pensar tanto.
Porém, tudo passou da água pro vinho quando senti a correspondência de no beijo! A princípio, eram só lábios que se chocavam; tecnicamente, os meus nos dele.
Então, as coisas mudaram. segurou firme em meus braços e começou a me beijar de volta.
Fiquei sem reação quando o senti aproximar seu corpo do meu, e abri levemente os meus olhos com o pequeno susto. Percebi que mantinha os seus bem fechados, e ele me segurava como se eu fosse feito de vidro, prestes a quebrar.
Como quem toma as rédeas da situação, suas mãos subiram agilmente para a minha nuca e ele abriu sua boca, revelando sua língua quente ao entrar em contato com meus lábios. Eu os abri enquanto arfava, e fui até as estrelas quando nossas línguas enfim se encontraram.
me beijou de volta.
De língua.

O beijo tomou forma, tomou movimento, tomou mais gosto; agora o tabaco era mais presente, mas a menta continuava a roubar toda a presença.
E eu descobri que meu mais novo sabor favorito era menta nos lábios de , no beijo de . E eu não tinha a mínima intenção de parar de prová-los.
O queixo com a barba rala se arrastava na minha pele, e eu senti meu interior esfriar e aquecer ao mesmo tempo, bem no baixo ventre, enquanto me deliciava com aquela sensação.
Nossos narizes se encostavam grosseiramente, devido ao ritmo intenso, e eu não pude deixar de notar o quanto o beijo era cheio de iniciativa... de ambas as partes.
estava me beijando com vontade.
As investidas com os movimentos, a forma como sua respiração saía descompassada, a pressão nos dedos enquanto ele aproximava seu corpo de mim.
Seu peitoral finalmente encostou no meu, e foi impossível não me sentir atraída quando aquilo aconteceu; por osmose ou não, meu tronco impostou-se para frente, e assim, eu pude sentir o calor que emanava do peito de , literalmente grudada em si.
Ele desceu as mãos firmes pelas minhas costas e, se possível, me trouxe mais pra perto, ao segurar minha cintura contra a sua.
Céus, eu queria muito aquilo.
Eu queria muito tudo aquilo.
Eu queria que estivéssemos nós e apenas nós no mundo.
Eu queria sentir a pele de , queria decifrar todas os sinais e partes de seu corpo, queria sentí-lo, degustá-lo, gravar meu desejo em si.
Queria, do mais profundo átomo de mim, ficar nua e experimentar fazer tudo que só esteve em pensamentos... E que muitas vezes eram mascarados por mim, com diferentes tipos de argumentação: o pseudo-namorado, o melhor amigo que namora e gosta de outra, o possível fim de uma amizade...
Naquele momento, eu não conseguia pensar em nada disso, nem me sentir culpada.
Eu não sabia se estava entorpecida pelo beijo, pelas expectativas, pela realidade ser melhor do que aquilo que sempre sonhei...
Eu só sabia que queria .
E de alguma forma, estava cansada de fingir que não.
A verdade era que eu estava inebriada o suficiente para não dar a mínima para os “e se?” que tanto me acompanhavam. Principalmente agora que eu havia beijado e sido beijada por – nada mais no campo das ideias, era tudo vivenciado, experimentado, vivido!
Viver é melhor que sonhar, já dizia o poeta.
Estávamos ficando sem ar quando o beijo começou a perder força. Eu não queria pará-lo, mas sabia que seu fim estava próximo. Então, decidi aproveitar a oportunidade; mordi o lábio inferior de e o suguei, logo depois de afastar o rosto sorrateiramente, enquanto buscava oxigênio para os pulmões.
Confesso que a timidez se fez um pouco presente, mas tive coragem o suficiente para dominá-la; alguns segundos depois, me atrevi a erguer a cabeça, bem lentamente... Para encontrar os olhos de me encarando, num típico traço de quem estava tonteado pelo que acabava de acontecer.
É, amigo. Sei bem como é.
Engoli a seco, percebendo que ele mal piscava; me encarava com um semblante diferente, como se estivesse focado demais num assunto que só ele soubesse.
Por fim, ele umedeceu os lábios lentamente, e piscou com calma, enquanto me explorava com o olhar. Eu estava bem aflita com isso, pois me sentia exposta, além do medo de receber uma fala negativa de si. Cacete, onde tinha ido parar a coragem?
Ele estava encarando o chão quando percebi que, de um sorrisinho miúdo, começou a dar risos contidos, até que estivesse rindo levemente.
Eu franzi o cenho e arqueei a sobrancelha.

“O que foi?” Me atrevi a quebrar o silêncio. Ele suspirou, me dando um sorriso culpado, e deu de ombros.
“Eu tive o pensamento mais aleatório possível agora.” E riu novamente de sua piada interna. Confesso que aquilo me acalmou um pouco, e eu sorri apenas por vê-lo daquele jeito.
“E qual foi?” Ele riu, coçando a nuca.
“Se sua mãe estivesse aqui e agora, provavelmente estaria aplaudindo bem animada.”

Eu gargalhei, escondendo o rosto com as mãos e afirmando com um aceno.
De repente, estava imaginando minha mãe com pompons e danças festivas, como quem comemora uma vitória de um jogo de basquete.

“Nisso eu tenho que concordar. A Sra. estaria soltando fogos, imaginando coisas...” Confabulei enquanto cruzava os braços. “Mas...”
“Mas?” Ele perguntou, ainda sorrindo.
“É só um beijo... não é?” Fingi naturalidade, enquanto mordiscava o lábio inferior.

deixou o sorriso esmaecer levemente, acenando com a cabeça.

“É, ué. Mas...” E olhou para o chão, levantando e descendo novamente a sobrancelha.
“Mas?” Perguntei, com uma esperança incomum. sorriu como se fosse contar um segredo.
“Você... Me beijou de verdade!” Ele exclamou, ainda rindo, enquanto passava a língua no lábio inferior. “E ainda me provocou com aquela mordida!”

Eu senti o rosto todo esquentar, e respirei fundo, dando de ombros e disfarçando com dificuldade o meu nervosismo. Soltei uma risadinha leve e ele me olhava um pouco incrédulo.
Decidi seguir com aquele ‘jogo’.

“É, ué! Você não falou que eu tinha medo? Tá aí o medo!” Gesticulei, encarando qualquer ponto que não fosse sua feição, que parecia se divertir muito com minhas reações.

Eu estava ficando encabulada.
Que merda.
E pra piorar, ele riu de novo enquanto negava com a cabeça.

“Isso não prova nada sobre seus medos, você sabe...”

Olhei para si com o olhar confuso.

“Como é que é?” Minha voz saiu mais perigosa do que de costume, e prendeu uma risada, dando de ombros.
“O que? Você acha que agir por impulsividade significa que você não tem medo? Você está toda sem graça só de falar nisso! Está na sua cara!” E seguiu rindo enquanto apontava em minha direção.
“Não é medo, !” Retruquei e ele arqueou a sobrancelha.
“E é o que, então?”
“Desconforto?” Sugeri com a feição óbvia, e seu sorriso sumiu, mudando para uma cara confusa.
“Desconforto? Meu beijo é tão ruim assim?” Sua voz soou mais grave. “Eu te deixo... desconfortável?”

‘Tão ruim que eu queria mais’, pensei comigo mesma. Mas não respondi isso, apenas respirei fundo e passei a mão no rosto, elaborando uma resposta que me expusesse menos.

“Não é você, é a situação! A gente... nunca fez isso.” Comecei a falar pensando apenas em fugir daquela conversa que tinha tudo para me comprometer. Eu não queria revelar que eu era apaixonada por ele! Pelo menos não naquele momento!
Os olhos de pararam no horizonte e eu vi quando seu pomo de adão subiu e desceu, conforme sua feição tornava-se pensativa.
“É diferente. Novo.” Continuei a explicar, perdida.
“Está dizendo que não é medo, mas um estranhamento?” Ele virou para me encarar e sua face parecia mais endurecida. Respirei fundo enquanto piscava algumas vezes, pensando no que ele disse.

Em momento nenhum ele desviou os olhos dos meus.
Dei de ombros, receosa.

“Talvez. Não é pra você?”

Ele umedeceu os lábios lentamente, enquanto passava os olhos pelo meu rosto. Cruzou os braços e encarou o chão, dando um sorriso de canto.

“Não sei. Acho que a gente enxerga isso de formas diferentes.”
“E como você enxerga?” Perguntei, sem deixar de encará-lo, e vi no seu rosto quando a surpresa lhe tomou de assalto, diante da minha pergunta.

Ele coçou a nuca, e me olhou desconcertado. Era impressão minha, ou ele estava ficando sem graça?
Por fim, suspirou e gesticulou, olhando para o lado.

“Amigos que estão tentando passar de ano direto e precisam se beijar para isso. Não é?”
“Uau. Que poder de síntese.” Deixei escapar com um pouco de escárnio e ele me deu de ombros.
“Ou não é só sobre isso?” E me olhou com o olhar atento. Eu estava com a boca levemente aberta, pensando em como sairia daquela sinuca de bico. Passei os olhos pelo seu rosto, notando a tensão estabelecida no maxilar, nos ombros...

Amigos que precisam se beijar. Como parecia fácil, né? Talvez para ele, fosse.
Então... era aquilo?
Eu sorri sem nenhum traço de humor na cara, digerindo o que ouvi e decidi vestir a carapuça, olhando-o sem receios.

“Foi como falei, você sabe... É só um beijo.” Respondi um pouco seca, cruzando os braços.

analisou minha feição por um tempo e depois, respondeu:

“Só um beijo.” Ele repetiu, me olhando enquanto prendia os lábios numa linha fina. “Então, sem estranhamentos, não é?” Falou com uma tranquilidade que ele nitidamente não sentia, uma vez que fez essa pergunta encarando o chão, enquanto dava de ombros e colocava as mãos no bolso.

Eu soltei uma risada rápida, balançando a cabeça lentamente.

“Quer saber? Acho que você tem razão.” Sorri abertamente, me sentindo a atriz.
“Tenho?” perguntou, me olhando incerto.
“É claro! Pra que estranhamento, não é?”
“...É.” Ele respondeu mecanicamente.
“Meu problema é pensar demais, não é?” Sugeri com uma careta óbvia.
“Talvez.” Ele ponderou, enquanto acenava e me observava. Coloquei meus braços para trás e dei um passo para frente, encarando nossos pés.
“E penso demais em tudo a ponto de não conseguir fazer nada, não é?” Joguei a cabeça pro lado, olhando para uma árvore aleatória, como se estivesse muito reflexiva.

arqueou uma sobrancelha para mim.

“Aonde quer chegar com isso, ?” Seu semblante era de desconfiança, e os olhos me miravam, semi-cerrados. Se eu não estivesse naquela situação, adoraria que ele me olhasse assim em outros contextos. Era um tesão só, confesso.

Virei meu rosto devagar na direção do seu, e sorri para si, enquanto lhe olhava bem nos olhos. Umedeci os lábios antes de materializar a ideia que estava na minha cabeça.

“A um consenso.”
“Consenso?” Ele sorriu, com ar de deboche.

Ah, . Esse jogo é um jogo para dois.

“É. Você quer passar de ano, eu também... Talvez seja um problema meu, sabe? Essa coisa de estranhar.”
“Hm.” Ele me olhou meio descrente, e eu senti vontade de rir, pensando na ideia inusitada que estava prestes a comunicar.

Mas não daria para trás agora.

“Então, para ajudar a naturalizar a ideia, poderíamos treinar todo dia até a peça. Não acha?”

arregalou os olhos e deixou a boca levemente aberta. Fechou, abriu de novo e fechou, sem ter muito o que dizer.
Engoliu a seco e soltou uma risada misturada com o ar, como se estivesse arfando e rindo ao mesmo tempo.
Eu continuei com a minha feição intacta: um sorriso gentil e um olhar um pouco esnobe, confesso.
Porque eu sabia que por essa, ele não esperava.

“Treinar?” Sua voz saiu um pouco falha e eu sorri como se não fosse nada demais.
“É. E então? O que me diz? Não está com medo, está?” Perguntei enquanto tocava seu queixo com meu dedo indicador.

Ele segurou meu punho e me trouxe mais pra perto, soltando uma risada rápida e convencida.

“Não me chamo .” E olhou dentro dos meus olhos. “Quando começamos?”

Eu umedeci os lábios, disfarçando o nervosismo. Estávamos muito perto e isso só me fazia rememorar o beijo que demos momentos atrás; e que meus lábios ainda formigavam devido ao recente contato.

“Amanhã. Hoje eu preciso descansar.” Me soltei de si e abaixei para pegar as minhas coisas que ainda estavam no chão, tudo para disfarçar o choque. Eu não esperava que ele topasse com tanta veemência, e eu não soube como agir diante de uma resposta tão... certeira.

Minhas mãos estavam levemente trêmulas, e mesmo tentando manter uma imagem de indiferença, acabei deixando tudo cair de forma estabanada. Bufei enquanto tentava catar todas as coisas de novo.
mantinha um sorriso no canto dos lábios quando se abaixou e juntou tudo em suas mãos, sem dizer nada. Ficou de pé e andou até a minha cabana, como se não fosse nada demais querer entrar no local sem minha permissão.
Não que ele realmente precisasse, mas estava um pouco irritada por ele ser tão corajoso e topar tudo sempre.
Não que fosse ruim ele me beijar todo dia, até a peça. Mas ele poderia ceder de vez em quando e me deixar vencer.
Mas, espera. Puta que pariu!
A gente ia se beijar todo dia até a peça!
Comecei a refletir em que tipo de conversa pós-beijo estávamos tendo, e automaticamente prendi meu maxilar, entendendo as sensações e sentimentos dentro de mim.
Por que insistia naquilo de medo, estranhamento, etc.? Por que ele queria que eu ficasse ‘numa nice’ sem estranhar nada?
Por que para ele parecia tão fácil seguir o script? Eu não significava nada pra ele? Não me via sequer como mulher? Apenas como sua melhor amiga?
Aquilo estava inflando no peito num misto de frustração e raiva.
Eu sabia que nada poderia ser feito, assim como não poderia fazer muita coisa em relação ao que eu sentia. Não se pode forçar alguém a gostar de você, não é? Ao mesmo tempo, não tinha culpa daquilo que sentia. Só me restava fazer algo ou não fazer nada a partir das emoções.
Talvez, no fim das contas, minha proposta tenha pego de surpresa, apenas porque ele não esperava que eu agisse daquele jeito. Era plausível, porque eu era tão previsível, sempre...
E tudo bem.
Quer dizer, tudo bem é o caralho; era bem frustrante e chato não ser enxergada nenhum pouquinho daquele jeito que eu via . Mas isso é sobre mim. Não dá exatamente pra cobrar nada dele.
Só os beijos.
Aparentemente, estar testando essa onda de não pensar tanto em tudo tinha me rendido uma cota significativa de beijos até o dia da peça.
Então eu tinha algum lucro, por assim dizer.
Poderia sair dessa situação e daqui há alguns anos, contar aos netos que gostei do meu melhor amigo e consegui dar uns amassos nele sem exatamente comprometer a amizade, nem precisar assumir meus sentimentos.
E sim, isso soava algo como “Pra quem não tem nada, a metade é o dobro” né?
Desesperada? Imagina.
Status da vida: esperando a hora que os humilhados serão exaltados.

“Você vai ficar parada aí ou vai me ajudar a abrir a porta?” Ele perguntou com a entonação malandra e eu bufei disfarçadamente antes de meter a mão na maçaneta e fazer o que ele me pediu.

Queria mesmo era meter a mão naquela cara.
E começar o treinamento de forma ininterrupta até o dia da peça.
Foco, !
Entramos no local, ele olhou ao redor de forma analítica e deduziu qual era a minha cama com poucos segundos de observação. E acertou. Deixou as coisas no canto e me olhou sem dizer nada.
Curiosamente ou não, não havíamos acendido a luz na cabana, mas o quarto tinha uma meia-iluminação com as luzes de fora.
E estávamos a sós, num silêncio nem constrangedor, nem exatamente confortável. Apenas... nós e a ausência de som.
E os olhares, que não se desgrudavam, independente do que estivesse acontecendo.

“Ainda está irritada comigo?” quebrou o silêncio, com um leve sorriso escondido no canto dos lábios.
“Não estou irritada com você.” Respondi, cruzando os braços e olhando para o chão.
“Está sim.” Ele respondeu, se aproximando de mim. Levantei meu rosto, suspirando ao avistá-lo de perto.
“Não estava. Mas você consegue me tirar do sério com facilidade, percebe?” Respondi um pouco ríspida, porém sincera.
“Por que?” Indagou com a voz sutil. Apelei para uma parte dos meus questionamentos de momentos atrás.
“Porque você insiste nessas coisas idiotas, de dizer que eu sinto isso e aquilo! Eu não tenho que provar nada do que eu sinto ou deixo de sentir! Nem pra você, nem pra ninguém!” Respondi me sentindo parcialmente leve ao desabafar aquilo (era uma meia verdade, talvez?) e cruzou os braços e me olhou sério.
“Exatamente. Você não precisa provar nada pra ninguém.”
“É!” Eu exclamei, abrindo os braços e o olhando como se fosse óbvio. “Não preciso!”
“Não precisa.” Ele repetiu, segurando em meus ombros. “Então para que ficar queimando a pouca paz que lhe resta e se importar com o que dizem ou o que vão dizer das suas ações, do que você pensa, sente... do que dirão de você?” Ele disse com a voz mais grave que o comum.

Mesmo com a pouca claridade, eu conseguia ver que o rosto de me observava atento e preocupado.
E então, algo dentro da minha mente estalou: aquela dinâmica irritante era sobre isso?

“Ah.” Eu deixei escapar, entendendo aonde queria chegar.
“Só você sabe o que sente ou o que deixa de sentir. Deixa o resto ser resto, . Ignorar não é fugir, muitas vezes é sinal de paz. E você merece ficar em paz, não acha?”

Ficamos nos olhando e eu respirei fundo de novo, sorrindo sem humor.

“Eu já não sei o que é isso há muito tempo.” Desabafei, pensando sobre toda aquela tempestade de sentimentos.
“E precisa ser assim?” chegou mais perto segurando meu queixo para que eu o olhasse nos olhos.

Ficamos nos encarando e eu umedeci os lábios, sentindo uma enorme vontade de beijá-lo de novo.

“Não é exatamente uma escolha.” Respondi, tendo dificuldades em desviar o olhar da sua boca. Entretanto, logo abracei a mim mesma e me afastei, indo me sentar na ponta da cama, de costas para ele e para a porta. “Mas acho que as coisas vão melhorar. Desde que você não banque o didático de novo tentando ser implicante.” Brinquei para quebrar o gelo, e riu levemente, encostando na parede perto da minha cabeceira, me olhando das sombras. “Era sobre isso?”
“Isso o que?” Ele perguntou, fingindo não saber do que se tratava. Bufei impaciente.
“Você queria que eu chegasse a essa conclusão sendo irritante desse jeito? Você sabe, me colocando contra a parede, dizendo que tenho medo e blá blá bla?”
“Funcionou, não foi?” Ele perguntou com a voz animada e eu ri sarcasticamente.
“Você é um porre.” Respondi, desenhando formas invisíveis no meu lençol.

Me senti um pouco desanimada. Aquela postura chata tinha rendido uns beijos, ao menos. Já que não era “para valer”, então o combinado dos beijos também não era... Era?
Droga. Eu queria aqueles beijos!

“Talvez. Mas você foi muito mais além do que eu esperava.” Respondeu, e pegou seu isqueiro do bolso, acendendo e apagando a chama.

Eu levantei minha cabeça para ver o rosto de se iluminar e escurecer nas sombras, me observando.

“Como assim?” Indaguei. soltou uma risada baixa e começou a passar a mão de um lado para o outro, atravessando a chama do isqueiro.

Ficou um tempo pensando enquanto fazia aquela pequena façanha, e quando eu já estava farta de esperar uma resposta, ele guardou o isqueiro no bolso e se colocou sentado diante de mim.

“Eu sou um homem de palavra, . E não arrego diante de um desafio.” E então, se levantou e começou a andar em direção a porta.

Eu fiquei de costas para si, tentando pensar se ele se referia ao que eu estava pensando.

“Significa?” Questionei, sem me virar.

Foi então que eu senti uma mão abraçar a minha nuca, enquanto a outra deslizou com os dedos pela lateral do meu rosto.
Minha cabeça foi para trás quando a puxou com firmeza e cuidado, e assim, ficamos de cara a cara.

“Trato é trato.” E assim, sem mais nem menos, ele me beijou, já pedindo passagem com sua língua.

Eu cedi automaticamente, segurando seu rosto enquanto trocávamos novamente aquele contato.
me beijava. De novo.
Todas aquelas sensações retornaram com tudo; o frio na barriga, o tesão, a voracidade nos movimentos, os lábios dançantes, os sabores... e a confirmação de que quando a gente se beijava era bom.
Incrivelmente bom.
As pontas de seus dedos, gélidos, desceram pelo centro do meu pescoço, me causando um arrepio instantâneo, e meu corpo tremulou levemente.
Ele riu dentre os lábios e desceu as mãos pelos meus ombros até que elas se apoiaram no colhão, paralelas ao meu corpo.
Por fim, prendeu meu lábio inferior entre seus dentes, da mesma forma que eu havia feito momentos atrás, e o arrastou levemente, ao se despedir do beijo.
Suprimi com dificuldade um gemido na garganta com aquele ato, enquanto nossas bocas se separavam.
olhou direto nos meus olhos e sorriu com os lábios avermelhados, e apoiou seu queixo na base do meu ombro esquerdo, encostando seus lábios em minha orelha.

“Até amanhã, . Durma bem.”

E assim, exatamente assim, ele se direcionou até a porta, e saiu da minha cabana, me deixando sozinha e entorpecida pelo que acabava de acontecer.

(...)


No dia seguinte, eu acordei cedo.
Acho que a frase certa era: eu mal dormi pois passei a noite inteira pensando nos beijos que dei, nos que daria, e em estratégias para amenizar o fogo que eu sentia por debaixo da pele, só de pensar em tudo aquilo.
Digamos apenas que estava agradecida por acordar cedo, já que o vestiário estava praticamente vazio e eu pude tomar um banho demorado em paz.
Saí de lá pouco mais de meia hora depois, e decidi tomar um café reforçado. Era realmente muito bom estar apenas em minha companhia, sem ter nenhum olhar me julgando ou me olhando como se tentasse adivinhar o que diabos tinha acontecido entre eu, , e Charlotte.
Comi o mais nobre dos pães; o pão francês com manteiga, quentinho, acompanhado dos ovos mexidos lindamente feitos pela equipe da cozinha. Tomei um suco de abacaxi com hortelã reforçado e um pouquinho de iogurte com sucrilhos, me sentindo praticamente indestrutível depois daquele café da manhã – quem sabe o próprio Tony da Kellogg’s.
Ou isso, ou o fato de eu ter trocado uns bons beijos com meu melhor amigo, por quem sou apaixonada há meses?
Quer dizer, o café da manhã teve sucrilhos, né? Difícil bater de frente.
De toda forma, terminei de comer e fui direto para a cabana, deixar as coisas e me aprontar para o projeto. Eu tinha acabado de olhar no celular; passava das nove da manhã quando, ainda nas escadas, ouvi vozes alteradas soarem dentro da cabana, automaticamente estranhando aquilo, já que, quando saí mais cedo, apenas se encontrava lá, dormindo igual a Bela Adormecida.

“É sério que agora você vai se fazer de pobre coitada? Me poupe, garota!” Ouvi a voz de soar agressiva, e franzi o cenho, apreensiva.
“Eu não estou me fazendo de nada! Mas a culpa definitivamente não é minha! Não era eu quem namorava, ele sim!” Meus olhos se arregalaram ao constatar que se tratava de Charlotte respondendo . Me aproximei mais um pouco, ficando a poucos centímetros da porta.
“Mas você sabia! Você sabia e o tempo todo ficou dando em cima dele, mesmo ele sendo comprometido! Que ele está errado, todo mundo sabe! Mas você também não teve um pingo de bom senso! É a , cara! Uma amiga de quem você mesmo disse sentir saudades!”
“Eu sei disso!” Charlotte retrucou com a voz alterada. Um tempo de silêncio se estabeleceu, e até as respirações pude ouvir. quebrou a atmosfera com sua voz soando mais baixa, como se não acreditasse no que ouvia.
“Sério, qual é o seu problema, Charlotte? É tão ruim assim não ser o centro das atenções de vez em quando?” Meu queixo caiu com aquela pergunta.
“Não, ! Não é isso! E-Eu não preciso disso!” A voz de Charlotte soou trêmula, e logo ouvi sua respiração entrecortar o choro. “Eu sei que ela é minha amiga. Não somos tão próximas, mas somos amigas! Quer dizer... Eu realmente gosto dela. Eu não... nunca quis fazer isso, . Eu não sabia até pouco tempo que eles estavam juntos, eu juro! Só fiquei sabendo pelos desabafos de !”
“Quando ele te contou!? Como é que foi isso, Charlotte? Em que situação seria necessário ele falar isso?” perguntou de uma forma dura, e eu estremeci tensa com a situação. Demorou até que a resposta viesse de Charlotte.
“Tudo aconteceu muito rápido. Eu percebi que ele estava distante, sem aquele ânimo de sempre, com o olhar perdido, cabisbaixo, principalmente depois da briga com . Percebi que ele se isolou de vocês, e os boatos eram que os garotos tinham brigado por causa da . E aparentemente, ela não estava falando com porque ele tinha começado a briga. Então estava sozinho, na merda, visivelmente magoado com tudo aquilo! O que eu poderia fazer além de ficar ao lado dele? Fiquei com pena, cara!”
“Ah, você ficou com pena? Que meigo da sua, Charlotte! E aí você o acolheu de pernas abertas!?” Ouvi retrucar e meu queixo se escancarou com aquela frase.

Eu não queria ser Charlotte naquele momento.

“Não! Cacete, claro que não! Eu apenas fui amiga dele, tentando conversar, animá-lo, mas ele não dizia nada! Nada até ontem...” Um novo silêncio se instaurou, e eu pude ouvir quando Charlotte bufou e voltou a falar, como se estivesse cansada. “Quando todas as atividades terminaram, eu encurralei na cabana e perguntei o que caralhos estava acontecendo. Ele segurou por algum tempo, mas logo depois começou a desabafar sobre o namoro, sobre um monte de coisas que tinha acontecido, sobre as brigas com a , sobre o medo dele de estar perdendo tudo sem poder fazer nada... Sobre o medo de perdê-la para .”

Eu engoli a seco aquela frase. Como pode ter medo e fazer o que ele fez!?
Charlotte seguiu a contar.

“Num momento, eu estava surpresa que ele tivesse guardado tanto para si, então a única coisa que consegui fazer ao vê-lo assim foi abraça-lo, tentando acalmá-lo, enquanto ele chorava por tudo aquilo. Num momento estávamos assim, só assim. Mas no outro... Bem. Foi quando aconteceu. A gente se beijou, as coisas foram acontecendo, e logo depois ela entrou na cabana! Foi tudo uma confusão...”

Eu ouvi tudo aquilo do lado de fora, imóvel. Fui atingida por um certo incômodo ao escutar as palavras de Charlotte, mas decidi que já era hora de sair daquele anonimato e por fim, abri a porta com firmeza, recebendo olhares assustados das meninas. Virei meu rosto para a garota chorosa, encarando-a. Notei suas malas arrumadas em suas mãos, e ergui o olhar novamente para o seu.

, eu...” Ela começou a dizer, mas eu a interrompi com uma fala precisa.
“Não há nada pra dizer, Charlotte. Eu ouvi o bastante, vi o bastante. Fiz o que precisava fazer... Eu só realmente não quero ter que olhar para a cara de vocês agora.” Falei enquanto guardava as coisas no meu armário, com uma tranquilidade assustadora.
“Certo, entendo...” Ela disse e após um tempo, se encaminhou para a saída. “Eu sinto muito. Por tudo.”
“Ok.” Respondi, sem olhá-la. Mas percebi que ainda ficou parada na porta, virada para mim.
“Se por acaso te importa saber, eu acho que vocês dois deveriam ficar juntos.” Ela falou tão rápido que de primeira, não acreditei que ela estivesse sugerindo aquilo.
“Como é que é?” Perguntei com a sobrancelha arqueada, e ela deu de ombros, encarando o chão.
“Ele realmente gosta de você, . Aquilo que você viu não significou nada, foi só... uma coisa humana, física, sabe?”

Eu fechei a porta do armário com uma brutalidade desnecessária. Coloquei as mãos na cintura, encarando Charlotte.

“O que você acha que sabe?” Perguntei com seriedade enquanto ela me olhava receosa. Caminhei dois passos em sua direção, ficando a um metro e meio de si.
“Você sabe qual é o problema com pessoas como você?” Tornei a perguntar, falando devagar.
“Como eu?” Ela perguntou confusa.
“Sim! Como você! Pessoas que acham que tem tudo resolvido, que entendem e sabem de tudo! O problema é que vocês acham que só vocês são espertos! Que acreditam tão cegamente e apenas no próprio juízo, que nem sequer passa pela cabeça miúda e mesquinha a possibilidade de estarem errados!”
“Eu não sou as-”
“É assim sim! Você acha que pode simplesmente vir aqui e falar sobre meu relacionamento com pelo que ele te contou cinco minutos antes de vocês se agarrem? Acha que pode me dizer o que devemos fazer um com o outro? Acha que pode me dizer o que devo sentir ao ver vocês dois juntos, Charlotte? Hein!?” A minha voz saiu mais agressiva, e ela tentou responder com a feição irritada.
“Eu só estou tentando ajudar!” Ela bradou e eu gargalhei na cara dela.
“Não, Charlotte. Você só está tentando se sentir menos escrota do que realmente foi.”
“Quer saber? Eu estava tentando ajudar, mas não dá para conversar assim. Você está fora de si!” Ela apontou pra mim e eu dei mais um passo em sua direção.
“Se tem uma coisa que você ainda não viu foi isso.” Cruzei meus braços e tranquei o maxilar, sentindo meus dentes rangerem um nos outros.
“Eu nem quero, porque não vim aqui pra isso!” Ela exclamou e eu ri debochadamente.
“Você veio aqui pra se sentir melhor, porque sabe que fez merda! Está fazendo isso e é o mínimo! Mas é tão cheia de si que sequer consegue olhar nos meus olhos e assumir isso na minha cara! Está apenas se vestindo de um papel ridículo por detrás de uma fala mais vazia ainda! Quem disse que eu preciso da sua ajuda? Dos seus conselhos amorosos? Da sua compaixão? Você estava enfiando a língua na boca de ontem e hoje acha que é alguém qualificado pra sequer direcionar a palavra a mim? Você não faz ideia do que eu preciso, Charlotte!”

O silêncio foi sepulcral.
Eu respirava fundo enquanto ela me encarava receosa, e sinceramente, até eu estava surpresa de ter dito tanto.
Charlotte piscou algumas vezes e voltou a falar depois de um tempo.

“Não, eu não faço ideia. Eu só estava tentando te ajudar! E sim, eu sei que tenho culpa, eu não sei da história de vocês e não estou querendo parecer que sei! Posso ter errado em dito aquele conselho para você, mas pelo menos vim tentar me redimir, entender a situação!”’ Ela exclamou agitada. Eu rolei os olhos com aquela declaração patética.
“Você não tem que entender nada, Charlotte, porque você nem faz parte da nossa vida, entende? Compartilhamos um passado bacana, mas não somos amigas próximas. Você pode tentar parecer boa, mas não força a barra! Muito menos vir dar pseudo conselhos como este! Você não tem o direito de dizer uma vírgula, principalmente por ter feito o que fez! Se manca!” Eu expliquei com uma paciência incomum e ela mordeu o lábio inferior, acenando afirmativamente.
“Eu só queria que você soubesse que eu não tinha essa intenção. De magoar você, não tinha mesmo! é um cara interessante, e sim, eu me sinto atraída por ele, mas honestamente, acho que é uma via de mão única. Apesar de ele ter errado completamente com você, sinto que o que aconteceu ontem foi pura carência. Ele... não estava bem. Entende?” Ela falou de uma forma tranquila, e eu bufei, negando com um aceno.

Olhei em seus olhos, e, depois de prender meus lábios numa linha fina, gesticulei ao questionar:

“Isso por acaso muda alguma coisa? Qualquer coisa?” Minha voz saiu bem mais grave do que de costume, e eu percebi que um sorriso triste pousou nos meus lábios.
“Nenhum pouco?” Ela insistiu, e eu olhei pro chão de novo.
“Não... E é por isso que digo que existe muito mais história do que você presumiu, Charlotte. Então se realmente ainda nutre algum afeto por mim... Me erra.” Fui tão sincera que literalmente desabafei, e novamente o silêncio se estabeleceu entre nós.

Apenas os olhares eram trocados, e eu não sabia dizer o que estava acontecendo ali, mas acho que meu desabafo fez com que ela entendesse que o buraco era definitivamente mais embaixo. Ela respirou fundo e iniciou sua fala.

“Eu sinto muito que tudo tenha terminado assim, . Espero que as coisas possam se resolver da melhor forma possível.” Ela falou de um jeito triste, visivelmente sem graça por tudo aquilo, e eu apenas suspirei, cansada.
“Charlotte, olha... Pra mim, o assunto encerrou e eu realmente não quero mais falar sobre isso. Tenha um bom dia.” Apontei para a porta com a mão aberta e ela suspirou, me olhando sem dizer nada.

Ajeitou a postura, a roupa. Coçou a nuca e consertou um fio de cabelo entre os dedos antes de quebrar o silêncio.

“Eu nunca quis que isso acontecesse. Nunca foi minha intenção me meter no relacionamento de vocês, eu sinto muito. Foi só isso que vim dizer. Fique bem.” Sua voz saiu baixa, e ela finalmente juntou as malas e foi embora.

Quando a porta bateu, respirei fundo ao massagear as têmporas.

“Tá tudo bem?” me perguntou, segurando meus ombros com gentileza. Eu afirmei com a cabeça, e ela me puxou pra um abraço, no qual eu retribuí parcialmente.
“Onde você estava?” Ela me perguntou curiosa, mexendo no meu cabelo carinhosamente.
“Tomando café.” Respondi com um meio sorriso.
“Hm... Ok. E você acordou cedo para isso? Tem certeza de que está bem mesmo?” Ela perguntou de novo, desconfiada. Ri levemente e expliquei.
“Na real eu não dormi direito, então aproveitei. Mas estou bem sim. Essa situação é chata, mas vai passar, e dentre muitas sensações, a que mais se sobressai é estar aliviada por ter resolvido as coisas com . Ainda que de uma forma inusitadíssima.”

riu levemente e concordou com um aceno.

“Você parece cansada, mas está com a carinha melhor que ontem.” Minha amiga comentou sorrindo e eu confirmei.
“Não foi do jeito que eu queria, mas conseguimos chegar num acordo, né?”
“Sim, e isso também faz parte, sabe? É a vida.” Ela respondeu, dando de ombros. Eu a encarei curiosa.
“Então... Me conta como esse papo entre vocês duas começou.” Ela levantou as sobrancelhas e as desceu novamente, enquanto prendia os lábios.
“Cara, eu não tenho sangue de barata. Ela estava toda pomposa arrumando as coisas, e com a maior cara lavada do mundo me perguntou como você estava. Eu respondi seca, disse que estava bem. E aí ela comentou que se sentia mal, porque não imaginava como você se sentia, porque ela nunca havia sido traída, sabe? Aí eu comecei a falar umas poucas e boas! Que tipo de comentário babaca é esse? Eu hein!”

Meus olhos se arregalaram e cobri minha boca com as mãos, prendendo uma risada.

“Meu Deus, você fez isso?”
“Fiz! E faria de novo! Vai querer cantar de galo em outro lugar!” Ela reclamou bufando. “E aí ela se fez de tonta, que não era bem assim... E aí eu falei pra ela parar de se fazer de desentendida e então...”
“Ah, então eu ouvi tudo, praticamente.” Respondi abanando a mão no ar, e me olhou confusa.
“Como assim ouviu tudo? Você estava espionando a gente, sua safada?” Eu fiz uma cara de “culpada” e dei de ombros.
“Eu estava prestes a entrar quando ouvi você confrontá-la. Eu queria ouvir até onde ela iria, queria saber a versão dela da história.”
“E então, o que achou?” me perguntou, cruzando os braços e encostando na porta do armário. Eu suspirei antes de responder.
“Eu estou sem saco de aturá-la? Sim. Quero ouvir as desculpas que ela tem? Não. Porque não altera em nada na minha vida. Só serve para gastar mais saliva e paciência, com esse encontro desnecessário que acabou de acontecer.”
“Ela foi muito entrona e sem noção com aquela frase! Isso é falta de bom senso, gente!” exclamou e eu concordei.
“Fico feliz que ela tenha sido minimamente sensata em sair daqui, porque já vai ser ruim o suficiente ter que ver e esbarrar com os dois pelos próximos dias.”
“E como você está se sentindo depois dessa conversa? Melhor? Pior? Mesma coisa?” me perguntou com os olhos atentos e eu suspirei.
“Agora, nesse exato momento, estou incomodada por ter tido minha zona de conforto atravessada por alguém que me causa desconforto. Não queria ter tido essa conversa, mas agora já foi. E pelo menos é um problema a menos na vida.”
“Oh, então isso é bom, não é?” Ela questionou enquanto pegava uma muda de roupa e a toalha de banho. Saímos da cabana momentos depois, andando devagar.
“Eu acho que sim. Pensei muitas coisas hoje de manhã, enquanto tomava banho, e depois no café... É preciso repensar as coisas, as situações, sabe? Se a vida passa a complicar-se, eu preciso aprender a descomplicar. A não tentar carregar tudo nas costas.” Falei pensativa, e me olhou com o cenho franzido, parando de andar no meio do gramado.
“O que foi?” Perguntei quando notei sua feição suspeita em minha direção.
“Eu que pergunto! Tá com o ar diferente, parece até que você tá recitando aquelas frases profundas da Clarice Lispector.”
Gargalhamos alto com sua observação, e eu mordi o lábio inferior, voltando a andar com ela ao meu lado.
“Estive pensando em muitas coisas, e percebi que está foda de lidar com esses sentimentos sobre , sozinha.” Falei, sentindo aos poucos a leveza voltar ao peito.
“Hm... E isso quer dizer...?” Minha amiga indagou com a sobrancelha arqueada e eu engoli a seco antes de responder.
“Quer dizer que tem sido muito difícil mesmo lidar com isso e estar por perto de .”

parou de andar e me olhou assustada.

“O quão difícil?”
“Muito difícil... A ponto de beijá-lo de supetão.”

As palavras pareciam gelatina escapando da colher. Trêmulas, esguias. segurou meu pulso, fazendo com que nós ficássemos de frente uma pra outra, perto do banheiro feminino. Ela me olhava com a maior cara de choque.

“Tá de sacanagem!?” Ela praticamente berrou e eu ri pedindo silêncio.
“Não!” Os olhos arregalados permaneceram.
“Você tá falando sério?”
“Tô.” Eu acenei com a cabeça, lambendo os lábios em nervosismo.
“Sério?” Ela tornou a perguntar, e eu ri sem graça.
“Sim! Ok? Estou falando sério.”
“O-kay... Puta que pariu. Caralho!” Ela respondeu automaticamente, e eu prendi uma risada. “Você vai me contar agora como foi isso!”

Eu ri abertamente e fui puxada por ela para um canto mais reservado. Ficamos perto de uma árvore enquanto em contava tudo detalhadamente para ela.

“Meu Deus, meu Deus, meu Deus! Eu não acredito!!! Caralho, puta que pariu, eu não sabia que viveria para ver esse momento! Meu Deeeeeeeeus!” Ela dizia feliz, enquanto saltitava e eu ria com a felicidade dela.
“Cara, por favor. Morre aqui, beleza? Não quero ninguém sabendo disso além de você.”
“Eu sou um caixão, querida.” Ela respondeu, fechando a boca num zíper invisível e eu ri de novo, suspirando.
“Mas e agora?”
“Agora a gente tá com esse combinado aí, e assim seguiremos até a peça.”

prendeu mal e porcamente a risada e eu indaguei com a sobrancelha arqueada.

“Que foi?”
“To vendo que você vai deixar o garoto com o lábio frouxo de tanto beijar.” E gargalhou alto enquanto eu ria sem graça.
“Para de bobeira! Pra sua informação, foi ele quem me beijou pela segunda vez!”
“Eita, caceta. Papo reto?”
“Retão.”
“Hm... sei.”
“Sei o que, garota?” Perguntei risonha e ela fez cara de sabichona.
“Então parece que temos uma recíproca, não é mesmo?”

Meu sorriso se murchou e eu dei de ombros.

“Não sei. É difícil dizer.”
“Como é difícil?”
“Ele namora a Lis, cara! Às vezes ele só tá achando isso novo, vendo este esquema como uma forma inusitada e fácil de passar de ano, sem prejudicar ninguém. Ou sei lá, pode estar querendo me animar também, depois dos chifres que me presenteou.” riu, negando com a cabeça. “O que foi agora?”

Ela cruzou os braços e me olhou repreensiva.

“Você precisa rever sua autoestima, garota.” Ela retrucou e eu a encarei com o olhar tedioso. “É sério! Eu tô começando a achar REAL que ele tá arrastando asa pro teu lado sim!”
“Meu Deus, qual parte do ‘ele namora a Lis’ você não entendeu?”
“Desculpa, sinceramente? Quem é Lis? Eu não tenho nada contra a garota, mas se fosse namorada dele ia ficar bem mal de pensar que a melhor amiga tem muito mais espaço na vida dele do que eu!” Eu rolei os olhos, discordando de . “É verdade, cara! Qualquer um pode ver isso!”
“Não é assim . Lis tem uma via de acesso que eu não alcanço. Eu daria muita coisa para estar no lugar dela? Sim, mas as coisas são como são. Não teria motivos para namorá-la se não gostasse dela. Ele não é mesmo o tipo de pessoa que faz as coisas que não quer.” Expliquei pacientemente e foi a vez de bufar.
“Sim, mas as pessoas não podem mudar de opinião? E se ele começou a namorá-la mas descobriu que gostava mais de tu? Sei lá, , só considera essa opção. Pensa comigo: se a gente começar a analisar pelo viés do “ele gosta de você”, então tudo vai começar a fazer sentido! Os ciúmes, o cuidado, a forma que ele te trata, te enxerga, te elogia...”

Fiquei olhando com uma cara de quem comeu e não gostou, pensando no porquê diabos namoraria Elise então?
Bufei, cansada.

“Ele não tem motivos para esconder isso...”
“Tanto quanto você.” me encarou com uma face tediosa e eu tomei uma porrada na boca do estômago.
“Você tá falando sério?” Perguntei depois de um tempo pensativa. “Você acha mesmo que isso pode ser uma opção?”
“Acho. E acho que você também deveria.”

Aquilo vibrou dentro de mim.
poderia gostar de mim? realmente poderia estar a fim de mim?

“Ou ele só tá matando a curiosidade de me dar uns pegas.” Dei de ombros, pensando alto, e gargalhou, negando com a cabeça.
“Caralho, desisto. Você é muito teimosa, cara!”
“Ué! E não pode ser essa opção?”
“Pode! Só que uma coisa não exclui a outra, só isso.” Ela cruzou os braços e me encarou como se eu fosse um bicho de sete cabeças. “Ai, cara. Só você...”

Em alguns segundos, comecei a pensar em tanta coisa...
Em Lis, em , até em , tentando rememorar a linha cronológica dos acontecimentos.
Como esperado, minha cabeça começou a doer de tanto pensar e eu gemi, frustrada.

“Ai, quer saber? Foda-se. Tô exausta demais para ficar pensando no que as pessoas podem ou não sentir. Eu decidi que não vou mais ficar conjecturando tudo, ! Qual é! Então, é isso! Se é um trato beijoqueiro que eu tenho, então vou aproveitá-lo! E chega! Quem quiser que conte suas histórias e assuma seus B.O.s! Já deu ficar queimando bufa com a mente alheia!”
“Mesmo a mente sendo de ?” Sua careta de deboche me fez ficar com uma cara de merda.
“Você não me ajuda, cara.” Comentei em certo desespero e ela riu, culpada.
“Bom... Eu acho que você tem que fazer aquilo que você se sente bem. Se não quer falar nada, não quer tentar entender a cabeça confusa do , e seguir guardando seus sentimentos pra si até que suma, vamos nessa, juntas. Se quiser o contrário, conte comigo também. Mas particularmente, acho que você tá no seu limite de segurar essa onda sozinha. Não precisa nem considerar que ele goste de você também, mas talvez de abrir o jogo e dizer que tá foda. Porque visivelmente, está.” Ela explicou e eu concordei, balançando a cabeça.
“É...”
“Se eu estivesse no seu lugar, já teria dito pra ele, mas seria tão catastrófico. Consigo imaginar perfeitamente: uma noite chuvosa, um brigando com o outro, discussões, dedo na cara e eu pá! Acabo vomitando tudo de forma atropelada, tornando a situação numa bosta maior do que já estava. O que só me faz pensar ‘que bom que a não é assim’, não é mesmo?”

Nós duas rimos abertamente, e em minha mente tudo ganhava vida: brigando com , mas mesmo ela achando que o final seria ruim, eu só conseguia vê-los juntos. Sorri com esse pensamento.

“Obrigada por isso, amiga.” Agradeci e me deu língua.
“Não precisa agradecer. Mas me diz, pretende treinar hoje?”
“Pode apostar esse seu belíssimo traseiro que sim!” Rimos novamente e eu dei de ombros. “Nah, brincadeira. Na real, acho que tudo vai depender do clima... Quando a gente se vir hoje.” Falei me sentindo ansiosa.
“É... Uau! Eu não estou acreditando nisso. Parece mentira!” Ela falou animada, e eu concordei, sonhadora.
“Uma parte de mim fica feliz, mas outra fica se perguntando o que vai ser depois da peça...” Ela me segurou pelos ombros e aproximou seu rosto do meu.
“Deixe para descobrir depois da peça, certo? Esse lance de Lis, você e ... Até então são dois amigos treinando para um esquete de teatro, então tecnicamente, tudo certo, ninguém quebrando as regras. Pensa no depois, só depois. Viva um dia de cada vez. Entendeu?”
“Sim senhora.” Respondi, aflita. “Caralho, eu quero muito quebrar as regras.”

Explodimos em risadas e nos despedimos brevemente, enquanto ela ia tomar banho e eu me direcionava para a sala do teatro, indo ao encontro do meu projeto e, possivelmente, ao trato com .
Seria esse, mais um dia de realizações?


Capítulo 25 – Life has a funny way helping you out (quinto dia)

Cheguei no local talvez cedo demais.
A porta até estava aberta, mas só tinha a professora lá dentro e eu não queria ficar ali jogando conversa fora sobre literatura, com todo perdão e respeito possível.
Então, fiquei sentada no banquinho de fora da sala, sentindo a brisa gostosa mexer com meu rosto, bem como sentia o calor do sol me aquecer.
Fechei os olhos, aproveitando aquele momento intimista, tentando praticar o mantra do “não pensar em nada”. Até que estava sendo possível esvaziar a mente, porém uma sombra deixou tudo mais escuro e frio. Estranhei, porque não lembrava de ter visto nuvens grandes o suficiente para cobrir o sol, então resolvi abrir os olhos. Acabei dando de cara com um cheiroso e recém-banhado, me encarando com um sorrisinho de canto e uma sobrancelha arqueada. Eu estava apenas olhando para aquele lindo rostinho quando ele pigarreou, se aproximando e pegando em minha mão, curvando-se levemente

“Madame Camargo, é um prazer desfrutar de vossa presença.” Ele lançou um olhar cúmplice e beijou a mão, sem quebrar o contato visual.
“Encantada, Senhor Seixas. O prazer é todo meu, imagine! Inenarrável partilhar de um momento tão sublime com o senhor.” Respondi com uma voz melodiosa, me levantando e cumprimentando como uma dama. Ficamos nos encarando, curvados, até que desatamos a rir, sem aguentar aquela brincadeira.

Ficamos assim, olhando um pro outro, até que eu percebi que olhava demais para e retornei à postura ereta, voltando a encarar meus pés. Ele fez o mesmo, e sua pergunta chamou minha atenção.

“O que foi, Amaral? Vai ficar de voyeur mesmo?” Levantei meu rosto, procurando entender a situação e estava simplesmente com aquela cara maníaca de quem “tá manjando” alguma coisa, enquanto nos encarava logo atrás de nós, com um sorriso sapeca no rosto.
“Nada, ué! Estou apreciando a atuação de vocês. Impecável!” E fez um joinha, trazendo certo humor para o ambiente. Todos riram, mas eu ri sem graça, admito.
“Veio ver o ensaio?” Perguntei, fugindo um pouco do foco.
“Na verdade, vim te entregar isso. Esqueceu na cabana.” E me entregou meu celular, que eu peguei com surpresa. Estava vivendo no mundo da lua mesmo!

Quando chequei o aparelho, percebi que tinha uma mensagem de todo feliz.

“CONSEGUI CARALHO!!!” Em letras garrafais apareciam na tela. Eu ri daquilo e encarei minha amiga com um sorriso cúmplice.
“Vejo que falou com , né?”

Ela sorriu sem graça, com as bochechas se destacando, e foi impossível não rir da sua cara.

“Siiim... E não vou negar, me fez um bem danado!” Ela uniu as mãos na altura do peito e eu dei um peteleco em seu nariz.
“Ai!” E fez uma careta de dor.
“Isso é por ser teimosa e maltratar o coração do meu amigo! sofreu, tá?”
“É, eu tô sabendo que ele encheu o saco... Foi muito?” Ela perguntou, dando uma risadinha.
“Muito. Era todo dia uma lamúria diferente.” respondeu suspirando e eu dei um tapa em seu ombro, voltando a falar.
“Que nada! Ele só estava ansioso para resolver as coisas. Ele gosta muito de você.” Fui sincera e ela suspirou apaixonada.
“Gosta mesmo.” concordou com um sorriso genuíno. concordou, feliz.
“É, eu também... Ele é uma pessoa incrível.”
“Não é porque é meu amigo... Mas é mesmo. E você também. Por isso são um casal da porra!” comentou e rimos da expressão sincera.
“E o melhor de tudo é que vocês terão a madrinha de casamento mais maravilhosa que existe!” Eu joguei a real, fazendo expressão de poder enquanto me olhava chocada. dava risadinhas enquanto negava com a cabeça.
“Você é foda, cara! Não deixa passar uma!” resmungou, e sentiu seu celular vibrar no bolso. Ela rapidamente checou o visor e rolou os olhos. “Tenho que ir. está surtando com meus atrasos no projeto. Beijos!”
“Beijos! Obrigada pelo celular!” Respondi enquanto ela estendia o polegar e se apressava, correndo até a sua sala.

Quando já estava longe, se sentou no banco e eu fiz o mesmo. Ele se virou pra mim com o semblante sério.

“Como você está?” Seus olhos analisavam minha face, e eu sorri.

Estava feliz que o clima entre nós não estava pesado.

“Estou bem... E você?”
“Estou preocupado com você. Chegou cedo... Tá bem mesmo?” E seu cenho franziu levemente, indicando preocupação falsa. Eu ri, dando de ombros.
“Acredita que acordei cedo e tomei café? Comi muito bem!” Me virei pra si, com uma careta animada e ele arregalou os olhos.
“Ora, vejam só! Você venceu seu desafio, eu te disse que hibernar não era tão necessário! Agora você só precisa manter esse ritmo, fico feliz por você.” Ele me sacaneou com a cara fingida e eu dei um tapa em seu ombro, rindo da piada infame.
“Para de graça, garoto chato! Para sua informação, foi muito legal, tá? Além do mais, estava precisando disso...” Comentei com um sorriso sincero no rosto.
“Imagino, . Que bom que tenha tirado esse tempo pra você.” Ele colocou a mão sobre minha cabeça e fez um carinho gostoso com a ponta dos dedos. Deitei a cabeça em seu ombro e fechei os olhos, e ele riu.
“O que foi?” Perguntei, ainda com os olhos fechados.
“Você é muito filhotinho de cachorro, cara. Recebeu carinho, já sai aninhando pedindo por mais.” Ele comentou, cobrindo meus ombros com seu braço enquanto seguia com o carinho, me fazendo aconchegar em seu peito.
“Fazer o quê se você tem o melhor carinho do mundo?” Eu disse naturalmente, mas após alguns segundos de silêncio, me toquei que havia pensado alto demais. Abri meus olhos de maneira alarmada e parou de fazer carinho na minha cabeça, momentaneamente.
“Tenho?” Ele perguntou com a voz risonha, e eu senti pela sua movimentação que ele virou seu rosto pra baixo, para me ver. Eu dei uma leve travada e apenas respondi sem olhá-lo nos olhos.
“Uhum. Tem sim. Inclusive, por que parou hein?” Desloquei a pergunta e ele riu com aquilo, voltando a acariciar e eu fechei os meus olhos – de alívio e satisfação.

Ficamos um tempo em silêncio, e momentos assim eram cada vez mais comuns entre e eu. Aquilo era tão curioso, porque não se tratava de uma atmosfera constrangedora, e sim de paz. Era tão nós que me deixava com uma sensação de nostalgia, mesmo não tendo vivenciado aquilo que eu sonhava com .
E por mais que por dentro eu estivesse ansiando sobre o bendito acordo do “treino beijoqueiro”, eu realmente estava sendo influenciada pela atmosfera de paz que acontecia entre mim e .
Isso, além de ser inédito para nós (vide os últimos tempos caóticos que vivemos), era algo que me deixava aliviada. Durante todo aquele momento contemplativo e silencioso, eu me lembrava dos dias que achava que ia desidratar de tanto chorar, morrendo de saudade de e de perdê-lo, pensando que todo esforço sobre não contar dos meus sentimentos, havia sido em vão.

“Vamos nadar amanhã no lago?” Ele perguntou enquanto acariciava a cabeça, e eu senti um revirar na boca do estômago.

Aquela pergunta tão do nada me deixou toda cagada! No sentido figurado, é claro.
Lago? ?
Roupas de banho?
Óh céus.

“No lago?” Repeti e ele confirmou.
“Sim, no lago. Vamos?”

No lago… roupas de banho.
Eu e .
Eram só dois amigos nadando, certo?

“Hm... Oito horas?” Sugeri, optando por não pensar muito sobre aquilo.

se afastou de mim com uma cara assustada.

“Você tá me deixando preocupado com essa sua disposição matinal, sabia?” Eu rolei os olhos e ele bagunçou meu cabelo, rindo. “Certo, oito horas. Te pego na sua cabana?”
“Que cavalheiro! Me buscando em casa!” Comentei e ele gargalhou, dando de ombros.
“Eu recebi uma boa educação. Mas então, combinado?” E me olhou de maneira mais incisiva. Eu umedeci meus lábios e saí de seu ombro, lhe lançando um olhar desafiador.
“Combinado! Você vai se arrepender de zoar tanto meu humor matinal!”
“Tá aí uma coisa que eu quero ver.” Ele retrucou com humor na voz, e eu sorri pela forma que ele parecia estar se divertindo. Ficamos nos olhando por um tempo, e eu quebrei aquele contato, encarando o céu.
“Está um lindo dia, né?” Perguntei, sentindo o coração bater forte. Eu estava feliz.
“Não lembro a última vez que esteve tão lindo.” falou pontualmente, e eu abaixei o olhar para as árvores, pensando se ele se referia apenas ao dia. Pela entonação, eu suspeitava que tivesse algo a mais.

Mas talvez fosse só impressão da minha mente apaixonada, então apenas o olhei sorridente.

“Eu não poderia concordar mais.”

Nossos olhares voltaram a se encontrar, e meu sorriso aos poucos se esvaiu. me olhava contemplativo, e eu fazia o mesmo, sentindo os pensamentos fluírem a mil por hora. Só pensava no acordo, só pensava em atropelar tudo e todos e agarrar ! Beijá-lo, sentí-lo, tê-lo.
Eu não sei quanto tempo consegui ficar ali sem fazer nada, mas de toda forma, o universo pareceu intervir, já que a professora Strauss surgiu momentos depois, alegre feito uma criança em festa infantil.

“Oh, estão aí? Por favor, entrem! Já estamos quase na hora do ensaio! Animados?”

e eu nos entreolhamos, com um sorriso simples.
Você não faz ideia do quanto, professora...

***


Passamos a manhã fazendo ajustes nas falas, tentando gravá-las e contextualizá-las da melhor forma possível. Fizemos uns testes de figurinos e, após o almoço, engrenamos num ensaio já com as roupas dos personagens, bem como algumas ideias de maquiagem pairando em nossos rostos. A peça estava tomando forma!

“É então verdade que me ama?” Eu falei com a voz impostada, encarando com o olhar desconfiado. Interpretando Aurélia, era difícil olhar nos olhos de meu melhor amigo, fazer aquela pergunta e não sentir o revirar na boca do estômago.

sorriu de forma genuína, ajoelhado aos meus pés e segurando minhas mãos com firmeza.

“Pois duvida, Aurélia?” Me questionou com curiosidade.
“E amou-me sempre, desde o primeiro dia que nos vimos?” Eu desejaria que sim.
“Não lhe disse já?” Tornou a indagar com a feição confusa e eu suspirei, focando na peça e no enredo.
“Então nunca amou a outra?” Aurélia insistia e eu apenas emprestava meu corpo, minha voz para torná-la verdade; ainda que o diálogo fosse um sonho que eu gostaria ser real.
“Eu lhe juro, Aurélia. Estes lábios nunca tocaram a face de outra mulher, que não fosse minha mãe. O meu primeiro beijo de amor, guardei-o para minha esposa, para ti...” disse com tanta naturalidade que demorei para respondê-lo. Respirei fundo, recobrando a postura da protagonista.
“Ou de outra mais rica!” Eu disse com tanta veemência que parecia mesmo que havia sido trocada como Aurélia. Me afastei a passos largos, usando a frustração dos últimos acontecimentos de minha vida como o gás da cena.
“Aurélia! Que significa isto?” ergueu-se num só movimento, arqueando as mãos para cima e me seguindo. Parei de costas para si, ofegante de forma proposital. Me virei de supetão e o encarei com raiva.
“Representamos uma comédia, na qual ambos desempenhamos o nosso papel com perícia consumada. Podemos ter este orgulho, que os melhores atores não nos excederiam. Mas é tempo de pôr termo a esta cruel mistificação, com que nós estamos escarnecendo mutuamente, senhor. Entremos na realidade por mais triste que ela seja; e resigne-se cada um ao que é, eu, uma mulher traída; o senhor, um homem vendido.” A última palavra soou com firmeza e me encarou de olhos arregalados, incrédulo.
“Vendido!”
“Vendido, sim: não tem outro nome. Sou rica, muito rica; sou milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a minha riqueza por este momento.”
Com uma face zombeteira, sorri debochadamente enquanto desdobrava um papel em minhas mãos, entregando-o a , que o pegou exasperado.
“Agora, meu marido, se quer saber a razão por que o comprei de preferência a qualquer outro, vou dizê-la; e peço-lhe que me não interrompa. Deixe-me vazar o que tenho dentro desta alma, e que há um ano a está amargurando e consumindo. Sente-me, meu marido.” Falei com a voz de uma rainha, e o ato foi encerrado por uma salva de palmas da galera da produção, e uma professora Strauss muito animada veio até nós, com uma prancheta e os óculos de grau nas mãos.
“Ah meu Deus, vocês estão formidáveis, meus jovens! Nunca esperei que tivessem tanto talento, tanta potência... E a química entre os dois!? São as próprias encarnações de Aurélia e Seixas! Isso é tão divino, não tenho dúvidas de que tudo sairá perfeito!” Ela desabafou nos abraçando apertado e eu e nos entreolhamos sem graça — não sabia exatamente do que, mas estávamos sem jeito.

Talvez pelo fato de sermos reencarnações de Aurélia e Seixas — e aquele gostinho de ser um casal romântico, e não apenas amigos.

“Certo, o que vocês acham de descansarem por hoje? Estudem as falas para amanhã, onde começamos o novo ato no qual abordamos a história de Aurélia e Seixas, e aí encaminhamos para a cena final, sim?” A professora sugeriu, chamando minha atenção.
“Por mim tudo bem.” respondeu simploriamente e eu concordei com um acenar de cabeça.
“Ótimo! Já estou vendo o sucesso que vai ser...” A Sra. Strauss comentou com os olhos brilhando ao passar a vista pelo palco. Vários mini grupos se subdividiam entre figurino, cenário, e discussões de alterações finais para o texto que fechava a adaptação.
“Ah! Eu não posso esquecer de pedir isso para vocês...” Ela disse, se lembrando de algo aparentemente importante, e nos pegou pelos pulsos de forma sutil, trazendo nossos corpos para um canto mais reservado. “Vocês por acaso já começaram a praticar a cena final... voluntariamente?”

O arregalar dos olhos foi impossível, e eu pude ouvir a engolida a seco que deu quando a professora perguntou de maneira tão direta.

“Como assim, Sra. Strauss?” Eu retruquei igual uma idiota, apenas para preparar terreno e pensar numa desculpa esfarrapada, caso alguém tenha visto os beijos trocados entre e eu na noite anterior.

Realmente, discrição mandou lembranças para nós. Que fase!
A sra. Strauss respirou fundo e retirou os óculos dos olhos, limpando-os enquanto me respondia.

“Então... Eu preciso que deem tudo de si nesta peça, e não tenho dúvidas de que vocês estão mega dedicados nessa empreitada. Fico muito feliz com isso. Eu só preciso que mantenham os ensaios da cena final discretamente, entendem?” Ela sorriu sem graça e eu senti meu rosto pegar fogo. piscou algumas vezes e nem sequer me olhou de soslaio, como eu fiz com ele.
“Aconteceu alguma coisa?” foi o corajoso a perguntar. Acho que a professora entendeu aquilo e fez uma cara levemente desesperada.
“Não, não! Felizmente ninguém está encasquetando com nada da peça, e por mais que eu saiba que a maioria dos jovens aqui já tenha tido algumas boas experiências, a escola tem que ter todo cuidado para se respaldar e não pensarem que eu estou fomentando atos sexuais, entendem? Parece um pouco piegas, mas não seria muito legal se alguém pegasse vocês ‘ensaiando’ por aí. Até entenderem, e explicar que isso é arte, tudo já estaria comprometido e enfim. Não queremos isso, não é?” E deu um sorriso gigante, me fazendo sorrir meio nervosa.
“Hum... Claro, Sra. Strauss. Discrição é nosso sobrenome.” Motivos pelos quais eu odiava ficar ansiosa: me fazia dizer coisas idiotas como a que acabava de proferir. Senti prender porcamente uma risada ao meu lado, e lhe olhei com uma feição incisiva. Ele logo concordou comigo, encarando a professora animado.
“Conte conosco, professora.”

Ela suspirou aliviada e riu mais despojadamente.

“Vocês são incríveis, sério. E eu sei que pode parecer precaução demais, já que provavelmente não é uma novidade para vocês, né?” E cutucou a costela de com o cotovelo, enquanto olhava dele para mim com uma cara sugestiva e sorridente. a olhou incrédulo, com a sobrancelha arqueada.
“Como é?” Eu cuspi praticamente a pergunta, imitando as feições do meu amigo.

A professora perdeu o sorriso e olhou para nós sem saber o que falar. Até que sua boca virou um “o” e os olhos se abriram instantaneamente.

“Oh Meu Deus, vocês não são namorados?” Ela perguntou e nós dois negamos com a cabeça ao mesmo tempo, sem conseguir dizer nada.
“Deus, que vergonha!” Ela estapeou a própria testa e começou a gesticular com muita rapidez. “Me desculpem, eu não quis constrangê-los! É que vocês parecem tão enturmados, estão sempre juntos! Com aquela situação toda entre o Sr. e o Sr. , eu pensei que fosse um caso de ex-namorado ciumento!” Ela explicou toda enrolada, mas tão intensamente que senti a boca do estômago revirar com aquela descrição. A Sra. Strauss estava dizendo que parecíamos namorados? “Às vezes parecem que se falam pelo olhar...” Ela comentou desolada e eu senti que desmaiaria ali mesmo, de tanta vergonha.

Eu estava tão tensa, estatelada no lugar que não consegui mexer e nem me virar para encarar . Ele, por sua vez, parecia estar na mesma situação que eu. Com o adendo de que ele era namorado de alguém, mas parecia que essa pessoa sequer existia no ponto de vista da nossa professora, uma vez que se meter em brigas, estar sempre junto e ensaiar beijos parecia ser o suficiente para a professora concluir que éramos namorados.
Céus, aquilo era constrangedor pacas!

“Deve ser coisa da minha cabeça. Acho que na verdade vocês são apenas bons atores. E amigos, né?” Ela tentou consertar com um sorriso incerto e nós concordamos sem dizer nada; eu acho que estava tão chocado quanto eu diante daquela afirmativa.
“Bom... Então é isso, casal-QUERIDOS!” Ela se interrompeu, batendo novamente na testa — e dessa vez precisei chegar um pouco pra trás devido a força que ela usou. Doeu em mim. olhava assustado para a professora e eu encarava aquela situação como uma das mais embaraçosas dos últimos tempos.
“Sr. , Srta. ... Reforço o pedido de discrição dos ensaios da cena final.” Ela disse depois de pigarrear, tornando-se mais séria, com a postura ereta. Nós três nos entreolhamos durante um tempo, até que deu um tapinha no ombro da professora, forçando uma intimidade que fez tanto ela quanto eu olharmos para o rapaz com estranheza.
“Relaxa, prof! Somos um caixão, não falaremos nada. Esse assunto está como as renas do papai noel: EM TRENÓS!” E sorriu com todos os dentes, com uma cara de idiota que acaba de contar a pior piada do século.

Os olhares focaram em , que cada vez mais se sentia inclinado a explicar a piada — estágio final da miséria da comédia. Mas ele desceu até o fundo do poço, surpreendendo a todos.

“Em trenós, entendeu? Entre nós, em trenós! Hã? Hã?” E fez o gesto de trocadilho com as mãos, e a professora sorriu desconcertada. Eu acho que ela tinha entendido, só estava muito sem jeito de dizer que não viu nenhuma graça naquilo.

Eu suspirei de olhos fechados e tomei a dianteira da situação.

“Tá certo, professora! Nos vemos amanhã no ensaio, sim?” E sorri forçadamente, enquanto colocava as mãos nos ombros de e o empurrava para longe, que acenava para a Sra. Strauss com a mão esquerda.
“Em trenós, !?” Perguntei colocando as mãos na cintura, quando estávamos fora da sala. Ele deu de ombros, rindo sem graça.
“Foi o que veio à cabeça, ué!” Ele explicou, gesticulando com as mãos pra cima e eu segurei na base do nariz enquanto ria de sua cara.
“Apenas e somente isso?” Perguntei ainda risonha, e ele fez uma careta.
“Na verdade verdadeira, a piada é “O que uma rena de papai noel disse para outra?” e aí a resposta é: tá rolando um clima em trenós (entre nós). Entendeu?”
“Puta que pariu!” Eu exclamei gargalhando, segurando no ombro de , que ria comigo.
“Foi tão ruim assim?”
“Você fez uma escolha boa em não mandar a versão original. Mas da próxima vez, escolhe o silêncio, tá? Pelo menos era só uma pessoa passando vergonha, agora são duas.” Eu fiz dois com a mão, enquanto caminhávamos para o refeitório. Era hora do lanche.
“Ah, fala sério! Eu precisava fazer isso antes de me formar.” Ele disse convencido, colocando as mãos no bolso da calça.
“Passar vergonha na frente dos outros?” Perguntei risonha e ele sorriu.
“Não, isso eu vou fazer no dia da peça, e já faço nos shows da McFly. Me refiro a te deixar sem graça diante de uma professora a ponto de você precisar intervir.” E colocou o braço ao redor dos meus ombros, olhando pra frente como se não tivesse acabado de falar a coisa mais idiota da face da Terra.

Eu gargalhei alto, negando com a cabeça.

“Ok, você teve o que queria, completou sua sina. Agora só falta saber se na peça passaremos vergonha, porque com a McFly você definitivamente não precisa se preocupar.”
“Não?” Ele perguntou me olhando de soslaio, e eu fiz que não com a cabeça, olhando pra frente enquanto ria com a testa franzida.
“Claro que não! Você é incrível em cima do palco, .”

Ficamos andando calmamente, num silêncio confortável. me olhava com o rosto virado em minha direção, e eu fingia não perceber isso, enquanto chutava pedrinhas. Acho que fui muito enfática e não soube lidar com sua atenção.

“Queria me ver com seus olhos para saber como é.” Ele disse de uma forma mais séria, a voz um pouco rouca e grave. Eu ri, ainda sem olhá-lo. Estava mordendo minha bochecha quando decidi respondê-lo.
“Você definitivamente teria mais segurança em si mesmo.” Falei genuinamente, e ele me olhou surpreso.

O silêncio fez com que minha curiosidade falasse mais alto, e eu me virei para encará-lo. Minha barriga bateu palmas diante de seu olhar, meio intrigado, chocado com aquela declaração gratuita. Eu não estava mentindo, né? Por fora, estava tentando manter a naturalidade; por dentro parecia que uma festa rave acontecia, me deixando muito nervosa e agitada. Mas lá estava eu, tentando.

“É?” Ele perguntou com um sorriso tão singular que eu rolei os olhos e ri de sua cara fofa.
“É.” Respondi e dei de ombros, umedecendo os lábios num gesto nervoso e olhando pra frente. Estava difícil olhar nos olhos dele, que pareciam ter zero vergonha em focar nos meus diante de um assunto peculiar.
“Ok, eu realmente gostaria de me ver com seus olhos.” Ele disse risonho, e eu o acompanhei, me sentindo boba, e leve. Seguimos os próximos passos sem dizer nenhuma palavra a mais, com o clima agradável pairando entre nós.

Estávamos entrando no refeitório, indo em direção à fila, quando congelei ao dar de cara com — que estava junto de e . Ele nos olhava de um jeito tão analítico, ressentido. Eu engoli a seco e ignorei sua feição, ao tempo que senti o aperto da mão de em meu ombro me fortalecer.
Quer dizer, eu queria evitar sim. Mas sabia que era impossível não esbarrar com ele, principalmente estando num acampamento, né?
Minha saída foi tentar ignorar, e ao mesmo tempo ser cordial, caso surgisse algum tippo de interação.
Pelo menos era o que eu tinha em mente.

“E aí, pessoal! Como vai o projeto?” perguntou animado. Estranhamente animado.
“De vento em poupa! Vai ficar ótimo, além da gente dar uma palhinha das nossas músicas autorais. Eu sei, eu sou um gênio.” respondeu com a cara convencida e jogou seu ombro em direção ao amigo, que franziu o cenho em resposta.
“O que foi!?”
“Você só sabe dar ordens, !”
“Você quer que eu faça tudo, mulher!? Penso no projeto, executo... E vocês fazem o quê?” Ele perguntou indignado e fez cara de tédio.
“Eu não sei o , mas eu continuo sendo uma grandíssima gostosa que traz toda a beleza pro projeto e explico as partes mais fáceis na hora de apresentar.” E sorriu bem cafajeste, piscando rapidamente enquanto todos ríamos de sua cara.

Menos . Que não parava de olhar pra mim e .
E eu fiquei pensando que talvez fosse meio esquisito me ver daquele jeito com o meu melhor amigo (que por acaso sou completamente apaixonada e sabe disso). Mas também era muito esquisito ver e lembrar automaticamente do beijo entre ele e Charlotte.
Felizmente, meus pensamentos foram interrompidos por .

“E então, atores? Ensaiando muito pro Oscar?” Ela perguntou animada, e eu sorri levemente ao voltar para a conversa, enquanto dava o dedo do meio para ela, que devolveu com uma língua atrevida.
“Fazendo nosso melhor. Estamos ensaiando bastante.” Respondi sincera e interviu.
“Já ensaiaram tudo e estão apenas reforçando as partes difíceis?”
“Não exatamente, ainda falta um ato e a parte final.” Dessa vez, respondeu.
“Maneiro! Mas são partes muito difíceis de lembrar, de atuar?” perguntou ingenuamente e eu respirei fundo, ouvindo a risadinha de escárnio de soar bem plena.
“Não exatamente. É mais fácil do que as partes já feitas. É só uma questão de tempo, na verdade. Tudo vai estar pronto no dia da peça.” Ele deu de ombros e eu concordei consigo, recebendo os sorrisos de todos.

Menos , que continuava a nos olhar com uma cara péssima.

“Mal posso esperar pra ver.” comentou com uma cara sugestiva e arqueou a sobrancelha.
“Sério?” indagou e eu lancei um olhar incisivo para minha amiga. Ela soltou uma risada e se fez de idiota.
“Não acha legal ver nossos amigos pagando mico? Além do mais, eu adoro o final de ‘Senhora’. É uma reviravolta muito incrível. Você não leu, gênio?” Ela implicou com , que fez a melhor cara de pastel possível.
“Não. Do que se trata a história?” abriu a boca para responder, mas foi interrompida.
“Uma história de amor muito conturbada devido às questões sociais, mas que se resolve no final, quando eles finalmente superam suas diferenças e ficam juntos, de uma forma bem romântica e clichê, com declarações ostensivas e espalhafatosas. Imagino que esse seja o final que adore.” falou pela primeira vez, com os braços cruzados, encarando sem nenhuma emoção no olhar.
“É isso mesmo. Aurélia e Seixas sofreram muito e merecem ficar juntos.” Ela respondeu com a voz mais séria, encarando com a sobrancelha arqueada. Ele riu com ironia.
“Merecem mesmo. Nasceram um para o outro! Aliás, é ótimo que e estejam interpretando o casal. Afinal de contas, poucas pessoas teriam a ligação que ele têm para desempenhar o papel com tanta... naturalidade.” Era impressão minha ou estava insinuando algo?
“Eu concordo.” respondeu, dando de ombros e estranhamente calmo ao dizer aquilo. Diferente de , que prendeu o maxilar ao encarar meu melhor amigo, dando um sorriso forçado.

O que diabos estava acontecendo aqui!?

“É claro que concorda. Quem melhor do que você para fazer o papel de Seixas, não é mesmo?” Mais insinuações nas palavras de , e foi a vez de sorrir, fazendo pouco caso.
“E perder a oportunidade de dar uns amassos com essa mulher maravilhosa? Nem morto!”

soltou aquela resposta com a cara mais lavada, gargalhando de uma maneira quase forçada, que contagiou todos presentes. Dessa vez, nem eu nem rimos, por motivos completamente diferentes.
Mulher maravilhosa.
Amassos.
Oportunidade.
Era sério isso!? Ele tinha realmente dito aquilo!?
As palavras ficavam rodopiando na minha mente em 3D, dignas de apresentação em power point.
Enquanto ficava estarrecida com a resposta provocativa de , o clima daquela conversa ficava mais perigoso.

“Amassos? Eita!” comentou rindo de leve, e estava vermelha de tanto rir, me olhando sem disfarçar a cara de Michael Jackson comendo pipoca em ‘Thriller’. Já nos encarava de maxilar trincado, não disfarçando mais a cara enfezada.
“E o que Elise acha disso?” A voz do meu pseudo-ex-namorado soou no ambiente após um tempo, e eu engoli a seco. Apesar de estar incomodada com e de sua motivação indevida ao perguntar aquilo, eu também gostaria de saber a resposta.

parou de rir e encarou com uma expressão irritada. Deu de ombros, ajeitou a postura e ficou mais alto do que já estava.

“Eu estava brincando, . É uma peça, sabe? Teatro. Vamos apenas fingir que somos um casal. Não há nada pra Elise ou ninguém achar.”

rolou os olhos e riu.

“Essa é a desculpa mais esfarrapada que eu já ouvi para justificar uma pulada de cerca.”

Eu não acreditava que tinha dito aquilo. Fiquei encarando-o boquiaberta, sem reação, sentindo que a qualquer momento meus olhos furariam a cara do devido a raiva que eu sentia.
Aparentemente, ele conseguia ser um belo de um hipócrita ao dizer aquilo.
Mas novamente, respondeu e colocou a cereja do bolo.

“Não que eu lhe deva satisfações do meu relacionamento , mas para fins de conhecimento: Elise sabe e apoia. Madura como é, entende que isso é uma atividade extracurricular, apenas. Então, só pra constar: diferente de você, eu não vou estar fazendo nada de errado.” E soltou um sorriso digno de prêmio-deboche. “Relacionamento é outra coisa. Mas o que esperar de alguém que não entende muito sobre isso, não é?”

A cena seguinte foi típica de novela. O queixo de simplesmente despencou. Os olhos de pareciam que iam sair da órbita ocular.
E ficou irado de uma forma nunca antes vista, e deu um passo para frente.

“Como é que é?” Ele perguntou encarando .
“Você me ouviu. Não se faça de mais idiota do que já é.” A verdadeira ira de surgiu enquanto ele cuspia as palavras, sua feição completamente mudada. Precisei respirar fundo umas três vezes antes de tomar uma atitude; os dois se olhavam como se fossem dois cães de briga prestes a se atacar.

De novo! Cacete, de novo?
Olhei em volta, sentindo que apenas eu estava desperta para fazer algo. Foi quando reparei no espaço diante de nós e respirei fundo, intervindo.

“Gente, a fila andou. Dá pra focar na comida?” Me coloquei entre os dois, apontando para frente. me olhou com a cara irritada.
“Parece que andou mesmo, não é?”

Ah, não.
Ele não tinha dito aquilo!
Mais uma vez a boca abriu em choque, e eu pisquei inúmeras vezes em reação. Até que ficar em silêncio foi demais pra mim; puxei ar e o chamei raivosa;

“Chega! Lá fora, agora!” Bradei ao apontar o dedo para a porta trás de mim.
“O que? Eu não—”
“Agora!” Falei mais firme, e senti a mão de sobre meu ombro.
, não—”
.” Chamei sua atenção com a face raivosa, e pela troca de olhares, ele entendeu que eu não estava brincando. Apenas deslizou a mão, escondendo-a no bolso e encarou qualquer outro ponto, remexendo o maxilar, como se estivesse contrariado.

Bem, foda-se.
Eu olhei para e indiquei a saída com um aceno, andando fervorosamente até lá. Senti todos os olhares sobre mim, mas estava pouco me lixando.
Ao chegarmos do lado de fora e afastados da entrada, percebi que a temperatura tinha caído um pouco, mas estava com tanta raiva das atitudes de que nem o frio me abateu. Então apenas comecei a questionar aquela loucura de perguntas sem noção dele.

“Qual é a porra do seu problema, ?” Minha voz saiu incisiva, e ele me encarou com raiva, mas não respondeu nada. Apenas balançava a cabeça, e prendia os lábios numa linha endurecida. Os braços cruzados estavam firmes junto ao tronco, e ele desviou quando insisti na pergunta.
“O que está acontecendo, cara? Sério, que merda foi aquela lá dentro?” Gesticulei nervosa e ele suspirou, colocando as mãos na cabeça.
“Foi mal, tá bem? Eu meio que perdi o controle!” Ele disse à contragosto, e eu ri com sarcasmo.
“Meio? Você perdeu totalmente a noção das coisas, !” Eu falei mais alto, me aproximando de si enquanto fazia sinal de “maluco” com a mão direita. fechou os olhos por um tempo, e os abriu, encarando o chão.
“Eu sei disso!” Ele berrou, e eu dei um passo para trás, franzindo o cenho. Fiquei encarando sua face, confusa. Ele subiu o olhar para o meu, e respirou fundo.
“Olha, foi mal. Sério. Mas tá foda, entendeu? Eu gosto pra caralho de você, e ver essa aproximação de vocês me deixou...” E mordeu o lábio inferior, desviando o olhar.
“Deixou o que, ?” Perguntei impaciente, e ele rolou os olhos, dando o braço a torcer.
“Com ciúmes, tá legal!? Fiquei na merda de ciúmes vendo vocês tão juntos! E eu sei, eu sei que a gente não está mais junto, sei que ele namora a Elise, sei que vocês são amigos, mas ao saber dessa merda de cena na peça, eu… Urgh!” E passou a mão no rosto, tentando se acalmar. Me olhou por um momento e retomou a fala. “O que eu sinto é maior que isso tudo! Parece que o peito vai abrir, entende? Tá muito recente, tanta coisa acontecendo junto! E exigir que eu não reaja é complicado! Você poderia ser mais compreensiva!” Ele falou chateado e eu ri incrédula.
“Você só pode estar brincando, .” Eu disse, ainda rindo de nervoso, balançando a cabeça em negação.
“É tão absurdo assim te pedir isso?” Ele indagou irritado e eu trinquei o maxilar para responder.
“Só porque eu não te coloquei abaixo de cachorro depois te encontrar aos beijos com outra garota, não quer dizer que eu não possa fazer isso agora! Ou muito menos significar que você pode falar sobre o que pensa de mim ou da minha vida. O que aconteceu lá dentro não foi apenas uma cena de ciúmes, foi um show de horrores no qual você simplesmente vomitou toda e qualquer merda para se sentir menos miserável por si mesmo! Você afirmou coisas injustas, tão injustas que eu não quero nem lembrar! Como se já não tivesse dito todas essas merdas antes!” Neguei com a cabeça, suspirando. Ele manteve o olhar sobre mim, com a cara endurecida, sem dizer nada. Decidi continuar.
“E você ainda me pede compreensão? Você ficou com Charlotte, cara. A mesma garota com quem ficou anos atrás quando eu gostava de você. E não, naquela época você não tinha culpa de nada, mas estou citando como exemplo de que não há ninguém impune aqui! Já pensou que algumas coisas ficam e marcam a gente? Até que essa merda de acampamento acabe, eu tenho que conviver olhando pra sua cara e pra dela, entende isso? E aí eu te pergunto: quem é que não é compreensivo agora? Eu já não estou comendo o pão que o diabo amassou? Não estou vivendo um inferno o suficiente pra você? Eu simplesmente estou aqui tendo que lidar com as merdas que você faz e diz! Com as acusações infundadas sobre como eu estou num relacionamento amoroso com meu melhor amigo! E ao mesmo tempo, é impossível não olhar para você e não pensar naquela cena de vocês dois se beijando! Entende como você é, no mínimo, contraditório!? Hipócrita talvez combine mais, sabia?”
“Eu não—”
“Eu ainda estou falando!” Bradei novamente, respirando com dificuldade enquanto botava tudo para fora. Ele ficou quieto, mordendo o lábio inferior enquanto me olhava receoso. “Cacete, ! Porra, sério. O que aconteceu com o respeito, a admiração mútua? Sei que é difícil, mas não é só para você! Além de tudo que eu falei, ainda sou a garota que tem que lidar com essa merda de sentimento não correspondido, até que um dia passe. Essa não é a sua situação, sabe? Você, pelo visto, até tem um consolo super disponível para você!”
“E não foi isso que eu fui para você esse tempo todo?” Ele me perguntou com a voz baixa, mas a feição era tão séria que, junto com aquela afirmação, atravessou meu peito como um tiro.

Um consolo super disponível? Era somente isso que eu via em ?
Eu soltei o ar das narinas, como se tivesse soltado uma risada incrédula. A lágrima que escorreu do meu rosto denunciava a mágoa que eu tinha de .
O fim do nosso relacionamento não resumia o que ele era.
E em momento algum eu pensei em daquele jeito. Por acaso o tratei assim? Mesmo com o tempo todo conversando, tentando ser o mais honesta possível?
Sim, dava para errar mesmo diante das tentativas. Haviam pontos falhos que só naquele momento eu percebia. Mas não significava que foi um consolo. Pelo menos eu nunca vi dessa maneira, nem sequer o tratei assim.
Ele sempre foi uma tentativa de ser feliz, que durou o que tinha que durar. Era sobre isso, não era? Ver se dava certo...
Deu até onde daria.
Mas ninguém colocou uma arma na cabeça de e o obrigou a estar comigo… e muito menos a beijar Charlotte porque nossa comunicação havia falhado!
se remexeu, possuindo uma linha fina nos lábios. Eu respirei fundo e enxuguei a lágrima do rosto, negando com a cabeça e me achando ridícula em estar ali.

“Eu nunca te coloquei nesse lugar. Mas não vou mais perder meu tempo tentando te convencer do contrário, ou tendo que lidar com suas insinuações desmedidas, dando satisfação da minha vida... No fim das contas, você não entendeu porra nenhuma do nosso relacionamento. E eu perdi todas as fichas tentando fazer isso ser o menos doloroso possível para a gente. Mas já não dá mais.”
“O que quer dizer com isso?” perguntou com a voz falha.
“Não quero mais ter contato com você. Não dá para manter amizade com você, .”

Ele fechou os olhos com força, negando com a cabeça.

“É sério isso? A gente termina e você quer… Caralho, ! Eu estou sofrendo! É incontrolável, cara! Não é como se desse para simplesmente sermos melhores amigos, eu sei disso! Mas simplesmente cortar os laços? Isso é exagero! Você tem que entender!” E engoliu a seco, olhando para pontos perdidos no chão. “Eu não faço isso de propósito…”
, você tem agido como se me odiasse!” Eu falei num desabafo descontrolado, e ele me seguiu nessa.
“Eu não te odeio! Eu te amo, porra!”
“QUE!?” Eu falei exasperada, negando com a cabeça enquanto o olhava chocada.

Ele não poderia estar falando sério.
Aquilo não era amor nem de longe!
Suspirei passando as mãos no rosto. Que merda estava acontecendo?
me amava!?


Capítulo 26 - If I could, then I would (sexto dia).

Só podia ser mentira...
Aquilo não era amor nem de perto!
Formulei as palavras na minha cabeça, e após massagear minhas têmporas, disse com muita cautela.

“Você reaparece na minha vida, sugere um relacionamento mesmo sabendo que eu gosto de outra pessoa, passamos alguns meses tentando ser o mais transparentes possíveis, até que do nada você derrama uma chuva de expectativas sobre namoro e começa a reagir impulsivamente sobre tudo que tem a ver comigo e meu melhor amigo. Daí, chegando ao limite do absurdo, me acusa de traição e tudo que é direito, e como ato primoroso, você finaliza com tudo e dá uns amassos com uma amiga nossa em comum. Terminamos o que tínhamos, e você segue me acusando, jogando insinuações e outras falas que já nem te dizem mais respeito. Então me diz: o que eu realmente tenho que entender, ? A única coisa que consigo pensar é: você não me ama.”
“Você não pode afirmar um sentimento que não é seu! Como ousa?” Ele retrucou com a feição dolorida e eu sorri enquanto deixava as lágrimas caírem.
“Mas sei o que sinto por , . E eu não vivo atrapalhando a vida dele por não me escolher, por não estar comigo. Eu não quero para mim, eu quero feliz. Essa é a diferença. Você não me quer feliz… você só me quer para você. E isso pode ser tudo, menos amor.”

O silêncio foi sepulcral. abriu e fechou a boca várias vezes, sem conseguir falar nada, exatamente. Era doloroso vê-lo tentando compor algum argumento, mas estava nítido em sua face: o que eu tinha dito fazia sentido para ele.

“Ainda que seja doloroso amar uma pessoa, você não quer possuí-la. Você a quer livre e feliz… Mesmo que não seja com você. Consegue distinguir, ? Não me parece amor quando você age desse jeito...”

Era tão estranho falar ameno e ser ouvida. Era tão estranho falar com tanta prioridade e perceber que sim, eu sabia do que estava falando mesmo! E em como reconhecia isso, à contragosto ou não; suas expressões mostravam na batalha interna que ele sofria.
Talvez ele acreditasse mesmo que me amava. Isso não significava que ele não gostava ostensivamente de mim, mas amar… Era outra coisa.
Coisa esta que não parecia sentir por mim.

“Eu… Não sei o que te dizer…” Ele falou com a voz bem grave, o cenho franzido, o corpo retraído. Parecia que ele tinha levado um soco na boca do estômago.

E talvez tivesse mesmo.

“Acho que a gente não precisa dizer mais nada, . Tivemos um relacionamento, foi bom enquanto durou, mas não temos mais nada entre nós. Você não me deve satisfações da sua vida, e nem eu lhe devo da minha.”

Foi um aceno muito breve e contido que deu. Mas foi real. Então, prossegui com a fala.

“Se quiser dar bom dia, boa tarde, boa noite, tudo bem. Se quiser fingir que eu não existo, tudo bem também! Mas eu não vou mais aturar isso, entendeu? Não sou obrigada! Eu mereço e exijo respeito. É o mínimo, .”
“O mínimo.” Ele repetiu como se quisesse forçar aquilo a entrar na cabeça.
“Sim, o mínimo.”
“Eu diria que foi só o que restou.” Ele comentou com a voz embargada, entreolhando as árvores, sem focar em mim.
“Não por falta de tentativas. Mas, temos que lidar com as consequências de nossos atos, não acha?” Falei, irritada. Ele concordou contrariado, como se não quisesse entrar na discussão.

Também, que discussão? Aquilo era fato.

“Isso tudo parece um pesadelo.” Ele comentou com um sorriso entristecido e eu suspirei. “Parece que eu tô vendo de fora, sabe? Você caminhando, distante, e eu não conseguindo te alcançar. Tudo parece meio desfocado, meio errado… Fora do lugar.”
“Aparentemente, não estava tudo no lugar desde o início. E a gente se perdeu, tentando se encontrar...” Acho que nunca tinha dito algo tão pertinente. me olhou com aqueles olhos molhados, como se visse algo além de mim. “Acho que faz parte, e com o tempo, a gente supera isso.”

balbuciou sem sequer conseguir dizer algo, como se estivesse pensando muito. Até que simplesmente se calou, mordeu os lábios e por fim, negou com a cabeça, olhando para o chão.

“O problema é que eu não quero superar você.”

Fechei meus olhos com força, segurando o rosto, cansada.
Aquilo doía de ouvir, muito. Porque eu sabia como ele se sentia, mas não justificava em nada suas atitudes.

—”
“Eu sei. Eu sei. Eu já entendi… É que eu realmente gosto muito de você, mas… Não era pra ser, eu acho.” E me olhou acuado, dando de ombros. “Eu não fiz por mal. Mas acho que quanto mais eu tento lidar, mais eu erro, não é?” Ele falou com a voz fraca, e eu suspirei, mordendo o canto da boca.
“Sinto muito, mas você precisa lidar com seus sentimentos e com a situação de um jeito mais maduro, saudável... Caso queira que ainda exista banda, amizades e afins. Do contrário, não vai rolar. Eu não estou dizendo que é fácil, mas não vai prestar caso você queira bancar o intragável de novo. Porque foi exatamente isso que você foi.”

Acho que ficou surpreso com a sobriedade em minhas palavras, mas eu não poderia me furtar de dizer aquilo. Naquele momento, por mais sensata que eu estivesse sendo, ainda existia uma vontade imensa de dar uma voadora em seu peito, pra que nunca mais fizesse uma merda daquelas de novo.

“Acho que tem razão. Me parece que o melhor, por enquanto, é nos afastarmos.” Ele respondeu com a mesma seriedade, e eu engoli a seco a última parte.
“Pelo menos por enquanto, sim.” Comentei, sentindo minha voz sair com mais calma pela primeira vez diante daquele diálogo.

A atmosfera ficou sólida, de tão pesada. mordeu os lábios antes de falar novamente.

“Me desculpe pelo que houve. Não vai acontecer de novo.” E me olhou com dificuldade, coisa que nunca havia rolado entre nós. Concordei, sem dizer mais nada.

Ele acenou com a cabeça, e foi em direção à sua cabana, passando por mim sem proferir uma palavra a mais. Eu suspirei e massageei meu pescoço, liberando a tensão ali presa. Fiz o movimento de olhos fechados, e não sei exatamente quanto tempo passei assim, mas quando abri os olhos e avistei a entrada do refeitório, fumava um cigarro num canto reservado enquanto me encarava.
Respirei pesadamente, andando sem vontade até lá.

“Não vai comer?” Perguntei qualquer coisa quando cheguei perto o suficiente, cruzando meus braços e mirando a fumaça que saía das narinas de .
“Eu já comi.” Ele respondeu na maior cara de pau, apresentando o cigarro entre os dedos. Eu rolei os olhos e o observei seriamente.
“Você estava me espionando?”
“Só vim fumar, ué.” Tragou o cigarro, me olhando sem um pingo de vergonha, soltando a fumaça na minha cara. Dei um tapa em seu peito e ele logo reclamou.
“Para que essa agressividade, mulher?” Ele indagou com o cenho franzido.
“Para você parar de ser fofoqueiro! Cuide dos seus próprios problemas, !” Briguei colocando as mãos na cintura, e ele tragou novamente, batendo as cinzas do cigarro e sorrindo de lado.
“Você é problema meu, .” E deu de ombros enquanto cruzava os braços. Confesso que ouvir aquilo fez meu estômago dar uns pulinhos, mas não amenizei a cara de enfezada. Umedeci os lábios, respirando fundo.
“Eu estou falando sério!” Insisti e ele me olhou nos olhos, aproximando seu rosto do meu.
“E eu estou brincando, por acaso? Ou você acha que qualquer babaca pode vir te namorar, trair, falar meia dúzia de merda na tua cara e sair ileso?”

Ficamos nos olhando por um tempo, tão perto que eu poderia sentir o cheiro do cigarro como se eu mesma estivesse fumando. A luz do refeitório refletia pela janela alta, acima de nossas cabeças, iluminando nossos rostos apenas.
Eu sinceramente achava injusto que, mesmo chateado, tivesse feições tão lindas que desnorteavam meus pensamentos numa facilidade incrível.
Filho da puta.

“Eu cuido disso, ok?” Falei mais leve, e ele lentamente concordou, me respondendo mais ameno também.
“Eu sei que cuida, não estou dizendo o contrário. Eu sei que você é uma mulher forte, dona de si, sabe se defender. Eu só... estou a postos.” Sua mão alcançou meu rosto, fazendo um carinho suave na minha bochecha, até que ele percebeu o rastro de uma lágrima seca e seus olhos semi cerraram. “Você está bem?”

Continuei olhando sem conseguir responder nada; parte de mim estava concentrada em seu toque, enquanto a outra digeria suas palavras tão... aquecedoras.
E então, a partir daquela pergunta, me lembrei de algo importante; a fala dita para pinicava em minha mente, e eu não me sentia confortável com aquilo.
Eu sei que a gente não tinha nada além de amizade.
Eu sei que era só uma peça.
Eu sei que tínhamos um acordo bobo, no fim das contas.
Mas era só sobre “dar amassos com essa mulher maravilhosa”?
E… Lis?

“Você tá bem?” perguntou de novo, mais preocupado, e eu pisquei, percebendo que havia me dispersado da realidade.
“Lis pensa isso mesmo, ?”
“Que?” Ele perguntou com o cenho franzido, visivelmente confuso.
“Lis. Ela sabe dessa peça, ela sabe do nosso acordo? Ela sabe?” Disparei, um pouco tensa. me olhou desconfiado e deu mais um trago no cigarro, soltando a fumaça lentamente.
“Sim.”
“Sim o que, ?” Perguntei incisivamente.
“Sim, ela sabe! Por que essa pergunta, do nada?” Ele questionou, jogando o cigarro fora.
“E ela está ok com isso?”
“Está! É só uma peça, não é nada demais! Já não discutimos esse assunto?” estava irritado, com os braços cruzados. Eu neguei e apontei um dedo em sua direção.
“Não, não falamos sobre como Elise se sente quando o namorado dela dá uns amassos na melhor amiga!”

me olhou com a boca entreaberta, passando a língua pelos dentes, como se estivesse refletindo. Por fim, deu uma risada sem humor e deu de ombros, negando com a cabeça.

“Você está se deixando levar pelas palavras de merda do , .”
“Ah, qual é, ! Se até a professora teve uma impressão errada de nós, por que Lis não teria?” prendeu os lábios e olhou para o chão, reflexivo. Por fim, voltou a falar com a voz baixa.
“Você quer desistir da peça?”
“Não!” Respondi rápido demais, sentindo o coração na boca. Merda, eu era tão transparente!

Ficamos nos olhando por um tempo, ele nitidamente irritado com meus questionamentos e eu igualmente chateada por suas respostas evasivas.

.” Chamei seu nome, fazendo com que ele ajeitasse a postura. Segurei em seus ombros e me aproximei, tentando ficar firme. “Eu só quero evitar problemas. Eu sei que é uma peça. Somos só amigos que se beijam para passar de ano. Mas não vou ficar tranquila se todos os envolvidos também não estiverem.”

analisou meu rosto por um longo tempo, e por fim, acenou positivamente.

“Te garanto que está tudo bem.”
“Eu não quero outra pessoa me falando merdas como , entende? Além do mais, Lis é uma amiga. Não tão próxima, mas é. E eu respeito o que vocês tem. É só isso.” Nunca doeu tanto falar isso, mas era verdade.
“Eu entendi, e agradeço. Não precisa se preocupar mais do que você já faz. Relaxa, está bem?” Sua mão fez um carinho no meu rosto, e só ali eu vi o quanto estava tensa. Segui seu conselho e relaxei os músculos.
“Mesmo?” Perguntei, insistindo uma última vez. Ele concordou com um meio sorriso.
“Mesmo mesmo.”
“Ok.” Respondi, ainda sentindo o interior vibrar.

Desloquei meu olhar para o chão, me sentindo contemplativa. Sabia que os olhos de estavam em mim, e de alguma forma, aquilo me fazia sentir mais timidez do que de costume.
Inesperadamente, me puxou para um abraço, e eu praticamente caí de cara em seu peito, sendo envolvida em seus braços, seu calor e seu perfume misturado com tabaco.

“Você é uma pessoa maravilhosa, sabia?” Ele sussurrou no meu ouvido e eu arregalei os olhos, sentindo o coração aquecer.
“Eu acho que é a segunda vez que você diz isso hoje.” O peito dele ressoou com a risada e ele logo respondeu.
“É verdade. E poderia dizer uma terceira, mas você se acharia demais.”
“Já bati minha cota hoje?” Perguntei contra seu peito e ele riu de novo.
“Sim. Volte amanhã para mais.” Foi a minha vez de rir.
“Certamente voltarei.”

se afastou para me olhar, e eu aproveitei para me desfazer do abraço — era capaz de ficar lá para sempre.

“Está com fome?” Me perguntou, ajeitando um fio de cabelo solto meu.
“Um pouco.”
“Mas você não deveria...” Ele comentou ao andar de volta para o refeitório.
“Não!?”
“Não, já que você jantou .” Ele disse com um meio sorriso e eu rolei os olhos, enquanto gargalhava da fala idiota de .
“Vamos logo, seu besta.” Comentei empurrando suas costas em direção à fila.

E com o coração apertado.
Eram 7:57 quando bateu na porta da cabana. Abri a porta animada, com um sorriso de orelha a orelha.

“Que rapaz adiantado!” Falei ao fechar a porta atrás de mim.
“Três minutos só. Bom dia.” Ele falou com a voz de sono – e eu amava sua voz assim, era mais grave que o comum, e fazia um par perfeito com a cara ainda amassada.
“Bom dia, dorminhoco! Vamos?” Perguntei ao inclinar minha cabeça levemente para o lado enquanto deixava os braços atrás do corpo. Ele sorriu minimamente e concordou, descendo os degraus na minha frente.

Caminhamos lado a lado sem dizer nenhuma palavra; era comum que de manhã falássemos pouco, ainda estávamos naquele estado de sonolência em que o espírito aos poucos retorna pro corpo – mesmo que naquela ocasião em si eu estivesse mais animada do que pra um show ou festa.
Para ser bem sincera, estava me sentindo num encontro, mas toda vez que minha mente tentava vir com aquele pensamento, eu o cortava, me convencendo de que era só um momento entre amigos.
E era óbvio que eu falhava miseravelmente a cada minuto que nos aproximávamos do lago. Então, decidi preencher a cabeça com outras coisas.

“O que é isso?” Perguntei para a sacola na mão dele, que me olhou de soslaio e olhou para frente, sorrindo.
“Você vai saber.” Apenas disse, me deixando curiosa.

Ao chegarmos no lago, retiramos nossos chinelos e o frio na barriga subiu novamente; eu estava com um biquini azul fosco por debaixo do vestido floral de fundo verde. Era simples, mas se adequava ao meu corpo, e pensei que logo tiraria aquela roupa, perto de . Fiquei tão imersa nos pensamentos enquanto encarava a profundeza da água que só me toquei da realidade quando me chamou a atenção.

“Pronto. Não é muito, mas é o bastante. Espero que goste.” Ele comentou e eu olhei para a canga que cobria a areia e servia de toalha para algumas frutas espalhadas e uns biscoitos tipo cream cracker. Havia uma garrafa que eu julgava ser água, e dois sucos de caixinha. havia improvisado um café da manhã surpresa para nós!
“Ai meu Deus, olha isso!” Falei risonha, erguendo um pedaço de manga à boca. “Como conseguiu essa façanha?”
“Bom, a cozinha já estava aberta, eu contei uma história comovente e o resto você já sabe. Gostou?” Ele perguntou genuinamente curioso e eu sorri abertamente.
“Está brincando? Eu amei! Piquenique como nos velhos tempos!” Ri ao lembrar dos momentos mais infantis entre nós, no qual dividíamos comidas com nossas famílias reunidas.
“Bota velho nisso.” Ele falou rindo, roubando umas uvas do cacho enquanto tirava a blusa ao puxá-la pelas costas.

Confesso que estava sugando o suco de uva pelo canudinho e quase engasguei quando vi o torso nu de tão perto. Mas consegui disfarçar.

“Já vai entrar?” Perguntei e ele deu de ombros.
“Eu não sinto muita fome de manhã, mas posso te esperar, se quiser.”
“Só vou comer a banana e a gente vai.” Respondi e ele acenou, encarando a grandeza do lado diante de nós.
“Senti falta disso.” Ele disse depois de um tempo, sem me olhar. Eu estava mastigando e precisei terminar para perguntá-lo.
“Disso?”
“De nós. Das conversas, das brincadeiras... De estar em silêncio e estar bem.” E se virou para mim, com a feição pesarosa. “Foram longos três meses, .”
“Eu sei.” Respondi depois de um tempo apenas encarando-o, e respirei fundo, mastigando um novo pedaço de banana. “Acho que estamos aos poucos retomando, não é?” Perguntei incerta, e ele riu, concordando.
“Significa que posso cobrar afeto retroativo, né?” Eu ri com certa surpresa.
“Afeto não se cobra, . A sua sorte é que você tem um abraço muito bom e eu dificilmente me cansaria. Que tal?” Respondi com um sorriso sincero e ele arregalou os olhos, chocado.
“Então porque não está me abraçando agora?” Ele retrucou com a cara debochada e eu dei de ombros.
“Ih, mas é só “vinde à nós”? E o vosso reino?” Decidi implicar e arqueei uma sobrancelha pra si.
“O que houve com o papo de não cobrar afeto?” Ele indagou, mais irritante do que nunca.
“Isso não tem nada a ver. São apenas acertos de contas.” Respondi mal e porcamente, balançando a mão direita, mas investi na cara mais óbvia que eu poderia fazer enquanto terminava de comer a banana.

Ele mordeu o lábio inferior e rodou o piercing, rindo enquanto negava com a cabeça. Em um momento, eu observava aquela perfeição de garoto atiçar meus pensamentos mais profundos com aquela ação, e no outro, me respondia.

“Se você não existisse, precisaria ser inventada, na moral.”
“O que?” Eu perguntei, rindo.
“Você! Na boa… Só você para dizer essas coisas, fazer essas coisas... Eu tinha razão, no fim das contas.
“Sobre o que?” Foi a vez de indagar confusa. Percebi que ele respirou fundo, pensando em como me responder. O pomo-de-adão subiu e desceu, e umedeceu os lábios antes de explicar:
“Durante o tempo que a gente não se falou, eu tentava me convencer de que a vida seguia normalmente. Eu levantava pensando nesse mantra, e dormia desistindo dele.” E me olhou sério. “As coisas não voltaram ao normal, não foram mais fáceis sem você.”

O canudo soltou da minha boca com facilidade, enquanto eu tentava me lembrar de como respirar. coçou a nuca, e voltou a falar, gesticulando.

“E então, olhando para o que temos hoje, vendo você sendo tão você e eu sendo tão eu… E a gente sendo nós…” Ele riu nervoso ao encarar o chão, e deu de ombros, como se fosse algo óbvio. “Não há sem , definitivamente.”

Ele voltou a me encarar com um sorriso incerto e quase imperceptível. Naquele exato momento a luz solar refletiu da água diretamente para seu rosto, tornando evidente aquilo que já era lindo aos meus olhos.
Eu sorri de forma apaixonada.

“Sério?”
“Muito sério.” Ele respondeu, afirmando com a cabeça. Eu ri nervosa com sua declaração, e não me segurei: fui até ele e pulei em seu pescoço, o abraçando forte.
“Também não há sem , né?” E rimos com aquilo, como se fosse um trocadilho interno. Sem sair do abraço, continuei a falar. “Ainda bem que você existe.”

Seus braços automaticamente se prenderam à minha cintura e meu tronco encostou no seu com força. Aquilo me causou arrepios, e o pior é que nem dava pra disfarçar, a não ser que eu utilizasse a desculpa do frio matinal.
Com o silêncio e o abraço demorado, eu percebi que meus esforços para não beijar naquele momento estavam atuando além da capacidade normal, então desfiz aos poucos o enlace, e meu melhor amigo prontamente repetiu meus atos, passando a mão em seu próprio ombro enquanto olhava para longe.
Decidi disfarçar minha timidez sentando ao seu lado e ajeitando o cabelo, roubando mais um pedaço de manga.
A ausência de fala estava ficando meio constrangedora, mas não consegui pensar em nada para falar (e muito para fazer, se é que me entende).
Acabei tomando uma atitude mais plausível para a situação e retirei o vestido num só impulso, dobrando-o lentamente em meu colo. Me concentrava mais nisso do que em reparar se analisava meu corpo ou não.
O nervosismo acabava de crescer brutalmente.

“Como estamos hoje?” me perguntou olhando para o tecido em meu colo, e eu dei de ombros.
“Hoje estou melhor. Ontem estava com algumas coisas engasgadas...”
“Como...?” Ele fez sinal para que eu continuasse, e assim o fiz.
“Ontem foi um dia e tanto! Teve DR com , Charlotte...”

Ele fez cara de quem entendeu e acenou afirmativamente, olhando pra frente.

“Como foi com Charlotte?” Ele estava com os braços apoiados nos joelhos e abaixou a cabeça até apoiar o queixo ali, deixando apenas os olhos à vista. Eu suspirei ao respondê-lo.
e ela estavam meio que discutindo na cabana quando cheguei ontem do lago, de manhã. Foi meio que uma lavação de roupa suja, mas necessária. Charlotte consegue ser bem indigesta quando quer… Buscou se justificar em alguns momentos, e até mesmo tentou me aconselhar de que eu e ele deveríamos ficar juntos.”
“Sério?” A sobrancelha de se arqueoou e eu ri incrédula.
“Acredite se quiser. Mas coloquei tudo no seu devido lugar, dizendo o óbvio: a relação já estava desgastada antes, depois daquilo então… Sem chances de existir. Charlotte errou, mas ele errou mais. E isso tudo me deixou exausta, sabe? Tive duas conversas pesadas com , sobre tudo... Mas depois da cena de ontem, acho que se resolveu de fato. ”

cerrou os olhos e me olhou com uma careta de dor.

“É, uma porrada. Sinto muito.” Comentou com a voz abafada devido ao braço.
“Eu sei. Obrigada.” Respondi, desenhando aleatoriamente na areia.
“Hm...” Ele murmurou, olhando para meus desenhos. “E como você se sente com isso tudo?”
“Estranhamente... leve.” Falei sincera, suspirando.
“É?”
“Uhum. Por mais que esteja cansada, no fim consegui pontuar melhor tudo que eu acreditava estar pendente.” Resumi numa fala rápida, afundando a mão na areia molhada.

me olhou analítico, e voltou a mirar o lago.

“Não se cobre muito. Não tem um jeito certo de reagir a isso. foi um babaca? Foi. Você poderia ter dado uma voadora nele? Sim. Eu teria te ajudado? Com certeza. Mas você é tão incrível que foi muito além do que ele merecia. E quanto à Charlotte, parece que tudo foi explicado, então não perde sua paz pensando nisso ou naquilo... Respeite seu tempo e vá lidando da melhor forma pra você. Lembre-se, só você importa agora.” E me olhou sério, com o olhar ficando mais claro que de costume devido a luz que o lago refletia em seu rosto. Eu mordi meu lábio inferior, sorrindo levemente.
“Obrigada, . Você também é incrível.” Eu disse, sem deixar de encará-lo e gravar os traços daquela feição que me devolvia atenção, cuidado, afeto.
“Sou mesmo?” Ele perguntou com um sorriso brincalhão e eu dei de ombros, encarando meus pés.
“Às vezes é um idiota, mas no geral é um idiota legal.” E voltei a encará-lo risonha enquanto ele fingia indignação, abrindo a boca num “o” chocado.
“Ah, mas você tá muito fodida agora, garota.” E veio pra cima de mim enquanto eu começava a rir, tentando escapar de seu enlace, sem sucesso.
“Não, pera! O que você vai fazer!? , porra!” Ele veio rindo, me levantando no colo com facilidade e jogando meu vestido em cima da canga, correndo em direção ao lago.
“Você vai se arrepender de me chamar de idiota!” E foi entrando na água com coragem, dando passos moderados para não sentirmos tanta diferença. Mas mesmo assim, a primeira vez era sempre um choque! Eu apenas me balançava em seu colo, balbuciando “nãos” enquanto ele ria de mim.

O contato da água fria com meu corpo aquecido me fez agarrar o pescoço de com vontade, e quando nossos corpos já estavam praticamente molhados, ele anunciou sem esperar qualquer resposta de mim.

“Prende a respiração!” E inflou as bochechas, ficando com a cara mais engraçada que vi nos últimos tempos, antes de mergulhamos por inteiro no lago.

Debaixo d’água, fiquei sorrindo enquanto ele me olhava ainda com aquela careta, e ficamos submersos nos encarando, até que sua face voltou ao normal. Eu arqueei uma sobrancelha enquanto apontava pro pulso, e ele apenas rolou os olhos, me fazendo sorrir de novo.
Estávamos apostando quanto tempo conseguíamos ficar sem respirar, brincadeira antiga que fazíamos quando crianças. Eu sempre ganhava, com vez ou outra ele roubando pra ganhar. E pela cara de ansiedade dele, estava prestes a emergir ou simplesmente jogar sujo.
É claro que ele optou pela segunda opção.
Segundos depois, veio em minha direção com os dedos agitados querendo repousar em minha barriga, tentando me fazer cócegas. Eu neguei com a cabeça, e tentei escapar dele, mas o filho da mãe pegou meu pé e me puxou pra si, conseguindo me fazer rir com suas mãos e eu dando tapinhas em seu ombro.
Momentos depois voltamos à superfície, pegando o fôlego.

“Você é um escroto!” Bradei, dando um novo tapa em seu peito, que apenas ria de mim.
“Tá reclamando do que? Nós empatamos! Eu ainda fui bonzinho, poderia ter feito você perder.” Respondeu convencido e eu ri descrente.
“Porque você é um escroto trapaceiro de uma figa!” Fiz menção de dar um novo tapa em seu ombro, e ele segurou meu pulso com uma mão.

E foi aí que notei que estávamos próximos. Bem próximos.
A mão que jazia em minha cintura já não fazia cócegas; apenas me segurava com precisão.
E o sorriso que pairava em meus lábios foi aos poucos murchando, ao perceber o quanto aquela brincadeira estava indo longe. percebeu que estávamos numa posição um pouco delicada, mas não se afastou. Sua feição foi de animada para contemplativa. Analisou meu rosto, passando o olhar em todo canto, e me senti exposta diante daquela observação toda.
Parecia o clima perfeito para nos beijarmos.
E aquela constatação fez meu interior revirar.
Porque, por um mísero segundo, parecia que queria me beijar também.
Acho que meu olhar de assustada o deixou alarmado, porque no momento seguinte, ele pigarreou completamente sem graça e se afastou de mim, sem dizer nada. Apenas me encarava, e eu a ele.
De movimento, só a água entre nós.

“Eu... hm. Acho que vou dar uns mergulhos! Tudo bem?” E forcei um sorriso tímido, que foi devolvido na mesma proporção.
“Claro! Eu te acompanho.” Ele respondeu, e eu não o esperei; apenas sorri jogando água em si e mergulhei na sua frente, provocando-o numa nova brincadeira.

Enquanto mergulhava, reparava nos raios solares atravessando a água e no corpo submerso de ao meu lado, sorrindo pra mim enquanto eu fazia o mesmo.
Eu passei todo o tempo dentro d’água brincando, jogando conversa fora, mas não parava de pensar naquela tensão momentos atrás. E em como me sentia ansiosa pelo beijo da peça, mesmo que por várias vezes tentasse me concentrar em outras coisas.
Estava difícil aguardar aquele contato, mesmo que não fosse tão real, mesmo que se tratasse apenas de atuação; eu ansiava pelos lábios dele nos meus, nossas línguas se provando enquanto aninhava meu corpo ao seu. Pensar naquilo me fez sentir um calor incomum, mesmo estando debaixo d’água. Fosse peça ou fosse o acordo beijoqueiro, eu só queria prová-lo novamente.
Algum tempo depois, decidimos que já era hora de ir e juntos organizamos as coisas, caminhando lentamente de volta, quando estávamos passando por um banheiro próximo ao lago.

“Podemos dar uma paradinha aqui?”
“Ué, vai tomar banho aqui?” Ele perguntou como se fosse algo doido e eu choraminguei.
“Quero fazer xixi e o outro vestiário tá lonjão, !” Ele gargalhou e balançou a cabeça negativamente.
“Você é muito preguiçosa, cara!” Respondeu, entrando no local a passos largos.
“Ah, me erra, garoto!” Retruquei, dando um tapinha em seu braço, e para minha completa surpresa, revidou ao segurar minha mão.
“É carinho, ! Assim óh… viu?” Ele abriu os dedos da minha mão e passou a palma em seu rosto, enquanto sorria divertido. “Melhor, não acha?”

E lá estávamos próximos novamente.

“Talvez.” Respondi, meio aérea, aproveitando para acariciar sua pele. fechou momentaneamente os olhos e sorriu sem mostrar os dentes.
“Assim que deve ser. Entendeu?” E abriu os olhos, me encarando. Seu sorriso aos poucos se foi, e quando percebi, ele encarava minha boca.
“A gente não treinou ontem.” A frase saiu da minha boca como se escorregasse num toboguã.

Só me toquei do que tinha dito quando arregalei os olhos, encarando os de , que tinha um semblante divertido e até mesmo sensual.
Sem nem precisar explicar do que eu estava falando, ele apenas segurou meu queixo com o polegar e respondeu maroto:

“Não se preocupe. A gente compensa hoje.”

O barulho da sacola caindo no chão foi instantâneo, quase com a mesma rapidez que os seus lábios vieram até os meus. Sua língua brincou com a minha boca ao pedir passagem, e eu cedi totalmente entregue, principalmente com os corpos e roupas molhadas se encontrando com vontade, como era o caso.
O beijo aconteceu, estraçalhando todas as minhas barreiras, e eu simplesmente não poderia estar mais contente com aquilo.
Agarrei os ombros de ao mesmo tempo que suas mãos seguraram em minha cintura, me trazendo para mais perto de si. Eu não sei se o nível da empolgação estava alto demais, mas as coisas definitivamente mudaram de estágio quando senti minhas costas encontrarem a superfície gelada do azulejo. Aquela temperatura, em contrapartida com o calor trazido pelo beijo, me fez soltar um sôfrego gemido, enquanto meus ombros se encolhiam em reflexo.
parou de me beijar na hora e me encarou com os olhos preocupados.

“Te machuquei?”

Eu pisquei alguns segundos, demorando a entender sua pergunta. Olhei em seus olhos, depois encarei sua boca.
O dia seguinte era o dia da peça, então nada mais justo do que otimizar o tempo, certo?
…Certo?
Como se estivesse num transe, nada me restou além de balançar a cabeça algumas vezes e voltar a beijá-lo. Pelo modo que ele me acompanhou, parecia que não tinha problema algum.
Seu corpo tornou-se próximo novamente, a ponto de seu peitoral encontrar o meu, e se algum dia passei frio, não lembrava ou sequer fazia ideia de como era; me mantinha aquecida com seus beijos, seu corpo, seus toques…
As respirações entre o beijo que não se partia, os movimentos exploradores de nossas línguas que não cessavam, os narizes se tocando com os rostos que não se desgrudavam, o calor que não parava de aumentar…
Ficamos um bom tempo imersos naquele momento só nosso, totalmente livre de palavras, receios, impressões… Só era eu e , o beijo, os corpos… Tudo que eu tinha ansiado por tanto tempo.
Bem, não tudo né? Mas uma boa parte, daquelas que o pouco já parece o todo.
Como todo carnaval tem seu fim, ouvimos uma batida na porta do banheiro que nos fez nos afastar alarmados.

“Vai demorar muito aí?” A voz de um garoto soou por trás da porta e eu cobri a boca para não soltar uma risada nervosa.
“O que que a gente faz?” Eu sussurrei, olhando em volta do lugar. Era um banheiro com mais de um assento/divisória, mas eu havia trancado a porta principal, com medo de acontecer justamente o que poderia acontecer naquele momento: alguém flagrar eu e num mesmo lugar, pensando besteira de nós.

Quer dizer…
Besteiras plausíveis e reais, né?
, a hipócrita.

“Tive uma ideia!” respondeu num sussurro, me puxando para trás da porta. “Fica aqui e se prepara para o meu sinal.”
“Que sinal?” Perguntei ansiosa.

Ele tocou meu queixo e subiu o dedão até encostar no meu lábio inferior, enquanto sorria como um malandro.

“Você vai saber.”

E assim, ele abriu a porta e fez uma cara desesperada.

“Mano, na boa, não entra agora se quiser viver!” Já saiu do banheiro dando tapas na barriga, e pela fresta da porta, eu vi a feição do rapaz que aguardava — era de total horror.
“Porra, sério? To apertadão!”
“Vai por mim, eu sou intolerante à lactose e exagerei ontem. Eu acho que inutilizei o banheiro…” fez uma cara de dor e segurou a barriga, soltando uns gemidos de dor.

O menino olhou para e para o banheiro, visivelmente dividido.

“Você precisa de ajuda? Quer que eu chame alguém?”
“Não!” gritou aflito, e depois voltou a fazer a mesma feição, segurando a barriga. “Só me ajuda a chegar até ela…”
“Ela quem?”
“AURÉLIA!” Ele berrou, e eu entendi que se tratava do tal sinal. “Preciso chegar até Aurélia!”
“Aurélia?” Ouvi o outro perguntar.
“Quer dizer, ir até a cabana.” respondeu, fazendo novamente caras e bocas, dignas do ator mais inusitado que aquele acampamento já tinha tido.

Eu estava segurando as risadas num nível hard, mas felizmente o jovem se compadeceu da situação do meu melhor amigo e o ajudou a sair dali.
Felizmente, momentos depois eu estava igualmente livre, dando gargalhadas como não dava há tempos!
Caminhando em direção à minha cabana, senti o celular vibrar, e sorri automaticamente ao ler a mensagem.

: Você não vale nada, cara. Estou ouvindo suas risadas daqui!
Eu: A ideia foi toda sua! Não me culpe por achar graça!
: Você me paga, sua sacana.
Eu: Me erra, filhote de cruz credo :p
: Você me ama que eu sei…
Eu: Ninguém está negando ;)


Nossa conversa se encerrou com uma figurinha do (um cachorrinho sorridente, bem típico dele) e eu ri com aquilo. Voltei para a cabana sem conseguir sentir meus pés direito, ainda achando tudo muito louco e inédito.
Horas mais tarde, depois do ensaio, a Sra. Strauss comentava feliz sobre o quão produtivos estávamos, nos agradecendo novamente pelo empenho com seu tão amado projeto.
Nunca amei tanto uma professora! Nunca amei tanto literatura!
Acho que no fim das contas, eu é quem estava agradecida.


Capítulo 27 - To be touched, to be loved, to feel anything at all

“Terra pra ... Terra pra , chamando!” Ouvi a voz de soar, mas só conseguia encarar o teto da cabana, sentindo a brisa da janela naquele fim de tarde nublado.

Suspirei alto, provavelmente fazendo com que ela desconfiasse do meu estado, pois logo em seguida se deitou ao meu lado, mirando o mesmo teto que eu.

“O que há de tão interessante ali que te faz me ignorar?” Ela perguntou com a voz mais amena e eu sorri, ainda absorta em pensamentos.
“Amanhã é a peça. E eu me sinto particularmente nervosa por tantos motivos que nem saberia dizer ao certo...”
“Comece pelos que te atravessam mais, ué.” Falou de forma simples e eu ri.
“Às vezes se trata disso, né? Ser simples.” Ela concordou com um aceno, e eu respirei fundo, antes de responder. “Um lado meu está particularmente triste por não ter mais os beijos de , e isso é muito verdade. Por outro lado, me sinto aliviada porque esse acordo, no fim das contas, não me soa um dos melhores — principalmente pelo fato dele namorar. Mesmo que ele já tenha me explicado tanto sobre isso.”
“Certo...” respondeu, acariciando o próprio couro cabeludo, ainda sem me olhar. “Mas o que está realmente te incomodando?”

Aquela desgraçada me conhecia tão bem!
Mordi o canto da boca ao encher os pulmões de ar, e ainda assim, parecia que não estava oxigenando direito. Entretanto, precisava continuar falando para praticar a coragem da decisão que tomei.

“Estou pensando que vai ser insuportável vê-lo com Elise e manter a nossa amizade, principalmente depois de tê-lo tão... como sempre quis.”
“Ah. É... é uma verdade.”
“E eu sei que é um efeito colateral das decisões que tomei, eu sei disso. Sei que preferi viver isso a nunca saber como era estar com ele como estivemos. Mas agora penso no que há por vir, e a peça acaba sendo uma despedida triste daquilo que eu poderia ter, mas nunca terei, já que ele está num relacionamento com outra pessoa, e é meu melhor amigo... E não retribui meus sentimentos.”
“Discordo.” falou simplesmente, e eu bufei, rolando os olhos.
“Novamente essa teoria, ?”
“Hey, é a minha opinião!” Ela ergueu os braços, sorrindo serelepe. “Você nem ouviu do que eu discordo, mas já sabe o que é, não sabe?”

Fiz uma careta, e cocei a testa, refletindo de novo sobre o assunto.

“Por que ele nutriria sentimentos por mim e não falaria, ?”
“Pelo mesmo motivo que você não fala...” Ela respondeu com uma cara óbvia e eu semicerrei os olhos.
“Ah, nem vem! Eu não estou namorando! Ele está! Isso é um nítido impeditivo, oras!”
“Você realmente falou ‘oras’? Caramba, a situação é mais grave do que pensei.”
!” Ela riu ao dar de ombros, e umedeceu os lábios antes de continuar falando.
“Cada um é cada um, . Você só não pode pensar que tudo é tão simples quanto 2+2=4. Não é por aí.”
“Como assim?” Indaguei, confusa.
“Bom, ao seu ver, é praticamente impossível que goste de você, só porque ele namora Lis. Isso, na sua cabeça, é o bastante para que você tire essa conclusão. Mas é verdade que eles se assumiram depois que você e ficaram juntos também, não é?”

Pisquei mais vezes do que o normal, e passei a analisar a situação de forma cronológica. Me restou acenar, enquanto pensava nos acontecimentos.

“Continue.” Pedi com a voz baixa.
“Não sei o que mais continuar, amiga!” Ela riu, enquanto gesticulava. “Mas o que quero dizer é: existem possibilidades além da que você julga como verdade. Eles se assumiram namorados depois de um show, mas quem foi que propôs o namoro? Como surgiu essa ideia? Será que estava a fim mesmo? Será que foi ele quem pediu, ou foi Lis? Será que ele estava com a cabeça agitada quando decidiu levar adiante este namoro? Será que ele pensava que gostava de Lis, mas a reaproximação de vocês começa a mostrar que talvez até goste, mas não tanto quanto gosta de você?”
“Meu Deus, eu vou pifar!” Bati a mão na testa e deu uma risadinha.
“Calma! Não é para você responder, entende? É, no fim das contas, o que eu te falei: possibilidades. A gente não tem essas respostas, e se tiver, o que a gente faz com elas? Na real, você só tem que decidir o que vai fazer... Mesmo que seja nada.”

Cocei a nuca, sentindo uma pressão na boca do estômago, e a preocupação alcançou minha feição.

“Não quero perder a amizade dele. Mas não sei se vou conseguir segurar esse segredo comigo, sabe? Então eu me peguei pensando numa coisa inusitada enquanto tomava banho...”
“Sempre os banhos, né? Mas diz aí, qual ideia inusitada você teve?”
“É mais uma possível decisão do que qualquer coisa. A gente já falou sobre, inclusive.”

Pelo canto dos olhos, percebi que se virou para mim, apoiando a cabeça numa mão. Estava atenta e um tanto curiosa, pela expressão estampada no rosto.

“Que é...?”

Fiz um bico com os lábios, ponderando. O pensamento surgiu no campo mental, e a boca agiu, mais rápido do que pude calcular.

“Vou me declarar depois da peça.”
“Tá brincando!?”
“Não...” Falei tão baixo, mas mesmo assim, ela foi capaz de ouvir.
“Depois da peça? Sério?”

As mãos suavam só de conversar com , e isso era um sinal do quão complicado seria.

“Sim! Mas não como quem busca conseguir algo... É que eu já cheguei a conclusão de que é muita coisa para segurar sozinha. Não acha?”
“Porra, sempre achei que você aturou coisa pra caralho!” sentou na cama exasperadamente, me fazendo apoiar em meus cotovelos, olhando-a de maneira sobressaltada.
“Nossa, jura?”
“Porra, ! Sério? Eu dou todo apoio para você falar. Sabe, você é incrível em inúmeros aspectos, só que eu acho que você leva a vida numa seriedade, numa responsabilidade que chega a faltar o ar só de pensar!” Ela dizia enquanto caminhava pelo quarto, e parecia estar realmente pensando sobre o que dizia. “Pensa comigo: é seu melhor amigo. É uma amizade de barriga, desde que as mães de vocês estavam grávidas. Vocês se conhecem antes mesmo de nascerem. Ele praticamente quer matar qualquer coisa ou pessoa que te deixe para baixo ou que te faça algum mal, já percebeu? E além disso, demonstrou uma série de reações absurdas quando você começou a desenrolar seu lance com . E ok, eu sei que você gosta de trabalhar com certezas, mas não tem como tê-las sempre! Então não dá para bater o martelo e dizer se ele gosta ou não de você, como você gosta dele. Ok. Mas é possível continuar a amizade do jeito que está? Você já tentou esquecê-lo ao se envolver com outra pessoa, percebeu que não funcionou, e agora, qual é o próximo passo? Quer dizer, é possível continuar sendo amiga dele, escondendo seus sentimentos, sofrendo calada enquanto ele namora Elise?”
“Não.” Respondi com a voz pesada só de pensar, e parou diante de mim, me segurando pelos ombros.
“E tá tudo bem que não seja! Você não é uma pessoa ruim por causa disso, nem é uma escrota por não conseguir lidar mais com essa situação do jeito que está! É esse o ponto, entende? Já está mais do que na hora de você pensar no que é bom para si, sem colocar outras mil pessoas na sua lista de prioridades antes de você mesma! E ao sugerir isso, não estou dizendo que deve forçá-lo a ficar com você ou algo do tipo. É realmente compartilhar o quanto isso te afeta, e afeta a relação de amizade que é feita de dois! Você e ele, em primeiro lugar. Eu realmente acho que se soubesse o quanto isso tudo tira sua paz, com certeza gostaria que dividisse esse peso enorme que você carrega há tempos nas costas. Ninguém que é seu amigo gosta de te ver assim, . Numa boa.”

Nossos olhares ficaram presos, e eu me senti desconexa dali por alguns momentos, apenas sentindo a fala de bater profundamente em mim.
Primeiro pensamento a habitar a mente: eu tinha uma amiga foda.
Segundo pensamento: que merda deveria ser ela naquele momento.
Explicando: confesso que já tinha ouvido e pensando em algumas coisas que ela disse, mas nunca tinha parado para pensar o quão chato poderia ser para uma amiga como , ter que ouvir todas aquelas mesmas histórias sem uma resolução possível.
Quer dizer, eu conseguia ver o quanto ela era minha amiga, e que por mais enfadonho que às vezes fosse, eu sabia que ela nunca se omitiria em me ajudar. Nossa amizade era de uma preciosidade absurda, e eu valorizava aquilo demais. Mas naquele momento, me peguei pensando em como ela ansiava por uma ação que trouxesse mudanças efetivas para mim. Talvez até para as melhorias que ela me desejava, como uma verdadeira amiga.
E sim, eu pensei nisso tudo em questões de segundos, enquanto digeria suas palavras, sua entonação, seu gesticular, sua preocupação.

“Você já está de saco cheio, não é? Deus, eu sou uma péssima amiga...” Coloquei as mãos no rosto, sentindo um remorso no peito.
“Se você disser isso de novo, eu juro que te dou um tabefe que você nunca vai esquecer.” Retirei as mãos dos olhos e a encarei com a sobrancelha arqueada.
“Mas pra quê tanta agressividade?”
“Você está fazendo isso de novo! Colocando uma bigorna nas costas e se vendo como a pior pessoa do mundo! Para. Com. Essa. Porra!”

Para cada pausa dramática, ela cutucou minha testa, e minha cabeça foi para trás todas as vezes.
Eu poderia jurar que ela queria me bater mesmo.

“Mas você não está de saco cheio? Seja sincera.”
“Um pouco, tá bem? Mas não é de você, e sim dessa situação!” E ergueu as mãos para cima, colocando-as na cintura depois. “Não se preocupe comigo, cara. Para de pensar nos outros, não é sobre mim, entende? E daí que às vezes eu fico de saco cheio com essas histórias? É que eu sou eu e você é você! Eu não teria paciência para resolver essas coisas com a calma e a sensibilidade que você tem! E dei muita sorte em encontrar alguém que me acolhe assim, como é o caso do !”

Seu olhar suavizou e ela deu um sorriso ao pensar no namorado. Eu sorri instantaneamente com esse detalhe, e intimamente senti o coração aquecido. Que bom que as coisas davam certo para ela, naquele sentido.

“Desculpa por ser um pé no saco às vezes, amiga.” Pedi sinceramente, coçando o canto da testa, e ela estalou a língua, voltando a sentar na cama.
“Eu te admiro muito, . Sim, de vez em quanto isso me deixa meio irritada, porque eu realmente quero que as coisas sejam melhores para você. Mas eu, no seu lugar, talvez vivesse de maneira diferente, e pudesse fazer mais merdas do que realmente poderia suportar.” Sua voz amenizou e ela me olhou de soslaio, recebendo minha atenção. “Eu sei que você calcula milimetricamente toda ação que faz, porque agora, no auge dos seus quase dezoito anos, você tem o coração nas mãos ao decidir qualquer coisa dentro desta situação. Se trata do amor da sua vida, ou o atual amor da sua vida, que seja...” Ela sorriu, olhando para a janela enquanto ponderava. “É só sobre isso, sabe? Não viva a vida com receios demais. Não estou falando para você se jogar da ponte, mas a vida é também movimento. E é bem foda pensar que o universo meio que está te empurrando para um precipício, como quem quer saber se você vai abrir as asas por espontânea vontade, ou se vai ser no medo, no susto.”

Engoli a seco com aquela metáfora.
Era toda verdade, cada linha e curva dela.
Apenas me restou cutucar a ponta do nariz, sem saber o que dizer ao certo.

“Serve pular com vontade e medo ao mesmo tempo?” Perguntei com um meio sorriso, e ela alargou o dela, ao ver o meu.
“Claro que pode! Se tiver com medo, vai com medo mesmo! Isso não mata a potência de seus atos, e você não vai se amar menos caso se esborrache lá embaixo! É fato que estarei com você, seja voando ou se levantando do chão duro, amiga. Sozinha, cê num tá mesmo!”

Eu ri com aquela frase, me restando apenas abraçar aquela amiga incrível que eu tinha.

“Eu estaria fodida sem você.”
“Ainda bem que você sabe.”

Nossas risadas tomaram conta do local, e um sentimento de paz alcançou meu coração.
Pelo menos ali, eu tinha certeza das palavras dela.
Sozinha, eu não estava. Mesmo!
Ouvimos um trovão soar do lado de fora, e eu arregalei os olhos com o barulho.

“Parece que foi aqui dentro!”
“Ainda bem que eu não durmo sozinha.” complementou e eu ri de sua cara de assustada.
“Vamos adiantar nosso rango então? Algo me diz que vai cair um pé d’água.”

(…)


“Eu poderia listar muitas coisas maravilhosas desse acampamento… Mas a melhor delas, definitivamente, é esse arroz à piamontese, namoral!”
“Eu acho que vai dar um pé na bunda da e casar com a cozinheira!” brincou enquanto ríamos juntos.
“Pela forma que a voz dele muda ao falar toda noite com , acho difícil isso acontecer.” segredou com um sorriso no rosto e eu olhei para , que tinha uma careta engraçada no rosto.
“Será que a cozinheira me passa a receita?”

Gargalhamos com a face impagável dele, e seguimos jantando, comentando amenidades.

“Tudo certo para amanhã?” perguntou para mim e , e por um instante, achei que ele se referia à minha declaração amorosa. O frio na barriga foi instantâneo, mas talvez meus instintos teatrais estivessem mais presentes do que pensava; consegui sorrir e disfarçar o nervosismo.
“Tudo dentro dos conformes, amigo. E no seu projeto?” Engatei logo outra pergunta.

terminou de mastigar e olhou rapidamente no celular, dando uma suspirada e um sorriso esperançoso.

“Tudo mais que pronto. Na verdade, conseguimos um elemento surpresa de última hora que vai ser simplesmente a cereja do bolo para a nossa aprovação.”
“Elemento surpresa?” perguntou com a sobrancelha arqueada.
“Eu também gostaria de saber! Ainda mais por fazer parte do projeto, né?” retrucou com falsa irritação e deu de ombros, mostrando os dentes ao sorrir.
“Digamos que é um presente para todos. Vocês saberão na hora certa! Muito em breve, aliás.” Comentou, olhando o celular novamente, e foi minha vez de ficar intrigada.
“O que você está aprontando, ?”

Ele deu de ombros e piscou, dando uma exagerada garfada em sua comida e trazendo à boca, não proferindo uma palavra sequer.
Eu, e nos entreolhamos curiosos, mas o momento foi partido por um novo estrondo do lado de fora.

“Céus, isso é trovão?” perguntou receosa.
“Sua surpresa tem guarda-chuva?” Indaguei para .
“De coração, espero que sim.” Ele comentou rindo, e eu abri minha boca para insistir em perguntas, mas ele previu meus atos e negou de antemão. “A-hã! Não tenho mais nada a dizer, .”
“Mas—“

“Nada de “mas”! Coma antes que esfrie.” E apontou para o meu prato. Suspirei vencida e brinquei um pouco com o arroz antes de fato abocanhá-lo.
“Você tem sorte que tem comida envolvida.” falou para e eu franzi o cenho enquanto mastigava.
“Por quê?” retrucou.
“Estaria sem vida se ela estivesse curiosa e com fome. Você tem sorte.” respondeu com um meio sorriso cretino e eu não acreditei naquela provocação gratuita. Ele riu ao ver minha face chocada e ergueu as mãos em defesa. “Apenas realista.”

Eu dei um tapa em seu ombro, fazendo um total de zero diferença para ele — apenas aumentou as risadas. Meus pensamentos vingativos foram mais rápidos do que qualquer intervenção de ; antes que ele percebesse, roubei um pedaço de seu bife, e foi a vez dele me olhar em choque.

“Ei!”
“Apenas sendo o tazmania que você me descreveu, querido.” Respondi depois de mastigar e fiz uma cara de satisfação. “Esse bife estava divino!”

A boca aberta de e os olhos que me miravam era o verdadeiro prato principal da noite, e eu me divertia com aquele pequeno momento.
Num ato inusitado, partiu mais um pedaço da carne, fincou seu garfo e veio em minha direção. Eu ergui as mãos enquanto ria, tentando me afastar dele enquanto seu braço livre envolvia minhas costas e me trazia em sua direção.

“Não!” Pedi em súplica.
“Ah, mas vai sim!” Ele insistiu.
“Não, garoto! Para de graça!” Eu ria enquanto negava com a cabeça, e ele mantinha um sorriso atentado no rosto.
“Pode ir comendo! Vai comer tudo, . Agora!” E veio com o bife na direção de minha boca, que foi tapada pelas minhas mãos enquanto eu ria mais ainda.
“Não, chega! Me deixa!”
“Nunca!”

Ficamos naquela brincadeira boba, até que eu tomei um susto com uma nova trovoada, que ocasionou uma queda de luz. Instintivamente, me agarrei à , e só percebi isso quando a luz voltou de novo.
Eu fiquei sem reação ao perceber a situação na qual me coloquei, mas agiu com uma naturalidade invejável ao perguntar algo aleatório, mas totalmente instigante.

“Trocou de shampoo?” Suas narinas inspiravam meu couro cabeludo enquanto eu estava travada ao seu lado.

me olhava com uma cara zombeteira enquanto ria do susto que eu tomei.
Como não conseguia responder, minha amiga descansou os talheres após terminar o jantar e, colocando as mãos debaixo do queixo, respondeu por mim:

pegou o meu emprestado. O dela acabou ontem.”

Eu olhei de para sem conseguir falar nada; só sentindo um rinoceronte dançar dentro da barriga.
Meu melhor amigo pegou uma mecha do meu cabelo e enrolou nos dedos, fazendo cara de quem entendia.

“Hm. Prefiro o seu.” Respondeu para mim, e eu engoli a seco, dando um sorriso sem graça enquanto deslizava lentamente de volta para o meu lugar.

O dedo de desenrolou do meu cabelo, e eu voltei a encarar meu prato com uma concentração incomum. Sabia que estava me olhando com aquela cara de “eu vi isso!”, mas, Deus, quem não!?
Os pensamentos vinham na velocidade da luz e eu só conseguia encher e esvaziar o garfo, sem exatamente conseguir comer muito além.
Para nossa sorte, o silêncio foi interrompido pelo celular de tocando.

“Finalmente!” Ele exclamou antes de atender. “Fala comigo! Tá na área? Ok, to indo!” E desligou, terminando seu jantar com uma última garfada e colocando o prato no devido lugar.
“Quem era?” perguntou por nós, e fez uma dancinha animada.
“Se eu fosse vocês, terminava o jantar para ver a surpresa com os próprios olhos.”

Num ato conjunto, engolimos a comida restante e breve o suficiente, estávamos caminhando ao lado de , que sorria debilmente.

“Fofoqueiro é foda!”

Gargalhamos com sua fala, mas minha risada deu uma pequena falhada ao ver uma pessoa vindo em nossa direção.

?” Disse em voz baixa, recebendo um olhar de soslaio de e uma suspirada de .
“Sei que não estão nos melhores lençóis, mas mesmo o professor tirando ele do projeto, eu não acho legal não incluí-lo nisso, uma vez que ele também faz parte da banda, entende? Tipo, ele não vai se apresentar, mas…”

Eu umedeci os lábios, concordando num aceno rápido.

“Claro, ! Imagina, eu não… sem problemas.” Preferi não me prolongar, e intimamente prendi a respiração quando nos alcançou.
“E aí, ! Perdeu a hora da janta?” perguntou animado, dando uns tapas no ombro do amigo.
“Sem fome, na real. E aí?” nos cumprimentou com um aceno e eu retribuí sem dizer nada, cruzando meus braços enquanto tentava espantar o nervosismo.

Nossos olhares se encontraram rapidamente, e eu não consegui manter o contato, olhando em volta e tentando prestar em qualquer outra coisa, buscando indício da tal surpresa de .
Mas eu sabia que ainda me olhava de tempos em tempos, e só parou de fazê-lo quando puxou assunto com ele.

“Bom, está aqui para descobrir os planos de ?”

Pelo canto dos olhos, percebi que ele sorriu levemente.

“É, bem…”
“Apesar do veto do professor, pra mim você ainda faz parte do projeto! Não poderia te deixar fora dessa, parceiro!”

riu sem graça, concordando com um aceno.

“Valeu, cara. Poucas vezes te vi tão empolgado!”
“Eu só quero passar de ano, minha gente!” respondeu com certa dramatização, abraçando pelos ombros e guiando o rapaz pelo caminho.

seguiu logo atrás deles, e eu suspirei, soltando meus braços, caminhando devagar com ao meu lado.

“Não precisa.”
“O quê?” Perguntei sem entender.
“Não precisa ir se não quiser.”

Olhei pra , e o mesmo apenas encarava o céu sem qualquer alteração na expressão facial.

“Eu sei.”
“Posso te deixar na sua cabana e depois encontro com eles… Se quiser.”

Mordi o lábio inferior e encarei os sapatos, pensativa. A situação com era algo que, dali em diante, seria muito comum ter que lidar.

“Obrigada, mas não precisa. Aceito o cavalheirismo quando for dormir.” Sorri ao encará-lo e ele deu de ombros, sorrindo também.
“Quem sabe se até lá estarei disposto?”

Eu ri e bati meu ombro no seu, recebendo seu abraço de lado.

“Sem escassez de afeto, . Isso não combina com você.”
“Não combina com nós dois.” Ele corrigiu, sendo sua vez de encarar os pés.
“Então significa?”
“Eu canto “durma filhinho” ou conto carneirinhos para você dormir?”

Gargalhei com sua sugestão e me senti mais leve, sem aquela pressão de momentos atrás dominar meu corpo.
Independentemente de qualquer coisa, era fato que a companhia de me fazia um bem danado.
Apenas sorri e me apressei para alcançar , que acenava para nós para entrar numa das salas de projeto.

“O que ele está aprontando?” perguntou quando todos estávamos dentro do local escuro.
“Vamos, ! O que é isto?” Perguntei depois de um tempo, ouvindo apenas os passos do meu amigo se movendo na escuridão.
“Alguém com medo do escuro?” perguntou e eu rolei os olhos, sendo surpreendida por um novo trovão.

soltou um berro fino e se moveu ao meu lado, se agarrando a algo que só fui entender momentos depois.

… meu braço vai necrosar se você continuar apertando assim.” Ouvi reclamar e não pude evitar de rir de sua fala.
“Desculpe!” Ela falou e logo emendou num resmungo. “O que diabos você tá aprontando, ? Eu odeio ficar no escuro!”

Ouvimos uma risadinha de e, respondendo à , a luz se acendeu num click, revelando o com um sorriso convencido, e nada mais nada menos do que um todo pomposo e alegre com seu instrumento musical.

!?” Minha voz soou em choque.
“Não acredito!” comentou enquanto ria surpreso.
“Amor!” sussurrou com os olhos brilhando, indo em direção à ele, que tocava qualquer coisa apenas para embalar a surpresa. E que surpresa!

largou o instrumento para receber e todos presenciamos uma cena romântica digna de filme, com direito a um abraço de levantar do chão, enquanto rodava com ela em seus braços.
Os pombinhos dividiram um beijo caloroso e eu suspirei ao ver aquilo, sentindo o clima amoroso se espalhar. Após expirar o ar de meus pulmões, me dei conta da treta que me encontrava: afinal de contas, eu estava vendo um casal dando uma aula de sistema reprodutor da forma mais didática possível, simplesmente entre e . Respectivamente, o cara com quem tive uma relação, e o cara que eu recentemente dei uns beijos, por quem nutro sentimentos totalmente profundos de paixão.
Eu deveria ganhar um prêmio por conseguir me meter em situações constrangedoras, francamente!
Cocei minha têmpora, disfarçando a torta de climão, mas era impossível não me sentir incomodada com o visível desconforto de ao encarar a janela do lado de fora, ao mesmo tempo que sorria sem mostrar os dentes, acompanhando toda situação ao passear o olhar por mim, , e o casal diante de nós.
Simplesmente perfeito.
Só que não.

“O que você faz aqui?” perguntou após a cena típica do reencontro de Jack e Rose em Titanic, e sorriu apontando para .
“Foi uma coisa muito louca! Esse cara aqui me perturbou para participar do projeto de acampamento! Depois de explicar todo o plano pro dono, não é que o safado conseguiu abrir uma exceção que permitisse a minha estadia? O acampamento estava fechado só para vocês da escola. Mas o consegue ser convincente quando quer, e então, aqui estou eu!” E abriu os braços, feliz da vida.
“Você não vai falar a verdade?” perguntou com a cara desconfiada e arqueou a sobrancelha.
“Como assim verdade?”

suspirou e coçou a nuca, sem graça.

“Eu nem ia chamar esse cara. Apenas comentei sobre o projeto e ele teve a ideia de aparecer aqui com a desculpa de que ajudaria na minha empreitada. Mas na verdade, ele quem encheu o saco para eu insistir em sua vinda, porque ele queria mesmo era te ver, cabeçuda.”

Eu gargalhei alto com a cara de bunda que fez, totalmente desproporcional à cara de alegria de .

“Jura?” Ela perguntou com um grande sorriso, que logo se desfez. “Espere, você me chamou de que!?” A feição irritada foi para , que mandou um beijo voador.
“Isso é tão romântico!” Comentei com a voz exagerada, e emendou.
“Eu acho que vocês deveriam fazer o Seixas e a Aurélia amanhã, estão muito inspirados!”
“Deixo isso para os profissionais!” brincou, vindo falar conosco. “Fiquei sabendo que caíram nas graças da professora de literatura! Verdade?”
“Basicamente somos os novos queridinhos dela.” respondeu abraçando , que sorriu de volta.
“Sério? E aí, ? Curtindo fazer a Aurélia?”

Eu sorri sem graça e optei por não dar pano para manga, apenas abraçando meu amigo.

“Preferia ficar de groupie da Mcfly.”
“Ah, corta essa! Só se fosse pra bajular todos da banda e não dar preferência ao !”

Travei no abraço, me dando conta de que ainda não fazia ideia do auê que nos encontrávamos.
A torta de climão acabava de se tornar um banquete inteiro de constrangimento.
Quando soltou-se de mim e olhou ao redor, percebeu que sua fala tinha causado um estranhamento geral, e obviamente questionou:

“O que houve?”

respirou fundo ao meu lado, prendendo o maxilar em tensão.
Olhei ao redor, vendo a careta de dor de , o olhar cauteloso de sobre mim, e a tentativa frustrada de em fingir naturalidade.
Respirei fundo, unindo as mãos na frente do meu corpo, e me preparei para falar.

“Não estamos mais juntos.” respondeu no meu lugar. Minha boca estava aberta, mas não emitiu nenhum som. Me virei para olhar para ele, que me encarou num misto de respeito e tristeza.

Engoli a seco e desviei o olhar para , recebendo uma nítida feição de desculpas.

“Eu pensei que… Ai, merda. Foi mal, gente! Eu não sabia…”
“Tudo bem, . No fim das contas, acho que não vou fazer nenhuma distinção entre ninguém da banda.” Busquei amenizar, com um meio sorriso. Ele respirou fundo, concordando num aceno rápido.
“Então… não vou precisar sair no soco para conseguir prioridade nas garrafas d’água, né?” tentou consertar, um tanto sem graça pela situação. “Quer dizer, ainda é nossa fã, certo?”
“Claro que sim!” Me apressei em responder, sorrindo de nervoso.
sempre terá o título de nossa fã número um!” comentou alegre, e eu fiquei mais aliviada.
“Sem dúvidas que sim.” comentou com uma feição mais tranquila, ainda que não fosse totalmente natural.
“É isso aí!” comentou alegre, e sorriu com os dedinhos erguidos.
“E eu, fico feliz com o título de segunda maior fã!”

Todos rimos de sua fala; uns mais alegres, outros mais contidos… A verdade era que a adaptação viria com o tempo, e não poderíamos postergar tanto aquele encontro inevitável. Era difícil para mim e com certeza era para , mesmo com todas as burradas no meio do caminho. Mas, em algum momento precisaríamos engatar a primeira marcha da boa convivência; uma hora ou outra precisaríamos dividir o mesmo espaço, já que tínhamos os mesmos amigos e o vínculo da banda. Talvez aquele fosse o primeiro de muitos passos para conseguirmos de fato ser ao menos, amigos.
Era estranho? Sim.
Mas desconfiava cada vez mais que a estranheza fazia parte da vida… De um modo bem mais presente do que imaginei.

“Que bom que está aqui, .” falou com uma feição adorável, me fazendo sair de minhas reflexões silenciosas.

uniu as mãos e as esfregou, fazendo uma cara de felicidade infantil.

“Então, não reuni todos vocês apenas para mostrar a surpresa do projeto…”
“Não?” Perguntei, curiosa.
“Não! Tem mais coisa! Nessa conversa que tive com o professor, ele sugeriu que nos apresentássemos na festa de despedida do acampamento, para encerrarmos com chave de ouro! Então eu quero saber o que vocês acham disso, e aí se geral topar, ensaiamos um repertório que a gente já saiba, sem pressão!”
“Sério?” perguntou com uma cara alarmada.
“É!” respondeu animado.
“Porra! Sem pressão?” perguntou preocupado.
“Ah, não precisamos fazer algo muito elaborado…” explicou, meio acuado.
“Eu sinto frio na barriga só de pensar, cara. A escola inteira vai estar vendo!” assumiu com certa aflição, e interviu.
“A gente pode fazer o mesmo repertório que o show passado… O que acham?”
“Eu nem lembro o que eu comi ontem! Quer me foder, me beija!” brincou e depois das risadas, deu um tapa no ombro dele.
“Fala sério! Nem faz tanto tempo assim, né? Esqueceu a porra toda?”
“Não exatamente, mas… Sei lá! É amanhã já!”
“Sim, mas temos tudo aqui, e uma sala para ensaiar, com amplificador, microfone…” explicou, com um bico nos lábios. “Eu trouxe os instrumentos de vocês que estavam lá em casa. Deu o maior trabalho…”

O olhar pidão de fez couro ao pedido de , e os rapazes se entreolharam mais uma vez.

“Vocês já estavam contando que a gente topasse, não é?” comentou com os olhos semicerrados e os braços cruzados, enquanto e sorriam debilmente.
“Mais ou menos.”
“Mais para mais do que para menos. Mas então, todos topam?” perguntou, encarando e .

Por um momento, aquele clima esquisito que quase sempre pairava entre os dois estava dissolvido, uma vez que o assunto discutido era a banda, e, naquilo, pareciam concordar em se relacionar minimamente bem em prol de algo maior.
Confesso que ao observá-los, senti um alívio por perceber a mudança na atmosfera. Não havia animosidade — também não havia uma amizade gigantesca. Apenas dois jovens que dividiam a mesma paixão musical e que não tinham a intenção de brigar, já que o objetivo dos dois coincidia. Não haviam tretas sobre meu melhor amigo e meu ex-quase-namorado.
Eram apenas e , integrantes da McFly.
suspirou, dando de ombros e se virou para todos.

“Começamos o ensaio agora?”

(...)


“Vocês só me metem em furada…” desabafou enquanto arrumava suas coisas. lhe deu um pescotapa.
“Você tá reclamando do quê? A gente sabe que você adorou, seu falso!”
“É verdade! Nem errou na parte que sempre costuma errar!” integrou o papo, e coçou a nuca sem graça.
“É, bem. Mesmo sendo autoral, é ruim saber que a gente erra sempre, então cheguei a treinar mais em casa, sozinho. O que acharam?”
“Ficou irado!” exclamou, com um sorriso.
“Sério?”
“Sim! Os toques do pai da Lis fizeram diferença, não acha?” comentou e concordou, feliz.
“Ficou bom, de verdade.”

A voz de soou, atraindo a atenção para ele. o encarou por alguns segundos, e apesar do sorriso ter murchado um pouco, ele agradeceu com um menear da cabeça.

“Obrigado, cara. Você também fez um bom trabalho naquela ponte para o refrão.”

As sobrancelhas de ergueram-se momentaneamente com a fala.

“Pô, você percebeu? Foi uma ideia que tive recentemente… Pensei em testar.”
“Qual parte?” perguntou, perdido.
“Ah, eu sei! Aquela que vem subindo, né?” sugeriu, apontando para o , que respondeu entusiasmado.
“Sim, essa mesma!”
“Ah, se for o que eu to pensando, dá para gente mandar amanhã mesmo no encerramento!” concluiu e ficou meio acanhado, dando de ombros.
“Acho que rola de tentar. Foda é a responsabilidade, né? Tocar na frente de um monte de gente, algo tão novo…”

Todos concordaram, compreensivos.

“Errar faz parte. Você não vai deixar de ser um bom músico por isso. Só não desiste antes de tentar.”

Os olhares recaíram sobre mim, que estava conscientemente aconselhando em seu momento de insegurança.
O canto dos lábios dele subiu num movimento tímido, demonstrando um pequeno sorriso de satisfação ao ouvir minhas palavras.

“Acho que você tem razão. Obrigado, .”

Como uma pessoa totalmente sem jeito para aquela pequena interação pós-termino, eu dei um sorriso amarelo e um “joínha” com as mãos, recebendo um abraço de lado de .

“A voz da sabedoria! Essa é minha amiga!”

Nosso grupo riu entre si, e eu lancei um olhar de agradecimento para por estar me salvando de uma situação um pouco cabulosa.
Nosso pequeno burburinho caloroso foi interrompido por mais um trovão, e nós duas nos abraçamos com o susto.

“Eita porra!” Berrei num misto de risadas e nervosismo.
“Vamos agitar que essa chuva tá sendo prometida há tempos!” alertou e nos apressamos para juntar os materiais que precisavam ser guardados, e sair dali antes que aquele pé d’água caísse.
“Vai deixar as coisas aqui?” perguntou.
“Pô, não confio não. Nem que a gente monte as paradas mais cedo amanhã, mas não quero correr o risco.” explicou.
“E vai guardar aonde?” indagou ao enrolar os cabos.
“Lá na cabana tem espaço para algumas coisas. Talvez as guitarras e o baixo caibam na área que era de Charlotte.” comentou, pensativa, e eu concordei num aceno rápido.
“Tá, e vai dormir aonde? Dá pra colocar a bateria?” questionou, já se movimentando.
“Eu to sozinho numa cabana, então dá tranquilo. Bem que o meu docinho de côco podia dormir comigo, né?” A cara de atentado do e a face avermelhada de fizeram o grupo rir.
“Eu não quero sobrinhos tão cedo!” Alertei enquanto ajudava .
“Uma coisa não exclui a outra!” brincou.
“É, o perigo é jogar descalço! Com proteção ninguém se machuca!” embarcou e eu dei um tapinha no ombro dele, que riu da cara de .
“Ai gente, me erra!” Ela brigou com um bico nos lábios, e foi para perto de , recebendo uma vaia geral dos amigos enquanto era abraçada pelo namorado risonho.
“Vocês não valem porra nenhuma!” Ele finalizou com um dedo do meio em riste, arrancando risadas de todos.

(…)


“Acabou?” Perguntei para , que me entregava a segunda guitarra.
“Não, tá trazendo o baixo.”
“Se eu não ficar fit depois desse vai-e-vem frenético, vou ficar muito puto!” chegou reclamando, colocando o último instrumento na porta de minha cabana, e uma mochila com pedais e cabos.
“Agora foi, né?”
“Dos instrumentos plugados, sim. Eu vou lá pegar as coisas da bateria para colocar na minha cabana, junto com e .”
“E ?” Perguntei.
“Foi confirmar o encerramento de amanhã com o professor.” Ele respondeu ao recuperar o fôlego, descansando as mãos na cintura. “Bom, peguem aqui que eu vou lá.” E se foi em meio ao chuvisco que já começava timidamente.

pegou o baixo e eu peguei a mochila, posicionando tudo no canto vazio que pertenceu à Charlotte.

“É, eu concordo com .” Reclamei, sentando na cama e aproveitando para respirar. soltou um pequeno som como uma risada curta, sentando ao meu lado.
“Vai ficar fit?”
“Com vocês me obrigando trabalhar em condições análogas à escravidão, é bem provável que sim!”
“Quem te vê falando assim, até acredita né? Tá ficando atriz demais pro meu gosto!” E deu uma cutucada no meio da minha testa, me fazendo rir.
“Eu quero menção honrosa depois que esse acampamento acabar.” arqueou uma sobrancelha.
“Vai receber o troféu de melhor pessoa a despertar cedo demais num acampamento, serve?”
“Você é muito idiota, cara!” Estávamos rindo quando uma trovoada rasgou o céu, fazendo com que todas as luzes se apagassem.
“Meu Deus, o que foi isso?” Perguntei, sobressaltada, indo até a janela.
“Cara, tá caindo o mundo!” apontou para as luzes de emergência, onde poderíamos ver à contraluz a quantidade de pingos d’água que caíam. Em pouco tempo, o chão levemente úmido começou a alagar.
“A porta!” Me lembrei que tínhamos deixado aberta, e quando fui fechá-la, percebi que fazia o mesmo ao longe, na cabana de .

Depois de impedir que a chuva entrar na cabana, puxei meu celular e liguei para minha amiga e coloquei no viva-voz.

“Você por acaso fechou a janela do lado da minha cama?” Ela atendeu com uma pergunta.
“Sim, é claro!” Fiz cara de desesperada, pedindo com gestos para que fechasse a bendita janela. Ele o fez, prendendo uma risada mal e porcamente.
“Cara, e agora? Eu estava pronta para trocar de roupa e ir dormir! To um caco!” Ela desabafou e eu fiz uma careta de dor, sentando em minha cama.
“Olha, espera um pouco. Talvez a luz volte logo e a chuva dê uma estiada. Daí você consegue voltar para cá.”
“Eu só queria minha cama agora.”
“Aproveita que está aí com seu docinho de côco, ué!” Brinquei, recebendo um sorriso de , que se sentava na cama de , de frente pra mim. Ele apoiou os cotovelos nos joelhos e acompanhou a conversa em silêncio, olhando para o celular.
“Eu adoraria, mas o pobre do está fazendo cosplay de Lanterna Verde, segurando vela aqui.” Ela respondeu em meio a uma risada, e logo depois pude ouvir reclamar:
“Ei! Qual é o problema com o Lanterna Verde? Ele é um bom herói!”

Eu ri da pequena discussão, negando com a cabeça.

“Bom, a gente vai se falando. Isso é, se a bateria do celular não acabar antes da luz voltar.”
“Eita, verdade. Qualquer coisa, se eu não responder, tenta o ou o .”
“De boa. tá aqui também.”
“Aproveitem e deem uma última ensaiada para amanhã! Quero essa peça im-pe-cá-vel, hein?”

O rubor na face veio quase que instantaneamente, e eu senti que poderia socar pelo celular. A risadinha sacana de me impediu de tal ato, e eu só rolei os olhos enquanto sorria sem graça.

“Nem Strauss está tão exigente, Amaral. Segura tua onda aí.” respondeu ao se aproximar e sentar ao meu lado, apoiando as mãos abertas no colchão.
“Eu só quero um bom espetáculo!” Ela explicou em meio a risadas e eu engoli a seco um suspiro insatisfeito.
“Tá bom, agora chega de papo e vamos esperar essa bendita luz.”
“E a chuva passar.” Ela acrescentou em seguida.
“Isso. Beijinho, tchau!”

Não esperei ela responder e desliguei, tremendo que outra pérola pudesse ser lançada por .
Às vezes eu achava que ela desempenhava o papel do anjinho e do diabinho na minha vida. Não precisava de uma outra pessoa, ela dava conta do recado.

“Bom…” Falei, ainda sem graça.
“Bom?” me olhou pelo canto dos olhos e eu mordi meu lábio inferior, pensando no que dizer.
“O que achou do ensaio?” Indaguei, encarando o chão.

Ouvi respirar fundo e eu poderia jurar que ele estava ponderando as palavras que diria.

“Melhor do que pensei. O clima não pesou tanto, não é?”
“Foi o que eu notei.” Respondi, levantando a cabeça para olhá-lo, percebendo que ele me olhava de volta. “Fiquei realmente surpresa, para ser sincera. Esperava que fosse mais difícil.”

Ele deu de ombros, encarando o teto.

“Acho que não temos problemas quando o assunto é a banda.”
“É…”
“Já em relação à você…” E voltou a me observar, com certo mistério no olhar.

Instantaneamente, me lembrei da teoria de e de minha mãe, sobre também gostar de mim. Aquilo obviamente trouxe um frio na barriga tremendo, e eu poderia jurar que debaixo da chuva estaria mais quente do que a sensação que eu tinha na boca do estômago.
Fiquei perdida ao encarar seu rosto e pensar sobre essas ideias um tanto perigosas, então apenas espantei os pensamentos e voltei a apreciar a chuva, dando continuidade ao diálogo.

“Eu espero que essa paz se mantenha. Porque sinceramente, não há mais nada a ser feito em relação à .”
“Não mesmo.” A resposta veio com tudo, e eu senti uma vontade de explorar mais de onde vinha essa convicção, tentada pelas ideias de .
“Você poderia disfarçar a sua alegria em relação ao meu término, sabia?” Sugeri com uma cara desconfiada.

me encarou com a testa franzida e um sorriso incrédulo.

“Como é?”
“Você está sorrindo, !” Expliquei, sentindo meus lábios se esticarem num sorriso debochado.
“Eu só estou achando graça do que você está dizendo!” Se defendeu, erguendo as mãos.
“Então vai dizer que não está contente com o fato de que eu e não estejamos mais juntos?”

me olhou com uma feição séria por um longo momento. Fez contato visual e mal piscava, e a cada segundo que passava, me sentia mais atraída para sua atmosfera silenciosa e um tanto significativa. O que ele estava pensando?

“Contente não é a palavra.” Ele respondeu com uma entonação mais grave, e levantou da cama, caminhando pela cabana, colocando as mãos no bolso enquanto ficava de costas para mim.

Eu cruzei meus braços e balancei as pernas, em nítido sinal de nervosismo.

“E qual seria?”

Um trovão soou novamente, e , diante da janela, expirou o ar dos pulmões a ponto dos ombros descerem, como se estivesse cansado.
Ele se virou devagar e apoiou as costas na janela, me olhando novamente.

“Confortado.”
“Confortado? Por quê?”
“Porque que tipo de pessoa eu seria se torcesse por um relacionamento seu em que o cara não te respeita nem no mesmo perímetro?” Ele falou como se fosse óbvio, e riu com incredulidade na voz. “E te trocar assim, sem mais nem menos, por alguém tão… plástico.”
“Plástico!?”
“Vai dizer que acha Charlotte um poço de profundidade?” Foi a vez dele de cruzar os braços.
“Tá doido! Aquela garota é fútil para um caralho!” Me aliviei no comentário e ele riu alto, achando graça da minha espontaneidade.

Deitei em minha cama, abrindo os braços e me permitindo ficar na minha, pensativa. As falas de pareciam fazer sentido, então, talvez não tivesse nada demais ali. Quer dizer, eu no lugar dele também estaria confortada. Nenhum amigo de verdade deseja ver o outro sofrer.
Suspirei ao encarar a luz apagada, percebendo que o quarto só era iluminado pelas luzes de emergência que vinham de fora da cabana. Pelo tempo passado, a energia não voltaria tão cedo.

“Cansada?” A voz de soou próxima demais, e me assustei ao perceber que ele estava de volta à cama de , sentado com a cabeça encostada na parede. Seu olhar de soslaio me fitava, curioso, enquanto eu olhava diretamente para ele. Fiquei um tempo observando-o, sentindo a minha mente trabalhar na resposta que daria, ao mesmo tempo que meus olhos admiravam sua beleza à meia-luz.
“Acho que aconteceu muita coisa…” Voltei a encarar o teto, erguendo meus braços como se minhas mãos pudessem tocá-lo. Estava tão pensativa que não conseguia colocar em palavras tudo o que acontecia em minha mente. pareceu compreender.
“Eu imagino que sim. E para você, como foi?” Pelo canto dos olhos, notei que ele me observava, apoiando o queixo nos braços cruzados, esperando que eu respondesse.

Respirei fundo, deixando os braços caírem em cima de meus olhos, fechando-os de cansaço. Não era uma pergunta fácil.

“Esquisito. Às vezes, sem que eu queira, meu cérebro rememora as cenas chatas… Ele falando aquele monte de besteiras, a briga que vocês tiveram. O beijo que eu presenciei entre ele e Charlotte. Difícil.” Escorreguei o braço para trás, posicionando-o em cima de minha cabeça, enquanto voltava a abrir os olhos. “Mas não estou me corroendo no ódio.” Completei depois de um tempo de silêncio.
“Entendo. Leva tempo, não é?” Sua pergunta me fez fitá-lo rapidamente. Ele me olhava com atenção, e eu dei um pequeno sorriso com aquilo, voltando a cabeça para o lugar.
“É, eu acho.”

Um novo trovão soou lá fora, mas dessa vez não me assustei, visto que aqui dentro de mim a tempestade já estava armada e em completo caos.

“Está triste?” me perguntou depois de um tempo, e eu sorri novamente, dando de ombros.
“Acho que só não estou alegre. Mas não necessariamente triste…”
“Frustrada? Chateada? Cansada? Precisando de um abraço?”

Virei minha cabeça para encará-lo, e fiz uma careta de dor.

“Todas as opções?” Sugeri com certa aflição e riu, mostrando seus dentes em meio ao quarto escuro. Ficamos nos olhando e eu senti um aperto no peito, pensando que no dia seguinte, naquela mesma hora, eu já teria terminado o acordo de beijos, e provavelmente já me declarado, sem fazer ideia do que aquilo traria para nossa amizade.

Estiquei o braço em sua direção e abri minha mão, recebendo seu toque quente de volta.

“Vem cá.” Pedi baixinho, e sem resistências, se levantou e sentou na beirada da minha cama — sua mão ainda na minha, enquanto a outra dedilhava meus cabelos, deixando um carinho sossegado por onde passava.

Ficamos nos olhando, e eu fiquei sozinha com meus pensamentos, me dando conta de como aquele sentimento me preenchia, mesmo com tanta confusão envolvida.
Os olhos de me escrutinavam, e uma certa ruga de expressão pairava no meio de sua testa. Levantei a mão livre e toquei sua pele ali.

“Por que está franzindo?”

Ele permaneceu me olhando, sem alterar a face, enquanto eu desenhava linhas invisíveis no espaço entre suas sobrancelhas.

Hanging around, nothing to do but frown, rainy days and mondays always get me down…” Cantarolei brincando com a ruga, pensando em como The Carpenters parecia fazer sentido naquele momento.

Para minha surpresa, nunca houve uma resposta verbal de ; ele simplesmente se moveu a ponto de deitar junto comigo, sem quebrar o contato visual.
Minha mão desceu de sua testa para a ponta do nariz, e eu me senti tal qual uma criança brincando com um brinquedo novo. Não sabia se era efeito da chuva, da peça, de todos os últimos acontecimentos. Eu só sabia que a energia no ambiente estava diferente. Tão íntima e acolhedora que eu poderia tocá-la, como fazia com a pele de .
Finalmente o franzir no cenho dele se desfez, e ele fechou os olhos, assumindo um semblante mais pacífico. Eu fiquei cantarolando a melodia de Rainy days and Mondays e um sorriso brotou nos lábios dele.

“Assim eu vou dormir.” Ele falou e eu ri, porque o movimento de sua mão na minha cabeça havia cessado já há algum tempo, indicando o estado de sonolência.

Enquanto eu seguia com o carinho, sua mão desceu da minha cabeça, passou pelo meu ombro e se posicionou no meio das minhas costas, deixando-nos em meio a um abraço frouxo.
O peso do braço em minha cintura me fez suprimir um suspiro, mas isso não passou despercebido por , que abriu um só olho, me analisando por um tempo, meio desconfiado.

“No que está pensando?” Abriu os dois olhos de maneira preguiçosa, e eu passei a acariciar seus cabelos da mesma forma. Dei de ombros ao mirar os fios entre os meus dedos.
“Na peça. Estou nervosa.” Falei uma meia verdade e ele arqueou uma sobrancelha, ficando mais irresistível do que já era.
“Nervosa por quê? Tá comigo, tá com Deus!”

Eu ri achando graça da careta de falsa indignação dele.

“Eu sei, mas não é com você. Estou nervosa comigo.”
“Não se sente pronta?” Seu rosto demonstrou preocupação.
“Sim, mas… sei lá. Estou receosa.”
“Hm. Acha que ensaiamos pouco?”

Meus olhos estacionaram nos seus, e minha mão parou de acariciá-lo.

“Você acha?” Devolvi a pergunta, e percebi que seu pomo-de-Adão subiu e desceu.
“Não sei, talvez. O que acha?”
“Talvez.” Repeti sua palavra, prendendo meus lábios.

Ele olhou para a janela, reparando na chuva do lado de fora, e voltou a me encarar.

“Não parece que vai parar tão cedo. Quer passar a peça uma última vez?”

Meu menear de cabeça deu a resposta afirmativa, e num movimento firme, se levantou e alongou o corpo enquanto eu me sentava lentamente. Nos olhamos mais uma vez e ele esticou a mão em minha direção, tomada de bom grado por mim.

(…)


Aquela que te humilhou, aqui a tens abatida, no mesmo lugar onde ultrajou-te, nas iras de sua paixão. Aqui a tens implorando seu perdão e feliz porque te adora, como o senhor de sua alma.” Falei com a voz impostada, sentindo-me trêmula por dentro.

Mesmo tendo pouco tempo de projeto, era impossível titubear naquela cena por receio de esquecer as falas.
A ansiedade era devido ao momento seguinte, em que interpretaria um Seixas desesperado por amor, que viria a passos apressados, e mãos firmes me abraçariam, com os lábios ansiosamente pelos de Aurélia, encarnados nos meus.
E foi exatamente isso o que aconteceu; me olhou num misto de efusividade e alívio, conforme Seixas ficava ao ouvir a declaração de Aurélia, e veio com seus pés pisando com vontade no chão. As mãos prontas para me acolher me alcançaram e pousaram na cintura, numa pegada que colocou o estômago em modo saltitante.
Minhas mãos alcançaram seu rosto num toque familiar e nossos narizes se encontraram rudemente com o anseio do toque dos lábios, que vieram logo em seguida.
E ali, praticamos novamente o ato que mais me deixava feliz em dias.
Os lábios se provaram famintos e as línguas dançaram conforme o ritmo que nos embalava; a tempestade aqui dentro era tão real quanto a do lado de fora.
E eu não conseguia dizer qual delas estava mais alta.
Mais uma vez, o leve toque de menta no gosto do beijo envolvente de . Mais uma vez, as mãos brincaram em minhas costas e me trouxeram para perto. Mais uma vez meu corpo grudou no dele, e eu não consegui ignorar o pequeno gemido que saiu de minha boca, numa brecha de segundo enquanto buscávamos ar, sem previsão de parar o beijo.
não fez nada além de soltar uma risadinha quando retomamos o contato, e eu me vi tentada a provocá-lo para extrair a mesma reação.
Instigada, abandonei seus lábios e desci, achando um prazer particular ao sentir os pêlos de sua barba rala pinicando em minha pele. Mordi o queixo e distribuí pequenos beijos molhados até alcançar o pé do ouvido, deixando ali um último beijo que finalmente arrancou um gemido da parte dele.
Sorri vitoriosa, mordiscando o lóbulo de sua orelha e deixando um recado.

“Quites.”

A risada grave soou perto do meu pescoço e ele virou o rosto de forma a ficar cara a cara comigo, a ponto de nossos narizes se encostarem.

“E o que isso significa?” Uma expressão maliciosa pairou em sua face.

Lembrei dele falando sobre estar confortado. Pensei na realidade da questão, e apenas suspirei, dando de ombros enquanto sorria sem muito humor.

“Significa que estamos super empenhados para passar direto.”

Ele riu e umedeceu os lábios, estudando minha feição enquanto permanecia em silêncio.

“É uma boa sacada. Deveríamos investir no teatro, não acha?”

Do jeito que eu mascaro as coisas, eu merecia um Oscar! Pensei comigo.

“Quem sabe…” Respondi amena e apertei o queixo de , antes de sair daquele enlace. Estava difícil não querer beijá-lo novamente, então apenas me afastei até ir na janela, deixando uma fresta aberta e recebendo uma brisa refrescante. Que calor!

Ouvi os passos atrás de mim e logo ele estava ao meu lado, observando a chuva comigo.

“Que brisa boa…” Ele sussurrou, fechando os olhos, e eu observei o exato momento em que algumas gotas de chuva alcançaram sua face.

Inveja.

“É…” E fiz o mesmo, distraindo meus sentimentos enquanto fechava os olhos.

Era engraçado como poderíamos ir de oito a oitenta sem perder a nuance agradável.
Era um silêncio agradável, um clima agradável, ainda que eu estivesse queimando por dentro, perdida em pensamentos que só reuniam e eu, e aquela bendita cabana que nos acolhia.
Seguimos ouvindo o barulho da natureza, até que se remexeu do meu lado, me fazendo olhá-lo.

“Está tudo bem?” Perguntei casualmente.

Ele acenou e me olhou de soslaio, suspirando. Voltou a olhar para frente e segundos depois pigarrerou, antes de quebrar o silêncio.

?”
“Hm?”
“Posso te perguntar uma coisa?” Sua voz saiu incerta, e eu umedeci os lábios antes de confirmar.
“Sim?”

abriu a boca, passando a língua pelo lábio inferior, como se estivesse pensando antes de falar. Ergueu o olhar para o céu, e colocou uma mão para fora, deixando-a molhar nas gotas de chuva.

“Você terminou com por não correspondê-lo... Não é?”
“Uhum.” Respondi depois de um tempo, com a voz tensa e baixa. concordou com um aceno, e ainda sem olhar para mim, assumiu uma feição mais séria sem falar mais nada.
“Por que a pergunta?” A curiosidade foi maior, ainda que algo dentro de mim palpitasse como uma bomba relógio, como se avisasse que algo grande estava por vir.

deu um sorriso de canto e fez uma cara pensativa.

“Eu estava pensando sobre isso e lembrei daquele dia em que estávamos na varanda da sua casa… Lembra?”

Franzi minha testa, sem conseguir me recordar do que ele se referia.

“Não…” Fui sincera, me sentindo perdida e alarmada.

O sorriso dele deu uma sutil alongada, e ele umedeceu os lábios antes de falar.

“Estávamos falando de nós, das nossas vidas… E você comentou que estava apaixonada por uma pessoa.” Cada palavra da última frase me abalou, mas eu disfarcei o incômodo ao tentar reparar na chuva, falhando miseravelmente.
“Hm, é?” Indaguei, com o pouco de coragem que me restava. parou de olhar para fora e subitamente me encarou, virando seu rosto completamente para mim, me fazendo automaticamente observá-lo de volta. Seus olhos faiscavam, seu rosto estava lívido, e os braços, cruzados em cima do apoio da janela.

E então, ele lançou:

“Quem é?” Sua pergunta saiu tão natural que senti inveja. Mas a sensação era como se espadas de gelo atravessassem meu corpo, e eu não consegui disfarçar o medo e o choque de respondê-lo.

O que diabos eu poderia dizer!?


Capítulo 28: Gotta let it happen

Em quase dezoito anos, eu diria que poucos momentos me senti completamente absorta em pensamentos, com uma capacidade incrível de simplesmente não dizer nada.
Sim, eu estava naquela saia justa com e sequer sabia como havia chegado ali.
Num ato tão simples, me fez a pergunta de milhões.
E o problema era: eu não tinha um centavo sequer para respondê-lo.
Eu não tinha nada.

"?" Ele perguntou, com o cenho franzido. "Você tá bem?"

Não. Obviamente não estava bem.
Eu senti um zumbido forte nos meus ouvidos, me deixando tonta. Fechei os olhos com força e busquei respirar com calma.

"Uhum, eu só... Desculpa, acho que fiquei meio perdida. O que você perguntou mesmo?"

me olhou por um instante, como se estivesse medindo minhas reações.
E eu sabia, porque estava fazendo o mesmo.

"Você disse que estava apaixonada por alguém, naquela época, antes de encontrar . Quem era?"

Franzi o cenho e fiz uma careta pensativa, apenas para fingir que não estava hiperventilando com a facilidade de em me fazer uma pergunta tão visceral.
Ao mesmo tempo, tão fácil e tão difícil de ser respondida.
Eu sei, tinha planejado me declarar, falar tudo o que sentia! Entretanto, havia trazido aquilo com um dia de antecedência. E a verdade era que eu sequer sabia se na hora H seria capaz de dizer tudo; eu só esperava conseguir dizer o necessário.
No fim das contas, me senti uma bela covarde por fugir, ainda que parte de mim quisesse ficar. Era um paradoxo muito grande, no qual eu entendia que, independentemente de qualquer coisa, nada seria como antes.
Eu só precisava entender se aquilo era bom ou ruim.
Mas até sobre isso, a vida não era fácil, não era simples, nem binária. Não era oito ou oitenta, envolvia tantas coisas, e eu me senti nervosa por estar contra a parede.

"Nossa, . Quanto tempo faz essa conversa? Eu sinceramente nem sei o que te dizer! Deveria ser uma paixonite boba, porque eu nem lembro." Saí pela tangente, rindo de maneira forçada, enquanto umedecia meus lábios.
"Sério? Porque nem faz tanto tempo assim. E eu me lembro de você desabafar de uma forma bem pessoal, como se não parecesse qualquer coisa." Ele respondeu calma e friamente, virando-se de costas para a janela, apoiando os cotovelos na placa de mármore enquanto me encarava com olhos desconfiados.

Respirei fundo e engoli a seco, dando de ombros.

"Você me conhece, né? Às vezes posso estar muito sensível e enxergar as coisas maiores do que realmente são. Quer dizer, não que eu seja leviana. Apenas acho que não sou mais a que te disse isso. Depois de toda essa montanha russa amorosa, eu só espero dar paz ao meu coração."

Tive a pachorra de olhar dentro dos olhos dele, e assim ficamos por um tempo, como se rolasse uma conversa paralela só de olhares.

Eu estava nervosa, me sentia trêmula por dentro, mas por fora parecia alguém descontraído e sem receios. Eu estava me tornando uma ótima atriz.
não fazia esforços para seguir com o diálogo que parecia despretensioso, mas no fim das contas, começava a soar como o silêncio que precede o esporro.
E que esporro.

"É, . Você merece paz e acima de tudo, ser feliz." Um pequeno sorriso brotou no canto de seus lábios, me fazendo repetir o gesto.
"Nós todos, não é?" E suspirei, me sentindo lívida ao voltar a olhar a noite e seu silêncio. "E falando em felicidade, como andam você e Lis? Tranquilos?" Perguntei, tentando soar natural. A ansiedade foi tamanha que até virei levemente minha cabeça para olhá-lo. encarou o teto, afirmando com a cabeça, como se respondesse uma pergunta qualquer.
"Estamos bem."
"Bem, bem mesmo?" Insisti. Ele queria ser sucinto, mas eu não parecia ligar para este detalhe. Me sentia nervosa por pensar que poderia estar prejudicando o relacionamento deles de alguma forma, ainda que não parecesse quando…

Bem, você sabe.
Quando eu estava ocupada demais trocando beijos técnicos com ele.

"Ainda receosa com nosso acordo?" me olhou de soslaio, com a feição debochada, lendo os meus pensamentos.

Pá! Bem no meio da minha fuça.
Eu sorri sem graça e dei de ombros, olhando para frente.

"Eu nunca vou me sentir totalmente confortável com isso, você sabe… Eu no lugar de Lis não estaria tranquila." Respondi, sincera.
"E o que você faria?"

O peso da pergunta ressoou forte, e nos encaramos instantaneamente. Eu mal sabia o que digerir primeiro: o teor da questão, ou a rapidez com que foi feita.
Eu decidi ser didática.

"Quer dizer, o que eu faria se eu fosse sua namorada e você estivesse num acordo com sua melhor amiga e precisasse dar uns amassos para passar de ano?"
Mais silêncio, apenas troca de olhares. O pomo de adão dele subiu e desceu, e, após sua língua brincar sutilmente pelos lábios, ele acenou levemente com a cabeça.

"É. Se você fosse minha namorada, o que você faria?"

Mas que porra de pergunta era aquela?

“Como assim? Que aleatório…” Eu respondi com a voz meio falha, rindo enquanto fingia achar graça na pergunta. Por que eu estava reagindo daquele jeito? Eu não fazia ideia, mas não parecia estar brincando.
“Só responde.” Ele sugeriu com a voz baixa e eu engoli a seco sua postura.

A primeira coisa que surgiu na minha cabeça foi “Você teria meia hora para me ouvir?”. Céus! Eu faria tanta coisa se fosse sua namorada, .
Mas, dentro do contexto, não admitiria um acordo desses, se fosse o contrário. E, ao me dar conta disso, só me senti pior; me sentia a rainha da hipocrisia.
E a grande questão era: Lis não via problemas nisso, nem . Aparentemente, a única pessoa que encrencava era eu. Ainda que topasse, ainda que uma parte de mim estivesse felicíssima de ter tido aquela ideia inusitada que ocasionou nos melhores momentos da vida, nos últimos tempos…
Era verdade que, independentemente da reação de diante da minha declaração, eu poderia dizer que havia tido uma prova de como seriam as coisas caso eu estivesse no lugar de Lis.
Caso eu fosse a namorada de .
Pensar naquilo, ainda que remotamente, era algo que me fazia vibrar internamente, ainda mais depois de conhecer os trejeitos e as formas de seu beijo, de seu abraço, de seu calor, de suas reações num momento tão íntimo e lânguido.
Antes, tudo era apenas imaginação. Agora, eu tinha material de sobra para sonhar sobre o que, até então, era impossível de acontecer.
Mas ainda esperava uma resposta, e eu passei tempo demais pensando em mil outras coisas ao invés de sua pergunta. Meu estômago deu uma reviravolta e eu respirei fundo, dando de ombros e respondendo de uma vez.

"Eu provavelmente não teria aceitado, talvez até terminasse com você."
"É?" O olhar atento de me instigou a continuar.
"Uhum. E seria bem capaz de me inscrever em aulas de boxe para descontar a raiva. Mas você definitivamente seria o rosto que eu imaginaria no saco de areia."

A gargalhada de foi gostosa, totalmente diferente do assunto que abordávamos.

"Justo, eu acho. Quer dizer, eu te entendo. Fico pensando que se você estivesse com , talvez esse nosso acordo nem existisse, por mais que vocês não namorassem." falou ao se ajeitar e voltar a encarar a paisagem, assim como eu estava. Eu soltei uma pequena risada ao pensar sobre aquilo.
"É, até porque geraria tantos problemas que eu me canso só de pensar.” Perdi o olhar em qualquer coisa, sentindo meu corpo estremecer logo depois de considerar os possíveis problemas que aquilo me causaria. riu ao meu lado e eu o encarei com uma cara engraçada, que logo deu espaço a uma séria. “Mas sobre sua pergunta, ao perceber que não aceitaria esse acordo, me sinto uma tremenda hipócrita.” Assumi meu ponto de vista, me sentindo bem envergonhada.

arqueou uma sobrancelha e soltou um breve riso, dando de ombros e negando com a cabeça.

“Por quê? Eu não acho.”
“Não!?” Eu me virei surpresa, sem disfarçar o choque.
“Não.”
“Por quê?” Eu lhe fiz a mesma pergunta e ele ponderou antes de responder.
“Isso apenas mostra como vocês se relacionavam. E isso varia muito de relação para relação, . Se algo não cabe dentro da forma que você se relaciona com alguém e vice-versa, é apenas isto. Não quer dizer que se estenda para outras relações.”

Fiquei refletindo um pouco sobre isso, pensando em voz alta.

“Apesar de e eu não namorarmos, agíamos como exclusivos um do outro. É verdade que isso meio que se estabeleceu conforme as coisas foram acontecendo, né.”
“Vocês combinaram essa exclusividade? Em palavras?” questionou, me olhando diretamente nos olhos.
“Não exatamente. Quer dizer… Sempre buscamos nos respeitar. Eu não tinha vontade de ficar com outras pessoas, e visivelmente também não.”
“Por ele, vocês iriam até além.” Ele acrescentou, gesticulando.
“É…” Ponderei, coçando a nuca, sem graça. “Então acho que não tínhamos isso tão concreto, mas estava subentendido que sim, essa exclusividade existia.”

meneou a cabeça, pensativo.

“Bom, ainda que esteja encaminhada, a situação é sempre melhor quando a gente firma acordos. O combinado não sai caro.” E me deu um sorriso amarelo. “Tecnicamente, o que fez com Charlotte não foi um erro, se a exclusividade não ficou combinada entre vocês.”

Eu franzi a testa, negando com a cabeça e me sentindo irritada com aquela fala.

“Como é que é!? , eu não acredito que…”
“Isso não quer dizer que tenha sido legal, . Calma!” Ele me interrompeu, segurando em minha mão de forma suave, fazendo um carinho nela e instantaneamente me deixando menos reativa. “ quebrou a cláusula do respeito, entende? E, pelo que vocês tinham, nada mais justo do que pelo menos conversar com você e chegar a um ponto que coubesse para ambos. Ainda que fosse o término! O que ele fez não foi maneiro, eu não aprovo, e se estivesse no lugar dele, jamais teria feito. Ele foi um merda nesse aspecto.” E riu, como se fosse óbvio, me deixando intrigada com aquilo.
“Mas não foi errado, é isso?” Fiz uma cara de tédio, meio contrariada, mas entendendo o ponto de vista que ele trazia.
“Tecnicamente, não… Porque isso vai depender da dedução da pessoa, depende do bom senso e de seu entendimento. Agora, quando se pontua, está dado: é aquilo ali, e todos os envolvidos estão cientes e concordam, caso queiram continuar. Entende?”
“É tipo aquela caixinha que a gente marca sem ler, quando baixa um programa ou faz cadastro em algum lugar né?” Eu trouxe pro lado tecnológico, fazendo rir e concordar.
“Tipo isso.”

Ficamos num pequeno período em silêncio, e eu o quebrei, pensativa.

“E entre você e Lis, o acordo que temos não é uma questão. Nem é considerado errado.” E olhei de soslaio, percebendo que suspirou, e aos poucos soltou minha mão, unindo as suas e encarando a chuva.
“Não. A gente não… vê problema nisso.”

Eu apertei os olhos, tentando entender as entrelinhas, buscando algo ou qualquer informação a mais. Ele parecia tranquilo ao dizer aquilo, o que só me deixava mais nervosa.

“Como vocês exatamente conversaram sobre isso?”

fez uma cara engraçada, como se estivesse pensando em como responder aquilo. Ele soltou uma risadinha, deixando os olhos vagarem no ambiente, e demorou a responder, enquanto negava com a cabeça.

“Você acha que ela não sabe?” Ele retrucou, me encarando desconfiado, com um sorriso no rosto. Eu abri e fechei a boca, sem conseguir responder. “Acha que estou mentindo para você e enganando Lis?”

Eu confesso que não tinha pensado sobre aquela suposição. Mas era tão estranho que aquilo não estivesse gerando a algazarra que provavelmente geraria se eu estivesse no lugar de Lis.
Mas, a frase já indicava o óbvio: eu não era Lis.
Engoli a seco, dando de ombros.

“Eu só quero entender melhor. Você é bem vago sobre isso.”
“Isso? O acordo?” Ele sugeriu, me olhando sério.
“Também. Quer dizer. Na verdade, sobre isso, sobre seu namoro…” Fui sincera, tentando gesticular ao buscar mais palavras para explicar, sem muito sucesso — apenas sentindo os lábios formigarem quando as palavras saíram dali. “Parando para pensar, você é… discreto.”

suspirou, ajeitando a coluna e olhando para as próprias mãos.

“Como eu poderia falar sobre meu relacionamento se estávamos brigados?” E me encarou com um olhar ressentido. “Eu chegaria do nada e diria detalhes de algo que você não daria a mínima de saber, uma vez que mal me olhava na cara? Você fez sua decisão e eu…” respirou fundo e umedeceu os lábios, piscando rápido enquanto encarava a chuva. Ao se perder nas palavras, recuperou seu pensamento inicial. “Não tinha como falar sobre isso. Você não falava comigo, eu tenho certeza que nem olharia na minha cara se eu tentasse!”

Meu rosto endureceu e eu tensionei meu maxilar instantaneamente.

“Você tentou?” Eu sugeri de braços cruzados e ele soltou uma risada sarcástica.
, por favor. Sejamos sinceros? Você não iria ouvir, simplesmente não havia um bom clima ali. E eu entendo, demorei para entender, mas… doeu, sabe?” Ele me olhou com a feição um pouco afetada e eu exasperei em resposta.
“Não fale como se isso fosse algo unilateral.” Repreendi e ele deu de ombros, erguendo as mãos em questionamento.
“Mas eu não disse que era! Sério, eu falei alguma mentira? Nós não nos falávamos! Você gostaria que eu chegasse do nada e conversasse sobre a intimidade do meu namoro? O fato é: não ia rolar! Então, quando aconteceu, você não estava lá, portanto, não tivemos a oportunidade de trocar uma ideia sobre tudo isso, e tudo bem!”
“Espera aí! Não é tão simples! Aliás, não é sobre eu estar lá ou não! Na verdade, você também não esteve!” Acusei, me sentindo irritada, me afastando dele enquanto apontava em sua direção. “Você nunca esteve enquanto eu me relacionava com , mesmo quando pôde! Ainda que ele tenha feito merda, isso foi apenas no final, . Então se você quer fingir que está ‘tudo bem’ não estarmos presentes um para o outro, vá em frente. Mas eu não vou ser parcial apenas porque estamos nos falando novamente, ou porque fez o que fez. Você também pisou na bola. Justo é justo.” Respondi seca, e riu nervoso, me olhando como se eu não estivesse rimando lé com cré.
“Cara, por que estamos falando sobre isso agora? Eu achei que a gente já tinha resolvido isso! Eu sei que eu fiz merda, eu tive tempo o suficiente para perceber isso.”
“Porque eu forcei esse tempo!” E foi a minha vez de rir, incrédula.
“Não estou entendendo! Você quer que eu te agradeça, que eu faça o que exatamente?” Ele indagou irritado, e eu devolvi na mesma moeda.
“Que não cometa a merda de dizer que está tudo bem não estarmos lá um pelo outro!” Exclamei, agitando meus braços e bufando. estava de boca aberta me olhando chocado e respirou fundo. Encarou o chão enquanto digeria o que foi dito e por fim, falou numa entonação baixa e pontual.
“Eu não quis dizer que era algo bom. Eu quis dizer que aconteceu. Está tudo bem no sentido de não há o que ser feito por já estar no passado! Mas eu não quero pensar nisso o tempo todo se agora podemos recuperar esse tempo e nos apoiar em novas descobertas! Superar as adversidades e seguir! Isso é o que é justo, depois de tudo!” Sua voz aumentou, beirando a impaciência, e eu ri em escárnio.
“Superar? Você tem que entender que isso leva tempo, e que às vezes as feridas não estão tão cicatrizadas!” Respondi, de braços cruzados. “Forçar uma superação não é minimamente justo.”
“Você está deturpando o que eu quis dizer. Não foi nesse sentido que falei sobre o justo!” comentou com o cenho franzido. Eu o encarei por alguns segundos, chocada com a conversa que estávamos tendo. Senti cada célula do meu corpo pensar sobre o eco que sua voz fazia em minha cabeça, e eu mal filtrei o que saiu de minha boca.
“E do meu ponto de vista, vai além do que você está trazendo nessa conversa! Só que eu prezo pelo que é justo, num todo!” Senti meu coração palpitar e a garganta dar uma leve embargada. “E é por isso que, por mais que eu me sinta feliz com essa merda de acordo, ao mesmo tempo sinto uma puta bigorna pesando no meu peito, me sentindo uma traíra de primeira! Então é, eu não estive lá por você, nem você por mim, e aqui estamos, numa discussão tão…”
“O que você disse?” me interrompeu, mudando seu semblante completamente.
“O que?” Eu indaguei, confusa, retirando as lágrimas dos cantos dos olhos. “Você sequer está me ouvindo…” Pensei alto, sentindo a dor de cabeça vir.
“Não, não! Eu estou te ouvindo plenamente.” E de maneira estranha, veio até mim e segurou nos meus ombros com firmeza. “Você disse que está… feliz com esse acordo?”

Oh.
Meu.
Deus.
O que eu tinha feito!?

, o que você…” Eu tentei me afastar, performando naturalidade, mas ele me segurou de novo, me impedindo de ir, e o pior: me fazendo olhar seu rosto.
“O que você quis dizer com isso?”

Eu olhei dentro dos seus olhos, e vi meu reflexo, completamente perdido.
Eu não sentia meus pulmões trabalhando, meu coração parecia suspenso e as extremidades do meu corpo estavam gélidas.
Apesar do tempo ameno, o suor percorreu minha espinha, e aquilo pareceu durar anos, mas na verdade, foram questões de segundos.
Segundos eternos nos quais eu, de maneira surpreendente, pensei numa resposta plausível.

“Que vamos passar de ano sem precisar fazer a avaliação final. Você não está feliz?” E desviei o olhar para a janela atrás de . “Eu achei que era sobre isso. Não é?” E o olhei, incerta.

Pela primeira vez na vida, eu senti como se alguém estivesse me despindo apenas pelo olhar. O brilho escurecido nos olhos de era algo completamente inédito; situação que eu nunca vivi, nem com ninguém e, especialmente, com ele.
Na verdade, era a primeira vez que eu o via lançar aquele tipo de olhar para mim. E eu nem sabia se ele estava ciente do poder que aquele contato visual estava causando. Mas eu me sentia uma presa caída na armadilha, pronta para levar o bote.
Eu só não sabia dizer se era bom ou ruim.
Por fim, me soltou, encarou os próprios pés, e respirou fundo três vezes.
Num movimento rápido, puxou o celular do bolso, mexeu nele por alguns segundos e do nada, virou a tela para mim.
Ali, constava tudo o que eu gostaria de saber.
Havia uma ligação feita, há alguns dias, que durou cerca de dez minutos.
Entre ele e Lis.
Logo depois, uma mensagem de pairava na tela.

“Obrigado por entender, de verdade. Eu fiquei preocupado, mas agora que tá tudo certo, posso dormir tranquilo.” Ao que Lis respondeu prontamente.
“Relaxa, isso faz parte. Diz para ela que não há com o que se preocupar. O caminho do sucesso pode ser árduo, mas vocês vão se livrar da escola logo, e em grande estilo, hahaha! Caprichem, quero muitos aplausos! Xx”
“Isso é sobre…” Eu falei, depois de ler, mas apenas voltou o celular para si mesmo, deslizando o dedão rapidamente, e logo parou, me mostrando a tela de novo.
“E como estão os preparativos? Tudo pronto?”
“Temos alguns reparos finais, mas tudo encaminhado. Espero que dê tudo certo, porque não tô afim de fazer prova não…”
“Hahahaha, eu te entendo! E , tá mais tranquila?”
“Ela ainda tá muito sem graça. Toda vez pergunta se você está de acordo com isso.”
“Ah, ela é um amor, não é? Diz para ela ficar tranquila! Explicou que não precisava se preocupar?”
“Eu falo isso sempre, mas não acho que está surtindo efeito.”
“Bom, de toda forma a peça vai acontecer em breve, então ela não vai precisar mais encucar. Quando vocês voltarem, a gente conversa melhor e deixa ela mais tranquila, hehe. Ela vai ver a verdade com os próprios olhos e não vai precisar mais se preocupar.”
“É, espero. Preciso ir, vamos repassar a cena do jantar. Beijo!”
“Beijo, bonitão!”


Então, era isso.
Lis sabia. Lis estava de acordo. Lis estava de “boíssima”. E eu e tínhamos acabado de brigar, por isso e por palavras erradas nos momentos errados.
A compreensão de um distinguia da do outro, e eu intimamente me sentia confusa. Aliviada, um pouco culpada (será que eu tinha exagerado?), e mais do que tudo, arrependida por ter dito uma verdade e ter mentido sobre ela no segundo seguinte…
Sabendo que no outro dia, ela se tornaria verdade novamente.
Eu estava feliz pelo acordo porque eu te amo, . E eu pude provar de você de uma maneira nunca antes. E isso era como um prêmio de consolação, para que eu me lembrasse com carinho, depois que a gente tivesse toda nossa vida mudada por ter finalmente assumido meus sentimentos por e para você.
Eram frágeis e raros segundos de uma calmaria que não duraria.
Se eu e não nos falássemos depois do grande dia, eu não queria lembrar que passei a última noite brigando com ele por desentendimentos e palavras equivocadas. Eu queria… ser feliz.

“Obrigada.” Respondi sucinta, depois de pigarrear. guardou o celular vagarosamente, me olhando como se estivesse medindo meus atos.

Num movimento sutil, andei até ele e na maior cara lavada, me meti em meio aos seus braços, o apertando com força.

“Desculpa duvidar de você. Desculpa por ter entendido outra coisa. Eu não queria brigar, é que…”
“Eu sei. Você não precisa explicar. Eu entendi, e eu sei que sua reação não é gratuita. Faz parte e eu tenho a minha parcela nisso. Eu também me excedi. Mas a gente ainda está muito sensível sobre isso, não acha?” E seus braços me envolveram, bem de leve.
“É… O clima pesou.”

O silêncio ficou entre nós, mas continuamos abraçados.

“Contanto que a gente consiga melhorar 1% toda vez que o assunto surgir, eu não me importo de falar sobre nossos incômodos. Pelo menos a gente está tentando se entender ao invés de ir embora. E isso para mim é coisa pra caralho.”

Soltei o ar das narinas com uma força maior do que de costume, me sentindo muito contemplada por aquilo. Me aconcheguei mais nele, fechando os olhos com força e inalando seu cheiro, sentindo até seu batimento cardíaco.
Era quente e acolhedor.

“Também acho.” Respondi, depois de um tempo me acalmando.

Ficamos um tempo quietos, apenas com o barulho da chuva. O corpo de estava tenso, e pouco tempo depois de perceber isso, sua fala se fez presente.

“Está mais tranquila sobre o acordo agora?” A voz estava numa entonação mais leve e eu sorri sem graça, dando de ombros.
“É meio estranho, admito. Na verdade, não sei como você consegue lidar com isso tão bem. É invejável." Respondi e nos afastamos aos poucos. Eu voltei para janela, sendo acompanhada por ele, sentindo seus olhos sobre mim.
"Como assim?" Pelo canto do olhar, percebi que havia apoiado o queixo na mão. Eu cocei o canto da nuca, pensando no que responder.
"Eu e você somos amigos e estamos num acordo de ensaios para passar de ano letivo. Você consegue ser pontual sobre isso, parece ter bem resolvido dentro de você. Coisas distintas, sabe? Tipo, os beijos só sendo beijos, e o namoro ser algo à parte. Não parece se abalar nem se confundir com isso. Por mais que nós façamos algo que você e Lis também fazem, me parece que você consegue separar tudo com muita naturalidade, isso parece não te afetar. Muito profissional da sua parte, ator!" E o olhei com um meio sorriso.

Ele me encarou com a sobrancelha erguida e riu como se estivesse surpreso.

"Você tá me chamando de falso?”

Hã? Como assim?
Eu precisei de alguns segundos para entender que talvez tenha usado palavras ruins para expressar o que eu pensava. Não era para soar como uma ofensa!

“Não!” Eu ri junto com ele, e rolei os olhos. “É que…” Eu me perdi nas possíveis palavras a serem ditas e ele, com o semblante curioso, me interpelou.
“Um pouco sociopata?" Ele sugeriu, brincando de maneira ácida e eu me enrolei mais ainda para explicar.
“Não é isso! É…”
“Do jeito que você fala, faz parecer tudo tão... matemático. Calculista. Te ouvindo, parece que é como se eu fosse completamente frio e alheio sobre isso." Me olhou sério, e eu fiquei confusa.
"E não é?"
"Não!"

Nossos olhares ficaram presos, tentando entender o que estava acontecendo. foi o primeiro a quebrar o contato, dando um sorriso sem mostrar os dentes, de vez em quando mordiscando o canto dos lábios, e eu respirei fundo ao perceber que ele estava nervoso.
Que tipo de conversa perigosa estávamos tendo?

"É difícil para você? Manter o acordo?" Perguntei com calma, gesticulando com as mãos abertas.
"Não é sobre ser fácil ou difícil. Só não é tão frio como você coloca." Respondeu com as mãos agitadas e eu dei de ombros.
"Então é complicado? Me explique."

Seu olhar pairou sobre o meu, e ele respirou fundo, aparentando escolher as palavras com muito cuidado.

"O fato de não ser simples não quer dizer que existam questões sobre isso. Eu não tenho problemas em lidar com as coisas complexas, entende? Sim, eu tenho uma relação com a Lis, e sim, eu tenho um acordo com você. Mas eu não quero parecer um filho da puta traidor que está com duas pessoas ao mesmo tempo e só faz o que bem entende. Ao mesmo tempo, não sou um cara frio e insensível. As coisas não são assim, oito ou oitenta. Eu não... Eu não me sinto ator quando te beijo.”

O ar, naquele momento, parecia tão rarefeito quanto o meu controle sobre a situação. Aquelas palavras estavam me atravessando, uma de cada vez, e digeri-las levava um tempo considerável. Mas eu estava particularmente apegada à última frase, porque… Aquilo de alguma forma significava que não era encenação para ele. Ou não tanto quanto eu pensava ser.
Eu sei que, pra mim, definitivamente não era.

“Não?” Indaguei, num fio de voz. Ele olhou para o chão, expelindo o ar pelas narinas, negando com a cabeça.
“Não. Eu não dou… beijos técnicos, . Isso é um acordo, a gente se beija numa peça da escola. Tem contexto! Tudo bem, é um contrato, digamos assim? Mas também não é algo inabalável, não é como se eu fosse um garoto de dez anos que estivesse encostando os lábios no blindex do banheiro enquanto treina para seu primeiro beijo, sabe? Você é uma pessoa. Uma garota. Uma mulher, praticamente. Com rosto, corpo, movimento, falas, atitudes, belezas, e… merda, por que é tão difícil explicar?” Ele riu, visivelmente sem graça.
“Você está querendo dizer que eu não sou um blindex de banheiro?” Perguntei com um meio sorriso, e ele riu — dessa vez, genuinamente.
“Não, . Você não é um blindex de banheiro. Me desculpe, isso pareceu mais fácil do que realmente é.” E respirou fundo, passando as mãos pelo cabelo.
“Eu aposto que sim…” Comentei, me recuperando das risadas. Mas não tinha melhorado em nada em relação as mãos trêmulas, que eu estrategicamente tamborilava nas imediações da janela, fingindo não estar tão nervosa quanto realmente estava. Ele falou “belezas”, no plural. Minha mente não abandonava aquela palavra.
“Enfim. Acho que você entendeu o que eu quis dizer. Eu não sou uma placa de gelo, você não é qualquer coisa, e nunca, nunca vai ser. Mas o ponto é: eu entendo o contexto e separo bem as coisas. Lis está de boa com isso, eu também estou. Então que tal a gente simplesmente deixar essa merda para lá e relaxar? Esse acordo já vai ter acabado em menos de 24 horas e tudo voltará ao normal. Nossa amizade vai seguir, passaremos de ano e no fim... É o que importa, não é?"
Não. Porque tudo vai ter mudado completamente em menos de 24 horas, pensei. Respirei fundo, me sentindo incomodada com aquela fala.

“Você tem toda razão.” Falei sem mostrar os dentes, mas ainda sorrindo.
“Estranho é quando não tenho!” Ele quebrou o gelo com uma fala arrastada, ainda meio incerto, e eu rolei os olhos, rindo levemente.
“Dessa vez vou deixar passar. Babaca.” E passei meu braço pelos seus ombros, puxando-o para mim. “Eu também sou às vezes.”
“Às vezes?” Sua fala saiu abafada, por estar de cara com minha cabeça, a qual ele fazia questão de cheirar e se apoiar. Sua pequena piada me fez querer afastar, mas ele me prendeu. “Para de graça e me abraça direito, vai.”
“Não quero. Agora eu ‘tô bolada.”
“Por favor?” E beijou minha cabeça, me balançando levemente.
“O que eu ganho em troca?” Perguntei, erguendo a cabeça e apoiando o queixo em seu peito. Ele me olhou incrédulo e riu.
“Seu perdão está à venda?”
“Digamos que meu valor é alto.” Respondi com um meio sorriso e ele riu, negando com a cabeça.
“Prometo não pegar pesado com você.” Ele retrucou com uma cara nada boa e eu franzi o cenho.
“Em relação à?”
“À isto!” E começou a fazer cosquinhas, me fazendo tremular em seu enlace.
! Porra, seu idiota! Para!” Pedi, entre risadas, me desesperando porque ele não parecia reduzir em nada as cócegas.
“Diz que me perdoa!”
!” As risadas estavam gerando até lágrimas, e eu tentava sair, sem sucesso.
“Diz logo que eu paro!”
“Tá bem! Filho da puta, desgraçado, eu te perdoo!” Ele me soltou, rindo, e eu respirando fundo.
“Melhor assim, não é?” Ele indagou e eu dei o dedo do meio, arrancando mais risadas do safado. Sentei na cama, suspirando.
"E pelo visto, estamos realmente sem previsão da luz ou da chuva parar." Comentei qualquer coisa, uma vez que tivemos um sinal meio nítido de nervos à flor da pele, e eu não queria brigar com . Muito menos antes do grande dia. Era fato: aquele tipo de conversa exigia mais energia do que o comum.
"Pois é." respondeu, sentando-se na cama ao lado da minha, deixando as costas descansarem na parede, enquanto massageava o ombro.
"Está sentindo dor?" Perguntei, me aproximando, atenta.
"Um pouco. Acho que dormi de mal jeito e parece que essa parte toda está enrijecida." Ele indicou com o indicador, o local ao que se referia.
"Vem cá." Respondi ao caminhar em sua direção, e ele me olhou com uma feição esperançosa.
"Ah, não acredito! Você vai fazer isso por mim?"
"Anda logo, senão eu desisto." Falei meio emburrada, e ele se virou de costas, ajeitando a coluna, sorridente.
"Você é um anjo."
"Sou mesmo!" Concordei enquanto ria, e comecei a massagear o local, sentindo que estava de fato, tenso. Ele suspirou em alívio e eu percebi que conforme dedilhava seu ombro, seu corpo parecia relaxar debaixo de meus dedos.
"Caraca, . Tu já pensou em fazer um curso de massoterapia? Eu pago!"
"Sei!" Brinquei, subindo os dedos para o seu pescoço, e deixou a cabeça relaxar para trás.
"É sério! Contanto que eu seja sua cobaia." Ele disse com um sorriso genuíno, me olhando com um semblante infantil e eu rolei os olhos enquanto sorria.
"Vamos, joga a cabeça para frente, devagar." Indiquei com o manuseio das mãos, e ele me atendeu sem dizer nada, fechando os olhos e se deleitando com a massagem. Meus dedos pressionaram alguns pontos até alcançar sua nuca, e se fosse um gato, provavelmente o som que ele emitiu naquele instante seria qualificado como um ronronar.
"Está bom?"
"Uhum..." Ele respondeu, meio disperso. Senti que meu toque estava tendo muito atrito com sua pele, e busquei na mesa de cabeceira um creme de mãos que eu tinha, para ajudar na massagem.
O cheiro de frutas silvestres invadiu o local e se arrepiou quando a superfície gelada e cremosa do hidratante tocou sua epiderme.
"Cheiroso." Comentou num sussurro e, murmurando, concordei consigo.

Ficamos num silêncio agradável novamente, apenas com o barulho da chuva a ser ouvido. Enquanto me permitia massagear seu pescoço e ombros, me peguei desejando que a vida pudesse se resumir a um momento tão tranquilo e bom como aquele.
Meus dedões exploraram mais a pele de ao descer paralelo à coluna, e ele prontamente envergou a postura, para sentar-se ereto.

"Está destensionando?" Perguntei depois de um bom tempo, deixando as mãos trabalharem instintivamente.
"Sim. Pode parar se estiver cansada."
"Certo, vamos só alongar então. Gire a cabeça devagar, eu vou ajudar." E então, com cuidado, segurei sua nuca e fui guiando o movimento, sentindo pesar em minhas mãos. Girei para um lado, e depois para o outro, e por fim, descansei minhas palmas em seus ombros.
"Melhor?"

Sua cabeça encostou em minha barriga, e ele levantou apenas para me olhar com uma expressão relaxada.

"Sim, muito obrigado. Você é dez."
"Obrigado nada, cem pratas na minha mão agora!"
"Isso é tão errado, cobrar depois de já ter feito o serviço!"
"Mundo capitalista, bebê. Se acostume." E então, sentei ao seu lado, e assim ficamos de ombros colados, porém de lados opostos, de forma que meus pés alcançavam o chão, enquanto os dele se mantinham em cima da cama.

Ficamos nos olhando e bocejou discretamente, me fazendo encará-lo com pena.

"Por que não deita? Eu te acordo quando tudo passar." Sugeri, me levantando para que ele esticasse seu corpo.
"Isso parece tentador, por que não me faz um cafuné enquanto eu penso nessa proposta?" Respondeu já se esparramando na cama, e eu ri com a sua careta de bom samaritano.

Dando um tapinha no colchão, ele deu espaço o suficiente para que eu me sentasse e acariciasse sua cabeleira, deixando meus dedos se espalharem naquele mundaréu de fios. Seus olhos se fecharam num misto de alívio e prazer, e sorriu ao se aninhar para mais perto de mim.

"Caso eu durma, não pare."
"Ah, tá! E se eu me cansar e quiser dormir?"

Ele abriu um olho só e ergueu a sobrancelha, me encarando por dois segundos antes de agarrar meu braço e me puxar para si. Eu caí deitada ao seu lado, rindo de sua atitude.

"Agora se ajeita e continua com o cafuné, vai."
"Eu quero saber quando eu me tornei sua escrava, só eu estou fazendo as coisas aqui..." Ele abriu os dois olhos rapidamente e me mediu com uma feição divertida.
"Quer carinho também?" Eu sorri com sua pergunta e neguei rapidamente, penteando seus cabelos com meus dedos.
"Vai dormir. Descansa."

Antes de fechar os olhos por completo, ele beijou a palma da minha mão e se aninhou no travesseiro, se entregando ao sono que já o rondava.
Foi velando seu mundo onírico que também relaxei, deixando todos os pensamentos e preocupações de lado, me sentindo confortável como há muito tempo não ficava. Por fim, acabei adormecendo junto a , e uma parte de mim custou a acreditar que aquilo não se tratava de um sonho; era a mais pura realidade.


Capítulo 29 - So much love to save

A ponta do meu nariz estava gélida, mas meu corpo estava aquecido. Eu conseguia sentir um aperto em minha volta, e a luz que banhava meus olhos me deixava parcialmente cega. Então, quando me remexi para entender porque estava tão encolhida, a cena diante de mim fez com que toda memória fosse ativada em um segundo: eu e havíamos dormido numa cama só.
O aperto era o braço dele ao redor de minha cintura, e minhas costas estavam coladas ao seu peitoral, que subia e descia com uma respiração profunda e tranquila. A face dele estava tão diferente — ele parecia um anjo adormecido, sem traços de preocupação ou tensão no rosto. Parecia bastante relaxado.
Já eu, conforme compreendia a situação, me sentia mais encabulada e nervosa. A gente tinha dormido junto! Eu nunca tinha dividido cama assim com ele, não desse jeito. Não depois de descobrir meus sentimentos por ele.
E lá estava eu, bem plena e espremida com numa cama de solteiro, numa manhã tão bonita e ensolarada, como se não tivesse caído um dilúvio na noite anterior.
Apesar do bem estar que aquilo causava (dentre a vergonha, o nervosismo, a incredulidade, o frio na barriga e o medo de estar com mau hálito de manhã), algo foi mais forte do que tudo isso: a cãibra que começava a possuir meu braço.
Como um felino, fui aos poucos me levantando, até que consegui sentar na cama e respirar aliviada por não ter acordado-o. Sentindo meu membro formigar, massageei com a outra mão enquanto forçava movimentos para que aquela sensação passasse logo.
Assim que finalizei, relaxei meu pescoço, dedilhando meus ombros sabendo que eles estavam rígidos devido a posição que adormeci. Eu não estava reclamando, não me entenda mal, mas se eu pudesse escolher, não faríamos isso numa cama de solteiro.
Admito: eu era bem espaçosa.
Respirei fundo ao encarar a janela, sentindo a brisa entrar por ali, e meus pensamentos constataram que o grande dia havia chegado: não apenas o da peça, mas o dia em que eu me declararia de uma vez por todas para .
Em poucas horas, tudo estaria mudado.
Fiquei imersa, vendo o tempo passar pela janela, quando de repente senti uma mão me puxar de volta para a cama, e meu corpo automaticamente tombou na superfície.

“Ai!” Disse, num susto, e me abraçou por trás, descansando a ponta de seu nariz em meu cangote.
“Ainda não é hora de acordar.” Sua fala me fez ter um arrepio incontrolável, principalmente porque soou ali, na minha pele, numa entonação grave e rouca, típica de quem acabava de acordar.

Nem nos meus melhores sonhos eu seria capaz de reproduzir uma fantasia tão fidedigna quanto a realidade.

…” Falei, advertindo, e ele retrucou com um muxoxo, me apertando.
“Não.”
“Vamos, eu to com fome.” Respondi qualquer coisa, e ele riu.
“Novidade. Morra de fome.”
“Ei!” Me virei para ficar de cara com ele, e encontrei um sonolento e sorridente .
“Bom dia.” Ele disse com a voz arrastada, e eu sorri.
“Bom dia, dorminhoco. Acabou que a gente dormiu aqui…” Comentei sem graça, e ele continuou me olhando.
“Sim. Dormiu bem?”

Fiquei corada, mas respondi.

“Uhum. E você?”
“Benzão. Você é mó sonífero.” Eu ri daquilo, e me soltei de seu abraço.
“Vamos, eu preciso ver se a luz voltou e se vou ter direito a um banho quente.”
choramingou com a minha “partida”, mas se sentou na cama, esfregando a mão nos olhos. Adorável!
“E eu preciso carregar o celular…” Comentou, passando as mãos pelo rosto enquanto bocejava sem pudores.

Eu estava me permitindo gravar aqueles míseros momentos de tranquilidade antes do caos que nos precedia, quando de repente, a porta da cabana se abre com toda força, e por ela, uma ofegante acabava de entrar.

“Bom dia! Todo mundo vivo?” Com um sorriso beirando a psicopatia, ela colocou as mãos na cintura. “Trago boas notícias, meu povo! Habemus lux!” E num movimento rápido, alcançou o interruptor de luz, colocando mais claridade na cabana.
“Uau.” Falei com algum entusiasmo, espreguiçando a coluna e recebendo um olhar chateado de minha amiga.
“É sério que eu corri igual a um búfalo para avisar sobre isso e recebo em troca essa animação? Francamente!”
“Eu não me lembro de você ter tanta energia assim logo cedo de manhã.” comentou ao se levantar, depois de ajeitar a roupa e os cabelos.
“É porque não estamos acordando para estudar, e sim, para não precisar fazer prova! Esqueceu? Hoje é o grande dia! O graaaande dia!” Numa virada teatral, me olhou significativamente, e com os braços abertos, emendou sua fala. “Não é mesmo, ?”

Eu não acredito que ela estava realmente se referindo ao meu grande dia, bem na frente do .
A desgraçada era atrevida.

“Hum… é! Sim.” Respondi com um sorriso amarelo, e ela rolou os olhos.
“Você jura que é assim que a Aurélia vai convencer o Seixas a se casar com ela? Porra , anima!”
“Eu nem escovei meus dentes nem lavei minha cara. Você está exigindo muito de mim.” Respondi, coçando meu olho, quando surgiu na porta.
“De todos nós!” E encarou sua namorada com cara de poucos amigos. “Eu nem faço parte da escola e essa aqui já me delegou mil tarefas!”
“Não reclama que vai sobrar pra você, mocinho!” ameaçou falsamente, e deu um sorriso angelical. “Mas sim, a gente tem muita coisa para fazer e várias para adaptar. Apesar do tempo estar firme agora, parece que de noite ainda há chances de chover, e toda programação que faríamos ao ar livre, precisará ser remanejada para as áreas cobertas. Os professores já estão todos a vapor e particularmente estão me pressionando! Então nada mais justo do que eu dividir essa pressão com vocês, amigos do peito e irmãos camaradas!”

E novamente, um pulinho de entusiasmo surgiu dos pés dela.
Alguém tinha transado na noite anterior, não era possível.
Olhei de para e arqueei a sobrancelha para .

“Tá alegrinha ela, né?”

Meu melhor amigo riu, fazendo com que ficasse num misto de vergonha e irritação.

“Nada a ver, garota chata! Eu quero passar de ano, me erra!”
“Tá, tá, vamos logo então. Posso tomar um banho?”
“Tá fedendo tanto assim?” brincou e eu fiz cara enfezada.
“Um pouco, mas nada que não dê para contornar.” respondeu, me fazendo abrir a boca em choque, enquanto os três riam de mim.
“Como assim, cara?” perguntou, rindo.
“É, como assim?” perguntou com um sorrisinho e fez uma cara maléfica.
“Eu não cheiro mal!” Me defendi, o que só ajudou os três a rirem mais ainda.
“Você disfarça, mas tem um chulé muito expressivo. Essa carinha de princesa é só enganação.”
“Hahaha, por que você não vai a merda, ? E para de falar inverdades sobre a minha pessoa! Logo cedo de manhã tendo que lidar com atormentação, é dose.” Respondi fingindo estar brava, e separei minhas roupas, junto com a toalha. “Vamos logo que hoje o dia está cheio. E vocês ainda tem que arrumar as coisas da banda!”
“Vocês?” me questionou de braços cruzados.
“Eu por acaso toco na banda?” Imitei seu gesto, com um sorriso debochado.
“Se quer o título de fã número um, tem que saber montar o palco junto com a gente.” interviu, fazendo cara de marrento ao lado de . Olhei para que deu de ombros.
“Dá um jeito nesse teu homem aí, garota? Tá se achando o rei da pedra do rei!”
“Um dia você vai reconhecer meu poder, mulher. E então, tudo fará sentido na sua vida.” disse numa voz sombria, me fazendo rir de sua atuação forçada.
“Você como ator é um ótimo músico.” Comentei enquanto colocava o celular para carregar.
“Ei! Desde quando ficou tão cruel?”
“Desde que você e sua namorada vieram me acordar com algazarra na minha cabana!” Resmunguei, fechando a porta do meu armário.
“Nossa cabana!” interviu, de braços cruzados. “E não seja mal agradecida, ou era eu, ou era o professor de educação física!”

Fiz uma careta ao pensar na cena do professor entretanto na cabana e dando de cara comigo e com .
Olhei para meu melhor amigo, que parecia pensar a mesma coisa que eu, e juntos demos de ombros.

“Acho que ser grato faz parte da vida.” Ele falou numa entonação engraçada e eu ri, rolando os olhos.
“Certo, filhotes de cruz-credo! Vou me banhar, vejo vocês em breve.” E fui saindo da cabana, não sem antes ouvir uma gracinha do .
“Capricha nesse chulé aí!”
“Vai à merda, !” Respondi antes de fechar a porta.

***


Praticamente uma feira. Parecia que o mundo estava de cabeça para baixo e todos estavam super envolvidos em fazer com que voltasse para a posição certa. Eu não pensei que todos do acampamento estivessem tão animados com o evento — e algo me dizia que tinha a ver com o show da Mcfly, mas… Mesmo assim.
Seria uma baita correria.
Bom, organizar e adaptar o evento devido ao clima, atuar na peça e me despedir do acordo beijoqueiro entre eu e meu melhor amigo (por quem eu, só por acaso, sou apaixonada), ajudar os meninos no fim do evento com o show da McFly, e… me declarar para .
Ah, e arrumar as malas, porque iríamos embora no dia seguinte.
Estava tudo maravilhoso, só que não.
Então, era isso. Pessoas enlouquecidas correndo de um lado para o outro com roupas, figurinos, cartolinas, canetas piloto, mandando áudio no celular… Era quase um caos harmônico. Mas, passamos boa parte da manhã adaptando toda estrutura das apresentações, para que logo após o almoço, déssemos a largada para as mesmas.
E depois de almoçar igual a um leão que caçou a sua comida por três dias e três noites, eu finalmente estava ali no meio, já preparando o penteado e a maquiagem antiquada de Aurélia — e com sérias dúvidas dos meus dotes para isso.

!” chegou com tudo no camarim, animada que só. “O projeto do vai ser em vinte minutos, tá?”
“Porra, tá de sacanagem?” Eu me virei para ela, com metade do cabelo feito e na cara, apenas a base. “Não era mais tarde? Eu não vou conseguir ir, ainda estou organizando isso!” Olhei a hora no relógio e percebi que já tinha passado um bom tempo, e eu ainda estava na metade do caminho.
“Eita porra! Isso é um tutorial de maquiagem?” Ela perguntou ao se aproximar, vendo que eu estava acompanhando um vídeo no celular.
“Tive a mirabolante ideia de tentar fazer uma maquiagem mais antiga e tô levando uma surra! Acho que só vou conseguir fazer o cabelo!”
“Calma, calma. Vou te ajudar, me explica como você quer fazer isso, sim?”
“Eu acho que estou mais na fase de aceitar sugestões!” Eu ri em desespero e ela gargalhou alto, tirando o celular da minha mão e pausando o vídeo, para analisar a maquiagem.
“Hm, tá. É isso que você quer?”
“Eu achei que ficaria legal. O que você acha?”

respirou fundo e olhou para cima, numa nítida expressão de quem pensava.

“Vamos terminar esse cabelo enquanto eu penso melhor. Beleza?”
“Tá bem.” Fiz uma careta, já pensando que talvez meu senso estético era falho, pela forma que ela tinha respondido.

Um tempo depois, tinha feito uma transformação no meu visual que me deixou chocada com a imagem no espelho. Ela inovou a proposta que eu havia feito e a tornou melhor, com detalhes que destacavam mais a ideia que a peça queria passar.

“Uau! Essa sou eu mesmo?” Indaguei enquanto sorria para o meu reflexo.
“Sim, é você, cheia de pose, tal qual uma rainha!” Eu ri daquele comentário, virando meu rosto para o lado, reparando no sinal que ela colocou pouco acima dos meus lábios.
“Eu estou até com uma pinta!” Exclamei e riu, logo se interrompendo com uma questão pertinente.
“Aurélia tinha pinta?”
“Ah, agora tem! É uma releitura, não é? Então vou ficar assim. Adorei!”
“Por que choras, Marilyn Monroe?”

Nós duas rimos juntas, quando o celular de começou a tocar em alto e bom tom.

“Ai meu Deus, meu projeto!” Ela deu um pequeno gritinho, atendendo a ligação. “Oi, ! Sim, eu já sei, estou correndo para aí! Estava ajudando a , foi mal. Tá, chego em um minuto!”
“Vamos que ele deve estar uma fera.” Eu disse, guardando minhas coisas na mochila e me encaminhando para a saída junto com .
“Nem fala! Esse garoto estava enchendo o saco todos esses dias, parecia sonhar e acordar pensando nesse projeto!” Ela reclamou e eu soltei uma risadinha, achando graça.

Chegamos em cima do laço no auditório, onde todos estavam posicionados para subir e começar a apresentação; só faltava , que logo se apressou em subir no palco, com uma feição de desculpas na cara.

“Finalmente!” Ouvi dizer, com cara de poucos amigos. explicou rapidamente, apontando para mim, e o me olhou com a cara entediada. Eu só consegui sibilar um “foi mal!” e juntei minhas mãos, num pedido de desculpas silencioso.

A sorte é que o professor de educação física estava fazendo um discurso sobre o quanto estava satisfeito em ver o empenho de todos, elogiando as apresentações que aconteceram até então.

“Tivemos uma batalha incrível de xadrez, que unia estratégia e complexidade, uma apresentação de dança com malabarismos e uma leitura dramatizada sem igual retratando a importância do feminismo. Eu, como educador, estou muito orgulhoso de toda capacidade que vocês estão colocando em prática, pessoal. Não poderia estar mais feliz com toda dedicação e por último, mas não menos importante, gostaria de ressaltar que podemos ser muito bons sozinhos, mas a parceria pode ser triunfal! Vocês voam longe, então apenas continuem!”

A multidão aplaudiu com direito a assovios e pequenos gritos animados de incentivo, e o sorriso do professor poderia rasgar as bochechas, mas ele não deixaria de fazê-lo. Era legal acompanhar sua alegria e saber que de alguma forma, tanto ele quanto o resto dos professores descansariam hoje com a sensação de trabalho feito.
E só de pensar em como o dia acabaria, eu já ficava com borboletas no estômago, ansiedade batendo com força dentro de mim. Respirei fundo, tentando dar conta do nervosismo, quando o professor voltou a falar.

“Então, sem mais delongas, o projeto de um grupo que promete muita música e física! Recebam o FisicArte!”

Eu gargalhei alto com aquele nome, provavelmente inventado pelo , que subia as escadas com um semblante vitorioso, se sentindo o melhor ser humano da Terra com aquela empreitada.

“Boa tarde, meu povo! Eu me chamo , estes são , , e nosso parceiro convidado, . Nós estamos aqui para juntar um pouco de física e música, vocês estão a fim de ouvir um som maneiro?”

Um uníssono de “sim” veio da plateia, e eu sorri com orgulho do pessoal.
A apresentação, conforme esperava, foi um sucesso. começou a falar sobre algumas leis básicas, se revezando com , e logo passaram para a parte mais prática; pegou a guitarra e começou a explicar algumas coisas.

“Aqui, reparem bem. A corda está presa à ponte da guitarra, indo até a pestana, causando uma tensão no instrumento. Conforme a gente aperta ou afrouxa a tarracha, influenciamos na tensão da corda e, consequentemente no som dela. Reparem, por favor.”

Minha amiga tocou a última corda mais grave, e logo em seguida apertou um pouco a tarracha, fazendo com que intervisse.

“Quando ela aperta até certo ponto, essa corda já não está mais afinada em Mi. Ela já passa a estar mais aguda, ou seja, o grau dela sobe, indo para Fá, ou até mais, se continuar apertando.”
“E ela não quebra?” Uma aluna perguntou da plateia, tirando um sorriso do rosto de .
“Não exatamente: ela arrebenta, na verdade. A depender do quanto de tensão se coloque, ela pode sim arrebentar e causar uma baita chicotada se pegar na gente.”
“Então tocar guitarra pode ser perigoso?” Um garoto engraçadinho perguntou, arrancando risadas gerais. concordou com um aceno e uma cara animada.
“Qualquer coisa que envolva música pode ser incrivelmente perigoso!”
“Por que?” O cara indagou, confuso.
“Pode ser altamente viciante!” tirou a carta da manga, e a galera se uniu nas risadas, dando aplaudidas pela piada. Eu me uni a eles.
“Agora que explicamos algumas coisas, vocês gostariam de ver como funciona quando unimos os instrumentos numa harmonia bacana?” perguntou tal qual Silvio Santos em seu programa de televisão.
“E ter uma provinha do que vai rolar mais tarde?” emendou, causando um pequeno alvoroço na plateia.

piscou para todos, colocando a guitarra no descanso de chão, enquanto os membros da McFly se posicionaram em seus devidos lugares, conforme a função de cada um na banda. Uma vez prontos, o baterista contou quatro tempos nas baquetas e logo o local foi preenchido pelos acordes de “Crazy little thing called love”, do Queen.
Todos começaram a cantar conforme a letra, e eu juro que vi o professor de educação física e a Sra. Strauss dando sorrisinhos enquanto sincronizavam pequenos passos de dança.
Eu estava entretida observando como, por um mísero momento, tudo parecia exatamente como deveria ser: a McFly reunida, fazendo uma demonstração de seu talento (sendo amplamente recebida pela plateia) enquanto eu e todos os envolvidos conseguiam pontuação mínima para finalmente terminar o ensino médio, e seguir com nossas vidas para o que quer que viesse.
estava animadíssimo, pois felizmente seu projeto tinha dado certo e de quebra, ainda promoveu a amada banda. então, nem se fala: com as tretas resolvidas com e a expansão musical, poderia se unir ao amigo e arrebentar a cara de tanto sorrir; estaria feliz de toda forma.
Pela primeira vez em um bom tempo, carregava uma expressão mais animada, e apesar de nós termos questões ainda sensíveis entre nós, eu não conseguia sentir ódio dele. Era óbvio que não estávamos totalmente confortáveis ao dividir o mesmo ambiente, e ainda havia ressentimento o suficiente para que eu quisesse me manter distante. Entretanto, não lhe desejava mal, assim como não poderia negar que sua presença na banda preenchia o buraco que por tanto tempo se manteve exposto.
E tinha .
Meu melhor amigo, a pessoa que eu mais adorava ali no meio de todo mundo, sem dúvida. , que me tirava do sossego com suas conversas e atitudes tão intrigantes, que me fazia rir e me acolhia em momentos difíceis. Que me irritava e me fazia chorar, que se desculpava e vinha ao meu socorro. , a relação mais difícil que já tive, a falta dilacerante que senti nos últimos meses e que, de uma maneira muito louca, se tornou a presença mais forte nos últimos dias.
. O meu , o cara que eu era apaixonada, que topou um acordo de beijos em prol de uma peça e alguns pontos para passar de ano. , que não fazia ideia do quanto aquilo tudo significava para mim, que alimentava meus sentimentos com seus trejeitos, brincadeiras, interações íntimas de quem me conhece como a palma de sua mão. , que me beijou de diferentes formas nos últimos tempos — e todas elas me fizeram perder o fôlego, sonhar acordada, e usufruir do que eu jamais achei que conseguiria na vida.
, que era alguém tão importante para mim e que em algumas horas, seria o velho melhor amigo, voltando para a realidade cruel que o posicionava como namorado de Lis, enquanto eu estava ali, torcendo por sua felicidade — ao tempo que chorava a ausência da minha. Isso, na melhor das hipóteses, se mesmo depois de tudo ainda mantivéssemos a amizade.
Mas o que é que eu estava pensando? Não existia “meu ”. Nunca existiu, não do jeito que eu gostaria.
Só de pensar naquilo, o aperto no peito era instantâneo. Eu fechei meus olhos de maneira apertada, sentindo o peso de todas as reflexões, conversas e conclusões que eu já havia chegado sobre aquele assunto. Estava demais para não transbordar, e, felizmente ou não, eu sabia que aquele dia poderia terminar de uma forma muito ruim. Mas pelo menos tinha uma pequena faísca de satisfação ao perceber que eu não estava amarelando, mesmo diante daquela constatação.
A realidade, aquela que vinha com o punho fechado na direção do meu rosto, estava prestes a me atingir. E eu não estava dando nenhum passo para trás — eu a encararia como uma velha amiga, me agarrando nas certezas de que fui fiel ao que eu combinei comigo mesma. Do chão não passaria, algum dia aquilo tudo mudaria. E eu mudaria também.
Afinal de contas, eu era alguém digna de amar e ser amada, não? Eu poderia viver a alegria que buscava, sendo com ou não.
Eu só não queria que fosse com outra pessoa.
Tão simples, mas tão cruel.
Aquele pensamento me fez abrir os olhos, bem abertos. Deixei meu olhar vagar no palco, e curiosamente, virou a cabeça na minha direção, fazendo nosso contato visual acontecer. Simples, costumeiro. Cheio de vida, de reconhecimento, e de uma sensação gostosa de pertencimento. Aquele acolhimento que chega a aquecer a alma, sabe? Lá estava o calor que emanava, toda vez que eu tomava consciência da dimensão de nossa ligação.
sorriu, lindo demais para o seu próprio bem. Fez uma gracinha com o instrumento, fazendo uma dança engraçada e eu ri daquilo, gravando aquela cena com o maior carinho do mundo.
O que quer que acontecesse depois daquela noite, eu gostaria de manter aquela memória dentro de mim. Tudo que vivi naquele acampamento foi real.
Tudo com foi real.
E talvez, só talvez, aquilo bastasse para eu acreditar que o amanhã não seria tão ruim assim.
A singela degustação apresentada pelos meninos acabou com muitos aplausos. Todos estavam visivelmente animados para o show de mais tarde, e eu fiquei feliz com aquele fato. agradeceu por todos, e junto com os meninos, começou a movimentar os instrumentos, de forma a dar espaço para a peça acontecer.
Como roadie costumeira que era, me posicionei rapidamente para ajudar os meninos.

“Que projeto maravilhoso! Quero autógrafo!” Cheguei de braços abertos para o , que me agarrou e girou no ar, feliz da vida.
“Você viu como eles ficaram animados? Cara, vai ser muito foda esse show!”
“Vocês merecem, de verdade. Foi uma apresentação muito maneira, com certeza geral passou de ano!” Comentei, depois que ele me colocou no chão. logo chegou, me abraçando de lado.
“Fala sério, não teria sido a mesma coisa sem mim, né?”
“Você pouco se acha, né ? , dá um jeito nesse ego aqui!” Brinquei e todos riram com a piada. deu de ombros, chegando perto do namorado.
“Desculpa amiga, mas eu não posso discordar dele!”

Um monte de vaias surgiu me zoando, e eu só ri ao rolar os olhos. Até estava na zoação, e apesar de achar inusitado, aquilo não era necessariamente ruim; felizmente as coisas pareciam se encaixar aos poucos. Decidi respirar fundo e acenar em sua direção.

“Parabéns pelo projeto. Vocês arrasaram.”

colocou as mãos no bolso da calça, visivelmente sem graça, e sorriu sem mostrar os dentes, agradecendo com o mesmo movimento que eu dei.

“Obrigado. Já está se aprontando para a peça?” E apontou para o meu cabelo. Dei um sorriso amarelo, porque tinha me esquecido daquele detalhe.
“Uh, ela já está no clima da Aurélia!” zoou e acrescentou.
“Tá até de pintinha!”

Todos gargalharam, e eu olhei para , que se aproximava enquanto enrolava um cabo com maestria.

“Vocês querem fazer o favor de parar de tirar sarro da minha esposa?” E arqueou uma sobrancelha, já entrando na atmosfera teatral. riu mais ainda, bagunçando seu cabelo.
“Ih, qual foi Seixas! Não vem com essa de super proteção não!”
“É, Aurélia nem precisa disso!” defendeu risonha e deu de ombros.
“Eu sei, sou o maior cuzão sortudo.” E envolveu meus ombros com seu braço direito, me deixando à vontade para fazer o mesmo com sua cintura.
“É isso que você vai dizer na peça?” questionou, surpreso.
“Só saberá se assistir.” Respondi de maneira malandra, e a galera riu novamente.
“Atenção pessoal do teatro! Temos meia hora para organizar tudo!” A professora Strauss disse em voz alta, fazendo com que a gente se desgrudasse.
“Precisamos ir!” Eu falei rápido, pegando e pelas mãos. “Nos desejem sorte!”
“Quebre a perna!” gritou, seguido por .
“Merda para vocês!”
“Boa sorte.” disse numa entonação baixa, e eu lhe lancei um olhar de agradecimento antes de sair do recinto, indo em direção ao camarote.
“Ok, por que eu estou indo mesmo?” me perguntou do nada, e eu a olhei com uma feição óbvia.
“Você vai me ajudar a vestir aquelas roupas! Tá doida?”
“Ah, é verdade! É difícil fazer isso sozinha.”
“Ainda bem que eu não passo por esse problema…” comentou enquanto chegávamos no camarim, e tudo já estava um tremendo caos atrás das cortinas. “Bom, vejo vocês em breve.” E, num movimento rápido, ele pegou minha mão gentilmente e beijou as costas dela, num ato romântico e galanteador. “Minha senhora.”

Com um sorrisinho sacana, ele debandou para se transformar no Seixas, e sumiu na multidão.
Eu fiquei com a mão erguida no ar, encarando suas costas, enquanto ria da situação.

“Na boa, vocês são muito fofinhos. E um tanto pombinhos. Eu acho que já tá na hora dele assumir que esse namoro com a Lis é fachada e se declarar para você.”

Eu esbugalhei meus olhos em sua direção, chocada com a facilidade que ela usou para dizer aquelas coisas.

“Caralho, ! Sério? Assim, ao vivaço?”

Ela rolou os olhos e riu, me empurrando pelos ombros e nos levando para o canto onde meu figurino estava separado por cabides, separados em araras.

“Ninguém aqui está torcendo para o fim de relacionamentos, certo? Eu só acho que esse namoro não é tão namoro assim.”
“É sim. Ele só é… estranho. Desapegado.” Eu disse baixo, reflexiva.
“Bota desapegado nisso!” comentou com os olhos abertos, como quem não acredita muito. Bom, talvez eu também tivesse minhas dúvidas, mas não achava que o namoro era de fachada.
“Ah, não sei. Pelas mensagens que li entre e Lis, tem uma coisa sim. Uma parceria, não sei. Eles parecem bem tranquilos.”
“Tranquilos até demais, né?” Ela sugeriu, pegando o vestido e o espartilho, encarando as peças. Segundos depois, franziu o cenho e me olhou, confusa. “Espera aí, como assim ‘pelas mensagens que li’? Você invadiu o celular dele?”
“O quê? Não! Ele me mostrou!” Respondi rápido, cruzando os braços.
“Quando?”
“Ontem, ué. Na cabana.”
“E quando você me contaria isso? Porra, francamente!” Ela fez uma cara desconfiada, me puxando para o banheiro, no qual entramos e nos trancamos. “E qual era exatamente o contexto? Ele simplesmente mostrou do nada?”

Eu comecei a me despir, pensando em sua pergunta.

“Não, a gente meio que discutiu, na verdade...”
“Novidade…” Ela sussurrou e eu dei o dedo do meio.
“Você pode me culpar? Quer dizer, beleza: a gente já discutiu várias vezes sobre isso, mas não engoli essa da Lis estar de boa.”
“Não a ponto de apenas a palavra de bastar, né?” completou, ponderando a questão. Eu suspirei alto, dando de ombros.
“Cara, fiquei com aquilo na cabeça. Eu sei que tudo já tinha sido dito, mas não me senti bem com aquilo. Estava me soando estranho, sabe? E enfim, você sabe como fico quando não tô legal. Então obviamente discutimos e decidiu mostrar as mensagens que trocava com ela. De certa forma, a prova que eu queria estava lá.”
“E o que exatamente estava lá?” perguntou com os olhos saindo dos globos oculares.
“Eles conversando, ela perguntando se eu estava mais calma, porque ele disse que eu ainda não acreditava nele.” Guardei as minhas roupas e me posicionei diante de , que começou a me ajudar, amarrando o espartilho e automaticamente me deixando sem ar. No reflexo do espelho, meus peitos saltaram no decote, e eu movi meus lábios para baixo, num sinal de aprovação.
“Hm…” Ela resmungou, ajeitando os laços e a direção do espartilho, conferindo no espelho. “E ela estava de boa?”
"Ela estava super de boa, !”
“O que eles falaram, de fato?” terminou com os laços, indo buscar a anágua.

Eu fechei os olhos, tentando lembrar das palavras.

“Ele disse que não estava surtindo muito efeito me dizer que não tinha problema… Ela disse que eu era uma fofa e se dispôs a conversar pessoalmente caso eu…” E então, eu abri os olhos, lembrando de uma coisa em particular.
“Caso você?” me olhou curiosa, colocando a anágua em mim, enquanto eu erguia meus braços inconscientemente.
“Ela disse uma coisa diferente.” Respondi com o cenho franzido.
“Diferente como?” parou o que estava fazendo, ao perceber que a entonação da minha frase tinha mudado.
“Lis disse que quando visse a verdade com meus próprios olhos, eu ficaria tranquila e não precisaria mais me preocupar…” Me virei para , quase totalmente vestida, e a encarei perdida. “O que isso quer dizer?”

Minha amiga fez uma careta, como se não entendesse também.

“Ver a verdade? Mas como ass… Oh meu Deus!” Ela colocou a mão na boca, deixando o vestido cair e me encarando com uma expressão alucinada. “ do céu!”
“O que é?” Eu perguntei, aflita.
“Caralho! Só pode ser isso! É óbvio!” Ela falou mais para si, gesticulando enquanto ria sozinha.
“O que é, ! Me fala!” Pedi, ou melhor, implorei, segurando em seus ombros.
“Cara, e se eles têm um relacionamento aberto?” Ela me olhou com a maior cara de eureca, e eu deixei meu queixo cair.
“Puta merda.” Só consegui sussurrar isso, deixando um mundo de pensamentos passar pelo meu cérebro. “Será?”
“Cara, só pode ser! Pensa comigo: ele sempre disse que não tinha problema. Ela também estava super de boa… Não é traição! E eles ainda estão juntos, então… É um namoro aberto!”

Caralho. tinha razão.
Aquilo era totalmente possível.

“Meu Deus. Meu Deus! Como eu não pensei nisso antes?” Indaguei e riu, segurando sua cabeça num ato doido.
“Cara, eu também não pensei! Será que a gente é muito quadradona?” Eu ri, dando de ombros.
“Porra, talvez sim. A gente nem considerou isso!”
“Gente… Que antiquadas que somos!”

Nós duas rimos, mas eu ainda fiquei meio surpresa com aquela informação. Tudo bem que não sabíamos se era verdade, mas eu estava considerando como tal. E me pareceu meio estranho, não pela relação em si, mas por não lembrar de estar num namoro aberto antes. Quer dizer, ele também nunca teve um namoro de verdade, se é que eu poderia dizer algo do tipo. Resumindo: suas relações eram mais de ficante do que qualquer coisa. Durava algum tempo e depois, partia-se para uma próxima.
E então, veio Lis. E com ela, um namoro. Um namoro muito estranho na sua forma de conceber, um tanto desprendido.
Ou talvez estranho fosse eu considerar que para namorar, apenas um relacionamento fechado e alucinadamente apaixonado era válido. As coisas não necessariamente precisavam corresponder a um padrão amoroso para ser… amor.
E então, por mais que vivêssemos em uma época bem mais desconstruída em relação a isso, a minha cabeça considerou automatica e inconscientemente que e Lis possuíam um relacionamento fechado. Talvez por isso eu estivesse estranhando aquele “desprendimento” todo, quando na verdade, se o casal tivesse um namoro aberto, com todas suas regras e acordos, significava também que certas preocupações não eram necessárias… Tipo, uma traição.
Na minha pouca experiência amorosa, o mais próximo que tive de namoro foi com . E foi bem problemático quando percebemos que não queríamos a mesma coisa; queria um relacionamento (muito provavelmente fechado), e eu, por não me ver num namoro com ele, não aceitei. Até porque, era aquilo: considerava namoro um relacionamento fechado onde os dois se gostassem, reciprocamente. E como aquela não era a minha realidade com , nossas expectativas não estavam alinhadas, o que causou todo auê e então, o término.

“No que está pensando?” perguntou, colocando as mãos na cintura, enquanto sorria como uma cúmplice.
“Que jamais aceitaria um namoro aberto.” Falei de uma só vez, tirando risadas de .
“É, bem provável que não.” Ela comentou, pegando o vestido do chão e o limpando, erguendo-o logo em seguida para passar pela minha cabeça.
“Eu ainda estou tentando realizar na minha cabeça que isso pode ser verdade, sabe? Sobre e Lis.” balançou a cabeça, contemplando minhas dúvidas.
“É, a gente não sabe se é isso mesmo, mas… Faria sentido se fosse. E como você se sente sobre isso?”
“Ah, sei lá. Não sei exatamente o que pensar. Eu nunca pensei ou considerei esse tipo de esquema com , sabe? Tipo, ele num relacionamento aberto nunca foi algo que pensei. Na real, ele namorando… Nunca foi algo concreto.”
“Uou. Nosso pequeno/grande moleque piranha.” Eu gargalhei alto, passando minhas mãos pelos braços do vestido.
“Não exatamente, mas ele… Bem, ele sempre focou na música, nos amigos. Esse lado amoroso nunca foi o forte dele. Sempre ficava com alguém aqui e ali, mas nunca pareceu se apaixonar de verdade. Acho que quando ele tentou, a garota acabou ficando com outro cara, então deu merda.”
“E ele nunca mais tentou?” perguntou ao se abaixar, e ajudar a arrumar as saias.
“Não até se assumir com a Lis.”
“Que venhamos e convenhamos, foi muito esquisito, né? Porra, do nada!” exclamou e eu prendi uma risada, dando de ombros.
“É, bem. Acontece.”
“Amiga, não assim. Um dia eles beberam, se pegaram no primeiro show da McFly e logo mais estavam namorando? Pô, eles eram amigos, colegas, vizinhos há anos, e simplesmente rolou?”
“Vai dizer que não é possível? Eu e não foi muito diferente.” Eu retruquei, cruzando os braços e ela fez uma careta como quem não concorda.
“Nah, você e o foram outro caso. Ele já chegou gamadão, investiu forte, descobriu seu segredo, propôs uma parada arriscada, até rendeu uns frutos, mas fez merda quando não aguentou ver você e retomando a amizade. Mas, a química entre vocês é inegável.”
“Entre eu e ?” Arqueei uma sobrancelha, curiosa.
“Sim. Bom, entre você e também. Mas é um negócio diferente. e você parecem amantes que se encaixam e pá, aquela coisa de euforia adolescente. Mas você e são outro nível… É tipo, amor da vida mesmo! Aquela coisa de um passar mal e o outro sentir. Um dizer o que o outro está pensando, ou um começar a frase e o outro terminar. É bizarro.”

Eu suspirei, concordando silenciosamente.

“Talvez isso se deva por sermos muito amigos… Melhores amigos, na verdade.”
“Que querem se amar nus… Ops! Eu falei ou pensei isso?” colocou a mão na boca, como se estivesse falsamente chocada, e eu ri, dando um tapa em seu ombro.
“Para de falar merda, cara!”
“Ok. Só você quer então.” Eu ri e dei o dedo do meio.
“Filha da puta.”
“Tô mentindo, por acaso?”
“E eu te chamei de mentirosa?”

Nós duas caímos na gargalhada, até a barriga começar a doer.

“Deus sabe como seria difícil sem você, . Obrigada por estar aqui.” Falei com carinho, segurando-a num abraço forte, que foi amplamente retribuído.
“Você sabe que não tem tempo ruim para nós, amiga. Estou com você e não abro mão!”
“A recíproca é totalmente verdadeira, .”

Saímos do abraço, nos encarando com aquela atmosfera fraternal pairando entre nós.

“Então, vai contar hoje?”
“Sim.” Respondi numa só tacada. sorriu, ajeitando um fio de cabelo meu.
“Você sabe que tenho muito orgulho de você, não é?” Eu acenei positivamente.
“Eu só consigo porque tenho pessoas como você. Falo sério quando digo que não seria nada fácil se você não existisse.” mordeu os lábios, sentindo-se emotiva com aquela declaração amorosa.
“Ah, … Eu só quero que você seja feliz. De verdade. Eu tô torcendo por você, e independentemente do que aconteça hoje, amanhã a gente vai estar juntas e será um novo dia! Você não estará só.”
“Eu sei, e é isso que me conforta diante de tudo. Real oficial!” Disse, sentindo o coração aquecido. Ficamos nos encarando, como se pensássemos a mesma coisa: o futuro. A expectativa era grande.
“Cinco minutos!” Uma menina da produção bateu na porta, avisando que nós precisávamos nos posicionar. Eu corri para colocar os sapatos, e colocar os adereços que imitavam as joias antigas. Demos uma última olhada no espelho, e ali, eu encarava Aurélia.
“Como estamos?” Perguntei, incerta.
“Você está perfeita. Vai arrasar!” segurou em meus ombros enquanto posava para a foto que tirou diante do espelho. Sorrimos, felizes, sem saber o que poderia acontecer no dia seguinte.

Mas, de alguma forma engraçada, eu não estava tão preocupada naquele momento. A amizade era algo terrivelmente responsável por aquela sensação — que muito provavelmente passaria no momento em que eu confrontasse com meus sentimentos. Mas, naqueles minutos, naquele singelo momento, eu estava bem e em paz com a minha decisão.
E era tudo o que importava.


Capítulo 30 - And that’s the truth

Minutos mais tarde, todos se reuniram para ouvir as palavras de apoio da professora Strauss. se despediu com um abraço e foi para a plateia, junto do resto do pessoal. Eu estava pronta, posicionada na pequena roda que aos poucos se enchia, enquanto o resto da equipe terminava de chegar. Foi num piscar de olhos que reparei a figura de um homem imponente vindo em minha direção.
A cada passo dado, se aproximava totalmente caracterizado de Seixas, e eu tive sérios problemas para conseguir tirar os olhos dele. Falhei fatalmente quando seu perfume alcançou minhas narinas, e eu respirei fundo, com um sorriso admirador.
Eu provavelmente aparentava estar um tanto apaixonada, e quem quer que me dissesse isso, não poderia estar mais certo. Eu não tinha a mínima condição de negar meu estado, pois tamanha era a beleza de dentro das vestes e daquela postura. Seu cabelo devidamente penteado conforme a época me levava para um outro mundo, no qual apenas nós existíamos — e aquilo soava como um sonho bom, no mínimo. Com um sorriso esplêndido, ele fez uma reverência diante de mim, e eu retribuí tal qual o costume do contexto histórico, já entrando no clima do século XIX.
me olhou como quem aprecia uma obra de arte e seu sorriso se alargou.

“Você está divina, Aurélia Camargo.” Eu sorri, deixando a cabeça tombar para frente, num gesto singular de gratidão.
“Eu não poderia dizer o contrário de ti, Fernando Seixas. Estou pensando em aumentar os dotes, inclusive.” Ele rolou os olhos e percebi a pequena mordida que deu no canto do lábio inferior — estava com vergonha.
“Eu não consegui dizer antes, mas a maquiagem ficou ótima. E agora, com todo o resto, você está…” E ficou sem palavras, gesticulando em minha direção, ficando risonho.
“Eu vou tomar isso como elogio.” Respondi, sendo a minha vez de sentir vergonha.
“Ah, por favor. Não tem outra opção. Se existir qualquer versão de Aurélia além da sua, eu tenho pena. Nem chega aos pés.”

Eu ri infantilmente, a ponto de sair a risada de porquinho, o que fez gargalhar, porque ele sabia que eu estava sem graça. Acabei dando uma “ombrada” nele, sentindo as borboletas virarem pássaros dentro do meu estômago.

“Pára de graça, !”
“Eu ‘tô falando sério!” Ele retrucou, me dando uma pequena “ombrada”, e eu o abracei, espalmando minhas mãos em suas costas enquanto escondia meu rosto em seu peito.
“Obrigada. Você também está um pitel.”
“Essa gíria ainda não existe no nosso tempo, Aurélia.” Dei um soquinho, saindo do abraço enquanto a professora Strauss pedia um momento de silêncio para falar, depois que todos finalmente estavam presentes.
“Pessoal, eu não consigo expressar o quão feliz estou por vocês. Estão todos de parabéns por tudo, desde o grampo no cabelo, até a feitura dessa peça. Em pouco tempo, vocês fizeram um lindo trabalho em equipe, e eu estou particularmente emocionada com o resultado, ou seja; não tenho dúvidas de que o público lá fora sentirá o mesmo que eu! Será um sucesso total, na verdade, já é! Então, só posso agradecer por toda dedicação e alegria que vocês estão proporcionando. Estou profundamente orgulhosa por cada um de vocês terem assumido uma responsabilidade e dar vida a algo tão incrível! E a mensagem que deixo para vocês é essa: acreditem em seus potenciais, esse é só o começo de suas vidas. Já são muito vencedores por tudo que alcançaram, e alcançarão ainda mais, eu tenho certeza! Merda para todos nós!”
“Merda!” Alguém puxou o coro e todo o resto foi junto, e tal qual uma criança, achei muita graça em ouvir a professora falar palavrão — mais ainda em proferir o mesmo perto dela.
“E então… Pronta?” me perguntou, enquanto todos se posicionavam no palco.

Eu olhei bem dentro dos seus olhos, guardando cada detalhe de seu rosto, gravando-o na memória.

“Pronta.” Respondi com um sorriso.

***


As luzes se acenderam bem acima de nossas cabeças. O palco estava apenas preenchido com a nossa presença. Todas as falas que vínhamos gravando diariamente estavam ali, na ponta de nossas línguas, esperando o momento certo para agirem.
O nervosismo deixava as palmas das minhas mãos suadas, mas eu estava decidida a continuar, mesmo com toda a insegurança me assolando a cada minuto. Entretanto, como uma onda que alcança a areia, pouco a pouco esse sentimento cedeu diante do bem estar, principalmente quando constatei que tudo estava caminhando conforme planejado.
Curiosamente percebi uma estratégia que estava fazendo inconscientemente; se o medo de errar gritasse muito alto dentro de mim, eu buscava em a força para continuar. E, só de olhá-lo, vendo-o executar o papel ao qual se comprometeu com verdadeiro afinco, eu me sentia mais tranquila. Ele estava completamente mergulhado naquilo, como se durante aquele momento, ele realmente fosse Seixas, um cara branco e pobre, desempregado, se submetendo ao casamento por causa da situação financeira em que se encontrava, arcando com as consequências de suas atitudes do passado em nome de apreço e estabilidade social.
E, acima de qualquer coisa, ainda que suas atitudes fossem inegavelmente questionáveis, seus sentimentos por Aurélia estavam ali, eram reais. Escondido por camadas e camadas de insegurança, de receios em não trazer honra para sua família, dependendo de status, no qual a vida pública se confundia facilmente com a vida privada, como se as duas fossem uma coisa só. Infelizmente, o valor do amor não era o suficiente para garantir o necessário para viver em sua condição.
E Aurélia, em toda sua irreverência, vestida com a mais desafiadora inteligência, havia fisgado o homem que amava pelo bolso, e o fizera pagar pelos pecados cometidos em outrora, a fim de lhe mostrar que nem só de dotes se vive uma vida.
Pelo menos, não uma que valesse a pena.
A peça aconteceu rápido demais. Os olhares na plateia eram meros espectadores, escondidos pela escuridão que os encobria, haja vista que o foco luminoso estava apenas no palco, com pequenos pontos de luz no local destinado ao público. Não era possível distinguir ninguém; todos pareciam como silenciosas corujas que descansavam sobre os galhos de árvores seculares. Era engraçado pensar daquele jeito, mas mais curioso ainda era pensar a semelhança de tal comparação.
No tocante à peça, tudo já se encaminhava para o fim. Aurélia já havia desmaiado, o casal já havia brigado, Seixas passou por inúmeras provas, e a própria Aurélia sentia-se tentada a ceder a todas as situações que ela mesma havia proposto, querendo abrir mão daquilo tudo e se entregar ao amor.
Finalmente, o último ato estava diante de nós, o que acelerava consideravelmente o meu coração; era a cena final, o beijo entre Aurélia e Seixas. Ironicamente, aquele beijo na vida do casal significava o início de muita coisa, mas no meu caso, poderia ser o último beijo que eu compartilharia com . Aquele contato tão íntimo, vestido pela máscara de um acordo em prol do teatro, soava agora como tudo ao que me mantive agarrada nos últimos dias.
E era hora de deixar ir, porque logo depois disso, eu iria me declarar para .
Como se a natureza estivesse esperando por aquele momento, a luz de um raio rasgou o céu quando o pensamento ultrapassou minha mente, trazendo seu som arrebatador segundos depois e deixando as luzes piscarem instáveis.
havia acabado de fazer uma fala quando isso aconteceu, e me olhou alarmado, sem saber o que fazer. Quando a iluminação voltou ao normal, eu respirei fundo e dei um breve sorriso, voltando ao semblante de Aurélia e continuando a cena.

“Desde que uma cousa se tem de fazer, o melhor é que se faça logo e sem evasivas.” Disse com a voz impostada, trazendo as sensações da personagem para mim, enquanto me mantinha de pé, no meio do palco.

Ela estava prestes a desfazer todo acordo, prestes a dizer toda a verdade para Seixas, e eu me senti tão identificada com seus sentimentos que foi difícil diferenciar o que era Aurélia, e o que era .

“Neste caso receba as minhas despedidas.” se levantou da cadeira ficando de pé de forma imponente, bem próximo a mim.

Eu respirei fundo, percebendo a fragância de dançar no ar. Umedeci meus lábios e engoli a seco, sem me deixar perder nas sensações e desviar do foco.

“Adeus, senhora. Acredite...” Ele continuou, decisivo, passando por mim. Conforme o ensaiado, eu me virei gesticulando e falando como uma rainha.
“Sem cumprimentos! Que poderíamos dizer um ao outro que já não fosse pensado por ambos?” Eu ergui o queixo e o olhei com soberba, ao passo que sua feição se consternou, conformada.
“Tem razão.” Ele respondeu, se virando para mim e deu um passo para trás, fazendo uma cortesia exagerada que foi retribuída por Aurélia. Estava prestes a ir embora, quando bradei.
“Um instante!” Falei ao erguer meu dedo indicador em riste. se virou novamente, com a cara confusa.
“Chamou-me?”

Ficamos nos encarando por um tempo, e eu poderia jurar que meu olhar dizia clara e nitidamente todos os sentimentos que me atravessavam no momento. Enquanto pensava nisso, me sentia navegando no mar dos olhos de , totalmente à deriva da ansiedade pelo que aconteceria dali em diante.

“Senhora?” improvisou, me olhando com mais cuidado, e seu olhar preocupado me perguntava silenciosamente se estava tudo bem. Eu estava no meio de um fogo cruzado, entre falas memorizadas e tudo o que estava prestes a acontecer, mas precisava que aquela peça terminasse bem.

Então, num impulso, recompus a postura de Aurélia e dei um passo em sua direção, ficando bem próxima de seu corpo, a poucos centímetros de distância.

“O passado está extinto. Estes onze meses, não fomos nós que os vivemos, mas aqueles que se acabam de separar, e para sempre. Não sou mais sua mulher; o senhor já não é meu marido. Somos dois estranhos. Não é verdade?” Indaguei com a entonação digna de Aurélia Camargo. encarnando Seixas, concordou com a cabeça. Segurei em suas mãos e fui de joelhos ao chão, sentindo as pernas trêmulas — não pelo ato, mas pela inevitabilidade que se aproximava a cada segundo.
“Pois bem, agora ajoelho-me eu a teus pés, Fernando, e suplico-te que aceites meu amor!” Respirei fundo, sentindo um nó na garganta embargar a minha voz.
“Au…rélia?” perguntou, ajoelhando-se também, fugindo do roteiro como eu fazia; nem os olhos marejados, nem o ajoelhar de Seixas estavam no script. Mas lá estávamos nós, num misto de ficção e realidade, e as palavras que traduziam meus sentimentos eram ditas do fundo do meu coração, adicionando mais emoção à cena.

Encarando com toda intensidade que aquele sentimento me trazia, eu continuei:

“Este amor!” Exclamei, deixando uma lágrima descer. “Este amor que nunca deixou de ser teu, ainda quando mais cruelmente ofendia-te. Aquela que te humilhou, aqui a tens abatida, no mesmo lugar onde ultrajou-te, nas iras de sua paixão.” Outra lágrima desceu, e a voz novamente tremeu, quase falhando na última palavra. “Aqui a tens implorando seu perdão e feliz porque te adora, como o senhor de sua… de sua alma.”

A minha fala havia terminado ao tempo que respirava como se estivesse correndo a meia maratona. estava visivelmente preocupado, um tanto confuso, tornando tudo mais real do que já era. Seu pomo-de-adão subiu e desceu, e ele demorou alguns segundos para se recompor e lembrar da fala. Sua postura enrijeceu e, com determinação, mudou sua feição para uma nitidamente indignada, retornando ao Seixas.

“Não, Aurélia! Tua riqueza separou-nos para sempre!” Sua voz ressoou pelo recinto, e aquela era a deixa para puxar o envelope de papel que estava logo acima do tapete do palco, de onde o puxei letárgicamente, e o entreguei nas mãos de .

O papel tremia tanto quanto meu interior, e não deixava de me encarar com um sincero rastro de preocupação.
Então, bancando o confuso, pigarreou e tomou o papel para si, me olhando como Seixas novamente.

“O que é isto, Aurélia?” Ele perguntava enquanto abria o documento de forma delicada. Respirei fundo, feliz que finalmente havia ao menos uma fala que não se encaixava no meu contexto.
“Meu testamento. Escrevi na noite de nosso casamento. Pensei que naquele dia morreria...” E sorri de forma triste, olhando para o pedaço de papel.
“Aqui diz que você me institui como seu herdeiro universal.” Ele fingiu ler no papel, enquanto olhava surpreso do testamento para mim, e eu lhe sorria nervosa.

Mais uma fala minha, e a cena do beijo chegaria.
Respirei fundo, sentindo minhas mãos geladas, e criei coragem.
Eu iria até o fim.

“Esta riqueza causa-te horror?” Questionei com a voz impostada, enxugando as lágrimas do rosto. me olhou desconfiado, e eu não soube dizer se era o ator ou o personagem que me encarava, mas, erguendo o queixo, continuei. “Pois faz-me viver, meu Fernando. É o meio de a repelires. Se não for bastante…” E uni as mãos novamente, aproximando mais ainda de , o olhando com as falas de Aurélia, mas o olhar apaixonado de .

Perdi alguns segundos na contemplação, com a frase na minha cabeça, fazendo cócegas na ponta da língua.
O momento final estava logo ali, e eu estava a uma fala dele.
Espantei as inseguranças, ignorei o frio na barriga e ajeitei a postura, encontrando-me em Aurélia.

“Se não for o bastante, eu a dissiparei.”

Era isso. A última fala havia sido dita.
E então, o beijo.
O último beijo como Aurélia e Seixas.
Estava ali, a pouquíssimos centímetros.
O hálito refrescante de atingiu meu rosto antes de suas mãos tocarem a pele de minha nuca. Seus olhos piscaram, vacilantes, e uma expressão iluminada pelo alívio e a paixão pairou sobre sua face, dando a Seixas um ar tão intenso, tão verdadeiro, tão apaixonado… Eu poderia viver naquela trama para sempre.
Ali, vendo-o umedecer os lábios, eu senti que o mundo parou. Na verdade, tudo ficou muito lento, e eu não ouvi nada. Tudo era apenas e unicamente . Ao sentir que seu polegar acariciou minha bochecha, eu sorri o mais sincero que pude, representando Aurélia e , tudo no mesmo corpo, no mesmo sentimento. carinhosamente ajeitou uma mecha de meu cabelo, como quem dedilhava a mais sensível superfície, como se tudo precisasse estar devidamente encaixado e perfeito para aquele momento.
No segundo seguinte, suas mãos trouxeram minha cabeça para perto da sua, e eu senti que as pontas dos meus dedos deslizaram pelo seus braços, firmes e gentis.
A última coisa que vi foram os olhos de , que me olharam de volta como se entrasse no mesmo transe que eu.
Não havia ninguém ao nosso redor.
E talvez, apenas talvez, nem mesmo Aurélia e Seixas estivessem ali.
Por um segundo, eu senti que só havia nós…
E então, aconteceu.
Seus olhos se fixaram em meus lábios enquanto ele umedecia os dele. Eu prendi a respiração e fechei meus olhos, totalmente entregue ao momento. Quando senti nossos narizes tocarem, eu arfei e me deixei afundar naquele mar, sem sequer me preocupar com o ar faltando debaixo d’água.
Porque era , e eu estava pronta para aquilo… Definitivamente.
Sua respiração se misturou com a minha, e então…
Um novo clarão junto de seu estrondo retumbante protagonizou a cena final da peça. As luzes tremularam e dessa vez, se apagaram por completo, assustando a todos e jogando o auditório numa penumbra sem fim.
Num impulso, me agarrei a ; ele me segurava com precisão pelas costas e eu o segurava firme pelos ombros. Ainda estávamos ajoelhados, e apesar de todo o breu presente, nem sequer nos movemos. Eu ainda conseguia vê-lo como se estivesse tudo iluminado; e por algum motivo, eu tinha certeza que ele sentia o mesmo em relação a mim.
Entretanto, um vazio tremendo havia me assolado. Estávamos sem saber o que fazer, apenas ali, diante um do outro.
Os segundos passavam e eu me sentia cada vez mais nervosa, tentando entender o que estava acontecendo. Minhas mãos ainda estavam em quando a luz voltou, e automaticamente olhamos ao redor, como quem se situa no lugar.
Meu olhar parou novamente em , que estava tão perdido quanto eu. Nossas posturas não estavam mais com o mesmo entusiasmo que antes devido a toda mudança de atmosfera, e pouco a pouco nossos rostos se afastaram, incertos. Suas mãos afrouxaram em minha cintura e as minhas desceram de seus ombros, caindo para os braços num toque sutil.
Nossos olhares só se desgrudaram um do outro quando um pequeno som começou a tomar cada vez mais proporção; eram os aplausos vindo da plateia.
Foi então que a verdade veio com tudo: a peça tinha terminado.
O acordo, também.
Não havia mais Aurélia, nem Seixas.
Agora era só e .
Pelo canto dos olhos, percebi a cortina se fechando e, em pouco tempo, a professora Strauss chegou improvisadamente, chamando o resto da equipe para se posicionar e agradecer ao público.
E desse jeito, tudo o que fiz foi levantar de maneira zumbi, conforme as pessoas se aproximavam e se uniam numa fila única, ficando uma do lado da outra de mãos dadas, colocando um fim definitivo na peça e em tudo que eu sonhei com aquele final.
Quando a cortina abriu novamente, os aplausos se uniram aos assovios e gritos animados do público. Meu tronco foi levado para frente, conforme o movimento de agradecimento veio da jovem ao meu lado, que eu sequer conseguia lembrar o nome.
Na minha outra mão, os dedos de me seguravam com força, como se jamais fossem soltar. Mas eu estava tão atravessada pelo vazio no meu peito, que só naquele instante entendi do que se tratava; o beijo final não aconteceu.
O beijo, o fim do acordo, a chave de ouro, o momento crucial, não aconteceu.
Eu só olhava para frente, totalmente perdida enquanto ao fundo, as palavras da professora Strauss soavam no microfone, provavelmente fazendo o discurso cuja nem uma vírgula eu seria capaz de reproduzir.
A única coisa que pairava na minha cabeça era: eu estava sem meu momento, sem meu adeus, sem o meu beijo. Conforme tomava mais consciência disso, o vazio começava a dar lugar à dor. E eu não estava nem um pouco preparada para aquilo.
Diante de tantos olhares no auditório, eu reconheci o de me encarando preocupada. Eu fixei meu olhar no dela, sentindo um bolo se formar na garganta. Sua boca formou uma frase silenciosa e, pela leitura labial, entendi o que me dizia; “Respira, amiga. Calma.” Era como se ela conseguisse entender o que eu estava passando. Sua feição era um misto de aflição disfarçada com afeto, e eu só podia imaginar como meu rosto deveria estar com um semblante deplorável.
Mais uma vez os aplausos soaram, e eu entendi que Strauss havia finalizado seu discurso. As pessoas sorriam alegres, batiam palmas, trocavam elogios, e tudo aquilo parecia tão distante — e ainda assim, perturbador. Tão perturbador que o meu lado emocional começou a se apresentar no físico.
A respiração começou a falhar, a pressão na cabeça aumentou, o som ao meu redor se misturou de uma tal maneira que eu não conseguia distinguir mais nada. Minha vista estava turva demais; tudo o que eu via parecia uma imagem deturpada. Foi quando entendi que meus olhos estavam repletos de lágrimas, e a visão estava automaticamente marejada, me impedindo de enxergar apropriadamente.
No primeiro e grande piscar de olhos, o pranto desceu, limpando toda imagem turva e me mostrando que as cortinas fecharam de vez. O pessoal da equipe se reuniu numa grande roda, com gritos, abraços e sorrisos, em comemoração ao sucesso da peça.
Em um dado momento, a mão de se soltou da minha, e meu corpo foi abraçado por várias pessoas, mas não consegui retribuir. Eu era um boneco perdido num milhão de pessoas felizes; uma folha solitária que despencava de uma árvore no outono, temendo o chão a cada brisa que me balançava no ar.

“Ela está tão emocionada!” A voz da sra. Strauss se fez presente, próxima ao meu ouvido, e entendi que era ela quem me abraçava no momento, com vontade. “Você foi incrível, querida! O que foi aquela cena final? Um arraso! ! Venha aqui, me dê um abraço!”

Ao ouvir o nome de , eu pisquei firme, sentindo o estômago embrulhar só de sentí-lo se aproximar.

“Você também esteve impecável como Seixas, foi simplesmente sublime! Agora que estão praticamente aprovados, já pensaram em fazer o curso em Teatro?”

A única pessoa sorrindo entre nós era a professora. Eu estava ocupada demais tentando lidar com o vazio que regurgitava em meu interior, e estava tão quieto quanto eu.

“E então?” Strauss insistiu com um sorriso, e logo bateu na própria testa. “Bobagem pensar nisso agora, não é? Eu e meu péssimo timing! Enfim, precisamos comemorar! Ao fim épico dessa peça!”

A professora chamou os outros da equipe, mas eu não movi um dedo sequer. A palavra “fim” ecoou dentro de mim como se tivesse sido dita com um megafone. Eu fechei meus olhos, sentindo o coração apertar e apenas assim entendi o quanto eu dependia daquele beijo final para me declarar para . Como quem se despede de algo que nunca viveu, eu me agarrava àquele momento como se fosse a única coisa necessária para seguir meu caminho, diante do novo que estava por vir.

?” A voz de me chamou, incerta. Eu expirei o ar de meus pulmões, como se não tivesse absorvido nada, como se não estivesse sendo capaz de levar oxigênio algum para meu corpo.

Eu estava trêmula, insegura, me sentindo com tanto medo, com tanto lamento no peito que foi impossível disfarçar meus sentimentos diante de . Quando nossos olhos se encontraram, eu pude ver o quão preocupado ele estava comigo; a ruga de expressão pairando no meio de sua testa denunciava a tensão nos músculos faciais. Tensão esta que se estendia a todo o resto de seu ser, e eu me sentia duplamente culpada, por não ser capaz de anular aquele mal-estar que lhe causava, bem como por sentir a coragem de me declarar se esvaindo, a cada lágrima que rolava em meu rosto.
Um novo raio cortou o céu, iluminando e trazendo o barulho assustador da natureza, como quem avisa a tempestade que traz.

!” As mãos de alcançaram meus ombros; os dedos pressionados contra minha pele me faziam tremer mais. Eu não me sentia apta a dizer uma só palavra, mas também não conseguia prender toda a avalanche de sensações em mim.

Oh, era isso.
Avalanche.
Estava tudo derretendo, tudo se desfazendo, como uma onda que não podia ser parada.

…” Meus lábios trêmulos disseram, e eu me senti sufocada com toda aquela alegria em nosso entorno, enquanto nós parecíamos duas pessoas a parte de toda a situação.

Eu estava me encolhendo olhando ao redor, tentando captar qualquer rota de fuga.
Precisava sair dali.

, o que foi?” Os dedos me pressionaram de novo, mas eu senti medo. Muito medo, de tudo, de todos. Como seria o futuro? Como seriam as coisas a partir dali? Como seria enxergar com Lis depois de tudo que me permiti viver dentro daquele acampamento com ele? Como presenciar isso tudo, querendo estar no lugar dela, sabendo como é o toque de seu beijo, a sensação de sua língua, e os corpos tão próximos, tão unidos quanto um abraço que jamais se finda?

Aquilo tudo foi demais para mim.
Totalmente vestida de Aurélia, meus pés começaram a agir em modo sobrevivência, e eu apenas corri.
Corri para fora dali, mesmo ouvindo me chamarem.
Corri no meio das pessoas, esbarrando em cadeiras, ombros, lugares, portas.
Eu precisava de ar, precisava sair de qualquer canto que me sufocasse.
Eu precisava respirar, precisava fugir, precisava sumir! Sumir de toda aquela loucura, esquecer de tudo, de todos, e ser uma página em branco!
Eu queria me ver livre de todo um destino doloroso demais, pois já não tinha mais forças para nada daquilo.
Eu não queria mais doer!
Quando as portas do local foram amplamente abertas com a senhora porrada de meus ombros, uma forte rajada de vento alcançou meu rosto, e era como se eu estivesse respirando pela primeira vez em um bom tempo.
Os respingos d’água provindos da chuva que caía livremente lá fora me açoitavam como um deboche bom, como se o universo fizesse uma piada muito íntima e amiga, dizendo “Sim, você está viva!”
Como um convite muito irrecusável, pus meus pés para fora, sendo totalmente molhada pela chuva que invadia cada parte do meu corpo, livremente.
Andei alguns passos para fora, me ajoelhando no gramado e sentindo com as palmas da minha mão a terra molhada, as plantas, e tudo pareceu se reduzir a apenas isso.
Eu não sei o quanto tempo fiquei ali, mas de alguma forma, deter minha atenção naquele singelo momento me trouxe uma calma inesperada. Os gordos pingos de chuva em minhas costas pareciam um abraço dos céus, e eu senti que poderia ficar assim por um bom tempo.
O penteado de Aurélia se desfez rapidamente, e a personagem que tanto me acompanhou por esses dias se despediu como uma antiga companheira que parte numa viagem longínqua. Senti que a maquiagem também abandonara meu rosto, e a chuva por fim levou qualquer rastro de Aurélia, me mostrando o quanto dela havia em mim, mas mais do que tudo, o quanto de mim ainda ficou.
Aquela constatação me fez respirar fundo, pensando que a vida não se resumia a momentos que não queríamos viver, ou fases que não gostaríamos de passar. Eu queria acreditar que as coisas eventualmente ficariam bem, e algo dentro de mim não duvidava disso; eu só não me sentia com forças para aguentar as porradas que viriam.
Mesmo debaixo de tanta chuva e seu barulho único, eu consegui ouvir os passos pesados no gramado, assim como senti a presença inconfundível de , pairando atrás de mim.
Sua respiração ofegante se destacava enquanto seus pés caminharam mais uma vez, agora bem mais lentos, para que seu corpo ficasse diante de mim.
Num ato rápido, seus joelhos se chocaram contra o chão, e suas mãos gélidas alcançaram meu rosto, me fazendo olhá-lo nos olhos.

O que está em nosso caminho nos encontra em meio ao mais revolto mar, e a mais calma brisa, pensei comigo mesma.

O pranto amedrontado se misturou com a chuva conforme eu enxergava na minha frente. Mesmo com toda vestimenta arruinada, ele parecia a coisa mais linda que eu já tinha visto. Eu soltei uma curta risada, completamente infeliz ao pensar que a paixão nos cegava como uma maldição, a ponto de nada além da pessoa amada ser o foco.
Que grande merda.

“Por favor… Pelo amor de Deus, me diz o que está acontecendo?”

Então, era isso.
Eu não tinha mais saída.
Eu me sentia fraca, cansada.
Olhando dentro dos olhos do cara que eu amava, eu percebi que eu não tinha mais como suportar aquilo dentro de mim.

“Acabou.” Eu disse, pensando comigo mesma.
“O que acabou?” Ele perguntou, atento. Eu tentei desviar do olhar de , sem sucesso. “Olha pra mim, por favor.” Ele pediu, direcionando meu rosto para o seu.

Nós nos olhamos com a mesma intensidade de sempre, e meu peito se apertou novamente, pensando no que seria daqui em diante.
travou o maxilar enquanto passeava os olhos pelo meu rosto. Dedilhou minha bochecha ao retirar os fios molhados dali, posicionando-os atrás de minha orelha. Eu fechei os olhos momentaneamente, guardando aquele momento com o maior carinho que eu tinha dentro de mim.
Suas palavras me fizeram abrir os olhos novamente.

“Eu já vi esse olhar antes.”

Nosso contato visual permaneceu, mesmo que o meu vacilasse enquanto me escrutinar com o seu.

“Eu já vi esse olhar… Vezes demais para seu próprio bem. Mas sempre respeitei a sua privacidade. Só que hoje, mais do que nunca, parece que o mundo está desmoronando a cinco centímetros de você e ninguém parece te alcançar. E isso me mata.”

O soluço veio alto com aquela frase. Por que ele conseguia ser tão certeiro?

…” Sibilar, sem forças, mas ele continuou a falar.
“Por favor, não me pede para ir embora. Não me pede para te deixar aqui, não me diz que não é nada, não me diz que você dá conta sozinha. Eu sei que está acontecendo alguma coisa muito séria, eu vejo em você! Então se eu sou quem você diz ser na sua vida, acho que está na hora de dizer uma vez por todas o que está acontecendo, .”

Ah, o nome.
Ele havia usado o nome. O golpe baixo, a firmeza, o apelo.
Ele tinha razão, não é?
Foi a minha vez de engolir a seco.
Mordi meu lábio inferior, olhando para o céu negro acima de nossas cabeças, e pedi forças para aquele momento. Pela primeira vez eu tentei não pensar em nada, ou melhor: não deixei que nenhum filtro me impedisse de falar o que estava preso há tanto tempo. Deixei as palavras fluírem livremente conforme os pensamentos vinham e enfim, a avalanche veio com força.

“Eu sempre tive muita vontade de fazer dezoito anos. Mas já faz algum tempo que eu não tenho pressa para saber como vou passar esse dia, uma vez que tudo estará diferente…” E então, desci o olhar para , com um sorriso triste.
“Diferente como?” Ele perguntou com os olhos alarmados.
“Essa é questão; quase tudo estará normal, como sempre. Exceto eu e você.”
“Por quê?” Sua voz atingiu uma oitava acima, e eu senti minha boca tremer com o choro.
“Porque tudo vai mudar entre nós, . Absolutamente… tudo.”
“Você está me assus…” Eu o interrompi, e foi a minha vez de segurar seu rosto.
“As letras de música, as piadas sem graça, os momentos de briga, os momentos de risadas, os olhares cúmplices, as músicas compartilhadas, o silêncio confortável e as mais diversas formas de uma vida fazer sentido só porque a gente deu sorte de se encontrar num mundo tão vasto e cheio de gente…” As lágrimas desciam sem pudor, e eu sorri a cada memória que atravessou minha mente conforme eu as citava com todo o carinho possível. “Tudo isso vai mudar, e eu não sei o que vai ser, ou como vai ser! Eu só sei que estou com medo, !” Minha voz tremeu demais, e eu senti a carranca que o choro me proporcionou. ficou muito assustado e segurou minhas mãos que ainda estavam em seu rosto.
“Medo de que!?”
“Medo de não ter mais nada disso!” Eu estava à beira do precipício, assumindo meus temores, e prestes a assumir tudo de uma vez.
“E por que não teríamos mais nada disso?” A voz dele falhou, e eu percebi que seu pomo de adão subiu e desceu com a aflição.
“Porque amanhã voltaremos para casa, para nossas vidas, e tudo o que me resta é me contentar com o que a gente viveu nesse acampamento!” Soltei seu rosto e segurei minha cabeça, enquanto chorava toda minha mágoa. “Por quê, ? Porque amanhã você volta para Lis, e eu volto para casa sem você!”

E então, ergui meu rosto, olhando em seus olhos, perdidos nos meus.
As mãos de caíram largadas paralelas ao seu corpo, e eu automaticamente soltei um riso frouxo de frustração.

“Não é ridículo? Viver de memórias… De algo que nem real foi. Mas foi tão bom que essa peça poderia nunca acabar, só porque nela seríamos um casal que se ama. E então eu percebo o quão ridículo é depositar minha felicidade naquilo que não passa de atuação. O quanto eu estou na merda ao voltar para casa sem meu melhor amigo, e sem o que eu queria para mim.” Olhei para minhas próprias mãos, tão fechadas que a circulação sanguínea não passava ali.

Levantei minha cabeça para encará-lo novamente, doendo como o inferno sentindo o seu olhar se conectando com o meu, enquanto nossas respirações ocupavam os segundos de silêncio, antes de eu finalizar tudo.

“Porque eu te amo, , e isso não é recíproco.”

O tempo estava suspenso — tudo estava suspenso no ar. Eu sentia meu corpo inteiro vibrar por dentro, e desejava que não tivesse notado isso. Mas era tarde demais para sentir vergonha de qualquer coisa, qualquer reação que meu corpo pudesse proporcionar.
Nossos olhares nunca se desviaram um do outro. Era muito dolorido enxergar ciente de todos os meus sentimentos, me encarando como se aquilo fosse a coisa mais absurda que ele já havia ouvido.

“Eu não acredito nisso…” Ele pensou em voz alta, passeando seu olhar pelo meu rosto, enquanto a verdade parecia se concretizar cada vez mais entre nós. “Você tá falando sério?”

Eu senti meu queixo cair e tremer, e a dor de presenciar aquela surpresa no rosto de se tornou demais para mim; não aguentei e fiz menção de sair dali, mas aquilo nunca aconteceu.

, por favor, eu só…”

E então, aconteceu.
Num ato desesperado, suas mãos seguraram minha nuca e na mesma urgência, seus lábios alcançaram os meus, sôfregos, pedindo passagem para que nossas línguas se encontrassem mais uma vez.
Eu estava desnorteada com aquilo, de olhos bem abertos enquanto presenciava me beijar com toda a vontade do mundo. Seus olhos extremamente fechados e a precisão em seus dedos me acordavam de todo devaneio que questionava se aquilo era real ou não.
E tudo se concretizou em minha mente segundos depois, quando permiti seu acesso e me entreguei ao beijo, me agarrando em seu pescoço para não cair, de tão nervosa e trêmula que estava.
O beijo de era a sensação que eu nunca havia provado antes. Era diferente de todo beijo que havíamos dado; ele tinha paixão, entusiasmo, suplício, encanto. As nossas línguas se degustavam, famintas, numa dança única cujos passos apenas elas sabiam. Quando dei por mim, nossas mãos trocaram de posições — eu segurava sua nuca, e ele, minhas costas, me trazendo para mais perto.
O gemido que saiu de seus lábios enquanto nos beijávamos me atiçou; o arrepio desceu pela minha espinha, e eu suspirei pelo beijo, num misto de alívio e paixão. Eu só pensava em continuar, em nunca mais parar de explorar sua boca, seus lábios, seu gosto, e se possível, me tornei mais próxima, com nossos corpos grudados em meio à chuva.
Meu peito se encaixou no dele, e mesmo debaixo de todo aquele temporal, eu me sentia aquecida pelo encontro de nossos corpos, molhados e sedentos um pelo outro.
Aquilo tudo era uma baita surpresa, mas não recuei em nenhum segundo.
Pela primeira vez, não se tratava de Aurélia e Seixas.
Era simplesmente… e .


Capítulo 31 - These chills in the evening, they won’t go away

’s POV.

(Alguns meses atrás)


Os dedos estavam suados e as pontas, dormentes. Não lembro de sentir dor na nuca, mas meu coração definitivamente estava acelerado. Por ter alguns sintomas de infarto, eu fiquei com medo de estar morrendo.
E então, ouvi sua risada. Seu rosto alegre, divertido, feliz com alguma coisa dita por .
Algo queimou dentro de mim, bem no peito, e eu me senti tão sozinho com aquelas sensações que estremeci com a simples ideia do que poderia ser.
Apesar de trágico, uma parte de mim achou mais fácil lidar com o infarto, se assim fosse.
Mas não: eu estava sentindo um incômodo profundo pelos altos papos que e trocavam animadamente, sem ter muito espaço para outra pessoa.
O jeito dele apoiar a mão em seu ombro, a forma como ela prestava atenção no que ele dizia, o sorriso escancarado que ele dava quando ela ria…
Eu estava com ciúmes, e não era pouco. Nem era a primeira vez.
Na verdade, estava tentando entender essas emoções conforme elas vinham — tão sutis quanto um atropelamento de via expressa — e a única vontade que tinha era de agarrar e fugir dali, para longe de todos. Isso não era minimamente normal ou bom, mas era o que eu sentia.
Fiquei assustado com a ideia cheia de forças dentro da minha mente, enquanto eu fazia um esforço para que aquele sentimento queimando no peito acabasse, afastando os maus pensamentos. Por que eu agiria daquele jeito escroto e possessivo? Não estava no meu normal! Não mesmo.
Nesse meio tempo, a conversa rolava solta no banco traseiro, enquanto nos dava uma carona até em casa. Comentando do passado, revelou que sua mãe pensava que o filho era apaixonado por , quando na verdade, o cara estava mais interessado na amiga dela — a tal da Charlotte, com quem ele tinha trocado uns amassos no acampamento, anos atrás. riu da fala dele e continuou a conversa.

"Que coisa, né?! Mães são doidas. A minha pensa um monte de coisas nada a ver também...”
“É mesmo? Tipo o que?”
questionou, visivelmente curioso.

Sabe aquele lance de controlar as emoções? Eu deveria pensar também em como controlar a boca. Quando dei por mim, já tinha respondido no lugar de , sem dó nem piedade, me intrometendo na conversa que não fazia parte.

“Que eu e a namoramos, por exemplo.” Ainda tive a coragem de me virar e encarar . Meus atos estavam dominados pelo comichão no peito — a porra do ciúmes.

Apesar da feição de espanto da minha melhor amiga e da cara de tacho do , o maluco estava blindado, e devolveu na lata, com um sorrisinho convencido.

"É, se a não tivesse me dito anteriormente que está solteira, eu provavelmente teria pensado a mesma coisa! Afinal, vocês são unha e carne."

Filho da mãe.
Não consegui retrucar e apenas sorri forçado, me virando para frente.
A partir dali, foi só ladeira abaixo; disse que eu era pegador, trazendo meu rolo com a Jessy à tona, e foi merda atrás de merda. Tentei consertar minha intromissão quando chegamos no condomínio (e finalmente estávamos à sós), mas o tiro saiu pela culatra e discutimos mais, com ela me dando uma lição de moral e me deixando sozinho com minha estupidez.
No dia seguinte, para meu total desagrado, ela não foi à aula. Sim, sabia que a culpa era minha. O intrometido do veio perguntar dela e eu não soube responder, apenas fugindo de sua pergunta quando o sinal tocou.
Estava avoado, num misto de pensamentos e sentimentos distintos, bolado com uma única questão: o que poderia fazer para melhorar a situação?
Cheguei na escola desligado e saí de lá da mesma forma, e só consegui despertar levemente quando esbarrei com uma pessoa conhecida.

“Você deveria mudar essa cara.” Levantei minha cabeça e encarei uma Lis me olhando com uma feição preocupada. “O que houve?”

Suspirei, sem jeito. Nossa amizade estava evoluindo, já tínhamos conversado sobre essas estranhas sensações que eu vinha sentindo, mas nunca me senti tão péssimo depois de uma discussão com a . Aquilo me afetava, e eu sabia que as pessoas ao meu redor notavam com facilidade.
Comentei brevemente o que rolou e Elise meneou a cabeça, prendendo os lábios enquanto pensava.

“Por que você não vai falar com ela?”
“Tá maluca? Eu não vou simplesmente dizer isso tudo! Nem eu ‘tô entendendo o que sinto direito!”
Ela fez aquela cara de quem não concorda comigo, mas deu de ombros, respirando fundo.
“Por que não vai se desculpar, então? Você sabe que fez merda.”

Eu a encarei um pouco assustado com o termo usado. Ela não era muito de falar assim — ou talvez eu ainda não a conhecesse totalmente — mas aquilo me deixou reflexivo.

“Você acha?”
“Conversa sempre é bom para elaborar, . O não você já tem, não é?”
Concordei com um movimento sutil, me sentindo incerto. Lis apenas sorriu e passou por mim, dando umas batidinhas no meu ombro. “Tome seu tempo. Mas eu sinto que está te esperando, mesmo que nem ela saiba disso.”

E assim, Elise plantou a sementinha e me deixou sozinho com meus pensamentos.
É claro que não consegui ficar sossegado e, quando dei por mim, estava diante de , me sentindo capaz de cavar um buraco em sessenta segundos, de tão nervoso que fiquei ao ver seu rosto me encarando.
O engraçado foi que não precisei bater, ela estava de saída, e ao me receber sem restrições, entendi que talvez Lis não estivesse tão errada assim.
Sentamos, conversamos. Pedi desculpas, falei o que realmente acreditava, até desabafei sobre meus medos, ainda inseguro diante de tantas emoções que estavam me atravessando. Por causa disso, acabamos caindo num assunto delicado, e eu me vi falando sobre ela e — burro como era, andando em campo minado: esse era .
Se eu estava com ciúmes, por que praticamente abri seus olhos sobre como o cara estava nitidamente a fim dela? Sério, por que eu fazia essas coisas? Caralho, até eu mesmo me atrapalho!
Como se não fosse o bastante, a conversa encaminhou para cantos mais sinistros e me senti particularmente encurralado pelas minhas próprias palavras. Isso era tão fodido e tão eu…

“Então, o que você está me dizendo é que a minha amizade com o é tão natural e intensa, que você tem medo dele roubar seu lugar?” A forma como ela colocou me fez sentir mais idiota do que de costume, e eu engoli em seco para responder.
“Mais ou menos isso. Tirando o fato de que ele quer colocar a língua dele na sua boca, é claro.” Eu deveria dizer garganta, mas me senti hipócrita, porque uma parte de mim achava essa ideia interessantíssima de ser feita (claro, se eu estivesse no lugar do ).

Felizmente focou no que importa e garantiu que eu continuaria sendo seu amigo e tendo o lugar de destaque em sua vida. Não pude negar o quão aliviado fiquei, e continuamos conversando sobre a minha mancada, até mencionar sobre minha ficada falida com Jessy, e as reflexões a partir disso. Um chifre sempre ensina algo (ainda que eu não queira me educar com mais porra nenhuma).

“Eu aprendi que nem todo mundo é...” Comecei a dizer, mas me calei ao encarar . A garota me observava com atenção, e eu ri levemente, pensando em como ela não fazia ideia do que se passava na minha cabeça. Olhei para o céu, pensando na ironia das coisas. “Nem todo mundo é especial.”
"Você já encontrou alguém especial?"
perguntou e eu senti uma pontada na boca do estômago, agradecendo mentalmente por estar olhando para outro canto que não fosse seus olhos.
“Eu não sei... Eu acho, talvez.” Ponderei, com muito cuidado, sem faltar com a honestidade que queria sair conforme uma avalanche. “Mas não acho que ela me veja desse jeito, entende?! Assim, do mesmo jeito que eu a vejo. E o mais engraçado, é que eu percebi isso há pouco tempo.”

Só me toquei do que tinha dito quando percebi o silêncio de . Procurei seu olhar, mas estava perdido, como se ela estivesse pensando sobre o assunto. Merda, será que deixei muito na cara que era sobre ela? Será que ela ficou muito chocada? Meu desespero me fez chamá-la.

? ? Você está me ouvindo?”
“Hã? Ah, oi, desculpa, eu viajei aqui."
Ela respondeu, forçando um sorriso. Fiquei na dúvida do que fazer e, para não parecer um lunático, continuei com o assunto. Era o certo, não é? Tipo aquele ditado: passou mal, vomita.
“Mas enfim, é isso, eu acho que ela não sente a mesma coisa que eu. Mas não tem problema, eu espero o tempo que for.”

O silêncio tomou conta de novo e eu percebi que não só tinha passado mal; realmente vomitei tudo que sentia, dizendo com todas as letras e pingos de i. Por que eu era assim? Que merda!

"Bom, .” me fez voltar a realidade, dando um sorriso esquisito. “Eu espero que você realmente consiga ser feliz.” E me abraçou carinhosamente, deixando seu rosto descansar no meu peito. Porra, ela queria que eu cedesse totalmente aos meus impulsos? Respirei fundo e devolvi o abraço, fazendo um cafuné na sua cabeça, totalmente dividido entre avançar nas carícias e ir além ou ser, de fato, seu melhor amigo — e apenas isto.
“Obrigado, . Também espero a mesma coisa pra você.”

(...)


Era um dia nublado, com poucas cores no céu, e um vento gelado insistia em fazer companhia.
Era muito estranho estar sentado no lugar que ela sempre esteve, sem a sua presença… Mas era exatamente o que eu fazia.
Na bem da verdade, tinha parado de chover a pouquíssimo tempo, e o clima ameno convidava as pessoas a permanecerem em casa. Mas eu não poderia fazer isso, porque minha janela dava diretamente para a dela, e isso era um convite para me autodepreciar.
Desde que…
O suspiro alto que soltei só confirmava o que sempre pareceu óbvio — mas talvez fosse óbvio demais para que minha cabeça dura entendesse. Na altura do campeonato, eu já sabia o que aquilo significava.
Eu costumava ter uma memória boa. Lembrava com detalhes os acontecimentos passados, e achava graça quando surpreendia as pessoas com isso; a riqueza das pequenas coisas, simples, mas que mudavam todo o cenário, deixando tudo peculiar e único.
Curiosamente essa memória falhou quando me perguntei se lembrava da vida antes dela.

.” Sussurrei como se contasse um segredo infantil, e automaticamente memórias e mais memórias foram ativadas em minha mente nada tranquila.

Eram lembranças do passado enquanto crianças, enquanto mais crescidos, e o passado mais recente, que deixava tudo tão… sensível.

“Quando foi possível viver uma vida sem você?” Me perguntei silenciosamente, tendo muitas dificuldades em imaginar toda minha história sem que ela estivesse presente.

Não consegui responder a mim mesmo, sentindo um sorriso desgraçado despontando no rosto. Continuei a pensar em todas aquelas coisas, me vendo caindo no caminho sem volta da nostalgia.
Meu primeiro dia de aula só aconteceu porque ela me deu a mão.

No meu aniversário de sete anos, minha mãe riu quando eu confessei o que pedi ao assoprar as velas: “Quero que a esteja sempre comigo.”

Quando ganhei meu violão, nós dois ficamos horas e horas no meu quarto desvendando e sonhando todas as formas possíveis de fazer sucesso, pensando em letras, covers, mexendo no instrumento e até mesmo arrebentando a corda mais fina, logo no primeiro dia de uso.
Eu lembro que ficou muito nervosa por ter exagerado no manuseio das tarrachas (e ter causado aquilo), mas, no dia seguinte, surgiu com um novo encordoamento para que eu não ficasse prejudicado. Tempos depois, descobri meu apreço pela música e fui além, tocando meu instrumento que hoje me permite fazer parte da melhor banda que eu já poderia ter criado com os amigos.
Sem nenhuma surpresa, sempre confiou em mim e no meu talento; acho que nunca deixou de acreditar nos meus sonhos e no quanto eu queria ser músico, ainda que parecesse muito bobo a princípio.
Quando seus pais se divorciaram e ela foi para aquele acampamento, lembro de ter ficado com o coração apertado. Nunca soube definir se era saudade ou se já estava pressentindo alguma besteira, mas de toda forma, ela voltou toda mexida por causa de um garoto — e eu lembro de querer socá-lo com todas as forças que eu tinha, até que ela estivesse com o brilho no olhar de novo.
E qual não foi meu espanto ao descobrir que o cujo dito se tornaria o futuro integrante da minha banda? Se naquela época eu soubesse que o ranço não era em vão, acho que teria me preparado melhor pelo que estava por vir.
Entretanto, não podia negar a minha parcela de culpa em toda merda que tinha rolado.

“Seu idiota.” Xinguei a mim mesmo, fechando os olhos com um sentimento estranho no peito. Radiohead parecia concordar comigo.

Drying up in conversation
(Calando-se na conversa)
You will be the one who cannot talk
(Você será aquele que não consegue falar)
All your insides fall to pieces
(Você se despedaça por dentro)
You just sit there wishing you could still make love
(E você espera sentado, desejando ainda poder fazer amor)


Abri os olhos reconhecendo que aquela sensação no peito era nada mais nada menos do que remorso.
Simplesmente perfeito para a ocasião.
Afinal de contas, eu mesmo havia me colocado naquela posição, descobrindo tardiamente aquilo que nunca pareceu ser um segredo ou algo desconhecido, em primeiro lugar.
Meu celular vibrou no bolso, e com uma preguiça bizarra, deslizei o dedo sobre a tela, sendo traído pelo universo ao perceber que se tratava de uma notificação de lembrança; uma foto nossa, de um ano atrás, numa festa na casa do . Naquele dia, nos divertimos demais, apenas conversando e rindo de nossas próprias piadas, no nosso próprio mundo.
Ri de mim mesmo naquela foto, porque estava sendo um tremendo otário tentando disfarçar as secadas que eu dava nela.
Como disse, a memória não me era falha. Era bem fidedigna, e parecia ter sido ontem que eu fiquei alguns bons segundos encarando diante de mim, numa roupa nada fora do comum, com uma maquiagem nada demais e o perfume usualmente gostoso.
Então por que eu parecia tão surpreendido, tão maravilhado?
Parecia que a blusa com um decote sutil fazia um puta par com as calças pretas e apertadas nos lugares certos. O velho e surrado all star nos pés, o cabelo meio preso, meio solto, e o sorriso de sempre.

“Por que tão chocado?”, eu ainda me questionava.

Porque era ela, e tudo sobre ela parecia simplesmente maravilhoso. Isso, eu só saberia tempos mais tarde.
Foi assim que eu descobri que a simplicidade poderia se transformar em algo incrível, mas apenas para poucas pessoas.
era uma delas.
A ponto de me fazer sair com uma cara de idiota na foto, e me lembrar um ano depois sobre a certeza que nunca deveria ter sido dúvida: eu era completamente apaixonado pela minha melhor amiga.

“Merda…” Pensei comigo mesmo, rememorando como o acontecimento da semana anterior tinha sido catastrófico.

Nunca tínhamos brigado daquele jeito, e eu sabia que ela estava cansada de me perdoar; Até eu estava, para falar a verdade. Insistindo em tantas desculpas esfarrapadas como proteção de melhor amigo quando na verdade, só tinha um medo absurdo de perdê-la.
E nessa defensiva/ofensiva, nesse esquema de morder e assoprar, eu havia perdido. E havia perdido feio.
Nossa amizade estava muito desgastada com tudo o que vinha acontecendo. apareceu na vida dela e tudo foi se desenrolando sem que eu pudesse entender ao certo o que se passava. Diante do desespero e do medo, fui me metendo em situações cabulosas, tornando tudo confuso — porque pudera, eu também estava confuso! E se eu estava assim, imagina , que nada tinha a ver com meus problemas, mas acabava sempre pagando o pato quando eu ficava daquele jeito esquisito? Sério, quem não estaria minimamente chateado quando seu melhor amigo começa a agir de uma forma muito estranha, ora te apoiando, ora surtando de ciúmes?
Porra, difícil de me defender… Eu era um idiota.
Um idiota totalmente perdido sem saber o que fazer.
Ao mesmo tempo que tentava respeitar em seu tempo, suas escolhas, eu não confiava em . Não conseguia me sentir à vontade com a ideia deles dois juntos, e a princípio, realmente acreditei que era apenas sobre isso, mas… no fim das contas, descobri que não.
E quanto mais cavava, mais eu encontrava indícios que me indicavam uma verdade dolorosa — e perceber que talvez, aquela sensação de desconfiança não fosse nem sobre em si, mas sim sobre qualquer cara que ocupasse o lugar que agora ele ocupava com tanta alegria.
Ciúmes foi pouco.
Eu sentia uma parte de mim queimar toda vez que os presenciava juntos. Mal conseguia conter meus movimentos, e mais de uma vez me peguei travando o maxilar, numa tentativa falha de parecer normal.
Falhar era meu nome e sobrenome quando se tratava de .
Por outro lado, ainda tinha Lis, que também tinha seus problemas. E um plano que deveria parecer simples, apenas se tornou mais complicado.

“Eu sou um idiota.” Era tudo que eu pensava.

As coisas que disse, as coisas que fiz, como agi… Tudo movido a ciúme, medo de perder , mesmo que no fim das contas eu não tivesse coragem para nem mesmo tê-la como eu gostaria, para princípio de conversa. Por que eu insistia naquela situação?
Ah, sim. A amizade.
Além de ser apaixonado por ela, tinha o posto de melhor amiga na minha vida. E ela desempenhava esse papel com maestria, ao contrário de mim, que só parecia atrapalhar sua nova fase mais do que qualquer coisa.
A princípio, eu estava disposto a segurar a minha onda e permanecer como amigo, só para mantê-la por perto. Ou eu achei que estava… Esse plano não tinha como dar certo, porque se tratava de mim; um grande babaca ciumento, covarde demais para me declarar, e corajoso o suficiente para fazer merdas em nome de uma falsa proteção, ou cuidado, ou qualquer coisa que eu inventasse, só para tentar fazer as coisas ficarem do meu jeito. Sério, nem eu aguentava minhas próprias desculpas. Estava tão difícil defender meu lado que não sei como aguentou por tanto tempo.
Na verdade, eu sei sim. Sei que aguentou porque também sou seu melhor amigo, porque ela dificilmente desistia das coisas que amava, que tinham valor para si mesma. E eu, como um otário, consegui arrastar sua paciência e perseverança até o limite.
Perdê-la, de qualquer jeito, era doloroso demais só de pensar. Mas lá estava eu, uma semana depois da pior briga, do pior adeus que eu dei, por reconhecer o quanto já tinha magoado, o quanto errei tentando me esconder, ao invés de fazer escolhas que de fato fosse capaz de bancar.
E para que todo esse esforço? Se no fim de tudo, eu estava ali, sozinho? Sentado naquele balanço, tentando matar a saudade fazendo o que ela fazia, obtendo nada além de pena e ódio de mim mesmo?
Eu tinha me tornado tudo que tentava afastar de sua vida.
Eu era o motivo das lágrimas, das brigas, dos sorrisos amarelos, dos olhares vazios, dos receios, de tudo isso. Eu era a mágoa, era o inútil desgraçado incapaz de ficar feliz pela melhor amiga, só porque ela estava feliz com outra pessoa, e não comigo.

“Acrescente filho da puta egoísta na lista.” Eu mesmo disse, me sentindo miserável.

O que eu havia feito da minha vida? E da vida de quem eu amava?
Na semana passada, finalmente tive um raio de lucidez e me deparei com uma garota incrível chorando por um melhor amigo babaca. E ela estava cansada de tudo aquilo; só não havia desistido por causa da nossa amizade. Eu poderia ser tão mesquinho, poderia ser tão imbecil a ponto de tomar tudo para mim e tornar tudo sobre mim? Por que agia como se o que eu pensasse fosse a única coisa válida ali? Como se ela não fosse livre para agir e escolher os caminhos que bem entendia? Por que eu não a apoiava? Por que agi como se só o que eu considerava tivesse validez? Como se fosse obrigada a acatar meus “conselhos”, como se devesse seguir um caminho que eu particularmente achava seguro — seguro para quem, inclusive?
Afinal de contas, quem era eu para agir com toda essa imbecilidade?

“Você por acaso não atende esse celular não?” Ouvi uma voz familiar, mas não era a que eu queria no momento, então apenas me mantive no lugar, suspirando e ficando irritado pela minha solidão ter sido interrompida.

Ela chegou, sentou no balanço logo na minha frente e fez uma careta.

“Céus, você está péssimo.”
“Me erra, cara.” Murmurei, olhando pro meu celular e vendo as chamadas perdidas dela. Guardei novamente no bolso, sem exprimir nenhuma reação.
“Eu sei que você não está legal, mas isso não é jeito de tratar sua namorada…” Ela me olhou com uma cara engraçada, mas eu não estava com humor para aquilo.
“O que você quer?” Perguntei de uma vez por todas, esperando que saísse logo dali.

Ela respirou fundo, cruzando os braços.

“Quero que você converse comigo. A gente não se trata assim. Posso não ser sua melhor amiga, mas já passamos por algumas barras juntos. Não seria diferente agora…” E sua mão encostou em meu joelho, num carinho quase imperceptível. Eu olhei para aquela cena, soltando o ar das narinas.
“Lis, na boa, eu só quero ficar sozinho…”
“Você já fez isso por uma semana.”
“E vou fazer por quanto tempo eu quiser! Porra, não tô legal, e vou acabar sendo babaca com você também!” Expliquei, irritado.
“Você já está sendo!” Ela ergueu as mãos em defesa e eu dei de ombros.
“Então por que não me deixa sozinho?”
“Porque você está precisando de ajuda. Porque você não está se alimentando direito, porque você mal dorme de noite, faltou às aulas, não responde ninguém que tenta entrar em contato com você… Qual é, ! Abre os olhos, sim? Você não tem como dar conta dessa fossa sozinho!”
“Mas eu não quero envolver mais ninguém nisso! Eu não quero mais nada disso… Você sabe, toda essa problemática, toda essa coisa de combinado… Já é difícil fingir que eu não sou apaixonado por ela, pior ainda é dizer que sou comprometido com você e sustentar essa mentira!”
“Ei! Pegou pesado!” Lis reclamou e eu rolei os olhos.
“Desculpa, não foi isso… Tá vendo? Eu não consigo nem organizar o que digo!” E dei um tapa na minha testa, passando as mãos pelos meus cabelos, jogando meu corpo pra trás e encarando o céu. “Eu só quero que tudo isso acabe e a gente volte ao normal.” Por fim, voltei a olhar Elise com um semblante sério. “Meu lance contigo não tá fazendo efeito algum, só nos complica, não vê?”
“Não, não, não! Você não pode desistir. De verdade!” E então, ela veio se sentar ao meu lado, me olhando assustada. “Você sabe do quanto eu dependo disso. Eu sei que minha situação é super diferente da sua, mas… Eu te imploro! Você não pode dar para trás agora. Não quando falta tão pouco…”
“Elise… A gente nem se gosta.” Eu respondi, encarando-a também de maneira séria.
“E isso não é nenhuma novidade, . Vamos por partes, tá?” Ela se ajeitou, fazendo um coque no cabelo e me olhando com um sorriso. “Somos amigos. Sempre fomos colegas, e agora, com as situações, você e , eu e … Enfim.”
“Você não consegue nem dizer, não é?” Indaguei, tendo pena, e ela umedeceu os lábios enquanto fechava os olhos, pegando fôlego para seguir a conversa.
.” Sua voz saiu tremida, e eu sabia que ela estava tão machucada quanto eu, ou até mais. “Eu não tenho a mesma liberdade que você. Eu não posso não escolher isso, você sabe da minha situação. Eu sei que conversamos e combinamos de manter esse relacionamento falso até que uma das partes se resolvesse, mas isso não aconteceu com nenhum de nós! Você não se declarou, muito menos está com , e eu… Preciso de mais tempo até ter autonomia nisso tudo. Você sabe…”

Suspirei alto, pensando em tudo que ela tinha me dito — naquele instante, e nos do passado. Elise sempre foi muito querida, e me ajudou nos piores momentos em que mal me aguentava de ciúmes por causa da . Me ouviu choramingar diversas vezes, e me aconselhou como uma fiel companheira; isso eu não poderia negar.
Só que nosso esquema cada vez menos fazia sentido. Eu sabia que a condição dela era diferente da minha, mas eu estava tão conturbado, de saco cheio de tudo, que gostaria de passar uma borracha em todas as atitudes que cometi e começar do zero, de um jeito que funcionasse para todos.
Mas não.
Tudo por conta do fatídico dia do primeiro show da Mcfly, em que juntos, fodidos do coração e da cabeça, decidimos ceder e nos pegamos — como se a partir daquilo, todo mal estar sumisse e todas as coisas ruins também.
Mas não sumiram.
Na verdade, os problemas só aumentaram; no dia seguinte, e estavam juntos, como eu desconfiava. Foi uma merda: fiquei tão impactado que até deixei o copo cair, na casa do . Se não fosse Lis me alertando sobre o quanto estava deixando na cara toda a situação que se passava comigo, eu teria ficado lá, estatelado, até digerir aquela novidade.
Desde então, foi tudo embolando cada vez mais; McFly fazendo sucesso, o pai da Elise, Sr. Reagan (e meu mais novo sogro), estava cada vez mais dentro da assessoria e produção da banda, dos shows, daquilo que começávamos a construir como um grupo musical.
E para ele, nada melhor do que ter uma boa relação com o genro enquanto também se aproximava de Lis, acreditando melhorar o elo não tão satisfatório de pai e filha. Ambos tentavam, era verdade. Mas parecia haver uma incompatibilidade muito maior do que o que poderiam lidar. Eram quase como óleo e água, mas até então, era o meu relacionamento com Elise que tornava as coisas suportáveis entre eles (fosse por ter assuntos em comum com o pai dela, ou até mesmo de deixar a convivência mais unificada entre eles).
Olhei para Elise, que tentava não chorar, enquanto encarava as próprias mãos. Ela estava numa situação muito delicada, e tinha razão quando dizia que mexer em nosso namoro não mudava nada — nada de bom, pelo menos.

“Ei.” Chamei enquanto erguia seu queixo com meu indicador. “Relaxa. Estamos juntos.”
“Jura?” Ela perguntou esperançosa.
“Uhum. Você tem razão. Ainda não é o momento, eu só estou… perdido.”

Ela suspirou e perguntou apreensiva.

“O que de fato aconteceu, ? Vamos, fale comigo! Você precisa tirar isso do peito. Está demais para carregar sozinho.”

Eu virei meu rosto para frente e guardei minha mão no bolso, tomando fôlego para relatar tudo o que rolou na semana anterior. Depois de narrar tudo com riqueza de detalhes, Elise chegou a uma conclusão incrível.

“Você é um idiota.” Falou alto enquanto eu rolava os olhos, sentindo o gosto amargo ao concordar com ela.
“Me conte algo que eu não saiba…” “E aí você simplesmente foi embora?” Ela perguntou, assustada.
“Sim, eu era o grande problema, não vê? Tentando ser razoável, fiz a única coisa possível na altura do campeonato: me retirei do jogo. Me afastei, não dava mais. Se eu não sabia como estar por perto, precisava criar vergonha na cara e meter o pé. Eu não desejaria isso para ninguém, então por que fazer algo assim com a garota que eu amo?”

Lis acenou com a cabeça, ponderando sobre a situação.

“Entendo…” E murmurou, reflexiva.
“O sofrimento é óbvio, mas pelo menos não estou fazendo merda. Claro, está doendo como um inferno, e ainda vai ser por um bom tempo, mas…”
“Você acha que esse é o melhor a ser feito?” Ela perguntou, receosa.
“Tem outro jeito, Lis?” Devolvi, descrente. Ela deu de ombros.
“Não sei. Você realmente não consegue disfarçar os sentimentos e os demonstra de uma maneira nada saudável, nem para você, nem para ela.”
“Obrigado pela parte que me toca.”
“Eu estou tentando ser imparcial, tá bem? Sei lá… Penso que talvez seja você quem precise de um tempo, não ela.”
“Como assim?” Indaguei, confuso. Elise me olhou com um pequeno sorriso.
“A sabe o que quer. Ela já fez as decisões, está decidida. Ela só quer o melhor amigo de volta, sem que ele brigue o tempo todo. Já você, precisa decidir sobre o que vai fazer. Precisa de tempo para digerir isso tudo e pensar em como estar por perto sem ser… tóxico.”
“Uou.” Eu só deixei o soco vir. Era um soco de pilica, nada de tapas. Aqui ninguém trabalhava com miserinhas, não. “Então acha que esse tempo pode me fazer bem.” Suspirei, sentindo a dor que aquela constatação trazia.
“Acho que sim. Pelo menos para colocar a cabeça no lugar e pensar antes de agir. Acho que vocês dois são super intensos e eventualmente esse choque acontece. Então, até que a guarda seja baixada e que vocês encarem tudo o que precisa para melhorar a situação… Bom, isso leva tempo. E ao que tudo indica, agora tudo o que vocês têm é o tempo, mesmo.”

Fiquei encarando Elise com uma cara de bosta, com certa irritação por ela parecer assertiva até demais.

“Você deveria tentar psicologia. Já pensou nisso?”
“Acho que meu pai não ia curtir…”
“E daí? É a sua vida, não a dele."
“É o dinheiro dele, não meu…” Ela retrucou num sorriso triste, e eu concordei silenciosamente, logo engatando num papo que não tinha a minha cara, mas alguém precisava ser menos miserável ali.
“Isso vai mudar.”
“É. Quem sabe, em breve…” E então, ela me olhou receosa. “Mas e sobre nós? Vamos mesmo continuar juntos? Você sabe… colocar pra frente essa ideia do namoro?”

Eu suspirei, fechando os olhos momentaneamente.

“Só me dê um tempo até falarmos para o pessoal, tá bem? Eu preciso ajeitar as coisas aqui dentro…”

Ela sorriu com pena e fez um carinho em meu ombro.

“Claro, . Você sabe que pode contar comigo. E eu sou muito grata por você topar isso tudo… sabe que se meu pai soubesse de toda a verdade sobre mim, eu nem estaria…” E seus olhos se inundaram rapidamente, mas Lis não se permitiu chorar; apenas enxugou o canto dos olhos e olhou para o horizonte, respirando fundo e sorrindo forçadamente. “Acho que o que quero dizer é… Obrigada. Por tudo.” E me olhou de soslaio, brevemente.

Eu tive uma pena sincera de tudo que ela mantinha para si mesma, e o tanto que se dedicava (e sacrificava) para que o relacionamento com o pai fosse minimamente razoável…
Ela sofria diariamente com aquilo.

“Limpa esse rosto, se teu pai te vir assim, ele vai achar que eu sou um péssimo namorado.”
“Talvez isso não seja tão mentira…” Ela deu uma ombrada e eu deixei um pequeno sorriso brotar, ainda me sentindo um merda, mas um merda que sorriu depois de um bom tempo.
“Se me deixar quieto, eu não vou ser tão rabugento.”

Ela me olhou preocupada, mas apenas acenou com a cabeça, enquanto se levantava do balanço.

“Você quer ficar só, eu entendi. Apenas me prometa que vai ficar bem?”
“Eventualmente.” Dei de ombros e ela concordou, olhando para o nada.
“Então vamos torcer para que não demore muito.”

Eu agradeci com um menear de cabeça, e ela deu três batidinhas no meu ombro, antes de se retirar e me deixar sozinho.
E assim, voltei para minhas memórias embaladas por Radiohead.

Dont leave me high
(Não me deixe sozinho)
Dont leave me dry
(Não me abandone)
Dont leave me high
(Não me deixe sozinho)
Dont leave me dry
(Não me abandone)


(...)


Três meses.
Três meses infernais.
Três meses que a gente não se fala, não se abraça, não troca uma ideia… Mal nos cumprimentamos.
Era esse o destino que eu queria para nós? Não.
Pensei que seria fácil ficar longe dela? Nunca.
Estava mantendo minha palavra? Sim.
E Deus sabe como era difícil ser fiel ao que se propõe.
Ainda mais com uma farsa nas costas, tendo que sorrir e fingir que está tudo bem, quando claramente não está.
Eu sentia a falta dela. Sentia muito, o tempo todo. Mesmo preenchendo meus momentos com toda alternativa possível, à noite as coisas sempre costumavam piorar. Minha cabeça batia no travesseiro, e eu só pensava nela. Como estava, se tinha tido um dia bom, se estava sendo um cara legal…
O ciúmes se tornou meu maior companheiro, e eu não sei se aprendi a conviver com ele, mas definitivamente entendi como lidar e camuflar seus efeitos, de forma a não dar tanto na cara tudo que se passava dentro de mim.
O peito queimava normalmente, como sempre. Mas acho que o fogo se tornou familiar, e eu até consigo ensaiar sorrisos e fingir alguma normalidade enquanto meu mundo está caindo. Não sei se é uma boa habilidade, mas tem sido definitivamente útil diante dos últimos tempos. A ausência de estava me ensinando muita coisa. Como é que dizem? A gente aprende pela dor também.
Se possível, está mais linda do que nunca. Estar num relacionamento no qual há uma recíproca, fez a pura flor que nasce na diversidade, desabrochar, como diria o imperador da China, em Mulan.
Ah, cacete.
Eu estava citando Mulan.
Era fato: estava em todo canto, até em citações sobre ela mesma, nas quais eu poderia me permitir comparar com qualquer outra coisa.
Mas era tão complicado. O vazio me fez refletir e entender muita coisa que disse, que fiz, e como minha decisão foi pontual — ainda que dolorida demais.
Não haviam juízes para decidir se eu tinha aprendido minhas lições, ou se estava pronto para tentar uma nova aproximação. Na real, tinha medo de tomar qualquer atitude depois dessa. Sabe quando sente dor e acha uma posição que não é exatamente confortável, mas é suportável e você aprende a conviver?
Era exatamente como me sentia. Tinha medo de me mover e causar uma nova onda de sofrimento, tanto para mim quanto para — e dessa vez, nem mesmo eu seria capaz de me perdoar.
Era hora de crescer e aparecer, e ser um completo babaca estava fora das minhas ambições.
Estava tão concentrado em não atrapalhar nada, nem ninguém, que cheguei a me atrasar para o passeio da escola, achando até que já tivessem partido. Para minha sorte, o ônibus ainda estava lá, mas com uma condição braba me aguardando.

"!"
"Presente." Respondi, dando passos pequenos, tentando ignorar a presença de logo atrás de mim. Senti minhas costas queimando, mas era melhor assim.
"Era pra você estar no primeiro ônibus, mas como você só apareceu agora, vai neste mesmo. , 89... E seu acompanhante é... , , 90. Lado esquerdo, uma das últimas fileiras. Podem seguir."

Apenas encarei o professor com a cara assustada, porque por essa, eu realmente não esperava.

“Perdão, professor. Você disse e Tom ?” Perguntei, sentindo minhas orelhas arderem e minha sobrancelha arqueando em descrença.
“Sim. Sr. . Algum problema?”

Nenhum, professor. Apenas o fato de que vou passar algumas horas ao lado da minha melhor amiga, por quem eu sou secretamente apaixonado e com quem não troco uma palavra decente há três meses. Já comentei por que isso aconteceu? Ah sim, é porque sou um escroto ciumento que não conseguiu ficar feliz pelo seu novo relacionamento, e minha única saída foi me afastar. Maravilhoso, não? Obrigado pelo presente em encarar este desafio, aliás.

Eu gostaria muito de ter respondido assim, mas apenas balancei a cabeça e ajeitei a mochila nos ombros, me despedindo de e quase cedendo o olhar para . Mas, desisti, porque sei que aquilo poderia ser um deslize, então entrei no ônibus e pedi a todo tipo de divindade que pudesse intervir para o bem da humanidade.
Estava colocando os fones de ouvido quando ela chegou. Respirei fundo e prendi a respiração, para não me tentar com seu perfume e, resignado, virei de lado, permitindo sua passagem para que sentasse na poltrona da janela. Era seu lugar favorito e, apesar de não estarmos nos falando, realmente queria que ela ficasse o mais confortável possível, e sei que isso já estava meio comprometido pela minha presença.
Em seu lugar, me sentiria da mesma forma…

“Bom dia.” Ela me surpreendeu com o cumprimento, e eu admito que tive dificuldades em parecer natural.
“Bom dia.” Respondi educadamente, olhando para meu celular e sentindo um rebuliço dentro de mim ao perceber que me observava pelo canto dos olhos.

Puta que pariu, isso era alguma deixa para fazer algo? Eu deveria ter dito algo mais? Deveria ter olhado para ela? Deveria ter dado corda?
Como se existisse um elefante enorme dentro de nós, se virou de lado, encostou a cabeça na janela e adormeceu depois de um tempo. Esse foi o momento em que finalmente pude respirar aliviado.
Ela deveria estar odiando ter que me aturar a viagem toda, e o sono seria sua única alternativa. Ótima escolha, inclusive.
O ônibus já estava em movimento, mas me senti estático ao me permitir encará-la tão de perto, vendo-a dormir. Os olhos fechados numa paz de causar inveja, que eu jamais tive — muito menos nesse meio tempo afastado dela — o semblante calmo, as curvas do nariz e dos lábios, a respiração ritmada de quem descansa…
Estava tão perdido ao reparar nos detalhes que mal notei minha mão esquerda esticada, prestes a tocar seu rosto. A ponta dos meus dedos deslizaram primeiro pelos fios de cabelo, e depois alcançaram sua bochecha, lisa e delicada.
praticamente ronronou com isso, se remexendo e encolhendo mais, esticando a cabeça como se inconscientemente correspondesse ao meu toque.
Senti meus lábios se moverem num sorriso genuíno, mas logo fui tomado por um desespero danado ao ver os olhos fechados de se remexendo, como se a qualquer minuto fossem abrir. Retraí minha mão e engoli em seco, paralizado com medo dela acordar e me pegar no flagra. O que eu diria? Que desculpa daria?
Por que sempre acabava agindo feito um idiota inconsequente quando estava perto dela? Que ideia imbecil, cacete!
se remexeu novamente e eu voltei para a minha posição inicial, morrendo de vergonha e medo da consequência dos meus atos. Fechei meus punhos e meus olhos como quem estivesse desmaiado de tanto sono, mas os segundos foram passando e, felizmente, nada aconteceu. Pela segunda vez em pouco tempo, soltei o ar dos meus pulmões aliviado, abrindo apenas um olho e percebendo que ela ainda dormia feito um anjo.
Respirei fundo, encarando o teto do ônibus.
Aquela viagem ia ser foda.
Depois de um bom tempo, fizemos uma parada e enquanto todos se remexiam para sair e comer alguma coisa, eu apenas olhei para o lado, sentindo uma indecisão brotar ao ver adormecida. Talvez ela não quisesse nada, talvez o sono fosse a melhor opção, então tomei coragem e desci dali, encontrando logo depois as outras pessoas do grupo. Todo mundo estava meio sonolento ainda, e um silêncio confortável pairava entre nós, quando surgiu com ao seu lado. Eu observei enquanto vinham em nossa direção, e não consegui desviar o olhar quando ela me encarou de volta.
Havia tanta coisa que morava naquele contato visual, e eu admito que fiquei ali, pensando no quanto um simples ato me deixava nervoso. Decidi me precaver e encarei meu suco, dando uma boa golada, apenas levantando meu rosto quando sentou ao meu lado, começando uma pequena interação.
Sem muita demora, logo estávamos voltando para continuar a viagem e eu fiz questão de meter o pé para o ônibus, porque meu humor estava péssimo para acompanhar os momentos de breve despedida entre e .
Foi cerca de uns cinco minutos após ter me sentado na poltrona, que surgiu; eu fiz o mesmo processo de antes e ela passou, ligeira, indo se sentar em seu lugar sem falar nada. Apesar de fingir mexer no celular, meu corpo estava totalmente alerta com a presença ao meu lado, que tentava a todo custo se distrair, sem sucesso. Tentou música, revistas, e foi impossível não rir com a careta que fez ao ler o título de um teste ridículo para saber se era ‘amizade ou namoro’ com a pessoa desejada.
O som da risada entrecortada chamou a atenção da garota e eu fingi indiferença enquanto mexia no celular sem prestar atenção em nada do que a tela me mostrava, me fingindo de indiferente quando na verdade, estava bem atento a qualquer ação da pessoa ao meu lado.
Ainda estava tenso quando percebi que se remexia ao meu lado, incomodada por não conseguir dormir — ou pelo menos era isso que eu pensava. Foi ouvindo alguns roncos que (com facilidade) identifiquei como a barriga faminta de pedia socorro.
Minha melhor amiga estava morrendo de fome e provavelmente se sentindo idiota porque não comprou nada na última parada que fizemos. Mas adivinha quem tinha comprado um hambúrguer de forno com cheddar?
Sim, eu.
E adivinha quem estava abrindo mão do próprio lanche com a maior facilidade do mundo?
Sim, eu.
estava de olhos fechados quando coloquei o salgado na sua cara, mas logo percebeu a minha oferta.

“O q-que é isso?” Ela falou ao encarar o embrulho de papel alumínio. Eu não ousei olhá-la e segui encarando meu celular enquanto respondia.
“Comida.”
“Oh, jura? Mas está me dando?” Um misto de impaciência e surpresa entrecortaram sua fala. Eu não aguentei e rolei os olhos, observando o teto em busca de clemência.
“Dai-me forças, Pai...” Disse em voz baixa e a mirei, tedioso. “É claro que é pra você, estou lhe oferecendo.” Era tão difícil acreditar em meus bons atos?
“Muito obrigada, mas passo.” Ela respondeu com dureza e eu suspirei. Por que ela estava negando se estava com fome? Eu também queria aquela porra de salgado, mas estava dando prioridade para ela!
“Sempre tão teimosa... Não muda nunca.” Pensei comigo, mas acho que falei mais alto do que qualquer coisa.
“Qual é o problema agora? Fala na minha cara!” Fui surpreendido por sua fala e fiquei momentaneamente assustado. Levei um coice, é isso?

Me senti cercado, com dificuldade para não retrucar com a mesma energia.

“O problema é que você é incrivelmente teimosa quando claramente está morrendo de fome e negando a porra de um hambúrguer de forno porque tem problemas comigo! Eu só estou oferecendo a merda de uma comida. É só e apenas isto! Mas se é tão difícil, que fique com fome até que seu estômago comece a dialogar comigo.”

Ah, ou! Estava nervoso sem nem falar nada, ela ainda me pegava desprevenido com aquele questionamento marrento? Eu estava tentando ser gentil, mesmo que estivesse totalmente mexido por dentro!
Se bem que… talvez tenha saído pior do que pensei. Eu não queria ser melodioso demais e dar a ideia errada para ela, mas excesso de seriedade, quase beirando a grosseria é foda. Minha entonação poderia melhorar, né?
Droga. Tinha feito merda de novo.
Era por essas e outras que tinha mesmo que tomar na cara, minha cabeça pensando numa coisa e eu agindo de forma enviesada. Qual era o meu problema?

“Você disse hambúrguer de forno?” interrompeu minha autocrítica e a surpresa me atingiu, com a mudança de assunto. Sua cara tímida e pidona me fez mudar de humor na hora, mas não deixei transparecer na minha expressão — entretanto, foi difícil segurar o sorrisinho de canto que estava querendo surgir.
“É. Com cheddar.”

Se antes eu estava fazendo um esforço para não rir, depois do ronco que a barriga de deu (ao ouvir minha resposta), ficou oficialmente impossível.
Tentei comprimir minha risada, e percebeu, deixando um pequeno sorriso nos lábios.
Ai, merda. Eu sentia tanta falta daquela feição, que senti o coração errar umas batidas.

“Me desculpe.” Ela disse, ao segurar meu braço com gentileza. Aquele comentário e o gesto me pegaram de calça arriada, e eu não consegui disfarçar o espanto. A sua mão segurava com firmeza meu pulso e eu encarei aquele gesto, percebendo o quanto senti sua falta, e o quanto seu toque me aquecia como um todo. Uma pena que segundos depois, retirou sua mão e eu me forcei a responder qualquer coisa para quebrar o gelo.
“Come logo isso…” E coloquei o hambúrguer em suas mãos, me virando para frente, me sentindo tímido.
"Obrigada, . Como…” Ela começou, mas não terminou a frase. Eu a olhei, atento.
"Como o quê?"
"Como você sabia que eu...?" nem precisou terminar e eu já estava rindo, com honestidade.
"Por favor, . Sua barriga estava parecendo uma guitarra distorcida. Ela não é tão discreta quanto seu rosto tenta parecer."

Eu não sei se foi a sinceridade, a espontaneidade ou qualquer outra coisa, mas sei que aquilo fez rir de uma tal maneira que não esbarrava há tempos. Vivenciar um momento tão leve e engraçado com ela era uma das muitas coisas que eu acabava gravando a sete chaves na memória, para revisitar nos momentos ruins.
E, puta que pariu. Que saudade de gravar um novo registro dela rindo daquele jeito tão honesto…
Nós ficamos nos olhando, rindo um do outro, e de repente, tudo parecia normal outra vez. Era tudo o que eu queria, e como me animava perceber que a saudade também fazia parte do cotidiano da minha amiga, pelo jeito que ela me olhava.
Infelizmente, seu celular vibrou, cortando o momento. balbuciou alguma coisa e seu sorriso deu uma mudada; ela respondeu toda solícita, mas… Eu já estava no meu humor de antes, porque vi de relance que ela falava com .
Então só fiz o que me comprometi: segurei minha onda e mexi nas redes sociais no meu celular com um verdadeiro tédio e desinteresse.
Se antes eu já tinha dito, agora repito: aquela viagem estava sendo foda.

(...)


Alguma coisa estava acontecendo de verdade. Aquele acampamento nos obrigava a conviver unidos de uma maneira que não estávamos nos últimos tempos. E porra, tinha um efeito desgraçado em mim. Eu não conseguia me desligar dela, queria estar por perto e atento a todo tempo! Até pegar sua mala, sem ter a sua permissão, eu peguei! Por que o idiota do não tomava uma atitude e ajudava sua namorada? Que cara boçal!
Mas, não posso negar que logo no primeiro dia, já tivemos bons momentos. Tipo aquele em que ela vai até a minha cabana procurando , mas quem abre a porta sou eu. Pois é, dividindo o mesmo quarto com o zero-dois.
O problema foi que eu abri no impulso, sem notar que estava sem camisa. A princípio, fiquei sem graça e surpreso por ver na minha frente, mas assumo que me diverti internamente ao vê-la gaguejar, por me ver meio nu. Finalmente direitos iguais em relação aos efeitos que um causa no outro, né?
Até ela se concentrar e conseguir dizer algo, foram uns bons segundos de puro divertimento. Nossa primeira interação foi esquisita, porque decidi esperar com ela do lado de fora, na escada. Estávamos pisando em ovos e eu não conseguia segurar muito o sarcasmo diante das coisas, mas estava tão nervoso que novamente cedi ao cigarro — jogando a fumaça na cara dela, numa brincadeira nada inocente que diz o quanto eu a queria.
Comecei a desconfiar que o tempo que ficamos afastados só contribuiu para a saudade e para minha cara de pau.
O engomadinho do chegou e eu, como um bom cavalheiro ciumento, me retirei porque não queria atrapalhar e muito menos ficar observando a interação amorosa dos dois. Sofrimento tem limite!
Ainda sentindo que um cigarro não foi suficiente, caminhei pelo acampamento até encontrar um deque diante do lago. Achei um canto perfeito para deixar meus pensamentos vagarem, para tentar acalmar meu coração dentro do peito, depois de tanta coisa sentida. As emoções que estavam adormecidas, pareciam muito despertas dentro de mim, e estava tendo dificuldade em lidar com elas sem parecer um babaca comigo ou com as pessoas ao redor.
Principalmente com ela, a quem desejava um mundo de felicidades — e seria tão incrível se eu pudesse ser a pessoa que a alegraria todos os dias…
Estava submerso nos meus pensamentos, fumando afastado de todos, pensando no que sentia por e há quanto tempo isso estava dentro de mim. Parecia uma vida inteira e eu ri com escárnio da minha situação. Como demorei tanto para perceber?
A fumaça que saiu das minhas narinas me envolveram, e eu fechei os olhos, sentindo a brisa bater. Um barulho diferente chamou minha atenção, e minha sobrancelha arqueou no exato momento em que meu olhar se encontrou com o dela.
O que fazia ali?
Alguma coisa tinha acontecido, pelo semblante esquisito. Respirei fundo e agachei ao seu lado, observando-a com mais atenção. Tão linda que parecia uma miragem…
Percebi os fones encaixados em sua orelha e peguei um, reconhecendo a música na hora. Aquilo me fez sorrir, e eu cantarolei o resto de “Is” do Pop etc., ainda encarando-a. Isso foi tão inusitado quanto familiar. Era tão a gente que não tinha muito o que explicar, só sentir.
E eu sentia um tanto.
Decidi sentar ao seu lado depois de devolver o fone, e apesar da curiosidade estar me matando, optei pelo silêncio, até que ela estivesse pronta para falar.

“Fugindo da reunião?” Ela perguntou, depois de um tempo.
“Parece que você teve a mesma ideia.”
“Algo do tipo. Está pensando em se jogar, não está?” Ela engatou outro assunto do nada, e aquilo me fez murmurar algo como uma risada curta.
“Você também?” Me permiti olhá-la de lado.
“U-hum. Acho que seria um belo jeito de começar o acampamento.”
“Morrendo de hipotermia. Gostei.” Sorri ao ouvir sua risada. “Vamos? Eu topo.”
“Você tá brincando, né?” Ela me devolveu, chocada.
“Ué, não. Por que estaria?”
“Está querendo morrer dessa forma? Congelado?” Confirmei num aceno rápido e ela continuou. “Por que?”

The Smiths dava a cartada final e responderia isso por mim. Depois de tragar e soltar a fumaça do cigarro, coloquei um dos meus fones no seu ouvido, para que ela recebesse sua resposta e, sincronizadamente, cantei a letra.

“To die by your side, it’s such a heavenly way to die... (Morrer ao seu lado é uma maneira tão divina de morrer).”

sorriu de um jeito contido e completou, fechando os olhos.

“Take me out tonight... Take me anywhere, I don’t care... (Me leve pra sair hoje à noite... Me leve a qualquer lugar, eu não me importo...)”

Foi difícil não ficar observando seu momento de paz interior, na qual ela nitidamente apreciava o vento que encontrava seu rosto, e as melodias da música nostálgica e triste do Smiths.

“O que foi?” Ela indagou e eu a encarei depois de tragar o cigarro, não contendo minha preocupação.
“Por que você estava chorando?”

Ela encarou o chão, depois de ficar surpresa com a minha pergunta. Sei que não estávamos totalmente bem, mas estava me matando ver os traços de lágrimas em seu rosto e não saber o que aconteceu, ou não conseguir ajudá-la.
Só que ainda era cedo demais para me aproximar assim, pelo visto.

“Sei que é algo, mas não se preocupe. Não vou insistir.” Decidi me retirar e deixá-la confortável, afinal, ela queria ficar sozinha quando chegou ali. Joguei o cigarro fora e caminhei para sair, mas a pressão no braço me fez parar — e eu mal acreditei no que estava acontecendo.
“Por favor... Fique.”

Foi muito difícil ouvir e manter a calma. A princípio, entendi que meus ouvidos estavam captando, mas a partir disso, uma tempestade de falas invadiu meus pensamentos e eu tive muitos problemas para ponderar e escolher o caminho certo. Logo, demorei para responder.

“Eu te fiz uma promessa...” Falei, ainda de costas, me referindo ao que combinamos há três meses: me afastar.
“Só... fique.” A voz trêmula fez com que o coração desse uma cavalgada dentro do peito; estava chorosa, e dessa vez, estava sendo impossível não considerar seu pedido.

Acho que fiquei tempo demais impactado com isso, porque seus dedos deslizaram do meu braço e assim, não havia mais toque. Eu não precisava me virar para encontrar uma chorando em silêncio enquanto tentava não desabar mais ainda, o que quer que a fizesse sentir daquele jeito.
Será que eu tinha a ver com aquilo? Será que, de alguma forma, eu estava causando problemas novamente?
Não consegui ficar sem fazer nada quando ouvi um suspiro muito baixo vindo dela. Decidi voltar e me sentei perto, encostado no poste, ainda testando os limites do que era saudável ou não na minha aproximação. Eu não queria comprometer nem estragar nada, mas se minha presença fizesse com que ela parasse de chorar, não tinha saídas a não ser ficar ali até que tudo passasse.
Meus olhos se prenderam na sua figura estremecida de quem quer chorar sem causar alarde — o que era inevitável, pois tudo que se tratava dela, me deixava alerta. Eventualmente, nossos olhares se encontraram e ficaram presos um no outro. Sua vista seguia banhada pelas lágrimas e a minha ardia de não piscar; a tensão era enorme dentro de mim e ao meu redor.
Foi quando deixou escapar um soluço que senti o fio racional se partir dentro de mim; xinguei um palavrão baixo e sem parar para pensar, a agarrei e a trouxe para perto, envolvendo-a com meus braços de uma maneira acolhedora, quase desesperada.
Eu apertei o enlace, sentindo sua cabeça pesar em meu peitoral.

“Tom, o q-que...” Sua fala assustada foi interrompida por um pedido meu.
“Não, por favor. Pelo amor de Deus, só fica quieta… Eu não vou perguntar nada. Só me deixa fazer algo útil, para variar.”

Acho que entendeu do que se tratava e assim, me abraçou com a mesma intensidade de antigamente — quando precisávamos de um abraço apertado para lidar com os momentos difíceis.

“Por favor, não me deixa sozinha.” Eu ri baixo, sentindo um misto de paz e nostalgia enquanto fazia carinho nos seus cabelos.
v “Eu não vou a lugar algum.”

E como poderia? Ela me tinha ali, e em qualquer lugar que quisesse.
Onde ela estivesse, eu estaria.
Foi constatando isso que eu entendi; o afastamento foi bom para perceber muitas coisas, mas ele não era mais necessário. Um novo tempo tinha chegado; aquele em que eu aprendo a lidar com minhas emoções e a amar de um jeito que deixasse livre ao prezar sua alegria, independentemente de qualquer coisa.
Era desafiador e assustador, porque ninguém nunca disse o quanto era difícil; principalmente se a tendência era centralizar e ter sentimentos de posse sobre o que se ama. Mas eu a queria feliz, e se isso significasse aturar ou qualquer outro cara ao seu lado, eu estava disposto a aprender a ser o melhor amigo que ela merecia.
Porque eu a amava, e o amor não prende; liberta.
Era tempo de amá-la da melhor forma possível: a que merece.

(...)


Alguns dias depois do acampamento e tudo parecia ter dado uma reviravolta; e eu voltamos a nos falar e a nos relacionar como antes (ou talvez até melhor do que isso!), e o bom humor que mal habitava meus dias, simplesmente voltou com força total.
Como nem tudo eram rosas, o destino pregou uma mega treta e praticamente tudo aconteceu; Charlotte, ex-rolo do apareceu; ele, por sua vez, ficou ciúmes da minha reaproximação com e nós caímos no soco (ele que começou! Foda-se, arrebentei mesmo.); muitas e muitas conversas de reconciliação com a minha melhor amiga aconteceram, para a alegria da população mundial e… o idiota do traiu e acabou ficando com a bonequinha de luxo da Charlotte.
E eu pergunto: caralho, por quê? Por que uma pessoa faz um negócio desses?
Se possível, ele estava sendo mais idiota que eu.
Não que tenha alguém reclamando, mas porra, isso era o cúmulo! poderia não gostar dele na mesma proporção, mas havia respeito e consideração ali — e o cara cagou e andou totalmente para isso.
Juro que tentei ficar na minha e não me meter, mas quando a garota deu um perdido em todos nós e ele explicou o que tinha feito, eu quase caí na porrada de novo. Contudo, encontrar a era prioridade no momento. Nos desdobramos e depois de uma hora, finalmente achamos.
Ela desabafava com quando cheguei ao local.

“E é isso que eu menos quero agora. Pena! Pena de mim? Pra quê? O que eu faço com isso, sabe? Eu só queria que nada disso tivesse acontecido, que eu não tivesse sentindo tanta coisa, que tivesse chegado a essa conclusão antes!” Ela dizia com raiva.
“Que conclusão?” questionou com a voz baixa, e respondeu, perdida.
“De que o amor não é pra mim.”

Ouvir aquela frase cheia de dor me deixou completamente abalado. Como ela poderia pensar isso, a partir de uma experiência ruim com um idiota feito o ?
Como o amor não poderia ser para ela?

“Impossível.” Me vi respondendo em voz alta, chamando sua atenção. O olhar de choque da garota que eu amava foi tudo o que precisava para continuar falando, porque nitidamente, ela não acreditava na minha contra argumentação. Caminhei até ela e a segurei pelo rosto, dividido entre puxá-la para mim ou convencê-la do óbvio.
...”
“É impossível. Simplesmente... Não faz sentido.”
“O quê?”
“Você é amor da cabeça aos pés, . Merece todo amor do mundo.” Disse, enquanto limpava uma lágrima, quando notei a tensão na sua face. Balancei a cabeça, negando aquele esforço que ela fazia. Eu não queria aquilo, nunca! “Não precisa disfarçar o choro. Não pra mim. Vem cá.”

Foi no nosso abraço que eu entendi o quanto queria que ela entendesse o que eu sentia; o quanto desejei que ela soubesse, de todas as maneiras, que merecia ser amada sem nenhum pudor ou dúvidas… Como ela não seria feita para o amor, se amor é o que ela desperta em mim?
Estava cada vez mais difícil esconder meus sentimentos, principalmente quando ela estava tão perto, tão frágil, tão… irresistível.
Precisei segurar a onda e seguir conforme o combinado, não tão certo se manteria em segredo meu amor por ela por muito tempo.
Mas é claro que o mundo estava cagando e andando para o que eu seria capaz de fazer ou não.
Uma peça teatral, Aurélia Camargo e Fernando Seixas, de “Senhora”.
Eu e , interpretando um casal.
Beijo no fim da peça.
Nunca, jamais, nem em mil anos eu seria capaz de dar um beijo técnico em . Não com aqueles lábios disponíveis, dentro de um contexto que me permitisse prová-los sem dar na pinta em nada!
Só tinha um problema: meu pseudo namoro e as regras sociais sobre eu estar beijando outra pessoa que não fosse Lis. Se soubesse…
Mas, só me restava convencê-la de que não tinha problema nenhum; era uma esquete para passar de ano!
(Obviamente estava pouco me fodendo para a escola, mas eu usaria daquela justificativa até o fim).
Contudo, nossas discussões sobre essa questão avançaram consideravelmente, e assim, me surpreendeu no meu “próprio jogo”.

“Você consegue ficar de boa depois de uma cena daquelas, mas fica com medo de um simples beijo numa peça?”
“Medo, ?”
“É, medo! Por que tanta preocupação? Não há nada demais! É só uma peça! É só um beijo!” Joguei as mãos no ar, como se não fosse nada.
“É só um beijo?” colocou as mãos na cintura. Eita. Aquilo não era um bom sinal.
“É! Só um beijo!” Fingi naturalidade.
“Só um beijo?” Ela deu um passo em minha direção, e ali, eu comecei a perder meu controle.
“...É.”

A tensão tomou conta de nós, e o bagulho ficou sério quando ela olhou diretamente para minha boca.

“Medo, é?”
“Hm.” Só consegui murmurar, perdido no seu rosto, parando em seus lábios.

Eu estava muito atento ao que ela fazia, mas completamente paralisado pelos seus movimentos e a forma como se aproximava de mim; perigosamente.
Caralho, ela não ia fazer isso, não é?
Puta que pariu!

?”
“Hm?”

Enquanto molhava os lábios, ela encurtou a distância entre nós e segurou meu rosto em suas mãos.
Eu vi a decisão nos olhos dela.
Eu vi a porrada vindo.
E puta merda, eu estava pronto para levar o sacode.

“É só um beijo.” Foi a última coisa que disse, antes de me beijar.

Ali foi a derrota mais triunfal que eu já vivi.
O encaixe do beijo foi tão instantâneo que eu senti um estremecer na boca do estômago — quase me derrubando, diante das pernas bambas.
O beijo evoluiu e a todo tempo senti como se meu cérebro entrasse em pane.
“É real! É real!” Minha cabeça berrava, sem parar.
Nenhum dos sonhos mais fodas que tive foram tão bons quanto a realidade. Eu pude sentir o gosto, a forma como ela beijava, a sua língua brincando com a minha, e uma explosão de tesão acontecendo em casa parte do meu corpo.
Caralho, como eu queria aquela garota!
Se fui triste, não lembrava; se já achei Seixas um cuzão, agora eu o idolatrava; se um dia xinguei a Sra. Strauss, hoje eu era completamente grato a ela!
Era verdade que só conseguia pensar em uma coisa: como, depois de tudo, e eu chegamos num acordo de praticar beijos falsos para a cena final da peça?
Toda noite eu deitava a cabeça no travesseiro com um sorriso desgracado no rosto. Aquela mulher me matava aos poucos e eu só queria que ela continuasse, por quanto tempo possível!
Tivemos algumas discordâncias sobre o acordo e o fato de que eu ainda namorava Elise, mas… não sabia de toda a verdade e seu desconforto era real diante da prática dos beijos. Só consegui convencê-la de que estava tudo bem quando mostrei uma parte da conversa entre Lis e eu; tive o maior cuidado para não mostrar mais do que o necessário. Aparentemente, ela ficou mais tranquila e eu só ficava na espreita de uma brechinha para beijá-la, culpando Aurélia e Seixas na maior cara de pau.
Mas, como cada situação boa tem seu fim, o dia da peça chegou, e intimamente, me peguei com medo. Me acostumei com a intimidade entre nós, que avançava timidamente a cada momento, com a familiaridade dos toques e em como eu simplesmente não conseguia manter minhas mãos longe dela.
A grande questão era a sensação de aperto no peito, ao pensar que, depois da peça, nada mais disso seria real. Nada de beijos, nada de toques, nada de nada. Seria eu e como melhores amigos, que passaram de ano sem precisar fazer prova final, de volta para nossa realidade tão doída quanto uma farpa que não sai do dedão.
Esse sentimento não me abandonou ao longo do dia, conforme as apresentações avançavam. Estava nervoso demais para ficar concentrado, ao mesmo tempo que só captava minha atenção.
Quando dei por mim, a peça tinha começado, e as falas foram fluindo de maneira mecânica; palavra por palavra, o que foi memorizado foi dito e a atuação foi feita dentro do previsto. Estava tudo fluindo bem, mas o sentimento era de perda.
Breve demais, a cena final chegou e nossos olhos se conectaram de acordo com o script; mas eu senti que nada mais parecia teatral. Era o beijo final, o adeus ao acordo, e eu decidi que aproveitaria o momento tanto quanto fosse possível.
Entretanto, com a chuva torrencial, todas as luzes se apagaram, e o ar entre nós ficou suspenso, como a aflição que se debatia dentro de mim. Eu não soube dizer quanto tempo depois, mas o auditório se iluminou, e os aplausos vieram, dando como encerrada a peça.
Meu olhar procurou o de , tão perdido quanto possível, e então, aconteceu; ela saiu correndo, chorosa, sem dizer nada.
Tentei chamá-la, sem sucesso algum. Minha única saída foi segui-la em meio a chuva torrencial que caía em gotas gigantescas em nossas cabeças. Eu tentei a todo custo acompanhar seus passos, mas ela foi muito mais rápida que eu. Quando consegui alcançá-la, ela estava de joelhos no chão, chorando. Por um momento, ela tentou disfarçar e fugir dos meus enfrentamentos, mas eu estava farto de fingir que algo de muito impacto não estava acontecendo.
Foi, enfim, que ela disse. Usou palavras tão certeiras, tão verdadeiras, tão… nós.
E totalmente entregue, sussurrou tudo que eu sonhei em ouvir.

“Porque eu te amo, , e isso não é recíproco.”

O ar saiu dos pulmões e não voltou. Percebi que não estava oxigenando, mas esse nem era o meu foco.
Eu só estava tentando a todo custo entender o que ela tinha me dito.
O início da frase era como uma brisa num dia de calor infernal. Era como a primeira garfada de comida depois de um jejum sem fim. Era como tudo que eu já tinha imaginado em minha mente, só que melhor; porque era real.
Uma única coisa não fazia sentido; como assim não era recíproco? Eu sei que o namoro com Elise deixava tudo confuso, mas o que vivemos nos últimos dias foi algo tão foda para não considerar um pouco do tanto que eu sentia.
Um filme passou em minha cabeça, de todos os momentos que me vi de quatro por aquela garota — e mesmo nos ruins, a emoção que mais se destacava era o quanto eu era apaixonado por ela; para o bem ou para o mal.
Só que eu não esperava, nem nos melhores cenários, que ela sentia o mesmo.

“Eu não acredito nisso… Você tá falando sério?” Indaguei, totalmente perdido.

Acho que o tiro saiu pela culatra; entendeu errado, pela forma como reagiu. Vi em seu rosto o medo, a vergonha, a frustração, e como ela não estava pronta para lidar com a possível rejeição; tudo o que queria era fugir de novo. Mas eu não ia deixar, não mesmo.
Não agora.

, por favor, eu só…” Ela disse, tentando se levantar, mas eu fui mais rápido e a puxei para mim.

Sem nada me segurando, nada me abalando, nenhuma dúvida capaz de me impedir de dar a certeza que ela precisava.
Era só eu e ela, num beijo faminto, ansioso, urgente.
Eu finalmente entendi: o amor que merecia, sempre estive disposto a dar. Poderia não ser o único, mas não se tratava de exclusividade; era sobre a disponibilidade dos sentimentos, de perder os medos, de enfrentar os desafios, e de enfim, viver o que havia de mais sublime nos últimos tempos: um amor correspondido.


Capítulo 32 – I can’t believe I’ve found

’s POV

Não era sonho.
Não era alucinação.
E eu sequer havia bebido uma simples gota de álcool.
Aquilo era tão real quanto a falta de ar que me assolou, depois de tantos beijos trocados — e nenhuma palavra dita.
Eu ofegava, assim como ele. Nossas testas estavam unidas e eu mantive os olhos fechados, com medo daquilo não ser real, sem saber o que me aguardava a partir dali.

…”
“Você não poderia estar mais errada.” Sua fala saiu intensa e isso fez com que eu involuntariamente levantasse minhas pálpebras.
“O quê!?”

olhava diretamente nos meus olhos.

“Você não poderia estar mais errada. Me diz, como isso não pode ser recíproco?” E com firmeza, pegou minha mão e colocou em seu peito, pressionando sua palma em si mesmo.
? Você está falando sério?”

Nos olhamos por um tempo, como se estivéssemos calculando nossas respostas, digerindo tudo o que estava acontecendo.
Foi diante do silêncio das vozes, onde somente a chuva poderia ser ouvida, que percebi um detalhe: estava tremendo.
Não, tremendo não era a palavra correta.
Ele estava vibrando. Sim, vibrando!
Eu poderia sentir através da minha mão, acoplada em seu peito. Reparei melhor em seu rosto e ele parecia perdido em pensamentos ao tentar reorganizá-los, como se estivesse escolhendo cada palavra com muito cuidado, ao tempo que a incredulidade nunca abandonou seu semblante. E, nesse aspecto, éramos iguais.
Apesar da ansiedade, consegui aguentar mais um tempo em que apenas nos encaramos, pois sabia que ele estava unindo forças tanto quanto eu, momentos atrás.
Ao umedecer seus lábios, ele segurou meu rosto com mais delicadeza e retirou os fios molhados que atrapalhavam minha visão. Me encarou de um jeito doce enquanto sorria; como se estivesse vendo algo incrível. Para minha surpresa, ele riu ao passear os olhos pelo meu rosto, numa expressão de quem mal acredita no que está diante de si.

“Eu sei que isso parece muito doido, mas é verdade. O que eu sinto…” parou por um segundo, e eu vi o nervosismo escancarado em sua face, quando seus olhos fugiram dos meus.
“O que você sente?” Me vi perguntar, erguendo seu rosto para que ele me olhasse de volta. Ele me encarou num misto de receio e vislumbre.
“Porra, não tem outro termo: eu sou completamente apaixonado por você.”

As pontas dos meus dedos já estavam geladas o suficiente, por causa da chuva. Mas eu juro que, depois de ouvir aquilo, foi como se minhas extremidades sequer existissem, de tão dormentes que estavam.
Senti o coração palpitando, retumbando dentro do peito, e céus, que dificuldade em acreditar no que tinha ouvido. Mas era real! Os toques, os olhares, os beijos, os sentimentos! Eles eram reais! Eram recíprocos!
Meu Deus, era isso? Eu era correspondida!?
Não sabia se chorava, se sorria, se fazia os dois, se saía berrando por aí como uma louca! Não sabia como reagir, e acredito que todas as emoções atravessaram minha feição, arrancando um riso baixo e ainda surpreso do meu melhor amigo.

, eu… Eu nem… Argh! Nem consigo montar uma frase.” Nunca me odiei tanto por parecer uma idiota apaixonada (mesmo que fosse exatamente o que eu era), e só riu, deixando o polegar fazer um carinho em minha bochecha, me fazendo prender meu olhar no seu.
“Eu sei que é muito para entrar na cabeça de uma vez, mas é verdade, . Acho que nunca falei tão sério…”
“Jura?” Deixei escapar pelos meus lábios, e ele me contemplou por um instante.
“Juro. É tão real quanto doloroso. Acho que nunca senti tanto êxtase quanto medo.”
“Medo?” Perguntei com a voz rouca, e ele riu de si mesmo, me encarando de uma maneira sugestiva.
“Medo de perder a nossa amizade, . Você não faz ideia…” Ele divagou com o olhar perdido e eu meio que prendi uma risada.
“Eu acho que faço.” Respondi, entendendo perfeitamente os receios de . Ele me olhou com uma curiosidade quase infantil e riu, balançando a cabeça.
“Cara, como conseguimos conciliar todas essas emoções? Porra, como disfarçar minha paixão se eu tinha total direito de te beijar? O quanto quisesse, como quisesse, tudo em nome de uma peça? Isso não estava nos meus planos, nem mesmo nos meus melhores sonhos! Eu pensei que uma oportunidade dessa nunca iria rolar — não antes de uma confissão e arriscar tudo que a gente tinha.”

Senti um aperto no peito ao perceber que temia a mesma coisa que eu. Por conhecê-lo tão bem, foi nítido como a água perceber a confirmação em sua feição.

“E se caso tudo falhasse, nós nunca seríamos o que sempre fomos.” Falei com um peso na voz, e ele me encarou com um ar sofrido ao seu redor.
“E eu não estou disposto a perder você, de nenhuma maneira.”

Eu arfei com sua fala, e senti que meu queixo caiu, sem saber lidar com a gravidade (física e dos fatos).

… Isso é inacreditável. Tanta coisa passando pela minha cabeça, e eu nunca pensei que esse seria um desfecho possível.” Falei de maneira sincera, e ele colocou as duas mãos em meu rosto, me fazendo encará-lo mais de perto.
“Mas preciso que você acredite. Porque não tem mais volta.”

Num ato súbito, ele se aproximou com agilidade e nossos narizes se tocaram novamente, me deixando zonza com tudo; o toque, a fala, o olhar… Até o silêncio que precedia qualquer palavra.
me tinha inteiramente entregue.

“Então… é real?” Murmurei baixinho, sentindo meu olhar vacilar entre seus olhos e sua boca.
“É o que há de mais real em mim.”

Num avanço quase tímido, arrastou seus lábios nos meus, roçando devagar, e eu deixei minha vista se fechar, embalando naquele beijo doce que se misturava à chuva, às lágrimas, e ao gosto de sua língua na minha. Tudo encaixou de uma maneira tão incrível a ponto de sentir que poderia permanecer naquele ritmo por horas, sem contar o tempo — aliás, quem está contando, não é mesmo?
Eu só queria continuar sentindo a reciprocidade na prática, me segurando no pescoço de e agarrando seus cabelos enquanto meu corpo se grudava ao seu numa química alucinante, perturbadora, que me tirava o juízo! Caramba, eu só queria que ele continuasse me trazendo para mais perto, deixando suas mãos apertarem minha cintura, pressionando seus dedos contra minha pele de uma maneira firme, quente…
Entretanto, o som do céu rasgando através de um raio nos interrompeu, e automaticamente nos separamos, percebendo que aquela tempestade não tinha intenção de respeitar nosso momento. Nos olhamos, ainda assustados, mas foi ele quem quebrou o silêncio.

“Podemos sair daqui? Eu não quero que a gente seja eletrocutado.”

A minha risada foi instantânea; aquilo era tão nós! Uma frase completamente aleatória (e ainda assim, super pertinente), depois de um momento tão intenso… Se não o mais intenso na nossa história.
Nos posicionamos um do lado do outro, trocando olhares envergonhados, receosos, sem saber exatamente o que fazer. Ainda assim, havia um rastro de alegria em nossas expressões, e um certo alívio por talvez entender que o que um sentia, ecoava no outro, e vice-versa.
ofereceu sua mão e eu a peguei com força, ainda olhando em seus olhos. Seus lábios até tentaram, mas seus olhos sorriam mais que a boca, e eu me peguei tirando fotos mentais daquela cena tão incrível, marcando em mim todos os sentimentos possíveis. Eu sei que tínhamos muito o que pontuar, mas só de pensar que havia reciprocidade em tudo que eu sentia por ele, já me fazia sorrir boba de tanta alegria.

“Vamos?” anunciou a partida, olhando para frente e começando a correr em direção a sua cabana, que era a mais próxima dali. Eu apenas segui seus passos, achando aquilo a coisa mais prazerosa do mundo, e comecei a rir perante ao misto de sensações que borbulhavam dentro de mim. Pelo visto, achou a mesma coisa, porque nossas risadas se misturaram junto ao som da chuva que caía. Nós agíamos como se aquilo fosse uma brincadeira interna, e as palavras mal precisavam ser ditas para que tudo fizesse sentido. Aquele momento era tão mágico quanto inusitado.

Entretanto, quando chegamos na sua cabana e eu fechei a porta atrás de mim, a atmosfera mudou um pouco, tornando-se mais séria diante do tanto que precisava ser explicado.
Ainda ofegante pela corrida, respirou fundo e deu um passo em minha direção, alcançando minha bochecha com sua mão direita e acariciando minha pele num toque aconchegante. Eu fechei meus olhos momentaneamente, e prendi a respiração quando senti que seus lábios tocaram os meus. Dessa vez, com muito mais calma, como se ele degustasse cada centímetro de minha boca. Eventualmente nossas línguas se encontraram, e eu abracei suas costas, trazendo-o para mais perto.
Seu corpo juntou-se ao meu e suas mãos seguraram meu rosto com delicadeza, conforme o beijo lento e calmo acontecia. E eu só sentia um frio na boca do estômago, a todo tempo pensando apenas em desfrutar mais e mais.

“Cacete, eu só penso em te beijar…” Ele confessou enquanto arrastava seus lábios pela linha do meu maxilar, deixando um rastro quente pelo caminho, e eu tentei reprimir outro gemido quando senti sua língua encostar em meu pescoço, me fazendo arrepiar involuntariamente pela diferença de temperatura. Aquilo era tão gostoso!
…” Minha voz saiu rouca, arrastada, e meus dedos novamente brincaram com seus fios bagunçados pela chuva, vez ou outra apertando sua nuca conforme a intensidade dos beijos em meu pescoço avançava.
“...E você me chamando assim não ajuda em nada.” Sua voz soou grave atrás do meu ouvido, numa entonação provocativa, e eu ofeguei quando senti sua boca depositar um beijo molhado ali, até que seus dentes se arrastaram na minha pele, me provocando mais. Não conseguindo segurar minha vontade insana de querê-lo novamente em minha boca — foi quase brutal a forma como puxei seus fios entre meus dedos, erguendo sua cabeça e atacando seus lábios, percebendo por um milésimo, a surpresa que alcançou seu rosto. Contudo, no segundo seguinte ele me beijava de volta, pressionando seu corpo contra o meu, e suas mãos tornaram-se mais possessivas ao dedilhar minha cintura; a pressão de seu polegar nos primeiros rastros de minha costela me deixava extasiada, enquanto eu notava com excitação o encaixe de nossos corpos.

Eu estava ardendo, queimando junto com diante de toda aquela cena, mesmo que estivéssemos totalmente encharcados pela chuva. Aquele fogo era algo que nunca experimentei antes.
Mas tudo foi interrompido por um zumbido que nos atrapalhou e nos fez afastar levemente. O barulho estava incômodo e um tanto alto, e nós nos olhamos assustados, até que eu lembrei que se tratava do meu celular. Eu franzi meu cenho, buscando o aparelho e vendo que me ligava.

“Atende.” disse com um sorriso ameno. “Ela deve estar preocupada.”

Eu suspirei e concordei, atendendo a ligação logo em seguida.

“Alô?”
“ONDE CARALHOS VOCÊ SE ENFIOU?”

Eu tive que afastar o celular do meu ouvido, e isso tirou uma risada baixa de , que beijou minha cabeça num ato carinhoso.

“Eu estou bem! Calma!” Respondi de imediato e ouvi soltar o ar do outro lado da linha.
“Cara, não faz mais isso! Tá dando várias trovoadas sinistras e você decide se meter na chuva? Pelo amor de Deus, Aurélia!” Foi a minha vez de rir e apenas rolei os olhos com o drama. “Mas você está bem mesmo? O que aconteceu?”
“Está sim, eu só… precisava respirar. Me senti sufocada com tudo, você sabe.” Respondi um pouco tensa ao rememorar as sensações de momentos atrás, e me olhou atento, me deixando sem graça.
“Tá, e onde você está?”
“Eu estou na cabana." Respondi com certa timidez, pensando que aquilo não era exatamente uma mentira… Quer dizer, eu não estava na MINHA cabana, mas, aquilo era uma cabana, certo?
“Ok, você quer que eu vá aí? Apesar de… Bem, está caindo o mundo.” Ela divagou, aflita. “Mas não importa, se você precisar eu…”
“Não precisa, . Já estou melhorando. Fica tranquila…” Um burburinho alto começou do outro lado da linha e eu estranhei, confusa. “Alô?”
“Ai, tá bom! Eu estou checando a primeiro, tá? Calma, ! ?”
“Oi?” Respondi numa entonação curiosa.
“Você por acaso viu o ? Os meninos estão preocupados. Ele saiu para te procurar, logo depois que você saiu correndo…”
?” Eu repeti, encarando o homem na minha frente, que fez uma cara alarmada.
“É, esse fim de peça foi uma confusão do caralho por causa da queda de luz, mas não conseguimos falar com ele ainda. Estamos um pouco receosos. Para falar a verdade, está tendo um ataque!”
“Vocês tentaram ligar?" Eu comecei a falar, tentando enrolar sem saber muito o que dizer, ao tempo que pegou o celular, vendo as chamadas perdidas dos amigos. Ele deu uma pequena bufada e logo ligou para um deles, se afastando.
“Sim, nós ligamos mas…” Ao fundo, pude ouvir outro celular tocar. “É ele? Ai, que bom!” Ouvi do outro lado da linha.

Em contrapartida, começou a andar pela cabana ao falar com .

“É, foi mal, eu nem percebi. Sim, eu to bem, só vim ver se a também estava. Não foi nada, é que ficou muito sufocante lá dentro, meio que bateu um desespero pós peça. Sim, ela está bem, avisa para a que eu já a encontrei. Tudo certo.”
“Amiga?” me chamou e eu tomei mais distância de .
“Oi!”
“Ele está bem, tá falando com ele e…”
“É, ele apareceu aqui. Tá tudo bem.” Falei de um jeito mais sóbrio, ainda que estivesse me sentindo muito nervosa com tudo.
“Finalmente! Vocês estavam incomunicáveis.”
“É, bem… Muita coisa rolando.” Fechei os olhos e respirei fundo, pensando nos assuntos que estavam por vir. “Amiga, eu vou ter a conversa com ele agora.” Usei uma entonação sugestiva e pareceu arfar do outro lado da linha.
“Ai meu Deus. Você diz conversar, conversar? Sobre… Aquilo?” A última palavra saiu sussurrada e eu mordi o lábio inferior.
“Sim!” Respondi ansiosa e pirou.
“Aí! Meu! Deus! Eu não acredito, caralho, não creio mesmo! Puta merda, isso é gigante! É um momento tão…”
“Amiga, por favor, eu to ficando mais nervosa!” Sussurrei, cortando seu surto enquanto tentava controlar o meu. “Só deixa eu ir logo antes que a coragem acabe.”
“Tá, tá certo, tá certo! Boa sorte, te amo! Vai ficar tudo bem! Vai dar bom, qualquer coisa estarei aqui!” A frase inteira foi sussurrada e eu sorri um pouco com aquela força que ela estava me dando.

era incrível até debaixo d’água.
No caso, de chuva.

“Obrigada, amiga. Também te amo muito!” Agradeci, rindo pelo fato dela não parar de falar e dar conselhos.
“…E qualquer coisa, joga os peitos na cara dele!”
“Tchau, !”

Desliguei a ligação e me virei, encarando caminhar para um lado e para o outro enquanto conversava com .

“Sim, eu juro que não foi de propósito, cara. Eu nunca faria isso. Eu sei, você tem cardíacos na família…” E rolou os olhos, me fazendo prender uma risada. “, tá tudo bem, sério. Obrigado por se preocupar… Hã? Ah sim, o show… Hm, sei. E ele acha que é passageira? Ok. Meia hora? Quarenta minutos? É, vamos aguardar, ainda não está tarde… Acho que dá para manter, sim. É, o importante seria apenas a luz, se não tiver mais picos, mesmo com chuva pode rolar. Beleza, então vou aproveitar e tirar essa fantasia, me arrumar e logo depois encontro vocês, certo? Tá, valeu. Até logo.” E desligou, rodando em seus próprios pés ao se virar para mim.

Deixou o celular em cima da sua cama, andou em minha direção e quando ficou perto o suficiente, começou a ajeitar os fios molhados dos meus cabelos, fazendo um carinho gostoso.
Seu sorriso alargado se tornou ameno, e por fim, ele respirou fundo, me olhando nos olhos.

“Eu sei que a gente precisa conversar, mas não sei exatamente como começar isso.” Ele comentou nervoso e eu dei de ombros, o olhando com carinho.
“Apenas… vamos falando. Somos nós, não é?” Sugeri com um sorriso e ele repetiu meu gesto, concordando com um aceno.
“É… Ok.” Ele me olhou encabulado, e tomou coragem para começar. “Então… estamos apaixonados.”
“É.” Concordei com dificuldade de segurar o gritinho fino que soou em minha mente.
“Um pelo outro.” Ele acrescentou o óbvio e eu ri, acenando com a cabeça. Mais outro gritinho.
“Sim…” Sorri sem graça, ainda sem acreditar direito que aquilo era verdade. “Você… sabe há quanto tempo?”
“Hm?” Ele perguntou e eu levantei a cabeça para encará-lo, me sentindo encabulada.
“Há quanto tempo você sente isso por mim?” Lancei de uma só vez e ele deixou a boca aberta, tentando responder, ficando tenso.
“Há 18 anos?” E me olhou com uma careta de dor. Eu deixei o queixo cair, sentindo o tiro de resposta.
“Você tá falando sério!?”
“Não é como se eu tivesse acordado um dia e bang, paixão, sabe? É mais como se já estivesse lá há tanto tempo, mas só me dei conta quando…” Um suspiro cansado abandonou suas narinas, e ele terminou a frase com um sussurro seco. “Merda.”
“O que foi?” Indaguei, vendo sua feição irritada. Ele me olhou, tentando soar mais calmo.
“Fico puto comigo mesmo só de lembrar… Porque só tive certeza depois da grande briga, mesmo sentindo isso há muito tempo.” Ele divagou, ficando sério. “A verdade é que fiquei maluco quando vi você e juntos, cada vez mais sério. E só assim, o sentimento começou a ser mais nítido para mim.”
“Sério?” Franzi o cenho e ele suspirou, enfadado consigo mesmo.
“Eu sei, mais idiota impossível… Mas é a verdade. Eu estava orgulhoso demais para admitir qualquer coisa. Fui pura confusão mental nos últimos tempos e não me orgulho disso. Nem um pouco.”

Nos encaramos com olhares expressivos e foi minha vez de suspirar.
Deixei meus dedos passearem por seu queixo, como quem junta forças para aprofundar a conversa.

“É, . Só que eu terminei com .”
“Por minha causa?” Ele rebateu com curiosidade palpável.
“Sim, ué. Não! Quer dizer… sim e não.” Uni as pontas dos meus dedos, me sentindo boba, tentando traçar uma lógica naquilo que eu dizia. “Eu estava com , que queria me namorar, mas eu não, porque não gostava dele como…” E ergui o olhar, encarando . “Como gosto de você.”

abriu um sorriso e arfou, balançando a cabeça, como se isso organizasse os pensamentos.

“Então você mentiu!”
“Espera, o quê?” Franzi o cenho, confusa.
“Você mentiu! Sua caozeira! Mentirosa! Eu sabia!” Ele exclamou várias vezes, como se tivesse ganhado na loteria, enquanto apontava um dedo em minha direção.
“Me explica, por favor.” Pedi com uma cara de tédio, e ele sorriu, debochado.
“Quando eu te perguntei sobre estar apaixonada antes de encontrar , você disse que era uma paixonite, lembra? Que não era nada e logo depois desconversou! No fim das contas, era sobre mim?”

Eu tive que prender a risada e tapei a boca com a mão, fingindo apoiar o queixo na mesma, enquanto via um totalmente animado, esperando minha confirmação.
Eu estava perdida, não é?

“Sim. Era você.” Eu assumi, sentindo meu rosto queimar enquanto ele comemorava, elétrico.
“Porra! Eu sabia que era alguém! Eu sabia! Só que você mentiu muito mal dessa vez, tá? Apenas não quis entrar no mérito porque tinha medo de descobrir algo que eu não gostasse.” Ele foi sincero enquanto coçava a cabeça, sem graça.
“Tipo?” Perguntei, cruzando os braços.
“Tipo você estar apaixonada por outro cara que não fosse eu.” Ele respondeu de maneira sucinta, com a cara fechada.
“Você é ridículo!” Comentei num misto de descrença e riso.
“Você ama um ridículo!” Ele gesticulou de braços abertos no maior estilo “foda-se” e eu rolei os olhos, cruzando os braços. “E esse ridículo ama você também.”

Nossos olhares se encontraram, e a brincadeira foi se dissipando como fumaça no ar.
Ouvir se declarando repetidas vezes em tão pouco tempo ainda era muito inédito e chocante para mim.
Mas não menos maravilhoso.
Entretanto, tínhamos pendências sérias a serem resolvidas.
Peguei suas mãos nas minhas e o encarei séria.

“Preciso entender isso melhor, porque ainda há peças que não se encaixam nessa história.”
“Lis.” Ele respondeu, pesaroso.

Eu concordei com um aceno, e ele me imitou, encarando nossas mãos unidas.

“Isso não vai ser fácil de explicar, mas você tem toda razão. E nem eu quero começar essa conversa de outro jeito, se não o certo. Só tente manter a cabeça aberta e pense que, na maior parte do tempo, eu não estava no meu melhor momento quando tomei certas decisões, ok?”

Ok.
Pronta.
Prontíssima para infartar.
Engoli em seco, com medo do que viria, mesmo sabendo que não tinha como voltar atrás.

“Estou ouvindo.” Respondi já imaginando mil cenários ridiculamente trágicos.
“Não existe namoro de verdade. É falso.”

Quê!?
Mas gente, sério: QUÊ!?
Por tudo que é mais sagrado, o que diabos ele estava dizendo!?
A palpitação no peito não sabia se comemorava pela informação recebida, ou se chorava com medo dos motivos dela existir.

“Como assim não é real, ? Eu estava lá, vocês fizeram a maior cena, assumindo para todos os amigos… Cara, seu sogro estava lá! É mentira? É só pegação, é só casual? Por acaso ela é sua P.A.?” Eu vomitei várias coisas de uma só vez, com a voz levemente esganiçada, e como qualquer pessoa com cérebro de minhoca, ele apenas focou em uma coisa.
“P.A.?” Eu bufei com aquela pergunta, rolando os olhos.
“Pepeca amiga.” Respondi numa só tacada, fazendo ele rir a ponto de gargalhar. Mas, graça mesmo, só da parte dele, né! Eu estava sedenta por respostas, morrendo de ansiedade, e o idiota ali, rindo da minha gíria!
“Não! Nem chegamos a isso. Eu sei que parece muito doido, e de fato é, mas esse lance nunca foi sério. Nunca teve sentimento de verdade, foi mais um tipo de… combinado.”
“Não, não, calma aí. Como assim, um combinado?” Um zumbido veio forte no meu ouvido, e eu poderia jurar que era meu cérebro trabalhando firme para tentar entender. “Explica isso direito, por favor.”

suspirou, deixando o sorriso morrer aos poucos ao endireitar a coluna e fechar os olhos, se concentrando.

“Eu juro que estou tentando, mas está soando uma merda, não é?” E os abriu, olhando para as próprias mãos, esfregando-as num movimento rápido e enérgico, como quem se prepara para algo importante. Seus lábios inventaram sorrisos que não se sustentavam, e eu percebi que na verdade, sua boca estava tremendo um pouco. E então, seus olhos focaram nos meus.
“Eu tenho noção de que não vai fazer o menor sentido, diante de tudo que a gente já viveu, mas é verdade: meu relacionamento com Lis não é real. Tanto é que eu te convenci de que não tinha problemas sobre o acordo da peça, porque de fato não existe nada entre eu e Lis. É um combinado. Lembra das mensagens que você leu? Então. Nunca teve problema, porque nunca foi um relacionamento de verdade.”

Oh meu Deus.
As mensagens!
Minha boca estava escancarada em choque, quando uma memória em particular martelou em minha mente.
Na conversa entre Lis e , ela deixou algo que me prendeu muito, e eu lembro não ter entendido muito bem.
Agora, faz todo o sentido.

“Ela vai ver a verdade com os próprios olhos e não vai precisar mais se preocupar.”


Era tudo mentira. Elise e não existia, mesmo!
Eu engoli em seco, sentindo tanta confusão na mente que foi até difícil falar algo. Eu senti meu rosto se contorcer em caretas, mas dizer algo mesmo? Nada.
me olhou aflito, lendo meus trejeitos e percebendo meu estado de espírito. Inseguro, acolheu minhas mãos nas suas e fez contato visual, dando continuidade a explicação cabulosa que pairava entre nós.

“Antes de explicar como o combinado surgiu, eu preciso que você entenda algo…” As narinas se abriram conforme ele puxava o ar com força, e, sentindo-se emocionado, começou. “Eu não lembro o dia, nem a hora, muito menos os minutos. Tive muitas dificuldades para descobrir o que eu sentia e mais ainda para admitir para mim mesmo tudo o que estava na minha cara. Eu errei para um cacete contigo, fiz e disse coisas bizarras, movido por uma tempestade de sentimentos que me deixava fora de mim. Eu não soube lidar com o que sentia… Na verdade, mal conseguia aceitar, porque era muito certo para mim que quebraria a cara, e nem a sua amizade conseguiria manter. Desespero era o meu nome! Você sabe… Foram longos três meses.” O queixo de se enrugou, e sua voz embargou. “Foi um inferno ficar sem você.”

Eu engoli meu próprio nó na garganta, sentindo suas mãos apertarem as minhas, como se ele extraísse forças para continuar falando. Eu o encorajei com um carinho de meus polegares, enquanto o olhava com o coração meio apertado.

“Nos últimos tempos, as coisas aconteceram de uma maneira muito rápida e atropelada. Eu não sabia lidar com isso, principalmente com os ciúmes que vinham à tona quando eu te via com . E o dia do primeiro show…”
“Ah, o primeiro show…” Comentei, rolando os olhos enquanto ria de leve. soltou o ar dos pulmões e negou com a cabeça, olhando para nossas mãos.
“Foi caótico. E eu estava numa situação muito esquisita, nunca tinha sentido tanto ciúmes! Vi de camarote o que rolava entre você e . Aquilo era como uma faca atravessando meu peito, por mais brega que isso pareça, mas eu juro: senti como se estivesse prestes a partir no meio.”
“Eu te entendo.” Apenas murmurei, consentindo, e ele prosseguiu.
“Na altura do campeonato, já sabia que aquela chuva de emoções não era coisa de melhor amigo, mas eu tinha medo de enfrentar, de deixar tudo sair… De te assustar e te afastar de mim, caso você não sentisse o mesmo. Ficar sem você, de qualquer forma, era uma merda, mas piorava consideravelmente quando entrava em cena. Eu sei, isso é idiota e egoísta, mas era um pensamento recorrente e incontrolável. Para melhorar, cada vez menos conseguia esconder; as nossas brigas estão aí e não nos deixam negar. De alguma maneira, eu senti que nossa relação estava mudando e, aos poucos, o medo de te perder me dominava cada vez mais. Eu não poderia desabafar com ninguém, e não o fiz, mas Lis percebeu toda minha mudança. Também notou que eu era apaixonado por você, e assim começamos a trocar uma ideia sobre isso.”
“Hm.” Murmurei, tensa.

Aquilo soava extremamente desconfortável e familiar para mim. Imagens e memórias da conversa que tive com há meses, quando ele me encurralou no quarto do , revelando saber sobre meu segredo.
Suei só de lembrar.
A voz de me trouxe de volta.

“Segundo Elise, estava tudo meio na cara. Senti alívio quando ela prometeu não falar nada pra ninguém, então acabei desabafando e dizendo a verdade, que estava muito confuso com tudo. Mas aí é que está: ela suspeitava que você também gostava de mim, e eu obviamente nunca acreditei. Como sou um desgraçado teimoso, sempre neguei essa possibilidade com todas as forças; nunca considerei que seu afeto fosse além da amizade. Logo, era coisa de outro mundo pensar que você me visse de um jeito diferente. Então um dia, num misto de conversa e discussão, eu fiquei teimando que ela estava redondamente enganada, e Lis bateu de frente comigo, se irritou e propôs um teste: ficássemos, para ver o que acontecia. Ver como você reagia, para provar na prática, a sua própria teoria.”

Meu Deus.
Meu Deus.
Aquilo não estava acontecendo.

“Puta que pariu.” Eu disse, sentindo minha pressão dar uma baixada. “Caralho, eu não to acreditando nisso!” se apressou em responder.
“Lembra o que eu falei antes de começar? Então, idiota! Mil vezes idiota!” resmungou consigo mesmo, segurando as têmporas com as pontas dos dedos.

Eu estava chocada demais para falar que eu também era uma idiota.
Mas algo me ocorreu antes que confessasse também.

“Mas ela surgiu com essa ideia do nada, ? Não é possível! O que ela ganha com isso? Ela também gosta de você?” Meu coração deu uma acelerada bizarra naquele momento.

Será que Lis era um da vida?
Ai meu Deus!
negou com a cabeça, coçando atrás da orelha, como sinal de constrangimento.

“Não, não foi do nada. E ela não gosta de mim desse jeito… Depois dela ter soltado a proposta absurda na discussão, começou a explicar uma série de situações que tornaram o combinado mais aceitável.” passou a mão no rosto e bufou, sentindo-se nervoso. “Eu odeio entrar na privacidade das pessoas, mas entendo que a gente precisa falar, então te peço só para isso não sair daqui, tá bem?”

Esse filho da puta quer me ver infartar, não é?
Apenas acenei com a cabeça, sem conseguir dizer nada. respirou fundo e me olhou atento.

“Foi uma junção de fatores. A relação com o pai dela é uma merda, e piorou muito de uns tempos para cá, e então, o Sr. Reagan se tornou muito protetivo e conservador.”
“Eita. O que aconteceu para ser desse jeito?” Perguntei, me sentindo curiosa.
“Elise teve um relacionamento abusivo.” A voz de pesou no ambiente e, de maneira instantânea, a imagem da jovem doce e educada ficou na minha cabeça. Certas coisas nunca estão na cara, não é?
“Meu Deus… sério?”
“Sim. As coisas não acabaram bem, o pai precisou intervir, e por fim, não conseguiu ficar mais tranquilo, impedindo Elise de tomar suas próprias decisões sobre a vida num todo. Ou seja, ela está vivendo um inferno.” comentou num suspiro cansado e eu passei a língua no lábio inferior, ficando pensativa.
“E onde entra o acordo nisso?” Indaguei com a voz baixa. mexeu rápido a sobrancelha, dando de ombros.
“Lis e eu éramos mais vizinhos do que amigos. Na verdade, eu tenho um bom relacionamento com o Sr. Reagan desde sempre; trocamos muita ideia sobre música, gostos, bandas e tudo mais. Ele acompanhou meu amadurecimento musical, me deu várias dicas com composição e a tocabilidade. Posso dizer que ele sempre foi uma figura que me influenciou. Acabávamos conversando por horas a fio, e eventualmente, Lis e eu acabamos nos aproximando, só que na amizade.”
“Ah.” Soltei, ansiosa. “É sério isso?” Minha cara de descrença estava em chamas, e eu não conseguia evitá-la. fechou os olhos, como se soubesse que aquilo era difícil de acreditar.
“Cara, para você ter ideia, foi o pai dela que pediu que eu a chamasse para conversar. Na cabeça dele, eu sou alguém confiável e digno de me aproximar da filha dele. Por um lado, Reagan tomou medidas muito rígidas de cercar todos os contatos. Mas por outro, tem a preocupação paterna, entende? Enfim, por causa de tudo o que rolou, a relação deles ficou desastrosa. Honestamente, Lis não vê a hora de meter o pé de casa e ser independente. Eu entro no jogo quando consigo amenizar isso e tornar a vida dela menos ruim, porque é a partir do relacionamento que ela consegue sair, se divertir, com a desculpa que está com o ‘namorado’ aqui.” apontou para si mesmo e eu pisquei, atônita.
“Isso é uma merda.” Eu comentei com sinceridade, franzindo o cenho. “Eles não se dão?”
“Nos últimos tempos tem sido pior. Parece óleo e água: não se misturam. É desconfortante estar entre eles quando a discussão surge. De toda forma, Elise tem planos para sua independência, mas isso só será possível se ela sobreviver até lá, e não surtar com o pai que tem. E ninguém merece alguém cortando suas asas no momento mais propício para vôo, na sua vida.”
“Eles pareciam tão perfeitos…” Comentei com o olhar perdido e concordou, dando de ombros.
“Nem tudo que reluz é ouro. Nem tudo que parece, é de verdade.”
“Como você e Lis.” Respondi, olhando-o nos olhos. Ele concordou, constrangido.
“Pois é. Acho que só pareceu perfeito porque não era real.”

Aquele baque chamou minha atenção, e eu desviei o olhar para o chão, refletindo sobre suas palavras.

“E aí, depois que ela explicou os detalhes da proposta, você aceitou?”
“Não. Eu achei um absurdo mesmo assim. Mas confesso que fiquei pensativo com o passar do tempo. Lis me ouvia e aconselhava sobre como segurar a onda do ciúmes, como descobrir de fato o que eu sentia, se estava disposto a me declarar… Mas eu morria de medo de arriscar, então me mantive muitas vezes na minha, sem falar ou fazer nada. Entretanto, no dia do show, tudo mudou; a proposta da falsa ficada na frente de todos já tinha sido feita e eu estava irritado por ter brigado com você. Desesperado, vi na sugestão de Elise uma saída que me desse as respostas que eu precisava.”
“Você não acreditava mesmo que eu gostava de você?” Comentei com uma careta de dor e ele negou veemente.
“Nem morto eu considerava isso. Só que no dia do show, tudo aconteceu; juro que até usei a touca que você me deu para mostrar uma bandeira branca, diante das nossas discussões, mas aí…” respirou fundo, com um sorriso triste. Deu de ombros ao continuar a falar, com o olhar perdido. “Mas então, você apareceu. Estava tão linda, tão maravilhosa… E estava ao lado dele, e não do meu. O resto da noite foi ladeira abaixo e as coisas só pioraram! Mal consegui tocar a música nova porque parecia cantar para você e eu achei aquilo muito escroto, porque… Porra! Quem era ele para se sentir o cara certinho, se já tinha te magoado?”
“Você também estava me magoando…” Comentei zombeteira e ele rolou os olhos.
“Eu sei! Já emiti meu certificado oficial de idiota e renovei a carteirinha na Associação de Idiotas Apaixonados. Validade até 2030.”

Eu prendi a risada mal e porcamente, tentando mostrar certo orgulho, mas ele me olhou com um sorriso tão lindo que eu apenas suspirei com aquela fala tão boba, e ao mesmo tempo, tão ele.

“E então?” Sugeri que ele continuasse, e suspirou antes de fazê-lo.
“Para melhorar, você parecia feliz na presença do , como se estivesse super disposta a dar uma segunda chance. Isso obviamente acabou comigo, porque eu fui covarde em não admitir nada, mas corajoso o bastante pra te destratar, como se você estivesse fazendo algo de errado.”
“Isso é verdade.” Comentei com certa mágoa.

se encolheu em seu próprio silêncio, e eu pude sentir sua inquietação, porque sabia exatamente o que ele sentia.

“Que tipo de direito eu tinha? Não tenho nada a ver com suas escolhas; na real eu deveria estar feliz se você também estava. Só que não consegui, e tive mais ódio de mim porque isso é baixo! Se eu te amo, eu não quero você para mim, quero ver você feliz! Mas não consegui ser essa pessoa. Eu não soube lidar.” me olhou com a feição dolorida, envergonhada, e deixou o olhar cair no chão. “O ponto alto da noite foi te procurar logo depois do show e não te achar. Ali, já poderia fechar o caixão com tudo, porque eu concluí que tinha te perdido.”
“Puta merda…” Deixei escapar, tendo dificuldade para acreditar que ele estava tão miserável quanto eu, naquela fatídica noite.
“Não tendo nada a perder, simplesmente acabei me envolvendo com Lis, sem estar afim, apenas por sentir pena de mim mesmo. Honestamente, só queria encher minha cabeça com algo que não fosse você e .”

A feição de era um misto de frustração e tristeza, e eu estava completamente perdida. Não sabia se estava respirando direito, mas senti a boca ressecada e entendi que ela estava aberta há algum tempo, mediante ao que relatava.

“Quando vocês estavam se beijando naquele relógio… a touca no chão…” Meu coração se apertou e eu segurei meu peito, me sentindo mal só de lembrar. “Vocês estavam firmando o acordo?” Perguntei, depois de me recuperar. Ele bufou, balançando a cabeça de maneira negativa, como se reprovasse sua própria ação.
“Foi no dia seguinte. Não tinha mais nada em jogo, e na hora, pareceu uma boa ideia. Eu descobriria se você gostava mesmo de mim como Elise dizia, ao tempo que ela não teria tantos problemas com o pai, por estar com um cara que, querendo ou não, ele conhecia e aprovava. Basicamente, uma mão lavou a outra.”

terminou de falar, comprimindo os lábios e me encarando. Eu estava em choque.

“Então vocês estão juntos por causa de um acordo?” Repeti, um pouco robótica.
“Isso.” respondeu, me olhando sério.
“Que consistia em ficar junto, até que uma das partes resolvesse suas pendências…”
“Sim.”
“Você descobriria se seus sentimentos eram correspondidos ou não por mim… E ela ganharia uma boa relação com o pai?”
“Exato.” Ele se apressou em concordar, e eu acenei, calculando os fatos.
“Por que decidiram começar a namorar só depois de um tempo? Alguma coisa mudou? Rolou… sentimento?”

balançou a cabeça, como se fosse impossível de acontecer.

“Não, não mesmo! Foi por simples e pura pressão do pai. Começou com piadinhas, até que ele conversou comigo diretamente, dizendo que Elise não era uma garota para se brincar, que eu só poderia estar com ela se fosse algo sério.”
“Meu Deus, que quadrado!”
“Um cubo, praticamente…” passou as mãos no rosto, como se lembrasse do lado chato do falso sogro. “Além disso, existe algo que pesa demais também: a questão da banda; o Reagan realmente tem sido uma peça chave para tudo começar a andar. Foi foda não considerar todas as questões e, por fim, pensar no namoro falso foi tudo o que eu tinha. Inclusive, como minha última cartada em relação a você. Então apenas pareceu…”
“Perfeito para a ocasião.” Completei, chocada.
“É…” respondeu, me olhando receoso. “Sei que nada disso é admirável, cara… Mas tenta entender. Eu estava perdido.” Ele fez uma careta de dor e estalou a língua, irritado consigo mesmo. “Na verdade, eu não espero que você entenda, porque é realmente muita idiotice, até mesmo para mim. Mas falo sério, principalmente sobre o quão desesperado eu estava. Nunca senti tanta coisa junta, sabe? Frustração, incapacidade, baixa autoestima… Me sentia monstruoso por não ser alguém capaz de despertar algo em você… logo quem eu mais quis na vida.”

Eu o encarei por uns instantes, pensando na ironia das coisas, e um tanto atravessada pelas palavras finais dele. Parecia traduzir muitos dos meus sentimentos também. Ele estava achando que eu o julgava, quando na verdade, o entendia muito bem.

“É bastante coisa… para digerir.” Falei de maneira sincera, e ele concordou com um aceno.
“É, eu sei. É difícil até para mim, que já estou nessa há algum tempo. Não espero que entenda tudo de primeira… Mas, se ajuda de alguma forma, eu estava prestes a desistir desse acordo.”
“Por que?” Aquilo me deixou surpresa.
“Porque comecei a cair em mim e pensar na situação desnecessária que estava me metendo. Só segurei porque pensei em bater o martelo depois do fim do ano. Você sabe, eu tinha muito a considerar. Não queria deixar Lis numa situação ruim, nem a Mcfly sem o apoio crucial que estava acontecendo, mas… estava me sentindo mal comigo mesmo. Como se todos soubessem dessa falsa relação, como se diariamente meu reflexo me jogasse na cara o quanto eu era um covarde. E mesmo que a gente tenha se declarado, eu ainda me sinto assim.”
“Não é covarde, …”
“É sim.” Ele interrompeu, certo de si. me encarou com um semblante tão machucado, tentei insistir.
“Não é, não se pese tanto.”
“Mas eu não consegui nem me declarar para você no dia do show, quando já sabia o que sentia!”
“Eu também não!” Retruquei e ele negou com firmeza.
“Nem se compara, cara. Você terminou com e foi fiel ao que sente. Eu apenas fui covarde, até mesmo…”
sabia que eu gostava de você!” Respondi com pressa, interrompendo-o e vendo seu semblante mudar na hora.

A surpresa foi tanta que até o corpo chegou a ir para trás com a notícia.
Ele estava como eu: perplexo.

“Como é que é!?” A voz até veio num timbre diferente.

Eu mordi o lábio inferior, olhando para os meus pés.

“É. Ele sabia que eu gostava de você. Percebeu isso em pouco tempo.”
“Como… Caralho, como? Como esse filho da mãe percebeu e eu não!?” falou rápido demais, com o cenho franzido, e eu dei de ombros, rindo sem humor.
“Acho que temos a autoestima baixa. Nenhum dos dois acreditava na reciprocidade, vê?” Deduzi um pouco amarga e respirou fundo, segurando a base do nariz enquanto fechava os olhos.
“Eu sou um idiota.” Sussurrou para si mesmo, mas logo abriu os olhos e mirou em mim. “Mas como isso aconteceu?”

Eu mordisquei os dois lábios e os prendi numa linha fina antes de responder.

ficou afim de mim, você sabe…”
“É, demais até.” respondeu, cruzando os braços, falhando em esconder os ciúmes. Eu dei uma pequena risada, mas logo voltei a ficar séria.
“Bom, ele…”
“Ele?” abriu mais os olhos, tornando-se mais atento. Suspirei e soltei de uma só vez.
“Naquele dia, lá no … ele veio falar comigo. Disse que sabia que eu gostava de você e por fim, sugeriu um plano.”

A boca se escancarou de uma só vez; seus olhos piscaram inúmeras vezes, e uns sons esquisitos tentavam sair, mas eu sabia: ele estava tão sem chão quanto eu.
Finalmente, as palavras vieram.

“Caralho, eu sabia que tinha alguma merda! Aquelas frases dele nunca fizeram tão sentido!” riu com sarcasmo, e rolou os olhos. “Era por isso que ele estava com tanta raiva de mim e a gente discutiu. Insinuou que eu estava te magoando e… estava completamente certo.” encarou os pés, negando com a cabeça. Respirou fundo e me olhou, tentando se recompor. “E então, ele te sugeriu um plano?”

Eu concordei com um aceno, deixando absorver as informações.

“É. Só que nesse caso, eu estava decidida a não me declarar para você, porque tinha certeza que gostava da Lis. Então era apenas uma tentativa de te esquecer, e do tentar me conquistar, você sabe… com o tempo.”
“Mas que filho da puta!” exclamou com as mãos abertas e eu arqueei uma sobrancelha.
“Por quê?”
“Ué! Se ele percebeu seus sentimentos, talvez ele soubesse dos meus também! Assim como Elise! Só que no meu caso, eu não acreditava mesmo nisso! Já no seu, ele nem chegou a dizer nada para você! Então eu me pergunto: será que ele sabia que eu te amava?” se virou para mim, e eu dei de ombros, sem nunca ter considerado isso.

E um tanto mole por ouvir aquela frase tão gostosa. “...Que eu te amava.” Ai!

“Eu não sei.” Sussurrei, praticamente. me encarou com pena e segurou meu rosto, me olhando contemplativo. Um sorriso de canto surgiu, enquanto ele dedilhava os pelos da minha nuca.
“Então você tinha um combinado com , e eu com Lis?”
“Ao que tudo indica, sim.” Minha voz soou amarga, e eu fiquei pensando no que a gente tinha na cabeça para concordar com essas ideias de jerico.
“Gostando um do outro, estando em relacionamentos com outras pessoas?” refletiu em voz alta e eu acenei, voltando a olhá-lo.
“Isso aí. Dependendo do universo em nos colocar numa peça e um acordo beijoqueiro para assumir nossos verdadeiros sentimentos. É sério que temos que ser gratos a José de Alencar?”

Ele riu, deixando escapar seu hálito em mim, e eu sorri ao sentir a atmosfera ficando menos tensa.

“Acho que sermos gratos à profª Strauss já está de bom tamanho.” respondeu, ainda me olhando, deixando o sorriso morrer ao ficar seriamente concentrado em mim. “Quanto tempo a gente perdeu? Por que a gente é tão fodido de cabeça, ?”

E, num movimento sutil, colou sua testa na minha, me fazendo ficar zonza com aquela aproximação sedutoramente sincera.

"Não importa agora, não é? As coisas estão diferentes.” Sussurrei, deixando meus olhos passearem pelos seus, hipnotizados.
“Sim, é verdade. Foda-se essa merda.” Respondeu simplesmente, com um meio sorriso. “Agora, podemos ficar juntos.”
“Juntos?” Eu repeti a palavra feito um papagaio, tendo dificuldade para assimilar a ideia. engasgou com a sua risada de nervoso.
“Você não quer!?”

Nos olhamos intensamente, sem nem piscar direito. Como ele poderia pensar uma coisa daquelas?

“Eu nunca quis alguém como eu quero você, .”

Ele arfou num sorriso incrédulo, escrutinando meu olhar, tendo dificuldades em acreditar nas palavras.

“Sério?” Ele soou como criança e eu acenei positivamente.
“Não me entenda mal, eu só estou muito inacreditavelmente… feliz.” E ri, achando graça das palavras que saíam com facilidade dos meus lábios. sorriu abertamente.
“Caralho, na boa… Essa é a melhor noite da minha vida!” Ele exclamou animado e eu ri daquela empolgação toda, mas logo espalmei minha mão em seu peito, afastando-o momentaneamente enquanto a feição ficava séria.
“Mas como a situação fica, ? Quer dizer, está tudo tão recente. Eu mal terminei com , e para todos, você sequer terminou com Lis. O que a gente faz?”

ponderou por uns instantes, e me encarou.

“Você quer manter as coisas em segredo por um tempo?”

Eu engoli em seco. Odiava ter que disfarçar, mas fiquei pensando que não era a melhor hora para dizer ao mundo que estávamos juntos.
Elise, , a banda, Sr. Reagan…

“Podemos deixar entre nós, por enquanto? Quer dizer, para os envolvidos, podemos dizer. Elise precisa saber que o acordo…”
“Chegou ao fim. É claro.” completou minha frase, me olhando. “Eu preciso conversar com ela, mas está decidido. Eu não vou levar isso adiante. Eu estou com você. Na verdade, sempre estive…”

sorriu apaixonado e posicionou seu rosto a poucos centímetros do meu.

“Ainda é estranho te ouvir falar assim… Mas é um estranho bom.” Respondi, sentindo as carícias dos lábios que roçavam em meu rosto.
“Fico feliz por isso.”
“Então… nada de beijinhos e amassos entre você e Lis, certo?” Perguntei, me sentindo trêmula, e ele riu baixinho.
“Nada entre eu e Lis existiu e jamais terá chances, principalmente depois que provei de um beijo seu.” respondeu com a voz melódica, segurando em meu queixo como um predador prestes a abocanhar a sua presa.

Eu já falei que amava a cadeia alimentar?
Nós nos deliciamos, entregues ao momento de efusividade e pura alegria.
Finalmente não havia nada impeditivo entre nós; nada além de desejo, paixão, carinho, e uma vontade ensandecida de “quero mais”.

“Eu acho que nunca mais vou parar de te beijar.” Ele comentou entre um beijo e eu sorri, deixando meus braços ao redor do seu pescoço.
“Eu não quero que pare…” Deixei meus lábios vagarem, dando pequenos beijos no seu rosto, até que o segurei e encarei séria. “Mas espera. Não tem o show?”
“Puta merda…” deixou a testa apoiada no meu ombro, e eu ri. “Esqueci por uns minutos sobre isso. Logo hoje, quando quero que o mundo lá fora se foda e a gente fique aqui, se curtindo, isolado de tudo e de todos…” E ergueu a cabeça, me olhando sedutor. “O que acha de sumir?”
“Acho que e nos acharão em três segundos.” Respondi com a cara engraçada e ele suspirou, sorrindo.
“É verdade…” ajeitou uns fios de cabelos meus, me olhando como uma joia de cristal. “Você está ensopada.” Ele comentou ao roubar um beijo, ainda deixando seus lábios roçando nos meus.

Eu sei que ele se referia ao traje de Aurélia, mas devido a tudo que aconteceu, era bem possível que eu estivesse ensopada. Mesmo sem chuva. Se é que você me entende…
Ah, qual é! Estava difícil conter os impulsos físicos, diante de cada nova descoberta nos lábios de .

“Você também está todo molhado.” Eu retruquei num fio de voz, mordendo seu beiço inchado de tanto beijar. Ele deu um sorriso de lado, tão perfeito para a ocasião que eu só soube encarar igual a uma idiota.

Entretanto, o momento foi cortado pela sequência de três espirros seguidos, vindos de mim.
me olhou nos olhos, alargando o sorriso.

“Acho melhor nos secarmos. E trocar de roupa.”
“Como eu vou fazer isso, exatamente?” Indaguei, olhando para o lado de fora da janela, vendo a chuva cair mais fina, enquanto pensava na minha própria cabana. suspirou e deu de ombros.
“Eu te empresto uma roupa. Se você não se importar.”

Eu senti as bochechas queimarem, mas apenas concordei com um aceno. foi até seu armário, pegou sua toalha e me entregou, junto com uma blusa azul escura e uma cueca samba-canção que eu havia comprado para ele num “inimigo” oculto que fizemos há um tempo atrás, na casa do , no período de natal. Era uma samba-canção rosa-chiclete com vários Ken’s da Barbie.
Eu adorava aquela cueca, entretanto, nunca vi usando por motivos óbvios, mas pela aparência, ele a usava com a tranquilidade de quem certamente era muito amado por receber um presente daqueles.
Eu apenas ri diante daquilo, pegando-a e levantando minha cabeça para olhá-lo.

“Então você usa os presentes que ganha?”
“Você me conhece. Sabe que eu me amarro no Ken.” Ele respondeu, dando de ombros, e nós dois rimos.

O silêncio chegou de novo, e eu suspirei, sem graça.

“Onde eu posso… você sabe.”

Nossos olhos se conectaram novamente, e deixou a cabeça tombar levemente, me olhando de cima para baixo, como quem realmente analisa alguém.
Me senti totalmente exposta e envergonhada.

?” O chamei, logo depois de pigarrear. Ele finalmente me olhou nos olhos, com uma cara sacana e o olhar meio turvo. Apenas respirou fundo e sorriu.
“Podemos fazer desse jeito, para se sentir mais à vontade. Vou me trocar também, lá no canto. Não espie.”

Com movimentos rápidos, ele pegou uma muda de roupa para si mesmo, deixando as portas do armário abertas para que eu me trocasse por trás delas, enquanto se retirava como um gato ardiloso.

“Espera!” Eu pedi, me lembrando de um detalhe que mudava tudo.
“Hm?” Ele se virou, piscando devagar.
“O vestido. Eu… preciso de ajuda.”

Suas sobrancelhas se ergueram, e a boca ficou entreaberta, revelando a ponta da sua língua tocando o canto dos lábios, como se pensasse sobre a situação.
Por fim, ele soltou o ar das narinas, prendendo uma risada, e mordeu o lábio inferior, balançando a cabeça negativamente enquanto deixava suas roupas em cima da cama.

“Ok. Por onde começo?” E me encarou com os olhos mais baixos. Eu respirei fundo, apenas me virando de costas.
“Pelos botões. Não os alcanço.”

Apesar de parecer uma provocação, aquele não era meu intuito; eu realmente não conseguia fazer aquilo sozinha!
Demorou alguns segundos até que tocasse minhas costas com seus dedos gélidos, mas logo senti o vestido ceder, conforme ele o desabotoava. Eu estava de cabeça baixa, mas algo me fez levantar o olhar, e, num susto, reconheci a mim mesma e a pelo reflexo do espelho, que estava fixado na porta do armário. Ao vê-lo tão concentrado em minhas costas, percebi que suas mãos tremulavam sutilmente, e após umedecer os lábios, ele os prendeu enquanto respirava fundo.
Uma lufada de ar alcançou minhas costas já expostas, e eu não consegui conter um arrepio.
parou de desabotoar e espalmou suas mãos em meus ombros.

“Te machuquei?” Seu rosto preocupado olhava para minha nuca, e eu neguei rapidamente.
“Não, eu só… senti frio.” Menti na cara dura, engolindo em seco. “Pode continuar.”
“Ok.” Ele respondeu, voltando a desabotoar e alguns segundos depois, eu estava com o vestido totalmente frouxo no meu corpo. “Como fazemos agora?”
“Preciso que me ajude enquanto tiro o vestido por baixo.” Respondi, já me desfazendo das mangas, mas parei no momento em que ouvi um barulho estranho vindo de sua boca, e ao erguer novamente minha cabeça, percebi que ele havia engasgado com o ar.
“Você diz, tirar o vestido todo?”
“Sim… Por quê?” Vi piscando várias vezes, abrindo e fechando a boca sem conseguir se explicar inicialmente.
“Bom, hm. É que… você vai ficar praticamente nua.”

Eu automaticamente senti minhas bochechas queimarem, pensando que há minutos atrás, o que eu mais queria era ficar não quase, mas completamente nua com ele. Entretanto, uma vez que a sobriedade me alcançou, eu senti vergonha e soltei uma risadinha sem graça.

“Eu estou com a anágua e o espartilho por debaixo do vestido, .” Respondi com a voz carregada de vergonha e ele arregalou os olhos, como se descobrisse algo muito óbvio.
“Ah! Hm, claro, lógico! Como eu…? Esquece.” Disfarçando com um pigarro, ele me auxiliou a tirar meus braços das mangas do vestido, e me deu apoio quando aos poucos a roupa foi cedendo pela minha cintura, alcançando o chão momentos depois, de maneira pesada.

Com sua ajuda, consegui tirar o primeiro pé, mas o outro acabou ficando preso e eu me desequilibrei, dando saltinhos até quase cair — se não fosse pelo rapaz se agachando para me segurar.
Estava tudo suportável até então, mas, quando reparei que me debrucei nele a ponto de apoiar meus cotovelos em seu peito, também percebi que meus seios ficaram bem próximos do seu rosto, ao tempo que ele me segurava com firmeza pela cintura.
Eu automaticamente prendi a respiração ao encontrar o seu olhar, cravado no meu.
Nossas expressões eram de choque, misturadas com o desejo não tão implícito que emanava de nós. Por um momento, fiquei dividida, pensando no que aconteceria se simplesmente tirássemos as roupas e não colocássemos nenhuma, de forma a começar uma sessão de amassos, explorando todo canto de nossos corpos, de todas as maneiras possíveis.
Imaginei tudo isso acontecendo, mas nada foi real; mordeu o lábio inferior e olhou para minha boca, fechando os olhos por um milésimo de segundos e, quando os abriu, ele engoliu em seco, fazendo menção de se levantar e me ajudando no processo.
Uma vez de pé, eu tentei quebrar o gelo de uma forma muito ridícula, mas qualquer coisa era melhor que o silêncio constrangedor que pairava entre nós.

“Estava pesado, né?” Comentei com a voz baixa, olhando o vestido no chão, mas não obtive respostas. Quando ergui meu rosto, vi me secando totalmente, sem nenhum pudor, ao encarar meu colo.

Ah, o espartilho. O espartilho que ressaltava meu decote e apertava minhas mamas.
estava observando meu busto!
Um arrepio desceu pela minha espinha, e eu tremi, sentindo a fagulha de excitação passear pelo corpo, principalmente no momento que uma gota d’água desceu pelo vale dos seios, bem no meio deles.
pareceu despertar de sua contemplação e eu pigarrei, fingindo coçar o ombro enquanto me virava de costas.

“O espartilho… Preciso de ajuda com eles também, apenas para desamarrar.”

Pelo reflexo do espelho, percebi que encarava minhas costas com os olhos assombrados e escurecidos.

“Sério?”
“Sim. Eu também não os alcanço.” Respondi, totalmente sem graça. engoliu em seco e mordeu o lábio inferior, prendendo os dois numa linha fina antes de responder.
“Você está sem sutiã. Se eu soltar, o espartilho vai…”
“Eu seguro para não cair.” Respondi rápido, me sentindo muito envergonhada.
“Certo.” Sua voz saiu quase num sopro, mas confirmei tanto pelo espelho, quanto pelas mãos gélidas, que ele estava desatando os laços feitos por .

Algum tempo depois e umas longas suspiradas, ele foi me libertando daquele aperto, e meus peitos logo agradeceram quando começaram a “desamassar”, à medida que o espartilho ficava frouxo.
Como dito, tive que segurar na parte da frente para que ele não caísse, até que terminou tudo, deixando a peça totalmente larga em mim. Ela só cobria meu peitoral porque eu a segurava.

“Precisa de mais alguma ajuda?” Sua voz estava bem próxima, e o hálito quente alcançou minha nuca, me fazendo encolher e segurar com mais força o espartilho.
“Não…” Respondi quase melodiosamente, e ergueu sua mão em direção às minhas costas. Senti seu indicador passear pela reta da minha coluna, debaixo para cima, o que me arrancou um arrepio.
“Certeza?” O ar que saiu de sua fala estava próximo demais, e eu quase senti seus lábios fazendo cócegas na minha nuca, onde já não havia mais dedo algum.
…” Pedi, meio anestesiada com aquele carinho nada inocente.
“Hm?” Ele murmurou deixando seu nariz passear por ali, quase ronronando entre suspiros e beijos imperceptíveis.
"Agora você é quem está dificultando as coisas.” Num curto espaço de lucidez, me peguei dizendo isso, e não é que ele deixou escapar um suspiro desanimado, sendo seguido por um riso frouxo e curto, como quem ri da própria desgraça?

Então, ponderando e acalmando os nervos, me virei para ele, tocando sua bochecha com um carinho sutil, dando um breve selinho nele, que reclamou por me afastar e findar o contato. Me peguei sorrindo da sua expressão desapontada que remetia ao de sete anos, emburrado por não ganhar sorvete. Entretanto, havia uma diferença gritante; ao perceber que seus lábios estavam vermelhos pelos beijos que trocamos (e não por um sorvete gelado), eu me peguei suspirando, tentando fugir dos pensamentos sórdidos do que mais poderíamos causar um ao outro, conforme deixávamos nos levar pelos sentimentos que nos transbordavam.
Aquilo era simplesmente algo que não estava previsto nos meus planos para essa noite.
Pelo menos não creio que seria dessa forma que Aurélia beijaria Seixas no fim da peça.
De todo modo, estávamos ali, com os narizes quase se tocando, amenizando os ares.

“Você vai me deixar maluco…” Ele disse com a voz rouca, e eu mordi meu lábio, tentando conter a vontade de agarrá-lo novamente.
“Você já me deixou. De muitas formas.” Eu ri, pensando em todo auê doido que foram esses últimos meses. riu sem graça, concordando com um aceno rápido. Aos poucos, se afastou quase que a contragosto e, ao pegar de volta sua roupa, sugeriu:
“Vamos nos trocar? Não quero que você fique resfriada.”

Eu concordei com um pequeno sorriso, enquanto ele se deslocava para a outra ponta da cabana.
Me escondi atrás da porta do armário, me sentindo besta por inúmeros motivos, e um tanto surpresa ao reparar na química que existia entre mim e . Aquele pensamento me fez rir internamente, pensando em safadezas, mas apenas abanei para longe e me troquei em tempo recorde, saindo daquele pequeno esconderijo enquanto secava os cabelos com a toalha que ele me cedeu.
Confesso que não esperava encontrar as costas nuas de , no fundo da cabana, totalmente expostas para mim. Ele vestia sua bermuda, evitando uma nudez total, entretanto suas costas eram banhadas pela meia luz do lado de fora, deixando a pele reluzir com as gotas de chuva remanescentes da roupa de Seixas.
Me senti no deserto sem uma gota d’água, enquanto agia naturalmente, desatento da minha pequena sessão voyer; ele se secou com uma toalha e logo após buscou a blusa seca para vestir. Num movimento ágil, a colocou e ajeitou a barra, passando a mão para tirar possíveis amassos.
Quando se virou, já o fez questionando:

“Está pronta?” E sorriu chocado, ao me ver ali, reparando na sua beleza. “Você está aí há quanto tempo?”
“Algum tempo.” Respondi dando de ombros, tentando esconder meu sorriso, enquanto voltava a secar os cabelos.
“Eu falei para não espiar…” Ele respondeu, umedecendo os lábios, vindo em minha direção.
“Eu não fiz isso, apenas aconteceu. Fiquei pronta antes de você, juro.”
“Hm, entendi. Vou fingir que você não estava me checando.” Respondeu com um sorriso cafajeste. Eu ri e arqueei uma sobrancelha.
“Igual você estava fazendo comigo há uns minutos atrás, com o espartilho?” Retruquei de braços cruzados, e foi sua vez de rir sem graça, coçando a cabeça.
“É. Bem… vamos pular essa parte?” Ele perguntou e eu respondi na lata.
“E para qual parte nós vamos?”

praticamente me encaixou em si mesmo, segurando minha cintura com firmeza.

“Para a parte que eu tiro o atraso de todos os beijos que não te dei.”

Capítulo 33 – Speechless

’s POV

Eu não sabia.
Eu não tinha noção.
Eu não fazia a mínima ideia!
Se antes pensava que era incrível os pequenos momentos roubados num acordo beijoqueiro, eu realmente não sabia o quão bom aquilo poderia ficar!
Quer dizer, eu amava descaradamente — e estava lidando com a informação recente de que aquilo era recíproco — mas jamais me toquei de que as coisas pudessem chegar naquele nível.
Depois de conversarmos, de entendermos o que de fato acontecia em nossas vidas, foi inevitável não entrar numa sessão de amasso.
E é aí que o bagulho ficou doido.
Eu ainda era virgem, por mais que tivesse uma experiência aqui e ali, provindas do meu último relacionamento com o da Mcfly. Inclusive, nós tínhamos uma boa química quando se tratava disso; nunca neguei o quão gostoso era se embrenhar numa pegação sincera com .
Mas com era diferente. Na realidade, era extremamente prazeroso beijá-lo sabendo de toda verdade. Contudo, agora existia uma constatação mais concreta ainda: nossa química era surreal — nada se comparava ao que vivíamos ali, enfurnados naquela cabana, debaixo de uma chuva torrencial.
Conforme Thomas cumpria a promessa de tirar os atrasos de todos os beijos que não demos, eu percebia mais e mais sobre o quanto compatíveis éramos no quesito sexual também. Na verdade, era tudo muito fluido e homogêneo; tudo encaixava! O beijo, o toque, o ritmo, as carícias, a maneira como parávamos por milissegundos apenas para captar o fôlego (desesperadamente!), para então, retomarmos toda a ação. E vivenciar tudo isso com os sentimentos tão à flor da pele, era uma vivência que jamais tive. Num estalar de dedos, todos os clichês fizeram o maior sentido do mundo; estar com quem a gente gosta, eleva a situação para um nível nunca imaginado. Ou melhor, muito imaginado, mas sem condição alguma de comparação!
apenas me tocava e eu já me sentia derretida como lava. Quente então? Nem se fala.
As coisas alcançaram outro nível quando o toque se tornou mais firme, preciso. Sua mão direita encaixou na minha nuca enquanto a esquerda segurava a base da minha coluna de um jeito quase possessivo, me aproximando de seu corpo. Eu estava tão envolta nos beijos e no sabor dele, que só consegui abraçá-lo com força, num misto de segurança e desejo.
O som dos nossos beijos era erótico demais ao se juntar com o barulho da chuva, e a meia luz do ambiente deixava tudo especial, incrível, e inédito — era um sonho lúcido que eu estava vivendo?
A cada movimento que minha língua fazia na dele, uma parte do meu cérebro gritava em euforia, pensando se aquilo era mesmo real.
Quando aquele pensamento surgiu na minha mente, algo totalmente inusitado aconteceu: caiu.
Sim, ele caiu!
Caralho, como assim ele caiu!?
Mas o pior de tudo: não foi uma queda simples!
Num momento, estávamos na vertical, praticamente grudados e sem conseguir distinguir quem era quem. No momento seguinte… estávamos deitados na cama.
Eu sei, parece loucura (ou talvez faça muito sentido e eu estava lerda demais para entender), mas foi acidental; a perna de encontrou o limite da cama de madeira, e, ao desequilibrar, ele caiu de costas no colchão, totalmente sem jeito. E, por estar agarrado a mim, eu caí por cima dele, igualmente sem jeito.
Tudo aconteceu rápido demais e nos assustou; o beijo foi interrompido e nossos olhares se conectaram, tentando entender o que havia acontecido.
Minhas mãos estavam congeladas em seu peito quando constatei o óbvio: nós caímos porque estávamos nos movendo enquanto os amassos rolavam, segundos atrás. Sendo mais específica: eu estava nos direcionando inconscientemente para a cama. E agora, nos encontrávamos deitados, eu por cima dele, enquanto suas mãos estavam espalmadas na minha lombar, e seu olhar confuso e excitado me encarava de volta.
Acho que levei dois segundos entre observar sua boca, e retornar aos seus olhos. Foi uma decisão fácil ao encarar tão entregue ao momento, ainda que preocupado com a minha reação. Então eu apenas posicionei minhas pernas ao redor de sua cintura e o puxei para um novo beijo.
Foi como jogar gasolina em uma fogueira.
ergueu seu tronco à medida que eu literalmente me endireitei em seu colo, tornando o encaixe perfeito.

Enquanto minhas mãos se agarravam à sua nuca, os beijos se tornaram desesperadamente famintos; era um ciclo vicioso! Quanto mais nos beijávamos, mais vontade eu tinha de continuar, e ir além.
As mãos dele começaram a invadir a minha blusa, e suas digitais me tocavam com vontade, conforme subiam pelas minhas costas. Aquela sensação era tão boa, tão gostosa, que eu gemi totalmente extasiada, mordendo de leve seu lábio inferior sem perder o envolvimento do beijo.
Com a temperatura acalorada das mãos de na minha pele nua, eu lembrei que estava sem sutiã, ao sentir meus mamilos se enrijecerem à medida que meu quadril se friccionava em sua pélvis.
Puta que pariu.
Aquilo era bom demais!
Eram inúmeras sensações inebriantes para digerir, mas a melhor delas, sem dúvida, foi perceber a excitação de corresponder cada vez mais aos estímulos quase involuntários que nossos corpos causavam ao se encontrar.
E céus, o universo sabia o quão animada eu estava com aquilo. Seu tamanho era evidentemente acolhedor, e dialogava diretamente com meu ponto sensível, ainda que alguns míseros panos de roupa separassem nossas intimidades.
Foi a vez de gemer, impiedosamente contra meus lábios, antes de abandoná-los para avançar em meu pescoço, enquanto segurava com força os cabelos da minha nuca.
Sem parar nenhum movimento, eu sequer abri os olhos; mantive a respiração acelerada através da boca entreaberta, apenas me permitindo experimentar todas aquelas coisas que me proporcionava.
Sentir sua boca devorando minha pele, baixando pouco a pouco até chegar no meu colo, só me fez segurá-lo com força pelos ombros, como quem aprova demais todo seu empenho em me explorar.
…” Chamei, lânguida, percebendo suas mãos se movendo até encontrar minhas costelas.
Seu polegar rastreou timidamente minha pele e encontrou o limite do meu seio direito. Ao sentir seu toque na região sensível, eu gemi sôfrega, puxando sua nuca em minha direção, implorando por mais beijos.
O gemido morreu no encontro de nossos lábios; as línguas se conectaram, sedentas, e eu apenas insisti nos movimentos no colo de , que começou a arfar audivelmente.
“Puta que pariu, como você me deixa maluco…” Ele disse, quase num sussurro, enquanto mordia meu lábio inferior entre seus dentes.
Como uma gata manhosa, recuei minha cabeça, apenas para retornar aos beijos, como quem reclama da ausência de carinho por muito tempo, mas logo ri com um pensamento que fui obrigada a verbalizar.
“Isso no seu colo é maluquice? Então você é bem, bem maluco mesmo. Uma tremenda maluquice. Benza-o, Deus!”
A gargalhada de ecoou no meu peitoral, enquanto ele descansava sua testa no meu pescoço, e eu mordi meu lábio inferior enquanto ria junto, com os olhos fechados; aquela era uma sensação maravilhosa!
“Porra, só você para me fazer rir e me deixar de pau duro ao mesmo tempo.”
Foi a minha vez de gargalhar alto. Aquilo era tão “a gente”, tão gostoso e leve! Acho que nunca me senti tão bem ao lado de como estava no momento. Na real, acho que nunca tinha me sentido assim em qualquer parte da minha vida.
Aquilo era assustadoramente bom.
Mirei em seus olhos, enquanto sentia seus dedos dedilharem minhas costelas, vez ou outra se permitindo demorar na curva dos meus seios. Aquilo obviamente me excitava, e eu suspirei ao engolir a vontade de gemer novamente.
“O que você está fazendo, Thomas?” Perguntei com uma coragem súbita — o que fez me encarar com um misto de safadeza e timidez.
“Estou tocando você.” Sua voz saiu baixa e rouca, e eu tremi levemente com o arrepio que desceu pela minha espinha. Seu polegar avançou um pouco mais na minha pele, a ponto de meu peito se mexer consideravelmente — meu mamilo entumescido se arrastou pela blusa, e isso me fez prender os lábios em resposta. “Está gostando?” me perguntou e, hipnotizada em seu olhar, apenas acenei, me mexendo em seu colo suavemente. Num dado momento, forcei mais o meu quadril no seu membro já (muito) enrijecido, e ele fechou os olhos com força, soltando o ar e um palavrão.
“Puta que pariu, .” Abriu os olhos com a feição desesperada e o cenho franzido. “Você não está facilitando.” Seu polegar passou por debaixo do meu seio, fazendo toda curva delicada e lentamente.
“E você está?” Devolvi a pergunta, morrendo de vontade que sua mão envolvesse todo meu seio. Meu mamilo estava implorando por atenção.
Não houve resposta; apenas nos encaramos enquanto nos provocávamos como quem testa até onde vai o limite do outro. A textura de sua cueca sarrando na minha pele era tão gostosa, tão sublime… Eu estava imersa naquela posição, ansiosa por mais fricção.
pareceu entender meus movimentos mais incisivos e desceu uma de suas mãos para minha cintura, se forçando contra mim enquanto respirava pela boca, com o olhar perdido no meu rosto.
“Caralho, .” Ele balbuciou, encarando meus lábios enquanto continuava a se mover deliciosamente debaixo de mim.
“E-Eu sei.” Respondi meio grogue, sentindo um prazer enorme no meu baixo ventre. Num dado momento, remexeu o quadril de maneira diferente, o que tocou em cheio meu ponto de prazer. Automaticamente, me contraí num gemido agudo e baixo, percebendo o quanto aquele ponto suplicava por mais contato.
A mão que circulava meu seio avançou um pouco mais e eu mordi meu lábio inferior, encarando com quase sofrimento.
“Porra, . O que você tá fazendo comigo?”
“Eu poderia dizer a mesma coisa.” Ele respondeu com dificuldade, avançando em beijos no meu pescoço. Quase instantaneamente, ergui a cabeça, permitindo mais espaço para ser explorada e, num ato tão natural quanto impensado, puxei sua mão em direção ao meu peito, fazendo com que ele acabasse com aquela tortura e apalpasse com gosto.
endureceu mais ainda embaixo de mim.
“Ah, caralho!” Ele desabafou ao pé do meu ouvido. “Porra, linda, eu vou morrer assim. Mas eu vou morrer feliz.”
Mal deu tempo de rir de alguma coisa; entendeu meu pedido e começou a acariciar por completo meus seios, e tudo tomou outro nível quando seus dedos tocaram meus mamilos, para lá de excitados.
Eu gemi novamente, segurando sua nuca contra meu pescoço, enquanto ele me estimulava com vontade, ao tempo que nossos quadris não paravam de mexer.
Aquilo era um senhor amasso, e eu me senti num estado de deleite sem fim.
Voltamos a nos beijar num movimento sincronizado, e puta merda, sentir as mãos de embaixo da minha blusa foi como explodir todas as borboletas no meu estômago; meu corpo ansiava pelo dele, e me senti tão mergulhada em prazer que poderia facilmente soltar fogos de artifício por todos os meus poros.
Eu não ligava nenhum pouco e confesso que estava muito tendenciosa para continuar com aquilo; entretanto, novamente o vilão de todos os tempos voltou a dar o ar da graça.
O celular de começou a tocar.
? Não vai atender?” Perguntei, depois de ignorar o barulho por algum tempo.
“Hm Hm.” Ele respondeu sem deixar de me beijar e eu ri.
“Você é delicioso e está me deixando louca, mas pode ser importante. Atende.” Respondi, tentando recobrar o juízo — até porque se dependesse do , isso não aconteceria tão cedo.
“Nada é mais importante do que nós agora.” Ele respondeu tão naturalmente que eu fiquei encarando seu rosto em choque. Ele deu um pequeno sorriso e voltou a beijar meu queixo, subindo para pequenos selinhos ao longo da minha face.
“Por mais que eu adore ouvir você dizer isso… Preciso dizer o óbvio: você tem um show.” Comentei com dificuldade, diante das carícias viciantes dele.
“Foda-se o show.” Ele respondeu, mordendo o lóbulo da minha orelha enquanto apertava mais uma vez meu seio.
Puta que pariu, cacete!
, porra!” Peguei sua cabeça com vontade, tendo que fazer um esforço hercúleo para não ceder a vontade de continuar com os amassos. “Mcfly. Show. Lembra?”
Ele me encarou por quase cinco segundos e então, vi seus olhos suavizarem ao deixar dissipar o tesão presente (aos poucos, né?)
“Eu odeio quando você tem razão.” Ele comentou, emburrado, enquanto tirava as mãos de mim e esticava o braço para alcançar seu celular.
“Meu pau na sua mão.” Respondi tal qual uma criança na quinta série e ele me olhou tedioso enquanto eu ria.
“Que é?” Ele atendeu o celular, visivelmente puto na voz.
“Que é, não! Diga ‘Oi, meu amor!’. Que porra é essa?” Ouvi a voz do do outro lado, achando graça na disparidade entre um e outro.
“Fala logo, . Qual foi?”
“Qual foi? Tu tem um show para fazer, desgraçado! Não percebeu que parou de chover não?”
Automaticamente, eu e ele olhamos pela janela, impactados com a veracidade diante de nós; a chuva tinha ido embora.
Quanto tempo ficamos naquela pegação?
“Ih, é verdade!” respondeu, parecendo voltar ao humor normal. “Vocês já estão arrumando as coisas aí?”
“Sim, e eu quero saber o que tá faltando para você chegar aqui, cabeçudo!”
“Putz. Me dá dez minutos, deixa eu tirar essa roupa de Seixas e tomar um banho.”
“Acelera, ! O banho tem que ser de feijoada!” Ouvimos falar do outro lado e eu ri, já imaginando a resposta. me olhou sem entender.
“Como assim, feijoada?”
“Só lavar linguiça e rabo!”
Eu prendi a risada ao ver a cara de ; sua expressão mudava conforme ele compreendia a piada.
“Cara, na boa, … Você é insuperável.”
“‘Bora, porra! 9 minutos e contando!” respondeu depois de recuperar-se das risadas, e então, a chamada foi finalizada.
deixou o celular na mesa de cabeceira enquanto suspirava, sentindo-se um pouco derrotado.
“Vamos?” Sugeri, me levantando e desgrudando totalmente de seu corpo. Ele fez uma careta, resmungando alguma série de palavrões baixos, enquanto se levantava.
“Nunca pensei que ficaria puto em tocar, mas é a primeira vez que isso me acontece.” Eu ri e o puxei pela mão, a fim de que saíssemos logo da cabana. “, espera aí.” Ele pediu, segurando meu pulso, e eu me virei, atenta.
“O que houve?” Perguntei, curiosa.
respirou algumas vezes, enquanto olhava para mim e para si mesmo. Por fim, encarou a cama na qual estávamos, momentos atrás.
“Isso aqui não é só pegação, tá?” Ele me olhou, receoso. “Quero dizer… Eu adorei estar com você, te sentir de uma forma que nunca rolou antes, mas… Ah, merda. Eu to parecendo um pré-adolescente punheteiro, mas foda-se: o que eu quero dizer é que você não é só sexo para mim. Entende?”
Eu precisei piscar algumas vezes para digerir o que ele estava dizendo. Achei muito fofo e gentil da parte dele destacar; por mais que estivéssemos conversando há horas sobre nossos sentimentos, ele ainda fez questão de deixar nítido o quanto estava sendo sério sobre o que eu significava para ele. E sinceramente? Acho que nunca me cansaria disso, desse que se declara sem ter medo de ser feliz; ou talvez até tenha, mas nada que impeça sua coragem e vontade de me mostrar o que realmente sente e pensa.
E aquilo tornava tudo mais especial.
“Por favor, diga alguma coisa.” Ele pediu, com a voz incerta e eu sorri, fazendo um carinho em seu rosto.
“Então estamos quites, não acha? Isso não é só sexo para mim também. Você não é um pedaço de carne no qual eu quero passar o tempo. Você é… você. E isso já basta.” Respondi, surpresa com a escolha de minhas palavras, e em como o efeito sob foi instantâneo; o homem diante de mim mudou de apreensivo para radiante. Seu sorriso poderia iluminar as luzes de toda Nova York, sem jamais cessar.
E aquilo era tão contagiante, que não foi possível recuar nos meus sorrisos também.
“Você é maravilhosa, mulher. Eu sou um cara muito sortudo.”
Seu beijo veio mais contido, porém cheio de carinho, com gosto de quem sentiu saudades em ouvir algo tão esperado quanto aquilo.
Saímos daquela cabana prontos para o show da Mcfly — e aparentemente, prontos para o que quer que estivesse por vir, contanto que estivéssemos um ao lado do outro.
E assim, aquela noite foi do caos ao mais perfeito estado de paz.
Eu havia me declarado para , e aquilo era recíproco.
E nada mais importava.
***
“Até que enfim! Achei que precisaria te resgatar do banheiro!” reclamou risonho, dando um tapinha no ombro de , que apenas suspirou com uma cara de poucos amigos.
“Eu estava com… problemas.” Ele me olhou de soslaio, dando de ombros.
“Problemas? Que problemas? E por que você deu essa olhada pra ela?” arqueou a sobrancelha, dividindo olhares entre mim e . Eu abri a boca, mas não emiti nenhum som; o estava na mesma. Felizmente ou não, fomos salvos pela indiscrição do .
“Ih, teve diarreia, foi?” perguntou, entrando na conversa enquanto ajeitava o repertório no chão, para cada um dos integrantes.
“Vocês não fazem ideia do estrago.” Aproveitei o ensejo e me olhou com os olhos esbugalhados, enquanto ria, surpreso. “O que foi? Você precisou da minha ajuda pra levar papel, lembra?”
A risada do foi maior ainda, e me fuzilou com os olhos, dando um sorriso macabro.
“A tua hora vai chegar, .”
“Ah, não vem de ameaças para cima dela não!” chegou no recinto, colocando os braços ao meu redor. “E princeso, vamos agilizar isso aí, sim? O professor só deu mais dez minutos para começar o show!”
“Tu virou produtora agora, é?” perguntou, com falsa indignação, mas logo sorriu com seus lindos dentes e fez um carinho na cabeça de . “Obrigado por avisar. Vou aprontar e já já estaremos no palco, princesa.”
“Ei, essa princesa já tem príncipe, beleza?” retrucou, fingindo ser um machão tóxico.
“Segura a onda aí, bonito! Zero concorrência.” respondeu e me olhou rapidamente, antes de focar na organização do pré-show.
Obviamente que aquele olhar me deixou cagada, afinal de contas, o que mais eu pedi ou sonhei nos últimos tempos, que não tivesse ligado intimamente a Thomas e um flerte visual como aquele, no qual ele nitidamente indica que só tem olhos para mim?
Se existe algum exagero nessa constatação? Quem se importa? Estava nas nuvens e não tinha a mínima pressa para descer.
Mais óbvio do que meu estado de espírito, era a sacada que deu com aquele olhar que me lançou. Logo a guria me encarou com toda façanha do mundo e apertou meus ombros.
“Eu e você. Banheiro. AGORA!”
Eu ri, enquanto ela me empurrava para o local, deixando um e um sem entender nada. Às vezes, eu era muito grata pela lerdeza de meus amigos.
“O que foi aquilo, ? Demonstração gratuita de afeto? Abre essa boca agora que eu quero saber o maior babado do século, pelo amor de Jah!” já entrou no banheiro tagarela, e eu ri, enquanto respirava totalmente apaixonada.
“Ai amiga, pensa num encaixe perfeito? A gente se declarou, acredita?”
“PORRA, MAS É CLARO QUE SIM! Me conta tudo agora, com riqueza de detalhes, em dez minutos, por favor!” Ela respondeu ao olhar para o relógio, e eu resumi da melhor forma possível.
O que eu pude fazer em seis minutos, eu fiz. E pela reação de , acho que foram seis minutos de intensas informações que a deixaram completamente chocada.
“Cacete. Namoro falso também?”
“...É.” Respondi, com um sorriso amarelo.
“E a relação da Lis com o pai é uma merda, né?” Ela comentou, como se estivesse fazendo cálculos mentais, e eu dei de ombros.
“Pelo visto, sim.”
“E vocês se pegaram loucamente depois de confirmar a reciprocidade?” disse retoricamente, e eu fiz a maior cara de safada do mundo.
“Amiga!”
“Amiga?”
“A-mi-ga!”
“Amiiiiga!”
Nós explodimos em risadas e enfim, eu respirei fundo, me abanando.
“Várias vivências. Só parando para conversar com calma sobre isso. Mas olha… Bagulho pegou fogo!”
“Eu to vendo, você tá toda eufórica!” Ela riu, apontando para mim. “E como é a sensação de dar uns amassos na pessoa por quem você é apaixonada?”
“É a melhor coisa do mundo!” Minha voz subiu quase uma oitava com aquela resposta. “Sério, foi tão perfeito, tudo se encaixou! Todas as falas, os gestos…”
me lançou um olhar sugestivo.
“E vocês… fizeram?”
“Oi? Não!”
“Ué, só perguntei!” Se defendeu com as mãos erguidas.
“A gente literalmente acabou de se declarar, tem muita coisa para digerir ainda.” Respondi, me sentindo encabulada.
Ela cruzou os braços e fez uma careta engraçada.
“Só ficaram nos beijos mesmo?” A entonação já dizia tudo, e eu? Infelizmente não conseguia esconder nada com a minha expressão: totalmente sem graça.
“Bom… nós… Ah, ficamos. Juntos.” Tentei responder sucinta, mas a risada de esculachou toda a situação.
“Vocês deram uns baita amassos, né?”
“É, bem… Natural, né? Hormônios… Você sabe! Mas, mesmo não chegando nos finalmentes, dá para sentir que nossa química é de outro planeta.”
“Eu te falei! Sempre achei isso!” Ela comentou, risonha. “Porque, pensa comigo: só de estar com quem a gente gosta, já tem toda uma atmosfera diferente. Isso, aliado à química entre os dois, é combustão pura!”
“É sim! Quando junta tesão e amor, tudo vai para um nível surreal. Nunca experimentei isso.” Percebi um sorriso surgir pelo canto da minha boca enquanto retomava as memórias de momentos atrás, quando estava sozinha na cabana com .
“É… No fim das contas, te ama também.” pensou em voz alta com um ar de satisfação, abrindo um sorriso tão alegre que eu não pude deixar de fazer o mesmo.
“Sim, amiga. Caralho, mil vezes sim! Consegue sentir minha felicidade? Eu… Eu nem consigo traduzir tudo que eu estou sentindo!”
“E nem precisa. Foi feito para sentir mesmo. Você merece, demais!”
veio ao meu encontro, me dando um abraço apertado, e eu apenas retribuí seu gesto com muita vontade.
“Obrigada por existir, amiga. Seria horrível sem você.”
“E eu não sei?” Ela brincou e eu dei um tapa em suas costas, voltando a abraçá-la, sentindo a safada rir de sua piada. “Mas eu te disse: estaria aqui independentemente do que acontecesse. E porra, olha só para você! Finalmente conseguindo o que sempre quis, dando sentido aos seus sentimentos, colocando todo esse amor na prática… Porra, eu to feliz de mais por você, . Acho de verdade que vocês se merecem muito, com todo respeito! Foda-se , foda-se Lis, foda-se o caralho a quatro! Eu sou time & !”
“Não acredito que você tá juntando nossos sobrenomes numa mesma frase, cara!” Ri, me sentindo boba.
“Ué, mas vai ser assim quando vocês casarem… Já pensou?”
Eu congelei no lugar.
Eu, de véu e grinalda? me esperando no altar?
Ok. Expectativas lá no talo, alguém me socorre que a pressão baixou!
“Uma coisa de cada vez! Não acredito que vou parafrasear minha mãe mas… Tudo à seu tempo!”
“Uau. Você realmente soou como uma mulher sábia depois de sofrer 378 vezes por causa de pirocas.”
“Se for por 378 pirocas distintas, não é exatamente algo ruim, né?” Devolvi e riu, espoleta.
“Piroca nunca é ruim!”
“Depeeeeeende, depende! Há controvérsias!” Nosso pequeno momento foi interrompido pelo toque do celular de .
tá me ligando, eles já vão começar!”
Saímos correndo dali, em direção ao melhor show que poderia acontecer naquela noite.

***
Corremos tanto que chegamos ao local arfando. Eu quase me apoiei nos meus joelhos, respirando fundo, quando percebi que chegamos a tempo: o professor já estava no final do seu discurso (eu ouvi um amém?).
“Não poderíamos encerrar essa viagem de uma maneira simples, não é? Vocês se superaram e nós, professores, não poderíamos estar mais felizes com o desempenho de vocês. Então, sem mais delongas, recebam com muita animação a banda McFly!”
Os aplausos e gritos eram bem estrondosos, e isso se devia muito mais por mim e por do que de qualquer outra pessoa presente.
Os meninos estavam lindos e visivelmente nervosos, mas eu sabia, do fundo do meu coração, que aquela seria uma noite épica na carreira deles.
Particularmente, não consegui tirar os olhos de , que volta e meia me encarava com uma feição tão fofa que eu poderia passar o resto da minha vida encarando-o daquele jeito.
Dessa vez, o show começou de cara com os acordes de ‘Met this girl’, a tal da música que eu suspeitava que o fez para . Pelo jeito que ela sorriu radiante, era cada vez mais óbvio que aquela música era deles mesmo!
“Hmmm, gay, gay, gay, gay!” Brinquei, tal qual uma criança de dez anos e ela riu, me dando o dedo do meio.
“Me deixa, vai? Esse homem é tudo!” Ela confessou, jogando um beijo para , que retribuiu com os olhos fechados, bem romântico e derretido, como os dois costumavam ser.
O show seguiu com os clássicos dos Beatles, que os meninos adoravam fazer cover. Ousaram com “Don’t stop me now” do Queen, e estava simplesmente brilhante na sua performance, fazendo caras e bocas e quase sempre me direcionando o olhar.
Eu estava no paraíso.
Me permiti reparar um pouco em , quando comentou que finalmente as coisas não pareciam tão pesadas desde que a casa caiu; e eu concordei com sua fala. Ele não estava em seu normal, mas parecia estar levando melhor do que nos últimos dias.
E enfim, a McFly estava voltando ao seu eixo. É claro que as adversidades entre e não estavam tão resolvidas e eles não agiam como melhores amigos (em cima do palco ou não), mas a interação no show se deu de maneira satisfatória, até. Quem visse de fora, no sentido de não saber o contexto ao certo, não diria que tinha um problema ali — era necessário um olhar mais apurado para ver como estavam distantes e às vezes evitavam se encarar. e agiam como os mediadores da situação, mas no fundo, todos pareciam estar se esforçando e dando o melhor pela banda — e aquilo era o que importava, de fato.
Meus pensamentos foram interrompidos pela voz que eu amava escutar.
“E aí, galera? Estão curtindo o show?” O uníssono positivo preencheu a plateia, com muitos aplausos e assovios. “Nós também estamos adorando essa noite, não é verdade, caras?” se virou para o resto da banda, recebendo concordâncias com berros e até uma virada de bateria, o que fez o rir, junto com o público.
Meu coração palpitava de emoção por vê-los tão à vontade com seu show; ainda que receosos, estava tudo saindo dentro do esperado, ou até melhor. A chuva não atrapalhou e a luz não faltou. Estava tudo maravilhoso, e eu, um tanto emocionada, como uma fã de verdade se sente.
“Eu queria pedir atenção de vocês, pessoal. Quero dizer algo importante…” começou a falar de um jeito mais harmônico, e a começou a soar com acordes melódicos calmos e sutis, servindo como base para sua fala. Meu estômago deu sinal de vida com as borboletas batendo asas. “Vou ser sincero: eu achava que esse acampamento seria um saco!” Todos riram, muitos concordaram, inclusive eu. “Sério, professora Strauss, você está rindo mas os outros professores estão com uma cara nada amigável para mim! E sim, mereço isso. Aproveito para agradecer a oportunidade de estar aqui com minha banda, mostrando nosso trabalho… Eu jamais pensei que estaríamos assim no último dia de acampamento. Sério! Achei que seria uma furada e estava convencido de que nada de bom sairia daqui. Mas algumas coisas aconteceram, e acho que fui tomado por uma atmosfera transformadora. Vocês também sentiram isso?”
Todos responderam que sim, e eu? Já fazia tempo que prendia a respiração nos pulmões.
“Acho que estava desacreditado das surpresas e boas memórias que poderíamos fazer aqui. Afinal de contas, é o nosso terceiro e último ano escolar. As coisas vão mudar e se tem algo que quero lembrar ao olhar para trás é em como fui feliz aqui. Principalmente nesse último dia, onde tudo se fecha com chave de ouro.”
E então, seus olhos recaíram sobre mim.
Puta que pariu.
Ele estava falando de nós? Ele estava falando de nós!
“Ai, cara!” Ouvi suprimir um gritinho enquanto me dava uma ombrada de leve, e eu apenas me deixei mover com seu toque, ainda embasbacada com a atitude singela de .
“Eu não vou me estender muito, mas… Estou feliz que as coisas saíram completamente do que eu havia planejado. Porque assim, elas puderam ser muito melhor do que jamais pensei.”
Os olhos de se curvaram diante do sorriso e eu não consegui fazer nada além de retribuir, me sentindo besta, entregue. surtava ao meu lado, tendo todas as reações que eu deveria ter, se conseguisse reagir.
“A próxima e última música é autoral, e super importante para nós. É a primeira vez que canto do jeito certo e… Espero que seja a primeira vez de muitas. Essa aqui se chama “The guy who turned her down”.
As palavras de mal haviam soado nas caixas de som quando os acordes preencheram o local. Eu estava num estado de torpor tão grande, absorvendo cada detalhe do que acabava de acontecer. Digerir o que disse foi, de longe, bem melhor do que qualquer imaginação fértil que eu pudesse ter ao longo de todos esses anos.
Um filme passou em minha cabeça: o momento que entendi que aquele sentimento não era apenas amizade, a chegada de , o ciúmes em relação à Lis, as brigas, o primeiro show da McFly, a briga que nos afastou por três infernais meses… E o retorno de nossa intimidade, vindo de maneira cavalar em poucos dias de convívio, num acampamento há vários quilômetros de distância de casa.
Será que aquilo tudo era devaneio da minha cabeça? Eu estava vivendo tudo que pedi nos últimos tempos? era realmente apaixonado por mim, tanto quanto eu por ele?
“I can’t believe I’ve found a girl who turned my life around…” Ele cantava com gosto, sorrindo para mim.
A memória de nossos ensaios, nossas conversas ao longo desses dias, a cena final da peça, o apagão. A chuva torrencial, a minha declaração de amor, e a sua recíproca; seus lábios desesperados indo ao encontro dos meus.
É.
Aquilo tudo era muito real.
“And life without you baby just don't know where I would be…” cantou, dando de ombros, quase rindo de tanta coincidência; a letra da música, e a situação na qual nos encontrávamos.
Foi a minha vez de cantar junto.
“I can’t believe I’ve found a guy who turned my life around…” Alterei enquanto olhava para ele, que riu totalmente sem graça (o que quase causou um erro, mas logo se recuperou).
“She suddenly came on to me, pinned me down on the ground! I could have pushed away, But I didn't know what she'd say. Yea I'm glad I'm not the guy who turned her down (down, down).”
Sua voz melódica contava um refrão cheio de sentimentos e sensações, que me atravessavam a cada entonação harmônica.
Respirei fundo, segurando minhas mãos enquanto só tinha olhos para — e ele para mim.
Ali, naquele instante, nada mais estava ao nosso redor: éramos só nós dois, e mais ninguém. E assim, um cenário perfeito se desenrolava diante de mim. No fim das contas, tudo fazia tanto sentido quanto respirar: a música, o canto, a declaração, o afeto, e a vontade de estarmos juntos.
Meu sorriso acompanhou , que terminou a música da melhor forma, piscando para mim:
“Yeah, I'm glad I'm not the guy who turned her down.”



Continua...



Nota da autora:Oi. Muito tempo, né? Muitas coisas aconteceram na vida da autora; mudanças bruscas e tão devastadoras quanto restauradoras. Passei um bom tempo me perguntando sobre continuar a escrever, uma vez que me senti bloqueada para isso por vários e vários meses. Nada saía. Eu estava atravessada por tantas sensações que não condiziam com o que a escrita de Ironic Lovers pede — com o que a história pede. Não poderia deixar por fazer, então preferi aguardar um melhor momento para retornar. E creio que esse momento chegou. Ainda estou deveras clejada, afinal, é a vida, e as cicatrizes estão aí. Mas a gente tem garra e firmeza, vontade de ser feliz acima de tudo. E escrever me faz feliz. Espero encontrar comentários bons e acolhedores; não pensem que esqueci de vocês, público leitor. Apenas não me senti à vontade em entregar qualquer coisa apenas para cumprir/finalizar a fic. Ela está aí, voltando aos poucos, e a gente vai se conectando à energaia de volta, tecendo o melhor que podemos com aquilo que somos. Mas, digam lá: o que acharam? Saudades do nosso casal? hehehe Espero que essa atualização toque o coração de vocês, certamente tocou o meu. Não esqueçam de comentar e partilhar, isso faz toda diferença. Nos vemos em breve! Beijos, Lully. Em tempo: grita lá no twitter/X: @lullymaniac. ♥ Outras Fanfics:
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