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Última atualização: 07/03/2023

#1

Essa garota é uma arma
(Girls is a Gun - Halsey)



― Dito isso, nossa reunião de hoje está encerrada. Vejo vocês daqui a pouco, no ensaio. ― Jamie apoiou as costas no encosto de sua cadeira presidente.
Como de costume, sentava-se na ponta da mesa para que pudesse ter uma boa visão de todos nós durante as reuniões. Mas, provavelmente, não era só por isso. O velho Oborne, apesar de negar, transparecia o quanto gostava de poder e o quanto gostava mais ainda de se sentir poderoso. Não podia culpá-lo. Era realmente bom se sentir no controle de algo, por menor que fosse.
― Você fica, Matty. Precisamos acertar algumas coisas ― disse ao me ver levantar da cadeira junto com os outros.
Sentando-me outra vez, vi todos saindo, um a um, da sala de reuniões, deixando-nos à sós para tratarmos sobre o que quer que Jamie tivesse a dizer.
― Você se lembra daquele meu amigo jornalista, o Sullivan, não?
― Josh, do Repeat Daily?
― Esse mesmo.
― Claro.
― Joshua me perguntou se era possível marcarmos uma entrevista para uma reportagem perfil com você. Um perfil é quando um repórter quer escrever sobre você. É uma matéria mais íntima, de cunho mais pessoal. ― Assenti.
― E aí?
― Bom, como estaremos resolvendo os últimos compromissos da próxima semana por Londres, concordei, porque ficaria mais fácil para a repórter vir te acompanhar.
― Ok. Que dia e que horário devo deixar reservado? ― Oborne tirou os óculos de grau do rosto, com um meio sorriso.
― Acho que você não entendeu. A repórter chega na segunda de manhã, mas ela não precisa de um horário reservado. ― Franzi as sobrancelhas. ― Seja nas festas ou outras entrevistas, ela vai estar com você. Nas brechas entre um compromisso e outro, te faz perguntas, você responde e, no fim da semana, escreve uma matéria sobre você.
― Deixa eu ver se entendi. Ela vai passar a semana inteira aqui, andando atrás de mim?
― 24 horas por dia ― completou em um tom satisfeito.
― Não.
― Não?
― De jeito nenhum. Cancele.
― Não posso.
― Dá o seu jeito. Faz aquilo que você costuma fazer pra resolver essas coisas. Mas eu não quero essa repórter aqui.
― Você não tem que querer nem aceitar. Eu já confirmei e já autorizei a entrada dela no hotel.
― Você perdeu a porra da sua cabeça?! Jamie, eu não posso ter uma repórter durante tanto tempo, o dia inteiro fungando no meu pescoço.
― Primeiro de tudo: ela não vai fungar no seu pescoço. E você não só vai conceder o seu tempo e essa entrevista, como vai fazê-la gostar de você para que escreva coisas boas a seu respeito.
― Por quê?
― Já se esqueceu do ano passado? Sua namoradinha lançando músicas com indiretas que todos sabem que é sobre você, a polêmica a respeito do Justin Bieber… Vocês acabaram de lançar um álbum, não podemos errar um único passo.
― Ninguém tá dando a mínima pra essa merda. Até parece que você esquece que as crianças de hoje em dia não guardam informações por tanto tempo. Não é como se estivéssemos em 1980, onde todos lembravam de promessas feitas em 1960 e guardavam rancor até o dia da própria morte ― debochei.
― Você não aprendeu nada ainda, né, garoto? ― Encarou-me sério.
― E o que exatamente eu deveria aprender, Jamie? ― Devolvi o mesmo olhar desafiador que me lançava.
Pondo os óculos de volta, o mais velho levantou-se de sua cadeira, dando um suspiro sonoro, que transitava entre a frustração e uma simples lufada de ar para iluminar as ideias do que deveria vir em seguida.
― Este tópico não está aberto a discussão, Matthew. Estou apenas lhe comunicando sobre o compromisso que você tem marcado com , repórter do Repeat Daily, quer você queira, quer você não queira. Além do mais, para nós, é ótimo que tenha alguém de olho em você o tempo todo. Espero que tenha a decência de não fazer aquilo na frente dela.
― Jamie…
― Não, não, não. Me escute. Precisamos de você focado no trabalho, Matty. Lembre-se: vocês deram muito duro para chegar até aqui, não deixe os seus caprichos estragarem o trabalho de tantas mãos. Seus amigos e seus funcionários estão contando com você, me ouviu?
Involuntariamente, senti minha mandíbula travar. Queria gritar e xingar Jamie. Queria surtar e bater nele se necessário fosse para que entendesse meu ponto. Porém, obviamente que, qualquer uma dessas atitudes, só provaria o quão certo ele poderia se sentir a respeito do que pensava sobre mim.
Portanto, de todas as minhas opções válidas, nos primeiros segundos, escolhi a mais sensata: o silêncio. Depois, contentei-me em dizer:
― Era só isso? ― Assentiu.
Pus-me de pé, ajeitando a cadeira no lugar e saí.

- x x x -


Sentado em uma mesa de bar com George, via-o se mexer à minha frente, mas era como se não o enxergasse, como se apenas olhasse fixamente um ponto aleatório no espaço e tempo presente, independente da presença do meu melhor amigo.
Minhas mãos revezavam as idas até a minha boca, fosse para levar o cigarro que eu fumava, fosse para beber mais um gole de cerveja.
Minha cabeça parecia prestes a explodir de tanto pensar sobre a semana seguinte, a entrevista, a jornalista desconhecida, as coisas que Jamie havia me dito naquela tarde. Maldito Oborne.
― Você tá estranho desde que voltou da sala do velho. O que aconteceu? ― George bateu o cigarro na borda do cinzeiro antes de levá-lo aos lábios novamente.
― Ele inventou a porra de uma entrevista com uma repórter que vai passar a semana inteira comigo.
― Mas isso é ruim?
― Bom, é pra eu falar sobre coisas pessoais minhas e, como eu disse, ela vai passar a semana inteira comigo ― enfatizei o “inteira”.
― Ainda assim, não vejo como algo ruim. Você adora falar sobre si. Ela vai ter bastante material. ― Riu.
― É, quando eu não tenho que fazer isso pensando em agradar alguém.
― Acho que você está sofrendo com antecedência demais. Você não tem que falar ou fazer o que não quiser. Não é nada que você já não tenha feito também. ― Revirei os olhos. ― Cara, você é praticamente nosso porta-voz. Entre nós quatro, não existe ninguém mais capacitado que você pra conseguir fazer algo assim.
Dei uma nova tragada no cigarro, em silêncio.
― Se eu soubesse que ter meu trabalho como músico reconhecido implicaria diretamente nisso, teria deixado quieto e fugido dessa coisa de ser famoso.
― Ah, qual é, Matty? De todo mundo que eu conheço, você é a única pessoa que sabe tirar as vantagens exatas de ser uma celebridade. E você pode até negar, mas sei o quanto gosta dessa coisa da exclusividade, de ter acesso a lugares e pessoas que não é qualquer um que conhece. ― Deu um sorriso encorajador. ― Não sofra antes do tempo por algo que você não sabe como vai ser. Aliás, quem é a repórter? É alguém que conhecemos?
― Uma tal de .
― Nunca ouvi falar.
― Deve ser novata, sei lá.
― Se for mesmo, cuidado para não engoli-la viva. ― Rimos.
― Espero que ela sobreviva a essa semana e consiga escrever algo ― zombei.
― Não a conheço, mas sei que não tem culpa na briga entre você e Jamie. Saiba separar as coisas, não seja burro. ― Empurrou minha testa com o indicador. ― Ela está vindo para trabalhar, então, não precisa piorar as coisas, ok?
― Tá bom, pai. ― Riu.

- x x x -


Na manhã em que a jornalista estava para chegar, como de costume, as primeiras coisas que fiz ao me levantar, foi trocar de roupa, escovar os dentes e, por último, acender um cigarro. Sentado ao lado da janela, observei o movimento da rua enquanto levava sucessivas vezes o tabaco à boca, soprando a fumaça lentamente.
Em momentos como aquele, me pegava refletindo sobre a sensação de fumar um cigarro. Nem parecia que estava fumando câncer ou morte, apenas paz e tranquilidade. Meus pulmões se enchiam e se esvaziavam devagar, deixando para trás os vestígios de calor em minhas vias aéreas.
Quando cheguei ao final da minha “terapia com fumo”, ao mesmo tempo em que apaguei o tabaco no cinzeiro, ouvi a campainha soar no quarto. De pé, encaminhei-me para a porta a fim de atendê-la. Do outro lado, a figura de uma mulher sobressaltou, como se tivesse queimado a boca com o café que bebia devido ao susto.
― Parece que alguém é bem pontual. ― Sorri, tentando parecer simpático com ela. ― Você deve ser , a jornalista. ― Assentiu, olhando-me séria.
Na verdade, esta tinha sido a primeira surpresa boa em dias. Jurava que Sullivan, aquela velha raposa ardilosa, mandaria mais um de seus repórteres bem treinados que não escrevia para qualquer notícia chula do portal para realizar entrevistas pretensiosas. No entanto, havia me enganado. Ao que parecia, desta vez, Josh resolveu verdadeiramente mandar… carne fresca mesmo.
Olhando em seus olhos, poderia jurar que a mulher parecia levemente assustada ou, até mesmo, intimidada. Queria rir, porém achei que não fosse uma boa ideia, visto que não estávamos nem há cinco minutos na presença um do outro.
― Sou Matthew Healy e você já deve saber disso. Entre. ― Dei espaço para que ela passasse, entretanto, continuou parada à minha frente. Pelo seu olhar, dava para saber que apenas seu corpo estava ali, sua mente não.
tinha mais ou menos minha altura, cabelos crespos escuros que lhe caíam sobre os ombros e, apesar do olhar arredio, tinha algo nela que inspirava confiança. A pele escura parecia muito macia e, mesmo que talvez esse não fosse um detalhe que eu deveria notar em nosso primeiro encontro, tinha coxas fantásticas.
― Você vai continuar parada aí? ― Sorri ironicamente, tentando trazê-la de volta à órbita.
― Ah, com licença. ― À medida que caminhava para dentro do quarto, via que seus passos eram hesitantes. O olhar correu por todo o ambiente, o que me dizia muito sobre o tipo de profissional que era: boa, mas inexperiente.
A maioria dos jornalistas com anos de carreira sabia disfarçar melhor. Não olhavam ao redor quando recém chegavam, somente capturavam os pequenos detalhes em rápidos desvios de olhos enquanto me entrevistavam, fazendo singelas anotações em suas cadernetas de bolso. Observando-a, não contive um sorriso. Era como ver uma criança começando a se entender como indivíduo no mundo pela primeira vez.
― Eu trouxe pra você. ― Virou-se em minha direção, estendendo um dos copos de café para mim, bebendo um gole do seu.
― Muita gentileza sua. ― Sorri, pegando e tomando um gole pequeno. ― E não é que você acertou? ― Na maioria das vezes, essa seria uma mentira que eu diria para que uma garota como não ficasse chateada comigo. Todavia, desta vez, era verdade.
― Que bom. ― Deu um meio sorriso. Por um segundo, tive a impressão que minhas palavras haviam tirado um peso de seus ombros.
― Você trabalha pro Josh Sullivan? ― Tentei puxar assunto. Concordou com um aceno de cabeça. ― Responsabilidade, hein?
― Pois é.
― Quanto tempo faz que você nos conhece?
― Bem, eu… não colocaria… ― Seus ombros se retesaram de novo.
― Espera, você não nos conhece? ― Surpreso, acabei debochando sem querer. ― Então, você também não me conhece… ― conclui, sorrindo. ― Interessante.
Algo em mim ou em minha presença a estava fazendo ficar muito receosa e eu não conseguia parar de sorrir. não parecia fazer o tipo mulher tímida, muito menos introvertida, mas algo a fazia ficar desconfortável de um jeito fofo. Talvez fosse por não me conhecer. De qualquer forma, ela ficava uma gracinha tentando fingir naturalidade.
― Você se hospedou no hotel? ― questionei.
Algo dentro de mim fazia com que eu quisesse cutucá-la, instigá-la.
― Eu moro a cerca de uma hora daqui.
― Hmmmm. ― Bebendo um gole do meu café, digitei com a mão livre uma mensagem para Jamie, perguntando-o sobre a possibilidade de hospedá-la no hotel. ― Só um minuto. ― Meu telefone começou a vibrar e a avisei antes de atender a ligação do empresário. ― A jornalista do Sullivan chegou. Queria te pedir um favor, você já tá a caminho?
― Se for sobre hospedá-la no hotel, chego no seu quarto em alguns minutos. ― O homem respondeu rapidamente.
― Ok, eu espero. ― Desliguei e voltei minha atenção à ela, iniciando um assunto qualquer até que Jamie chegasse para resolvermos sobre sua estadia: ― O que você costuma fazer no seu tempo livre?
― Ultimamente, não tenho muito tempo livre. ― Indiferente, seus ombros se relaxaram de novo.
― Não é possível que não tenha tempo pra sair com uma amiga, ficar com seu namorado ou visitar seus pais. ― A verdade é que só havia um desses itens que me interessava.
Não sabia se era ou não uma boa jornalista, contudo, era inegável que era muito bonita. Se concordasse em sair comigo, não me importaria em contar várias coisas ruins sobre mim para que pudesse acabar com a minha carreira em uma única reportagem.
― Impressão minha ou você está tentando descobrir algo sobre mim? ― Arqueou uma das sobrancelhas. Segurei uma risada de contentamento.
Provavelmente não era sua intenção, mas seu tom de voz soou extremamente sugestivo. Se não estivesse ali a trabalho, diria até que estava flertando comigo.
― A confiança é a base de uma relação fonte-jornalista, não? ― Um sorriso surgiu no canto dos meus lábios. ― Espero que goste de festas, temos quatro marcadas só pra essa semana. ― Bebi mais um pouco de café. ― Eu já te agradeci por isso? ― Apontei para o copo enquanto sentia o café descendo pelo meu esôfago, espalhando um pouco de vivacidade no meu corpo. ― Eu realmente precisava.
― Dormiu pouco?
― Não dormi. Eu não durmo.
― Tipo, nunca? ― A maneira como ligeiramente arregalou os olhos foi engraçada e quase me fez rir.
― Às vezes. Zolpidem tá aí pra isso, né? ― Propus um brinde distante antes de beber meu último gole de café, em seguida, jogando o copo na lixeira próxima à porta. Procurei meus cigarros nos bolsos da calça, estendendo o maço em sua direção para lhe oferecer um, quando os achei. Ao vê-la recusar, franzi as sobrancelhas. ― Uma jornalista que não fuma?
― Muito estranho?
― Incomum. ― Acendi o tabaco, sentando-me na cama. ― Você devia se sentar, vai ter uma semana inteira pra ficar de pé, andando por aí atrás de mim ― sugeri.
Ouvi alguém bater na porta.
Antes que a mulher fizesse menção de ir atendê-la, soltei um “entra” mais alto. Jamie adentrou no cômodo com aquele sorriso ensaiado que costumava guardar para jornalistas, patrocinadores e outros empresários com os quais era obrigado a se encontrar periodicamente.
― Matty, meu garoto. ― Apontou para mim, sorrindo. ― E você deve ser , né? ― Ambos trocaram apertos de mão em cumprimento.
― Muito prazer. ― A mulher respondeu. Um sorriso pouco confortável estampava seus lábios.
― O prazer é todo meu. Você está hospedada aqui?
― Ah, não. Minha casa é relativamente perto.
― Bom, considerando que você vai passar uma semana inteira atrás deste homem ― considerei dar um tchauzinho quando Oborne apontou para mim, entretanto, me controlei e apenas segui fumando meu cigarro quieto. ―, talvez ter que fazer duas horas de viagem de trem todos os dias não seja a sua melhor opção. Não se preocupe, vou até a recepção cuidar disso.
― O quarto aqui na frente tá vago. ― Deixei no ar. Imediatamente, Jamie compreendeu que aquela era uma sugestão.
― Ótimo. Temos uma sessão de fotos marcada para às 13h, então, hoje vocês vão almoçar às 11h. Depois uma pequena entrevista pra uma rádio local e aí vocês vão estar livres para se arrumarem pra festa hoje. ― Jamie voltou a olhar para e eu nunca vi ninguém tão incomodado com a palavra “festa” quanto ela. ― Pra você não ter que voltar para a sua casa para se arrumar, preciso que me dê seu endereço. Mando um dos garotos ir buscar suas coisas antes que você se hospede no quarto. Aliás, espero que goste de festas. Temos algumas essa semana.
Alguns segundos do mais puro e embaraçoso silêncio se passaram até que a mulher finalmente respondeu:
― Vai ser divertido. ― Deu um sorriso sem humor.
― Vejo vocês dois lá daqui a pouco. E, Matthew, por favor, se controle, ok? O dia tá um pouco cheio demais pra você sabe o que. ― Lançou-me um daqueles olhares repreensivos, como se eu realmente sentisse medo ou ainda tivesse idade para me acanhar com um simples olhar paternal.
― Não tenho a menor ideia do que você está falando, Jamie ― debochei descaradamente, sabendo que qualquer pessoa que entrasse no meu quarto conseguiria sentir o forte cheiro de maconha impregnado por toda parte.
Sem me dar sua costumeira última olhadela, Jamie nos deixou a sós. Sabia que em algum momento nós iríamos ter a conversa sobre como eu estava voltando a abusar de novo e talvez eu devesse “pegar mais leve nas drogas”.
Assistindo-a se sentar em uma das poltronas mais afastadas da minha cama, iniciei:
― E então, senhora jornalista, quer conversar sobre algo? ― Sua postura inteira estava enrijecida e quase podia visualizar a grande redoma que ainda nos separava.
― Por que se hospedar em um hotel se vocês moram aqui perto?
― Não moramos no centro da cidade e a maioria dos nossos compromissos são aqui. Ross e George têm um problema sério com chegar no horário marcado, por isso, Jamie prefere que fiquemos sempre juntos e próximos dos nossos compromissos. Além do mais, depois dessa semana, vou passar cinco dias com a minha mãe e meu irmão, em Manchester, e saio em turnê pelos próximos seis meses.
― Como é a relação com a sua mãe?
― Não acha que tá um pouco cedo pra perguntas tão pessoais? ― Dando uma tragada profunda, desviei os olhos dela.
Talvez não fosse uma profissional tão boa quanto era bonita.
― Temos que começar de algum lugar, né? Sem contar que você escreveu uma música falando sobre sua mãe, achei que não fosse um problema. ― A lógica dela não estava errada, mas esse também não era um assunto no qual gostaria de tocar tão cedo em uma segunda-feira.
― Lembra da construção de confiança com a fonte? ― Tentei despistá-la.
― Você vai mesmo continuar tentando me ensinar a fazer meu trabalho? ― indagou. Seu tom era educado, porém a cara de tédio entregava que, naquele momento, eu havia perdido toda e qualquer mínima possibilidade de ser sua fonte preferida.
Assumindo uma pose emocionalmente defensiva, cruzou os braços em frente ao peito, todavia, não cruzou as pernas como imaginei que faria logo após o primeiro gesto. Muito pelo contrário. Seguiu com as pernas relativamente abertas. Aquilo era, no mínimo, muito interessante.
Entretanto, aquela constatação não foi suficiente para me fazer ignorar seu questionamento ou o tom brevemente irritadiço que estava atribuindo a sua voz pouco a pouco.
― Considerando que nunca vi sua cara antes, tenho certeza de que você começou a trabalhar com Sullivan há um ou dois meses, no máximo. Mesmo não tendo me dito sua idade, você tem muita cara de quem acabou de sair da faculdade, ou seja, se está aqui, é porque deve ter transformado os dias do Josh em um inferno pra provar o seu valor. ― Apaguei o cigarro no cinzeiro, deixando a bituca lá e redirecionando minha atenção de volta para seu rosto, que exibia uma feição desconcertada. ― Então, é, estou tentando te ensinar como se faz seu trabalho, porque, aparentemente você não sabe muito bem o que está fazendo. ― Bufou baixinho.
Ela estava aborrecida e eu queria poder dar um sorrisinho vitorioso. Não o fiz, contudo, não deixei de notar que , agora, soava ainda mais atraente com aquele olhar agressivo que, inconscientemente, lançava para mim.
― Mais uma coisa: se você começar a perder a paciência agora, não quero nem ver como você vai estar ao final desta semana ― ironizei. ― Não é nada pessoal, , só não quero cometer os mesmos erros do passado ― completei.
Esperei que a mulher fizesse assim como seus colegas de profissão e anotasse minha frase de efeito, porém não o fez. Continuou me encarando tão séria e enfurecida quanto antes. Por mais que não devesse imaginar isso de quem quer que fosse, na minha mente, só conseguia me perguntar se fazia o tipo que fode com raiva.


#2

Se todas as minhas respostas se correlacionam, eu estou te dizendo mil coisas que sei
(WANTED U - Joji)



Naquele mesmo dia, mais tarde, durante o almoço, me encheu de perguntas irrelevantes, cujas respostas provavelmente já sabia. Sendo educado, respondi a todas, até porque tal gesto ia de encontro com o que tinha lhe dito sobre construir uma relação de confiança.
Entretanto, me irritava o fato de, sempre que me virava, ela estava lá, pronta para mais uma remessa de perguntas, com aquele olhar de quem esperava por respostas complexas, cheias de nuances para que pudesse escrever um texto magnífico sem grandes tropeços. E eu até poderia ajudá-la nessa jornada se não parecesse estar fungando no meu pescoço como um boi bravo.
, nas poucas horas em que estávamos juntos, já havia demonstrado que eu não era a companhia agradável que imaginava e que, se pudesse, estaria em qualquer outro lugar, entrevistando qualquer outra pessoa. O que era uma pena, pois tinha o pressentimento que poderíamos nos divertir muito se colaborássemos do jeito certo um com o outro.
Durante a sessão de fotos, não foram poucas as vezes que me peguei encarando-a de longe. Quando não estava nos olhando, mantinha-se com a atenção presa ao celular, digitando algo, provavelmente conversando com alguém.
Em nosso intervalo, num piscar de olhos, vi George conversando e às risadinhas com . Traidor. Tentando parecer neutro à situação, não o chamei de volta, tão pouco me aproximei deles. Queria manter aquela paz que só o distanciamento dela por alguns minutos era capaz de causar.
Ao retornar para a segunda rodada de fotos, George ficou ao meu lado na maioria delas. E, quando não éramos os alvos das lentes, soltou:
― Você devia pegar leve com ela. Só está tentando trabalhar.
― Eu estou sendo obrigado a trabalhar.
― Ela também, mas ganhando uma quantidade de euros infinitamente menor que a sua. ― Lancei-lhe um olhar desacreditado.
― Você está defendendo uma estranha ao invés do seu melhor amigo?
― Não, estou te dizendo para ser uma pessoa ok com alguém que não está aqui a passeio.
Arqueando as sobrancelhas, lembrei da última vez que Daniel tinha defendido alguém com o mesmo afinco. Ironicamente, também era mulher. Dois dias depois da defesa, a vi saindo de seu quarto, vestindo sua roupa, fumando seus cigarros.
― Você tá planejando pegar ela, árvore? ― zombei.
― Quê? Não! ― soou ofendido. ― De onde tirou isso?
― Se você quiser, não vou me opor. Ela é... muito bonita mesmo. ― Foi sua vez de arquear as sobrancelhas.
― Bom, eu não tenho interesse algum, mas, se você tem, deveria explicitar isso. Acho que ela poderia trabalhar melhor em cima desse… desejo ― sugeriu em um tom de deboche.
― Calado, gigante. ― Dei um tapinha em seu peito com o dorso da mão, fazendo-o rir.
Duas coisas me impediam de seguir o “conselho” de meu amigo: 1) estava ali a trabalho; 2) se ela não tivesse as mesmas intenções que eu, usaria meu interesse a seu favor para conseguir arrancar tudo o que pudesse para sua reportagem.
Sim, ainda me lembro de brevemente ter pensado que poderia dizer coisas horríveis sobre mim mesmo para deixá-la acabar com a minha carreira se assim quisesse, mas isso era o meu eu movido a tesão tomando conta. O meu eu em estado normal e em pleno uso das faculdades mentais sabia o quanto uma relação assim poderia ser prejudicial principalmente para mim.
Então, quaisquer que fossem os meus desejos ou as intenções que teria caso a conhecesse em outros termos, enterrei-os bem fundo para que ambos fizéssemos nossos trabalhos sem maiores danos ou consequências. Pelo menos, até nosso tempo obrigatório juntos acabar…

- x x x -


À noite, o que poderia ter sido uma sucessão de erros, como o fato de todos terem nos deixado para trás para irmos juntos para a festa da gravadora, na verdade, se mostrou uma ótima oportunidade para que, mesmo de maneira forçada, interagíssemos.
Durante o trajeto, se mostrou afiada nos conhecimentos sobre a banda, apontando músicas onde supostamente romantizava minha relação com as drogas. Depois, concordou em beber uma taça de champanhe e até transpareceu certa preocupação conosco quando Jamie nos exibiu para seus colegas empresários como troféus. Foi bem… tocante.
― Preciso de um cigarro. Vem comigo? ― Pus a taça vazia sobre a bandeja de um garçom que passava por nós.
― Você não precisa perguntar. Estou aqui pra isso. ― Ajeitou a mochila nas costas com um ar animado. Alguém que realmente ama seu trabalho.
Saindo por uma porta lateral, que levava para um beco sem saída, fui seguido pela mulher durante todo o trajeto. Diferente do que achei que faria ao chegarmos ao nosso “fumódromo”, não olhou ao nosso redor tentando compreender o ambiente. Muito pelo contrário. Manteve o olhar fixo nos meus movimentos enquanto acendia um cigarro.
― Quantos cigarros você fuma por dia?
― Isso vai entrar na sua matéria? ― zombei.
― Não. É só curiosidade mesmo. ― Deu de ombros.
― Depende da quantidade de ataques de ansiedade que eu estiver prestes a ter. Geralmente, um maço e meio.
― Como você ainda canta?
― Nunca ouviu sua mãe dizer que vaso ruim demora mais a quebrar? ― Ri.
― Não. Você se importa se eu… ― Apontou para o celular, deixando sua voz morrer no meio da frase.
― Tirar fotos de mim? Não, eu aguento ― brinquei, fazendo-a revirar os olhos.
― Gravar nossas conversas ― rebateu de um jeito um pouco mais rígido.
― Pode também. ― Dei de ombros, tragando longamente e soltando a fumaça na direção contrária a dela, que, ainda bem, não voltou para sua cara com o vento.
― Por que me falou mais cedo sobre não falar coisas das quais se arrependa? ― Normalmente, esse era o tipo de pergunta que eu ignoraria por mais alguns dias até ter certeza de que a repórter era mesmo de confiança. No entanto, não havia como ter certeza absoluta de nada e, para que ela tivesse material para trabalhar, precisava lhe fornecer as informações. Talvez esta fosse uma boa forma de começar a soltar coisas aos poucos.
― Porque eu já fiz muito isso e ofendi algumas pessoas assim, como em todas as vezes que falei sobre religião e coisas do tipo. ― Levei o cigarro a boca para uma nova tragada. ― De tempos em tempos, algumas pessoas me mandam mensagem me relembrando os motivos pelos quais já fui cancelado e vejo que eles estavam certos em me cancelar. Apesar de não saber como funciona essa coisa de cancelar. Quer dizer, eu ainda existo, né? Ainda falo com pessoas, trabalho, vou ao mercado, fumo meus cigarros, ando de trem… então, no que isso me afeta?
― Mas você não acha que essa reação das pessoas seja como um pedido pra que você se reveja enquanto ser humano? ― desafiou.
― E eu faço isso. Como eu disse, estou exercitando o pensar antes de sair falando e ofendendo as pessoas, mesmo que essa não tenha sido a minha intenção. ― Dei uma última tragada mais longa no fumo, restando apenas a bituca a ser apagada e jogada fora.
Apesar de saber que não estava sendo invasiva ou algo que o valha, também sabia que entrar nesse campo talvez significasse falar de temas que não me sentia pronto para abordar. Por isso, após jogar fora o restinho do cigarro, voltei-me para ela e sugeri:
― Podemos voltar?
Sem questionar ou titubear, respondeu:
― Sim.
Passando à sua frente, sentia seus olhos sobre mim, acompanhando toda a minha trajetória. Vai dar tudo certo, vocês vão se entender.

- x x x -


Se tinha esperança que o jogo de perguntas com tivesse iniciado e acabado na festa, estava enganado. Ao voltarmos para o hotel, sob a meia iluminação do meu quarto, a mulher pareceu se sentir à vontade para demonstrar sua indignação a respeito da minha reserva em relação às suas perguntas.
Ouvindo-a enquanto fumava o resto do baseado que tinha guardado, a fumaça que saía dos meus lábios formava uma nuvem em frente aos meus olhos momentaneamente, esfumaçando sua figura exasperada. Algo nela se sobressaía a ponto de me manter atento a tudo, quase como se não estivesse chapado.
Por mais que soasse zangada em alguns momentos, os breves suspiros deixavam transparecer o quanto tentava manter a calma, não só comigo, mas com a situação. Provavelmente, ela não estava sabendo lidar com a frustração de não conseguir tocar nos pontos que lhe interessavam. E, se tinha uma pessoa que sabia lidar com frustrações causadas por si mesmo, esse alguém era eu.
Logo, decidi, sob o pretexto de um jogo em que também lhe faria perguntas, responder o que quisesse questionar. Pouco a pouco, vi o brilho no seu olhar, a tensão nos ombros diminuir e sua postura aparentar mais relaxada. até se permitiu rir em alguns momentos.
Irritada e prestes a me socar, ficava bonita. Rindo descontraidamente, ela irradiava o suprassumo da beleza.
Portanto, dentro da minha cabeça, fechei um acordo comigo mesmo de que era assim que gostaria de vê-la sempre que possível, pois o único momento em que desejaria vê-la agitada, alterada e inquieta não incluía tantas roupas nem uma distância tão grande entre nossos corpos. E, como tal instante me parecia remotamente muito longe de ser alcançado, a primeira opção era a única viável.
Mais algumas palavras jogadas fora e algumas latas de cerveja no lixeiro, adormeceu na poltrona onde estava sentada. Poderia levá-la ao seu quarto? Sim, mas isso implicaria tocar seu corpo inconsciente, o que tinha certeza que não tínhamos a menor intimidade para fazê-lo. Poderia acordá-la? Sim, só que não sabia se isso não lhe ocasionaria insônia.
Então, como única alternativa restante, ao vê-la parecer estar com frio, cobri-a com um cobertor até a altura dos ombros, deixando-a descansar para o longo dia seguinte.

- x x x -


Surpreendentemente, durante toda a manhã seguinte, tudo estava correndo bem, mais até do que o esperado. parecia de bom humor, apesar de provavelmente estar com dor nas costas, e eu, sem perder de vista o que havíamos construído na noite passada e querendo prosseguir com aquele mesmo ritmo, cedi a algumas de suas perguntas.
Quando chegamos a um assunto que poderia ser desagradável e inapropriado para o horário ― Gemma e minha infidelidade ―, o surgimento de Ross na porta do meu quarto, informando a chegada de Jamie quase me fez esquecer que não acreditava em deuses e agradecer a forças superiores.
Eu sabia que, a qualquer instante, aquela se tornaria a pauta inevitável em nossa conversa para que chegássemos a algum lugar.
Tentando compensá-la por essa informação pela metade, na entrevista a qual cedemos a um programa de rádio, respondi perguntas a respeito da relação com a minha mãe. Claro que os entrevistadores do programa ficaram satisfeitos com minha colaboração, mas era apenas a sua reação que eu buscava de verdade. Ao vê-la microscopicamente reagir, expressando um pouco de surpresa e contentamento com o que ouvira, internamente, comemorei. O que eu queria havia atingido-a da forma que esperava.
Óbvio que nem tudo são flores e nem como gostaria que fosse.
Pouco antes de almoçarmos, recebi uma outra jornalista no meu quarto para uma entrevista rápida. Visivelmente desconfortável com a presença de uma repórter da concorrência no cômodo, parecia não prestar atenção em nada do que lhe dizia. Então, tão educado quanto conseguiria ser com alguém que não estava atenta às respostas das perguntas que me fez, questionei se havia algo lhe incomodando. Claro que Jill respondeu que não e seguiu com mais questões até nosso tempo acabar.
Todavia, o que acabou me pegando de surpresa foi o jeito como se comportou perante aquela situação. Ao me ouvir reclamar da atitude da outra jornalista, repreendeu-me insinuando que minhas respostas não haviam sido tão importantes assim a ponto de necessitar de atenção contínua. Não bastava ter me chamado de narcisista, ainda emendou um tagarela!
Eu não iria deixar tal ação impune. Por isso, dentre ser um adulto maduro e lhe explicar que aquilo havia me ferido ou ignorá-la pelo resto do dia como um adolescente com os pais, lhe dando apenas o tratamento do silêncio, escolhi, lógico, o silêncio.
Não lhe dirigi a palavra, assim como também não a olhei e mantive o máximo de distância física entre nós.
Jamie pareceu não notar, uma vez que não disse nada sobre. Já George, não só percebeu como resolveu interceder por seu mais novo interesse.
― Vai continuar ignorando-a por quanto tempo? ― cochichou no caminho para a reunião que teríamos.
― Vai me delatar ao Jamie?
― Se necessário for. ― Deu de ombros.
― Eu não vou falar com ela.
― Você é infantil pra caralho, sabia?
― Prefiro ser infantil do que insultado por uma desconhecida.
― Matty, colabore. Quanto mais rápido você der a ela o que precisa, mais rápido ela vai embora. Por Deus, use a cabeça.
― Pelo afinco com que a defende, tenho certeza de que você também gostaria de usar uma de suas cabeças, né? ― debochei.
― Vai pra porra, Healy. ― Acertou um tapa na traseira da minha cabeça e saiu andando.
Dei uma risadinha baixa.
Sabia que aquela era apenas uma batalha ganha, não a guerra. O que se mostrou totalmente verdade quando, à noite, após o último ensaio com Kate, a dançarina que dividiria o protagonismo do clipe comigo, Daniel sugeriu que fôssemos jantar. Ele, e eu. Para completar a péssima ideia, ainda mentiu dizendo que a repórter havia comprado maconha como pedido de desculpas a mim.
E ela nem mesmo precisava se pronunciar dizendo que era mentira, porque eu tinha certeza que era. Uma pessoa certinha como nem deveria conhecer traficantes. Pelo menos, não um decente. Sem contar que aquele saco de maconha cheirava exatamente com os que eu costumava comprar com o meu cara…
Depois de tanto insistir, cedi ao pedido de George, acompanhando-os até um pub próximo dali.
Enquanto escolhíamos uma mesa na área de fumantes, ficou para trás, fazendo um pedido no balcão. Ao se juntar à nós, trazia consigo dois maços de cigarro, os quais deslizou sobre a mesa na minha direção.
― Tá tentando me comprar, ? ― questionei, semicerrando os lábios, acendendo o cigarro que pendia em meio aos meus lábios.
― Entenda isso como uma oferta de paz. ― Cruzou as mãos sobre o tampo da mesa, inclinando-se em minha direção com uma feição desafiadora. ― Sei que um Parliament teria mais efeito, mas infelizmente não tenho toda essa grana.
― Você tá mesmo decidida a terminar sua matéria, né? ― Tirei o cigarro da boca, soprando a fumaça devagar, contendo um sorriso.
― Como você já bem deve saber, meu emprego depende disso.
― Olha, uma coisa eu tenho que admitir: você é insistente… e isso é muito bom. ― Sorrindo mais abertamente, apontei para ela enquanto falava. Isso sim é fibra. ― Depois que eu vi que você era repórter nova, jurava que você não ia durar um dia.
― E olhe só para nós. ― Com ar de brincadeira, abriu os braços. ― Aqui estamos.
― Por que você pega tanto no pé dela, hein? ― George indagou, sinalizando para o garçom. Antes de respondê-lo, fizemos nossos pedidos.
chegou me perguntando coisas sobre a minha vida pessoal nos primeiros minutos em que estávamos juntos.
― Mas todo jornalista que te entrevista faz isso. ― Franziu o cenho.
― E eu respondo porque vamos ficar poucos minutos na presença um do outro ― argumentei. ― No caso dela, essa máxima cai por terra uma vez que ela vai passar a semana toda atrás de mim. Então, deveríamos começar do começo, não acha? ― Daniel deu de ombros, colocando um cigarro entre os lábios, acendendo-o.
Após uma longa tragada, pronunciou-se:
― Apesar de concordar com ela que não faz sentido que você não responda a perguntas que já respondeu antes em outras entrevistas ― deu mais uma tragada e soprou a fumaça aos poucos. ―, sua lógica também faz sentido.
― Obrigado. ― Acenei, verdadeiramente agradecido. limitou-se a uma careta silenciosa enquanto o garçom trazia nossas cervejas, abria as garrafas e as colocava em frente a cada um de nós.
― Tudo bem, então, vamos recomeçar tudo de novo. ― Como já esperado, tirou o celular de dentro da bolsa, pondo-o sobre a mesa após alguns toques na tela. ― Fala aí o nome da celebridade que você gostaria de conhecer.
Depois disso, boa parte do nosso jantar/happy hour se tornou um sem número de rodadas de perguntas e respostas antes de finalmente decidirmos voltar para o hotel.
Sabendo que ainda haviam muitos assuntos dos quais poderia querer estar a par e que já tinha perdido um tempo considerável, a convidei para passar mais algum tempo juntos, acordados e conversando quando chegamos ao hotel. Acompanhados somente de cervejas e um baseado, cujo qual tentou fumar segundos antes de quase tossir seus pulmões para fora do corpo, a conversa fluiu, como se fôssemos íntimos.
Havia algo em que me fazia querer falar. Não era como com os outros jornalistas. A mulher à minha frente inspirava confiança. Uma vez que você começasse a dizer coisas simples, os temas complexos surgiam e ganhavam corpo em meio ao diálogo. Sentia como se nada fosse íntimo ou incompreensível demais para ser dito.
Apesar de fazer perguntas que pediam mais detalhes sobre, por exemplo, minha infidelidade com Gemma e o caso com Ashley, não era como se estivesse tentando me arrancar uma confissão bombástica. Parecia apenas querer compreender meus sentimentos, minhas motivações e como toda a confusão se deu.
Um baseado inteiro fumado sozinho e algumas latas de cerveja mais tarde, o assunto aos poucos estava se esgotando em si mesmo.
Deitando sobre o piso frio do terraço, passei a observar as estrelas. Calada e a uns bons centímetros de distância, se deitou sobre os braços também olhando para as estrelas. Ficamos ali por longos minutos, em silêncio, porém, quando pensei em comentar algo a respeito da bela noite que fazia, a vi de olhos fechados.
O dia foi longo, né?
Virando-me em sua direção, decidi encarar a estrela mais bonita e brilhante da noite até pegar no sono: ela.

- x x x -


Na manhã seguinte, ao acordar, estava agarrado a , que dormia tranquila. Surpreso de estarmos abraçados ― seu corpo completamente aninhado ao meu ―, minha primeira reação foi fechar os olhos novamente e seguir “dormindo”, visto que a mulher começava a se mexer, dando indícios de que iria acordar em breve. Deixá-la “acordar primeiro” e se afastar tornava tudo menos constrangedor.
O decorrer do dia foi mais ameno que nos dias anteriores, o que era uma vitória. Não brigamos nem nos desentendemos em nenhum instante. acompanhou as gravações do clipe, quase me viu pelado quando saí do banho e esqueci de levar minhas roupas para o banheiro ― isso foi constrangedor! ― e ainda nos sobrou tempo para falar da festa de lançamento do álbum que aconteceria nas próximas horas, a qual não gostaria de comparecer, porém era obrigado.
Contra a minha vontade, à noite, me aprontei e adentrei na van da banda seguido por , que, desta vez, sentou ao meu lado.
Abrindo uma fresta na janela, tirei o maço de cigarros do bolso e, antes de acender o fumo no piloto automático, me lembrei que ao meu lado estava um exemplar de ser humano que não fumava absolutamente nada e tossia sempre que inalava algo sem querer.
― Se importa se eu…? ― Deixei a frase morrer, mostrando a ela os itens em minhas mãos.
― Vá em frente.
Fazendo uma concha com a mão para proteger o cigarro do vento, acendi-o sob o olhar atento de .
― Você tá bem? ― indaguei, vendo-a preguiçosamente passar a mexer no celular sem destino algum.
Respondeu encolhendo os ombros, esgotada.
― Acho que só estou cansada. Vocês têm uma rotina um pouco mais intensa que a minha. ― Deu um sorriso fraco.
― A oferta ainda tá de pé. ― Voltei a sugerir.
― Ah, não. Tudo bem. ― Limitou-se a dizer.
― Tem certeza de que é só cansaço? ― Procurando pelo seu olhar, insisti mais um pouco.
Finalmente olhando-me nos olhos, seus ombros se relaxaram e se permitiu dar um sorriso levemente mais caloroso.
― Tá tudo bem mesmo. Obrigada. ― Depositando a mão sobre meu joelho, senti um arrepio de surpresa no exato momento. Rapidamente, recolheu a mão como um caracol entrando em sua concha e tive a impressão de vê-la corar. É coisa da sua cabeça!
Recuperado do choque, achei graça em sua reação.
― Vamos com calma, . ― Pisquei em um tom zombeteiro, fazendo-a rir de nervoso.
Em nosso destino final, pedi a ela que me fizesse companhia enquanto fumava mais um cigarro do lado de fora e ganhava coragem ― tomava algum calmante ― para entrar na festa.
― Você tem água? ― Catei uma cartela de comprimidos de um dos meus bolsos da calça.
― O que é isso? ― Semicerrou os olhos. ― É Xanax? ― Peguei a garrafa de sua mão, bebi o líquido para ajudar o remédio a descer e lhe devolvi.
― Espero que dessa vez um só faça efeito suficiente pra eu não querer sair correndo e me trancar num quarto pelos próximos 30 anos ― debochei. ― Aliás, belas mãos, . ― Fazendo uma careta engraçada, lançou-me um olhar de estranhamento.
― Obrigada? ― respondeu hesitante.
― Você mesma que faz suas unhas? ― Conferia as próprias unhas em ângulos diferentes, como se procurasse algo de especial.
― Hã… sim? Por quê?
― Queria saber pintar minhas unhas. ― Dei uma nova tragada longa no cigarro.
― Não é muito difícil, ainda mais pra você que tem uma boa coordenação motora nas duas mãos. ― Tendo o cérebro de um adolescente de 13 anos, ri de como aquela frase poderia soar fora de contexto. ― Digo, você toca instrumentos com as duas mãos, então…
― Não precisa se explicar, . Eu entendi o que você quis dizer ― a interrompi. ― E você? Toca alguma coisa?
― Quê? ― nervosa com os rumos da conversa, arregalou os olhos.
É, eu estava fazendo de propósito.
― Instrumentos, , pelo amor de Deus. ― Ri com gosto.
― Desculpa. ― Expressou um sorriso amarelo. ― Aprendi um pouco de guitarra, mas, como eu disse, não levo muito jeito. ― Concordei com a cabeça.
― Não leva mesmo ou você é quem acha isso? ― Traguei novamente, encostando-me na parede atrás de mim.
― Se eu fosse boa, não seria jornalista, certo? ― brincou.
― É, você tem um ponto.
― Por que você não gosta de festas? Você é tipo o estereótipo do homem festeiro, o que não faz muito sentido ― soltou.
― Eu gostava quando era adolescente, mas, conforme você cresce e faz escolhas na sua vida, você adquire algumas fobias e ansiedades sociais. Estar no meio de muita gente que, às vezes, eu nem lembro que conheço, mas que com certeza me conhece me deixa aflito, porque geralmente querem conversar sobre fatos que nem sempre me lembro. Isso sem contar as pessoas que acham que tem alguma intimidade pra me perguntar coisas pessoais. Se fôssemos íntimos, a pessoa não teria que me perguntar nada, pois eu diria a ela, certo? ― Assentiu vagarosamente.
Pondo o tabaco entre os lábios pela última vez, aspirei a fumaça, apaguei a bituca e joguei-a no lixo.
― Devemos mesmo entrar? ― Fiz uma careta.
― Você é quem sabe.
― Se eu surtar, por favor, me salve ― pedi.
― Vou manter os olhos em você. ― riu, seguindo-me porta adentro.
O que aconteceu depois de entrarmos era um completo borrão, pois, sempre que tomava Xanax, pelo menos a primeira hora sumia quase que por inteiro da minha mente, restando apenas fragmentos de acontecimento.
Meio aéreo devido ao efeito do medicamento, já não conseguia mais prestar atenção no que os velhos à minha frente diziam. Bebericando uma garrafa de cerveja e dando meios sorrisos, fingindo estar participando daquilo, tinha vontade de dar um tiro na minha cabeça se mais alguém entrasse no assunto “aquela música que você escreveu para sua mãe”.
Tão logo Jamie levou os investidores para conhecer sei lá quem do outro lado do salão, dei as costas indo em direção aos meus amigos, que permaneciam sentados no sofá de couro. estava sentada entre eles rindo de algo que Ross e Adam lhe contavam.
, você vem comigo? ― Devido ao barulho do local, ouvia tudo muito longe.
― Onde?
― Embora.
― Mas já? ― Arqueou as sobrancelhas, surpresa.
― Estourei o tempo que consigo ficar aqui sem ter um colapso nervoso e gritar com a próxima pessoa que vier falar comigo sobre minha mãe ou a morte da minha avó. ― Levantando-se e ajeitando sua pequena mochila nas costas. Despedimo-nos da banda e fomos embora.
― O remédio bateu um pouco demais? ― indagou, esbarrando sem querer em meu ombro.
― Tô com cara de cansado?
― Um pouco. ― Dei um meio sorriso.
― Você tem esmalte nas suas malas?
― Não. Por quê?
― Pensei em pedir serviço de quarto, ouvirmos música enquanto você me ensina a pintar as unhas. Se você quiser, claro. ― Pus as mãos nos bolsos frontais da calça, desejando mentalmente que aceitasse meu convite. Queria muito passar aquele tempo com ela.
― Pra isso, precisamos comprar o esmalte ― respondeu e eu contive um sorriso.
― Não seja por isso. ― Checando que não haviam carros vindo de nenhum sentido, atravessei a rua e entrei na loja de conveniência.
Olhando por sobre as prateleiras, avistei onde ficavam os itens de higiene, saúde e cosméticos.
Ironicamente, os esmaltes ficavam pendurados ao lado das camisinhas, o que me levou ao diálogo de mais cedo, quando, nervosa, falou sobre a coordenação motora das minhas mãos e achou que eu pudesse interpretá-la errado. Rindo, peguei uma embalagem de esmalte preto e encaminhei-me para o caixa, onde também comprei um maço de cigarros e um isqueiro.
Quando saí do estabelecimento, estava ao lado da porta, terminando de digitar um texto e guardando seu celular no bolso. Retomamos nossa caminhada para a estação de trem mais próxima.
Como já era de se esperar, a linha que ia até o hotel estava vazia, não fosse pelo casal de adolescentes que sentou-se muito longe de nós, cujo garoto ficava olhando para trás a todo momento. Só haviam duas explicações para tal comportamento: tinha algo em nós que chamava sua atenção ou eles estavam “brincando” com algo que não deveríamos ver.
Ainda no início da viagem, revirou o bolso frontal de sua mochila, tirando de lá um fone de ouvido. Plugou-o ao celular e ofereceu um dos lados para mim.
― Vai dividir comigo? ― Sorri, confuso.
― Não vou te deixar sozinho aí, né? Pega logo. ― Aceitei contente, pois estava preocupado que fosse começar a me ignorar.
Encaixando-o na minha orelha, All of my friends, do LCD Soundsystem, soava em alto e bom tom. Deixando que a música fizesse seu trabalho, seguimos em silêncio até a plataforma em que desceríamos, vez ou outra, conferindo o olhar do outro e trocando meios sorrisos.
Chegando ao meu quarto, discutimos qual seria nosso jantar, entrando em comum acordo que nosso pedido da noite seria espaguete com almôndegas. Confiante de que faria uma boa escolha, apenas a observei escolher uma playlist em seu celular. Para minha surpresa, a música que saía do alto-falante era Letter by the water, de The Japanese House.
― Espera. Você conhece a Amber?
― Quê? Eu ouço. ― Deu de ombros.
― E você não nos conhecia? ― Franziu as sobrancelhas com o rosto contorcido em uma expressão brincalhona.
― Bom, não faz muito tempo que eu trabalho como jornalista cultural e, apesar de gostar muito de The Japanese House, não sou fã. Mas por que exatamente eu deveria conhecê-los?
― Porque George e eu produzimos esse EP ― respondi, sentindo meu ego ser levemente apunhalado.
Em uma demonstração genuína de surpresa, tapou a boca com as mãos.
― Ok, agora você me pegou. ― Rimos.
― Posso te perguntar uma coisa? ― Após sentar, cruzei as pernas sobre a cama. ― Por que você sempre senta nessa mesma poltrona? Até porque ela fica bem longe de onde tô sentado.
― É que você tá sentado na sua cama.
― E daí? ― Por alguma razão, tinha a sensação de que sabia qual seria sua justificativa, mas resolvi perguntar só pra ter certeza.
― Eu não sento na cama de pessoas com quem eu não tenho tanta intimidade.
― Você ainda acha que não temos intimidade? ― Sabia! Olhei-a com curiosidade. ― Porque eu tenho uma visão completamente diferente dos fatos.
― Você me contou coisas sobre você que não contou a outras pessoas. Eu entendo. Mas você tem que levar em consideração que a minha curiosidade sobre determinados assuntos é estritamente profissional. Então, se você analisar por esse lado, eu ainda não posso me sentar na sua cama ― explicou de um jeito que fez parecer que estávamos em uma sessão de terapia.
― Eu não sei se você se lembra, mas ontem à noite nós dormimos juntos no terraço. E, pelo que me lembro, nós acordamos abraçados. ― Ri.
Touché ― admitiu em um tom derrotado.
Devagar, saiu da poltrona e sentou-se na beirada da cama.
― Seu colchão é macio. ― Sorri.
Quando a campainha tocou, soube que era nosso jantar. Atendi a porta com um sorriso, cumprimentando o funcionário e dando-lhe uma gorjeta. Puxei o carrinho para dentro do quarto e peguei meu prato antes de me sentar de novo. Sem parar, a playlist de começou a tocar algo que nenhum de nós dois conhecia, servindo de pano de fundo para o nosso jantar.
― É engraçado como, no imaginário comum, pessoas famosas não comem, não dormem, não escovam os dentes ou fazem qualquer uma dessas tarefas que pessoas comuns fazem. ― Morrendo de fome, pus uma quantidade grande de comida na boca, mastigando-a como se minha vida inteira dependesse disso. ― Se eu não estivesse aqui, vendo você se sujar com molho de macarrão, nunca conseguiria conceber essa imagem.
― Uma das coisas que um artista conhecido tem que se lembrar sempre é: independente de onde ele esteja, de quanta grana ele faça, de quanta visibilidade ele ganhe, ele ainda é humano. Mesmo que os outros não se lembrem disso, eu sou humano. ― Limpei os cantos da boca com um guardanapo e continuei: ― Às vezes, eu te respondo as coisas e não sei se isso faz parte da entrevista ou se estamos apenas conversando. ― A verdade era que, às vezes, ficava apreensivo de dizer algo e incluir em sua matéria sem que eu soubesse.
― Digamos que eu meio que fui avisada que eventos assim te deixam ansioso, então… te dei uma folga de mim. ― Trocamos um sorriso. ― Não se preocupe, estamos só conversando mesmo. Se fosse uma entrevista, eu estaria gravando tudo. ― Ri da maneira como arqueou as sobrancelhas. ― Se o meu eu de hoje dissesse pro meu eu de segunda-feira que era possível manter uma conversa civilizada com você sem nos alfinetarmos, eu não acreditaria.
― Eu também não acreditaria que saí da festa de lançamento do meu próprio álbum pra comer espaguete com você e ouvir The xx. ― riu.
Assim que terminamos de comer, empilhei nossos pratos sobre o carrinho, empurrando-o para fora do quarto, deixando-o posicionado ao lado porta, a fim de que um funcionário que passasse o levasse embora. Ao voltar, tirei do bolso o esmalte que havia comprado, empolgado com o momento.
Sentei-me à sua frente na cama.
― Não precisa fazer todo aquele processo de manicure, só pinta mesmo. ― Assentiu, ajeitando-se para que ficássemos de frente um para o outro e depositando uma das minhas mãos sobre seu joelho. ― Teve algum momento que você teve ou se sentiu insegura sobre sua profissão enquanto era estudante? ― Odiava quando ficávamos em silêncio. Ainda mais quando estávamos nos dando bem.
― O início da minha vida acadêmica inteiro foi extremamente conturbado. Eu tinha tantos ataques de ansiedade que perdi as contas de quantas vezes fui para o hospital com suspeita de virose e não tinha absolutamente nada ― contou, deslizando o pincel sobre a unha do meu mindinho, aplicando a primeira camada de esmalte. ― Eu não tinha medo do que produzi ficar ruim. Tinha medo das pessoas não gostarem.
― E o que você fez? ― Observei-a pintando unha por unha calmamente.
― Comecei a perceber que a opinião dos outros sobre o que produzo não é mais importante que a minha. Primeiramente, sou eu quem tenho que ficar satisfeita com o resultado final, entende? ― Olhei em seus olhos quando levantou a cabeça. Acenei, concordando com ela.
― Eu queria ter essa autoconfiança. ― Sem abaixar a cabeça, seus lábios se franziram para segurar uma risada e uma das suas sobrancelhas tremeu pela careta que estava contendo. ― É sério. Eu sei que você e mais um monte de gente me acha egocêntrico, mas não consigo afirmar com 100% de certeza que algo que fiz ficou bom enquanto outras pessoas de fora não validarem aquilo como algo bom.
― É algo a ser trabalhado mentalmente. Isso é sobre o quanto você se importa com opiniões externas. ― Meu pedido para era que me ensinasse a pintar as unhas, porém a própria estava estragando o tutorial, uma vez que não conseguia prestar atenção em mais nada além de suas feições que combinavam perfeitamente uma dose de confiança e tranquilidade.
― Talvez eu não seja tão foda-se quanto eu acho que sou. ― Sorri.
Cantarolando a música que tocava, limpou os excessos de esmalte e começou a aplicar a segunda camada em cada uma das unhas. Não falei mais nada, me contentei apenas em assisti-la. Suas mãos eram muito macias e muito delicadas em tudo o que faziam. Diferente de quando nos conhecemos, seu rosto e nem seus ombros carregavam aqueles ares tensos e desconfortáveis.
Ao finalizar, elogiei seu trabalho, que realmente tinha ficado muito bom, e disse que, na próxima tentaria fazer sozinho, o que era uma mentira, visto que não tinha prestado atenção em quase nada.
― Obrigada por hoje, . ― Sorri.
― Boa noite, Healy ― respondeu-me com um sorriso doce.
― Boa noite, . ― Fechei a porta assim que a vi me dar as costas e ir até sua porta. Joguei-me na cama e fiquei muito mais tempo do que deveria olhando para minhas unhas pintadas, com um sorriso bobo estampado nos lábios.


#3

Eu nunca procuro por maneiras de me consertar
(Pink Alligator - Those Without)



AVISO DE GATILHO: O capítulo a seguir aborda temáticas sensíveis referente a consumo e dependência de substâncias químicas, além de assédio sexual.


Já pronto, decidi que iria esperar por no hall de entrada do hotel, uma vez que não sabia quanto tempo mais ela demoraria, entretanto, poucos segundos após trancar minha porta a vi de costas para mim, trancando a sua. Resolvi, então, esperá-la para descermos juntos.
De costas, a mulher estava incrível. De frente, me deixou sem palavras e tendo que segurar um riso de nervoso. Pelo susto, seus ombros se moveram rapidamente para cima e para baixo. Arqueei as sobrancelhas involuntariamente enquanto guardava o cartão dentro do bolso frontal de sua mochila. E eu achei que ela não pudesse ficar mais gostosa…
― Oi ― soltou desconfiada.
― Oi ― me limitei a responder.
Nunca fiz o tipo que as palavras acabam ou que tem medo de dizer algo errado e fora do momento. No entanto, tinha algo em que me fazia ficar apreensivo. Quem sabe, fosse apenas a vontade de impressionar alguém que achei… intrigante.
― Pronto?
― É… acho que sim. ― olhei para mim mesmo, conferindo se estava tudo bem com a minha roupa.
Rumando lado a lado até o elevador, o chamamos e esperamos pela sua chegada quietos. Ao entrarmos no pequeno espaço, apertou o botão de térreo e, quando as portas se fecharam à nossa frente, me senti claustrofóbico. Queria conseguir lhe dizer algo, porém não havia uma única palavra que eu pudesse pronunciar que não fosse voltada para a sua aparência e esse provavelmente não deveria ser assunto a ser puxado com a jornalista que está apurando algo com você, certo?
Ao encontrarmos com os outros no hall, decidimos chamar dois táxis e nos dividirmos em um grupo de três e uma dupla. De todas as coisas que eu mais queria, não ter que me sentar próximo de dentro de um carro durante os próximos minutos estava encabeçando a lista. Mas era óbvio que nós dois iríamos sozinhos no banco traseiro de um carro.
Durante todo o trajeto, permaneci em silêncio, mordiscando os cantos dos lábios. De soslaio, a via me olhar vez ou outra, como se esperasse que eu dissesse algo. O fato de não conseguir conversar com ela me deixava nervoso. Ficar nervoso me deixava fissurado. Logo, a primeira coisa que faria ao chegar na casa de Amber seria descobrir se Kirk havia aparecido, pois, de todos os dias, aquele era o que mais precisava usar algo. Qualquer coisa.
Estava tão angustiado com aquele desejo que nem mesmo me dei conta quando o táxi estacionou em frente a casa da minha amiga.
Pagamos pela corrida e descemos do veículo, andando pelo caminho acimentado em meio ao gramado em direção à entrada.
Segundos após bater à porta da casa, Amber abriu-a, sorridente, segurando uma garrafa de cerveja em mãos. Parece que não era só eu que estava determinado a retormar velhos hábitos naquela noite.
― Oi ― cumprimentou-nos animada, dando-me um abraço apertado. ― Senti sua falta, garotão ― falou próximo da minha orelha.
― Também senti sua falta, Amb. ― desvencilhei-me dela. ― Desta vez, eu trouxe uma amiga. , essa é a Amber. ― Não sabia ao certo se deveria apresentá-la como amiga ou como jornalista, porém, por via das dúvidas, escolhi a primeira opção, visto que estava muito tarde para que não considerasse se divertir como uma pessoa qualquer sem nenhuma obrigação empregatícia.
― É uma prazer conhecê-la. ― Abraçou , que, por um breve instante, pareceu sufocar com o aperto em seu pescoço. Tive que segurar o riso ao ver a cena.
― O prazer é todo meu.
― Amb, é sua fã ― fingi cochichar dando uma piscadinha sugestiva para minha amiga.
― Suas músicas são ótimas. ― Por sua vez, em um gesto tímido, a jornalista cobriu um dos cotovelos com a mão.
― Obrigada. Eu faço meu melhor. ― Quem via Amb fora dos palcos, nem imaginava o quão triste eram suas músicas. ― Bom, entrem. Os outros já chegaram. ― Deu-nos passagem pela porta, que ela fechou assim que entramos. ― Por favor, se sirvam. Estamos aqui pra comemorar e, até onde eu sei, é um pouco difícil fazer isso sóbrio. ― Ainda bem que Amber e eu geralmente falávamos a mesma língua.
― Kirk tá por aí? ― Disfarçando, peguei uma garrafa de cerveja da mesa de bebidas.
― Eu o vi há alguns minutos. Deve estar circulando pra ver se alguém precisa de algo. ― Deu uma piscada nada discreta para mim e tive que me conter para não revirar os olhos. Às vezes, o jeito espalhafatoso que Bain adquiria após beber me irritava profundamente.
― Vou cumprimentar uns amigos e já volto ― anunciei assim que meus olhos avistaram ao fundo o homem alto de gorro cinza e moletom em plena primavera, vendendo algo para uma garota que eu nunca tinha visto na vida próximo à pia da cozinha.
Ao chegar mais perto de Kirk, o cumprimentei.
― Faz um tempo que não te vejo. Por onde andava?
― Viajando e resolvendo algumas coisas antes da turnê. ― Dei de ombros, antes de dar um gole na cerveja.
― Ficou limpo?
― Por um tempo, mas, aos poucos, voltando a ativa ― brinquei.
― Vai querer o de sempre?
― Me dá 50 de pó. ― Kirk arqueou levemente as sobrancelhas.
― Olha, cara…
― Não vai me vender?
― Não é isso. ― Passou a mão pela nuca. ― Tem certeza?
― Que porra, Kirk? ― Dei um sorriso debochado. ― Era só o que me faltava, você querer me dar lição de moral.
― Não é isso. É que… você passou um tempo sem usar. Tem algum motivo especial pra querer?
― Me divertir não é o suficiente? ― Ainda hesitante, o homem mordeu a parte interna da bochecha, ponderando.
― Eu te vendo 30. É só o que eu tenho aqui.
― Feito. ― Procurei as 30 libras no meu bolso, trocando as notas por um saquinho pequeno em um aperto de mão com o traficante.
― Pega leve, ok? ― Pôs a mão sobre meu ombro, pressionando-o de um jeito amigável.
― Eu sempre pego ― ironizei, fazendo-o soltar uma risadinha desacreditada pelo nariz.
Dando as costas, caminhei até as escadas, subindo os degraus de dois em dois até o quarto de Amber. Sabia que não poderia usar o banheiro comum, pois sempre estava ocupado com gente que resolvia transar com a porta destrancada ou com alguém vomitando. Além disso, já havia dormido tantas vezes na casa da minha amiga, que ela, provavelmente, não se importaria que eu usasse seu banheiro por alguns minutos.
Na maioria das vezes, ninguém entrava no quarto, por isso, assim como Amb, não me importei em deixar a porta destrancada. Em breve, retornaria à festa e ao convívio de todos no andar de baixo.
Largando a garrafa sobre a pia do banheiro, abri o saquinho plástico, despejando uma parte do conteúdo sobre o porcelanato à minha frente. Fechando-o em uma pequena peteca, guardei-o dentro da minha carteira, aproveitando para pegar um cartão de crédito e uma nota de dez. Com o cartão, ajeitei as duas carreiras de pó e, com a nota enrolada em formato de canudo, encaixei-o em uma das narinas, tampando a outra assim que aspirei o conteúdo da primeira linha.
Erguendo a cabeça, inclinando-a alguns graus para trás, apertei meu nariz entre o indicador e o polegar devido a um comichão e leve ardência. Balancei a cabeça ligeiramente, apertando minhas pálpebras uma contra a outra algumas vezes.
Até que notei uma movimentação na porta do quarto e conclui que não estava sozinho.
― Não precisa sair de fininho como se tivesse me visto com o pau na mão ― debochei vendo-a segurar a maçaneta em uma das mãos. Como se tivesse sido pega em flagrante, virou em minha direção e fechou a porta atrás de si. ― Normalmente, não faço isso na frente dos outros, mas acho que você já sabe muitas coisas sobre mim que outras pessoas não sabem. ― Com as costas de uma das mãos, cocei o nariz com um pouco mais de força, pois estava começando a fazer efeito e já sentia o céu da minha boca formigar.
Devagar, se aproximou do banheiro, encostando-se no batente da porta ao mesmo tempo em que eu me sentava sobre a tampa do vaso sanitário.
― É um paradoxo engraçado, né? Eu não costumo usar na frente de outras pessoas, mas, nesses momentos, também não gosto de ficar sozinho ― confessei.
― Por quê? ― Sua voz soou baixa e grave. ― Você tem medo?
― É mais fácil descobrir do que eu não tenho medo. ― Por estar com uma das narinas entupidas, minha risada saiu anasalada.
Encarando , pouco a pouco, pequenos feixes de luz, como glitters, passaram a brilhar ao redor da mulher, realçando ainda mais a imponência de sua figura. Inquieto, comecei a chacoalhar as pernas para cima e para baixo. Conseguia sentir a inibição se esvaindo pelos meus poros e tinha plena certeza de que era completamente capaz de manter um diálogo com ela que incluía todas as coisas que gostaria de lhe dizer desde mais cedo.
Sua presença me deixava excitado e eufórico. Além disso, poderia jurar que o ambiente havia ficado mais abafado desde sua chegada. As costas da minha camiseta estavam encharcando devido ao suor.
― Amber não deu em cima de você? ― Ansioso, queria saber quais haviam sido as interações que ambas tinham feito em minha ausência. Apesar de namorar, Amb não fazia o tipo que perdia tempo e, de todas as mulheres com quem ela poderia flertar, esperava que não fosse uma delas.
― Por que ela faria isso? Ela namora. ― Franziu as sobrancelhas, confusa.
― Porque você tá gostosa pra caralho! ― Sorri sem nenhum pudor ao concluir.
Furiosa, a mulher revirou os olhos e fez menção de ir embora. Tentei segurar seu pulso, mas a mesma se esquivou antes que conseguisse.
― Não. Por favor, não me toque ― censurou-me em um tom firme. ― Eu vou descer e ficar com os outros. Enquanto você não tiver voltado a si, não fale comigo.
Saiu do quarto, deixando-me sozinho como não queria ficar.
Sem vontade de cheirar a segunda carreira, abri a torneira, molhei a mão e empurrei o pó rumo a pia, lavando os resquícios da minha palma em seguida.
Resolvendo finalizar minha cerveja, peguei a garrafa e virei-a para mais alguns goles. Por estar com a boca amortecida, acabei pingando algumas gotas da bebida na minha roupa.
Não sei quanto tempo se passou, no entanto, de novo, não estava sozinho no quarto. A figura alta e larga de George despontou na porta do cômodo caminhando até mim.
― Como você tá? ― Agachou-se à minha frente, inclinando a cabeça para me olhar nos olhos. Dei de ombros em resposta. ― O que você disse pra deixar ela irritada?
― Apenas a verdade. ― Ergui as mãos em sinal de rendição.
― Que foi… ― deixou no ar, me incentivando.
― Que ela tá gostosa pra caralho. ― Fechou os olhos, passando uma das mãos pelo rosto, em silêncio. ― Que foi? Não é mentira. Aposto que até você pensou o mesmo. ― Sorri.
― A questão não é essa. ― Suspirou. ― Não se diz isso pra uma pessoa que você não tem a menor intimidade. Muito menos se ela estiver aqui a trabalho ― explicou, a voz assumindo uma tonalidade cansada. ― O que você fez pode até ser interpretado como assédio, sabia?
― Sério? ― Franzi o cenho.
Assentiu.
tá brava com você e com razão. Você não tinha que ter usado. Não quando ela está aqui. ― Tirou a garrafa de cerveja da minha mão quando fiz menção de bebê-la novamente. ― Por que fez isso?
― Isso o quê?
― Cheirar.
― Ela me deixa nervoso. ― Certamente, um dos efeitos que eu mais odiava na cocaína era como ela me deixava com a língua ainda mais solta do que o possível. Não conseguia me recusar a responder absolutamente nada. Tanto que a expectativa da noite era conseguir agir normalmente perto de e a realidade presente era: assumir em voz alta coisas que deveriam ficar só na minha cabeça.
― Quem? ― Franziu as sobrancelhas e semicerrou os olhos.
.
― Por quê? ― Dei de ombros.
― Já olhou bem pra ela?
― O que tem?
― Ela é bonita, né? ― Dei um sorriso largo ao meu lembrar de seu rosto.
― É, ela é. ― Franziu os lábios para baixo.
― Fiquei nervoso por ter achado que hoje ela estava no auge da beleza dela e não conseguia falar nada. Isso me deixou com fissura porque sabia que, se eu usasse, ia conseguir falar.
― Pois é, mas falou as coisas erradas. Adiantou de alguma coisa? ― rebateu.
― Pelo menos, agora ela sabe que é gostosa.
― Uma mulher como ela não precisa que ninguém diga isso. Ela certamente já sabe.
― E como você sabe disso? ― Franzi a testa.
― Eu só… sei. ― deu de ombros.
― Ok, espertinho.
― Faz muito tempo que você usou? ― Dei de ombros. ― Como você tá se sentindo?
― Com menos calor.
― Ótimo. Tá passando.
George continuou sentado comigo por mais alguns minutos, até que eu sentisse que estava começando a recobrar o juízo.
Meu coração estava dimnuindo o ritmo, porém seguia descompassado, minha boca ainda formigava e eu mal dava conta de engolir a saliva que produzia em excesso. Pelo menos, a sensação de calor intenso estava passando, deixando apenas o suor para trás.
De volta a sala, muito tempo depois, quando Amber deu play nos trechos de suas músicas novas para que os presentes ouvissem, não consegui prestar atenção em nada após meu olhar se encontrar com o de . Ainda zangada comigo, não tive coragem de ir falar com ela. Sentia-me plenamente culpado por ter estragado aquela que deveria ser sua noite de diversão.
Acendendo um cigarro, continuei fitando-a pelo resto da noite.

- x x x -


Horas andando de um lado para o outro acabaram me levando à porta do quarto de às 8h30 da manhã. Estava sentindo em minhas veias o mais poderoso dos efeitos para me fazer falar tudo sem pudor algum: vergonha da forma que agi.
Precisava urgentemente fumar um cigarro ― ou cinco de uma vez só ― para parar de tremer e sentir como se fosse perder o controle em um ataque de pânico. Todavia, se iria mesmo conversar com , não poderia dar nem um único trago. A intenção era fazê-la me desculpar, não ficar ainda mais furiosa comigo pelo cheiro forte de tabaco, o qual odiava.
Lembrava-me nitidamente da noite anterior, do que havia lhe dito, de sua reação, de como me evitou pelo resto da festa, mesmo que isso significasse passar boa parte do tempo sozinha, bebendo a mesma garrafa de cerveja quente durante horas a fio. Se não tivesse me visto usar ou se eu não tivesse usado, a teria tirado para dançar, teríamos conversado muito e talvez, só talvez, tivesse coragem para me aproximar de outro jeito dela.
Claro que, naquele momento, eram apenas suposições, uma vez que, quando todo o efeito passou, mal tive coragem de olhá-la nos olhos, tampouco de lhe pedir desculpas.
― Você tá muito ocupada? Eu te acordei? ― Foi tudo o que consegui dizer ao vê-la abrindo a porta.
Por um segundo, pensei sobre a possibilidade de ser enxotado como uma mosca durante o almoço, mas nunca agia como eu esperava.
― Não. Entra. ― Me deu passaem. ― Senta. ― Lembrando de sua paranoia com camas, procurei com os olhos outro lugar para me sentar. ― Pode ser na cama mesmo.
Surpreso por ter me deixado fazê-lo, sentei na beirada do colchão, sendo acompanhado por ela segundos depois.
aparentava extremamente cansada e, da distância em que estávamos um do outro, conseguia sentir o cheiro de expresso que emanava dela, como se tivesse tomado banho em uma banheira de café.
― Pra além de me desculpar por você ter me visto fazer aquilo, quero me desculpar pelo que fiz com você. ― Crispei os lábios, tentando pensar no que deveria dizer depois para lhe mostrar que o arrependimento era real. ― Não devia ter falado com você daquela forma e quero que saiba que eu jamais diria aquilo se estivesse… você sabe… ― Não consegui terminar.
― Sóbrio? ― completou.
― Isso. ― Para desanuviar as ideias, passei as mãos pelo rosto. ― Desculpa mesmo.
― Tudo bem. ― Com um sorriso fraco tomando os lábios, balançou a cabeça afirmativamente.
― Pra te compensar, se você tiver tempo, podemos falar sobre isso ou qualquer outro assunto que você quiser ― sugeri.
― Agora? ― Assenti. ― Você não tá muito cansado?
― Precisa ser agora enquanto eu ainda não fui completamente tomado pela ressaca moral e consigo falar abertamente sobre. ― Dei uma risadinha sem o menor humor. ― Espero que esteja com seu gravador.
― Sempre. ― Jogando-se sobre a cama para alcançar o celular na mesa de cabeceira, parte da perna da mulher roçou na lateral do meu quadril. Não disse nada, bem como não a toquei, porém não consegui conter meus olhos, que se facilmente se prenderam a pele macia de sua coxa. ― Quando quiser ― disse, ligando o gravador.
― Assim, no seco? Sem nenhuma pergunta introdutória? ― Revirou os olhos e eu quase ri.
― Ok, Healy. Quando foi a primeira vez que você usou cocaína?
― Eu devia ter uns 17 anos. No começo não era pra ser um viciado. Eu só achava legal, queria ser como, sei lá, o Jack Kerouac e a geração Beatnik. Eu achava que usar fazia parte de quem eu era. Falando em voz alta, parece uma coisa idiota.
― Você chegou a usar outras coisas mais pesadas?
― Ah, sim. Heroína. Mas eu nunca perdi… pra ela. Diferente da cocaína. Tentei parar sozinho algumas vezes, não deu certo. Quando percebi que estava começando a me atrapalhar, decidi me internar em uma clínica aqui em Londres.
― E como foi a experiência?
― Bom, funcionou. ― Dei de ombros. ― Lembro que foi quando tivemos uma folga de umas semanas no final do ano. Jamie fez de tudo pra que eu conseguisse me internar, mas era pra ser segredo, então, não anunciamos pra ninguém. Só minha família e a banda sabiam. O segredo ficou guardado a sete chaves até o dia que saí. ― Comecei a rir descontroladamente ao relembrar o acontecido. ― E aí aconteceu o que ninguém imaginava. Depois que eu saí pela porta da frente, fui parado por uma pessoa na rua, que literalmente disse ‘ei, você não é o Matt? Matt Healy, The 1975?’ começou a rir também. ― Na minha cabeça, só conseguia pensar ‘fodeu’. Por fora, só confirmei. Ele não falou nada, mas olhou pra porta de onde saí e pra mim. Só pediu uma foto, um autógrafo e foi embora.
― E essa pessoa não espalhou nada?
― Eu nunca encontrei nada por aí.
― E por que você voltou a usar? Digo, eu sei que é difícil, mas teve algum motivo em específico?
― Uma vez que você se torne viciado em algo, algumas coisas mudam. Você não vê mais graça na vida sem um estímulo, sem algo que te faça levantar da cama e querer viver. ― Umedeci os lábios. Há algum tempo minha vida estava se tornando usar algo para dormir e, ao acordar, usar algo para me manter ativo. ― Quando saímos em tour pela primeira vez, senti como se tivesse ganhado algum fôlego de vida, mas só isso não era suficiente. Depois de sair da reabilitação, senti que conseguiria ser eu com tanto que tivesse o apoio dos meus amigos e da minha família. E funcionou por um tempo. Aí começa tudo de novo.
Sem reação, permaneceu calada.
― Você precisa de um cigarro? ― Chocado, apenas dei um meio sorriso.
― Preciso, mas eu sei que você não gosta do cheiro, então, vou esperar a gente terminar pra eu fumar no meu quarto ou na rua.
― Sua família lida bem com sua dependência?
― Meu pai quase nunca toca no assunto. Minha mãe… bom, ela se sente culpada. Acha que por ser usuária, meu vício pode ter vindo dela ou algo assim. ― Cruzei os braços, pensando em cada membro da minha família. ― Às vezes, me preocupo com meu irmão. Ele sabe de tudo isso e sabe que pode conversar comigo a respeito, mas não queria que ele fizesse as mesmas escolhas que fiz. ― Ao pensar em Louis, fui tomado por uma onda de saudades. Agora, falta pouco para vê-lo de novo.
― Como você acha que vai se sentir se ele as fizer?
― Vou precisar acolher ele, né? Com apoio, já é complicado. Sem, imagino que seja impossível.
― Voltando a 2014, teve um show que você… ― Deixou a frase morrer. Provavelmente, algumas coisas eram difíceis de colocar em palavras sem soar de uma maneira casual demais.
― Surtei? ― completei. ― Tinha muitas coisas nesse dia. Gemma e eu estávamos por um fio; não conseguiria voltar pra casa a tempo de participar de uma apresentação que Louis faria na escola; e achei que usar uma dose de heroína algumas horas antes do show seria uma boa ideia, o que com certeza foi uma das piores ideias que tive em anos. ― Refletindo sobre com certo distanciamento percebi o quão imbecil fui naquela época e qualquer pessoa seria capaz de concluir aquilo se a questionasse a respeito. ― Foi depois dali que eu fui para a reabilitação.
― Como é a relação dos seus fãs com esse assunto?
― Alguns me aconselham, outros torcem por mim. Sem contar os que repostam vídeos em que não estou nos meus melhores dias com ‘pobrezinho’ na legenda. ― Ri. ― Claro, eles não sabem de tudo porque ainda não me sinto completamente confortável para falar sobre tudo, mas, quando esse momento chegar… ― Mexendo na tela do celular, a postura de mudou.
― Acho que podemos encerrar por aqui ― interrompeu-me abruptamente.
― Por quê? Você já acabou? ― Franzi a testa, confuso com sua atitude.
― Um bom jornalista sabe onde termina a entrevista e começa uma conversa pessoal ― concluiu.
― Foi pelo que eu disse? Não se preocupe. Você tem meu total aceite para publicar cada vírgula do que eu disse ― argumentei.
― Uma relação jornalista-fonte é como um adulto e uma criança. Nessa relação, o jornalista é o adulto que precisa enxergar à frente, como isso vai soar pras outras pessoas, se vai causar problemas futuros e quais são os efeitos de uma forma geral a longo prazo. A fonte é a criança. Ela pode falar o que quiser e se sentir à vontade, mas nem sempre tem noção do peso das próprias palavras. ― Um suspiro escapou por seus lábios, fazendo seus ombros subirem e descerem delicadamente. ― O que eu quero dizer é que, se um dia você quiser se desvencilhar de tudo isso, não quero que o que eu produzi sobre você seja algo que te impeça de fazer isso. Jamais... nunca na minha vida quero que o que eu fizer com meu cérebro e com as minhas mãos seja o motivo de alguém não conseguir se reinventar e seguir em frente. ― Novamente, a mulher pousou a mão sobre meu joelho. Por estar atento a todos os seus movimentos, assisti em câmera lenta o momento que, em busca de me confortar, me tocou.
A ela, esse olhar parece ter soado como repreensão, visto que rapidamente tratou de encerrar o contato entre nossos corpos. Entretanto, mal sabia que eu ansiava por seu toque daquela e de várias maneiras, em diversos lugares, onde quer que suas mãos pudessem alcançar.
― Desculpa. Eu preciso perder essa mania. ― Riu, corando de leve nas bochechas.
― Sabe que eu não me importo, né? ― Tentei fazê-la entender que, em momento algum, a repreendi.
― É, mas algum dia alguém vai se importar. Preciso de verdade parar de fazer isso ― rebateu mais como um lembrete para si mesma do que para mim.
― De qualquer forma, você tem roupa de festa? ― Mudei de assunto ao perceber que estava desconfortável.
― Pelo que eu olhei, em uma das minhas malas, trouxeram um vestido que, inclusive, nunca usei. Por quê?
― É aniversário de um dos donos da gravadora. Brian. Ele gosta dessas coisas chiques e pomposas. Sem contar que todos os anos ele faz duas festas de aniversário. Uma onde ele convida todas as pessoas relacionadas a empresa e aproveita para fazer negócios. Na outra, ele apenas comemora com família e amigos.
― Em qual das duas nós vamos?
― Na primeira. ― Abriu a boca para demonstrar compreensão, mas notei o quanto ela não gostou da informação.
poderia até não ter gostado de saber que iria para um evento mais luxuoso, porém eu estava ansioso para vê-la. Sabia que me surpreenderia com seu esplendor independente das vestimentas.
― Claro que se você não quiser ir…
― Eu vou, sim. É minha chance de usar o meu vestido intocado. ― Rimos. ― Que horas vamos sair daqui?
― Acredito que umas 18h. Temos o dia livre hoje, então, pode dormir um pouco e se arrumar com calma.
― Como sabe que eu não…?
― Você tá cheirando a café ― interrompi-a. ergueu a gola da própria, cheirando-a e segurei uma risada.
Queria lhe dizer que gostava do seu cheiro, que não tinha nada de errado nisso, mas me contive.
― Parecia um ótimo café. ― Ri.
― Ok, ok. Eu vou dormir e você devia fazer o mesmo.
― Eu vou. ― Fiquei em pé. ― Te vejo mais tarde? ― Concordou com um aceno, acompanhando-me até a porta.
Do lado de fora, sozinho, sorri.
Pela primeira vez, ao falar de mim e da minha vida, não me senti culpado nem um lixo. tinha me ouvido, mas não tinha me julgado. Apenas atentamente me deixou falar sobre o que achei que deveria e me permitiu ser eu mesmo, sem censuras ou cheia de dedos apontados para o que consideraria certo ou errado.
Ela era fantástica mesmo.


#4

Mal posso esperar pelo dia que você será minha
(1 Thing - Sophie Powers ft. Kellin Quinn)



Havia recém fechado a porta quando vi quase encostada na sua, se remexendo por inteiro. Dei uma espiadela por cima de seu ombro e, ao perceber que a qualquer instante ela ficaria com um dos peitos de fora, parei de olhar. Aquela cena estava, no mínimo, cômica e eu estava me divertindo muito às suas custas.
Terminando de se ajeitar, virou-se e seus ombros se sobressaltaram de susto, como já era de costume toda vez que nos encontrávamos pelos corredores.
― O que você tá fazendo? ― Me fiz de sonso, como se não tivesse quase visto seu peito de fora segundos atrás.
― Podia ter avisado que tava aí, né? ― Pôs a mão sobre o decote profundo, respirando fundo.
Pus as mãos nos bolsos da calça, sem conseguir evitar olhá-la da cabeça aos pés. Impossível alguém ser tão gostosa assim sem nem tentar. Seu vestido tinha um decote frontal em U até a altura do estômago, deixando o vão entre seus seios completamente à mostra, as mangas compridas e bufantes eram feitas de tule, assim como a saia, que, além de não ter forro, continha uma fenda da cintura até os pés, deixando uma de suas coxas visíveis quando andava. Naquele vestido, tudo de fabuloso na aparência de tinha sido ressaltado 31 vezes mais, o que mexeu com a minha imaginação muito mais do que eu gostaria.
Tentando me trazer de volta para o momento atual, a mulher apontou com o dedão sobre os ombros para o elevador.
― Vamos? ― sugeriu.
― Ah, claro. ― Passei a mão no rosto, recobrando a consciência, porque, de todos os dias em que a vi, certamente, foi naquela noite que fui nocauteado sem chances de recuperação.
Tal qual no dia anterior, não consegui formular frases inteligíveis, porém, desta vez, como iríamos de van junto com os outros, escolhi me sentar no banco frontal ao lado de Jamie. sentou-se em meio a George e Ross, que cuidaram de responder todas as suas perguntas a respeito do aniversariante do dia.
― Tudo bem entre você e a garota? ― Jamie guardou o celular em um bolso dentro de seu paletó.
― Ah, sim. Estamos nos dando bem. ― Cocei o queixo levemente, sem olhá-lo.
― E você tá sentado aqui por quê? ― Franzi as sobrancelhas e dei um sorriso que misturava nervosismo e deboche.
― Ela pode conversar com outras pessoas, certo? E hoje é seu último dia, acredito que já conseguiu todas as informações que queria a meu respeito.
Remexendo o lábio inferior em um tom de desconfiança, Oborne virou-se brevemente para trás e voltou a me olhar, como se ligasse pontos invisíveis entre mim e .
― Eu sei o que você está pensando e não é uma boa ideia.
― Ok, o que eu estou pensando? ― ironizei.
― Matthew, ela está aqui a trabalho, não para flertar com você. Essa garota não é sua amiga e não está aqui pra foder com você. Ou melhor, dê a munição certa e ela vai realmente foder você e a sua carreira ― rebateu sério.
Arqueei as sobrancelhas, surpreso.
― Não acho que ela teria coragem de fazer isso. ― Desviei o olhar.
― Não queira pagar pra ver. Ela é jornalista. E a única coisa que jornalistas querem é um furo ― encerrou.
Seguimos em silêncio, entretanto, não consegui mais parar de analisar se era isso mesmo que queria. Olhando por sobre meu ombro em sua direção, a vi se divertindo com George. Ela ficava muito bonita quando sorria. Parecia que algo se iluminava ao seu redor.
Queria muito que Jamie estivesse errado a seu respeito, no entanto, não poderia afirmar que sua colocação estava incorreta ou era injusta, pois, no fim do dia, e eu não nos conhecíamos tão bem assim para além das coisas que havíamos decidido contar um ao outro.
Ao chegarmos no local, a mulher era a única de nós cujos olhos pareciam deslumbrados com tudo ao seu redor. E, até nisso, Tillman era uma criatura preciosa. A forma que seu olhar percorria todo o lugar com curiosidade fazia com que eu não conseguisse evitar um sorriso se formando em um dos cantos dos meus lábios.
Minutos após nossa chegada, Brian veio nos cumprimentar e, logo, teve sua atenção capturada pela estranha que nos acompanhava. soava confiante em sua fala e isso fez com que Brian a enchesse de perguntas sobre seu trabalho e como era ser subordinada de Sullivan. Aquele velho gostava muito quando encontrava alguém que tinha a mesma postura que aquela mulher estava tendo.
Transparecendo nervosismo e tensão exatamente como se fosse uma bomba de ansiedade prestes a explodir, o corpo inteiro da mulher pareceu se comprimir assim que o aniversariante se retirou. Seus ombros estavam encolhidos, seus punhos cerrados e ainda tive um vislumbre de seus dedos dos pés agarrados à beira da sandália.
― Você tá ótima nesse vestido, mas precisa muito relaxar. ― Sendo o cavalheiro que geralmente era, George a elogiou oferecendo uma taça de champanhe.
― Obrigada. Eu só… nunca estive em um lugar assim. ― Aquilo soou como uma confissão.
― Onde todo mundo tem essa pose almofadinha ou onde tudo parece feito para quebrar se você minimamente encostar um dedo? ― sugeri, bebendo um gole da minha bebida logo em seguida.
― Acho que é mais a segunda opção.
― George tá certo. Você tá ótima, não se preocupe. Além do mais, Brian parece ter simpatizado com você. Ele não costuma trocar mais de três frases com quem não tenha nenhum interesse. ― Aproveitei a deixa para elogiá-la como se aquilo não fosse nada demais, vendo-a beber um gole maior de seu champagne ao mesmo passo que a banda encarregada da trilha sonora da festa começou a tocar John Coltrane. [n/a: e vamos de reviver o momento com essa aqui] ― Eu amo essa música. Nós deveríamos dançar ― propus. A testa de se contorceu de um jeito que parecia julgar aquela como uma ideia desprezível.
― Eu acho melhor não.
― Por que não? Qual é, ? É só uma música. ― Estendi a mão para ela, sabendo que assim ficaria mais difícil de recusar meu pedido. ― Aliás, é seu último dia e você precisa relaxar. ― Pisquei em um tom brincalhão e, aparentemente, funcionou.
Bebendo o resto de seu champanhe, deixou a taça sobre o balcão atrás de si e segurou minha mão, permitindo que eu a guiasse até o meio dos casais dançarinos. Desfazendo-me da minha taça vazia na bandeja de um garçom, pus uma mão em sua lombar, sem aproximar nossos corpos mais do que o necessário. Tínhamos que manter uma distância segura para ambos.
― Você gosta de John Coltrane? ― iniciei.
― Meu pai é apaixonado por ele, então, pode-se dizer que foi a trilha sonora da minha infância. ― Deu uma risadinha baixa como quem revisita uma doce memória.
Com passos curtos e ritmados da esquerda para a direita, não era uma dançarina exemplar, mas era boa em acompanhar um ritmo fixado. Sob meu toque, seu corpo estava levemente aquecido. A mão que tocava a minha estava começando a suar, o que foi ligeiramente engraçado. Ela tá nervosa?
― Será que se eu não fosse vocalista de uma banda ou se você não fosse jornalista nós iríamos nos conhecer mesmo assim? ― Deu de ombros, franzindo os lábios para baixo. ― Quem sabe? Talvez isso estivesse programado para acontecer independente de quem somos. ― Semicerrei os olhos ao ouvir sua resposta.
― O que é isso? A Matrix? ― Rimos. ― Você acredita em destino?
― Acho a definição de destino uma coisa boba. Uma ilusão que revistas adolescentes vendem pra jovens mulheres se iludirem e evitarem a crueldade do mundo adulto por quanto tempo conseguirem ― rebateu. Às vezes, ficava impressionado com suas linhas de raciocínio.
― Uh, profundo.
― Mas eu acredito que existam forças superiores que nos levam para onde devemos estar.
― Tá falando de Deus? ― Arqueei uma sobrancelha.
― Não. Só acho que tudo tem um propósito.
― E se não houver propósito nenhum?
― Bem… pelo menos conheci alguém legal. ― Trocamos um sorriso.
― Achei que você ainda me achasse um cuzão, principalmente depois de ontem ― insinuei, esperando para saber sua real opinião a meu respeito.
Eu realmente me importava com o que as pessoas achavam de mim. Ainda mais quando havia outros tipos de interesse na outra pessoa.
― Assim como você me provou que não é tão ruim quanto todo mundo acha, quero que saiba que eu não julgo as pessoas pelas suas escolhas ou atitudes individuais. Apesar de tudo, é inegável que você é um cara legal.
― Uau, por essa, eu não esperava ― ironizei.
Dentro de mim, algo deu uma cambalhota de felicidade. Era bom saber que não me achava um caso perdido.
― O que você esperava, então?
― Que você estivesse doida para ir embora e correr atrás da sua promoção.
― Quero fazer isso também, mas só quando nosso tempo juntos acabar. ― Havia algo nela, especialmente naquela noite, que não me deixava desviar os olhos dos seus. Era como se houvesse algum tipo de conexão estabelecida entre nós que se quebraria no menor desvio que meu olhar desse na direção contrária à sua.
O que me deixava mais irritado é que perto dela, não conseguia parar de sorrir. No máximo, conseguia disfarçar com um sorrisinho fechado. Parar? Nunca.
tinha características muito próprias. Era séria, mas só o suficiente para que não achassem que já são íntimos nas primeiras palavras trocadas. Não tinha o riso frouxo, porém, quando ria, era impossível não acompanhá-la. Não eram raras as vezes que parecia se desligar do presente e orbitar em um lugar só seu dentro de sua cabeça. Nesses momentos, seus olhos até perdiam um pouco do brilho.
Quando conversávamos, ela, de fato, estava lá, me ouvindo. Aquela mulher se importava com cada palavra do que eu falava, como se eu fosse o pastor que congrega uma única ovelha.
Isso tudo sem citar suas características físicas, pois certamente tinha o par de coxas mais inacreditável do Reino Unido e região. Se algum homem algum dia tivera a audácia de dizer “não” àquela mulher, possivelmente não estava em pleno uso de suas faculdades mentais.
― Vou sentir falta de alguém para importunar. ― Ao mesmo tempo em que brincava, queria que se sentisse acolhida.
― Você ainda tem seus amigos.
― Eles sabem quando eu faço de propósito. Não tem mais graça. ― Rimos baixo.
― Você me odeia mesmo e não faz nem questão de disfarçar, né?
― Na verdade, de todas os jornalistas que conheci, você foi talvez a única que fez eu me sentir humano em todo o processo, o que é estranho. Geralmente, sou só o cara drogado e polêmico, sem filtro nenhum de uma banda britânica que ninguém entende muito bem por que faz sucesso. ― Um sorriso apareceu no canto de seus lábios. ― Eu sei que você tá aqui pra conseguir aquela vaga de emprego, mas quero que saiba que, mesmo que você não consiga, não significa que você não é uma profissional incrível e que vai alcançar muitas coisas.
Continuei a sustentar aquele o contato visual.
Queria poder lhe dizer tudo que havia pensado nos breves segundos em que fiquei em silêncio. Como eu a achava extraordinariamente bonita e interessante na mesma proporção. Como eu a achava atenciosa e que deveria sorrir mais, afinal, seu rosto inteiro se iluminava quando o fazia.
Contudo, não conseguia pronunciar absolutamente nada.
Um dos fatos mais engraçados sobre era como facilmente me deixava sem palavras. Logo eu, que gostava tanto de monólogos infinitos.
Por mais que houvesse um espaço considerável entre nossos corpos, conseguia sentir seu calor. Tão logo que me distraí, fantasiei sobre como seria beijar sua boca, se ela gostaria, se ficaria surpresa, se corresponderia, se me bateria e sairia correndo. Imaginei o gosto, a temperatura e textura de seus lábios. Será que a realidade é melhor do que minha imaginação? Ponderando sobre a possibilidade de tentar beijá-la, decidi deixar a ideia ir embora. Não era o momento nem o local para aquilo e possivelmente lhe geraria uma má reação.
Mas não a descartei por inteiro, pois não acreditava que só eu estivesse sentindo aquela tensão tão tangível entre nós.
― Eu nunca faço isso e talvez devesse continuar assim, mas, se você quiser, posso te enviar a versão finalizada do texto para aprovação antes de entregá-lo para o Sullivan na terça.
― Não. ― Quase atropelei sua oferta com minha recusa e acabei rindo de nervoso. ― Não precisa e eu não quero. Confio em você.
― Sério? ― Arqueou as sobrancelhas em um tom surpreso.
― Tudo que eu te contei foram coisas que não há problema algum se você falar sobre. Tá mais que autorizada a usar tudo. E não existe nenhuma outra pessoa com quem eu gostaria de ter dividido. ― Sorri.
― Obrigada. ― Sorriu de volta.
Separando-nos e erguendo nossas mãos um pouco acima de nossas cabeças, a rodopiei lentamente, voltando a nossa posição inicial e retomando nossa dança.
― Você não me parece o tipo de cara que gosta de dança de salão.
― Mas minha mãe gosta e ela me ensinou pra eu poder dançar nos bailes da escola. ― Rimos.
― Tá aí mais uma imagem que eu não consigo conceber nem no meu momento de imaginação mais fértil. Você foi em quantos bailes? ― Ao término da música, um pouco relutante, me desvencilhei dela.
― Em todos? ― respondi em tom de pergunta.
Fato divertido sobre mim: adorava os bailes da escola.
― Você é mesmo incógnita, né? ― Riu divertida.
― Um homem tem que ter seus mistérios pra conseguir manter as pessoas interessadas, certo? ― rebati, pegando duas taças de um garçom que passava por nós, entregando uma a ela.
― Sei que vou soar repetitiva, mas você realmente não tem medo do que eu possa escrever sobre você? ― Neguei com a cabeça.
― Já falei. Eu confio em você. ― Dei de ombros como se não houvesse outra opção a não ser confiar.
Assistindo-a dar mais um sorriso e um primeiro gole em sua bebida, já estava começando a sentir saudades de e a noite ainda nem havia acabado.

- x x x -


Ao acordar naquela manhã, um sorriso se formou em meus lábios logo após coçar os olhos com os nós dos dedos. Ainda deitado, as memórias da noite passada inundavam a minha cabeça como uma enchente em dia de chuvas torrenciais. Só de minimamente visualizar seu rosto sorridente e luminoso, sorria cada vez mais abertamente.
Ao relembrar as partes de seu corpo que tocaram o meu enquanto dançávamos ao som de John Coltrane, sentia minha pele formigar e se aquecer nos exatos locais. Também me lembrava perfeitamente da vontade que me deu de beijá-la ali mesmo, em meio a todas aquelas pessoas, sem me importar com o que tal gesto significava ou poderia acarretar num futuro bem próximo.
era o tipo de mulher bonita que, de longe te faria admirá-la, de perto e dialogando com você, te faria capaz de realizar loucuras impensadas se fosse isso que ela desejasse.
Depois que voltamos para o hotel, mesmo que não pudéssemos mais conversar tão intimamente por estarmos acompanhados dos outros, continuamos a trocar olhares, o que era engraçado. Por mais que tivesse sempre aquela postura séria e meio distante, não era isso que seus olhos calorosos me diziam ao se encontrarem com os meus. A sensação que dava era de estarmos pensando exatamente as mesmas coisas em relação ao outro, com as mesmas intenções.
Era possível que, em seu caso, eu estivesse errado e lendo-a errado? Completamente. Porém nunca vi aquela intensidade no olhar de quem era só meu amigo.
Por isso, qualquer que fosse a aproximação que tentasse fazer, deveria ser cauteloso em todos os sentidos.
Como um flash, pensei em chamá-la para sair. Não como em um encontro, apenas como amigos, mas sabia que havia uma grande possibilidade de rejeição.
Era seu último dia conosco, logo, se não poderia chamá-la para um encontro, poderia, ao menos, convidá-la para uma última refeição juntos.
Portanto, depois de fumar o primeiro cigarro do dia e beber uma rápida xícara de café, dei passos ligeiros até seu quarto, do outro lado do corredor.
― A que devo a honra da visita a essa hora? ― zombou conferindo a hora no relógio em seu pulso.
― Vim te convidar para almoçar juntos.
― Mas são dez da manhã ainda. ― Riu.
― É pra garantir que você não vai marcar mais nada com mais ninguém. ― Sorriu.
― Onde mais eu iria?
― Pra casa. É seu dia de ir, não?
― Eu não iria sem me despedir, sabe disso, né?
― Mas, ainda assim, quero que a gente… passe pelo menos mais um tempo juntos antes de ir.
― Tudo bem. Te encontro no restaurante quando terminar de arrumar minhas coisas. ― Sorriu.
― Eu te espero.
Tal qual alguém que recém ganhou na loteria e se tornou o mais novo rico da cidade, voltei para o meu quarto sorrindo à toa, como se todos os problemas da minha vida estivessem resolvidos.
Mais tarde, ao ver a mensagem que havia me enviado, avisando que estava pronta para almoçar, como um furacão, saí do quarto, entrei no elevador e, impacientemente, esperei que me levasse até o térreo para encontrá-la.
Quando a porta abriu de novo, saí do cubículo olhando em todas as direções em busca de sua figura, encontrando-a somente na entrada do restaurante, conferindo a hora do relógio de pulso.
― Demorei?
― Achei que demoraria mais. Você é muito pontual para um rockstar, sabia? ― brincou.
― Não vejo por que fazer esperarem por mim sendo que já estou pronto.
― Você é uma pessoa decente, Healy. ― Deu dois tapinhas em meu ombro com notas de deboche na voz.
Um atrás do outro, procuramos por uma mesa meio afastada da entrada e da porta da cozinha, afinal, a circulação de pessoas costumava ser maior nessas áreas.
Tomando assento, pegamos os cardápios e passamos a lê-lo em voz alta para acordarmos qual seria o prato que escolheríamos. Poderíamos muito bem pedir porções individuais do que queríamos, porém soava mais divertidos tentar entrar em um consenso.
No fim, acabamos concordando em pegar uma lasanha.
Enquanto esperávamos nosso pedido, aproveitei para responder as mensagens do meu irmão mais novo, que não paravam de fazer a tela do meu celular acender.
― Ansioso para a viagem?
― Muito. Não os vejo em um encontro que não seja televisionado há pelo menos uns dois meses. ― Ao terminar de responder a olhei.
Ela está fazendo aquilo de novo.
Com os olhos opacos e meio perdidos em um ponto específico para se fixarem, os pensamentos de provavelmente vagavam em um tempo e espaço diferente de onde estávamos fisicamente. No começo, quando a vi se desligar assim pela primeira vez, achei que era um mecanismo para se distrair do que não achava que valia a pena prestar atenção. Todavia, conforme a passagem dos dias, notei que aquele comportamento era recorrente e acontecia nos momentos mais aleatórios possíveis.
― Você foi bem longe agora, né? ― Posicionei o celular na mesa, ao meu lado.
― Quê? ― Deu uma leve balançada na cabeça, como se forçasse uma recobrada de consciência.
― Tava pensando no quê? ― Apoiei os cotovelos sobre a mesa, falando mais baixo.
― Lembrei da minha família. Faz alguns meses que eu não os vejo também.
― A vida de jornalista é tão solitária quanto a de músico?
― Pode apostar que sim. ― Parece que temos mais incomum do que imaginamos, hein?
― Acho que essa é deixa perfeita para eu pedir seu telefone com a desculpa que podemos ser menos solitários se mantivermos contato. ― Um garçom com nossos pedidos se aproximou da mesa, pedindo licença para posicionar os pratos à nossa frente. nada disse, apenas observou o homem fazer seu trabalho e, então, se afastar.
― Sei que você pode fazer melhor que isso ― desafiou.
― Isso é um ‘não’?
― É um ‘talvez’. ― Sorriu de um jeito que parecia me convidar para uma gincana onde o prêmio final era seu contato.
E, óbvio, esse era o tipo de jogo no qual eu estava interessado em participar.
Em poucos dias, havia se tornado a minha pessoa preferida para fazer refeições junto. Não gostava muito de conversar enquanto comia e ela parecia saber disso, logo, não tentava iniciar nem forçar um assunto qualquer para preencher o silêncio. sabia apreciar os breves momentos de quietude tanto quanto eu.
Ao final do almoço, insisti para me deixar ajudá-la com as malas pelo menos até a estação. Depois de uma sequência absurda de “não precisa”, com um suspiro derrotado, soltou um “tá bem, vamos”. Se não estivéssemos cara a cara, provavelmente, eu teria comemorado.
Após se despedir de todos, saímos rumo à estação de trem. Sem muita hora para voltar, fiquei lhe fazendo companhia até a saída da linha que estava esperando. Nesse meio tempo, conversamos sobre como aquele era o tipo de transporte coletivo barato e extremamente útil.
Vendo a sua hora chegando em formato de trem, entreguei a mala que estava comigo. Por sua vez, a mulher tirou um pedacinho rasgado de papel do bolso e me deu.
― O que é isso? ― questionei antes de desdobrar o papel.
― Meu número pessoal… caso você esteja se sentindo solitário. ― Deu um sorriso ligeiramente tímido.
A passos largos entrou no vagão. E eu, mais que depressa, digitei seu número no celular e salvei como um novo contato. Para testar se não estava me tirando, mandei a seguinte mensagem:

“Me manda aí um oi só pra eu checar se você deu seu número de verdade”

Quase um minuto depois, sua resposta chegou.

“Bobo”

Rindo, respondi:

“Ok, já sei que é você mesmo”.

Assim que o trem partiu, voltei para o hotel, realmente bobo pela conquista.
― Matty? Por onde andou? Estávamos te procurando. ― A voz de Jamie soava relativamente ofegante enquanto andava meio rápido em minha direção.
Parado no meio do corredor, esperei que me alcançasse para que não tivesse que falar alto demais para respondê-lo.
― Acompanhei até a estação de trem. Suas malas eram meio grandes e pesadas demais para carregar sozinha.
Lançando-me um olhar desconfiado, Oborne permaneceu calado por longos segundos, parecendo morder a parte interna da bochecha, como se calculasse o quanto de verdade havia em minhas palavras.
― E foi tudo bem?
― A ida até lá? Sim, ela embarcou no horário certo e já havia combinado de pegar carona com a amiga. ― Assentiu vagarosamente.
― E quanto a estada dela aqui? A entrevista… sei que ficou incomodado no começo.
― Acho que precisávamos nos conhecer. Deu tudo certo, afinal. ― Esbocei um pequeno sorriso, que contive a todo custo para não demonstrar que estava relembrando alguns momentos ao lado da repórter.
― Matty, me permita te dizer uma coisa. Espero que ainda se lembre do que lhe disse no aniversário de Brian. Você pode até achar que ela é sua amiga ou que estava interessada em você, mas é jornalista. Estava interessada nas informações que você poderia conceder, pois estava aqui a trabalho. Não sei o que aconteceu ou se aconteceu algo entre vocês enquanto essa garota estava aqui, mas é bom que você não leve adiante. Ótimo que vocês começaram a se dar bem e que pôde confirmar algumas histórias a ela, mas existem limites que não devem ser cruzados e este certamente é um deles.
Não conseguindo evitar, um sorriso debochado se formou nos cantos dos meus lábios. Naquele momento, Jamie parecia ter muito mais fé de que conseguiria levar algo além com do eu mesmo, sendo que o maior interessado nisso era… eu.
― Pra começo de conversa, não aconteceu nada entre nós. Se te tranquiliza, é extremamente profissional e, às vezes, até burocrática em seus métodos. Não há com o que se preocupar.
― Sabe que eu não me preocupo com as intenções dela em relação a você e sim o inverso, não é? ― Disfarçando um sorriso zombeteiro, dei um tapinha sobre o ombro de Jamie e fui para meu quarto antes que continuasse com aquele discurso ridículo.

- x x x -


Como planejado, tão logo tivéssemos encerrado nossos compromissos e entregado as chaves de nossos quartos, joguei minhas malas dentro do carro e parti para uma semana na casa da minha família, em Manchester.
Ao mesmo tempo em que estava ansioso para rever minha mãe e meu irmão, vez ou outra, cruzava a minha mente. Fosse uma música que saía pelos alto-falantes, algo que vi na rua ou uma breve memória aleatória que pipocava na minha cabeça, parecia que meu cérebro estava tentando me pregar peças para que aquele fosse o único tópico recorrente enquanto não a visse de novo.
Quando encontrei minha família, nos primeiros minutos, consegui me manter focado só neles e no momento presente. Todavia, era só ocorrer um mísero silêncio entre nós que voltava a pensar em sua risada contagiante, nos olhos afetuosos, nas mãos macias de unhas bem feitas e nas feições concentradas de . Nada parecia capaz de desligá-la da minha cabeça por mais de 20 minutos. Não é possível que eu vou ter que beijar essa mulher pra esquecê-la!
Em alguns instantes, ao perceber que estava em outra dimensão durante nosso jantar, minha mãe questionou o que havia de errado, se havia algo errado. E, certamente, os não poucos pensamentos eróticos que tive com só nos últimos três dias não eram nem de longe algo para se verbalizar durante uma refeição com sua mãe, seu padrasto e irmão adolescente. Logo, a opção que me restava era mentir, dizer que estava esgotado, com sono, morto, cansado, qualquer coisa. Tudo que não envolvesse admitir em voz alta que estava atraído pela jornalista.
Na segunda-feira de manhã, cedi ao pedido de Louis para que lhe desse carona para a escola. Era algo que costumávamos fazer quando eu ainda estudava e continuava a fazê-lo sempre que voltava para casa.
Mal tendo tempo para me arrumar, que dirá para tomar café da manhã, peguei as chaves do carro e partimos.
― Você tá estranho demais dessa vez e eu sei que você não falou nada por causa da mãe. ― Desviei os olhos da estrada para ele rapidamente.
― Como assim?
― Sei lá. Não presta atenção em quase nada, sorrindo pelos cantos sozinho e sem motivo. É mulher? ― Franziu a testa. ― Quem é ela? É bonita?
― Primeiro de tudo: eu não disse que é mulher. Segundo: ela não precisa ser bonita. As pessoas têm outras qualidades, sabia?
― Sabia que era mulher. ― Estalou os dedos empolgado, como se desvendasse um mistério.
― Mas eu não confirmei que era!
― Não precisa. A sua justificativa já mostra que é. Me conta tudo agora.
― Você não vai entender.
― Tenta. Até porque eu não preciso entender, só quero saber o que tá rolando. ― Suspirei.
― Ok. É uma mulher. Nós nos conhecemos em uma situação profissional. Ela é… ― Demorei a completar a frase até achar algo que não fosse explícito nem simplório demais para definir . ― interessante.
― E vocês ficaram?
― Não.
― Por isso que você tá pensativo assim?
― Sim. Não… quer dizer, mais ou menos.
― Quê?
― Como eu disse, nós nos conhecemos em uma situação não tão favorável, então, não sabia como tentar uma aproximação que não fosse estranha.
― Tente ser amigo dela primeiro. Pra sentir o terreno, pelo menos. Porque, a não ser que seja alguém que você conheceu agora em uma festa, você primeiro precisa conhecer a pessoa, certo? ― Umedeci os lábios, franzindo as sobrancelhas.
― De onde você tirou isso?
― Sei lá. É o que eu faço. ― Deu de ombros.
― Alguém já teve a conversa com você? ― indaguei, enfatizando "a conversa", passando a encará-lo quando parei em um semáforo fechado.
― Tarde demais, garotão. Tô um pouco velho pra isso, não acha?
― Nunca é tarde demais pra eu dizer use camisinha e só transe com quem quer transar com você, ok?
― Você usa camisinha sempre? ― Fiquei sem saber o que responder, pois não queria mentir, mas também não podia dizer a verdade. ― Foi o que eu imaginei. Faça o que eu digo e não o que eu faço.
― Estou querendo apenas que você não se arrependa das merdas que podem acontecer.
― Que eu me lembre, a conversa não era sobre mim e sim sobre você ― rebateu. ― O sinal abriu ― ironizou, dando um sorrisinho.
Não dá nem pra dizer que esse filho da puta não é meu irmão.
― Você não vai me mostrar quem é? ― continuou.
― Você não vai parar de perguntar enquanto eu não mostrar, né?
― Pelo menos, duas vezes ao dia eu vou perguntar.
Calado, conferi seu rosto rapidamente antes de voltar a ficar atento à estrada à nossa frente. Faltava pouco para chegarmos à sua escola e, para ser sincero, usaria aquele tempo para pensar se deveria ou não mostrar uma foto de para o garoto.
Estacionando em frente à edificação antiga, mas que ainda possuía lá o seu glamour, esperei que Louis descesse do meu carro e esquecesse aquela história.
― Você não vai mesmo me mostrar?
― Você não vai me deixar em paz, né?
― Conte com isso ― brincou, estampando um sorriso maroto nos lábios.
― Ok. Só uma. ― Peguei meu celular na porta do carro, abrindo o instagram e procurando por sua conta.
Apesar da conta privada, não era nem um pouco low profile, o que era ótimo, já que poderia perder tempo útil suficiente do meu dia lhe admirando. Tinha olhado seu perfil tantas vezes que já tinha até minhas publicações preferidas e uma delas, sem sombra de dúvidas, era uma feita e publicada três dias antes, horas antes do aniversário de Brian. Com a mão apoiada na parede ao lado do espelho, na altura de sua cabeça, a mulher esticou para fora da fenda de tecidos esvoaçantes do vestido uma das pernas, o rosto sério capturando toda aquela essência de quem fazia seu acompanhante da noite implorar por mais um tapa. Se eu fosse o acompanhante, eu pediria por mais uns dois pelo menos.
Estendendo o aparelho para meu irmão, vi suas sobrancelhas se arquearem e voltarem ao ponto inicial. Seu olhar alternou entre mim e o celular algumas vezes, por fim, dando sua opinião:
― Se você conseguir pegar essa, eu te dou dez paus. ― Fiz uma careta.
― Onde você aprendeu que é ok fazer esse tipo de aposta?
― A questão não é essa e sim de onde você tirou que uma mulher como ela daria moral pra um cara como você?
― É o quê?
― Convenhamos, maninho, a beleza não é muito o seu forte.
― E não vai ser o seu quando tiver minha idade, pois temos a mesma cara ― debochei.
― É, mas eu invisto em gente do meu nível.
― Mas que porra isso significa?
― Significa que, se você tem autoestima pra chegar nessa mulher, você provavelmente tem algo que mais ninguém tem. ― Riu.
― Como eu disse pra você antes, nem tudo é sobre beleza.
― Juro, por essa eu pago pra ver.
― Você não tem horário pra ir pra aula, não?
― É, eu tenho, mas não é todo dia que eu posso te julgar pessoalmente por ter ideações irrealistas. ― Arrumou a mochila sobre o ombro e saiu do carro.
Depois de vê-lo bater a porta, chamei-o novamente.
― Quê? ― Inclinou o corpo comprido para encaixar o rosto na janela.
― Hipoteticamente, se eu fosse tentar fazer o que falou, uma aproximação mais amigável… como eu deveria fazer isso sem… você sabe, parecer…
― Que você quer comer ela?
― Cuidado com a boca ― alertei, apontando com o indicador, fazendo-o rir.
― Não a chame pra comer, porque aí teria que chamar outras pessoas. Ela gosta da banda? ― Assenti. ― É isso. Chame-a com um amigo para o show, dê entrada para o backstage.
― Eu ainda quero saber onde você aprendeu isso, mas é uma ótima ideia.
― Você é doido? Eu aprendi vendo você. ― Fez uma careta de estranhamento. ― Preciso ir. Não estrague tudo. Quero conhecê-la pessoalmente, ok? ― Saiu apontando para mim.
Rindo daquilo, mal sabia eu que ainda demoraria dias até ter coragem de entrar em contato com de novo.
De início, não sabia se deveria fazê-lo. Depois, não tinha certeza se não deveria ouvir o que Louis me dissera a respeito de ela ser areia demais para meu humilde micro-ônibus. Por fim, quando criei coragem, não sabia se deveria mandar uma DM, uma mensagem direto em seu celular, uma chamada de voz ou vídeo.
A verdade era que meu mais profundo desejo era encontrá-la pessoalmente e lhe entregar a credencial em mãos. Mas isso seria esquisito demais até para os meus padrões. Ainda assim, queria vê-la, ouvir sua voz.
Uma chamada de vídeo talvez fosse demais para quem só queria estabelecer uma amizade; uma chamada de voz soava mais impessoal, embora eu ainda não tivesse um álibi para lhe telefonar.
Por algum motivo, tive uma vontade tremenda de entrar no site do Repeat Daily, como se aquela fosse uma vizinhança onde só se precisava sair na rua para descobrir coisas sobre as pessoas que moravam nas casas ao lado e à frente. Sim, eu estava completamente a fim de descobrir o que andava fazendo.
Já na página inicial, em destaque, havia uma das fotos que havia autorizado que fizesse durante sua estadia comigo sob o título de “Nada revelado, tudo negado”. Ela realmente estava prestando atenção.
Sorrindo, cliquei sobre a imagem iniciando a leitura que se estendeu pelos quase dez minutos seguintes.
Assim como em todo o seu ser, havia muita delicadeza em suas palavras. Podia quase me sentir abraçado por cada vírgula daquele texto. não havia escrito nada que não havia visto ou ouvido. Não tentou atenuar nenhum dos meus defeitos, entretanto, pareceu ser a única pessoa capaz de ver um resto de humanidade que, às vezes, nem eu era capaz de reconhecer em mim mesmo.
Esses são seus olhos, então?
Ao terminar de ler, rolei a página para o início e recomecei a ler. Lá pelas tantas, conferi as horas e lhe enviei uma mensagem:

“Você tá acordada?”

Segundos após, recebi um “quem é?”, o que serviu de munição para que lhe telefonasse à 1h12 da madrugada.
― Eu não acredito que você não salvou meu número, . ― Assim que o telefone parou de chamar indicando que havia sido atendido, quase ri de felicidade.
― Só porque uma pessoa está acordada não significa que você possa ligar pra ela, Healy ― respondeu naquele tom sério que usava para soar rude.
― Desculpe, mas eu não queria escrever pra você. Acho que é melhor quando podemos ouvir a voz da outra pessoa sempre que possível. E não conseguiria aguentar até amanhã pra falar com você. ― E, se não fosse soar estranho demais, teria metido logo uma chamada de vídeo!
― Então diga. O que é tão urgente que não pode esperar?
― Te liguei para dizer que eu adorei a sua matéria ― soltei de uma vez e esperei por uma resposta, que não veio. Então, prossegui: ― A melhor parte dela com certeza foi que você deu material para quem me odeia continuar me odiando e quem me ama continuar me amando. Acho isso essencial na manutenção do meu reinado. ― Ri.
― Se vocês gostou tanto assim, qual a sua parte preferida? ― Por que eu tinha certeza que faria isso? Colocando-a em viva-voz, troquei a página da ligação por uma aba de internet, onde a reportagem estava aberta.
― ‘Mesmo com as bolsas da noite não-dormida embaixo dos olhos, Healy tem energia de sobra para conversar comigo, para fazer os amigos rirem e para comprar briga em uma reunião de planejamento. Aliás, um dos poucos momentos do dia em que é possível presenciá-lo em total e completo silêncio é enquanto faz suas refeições, quase sempre isolado dos outros, observando a tudo e a todos ao seu redor com olhares inquietos e pensativos’ ― li. ― Como Sullivan pode ter cogitado não te deixar escrever mais? ― Ri.
― Ele não está errado sobre o que diz e o que faz. Nossa profissão é muito delicada, não pode ser exercida por um amador qualquer. Uma vírgula fora do lugar e você pode destruir a vida de alguém ― defendeu.
― Enquanto eu lia, me lembrei de cada momento que você descreve e quase consegui me ver de fora, como se eu fosse apenas um observador. ― Sorri.
― Essa era a intenção. Se você conseguiu, significa que eu consegui ― respondeu e visualizei seu rosto contente.
― Tem mais uma coisa que eu queria dizer. Vamos nos apresentar em Londres na sexta ― introduzi o assunto. ―, queria saber se você quer ir. ― E atirei de uma vez só.
― Você quer que eu vá como jornalista ou como… ― deixou a sugestão no ar.
― Como minha amiga ― interrompi qualquer chance de retomada de fala em um tom ofendido. ― A não ser que você não me considere seu amigo.
― Não é isso. ― Riu. ― É que nosso contato foi bem profissional, então pensei que…
― Pensou errado ― interrompi-a outra vez antes que dissesse alguma besteira. ― Aceita?
― Eu posso levar uma pessoa? É a minha amiga, . Ela adoraria conhecer vocês. ― Perfeito!
― Claro. Vou incluir o nome dela nas credenciais.
― Obrigada. ― O silêncio de um segundo me fez temer, porém ouvi sua voz de novo: ― Você está visitando sua mãe?
― Ah, sim, mas agora ela e meu irmão já estão dormindo.
― Como estão as coisas? ― Ótimas, pois estou com eles; péssimas porque não estou te vendo.
― Exatamente como da última vez em que vim. Eles estão bem e estou feliz que pudemos nos ver de novo antes de eu passar uns meses longe.
― Fico contente por você. ― O inevitável silêncio se materializou outra vez.
Apesar de tê-la ouvido, ainda não parecia suficente, mas não iria forçar uma situação que não cabia no momento. Ainda…
― Vou te deixar dormir porque sei que amanhã você acorda cedo de novo. Te vejo na sexta?
― Pode apostar que sim.
― Ótimo. Boa noite, . ― Sorri.
― Boa noite, Healy. ― Desligou.

- x x x -


― Suas credenciais já estão prontas e já deixei os seguranças avisados. Mas sabe o que eu notei? ― Oborne ajeitou os óculos no rosto, por fim, descansando a mão no queixo com um ar interessado. ― Achei, no mínimo… curioso o nome da sua convidada. . É apenas uma coincidência?
― Não. É a própria. Exatamente quem você está pensando. ― Continuei a mexer no celular, fazendo pouco caso.
― Qual o ponto disso tudo?
― Disso o quê? ― Encarei-o.
― Matty. ― Tirou os óculos, passando as mãos nos olhos e suspirando. Sentou-se ao meu lado no sofá.
― Jamie, é uma amiga, independente do que você pense a respeito. Além do mais, não foi você quem disse que deveríamos fazer o possível para manter o máximo de portas abertas?
― As portas, não as pernas de ninguém ― rebateu com escárnio. Se aquilo fosse um filme de faroeste, Oborne provavelmente cuspiria no chão naquele momento.
― Não preciso que ninguém abra as pernas pra que meu nome estampe matérias ou que meus shows lotem ― em um tom desafiador, sustentei seu olhar pelo máximo de tempo que consegui.
Jamie deu um novo suspiro e pôs-se de pé.
― Assim espero, garoto. ― E saiu do camarim.
Como se fosse a porra de uma prova olímpica de revezamento, George sentou-se no exato local onde Jamie estava segundos antes.
― Ele estava te enchendo de novo?
― Acha que tem algo de errado em ter chamado para o show?
― Jamie acha que existem segundas intenções? ― Assenti. ― E tem?
― É claro que não.
― Então, não há com o que se preocupar. Logo ele vai perceber isso também.
― Você tem falado com ela?
― Não. Tem um tempo já. Ela reagiu a algo que postei no instagram e trocamos umas palavras, nada demais. Por quê? ― Dei de ombros.
― Sei lá. Vocês pareciam próximos. Muito mais do que eu e ela. Sempre conversando pelos cantos, cheios de risadinhas.
― Ela é uma pessoa legal. Vocês se deram bem, né?
― É, mas, ainda assim, ela parecia mais próxima de você. Você tem o número dela?
― Não. Você tem?
― É. ― Um pouco surpreso com sua resposta, tive que me segurar para não dar um sorriso vitorioso. ― Nós trocamos telefones porque era mais fácil de combinar horários e tudo o mais ― menti. Daniel concordou com a cabeça lentamente.
À nossa frente, a porta do camarim se abriu outra vez. Jamie anunciou fingindo estar contente:
― As convidadas de vocês chegaram. ― Escancarou a porta, deixando as duas mulheres passarem por ela.
E, então, eu a vi.
Era como ver a mais linda das miragens em meio ao deserto.
A figura de era sempre um deleite aos meus olhos.


#5

Você chega, eu me desfaço
(Black Butterflies and Déjà Vu - The Maine)



parecia muito mais solta naquele dia que em qualquer outro. Talvez fosse a companhia da amiga ou o fato de estar em um momento de folga, sem preocupações, ou, ainda, um conjunto de muitas variáveis. Não importava o que fosse, ela ficava ótima naquela aparência descontraída.
Mesmo dando atenção a tudo que acontecia ao meu redor, inclusive, saudar nossa maior fã, , sua amiga, era inevitável que a boa parte da minha concentração não se voltasse a ela. O sorriso, a forma como arrumou os cabelos atrás da orelha, o chacoalhar de ombros ao rir ou o jeito que seus olhos se prenderam a mim quando todos foram para passagem de som, nos deixando à sós no camarim.
― Você vai passar som depois?
― Já passei. Sempre passo antes deles. ― Caminhei até os cabides com minhas roupas, escolhendo o figurino da noite. ― Fique à vontade. Se estiver com fome, a comida tá ali. ― Apontei para a mesa lotada de comes e bebes do outro lado do cômodo. ― Eu preciso tomar um banho. ― Concordando com um aceno de cabeça, sentou-se em uma das poltronas.
― Eu vou descansar. ― Estapeou os braços do estofado de leve e eu ri. era uma daquelas almas idosas que se cansava até de respirar.
Adentrando no banheiro, tranquei a porta, tirei as roupas, entrei no espaço reservado para banhos, fechando a cortina plástica ao meu lado. Abri o registro, deixando a água quente cair sobre meu corpo, automaticamente relaxando meus músculos. Normalmente, o banho não aconteceria antes de um show, entretanto, tinha realmente aparecido para nos ver e eu já tinha suado mais do que a minha cota diária permitida antes de precisar encarar o chuveiro.
Depois de molhar o cabelo e enxaguar todo o sabonete que havia passado no corpo, fechei o chuveiro e me sequei. Vestindo-me, não afivelei meu cinto nem fechei a camisa por inteiro, dei uma última secada de leve nas madeixas antes de sair do banheiro.
estava distraída, como usual, de costas para a porta, próxima a mesa de comida. Sabendo que não importava se fizesse barulho ou não a mulher provavelmente seguiria em sua órbita particular de pensamentos, caminhei até a mesa a fim de pegar uma fruta ou o que quer que fosse antes de ir fumar um cigarro.
Bem perto de suas costas, sentia um cheiro de lavanda que emanava dela. Não sabia dizer se era de seus cabelos ou de seu corpo, o que me fez querer me aproximar um pouco mais a fim de descobrir.
Usando o maço de cigarros que estavam sobre a mesa a sua frente como desculpa caso ela se virasse, dei mais um passo em sua direção para aspirar aquele aroma floral tão agradável e reconfortante.
Alarmada, os ombros de se mexeram ligeiramente, virando-se para mim.
― Porra! ― Um fio de voz esganiçado e ofegante saiu de sua garganta.
Apavorada com o estrago que tinha feito em sua blusa devido ao café que ela havia derramado em si mesma, ofereci-lhe minha toalha úmida, pois, muito em breve, ela começaria sentir a quentura em seus seios e colo.
― Meu Deus, você precisa parar de fazer isso! ― Tomando a toalha da minha mão, colocou-a sobre a grande poça que havia se formado no tecido.
― Sinto muito, , eu não… ― Levemente desesperado, peguei alguns guardanapos e passei a limpar os respingos em seu pescoço enquanto me desculpava incessantemente: ― Desculpa mesmo. Eu só queria pegar meus cigarros.
― Podia começar a fazer barulho quando abre portas ou se aproxima. O que acha? Eu acho uma ótima ideia ― rebateu afiada.
Inclinando-me ligeiramente em sua direção, com as sobrancelhas franzidas, se afastou de mim.
― Fica tranquila, . ― Balancei o maço de guardanapos no ar a fim de provar meu ponto a ela. ― Só quero ajudar a consertar a cagada que eu fiz. ― Ofereci-os.
Notando seus olhos rapidamente descendo pelo meu peito e, ao que aparentava, para as minhas calças, conferi se havia algo de errado comigo e acabei apenas tendo certeza de que alguma outra coisa tinha prendido sua atenção. Segurei um sorrisinho safado, me questionando o que estava se passando em sua cabeça.
― Você precisa trocar de blusa ― disse, interrompendo quaisquer que fossem os seus pensamentos. Fazendo-a me olhar com os olhos brevemente arregalados.
― Quê? Aqui?! Eu não tenho…
― Não se preocupe. Eu tenho um monte de camisas aqui, posso te emprestar uma. ― Indo até a arara, peguei uma camisa preta e a entreguei: ― Toma. Se quiser tomar banho, você pode.
― Acho que não precisa. Só vou… ― Apontou para o banheiro, soando um pouco sem jeito.
― Como quiser. ― Assentiu. ― Preciso fumar um cigarro. Volto em alguns minutos. Tranque a porta do banheiro se não quiser que alguém veja… você sabe, enquanto você se troca ― brinquei, gesticulando em frente ao meu peito para falar dos seus.
Assim que a ouvi girar a chave na maçaneta, peguei a caixa de cigarros de cima da mesa e encaminhei-me para fora. Já estava quase na hora de começarmos o show, então essa seria minha última oportunidade de fumar em paz, escondido atrás do palco.
O sorriso que se fixou em meu rosto não se desfazia por nada. Nem mesmo quando, ao abrir o maço de cigarros, percebi que não havia levado o isqueiro e teria que voltar ao camarim somente para buscá-lo.
― Já voltou? ― Foi a primeira coisa que ouvi ao abrir a porta outra vez.
― Esqueci meu isqueiro. Aliás, fica muito melhor em você do que em mim. ― Provavelmente, ficaria muito melhor sem, mas já é pedir um pouco demais. ― Sendo assim, acho melhor você nem me devolver.
não era do tipo que ficava vermelha de vergonha ou que se encolhia ao mínimo sinal de elogios à sua aparência. Na verdade, a mulher geralmente escolhia o silêncio, como se aquela fosse sua única opção disponível.
Dirigindo-me para a mesa de comidas, onde deveria estar meu isqueiro, a vi pronta para pegar uma maçã. Ansiando por um pouquinho a mais de contato, mesmo que supostamente por engano, um esbarrão que fosse, fingi que iria pegar a mesma fruta que ela, fazendo nossos dedos se tocarem rapidamente.
― Pode pegar. ― Encolheu o braço como uma lagarta faz com o próprio corpo enquanto anda.
― Não, pega pra você. Quem não conseguiu tomar o café inteiro foi você, lembra? ― Deu um meio sorriso, porém escolheu preparar um novo copo de café para si. ― Sinto muito mesmo, tá? Não queria que… ― comecei a me desculpar outra vez, sendo interrompido por ela.
― Tá tudo bem, Healy. ― Agora, seu sorriso parecia um pouco mais descontraído, mostrando seus dentes. ― Foi um acidente e eu estou bem. ― Deu um gole pequeno no café.
Encostados na beira da mesa, nossos quadris estavam quase tocando um no outro. Dali, conseguia sentir seu calor e também aquele cheiro de flores que me fizera assustá-la mais cedo. Tive a impressão de ver suas bochechas ruborizarem de maneira muito discreta.
Queria que me olhasse, todavia, parecia tão perdida em seus pensamentos que nem mesmo notava que eu a fitava.
― Que foi? ― Parecendo culpada de algo, evitou estabelecer contato visual comigo.
― Acho muito engraçado quando você viaja assim. Quando você volta, é sempre como se tivesse pensado algo que não deveria. ― Ri. ― Tava pensando em putaria, né? ― zombei, porém queria que ali houvesse um fundo de verdade.
― Quê? ― Franziu as sobrancelhas, confusa. ― Não! Tá ficando maluco? ― Deu uma risadinha nervosa que dizia muito mais do que as palavras que saíam de sua boca.
― Pois parece que tava. ― Não consegui segurar uma risada. Desencostei-me da mesa ― E tá tudo bem se estiver, ok? ― conclui para que ela soubesse que não me importava se fantasiasse sobre nós, pois andava fazendo o mesmo dentro da minha cabeça. Inclinei-me para frente a fim de que nossos olhos ficassem na mesma altura e que meu rosto ficasse perto do seu.
― Não seja infantil. Tava aqui me perguntando se desliguei o ferro da tomada. ― Semicerrei os olhos, captando a mentira no ar.
― Ah, claro, porque qualquer pessoa normal fica vidrada assim só pela possibilidade de não ter desligado algo da tomada ― debochei.
― Bom, se você não é milionário e o apartamento em que mora não é seu, é um motivo de preocupação constante. ― Senti um leve tom de irritação em sua voz.
― Ok, . ― Aproximei ainda mais meu rosto do seu.
Só havia um pensamento sendo produzido e reproduzido pela minha mente a todo instante: o de beijá-la. Diferente da vontade que senti e reprimi no aniversário de Brian, desta vez, a única coisa que me impediria seria se recusasse, afinal, tudo ali era propício para que acontecesse. Estávamos perto o suficiente um do outro para que eu sentisse sua respiração em meu rosto, estávamos à sós e, provavelmente, ninguém entraria ali tão cedo.
Seus olhos carregavam um brilho convidativo e desafiador, como se me provocasse a tentar algo. Já meus olhos, antes que me desse conta, correram para seus lábios e ali permaneceram, assistindo-os se comprimir e voltarem ao normal milésimos de segundos depois.
não se afastou de mim tampouco tentou me impedir de me aproximar ainda mais dela. Entendendo aquilo como um “sim”, segui em frente até sentir seus lábios nos meus. Sua boca era quente e a real sensação não se parecia em nada com o que eu havia imaginado. Era infinitamente melhor.
Envolvendo meu pescoço em meio aos seus braços, pus as mãos em sua cintura a fim de colar nossos corpos. Como já esperava, estava ficando com muito calor. Muito, muito, muito calor.
Os dedos de uma de suas mãos roçaram levemente no meu couro cabeludo, logo, precisei fazer uma força descomunal para não suspirar em meio ao beijo. Sem a menor vontade de me afastar dela, tirei uma das mãos de sua cintura, pondo-a em sua nuca, pressionando ainda mais seu corpo contra o meu. Ao passar a língua de raspão pelo céu de sua boca, senti a pele de sua nuca se arrepiar sob meu toque.
Com um pouco de dormência nos lábios, desvencilhei-me de vagarosamente, relutante em fazê-lo. Segurando sua cabeça entre minhas mãos, olhei-a nos olhos e sorri silenciosamente tal qual um garoto de 14 anos que acaba de beijar alguém pela primeira vez.
Da sua parte, não houveram sorrisos nem falas. Apenas tirou os braços do meu pescoço e parecia tentar fingir que nada daquilo estava acontecendo. Achando aquela situação cômica, dei uma risadinha baixa.
― Você vem? ― Franziu as sobrancelhas, como se houvesse um delay em sua cabeça que a impedia de entender o que eu dizia. ― O show ainda vai rolar. ― Ri.
― Ah, tá. Já está na hora? ― questionou perdida.
― Quase. ― Deixando a porta do camarim aberta para que passasse, me seguiu por todo o caminho. ― Mas você pode procurar um bom lugar pra ficar com sua amiga. ― Dei as instruções para ela, antes de termos que nos separar para que eu me arrumasse.
Não me lembrava quando havia sido a última vez que tinha ficado tão feliz fazendo um show.

- x x x -


O pós-show pode ser muito bem definido com calada e agindo estranho, ninguém além de mim parecendo perceber e eu repassando pela centésima vez na minha cabeça nossos corpos colados, o beijo, o calor.
Todos ao nosso redor pareciam estar compartilhando de uma alegria coletiva na qual não estávamos sintonizados, muito provavelmente, por estarmos isolados em nossos próprios mundos pessoais, com nossas próprias preocupações que não envolviam nem o jantar em que fomos nem a festa para a qual fomos convidados.
Quando se mostrou empolgada em ir para a casa de nosso saxofonista junto com o resto da banda, confirmou minhas suspeitas de que algo estava se passando.
― Você pode ir, se quiser. Eu realmente tô esgotada. ― Ouvi dizer a amiga enquanto passava as mãos pelo rosto.
― Mas você vai voltar pra casa sozinha? Nada disso! ― quase protestou. ― Se você vai pra casa, eu também vou.
― Mas você quer ir na festa. Não estrague sua noite pela idosa aqui. Eu vou ficar bem ― rebateu.
― Bem, eu não planejo ir pra festa nenhuma. Se o problema é ela não ter companhia para casa, eu posso levá-la ― me intrometi, dando de ombros, como se não fosse nada demais.
Sem notarem, ambas me lançaram o mesmo olhar acompanhado de pares de sobrancelhas franzidas.
― Que foi? Eu concordo com a . Você não deve voltar pra casa sozinha, tá muito tarde ― argumentei.
― Ele tá certo. ― concordou.
― Ótimo. Um complô ― ironizou, parecendo ficar irritada. ― Se esse é o preço que eu pago para conseguir ter um encontro com a minha cama antes das 04h da madrugada, eu aceito. ― a abraçou em despedida, cochichando algo em seu ouvido. concordou com um aceno de cabeça discreto.
Despedi-me de meus amigos e de , tomando a direção contrária à do grupo junto de . Calados, apenas caminhamos lado a lado evitando até mesmo olhar um para o outro. Não era algo que havia citado explicitamente em nossas conversas, mas sabia o quanto, em determinados momentos, apreciava o silêncio, por isso, respeitei seu espaço a fim de manter a boa vizinhança.
Ao entrarmos no trem, a mulher fez o que já estava virando um ritual: plugou o fone de ouvido no celular, entregando-me um dos lados, dando play em Dendron, do The Hotelier.
Ao chegarmos à estação, descemos do vagão e voltamos a andar lado a lado quietos pelas ruas da cidade, o que não durou muito.
― Você tá bem? ― Pus as mãos nos bolsos frontais da minha calça.
― Eu ouvi essa bastante hoje. ― Deu um sorriso sem humor.
― É que você tá quieta, então… ― soltei, porém não conclui a frase.
― Às vezes, minha cabeça me leva pra lugares que eu não queria ir.
― E por acaso isso tem algo a ver com o que aconteceu mais cedo? ― insinuei.
― Não quero que me entenda mal, mas eu não acho que deveríamos… o que eu quero dizer é que talvez ninguém deva saber sobre isso. ― Sorri, finalmente entendendo o que era o elefante branco em nossa sala de estar.
― Não se preocupe, , seus segredos estão a salvo comigo ― brinquei. ― Fora isso, tá tudo bem mesmo? Sua cabeça não foi pra nenhum lugar ruim, né?
Paramos em frente à uma escadaria que levava a portaria de um prédio não tão alto. O local tinha a cara dela: pintura amarela, bordas das paredes ornadas por tijolos à vista. Na maioria das sacadas individuais, plantas das mais variadas espécies.
― Chegamos. E, não, minha cabeça não foi pra nenhum limbo maligno. ― Rimos.
estendeu a mão e meus olhos saíram de seu rosto apenas para conferir o gesto. Ri baixinho e a segurei.
― Obrigada por ter me acompanhado.
Usei a mão que a segurava para lhe puxar para mais perto, desestabilizando-a de um jeito engraçado. Envolvi sua cintura com meu braço livre.
― Você sabia que, se vamos fingir que um beijo não existiu, podemos fingir que dois não existiram, né? ― Arqueou as sobrancelhas, surpreendida. ― A não ser que você que não queira que um segundo exista… ― deixei no ar.
Em absoluto silêncio, estava com aquele olhar de quem ponderava sobre algo. Seus olhos intercalaram entre os meus e minha boca algumas vezes, como se decidisse se iria ouvir a razão ou a emoção.
― Foda-se. ― Ouvi-a murmurar baixinho pouco antes de envolver meu pescoço outra vez em seus braços.
Satisfeito, pressionei seu corpo contra o meu o máximo que consegui em um novo beijo, ainda melhor que o primeiro.
Aquele, sim, era o tipo de estímulo que eu necessitava para produzir serotonina pelo resto da semana.

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Ao abrir os olhos de manhã, os primeiros três segundos foram somente de vazio. O que veio depois foi a mais pura alegria. Caralho, eu amo a minha vida!
Em sensações muito vívidas, sentia passando os braços ao redor do meu pescoço, a ouvia decidir que queria me beijar de novo, sentia os arrepios espalhados da minha cabeça aos pés, sua boca quente cobrindo a minha, o formigamento depois de longos segundos de atividade muscular e como relutava em me separar dela.
Superando qualquer expectativa que tivesse criado na minha cabeça com o primeiro beijo no camarim, o segundo tinha sido ainda melhor. Perto daquele momento na rua, o beijo no camarim se parecia mais com um tira gosto, uma amostra grátis minúscula de um produto que, em maiores quantidades, era infinitamente mais valoroso.
Talvez o único problema de um beijo assim na rua seria justamente o fato de ter sido dado em um local tão público, tão às vistas de todos, sem a menor chance para que nos deixássemos levar por algo a mais, o que quer que pudesse se transformar.
Passando a língua pelos lábios e mãos pelos cabelos, ainda sorrindo, levantei da cama e fui para o banheiro, lavar o rosto e escovar os dentes.
Ainda era cedo, nossas malas para viajar já estavam prontas, mas a casa estava no mais pleno silêncio. George ainda não havia levantado ― ou nem tinha voltado para casa ―, porém resolvi fazer meu ritual sagrado de manhãs como aquela.
Acendi um cigarro, coloquei um disco na vitrola e fui moer grãos de café. Quando viraram pó, pus água para ferver para o preparo. Enquanto esperava, coloquei xícaras e seus respectivos pires em cima da mesa.
Nesse meio tempo, Daniel apareceu na porta da cozinha coçando os olhos e bocejando.
― Impressão ou você está de bom humor?
― Pura impressão sua.
― Tem certeza? Depois da passagem de som, ficou a noite inteira estranha e agora você tá só sorrisos. ― Servi café em sua xícara e, em seguida, fiz o mesmo na minha.
Antes de me sentar à sua frente na mesa, deixei o bule sobre o fogão outra vez.
― Você pode enganar Jamie, mas não o seu melhor amigo, lembra? ― Deu um gole em sua bebida. ― Vocês ficaram, né?
Quieto, bebi meu café.
― Ok, não precisa responder. Já entendi. ― Riu. ― Foi bom?
Mordendo o lábio inferior, desviei os olhos para a borda da xícara, contendo um sorriso. Eu queria falar daquelas coisas, até porque George era a pessoa mais próxima de mim e sabia que, não importava o que fosse, poderia contar com ele. Todavia, o combinado era que eu não contaria a ninguém e não seria o tipo de cara que conta.
― Tudo bem. Não me dê detalhes. Eu já entendi também. ― Bebericou seu café e catou um cigarro no maço que deixávamos em cima do móvel. Pondo-o entre os lábios, acendeu, dando uma primeira tragada profunda. ― Fico contente que tenha sido legal, mas um conselho, como seu melhor amigo, não deixe isso que você tá sentindo cegar sua cautela. Se isso chegar nos ouvidos do Jamie sem que você tenha resolvido contar a ele, pode ser que ela acabe se prejudicando.
― Longe de mim que algo aconteça a ela por minha causa. ― Continuei a olhar meus dedos em volta da xícara.
― Foi só uma ficada ou é mais que isso? ― Por mim, seria muito mais, porque é impossível beijar aquela boca uma vez e ficar por isso mesmo.
― No que depender dela, acho que não rola mais.
― Você foi péssimo assim? ― zombou.
― Calado. ― Ri. ― tem todas essas preocupações acerca da própria carreira e não está errada em tê-las.
― E você pretende fazer algo sobre? ― Dei de ombros.
― O que eu poderia fazer?
― Sei lá, quem sabe… sentar e conversar sobre o assunto como adultos fazem?
― Não acho que isso é algo que ela faria.
― Ela ou você?
― Pra começar, como eu a chamaria pra conversar? Não é como se pudesse falar com ela sem motivo nenhum. ― Encolhi os ombros.
― Mas… não é como se você não tivesse motivo nenhum. ― Fez uma careta.
― Só que não é bom o suficiente. E se ela não quiser falar sobre isso? Tipo, a gente ficou e ok, mas não é como se fosse grande coisa, né?
― Ao que parece, pra você, é alguma coisa, sim. ― Sorriu.
― Por que a gente tá falando sobre isso mesmo?
― Porque você parece que está agoniado e enlouquecendo pra dividir o fardo. ― Riu.
― Tá, não quero mais falar sobre. ― Ergueu as mãos em sinal de rendição.
― Antes de mudarmos complemente de assunto, Jamie já avisou que, em algumas semanas, vamos dar entrevista pro RD de novo.
― Ele quer foder comigo, né?
― Bom, ele não disse nada sobre ser com ela. ― Deu de ombros.
Uma luz piscou dentro do meu cérebro, me dando o tipo de ideias que não deveria ter aquela hora da manhã, sobre aquela pessoa em específico.
― George, e se colocássemos como condição para essa entrevista que venha? ― As feições de Daniel seguiram esvaziadas enquanto bebericava seu café. ― Assim, faríamos o que ele quer e eu teria uma desculpa para falar com ela, né?
― Cara, vocês já se beijaram, acha mesmo que precisa de uma desculpa pra falar com ela?
― Não quero correr risco.
― Você quem sabe, então. ― Encolheu os ombros, crispando os lábios.
― Você faria isso por mim?
― Isso o quê?
― Pedir a ele.
― Você, ainda por cima, tá jogando pra mim? ― Apontou para si mesmo.
― Por favor ― implorei. ― A erva do mês é por minha conta.
― Dois meses ― negociou.
― Fechado. ― Apertei sua mão, fechando o acordo.
Mesmo que ele tivesse me dito para pagar pelo carregamento de maconha pelo resto do ano, eu aceitaria, porque, na minha cabeça, o que estava em jogo valia muito mais que isso.
― Obrigado, G.
― Não por isso. O que você não me pede implorando que eu não faço rindo? ― Sorri.

- x x x -


Por ter sido Daniel a pedir por uma jornalista que fosse de confiança, Oborne não parece ter estranhado tanto. Óbvio que isso não o impediu de me lançar olhares desconfiados onde quer que eu fosse, a cada mensagem digitada no celular ou ligação atendida longe dos outros. Na maioria das vezes, eram acontecimentos randômicos, como meu irmão pedindo ingressos para o show, minha mãe inventando uma desculpa qualquer para me ligar, Kirk questionando se tinha algum pedido especial para seu novo carregamento ou alguma outra garota com quem trocava mensagens de vez em quando para não perder o costume.
Ainda assim, no dia do show, minutos antes de irmos até o local onde a estrutura estava sendo montada, Jamie me chamou em um canto para dizer:
― Não sei se você sabe, mas os repórteres responsáveis pela cobertura de hoje são Zack e . Sim, aquela . Então, por favor…
― Se controle? É isso que vai dizer? ― interrompi-o, debochando. ― Eu achei que já tínhamos superado esse conflito.
― Não enquanto você não parecer ter seguido em frente.
― Jamie, você já ouviu aquela frase ‘sem corpo, sem crime’? nunca demonstrou qualquer tipo de interesse em mim e, apesar de realmente achá-la muito bonita, entendo o que limites e profissionalismo significam. Você nunca nos viu tendo algo além de uma conversa amigável e cismou com essa conspiração maluca.
― É porque te conheço o suficiente para não cair nesses joguinhos.
― Eu não gosto de fazer isso, mas, às vezes, sinto que preciso relembrá-lo que você é somente o empresário da banda. ― Dei alguns passos à frente, aproximando-me dele e abaixando o tom de voz. ― Não meu, da banda. A parte da minha vida que diz respeito à você é a que corresponde a minha carreira enquanto vocalista e compositor da banda. A minha vida pessoal, quem eu fodo, quem eu gosto ou não… isso só diz respeito a mim. Estamos entendidos? ― O silêncio foi a resposta por alguns segundos.
E, então, o mais velho deu um tapinha no meu ombro.
― Pra van. Já estamos atrasados.
Vitorioso, sorri, desviando de sua figura para me juntarmos aos outros e entrarmos no veículo.
Quando chegamos ao nosso destino, fumamos um cigarro ― George e eu, Adam e Ross apenas fizeram companhia física ―, assistindo o término da montagem do palco e cumprimentando alguns técnicos que passavam por nós.
Estava ansioso para vê-la, porém, ao que havia capturado com alguns roadies, os repórteres haviam saído para almoço. Deveriam retornar a qualquer momento, já que estavam há algum tempo fora.
Com algumas horas disponíveis até a abertura dos portões da arena, fomos para a passagem de som. Enquanto ajustavam seus instrumentos, comecei a modulação do microfone juntamente com meus exercícios de voz. A afinação da minha guitarra, deixei por conta de Adam, depois de ter feito beicinho e lhe prometido uma partida de WAR durante nossas horas de estrada.
Fazendo os retoques finais no meu retorno, vi, acompanhada de um homem, atravessando o espaço vazio à nossa frente em toda a sua graciosidade.
― Olhem lá se não é a nossa adorável ― falei ao microfone, vendo todos os olhares se voltarem para a mulher. Um sorriso muito discreto tomou seus lábios.
Depois que subiu ao palco com seu companheiro de trabalho, senti como se o mundo ao redor passasse a girar em torno da mulher. Por mais que muitas coisas tenham acontecido entre sua subida e a entrevista, participei passivamente de toda a conversa. Somente o suficiente para não ficar fitando-a e babando, dando ainda mais margem para desconfianças por parte de Jamie. Era como estar presente e não estar ao mesmo tempo.
Claro que, ao voltarmos para o camarim em sua companhia, precisei me esforçar um pouco mais para responder suas perguntas, uma vez que essa era a atitude esperada por todos à minha volta. A parte ruim de sempre ter algo a dizer é que, quando você não tem nada que queira dizer, os questionamentos a respeito de uma atitude tão fora da curva te bombardeiam.
Tanto quanto senti sua falta, de conversar com ela, ser perseguido por ela, de ser, até mesmo, ridicularizado por ela, pareceu sentir falta de me puxar e me amarrar a realidade onde nunca, jamais, em hipótese alguma poderíamos ser muito mais que amigos ou meros colegas.
Tendo se apegado ao fato de que eu havia influenciado na escolha do jornalista que nos acompanharia naquele dia, começou a me alfinetar ao longo da entrevista. Comprovando que eu não era o único a ter percebido seu comportamento, no recinto, todos pareciam estar deitados em camas de pregos. Desconfortáveis, rígidos, pisando em ovos.
Liberados daquele fogo cruzado, a mulher tentou fugir de mim acompanhando todos para fora, porém era a minha oportunidade de tentar entender o que estava acontecendo.
, na medida do possível, era uma pessoa controlada, comedida e muito racional. Com os braços cruzados em frente ao peito, praticamente, enumerou os problemas possivelmente causados por mim ao solicitar sua presença como condição para a realização daquela reportagem. Para finalizar, soltou uma frase que entendi como uma deixa:
― Sem contar que o Sullivan pode achar que existe algum motivo a mais para eu ser escolhida a dedo dessa forma.
― E tem mesmo. ― Dei de ombros, fingindo que não diria nada demais.
― Quê? Que motivo? ― Franziu as sobrancelhas, apertando ainda mais os braços contra o corpo.
― Eu queria te ver. ― Como o último soldado em pé após a guerra, vi se desarmar. Os braços se afrouxaram, as expressões faciais ganharam um ar chocado.
Dando alguns passos em sua direção, o espaço que nos separava estava ficando cada vez menor. até tentou se afastar, porém o curto passo que deu para trás a fez se chocar contra a penteadeira.
Seu peito junto de seus ombros subiam e desciam em uma demonstração de respiração pesada. Nervosismo, excitação? Será que ela não quer? Ela diria, né?
Quando não havia mais nada além de centímetros entre nós, por onde correntes de ar sufocadas passavam, enganchei os dedos nos passantes de cinto de sua saia, colando nossos corpos. Diferente de quando nos beijamos, seus braços pendiam moles ao lado de seu corpo, quase como se não soubesse que destino dar àqueles pobres membros.
Meu corpo inteiro pulsava de prazer ao sentir a altíssima temperatura que transpassava pelos tecidos de suas roupas. Eu poderia sorrir em deleite só de vê-la tão desconcertada.
― Tá se decidindo? ― sussurrei, olhando-a nos olhos. ― Me diz que você não quer e eu te solto.
Os segundos foram se passando e permaneceu imóvel, os olhos anuviados, como se estivesse e não estivesse ali.
Queria agarrá-la, beijá-la até faltar fôlego, serpentear minhas mãos para dentro de suas roupas, empurrá-la contra a penteadeira, fazê-la gemer prazeirosamente. No entanto, não faria nenhuma dessas coisas se sentisse que não era isso que esperava que eu fizesse.
Assim que quebrou nosso contato visual para se fixar na minha boca, comecei a me aproximar devagar. Quando nossos lábios se tocaram, pouco antes de eu fechar os olhos, a vi fazê-lo primeiro, o que me permitiu relaxar e sentir pelo menos aquele momento. Tão logo nossas línguas se encontraram, foi como se seu corpo inteiro amaciasse sob meu toque.
Querendo explorar mais a área, minhas mãos foram parar em suas costas, assim como as suas se envolveram em meus cabelos de forma que conseguia senti-la acariciar meu couro cabeludo, fazendo um arrepio percorrer cada milímetro da minha pele. Parecendo provocar a mesma sensação nela quando minha língua roçou o céu de sua boca, deixou um suspiro audível sair de sua garganta, soando quase como uma permissão para o que desejava fazer com ela.
Escorregando os dedos mais para frente, parei de beijá-la. Conferindo seu rosto, sorri ao vê-la aparentemente desnorteada e um pouco desapontada por ter nos afastado.
Minhas mãos escalaram suas costelas até pouco antes de encontrarem seus seios. Queria tocá-los, mas talvez ainda não fosse hora, pois tinha outros planos. Por isso, passei a selar nossos lábios para que esse fosse meu medidor se poderíamos prosseguir ou não.
Vagarosamente os lábios dela se abriram, como se silenciosamente me pedisse por mais. E eu jamais teria coragem de negar o que quer que fosse a ela.
Depositei uma mão em seu pescoço e o acariciei lentamente, seguindo exatamente a velocidade de nossas bocas.
Arrastando uma das mãos, cheguei a seu quadril. Mais precisamente, a barra de sua saia. Não tinha a menor intenção de tirar sua roupa, tampouco de permanecer sobre ela. Para mim, aquela era meramente uma barreira física a ser ultrapassada ― o que eu fiz.
Passando os dedos por cima do tecido de sua calcinha, a vi respirar fundo lentamente. Seus ombros subindo e tensionando próximos ao pescoço. Assim como o resto de seu corpo, sua boceta parecia estar pegando fogo e não seria eu o bombeiro a apagar as chamas. Muito pelo contrário, queria incendiá-la ainda mais, como quem coloca lenha em uma fogueira.
As juntas de suas mãos se fecharam com mais força nos meus cabelos ao mesmo tempo que um suspiro audível saiu de sua garganta, regalando meus ouvidos.
Seus olhos piscavam e demoravam a abrir de novo, como se estivesse perdendo a coordenação motora, inclusive, de seu rosto. Quando conseguiu permanecer com as pálpebras abertas, fixou o olhar no meu para que eu tivesse um vislumbre do que estava sentindo por dentro. Agora é a hora.
Afastei um dos lados da sua calcinha, deslizando os dedos sobre seu clitóris devagar. Devido a umidade, coloquei um pouco de pressão nos movimentos para não perder o ponto exato sem querer.
Deixando a falta de controle transparecer ainda mais, apoiou as mãos na penteadeira atrás de si, derrubando alguns objetos no processo, os quais eu nem sabia o que eram, já que não tirei meus olhos dos seus para conferir.
não gemeu alto em nenhum instante, o que era uma pena, pois eu adorava ouvir gemidos. No entanto, sua respiração pesada e descompassada batia contra o meu rosto e quase fazia com que me descontrolasse, perdesse o comando das minhas ações.
Até que, como se espasmos tomassem os músculos de seu rosto, os cantos de sua boca se repuxavam e voltavam ao normal, criando micro sorrisos, que nasciam e morriam na mesma velocidade.
Aqueles mesmos espasmos começaram a descer, aparecendo em sua barriga, mãos, pernas. Ela vai gozar logo, logo. Ao vê-la trancado a respiração, coloquei sua calcinha no lugar, ajeitei sua saia e me afastei, indo em busca de uma toalha. Limpei os dedos, arrumei minha camisa e cabelos no lugar. Espero não estar muito vermelho nem suado.
― Onde você vai? ― questionou ofegante.
― Eu ainda tenho um show pra fazer, lembra? ― Ri, aproximando-me. ― Sabe porque eu não te deixei gozar? ― sussurrei bem perto de seu ouvido. ― Porque eu quero que, quando você quiser e estiver pronta, peça por isso.
― Você vai ficar esperando porque eu não vou pedir ― rebateu baixinho em um tom desafiador, cruzando os braços em frente ao peito.
Minha risada saiu um pouco anasalada. ― Veremos. ― Beijei seu rosto e saí, deixando a porta para que viesse para o backstage quando se recompusesse.
Subindo as escadarias de metal, encontrei com a roadie, que me ajudou com o retorno e, através de seu walkie-talkie, solicitou minha guitarra. Feliz como estava, pus a correia do instrumento sobre um dos ombros e a agradeci com um beijo no rosto.
Ao subir ao palco, naquela belíssima noite e na companhia dos meus melhores amigos, estive tão feliz quanto era possível. Nada era capaz de estragar minha noite.
N-A-D-A.


#6

Quando você desliga, soa muito melhor
(In My Sleep - Inhaler)



Apesar de a turnê estar indo muito bem, estar longe de casa e, consequentemente, do corpo aconchegante e macio de me deixava muito mais ansioso que o normal. Não havia um único banho de água fria capaz de afastar a constante sensação de tesão instalada em meu corpo.
Na maioria das festas que íamos após os shows ― ou entre eles ―, beijava um monte de pessoas diferentes. Às vezes, levava alguém em meu encalço para um hotel por perto. Vez ou outra, o banheiro do local também servia. Nem sempre transava com alguém. Algumas vezes eram só uns amassos. Na maioria das ocasiões, nunca estava realmente satisfeito.
Era como se tivesse reprogramado meu cérebro ao seu bel-prazer, fazendo de mim um mero escravo, condenado a pensar nela e em seu belo corpo dia e noite, 24 horas por dias, sete dias por semana. Gostosa filha da puta.
Considerando esse excesso de energia sexual da qual eu nunca parecia conseguir me livrar por completo, como um adolescente, voltei a me masturbar todos os dias. Sim, patético, eu sei, mas cada um lida com os problemas da forma que dá, né?
― Quanto você fumou?
― Quê? ― franzi as sobrancelhas, voltando o olhar para George.
― Você tá, pelo menos, 300 por cento mais aéreo que o normal.
― Pensando… coisas. ― Segurou um sorriso comprimindo os lábios.
― Hm, sei. Coisas. Entendi. Tipo, quando voltarmos pra casa?
― É, tipo isso. ― Crispou os lábios.
― Você devia, sei lá, chamá-la pra um encontro. ― Depositou a mão sobre meu ombro.
― Do que você tá falando? ― Me fiz de desentendido.
― Você está tentando desconversar? Se sim, vou ser mais claro. Convide para sair quando voltarmos para casa, porque isso que você tá sentindo não vai passar transando com 50 pessoas diferentes.
― Ela não aceitaria um encontro. E… eu não… transei com 50 pessoas. ― Semicerrei os olhos.
― Ainda. Em alguns dias, acho que você alcança esse número. ― Riu. ― E você já perguntou a ela? Porque, até onde eu sei, ela aceitou ir ao show como sua convidada e amiga.
― Mas agora a situação é diferente.
― Diferente como? ― Bebeu um gole de água da garrafa que segurava em mãos. ― Vocês transaram? ― Imitei seu gesto, bebendo um gole interminável de água e Daniel pareceu entender. ― Ok. Você não perde a oportunidade mesmo, né? ― Riu.
― Eu não colocaria nesses termos.
― Que termos? O sexo ou você não desperdiçar oportunidades?
― As duas coisas.
― Em nenhum dos dois há meio termo. Em ambos os casos, ou você fez ou não.
― Quem fez o quê? ― Oborne se aproximou sorridente, descansando as mãos sobre nossos ombros.
Puta meda, o quanto será que ele ouviu?
― Matty não tem certeza se salvou as demos que gravamos antes de viajar. ― Ufa, salvo por um triz.
― Vocês esqueceram de programar o autosave de novo?
― Gravei algumas coisas no meu computador pessoal, então… ― Encolhi os ombros.
― Enfim, espero que o prejuízo não seja grande. ― Sustentou o sorriso por mais algum tempo antes de prosseguir: ― De qualquer forma, só vim avisar que esse fim de semana vocês estarão de folga. A Irlanda está passando por uma tempestade e a previsão é de que não pare antes de sábado à noite. Os voos foram cancelados e, por isso, tivemos que reagendar os shows. Sintam-se livres para fazerem o que quiser.
― O que Adam e Ross pretendem fazer?
― Visitar a família e buscar mais algumas coisas que esqueceram em casa.
― G., deveríamos fazer o mesmo. Assim, embarcamos todos juntos para retomar os outros show ― sugeri inocentemente.
― Bom, fiquem à vontade. Só me avisem para podermos cuidar das passagens de vocês, ok? ― Concordamos com a cabeça, vendo-o se afastar, indo falar com o resto da equipe próximo aos assentos.
― Ok, isso foi um sinal. Eu vou chamá-la pra sair.
― Sinal? Desde quando você acredita em sinal?
― Desde agora. ― Sorri.
Balançando a cabeça em negativa, rindo, George parecia desacreditado e se divertindo muito com toda aquela confusão. Maldita , olhe a bagunça que está fazendo!
Tirando o celular do bolso, me afastei dos outros para dar o telefonema que facilmente seria o prêmio de um milhão de dólares de algum programa de auditório. Não perderia mais nenhum segundo sem tentar. O máximo que poderia acontecer era um “não” e, analisando friamente a situação, já havia me permitido acesso até ao conteúdo que guardava dentro da calcinha. O que era uma saidinha perto disso?
Seu telefone chamou algumas vezes, antes que eu finalmente ouvisse:
― Por que está me ligando no meu horário de trabalho? ― atendeu com aquele jeito marrento. Até conseguia visualizar a cara de tédio, os ombros duros, a coluna ereta.
― Por que está atendendo uma ligação no seu horário de trabalho, ? ― debochei, segurando a risada.
― O que você quer? ― Ok, ela está irritada. Será que realmente não é uma boa hora? Mas aí ela não teria atendido, né?
― Tivemos um fim de semana inteiro de shows cancelados na Irlanda. O país está passando por uma tempestade ou coisa assim. Então, decidimos que vamos ficar até a madrugada de domingo para segunda ― respondi tentando não transparecer na voz a insegurança recém adquirida. Se ela te sentir inseguro, vai saber que está armando algo.
― E você me ligou para dizer isso? ― Foi sua vez de ser debochada.
― Não. Te liguei para perguntar se você quer sair comigo amanhã. Sei que aos sábados você trabalha de manhã. ― Era a minha chance de soar firme, então, fiz meu melhor.
― Não sei se é uma boa ideia. ― Ótimo, ela não está completamente certa. Você consegue fazê-la aceitar.
― Não se preocupe. Não tem segundas intenções. Só como amigos. Juro. ― Suspirou como quem toma uma decisão da qual pode se arrepender. Eu não vou te decepcionar. Por favor aceite.
― Te encontro onde? ― Finalmente, questionou. Estava tão feliz que poderia comemorar, entretanto, se o fizesse, levantaria suspeitas que deveriam permanecer adormecidas. Pelo menos, por enquanto.
― No Lion’s Cave. Sabe onde é?
― Sei, sim.
― Então, até amanhã. ― Queria encerrar aquela ligação antes que repensasse e decidisse que realmente não era uma boa ideia.
― Tchau. ― Aparentemente mais ansiosa pelo fim do que eu, se despediu e desligou ligeira.
Forçando os músculos do meu rosto, tentei permanecer sério para que minhas feições não me denunciassem para ninguém que estivesse ao meu redor. São apenas algumas horas de volta para casa e vai estar livre para comemorar o quanto quiser até encontrá-la.

- x x x -


Vê-la novamente ao vivo e a cores parece ter iluminado meu dia como nenhum raio de sol teria feito melhor. Apesar do jeito desconfiado e até um pouco arisco no começo, ainda tinha aquele ar afetivo que te permitia se sentir conversando com alguém que já era de casa. A forma como colocava seus pensamentos em palavras e sempre esperava por uma explicação para algo que não era lógico me intrigava. Suas perguntas vinham ornadas de olhares desafiadores e de um tom sugestivo, como se houvesse alguma intenção oculta por trás. Se essa intenção era maliciosa, no sentido de me pôr em mãos lençóis publicamente ― ou em sua cama ― só o tempo seria capaz de revelar.
Todavia, algo bem no fundo da minha mente me dizia que podia confiar a ela tudo o que tivesse vontade. Mas e se ela não for nada do que estou imaginando? Bom, não seria a primeira mulher a me ludibriar. E sinceramente? Eu não dava uma foda se ela quisesse mesmo fazê-lo.
Ao longo de nossa caminhada pelas ruas, fomos parados algumas vezes por fãs que pediam por fotos, autógrafos ou só um pouco de atenção. Por mais que não fosse um bom momento, não iria enxotá-las como moscas sobre o lixo. Tentei atendê-las o mais rápido que consegui para retomarmos nosso passeio.
não tocou no assunto dos beijos, tampouco no do camarim. E eu não senti que deveria fazê-lo. Pelo menos, não enquanto não sentisse abertura para isso.
― Você está de folga amanhã? ― arrisquei.
― Vai me chamar pra sair de novo?
― Não sei. Depende da sua resposta. ― Sorri.
― Amanhã é meu dia de plantão. Pelo menos um domingo do mês, dois jornalistas dão plantão na redação. Só pro caso de, você sabe, o avião de algum músico cair no triângulo das bermudas ou alguém mostrar as genitálias em algum show. ― Ri. ― Antes que você faça o convite, já vou recusar.
― Tudo bem. Acho que eu aguento. ― Fiz um pouco de drama enquanto descíamos as escadas rumo à estação de trem no subsolo.
Como se aquele fosse o ritual a ser repetido por nós sempre que entrássemos em um transporte público juntos, tirou os fones da bolsa, entregando-me um lado e plugando-o no celular. Alguns toques na tela e nossos ouvidos foram preenchidos por Dancing with myself, do Billy Idol.
― Essa música é ótima ― comentei.
― Comemorei minha entrada na universidade cantando ela em um karaokê. ― Riu.
― Sério?
― Sim. Foi uma das únicas vezes na minha vida que fiquei muito bêbada.
― Você bêbada deve ser o acontecimento do ano. ― Tentei visualizá-la fora de controle, gritando a música aos quatro ventos, acompanhada de amigos, mas era sempre muito contida, logo, não era uma imagem tão fácil de formular mentalmente sem nenhuma referência.
― Inclua um ‘catastrófico’ na frase e vamos estar falando da mesma coisa. ― Rimos.
Alguns minutos mais tarde, chegamos ao nosso destino, o que fez a mulher guardar os fones e o celular dentro da bolsa.
Quando paramos em frente ao seu prédio, ficamos nos encarando por algum tempo sob o crepúsculo. Estava começando a esfriar e, por isso, a vi cruzar os braços de leve em frente ao peito, tentando se proteger da brisa.
― Desculpe pelas vezes que tive que atender o pessoal. Sei que gastei um bom tempo fazendo isso e nem todo mundo fica ok quando isso acontece.
― Ah, não. Tudo bem. Fiquei feliz de saber que você não é um babaca com seus fãs. ― Sorri.
― Já fui, mas tô tentando melhorar. ― Caímos em um rápido silêncio, que tratei de quebrar para deixá-la ir: ― Bem, acho que por hoje é só, né? Boa noite, . ― Dando os primeiros passos de costas, acenei para ela.
― Boa noite, Matthew. ― Acenou de volta de um jeito amigável. É, você conseguiu deixar uma impressão.
Satisfeito com o resultado daquele dia, parti para casa, calculando algumas coisas em minha mente.

- x x x -


― Pelo amor de Deus, você precisa aprender a lidar com os problemas que você cria sozinho!
― G., por favor! ― implorei.
― Não, porra! ― Franziu as sobrancelhas. ― Não seja idiota. Você sempre conseguiu chegar em todo mundo que queria, por que agora precisa de ajuda?
― Amigo de merda. É isso que você é ― acusei.
― Sou um amigo de merda porque não quero te ajudar a comer alguém?
― Eu não disse que quero ajuda pra comê-la. Isso implicaria ter dividir a cama com você de novo.
― Você bem que sente falta das nossas conchinhas, não? ― zombou.
― Calado, árvore.
― Calado você, graveto. ― Riu.
― É de graça pra você me ajudar, sabia?
― Ficar quieto também.
― Puta que pariu! Você ainda vai precisar de mim. ― Saí pisando firme, rumo ao meu quarto.
Sentando na cama, procurei pelo maço de cigarros nos bolsos e na gaveta da mesa de cabeceira. Cacete, pensei ao pegar o último tabaco de dentro da caixa, pondo-o entre os lábios.
Parado no batente, Daniel me encarou por alguns minutos aspirando e soprando a fumaça, em silêncio.
― O que eu ganho em troca?
― Minha eterna amizade não é o suficiente? ― debochei.
― Não quando a cada semana você tem um novo pedido a fazer ― rebateu.
― Juro que não te peço mais nada do tipo.
― Jura? Pelo Louis?
― Você é ardiloso, hein? ― acusei. ― Mas, sim, por ele.
― Diga ‘juro pelo Louis’, então. ― Revirei os olhos.
― Juro pelo Louis. ― Pus a mão no peito para agregar um pouco mais de seriedade.
― Vamos.
― Onde?
― Ela sai às oito do trabalho, certo? ― Assenti.
― Vamos buscá-la, já está quase na hora.
― E o que vamos dizer?
― Mas que porra? Você não pensou em nada?
― É por isso que eu pedi sua ajuda. ― Dei de ombros.
― Vamos convidá-la para jantar aqui. Você cozinha.
― Você é um filho da puta, sabia?
― Veja bem como fala comigo. Estou te fazendo um favor.
― Tá, que seja. ― Levantei-me, dando um tapa em seu ombro para passar a minha frente e sairmos.
Como se já tivesse feito aquele caminho inúmeras vezes e, por isso, me lembrasse tão perfeitamente dele, dentro do carro, atrás do volante, nos guiei até a sede do Repeat Daily.
Conhecendo-me bem, George não tocou no nome de nem fez piada sobre o que estávamos indo fazer. Ele sabia que, mesmo que não transparecesse, estava uma pilha de nervos por aquele momento.
Não importava o quanto eu ensaiasse cada palavra que lhe diria quando a visse ou o quanto repetisse na minha cabeça que era apenas uma mulher, que já tinha feito isso inúmeras vezes ou que as chances de me rejeitar eram baixas, sabia que quando a visse perderia a fala ou não diria nada do que havia calculado.
Chegando em frente ao prédio alto e robusto da redação, saímos do carro, acendendo cigarros e fumando, quietos por longos minutos que pareciam não passar.
E, quando comecei a imaginar que talvez ela estivesse numa escala de horários diferentes e tivéssemos que esperá-la por horas a fio, enfim, a via despontar na portaria, despedindo-se de outra mulher e do segurança. Acompanhado de George, andei em sua direção, chamando seu nome e impedindo-a de atravessar a rua.
― O que você… ou melhor, o que vocês estão fazendo aqui? ― Seu rosto se contorceu de uma maneira engraçada, estampando a confusão.
― Viemos te levar pra jantar na nossa casa. ― Sorri.
― Mas eu já tinha dito que não…
― Que não ia sair comigo, não que não precisaria jantar ― interrompi-a, justificando minha teimosia em aceitar sua negativa.
― Eu não posso. Amanhã, eu acordo cedo e…
― Ah, qual é, ? É só um jantar com seus amigos. Nem mesmo vamos a um lugar. Vai ser na nossa casa. ― George finalmente interviu e, mentalmente, o agradeci por isso.
― Prometemos que até às 23h você já vai estar livre de nós e, se for preciso, a gente te leva pra casa. ― Juntei as mãos quase lhe implorando para se juntar à nós.
Revirou os olhos, cedendo:
― Ai, tá bom. Vamos antes que eu me arrependa. ― Abraçamo-la e a levamos até o carro.
Dirigindo calmamente, perdi a paciência em uma semáforo vermelho quando meu melhor amigo anunciou que não iria mais jantar conosco e me pediu para estacionar um pouco mais a frente para que saísse do carro.
― Você não perde a oportunidade de trocar seu melhor amigo por boceta, né? ― escarneci, pondo o veículo em movimento por tempo suficiente para deixá-lo em uma calçada metros a frente.
― Não seja dramático. E não fale assim na frente da ― repreendeu-me de um jeito que quase acreditei que havia uma preocupação genuína em sua voz.
― Por favor, George. sabe muito bem o que é uma boceta! ― controlei minha voz ao máximo para não gritar. Olhando-a de soslaio, notei de ombros encolhidos e com os cantos dos lábios apontando para baixo, como se forçasse os músculos. A safada está se divertindo às nossas custas.
Os dois se despediram, porém não prestei atenção nas palavras que trocaram. Traidor! Traidor! Traidor!
― Matthew, acho que, sendo assim, os planos de vocês meio que morrem, né? ― Sua voz me despertou dos meus pensamentos, fazendo-me olhá-la.
― Por quê? Só o George não vai poder vir. Eu e você ainda estamos aqui.
― É, mas eu já não queria estar aqui, lembra? ― respondeu.
― Vai me abandonar também? ― Apelei para uma cara de triste. Ela não pode mudar de ideia, não agora que eu estava tão perto.
Suspirou meio alto, quase como um gemido.
― Tá bom. Vamos. Só me deixa passar para o banco da frente primeiro. ― Saiu da parte traseira, assumindo assento ao meu lado.
Ainda sem acreditar que, pouco a pouco, estava convencendo-a a ficar por perto sem obrigá-la ou ser desagradável, tremi na base. Se tudo continuasse a caminhar nesse mesmo ritmo, era provável que minha sugestão a ela naquele dia, no camarim, se cumprisse ainda naquela noite.
Tal qual durante o tempo que passou comigo no hotel, quando chegamos a minha casa, nossa conversa flutuou entre como era dividir uma casa, o que iríamos jantar, o que iríamos beber e sobre nossas preferência quando o assunto era álcool. Manter um diálogo com era como permanecer na inconstância e isso me fazia admirá-la ainda mais. Era como se o assunto nunca acabasse, mesmo quando acabava.
Nos espaços em que o silêncio se fazia presente, seus olhos continuavam a falar por ela. O que havia gostado e o que não, quando tinha algo que gostaria de compartilhar e quando avaliava o que verbalizaria ou não.
foi a primeira pessoa cuja cabeça eu gostaria de dar uma olhada no que passava por dentro. Principalmente quando me encarava com aquele olhar enevoado de quem pensava muito antes de dizer algo que poderia se arrepender.
― Matthew?
― Hm? ― respondi em um resmungo, tentando não derramar vinho na minha roupa.
― Acho que precisamos conversar. ― A voz firme pareceu sair de seu âmago, como se tentasse também convencer a si mesma daquela dureza que tentava expressar.
― Sobre o quê? ― Ajeitando-me sobre o estofado, pus uma perna dobrada entre nós, apoiando um dos cotovelos sobre a coxa. Se a mulher conseguisse ler sinais corpóreos, saberia que toda a minha atenção era sua pelo tempo que quisesse e além.
― Sobre… você sabe. ― Quase sem piscar, a vi hesitante, desviando o olhar, não terminando o que ia dizer.
Portanto, entendi que aquele era o momento de miná-la um pouco mais. Deixá-la saber que, no que dependesse de mim, se o assunto era o que havia acontecido entre nós, poderíamos discutir a respeito, mas usando menos roupas.
― Não, eu não sei. E, se você não me falar, vou continuar não sabendo.
― O que aconteceu entre a gente… ― parou de falar.
― Seja mais clara, . Aconteceram muitas coisas desde que nos conhecemos. Te contei várias coisas, você tentou fumar maconha comigo, dormimos no terraço, você escreveu sobre mim, nós nos beijamos e até nos divertimos um pouquinho aquele dia no camarim, lembra? Bons tempos ― enumerei, por fim, bebendo mais um gole de vinho.
― É sobre isso que precisamos falar.
― Continua vaga demais. ― Deixei minha taça de lado. ― Mas eu vou te ajudar: é sobre algum dos três beijos ou sobre o orgasmo que eu te prometi? ― Sorri, o que pareceu irritá-la.
― A gente não pode levar isso adiante. Eu sou repórter e você é a minha fonte. O que vão dizer sobre nós se descobrirem?
― Acho que você tá paranóica. Ninguém vai descobrir se não contarmos. Além do mais, acho que você precisa… sabe, relaxar. ― Encostei a lateral do corpo no sofá.
― Caralho, Healy, você não consegue falar sério um minuto? ― Quase pulando, pôs-se de pé, deixando sua taça sobre o mármore da ilha.
Respirando fundo, passou a mão pelo rosto. Talvez não quisesse se deixar dominar pela raiva e gritar comigo. Eu não me importaria se o fizesse.
― Minha carreira significa muito pra mim e eu posso perdê-la por isso. ― Entendia sua preocupação, porém também continuava firme em minha convicção de que não havia chances de alguém nos descobrir se não contássemos.
Disposto a levar aquilo adiante até que me dissesse com plena certeza que não queria, levantei do assento, ficando a centímetros de distância dela. Nossos corpos entraram em contato quando pus as mãos em seu pescoço e acariciei seu maxilar com os dedões. Suas pálpebras fecharam e abriram em câmera lenta, como se fosse fechar os olhos, mas tivesse se impedido no meio do caminho.
― Nesse caso, a gente tem duas opções: eu cumpro minha promessa com você, depois fingimos que nada disso aconteceu ou podemos esquecer tudo isso e fingir que não tá rolando nada aqui. Você escolhe. ― Com uma mão, pus uma mecha de seu cabelo extraordinariamente macio atrás de sua orelha e, com a outra, acariciei seus lábios com o dedão.
Queria passar as pontas dos meus dedos por todo o seu corpo, saber como era senti-la, guardar a sensação de sua pele sob a minha em minhas digitais. Nem toda a proximidade do mundo soava suficiente quando se tratava de , pois eu abriria mão de todos os meus outros sentidos se pudesse continuar tocando-a pela eternidade.
Seus olhos passeavam pelo meu rosto. Na mesma medida que aparentava ponderar sobre sua decisão final antes de bater o martelo, também parecia buscar por qualquer milimétrico sinal de hesitação da minha parte, como se encontrar o que procurava a desse o embasamento que precisava para se manter vestida ou ir embora.
Claro que não encontrou nada disso em mim. Não havia mais espaço para arrependimentos ou gestos subentendidos.
― Eu ainda tô esperando pela sua resposta, ― incentivei-a.
― Você tem uma cara de quem vai foder com a minha vida. ― Apesar do tom sensual do qual sua voz estava ficando carregada, aquele também parecia ser um aviso de si para si mesma.
― Fica tranquila que, por enquanto, eu só quero foder com você mesmo ― respondi na mesma tonalidade de voz.
Puxando-a para mim, uni nossos lábios com voracidade, como se o mundo inteiro dependesse daquele beijo, de como ela reagiria, de saber que estávamos em sintonia, na mesma página, almejando chegar ao mesmo parágrafo.
A forma como se agarrou a mim e como permitiu que nossas bocas se encaixassem uma na outra só demonstrava que que estava perdendo o controle de seus movimentos. Não demorou para que também perdesse a noção de espaço, visto que bateu com um dos braços na taça sobre a ilha, fazendo-a se estilhaçar em mil cacos no chão.
Assustada com o barulho e com a sujeira, se desvencilhou rapidamente. Não querendo que o clima fosse embora pela janela ou que as coisas esfriassem, disse:
― Não foi nada. Depois eu limpo. ― Voltando a beijá-la em seguida.
Tocando-me suavemente, me guiou até o sofá, empurrando-me de um jeito quase carinhoso para que caísse sentado sobre o sofá. Antes de se aproximar de mim outra vez, a mulher tirou os sapatos e, segurando a barra do vestido, amarrotou-a por inteiro perto dos quadris para sentar-se em meu colo.
Enlaçando os braços em meu pescoço, deu início a um novo beijo enquanto eu arrastava meus dedos entre sua cintura e nuca.
e eu ainda não nos conhecíamos daquela maneira. Não sabia exatamente onde tocá-la, o que fazer ou dizer para deixá-la excitada. Tudo era uma questão de teste e, portanto, precisava do máximo de atenção possível em suas reações a todas as minhas investidas.
Sentada sobre meu pau, esfregou nossas partes íntimas por cima das roupas, seu quadril indo e voltando sobre mim. Já passava da hora de começar a tocá-la em outras partes para experimentar suas respostas, por isso, meus dedos se arrastaram de seus ombros por seus longos braços até chegarem às suas coxas, apertando-as. Como eu queria fazer isso! Um suspiro escapou de seus lábios e eu quase sorri de satisfação.
Parando de me beijar, a mulher se livrou do vestido, jogando-o na direção contrária à nossa no sofá. E o que se apresentava perantes meus olhos era algo que imaginava em pensamentos que pareciam muito distantes da realidade há uma ou duas semanas. Como se a estivesse escaneando para transformá-la em uma memória guardada a sete chaves, que acessaria sempre que a sensualidade, o erotismo e a necessidade de prazer me viessem à cabeça, meu olhar correu por cada centímetro de pele exposta.
Ainda bem que aquele era um momento que não pedia por verbalização de palavras, tampouco de coerência, pois havia esquecido tudo que aprendi em meus anos de alfabetização.
Caindo em mim, percebi que havia gasto bastante tempo apenas com a contemplação da materialização dos meus desejos profundos acontecendo e que era hora de agir. Para fazê-la se aproximar de mim, pus as mãos em sua bunda, trazendo-a para perto.
O cheiro de lavanda dos cabelos ficou mais forte quando passei a beijar seu pescoço. À medida que os beijos se transformaram em chupões, ouvi sua respiração pesar. Às vezes, a impressão que ficava era que fazia força para não gemer. Era como se estivesse em uma queda de braço contra mim, não transando comigo.
E, exatamente como se estivéssemos lutando um contra o outro, voltou a rebolar sobre meu pau de maneira mais obstinada, fazendo-me gemer contra a pele de seu pescoço ao sentir minhas roupas sob seu quadril se arrastando devagar em um local tão sensível. Repetiu o movimento um sem número de vezes em intensidades diferentes, mas sempre com janelas de segundos entre uma e outra, como se esperasse eu me recuperar dos efeitos de um “arrastão” antes de levar outro. Ela sabe muito bem que o que está fazendo, a tortura é sua amiga íntima!
Apertei sua bunda e, quase que automaticamente, senti seu peito tocar uma parte do meu rosto. Sem pensar muito sobre, acabei dando um tapa em uma de suas nádegas, o que pareceu fazê-la querer ir além do estágio onde estávamos nos últimos minutos. Com dedos ágeis, puxou o tecido da minha camiseta, tentando tirá-la. Percebendo que era mais fácil ser enforcado pela peça do que conseguir me despir na posição que estava, me afastei brevemente a fim de terminar o que havia começado.
Com os olhos brilhando com algo que soava como admiração, as pontas dos dedos da mulher percorreram meu peito e abdômen, contornando minhas tatuagens. Ela já as tinha visto, mas parecia querer captar os pequenos detalhes, tudo que lhe escapou o olhar nas poucas vezes que me viu sem camisa.
Tais pequenos gestos me faziam gostar ainda mais de . Estava mais do que comprovado que queria transar tanto quanto eu, porém, não via necessidade de apressar nem um único instante. estava me descobrindo, me explorando de todas as formas. O sexo era importante, mas não era tudo. E ela fazia questão de tudo.
Procurando pelo seu olhar, inclinei um pouco a cabeça. Tão logo me viu, deu um sorriso muito discreto, quase inexistente. Esticando o tronco, mexeu em sua mochila, depois, começou a mexer em uma bolsinha menor. Tinha tantas coisas de plástico lá que a ouvi passar a mão em quase tudo até entender que buscava por camisinha.
Quando se levantou, compreendi aquilo como minha deixa para me livrar o que ainda me restavam de roupas no corpo ― calças e cueca. Sem ficar de pé, ergui o quadril para abaixá-las, deixando-as na altura dos joelhos, pois isso me possibilitaria subi-las novamente em caso de emergência mais rápido. Todavia, certamente uma das coisas mais engraçadas que tive o prazer de presenciar foi o cuidado com que , completamente nua, dobrou a própria calcinha e a pôs ao lado do vestido. Se a situação fosse outra, eu teria gargalhado ― mas talvez não teria de vê-la fazer algo assim em outra situação.
Sentando de novo, abriu a embalagem cautelosamente, retirando o conteúdo e desenrolando-o sobre meu membro. Ao terminar, entrelacei os dedos das nossas mãos. Suas palmas estavam um pouco escorregadias devido ao lubrificante, entretanto, não me importei. Se quisesse, passaria as mãos meladas nos meus cabelos que eu não ligaria.
Nossos lábios se juntaram outra vez, agora, em um beijo bem mais lento, ainda assim, cheio de desejo. Tudo que decidia fazer era carregado de erotismo. Se fazia contato visual, se me tocava aqui e ali ou se me beijava. Inclusive, se é assim que ela beija sempre, é simplesmente impossível beijá-la na rua ou perto de outras pessoas.
O que veio em seguida foi uma sequência de frames que se encerraram quando fechei as pálpebras de prazer. soltou uma das mãos para segurar meu pau. Com as pernas postas uma de cada lado do meu corpo, me fez penetrá-la de uma vez só, fitando-me nos olhos. Suspirei alto, descansando a cabeça no encosto do estofado.
Rebolando vagarosamente, soltou sua outra mão para, então, agarrar os fios de cabelo da minha nuca. Não a deixe trabalhar sozinha, faça algo agora! Espalmando as mãos naquelas costas divinas, fechei o pouco de espaço que havia entre seu tórax e meu rosto ao aproximá-la o suficiente para chupar um de seus mamilos, cobrindo o que restou com minha mão livre. respirou tão fundo que pensei que desmoronaria para trás, como um saco vazio, a qualquer segundo.
Seu corpo estava quente e sua pele começava a transpirar, fazendo grudar aos pouco em mim.
A verdade é que, se eu pudesse, me fundiria ao seu corpo. Queria morar embaixo de sua pele, em cada pedacinho dela. Se pudesse, seria uma roupa com o caimento perfeito para ela. Tão perfeito que a faria querer me usar todos os dias, me deixando cobri-la, protegê-la e tocá-la durante horas a fio.
Beijando o vale entre seus seios, seu colo e seu pescoço, queria chegar à sua boca novamente, no entanto, sorrateira, a mulher praticamente me abraçou enquanto se mexia sobre meu colo com mais força, mas aumentando os intervalos. Caralho, ela vai me quebrar no meio se continuar assim! Muito provavelmente aquela era sua estratégia para me ouvir gemer e não seria eu a decepcioná-la.
Todavia, não a deixaria fazer o que quisesse de mim sem que nem ao menos olhasse nos meus olhos, portanto, afastei-me o suficiente para envolver seu pescoço em uma das minhas mãos e, a outra, apertar sua coxa. Apesar de não estar sufocando, passou a suspirar mais alto. E, mesmo assim, nada a impedia de manter uma velocidade contínua sobre meu pau.
sustentava meu olhar como quem segura um tesouro precioso em mãos: piscava poucas vezes, não os desviava por nada, para nenhum lado. Seus olhos tinham aquela mesma sombra sóbria do cotidiano, mas, desta vez, continham também um brilho atrativo. Suas feições rosadas pelo calor carregavam um ar de quem poderia começar a rir a qualquer momento.
Meio sem coordenação, a mulher subia e descia com uma energia que, a aquela altura e naquela posição, não achei que seria capaz de ainda ter. Vez ou outra, suas pernas, mas, em reflexo causado pelos espasmos, tentavam se fechar, assim como seu abdômen tremia.
Eu não estava muito longe de gozar. Uma sensação de formigamento consumia minhas partes íntimas, minhas coxas vacilavam, bem como as juntas dos meus dedos começavam a afrouxar ao redor de seu pescoço e de sua coxa.
Retirando as mãos de meus cabelos, usou uma para se segurar no estofado e outra para se masturbar enquanto continuava a subir e descer vigorosamente sobre meu pau. Nunca tive fetiche ou vontade de gravar a mim e a outra pessoa fazendo sexo. Achava a ideia de voyeurismo interessante contanto que não fosse nada escondido e feito de maneira presencial, com todos os envolvidos no mesmo cômodo, podendo se olharem nos olhar quando quisessem. Contudo, me despertava esse tipo de desejo.
Queria registrá-la de todas as maneiras possíveis, inclusive, em vídeo, embora não desejasse algo que a expusesse demais.
Não queria ver seu corpo inteiro, tampouco os muitos minutos de penetração ou qualquer coisa do gênero como em filmes pornô. Queria somente o ouro em meio aos metais comuns: as expressões faciais dela. Aquele olhar quente e penetrante; a forma como fechava as pálpebras de prazer; a boca aberta soltando fortes lufadas de ar; as sobrancelhas se franzindo bruscamente ao aumentar a velocidade da mão sobre o clitóris. Mas nenhum desses pequenos detalhes se comparou ao momento em que atingiu o orgasmo.
não parou de se mexer sobre mim, no entanto, era como se me engolisse. Os olhos cerrados não me viam, porém eu via tudo. A maneira como seu corpo se enrijeceu, suas pernas tremendo, o suor molhando os cabelos no fim de sua testa, o jeito que segurou o ar momentaneamente em seus pulmões em um grito mudo.
Embora não acreditasse em forças superiores, deuses ou qualquer coisa que não estivesse no plano físico, aquela imagem de me fez acreditar por um segundo que o paraíso existia e eu que estava muito próximo dele.
Refletindo sobre isso, acabei gozando. E, por mais engraçado que possa parecer, senti como se fosse a primeira vez que gozei por outra pessoa, não por mim, como numa dedicatória.
Saindo de dentro dela, me surpreendi ao senti-la se aninhando em mim, o corpo mole, a cabeça recostando em meu ombro. Por alguma razão, achei que sua primeira atitude pós-sexo seria o famoso “trate ficante como ficante”: levantar, se vestir e ir embora. No máximo, jantar antes de partir. Não querendo desperdiçar a oportunidade que se apresentava, abracei-a, beijando demoradamente seu ombro, em um gesto que esperava que significasse que, para mim, não tinha sido só sexo.
Quando a campainha soou na sala, nós dois levantamos correndo. Subi as calças de pressa, pondo a camiseta de novo. sumiu do meu campo de visão tão rápido que nem tive tempo de lhe dizer onde ficava o banheiro caso quisesse se trocar lá.
Por sorte era só o entregador com o jantar que havíamos pedido mais cedo. Acertando o valor que tinha a pagar e me despedindo, ouvi gritar.
Deixando para trás a porta aberta e as embalagens de comida, corri para a cozinha ver o que estava acontecendo.
E nada mais era que: um pé pingando sangue no chão da cozinha devido à um caco. Passando um de seus braços sobre meus ombros, a levei até a banqueta mais próxima, desviando dos outros pequenos cacos de vidro.
― Espera aqui. Eu vou pegar a caixa de primeiros socorros. ― Fui até o banheiro a tal caixa, retornando alguns minutos depois.
Agachando-me, depositei o objeto no chão e avaliei o ferimento.
― Ele é um pouco grande. Vou tirar de uma vez só, tá? ― Tal qual uma criança, fez uma careta engraçada. Deve estar doendo pra cacete. ― Vou contar até três. Se quiser, pode me apertar, trancar a respiração ou puxar o meu cabelo, ok? ― Concordou a cabeça. Os lábios tremiam, pois talvez estivesse segurando o choro. ― Um… ― falei e, antes que pudesse se preparar, puxei o caco de vidro para fora.
― Ai, cacete! ― berrou. ― Você falou no três.
― Todo mundo fala isso, mas se eu fizesse isso, você ia ficar tensa e ia doer mais. ― Munido de gazes e soro fisiológico, limpei o corte.
Involuntariamente, a movia o pé, na maioria das vezes, tentando tirá-lo das minhas mãos sempre que passava a gaze mais perto da ferida.
― Mulher, deixe esse pé quieto. Assim eu não consigo limpar ― reclamei em um tom brincalhão.
― Mas tá doendo ― resmungou de volta de um jeito meio manhoso.
― Eu sei, mas eu preciso fazer isso. ― Larguei as gazes usadas ao meu lado. ― Péssima ideia andar descalça em um chão cheio de cacos, hã?
― Eu achei que não tinha onde pisei.
― Pois é… tinha. ― Ri. ― Não foi fundo, não vai precisar de ponto, eu acho.
― Doutor Matthew Healy? ― zombou.
― Ao seu dispor. ― Abrindo um novo pacote de gaze, fiz um curativo que cobria todo o ferimento. ― Vem. ― Ajudando-a a se levantar, guiei uma manca até o sofá, onde se sentou para que eu pudesse juntar a bagunça na cozinha.
Com uma sacola, amontoei toda as gazes sujas de sangue e joguei no lixeiro. Indo à área de serviço, peguei um pano e jornais. De volta à cozinha, coloquei os restos da taça quebrada em meio à folha de jornal e as descartei no lixeiro também. Molhando o pano, limpei as manchas de vinho e sangue do piso branco.
Após lavar as mãos, peguei tudo o que seria necessário para o nosso jantar e voltei para a sala.
Sentando-me no sofá, servi ravioli e vinho para . Fazendo o mesmo por mim, começamos a comer, quietos, como fazíamos nos dias em que passamos no hotel.
Eu já disse que era uma ótima companhia para fazer refeições? Pois é, ela era. não se importaria em conversar se você quisesse conversar, porém também não se incomodaria com o silêncio se você não tivesse nada a dizer.
E era tão bom poder continuar olhá-la mesmo depois do que compartilhamos.
Novamente, se parecia com a mulher que conhecia há algum tempo. Séria, profissional e até um pouco distante. Em comparativo, ao mesmo tempo que essa postura lembrava pouco a suada e ofegante de minuto antes, agora, não conseguia mais visualizar outra versão dela que pudesse ser tão perfeita quanto essa. Era como se tivesse visto o revés de uma moeda colada no cimento: uma vez que você consegue desgrudá-la, nunca mais conseguirá ter somente a visão de um dos lados.
― Que foi? ― Deu um sorrisinho desconfiado.
― Nada. ― Crispei os lábios e encolhi os ombros. Merda, fui pego em flagrante.
― Então, por que tá assim? Tá emocionado ainda? ― debochou, a voz descendo tons até alcançar aquele toque aveludado.
Umedeci meus lábios, pensando no que deveria dizer ou se deveria dizer algo.
― Nada, só… fiquei um pouco surpreso. ― Bebi um gole de vinho, tentando disfarçar.
― Por quê? ― Franziu a testa.
― Você é sempre tão séria e mantém certa distância das pessoas, não achei que… ― Preferi não terminar a frase.
― Não achou que o que, Healy? ― Passou a língua pelos lábios, assuminndo uma pose desafiadora. ― Agora, eu estou curiosa.
― Nada, esquece. ― Dei uma nova garfada na minha comida.
― Fala. Lembra o que você me disse sobre falar o que pensa? Esse é o seu momento ― rebateu.
― Você tá me testando pra ver se eu falo alguma bosta? ― Semicerrei os olhos, desconfiado, mas resolvendo lhe falar o que havia pensado: ― Ia dizer que você não parece o tipo que gosta de ser enforcada e toda essa merda.
― E você tinha desistido de falar pra eu ficar curiosa ou por que achou que isso ia me intimidar? ― Deixando seu jantar de lado, inclinou-se para frente, aproximando-se de mim.
Seu vestido não era tão decotado, mas, naquela posição, permitia uma visão muito bonita de seus peitos.
― Era só curiosidade. ― Dei de ombros, fingindo que não era grande coisa.
― Ok, então, me pergunte o que quiser ― soltou de repente.
― É sério? ― Sorri sugestivamente.
― É. Se você quer perguntar putaria, pergunte. Acho que agora não faz mais muito sentido bancar a tímida.
― O que mais você gosta? ― Se ela está dizendo que pode, não jogue fora essa oportunidade.
― Além de ser enforcada? ― Assenti. ― Não tem muita coisa que eu não goste. A única coisa que fico um pouco receosa, apesar de gostar muito, é quando pegam no meu cabelo porque aí eu preciso tomar banho pra desembaraçar.
― Tapa?
― Na cara ou no corpo? Porque eu gosto dos dois. ― Uma risada baixinha saiu pelo meu nariz. Por essa você não esperava. ― Que foi? Você quem perguntou, só estou te dando o que você pediu. ― Sorriu, vitoriosa. ― O que mais você quer saber? Com quantos anos eu perdi a virgindade, pra quantos caras eu dei, se já transei com outra mulher, qual minha posição preferida… ― Eu queria saber tudo isso, mas achei que seria um pouco demais para um primeiro encontro que nem era um encontro e acabou sendo bem mais que um encontro.
Sorri de nervosismo.
― Eu acho melhor a gente encerrar esse assunto.
― Eu te deixo nervoso assim? ― debochou baixinho.
Dando um novo gole na sua bebida, pôs a taça sobre a mesa de centro, voltando a assumir aquela postura ereta e burocrática.
― Como eu disse antes, isso não vai voltar acontecer. Foi divertido, mas isso precisa parar antes que prejudique um de nós.
― Queria saber se tem algum tipo alavanca no seu cérebro em que você troca de personalidade sempre que quer ― brinquei, fazendo-a revirar os olhos.
― Alguém tem que ter um pouco de juízo, né?
― Ah, mas falando sério, foi tão ruim assim que você não queira repetir? ― Parecia estar brincado, porém fiquei preocupado de não ter suprido suas expectativas.
― Puta que pariu! ― Por um segundo, jurei que iria se levantar e me bater. ― Você ouviu uma palavra do que eu disse?
― Eu não falei que tinha que ser em outro dia ― sugeri, sorrindo.
Ao compreender o que lhe propunha nas entrelinhas, sua armadura pareceu rachar pouco a pouco.
― Ah, não… Você não tá sugerindo que… ― Permaneci com o mesmo sorriso no rosto. ― E se o George chegar?
― Eu não disse pra ser na sala. Além do mais, não ia ser a primeira vez que o George vê uma mulher pelada e ele não falou nada de voltar hoje.
Aceita! Aceita! Aceita! Aceita!
― Meu pé tá machucado. ― Aquela foi simplesmente a contra-argumentação mais fraca que havia presenciado na minha vida.
― Você não precisa fazer nada. Eu cuido de você. ― Acariciei seu rosto, largando meu prato sobre a mesa de centro.
De pé, me inclinei em sua direção para pegá-la no colo. Por um momento, tive medo de não aguentar o peso e ter que pedi-la para caminhar. , fisicamente, parecia muito mais forte que eu, pois, mesmo relaxada, seus músculos se mostravam tonificados e com formas perfeitas, em seus devidos lugares.
Passando um braço por trás de seus joelhos e outro por suas costas, a ergui no colo.
― Vamos que eu tô com fome.
― Você mal encostou na sua… ― Olhei-a, segurando o riso e sua frase morreu na metade.
Ao chegarmos ao meu quarto, a coloquei deitada cautelosamente sobre a cama e, antes de me juntar a ela, resolvi tirar minhas roupas ― de novo. Passando a camiseta pela cabeça, com o tronco erguido, apoiado sobre os cotovelos. Os olhos eram lascívia pura e eu gostaria muito de saber o que se passava em sua cabeça. Óbvio que não perguntei e talvez também não me diria.
Inclinando-me sobre ela, beijei-a lentamente. Uma vez que teríamos que ter cuidado com seu pé, achei que seria melhor se diminuíssemos o ritmo desde o início.
Ledo engano.
Por mais que mantivesse o pé machucado um tanto distante do corpo, depois que partimos para a penetração, tudo desandou. Perdi as contas de quantas vezes tentou apoiar o maldito pé na cama e quantas vezes esbarrei nele sem querer. Quando isso acontecia, não sabia se os gemidos que vinham muitos segundos depois ainda eram de dor ou de prazer.
Questionei algumas vezes se queria parar e em todas a resposta era negativa. Até que, por fim, ao perguntar logo após ter batido uma última vez ao tentar arrumar minha perna, recebi como resposta um:
― Puta que pariu, cala a boca e continua que eu tô quase… ― repreendeu-me em um fio de voz, mais uma vez, com a feição de mais cedo tomando conta de seu rosto rapidamente.
Saindo de dentro dela, me joguei de costas ao seu lado no colchão, rindo.
― Que foi?
― Você me xingando.
― Desculpa. Eu preciso perder essa mania. ― Deu um sorriso.
― Por favor, não perca. Ser agressiva assim combina com você. ― Riu. ― Aliás, seu pé não tá doendo?
― Pouco. Não valia a pena parar. ― Pôs um braço embaixo da cabeça.
― Acho que devemos trocar seu curativo antes de dormir.
― Dormir? Eu já tô indo embora.
― Como assim?
― Você acha que eu quero ficar aqui e ter que encarar alguém que possa aparecer?
― Tá falando do George?
― Também.
― Ele não vem. Foi encontrar a garota com quem ele tá saindo e, mesmo que eles ficassem a noite inteira jogando xadrez, não viria para casa.
― Tem certeza?
― Absoluta. E, se eu errar, eu dou um jeito de te tirar daqui sem ele te ver. ― Esticou o mindinho em minha direção.
― Promete? ― Ri e entrelacei meu dedo no dela.
― Prometo. Agora, vamos trocar esse curativo, né?
Pondo-me de pé, fui ao banheiro buscar a caixa de primeiros socorros.
De volta ao quarto, estava sentada na cama e, eu, sentado no chão, após retirar o curativo antigo, refiz todo o processo de limpar e fechar o ferimento com gazes limpas. Ao terminar, ajudei-a a se ajeitar na cama, deitando sobre um travesseiro, e, por fim, deitei-me ao seu lado.
Diferente de mim, não brigava com o sono. Ao deitar, geralmente pegava no sono com facilidade, ao que podia perceber. Já eu, aproveitei a insônia para observá-la por um tempo.
Imóvel, às vezes, aparentava nem mesmo respirar. Todavia, o que pude perceber com mais facilidade foi: não importava quanto barulho fizesse ou quando me mexesse, não era suficiente para despertá-la.
só voltou a abrir os olhos algumas horas mais tarde, assustada ao me pegar lhe observando. Desperta, começou a conversar comigo e responder as perguntas que lhe fazia sobre seu antigo relacionamento e até me contou que, se tinha duas mãos, não precisava de um homem. Correta em todas as colocações.
Tendo me pedido para acordá-la quando fosse me arrumar para partir, a mulher se aninhou ao meu peito e apagou novamente.
Algumas horas depois, levantei da cama e fui para o banho. Minhas malas já estavam prontas, portanto, poderia me arrumar com calma.
Ao retornar para o quarto, continuava a dormir e, a vendo tão entregue ao cansaço, resolvi deixá-la como estava.
Terminando de me vestir, sentei-me na cama para calçar os sapatos e, vendo meu reflexo no espelho, pensei que seria uma boa ideia me fotografar como estava. Estrategicamente posicionado e com zoom na imagem, evitei que aparecesse no enquadramento alguma parte da mulher que revelasse sua identidade. Devidamente fotografado e com a imagem postada no instagram, lhe escrevi o seguinte bilhete:

“Seu sono é muito pesado e você fica linda dormindo, acho que é porque você realmente descansa. Enfim, preferi não te acordar, mas estou deixando esse bilhete como despedida. Avisei minha mãe e meu irmão que ia deixar as chaves da minha casa com você, então, se precisar de algo, você pode entrar quando quiser. Volto em alguns meses, espero que possamos nos encontrar.

Com amor, Matty”


Deixei-o sobre a mesa de cabeceira e, depositando um beijo no alto de sua cabeça, parti para o aeroporto.


#7

Voltei pras drogas que eu parei
(drunk face - Machine Gun Kelly)



AVISO DE GATILHO: O capítulo a seguir aborda temáticas sensíveis referente a consumo e dependência de substâncias químicas.


Mais uma noite inteira gasta com insônia e viagem. A vida de artista era boa e horrível ao mesmo tempo. Conseguia ser disparado uma das piores decisões que tomei na minha vida em anos!
A noite passada na companhia de tinha sido algo a mais, porém não seria eu a negar que ficaria plenamente feliz somente se tivesse tido uma boa noite de sono e acordado ao seu lado. Teria me levantado da cama enquanto ainda estava adormecida, prepararia seu café da manhã fumando um cigarro, separaria uma toalha para que tomasse banho e a serviria. Depois, se quisesse, a levaria para casa ou para seu trabalho. Na verdade, poderia me pedir qualquer coisa que eu faria.
Contudo, mais uma vez, meu trabalho me impedia de ser um homem realizado.
Ao embarcar, como usual, me sentei ao lado de George, que, naquele dia em específico, estava curiosamente silencioso. Não havia feito pergunta sobre minha noite, tampouco dito algo sobre a sua, o que era totalmente incomum e fora da curva.
Se você não perguntar nada, vai parecer que está escondendo algo. Se perguntar, talvez ele queira saber demais.
― Sua noite foi boa?
― Hã… foi. ― Franziu os lábios, concordando antes de beber um gole de água.
― Isso foi hesitação? Não foi o que você esperava?
― Foi ok, não foi nada demais. ― Deu de ombros.
― Com quem você saiu?
― Por que isso te interessa?
― Bom, você sabe com quem eu estava. Você sempre sabe tudo sobre mim, então, só estou perguntando.
.
― Aquela sua amiga das flores?
― Ela mesma.
― Eu gosto dela.
― Ah, é? ― Olhou-me curioso.
Em resposta, dei de ombros.
― Ela tem uma personalidade horrível e não tenho vergonha disso. Acho que é uma boa qualidade.
― Desde quando ter uma personalidade horrível é bom? ― Sua cara se contorceu em uma careta.
― Desde sempre. Pelo menos você sabe que ela não está fingindo ser alguém que não é. ― Riu. ― Fazia tempo que não ouvia falar dela. Algo de especial aconteceu?
― O namorado terminou com ela.
― Do nada?
― Nunca é do nada, né? Ela que não descobriu os chifres mais cedo.
― Deve ter sido difícil.
― Na verdade, é alguém que lida muito bem com os próprios sentimentos contanto que possa beber como um velho pirata por uma noite. Ela precisava de companhia e eu fui.
― Você é sempre uma ótima companhia para quem quer se livrar de algo ruim.
― De todos os dias em que saímos juntos, ontem foi o que mais percebi que ela realmente precisava de alguém que ficasse de olho. Além de já estar meio alta quando a encontrei, tomou uma bala, que eu nem mesmo sei onde ela conseguiu. Foi a primeira vez que ela usou algo assim, então, fiquei um pouco tenso com o que poderia lhe acontecer.
― E aconteceu algo?
― Ela dançou todas as músicas de um jeito engraçado, começou a falar muito rápido e metade das frases eu não entendi uma única palavra. E ainda, pra piorar tudo, quando a levei em casa, tentou me beijar, tentou tirar a roupa e, pra finalizar com chave de ouro, começou a dizer que não podia dormir no campo de flores.
― Campo de flores?
― Ela deve ter alucinado com isso, sei lá.
― Mas ela ficou bem?
― Bebeu água como se não houvesse amanhã enquanto dançava e, quando chegamos em casa, demorou um pouco a dormir depois da coisa com as flores.
― Mas se ela não é o tipo de usa nem mesmo em festas, por que ela usaria agora? E ela estava sozinha quando tomou, né? ― Assentiu.
― Pelo que eu consegui entender, o namorado marcou um jantar no restaurante preferido dela. achou que ele a pediria em casamentos, pois haviam conversado sobre não há muito tempo, só que as coisas não saíram como esperado. Ele a chamou para dizer que não aguentava mais viver uma vida dupla e terminar.
― Ele teve coragem de contar pra ela?
― Não acho errado ele ter contado, acho que nisso, inclusive, ele tá correto. O problema foi o timing um pouco tardio. ― Desviou o olhar para a tampa da garrafa de água. ― A parte boa é que ela vai se recuperar.
― George? ― Respondeu com “hm” bem do fundo da garganta, extremamente grave. ― Se as circunstâncias fossem outras, você a deixaria te beijar?
― Eu não sou como você. ― Deu um sorrisinho debochado.
― Isso não é sobre mim. Você deixaria ou não?
― Não sei. Acho que não.
― Você não gosta dela assim?
― Não é isso. merece alguém que esteja emocionalmente disponível para ela, não alguém como eu.
― Você não está disponível?
― Não do jeito que ela precisa. Eu gosto da minha vida como está. Não acho que haja espaço para outra pessoa agora. Não estou todo apaixonadinho como você.
― Eu não estou apaixonado ― rebati rápido.
― Ah, qual é? Você quer que eu acredite que aquele sorrisão que você abre quando a vê é só tesão? Ok. ― Riu.
― Não é.
― Bom, ao meu ver, então, é melhor você tomar cuidado, pois você está a isso aqui ― sinalizou um espaço minúsculo entre o indicador e o polegar. ― de se apaixonar por aquela mulher.
― Quando foi que isso se tornou sobre mim?
― Desde que eu encontrei com a para deixar vocês dois a sós é sobre você.
― Você o quê?
― Ué, achei que toda aquela coisa de jantar em casa era uma boa oportunidade. E foi, né?
― Esse não era nosso combinado. Por que você não me avisou antes?
― Porque aí não teríamos a ceninha maravilhosa que você armou no carro.
― Puta que pariu.
― Você não pode negar que foi bom pra você, pode?
― Vai se foder, Daniel! ― Notando que não haveria mais conversa entre nós, George, acompanhado de sua garrafa de água, levantou-se e saiu.
Querendo evitar sua companhia ou a continuidade daquele assunto no seu retorno, pus os fones de ouvido e reclinei meu banco minimamente. Fechando os olhos, não sei quando foi que adormeci. Acordei com Ross tocando meu braço, avisando que nossa viagem tinha acabado. Nem precisei me dopar dessa vez.
Depois de sair do avião e, consequentemente, do aeroporto com nossas malas postas em um carrinho, fomos direto para o hotel.
Durante todo aquele dia, minha amizade com George azedou como leite fora da geladeira no verão. Ele bem que tentou se reaproximar, porém não lhe dei abertura. Para um melhor amigo, Daniel estava se saindo um ótimo traíra. Primeiro: saindo em defesa de quando o mais correto a fazer era se manter neutro, como Adam e Ross fizeram; segundo: armou algo sem meu consentimento e pelas minhas costas. Talvez eu devesse mesmo mudar de melhor amigo.
Ao entrar no quarto, deixei minhas malas em um canto e me joguei na cama na companhia apenas do meu celular.
Rolando o feed do instagram, vi que não havia nada de interessante acontecendo, portando, resolvi que era um bom momento para enviar uma mensagem a , visto que não nos falávamos há um dia inteiro.

“Voltou para casa bem?”

Sua resposta chegou quase cinco minutos depois.

“Por que não me acordou?”

“Você parecia bem cansada, não quis atrapalhar”

“Por onde você anda?”

“Glasgow”

“Combina com a sua estética”

“O que isso quer dizer?”

“Homem de roupa social preta, maquiagem, bancando o vampiro, bebendo vinho no palco e cantando músicas a respeito do seu coração quebrado ou das merdas que andou fazendo no último verão”

“Ouch ;/”


Fiquei esperando que me dissesse mais alguma coisa durante quase dez minutos, no entanto, a mensagem não veio. Querendo continuar aquela conversa, enviei:

“Quando eu voltar, nós podemos nos ver de novo?”

“Eu preciso entregar a chave da sua casa, então, sim”

“Você sabe que não é só por isso que eu quero te ver, não é?”

Após a última mensagem, não me respondeu mais. Conferindo a hora no relógio, sabia que deveria estar em seu expediente, mas algo bem no fundo da minha cabeça me fez entender que aquela interrupção dizia muito mais sobre o que achava a nosso respeito do que qualquer frase que me mandasse.
Suspirando de frustração, deixei o celular de lado e, cansado de encarar o teto, dormi outra vez.
Ao acordar, cerca de uma hora mais tarde, tomei banho e desci para o restaurante do hotel comer algo. E, como se fosse obra do destino, não haviam mesas disponíveis. A única que estava com cadeiras livres e com alguém que eu conhecia ocupando um dos assentos era a de Daniel.
Minhas duas opções eram claras: sair para comer ou me sentar com ele. O serviço de quarto só começava a funcionar depois das nove da noite, então, de fato, eram minhas duas alternativas que restavam.
Com preguiça de caminhar e sentindo no meu âmago que talvez aquela birra já tivesse durado muito, com meu prato servido em mãos, andei em sua direção e me sentei a sua frente. Não o cumprimentei, tampouco fiz gestos que pudessem soar amigáveis.
Respirando fundo, George soltou os talheres no prato, encarnando-me.
― Qual é, cara? Vai ficar bravo porque eu tentei te ajudar?
― Não estou bravo por causa das suas intenções, mas porque fez isso pelas minhas costas.
― Desculpa, não foi minha intenção. Só achei que você estava inseguro demais e que, se te contasse, talvez você não aceitaria.
― Bom, se não aceitasse era um problema meu, algo que eu teria que arcar com as consequências, certo?
― É sério, me desculpe. Deveria ter analisado por esse lado.
― Enfim, agora não importa mais. O importante é que tudo deu certo.
― Como assim deu certo? ― Não o respondi, apenas me concentrei em dar as primeiras garfadas na minha comida.
― Ué, você queria que ficássemos sozinhos e nós ficamos, não? ― desconversei. Daniel lançou me um olhar desconfiado e eu apenas sustentei a mentira deslavada.
― E não aconteceu mais nada?
― Tipo o quê? Nós conversamos, bebemos, jantamos e foi só.
― Ela dormiu lá?
― Sim. Qual o problema? ― Dei de ombros. ― , por exemplo, já dormiu lá em casa e nem por isso estou te julgando, né?
― Mas é diferente. Você sabe que não tenho esse tipo de interesse nela e, em todas as vezes que ela dormiu na nossa casa, eu dormi no seu quarto.
― E o que te faz pensar que eu tenho esse tipo de interesse na ?
― Porque 1) vocês já se beijaram; 2) até onde eu sei vocês já passaram de beijo há muito tempo; e 3) você fez da minha vida um inferno para chamá-la pra jantar conosco ― enumerou. ― Acho que seus sentimentos nunca estiveram tão expostos assim. Enfim, eu realmente só quis te ajudar, nada demais. ― Fitando-o, analisei a situação.
Conhecia Daniel há tempo suficiente para saber quando estava mentindo ou não. Portanto, vendo-o manter contato visual, o semblante sério, porém sereno, sabia que não mentia quando falava das verdadeiras intenções por trás de seus atos.
― Ok, você venceu. Acho que não vale a pena continuarmos com isso, né? ― Suspirei.
― Obrigado. Aliás, não sei se já te falaram, mas o promotor do show nos convidou para uma after party, se quiser ir…
― Será? Não sei se eu tô no clima.
― Você pretende se trancar no quarto até a hora de irmos para o aeroporto?
― Não é isso. É que talvez eu só não tenha nada para comemorar no momento.
― Ok. ― Deu de ombros. ― Você é quem sabe. De qualquer forma, vou te mandar o endereço, se mudar de ideia, sabe onde ir. ― Pegou o celular de cima da mesa, dando alguns toques na tela e voltou a bloqueá-lo.
Ainda que estivéssemos em um novo tempo de paz, isso não nos impediu de permanecermos quietos ao longo de toda a refeição. Daniel sabia que eu não iria àquela festa, não importava quantas mensagens me mandasse ou se passasse horas batendo à porta do meu quarto no intuito de me tirar de lá.
Todavia, também sabia que haveriam outras festas, em outros dias, com outras pessoas, em outros lugares. Poderia ir em todas se quisesse. Poderia recusar todas. O que eu faria diante de uma agenda de festejos como a nossa ainda não era uma certeza, tudo o que sabia é que, naquela noite em específico, voltaria para o meu quarto, beberia o que quer que tivesse de álcool no meu frigobar, assistiria a final de algum campeonato que não acompanhei o início e uma fumaria um baseado antes de dormir.

- x x x -


Dois dias depois, em outra cidade e após um show de uma hora que havia começado com mais de 40 minutos de atraso, resolvi que precisava esquecer que aquele dia tinha acontecido, portanto, acabei aceitando o milésimo convite de festa. Não sabia nem onde iria acontecer, só que o anfitrião era amigo de um conhecido do primo de alguém da banda de apoio, que disse que seria legal se aparecessemos por lá.
Bom… nós aparecemos.
Para uma festa em casa até que estava bem animada. A música era boa, a bebida parecia infinita e não havia um canto onde não tivesse duas ou mais pessoas se pegando.
No começo, bebi e dancei com meus amigos até que suas devidas atenções fossem se voltando para coisas mais interessantes ao nosso redor ― mulheres. Logo, pouco a pouco, fui ficando só, pois o último guerreiro, Ross, também foi abatido pelos encantos de uma mulher que não parava de encará-lo do outro lado da sala.
[n/a: e vamos de clima de festa]
Aceitando a derrota, resolvi fumar um cigarro em paz, longe de todos no meu lugar preferido: a janela da sala de estar.
Fumar perto da janela sempre me dava uma visão quase geral do ambiente. A aquela altura da festa, a maioria das pessoas já estava perdendo a noção ou com certeza não teria mais lembranças daquela noite na manhã seguinte. Até que, em meio a um gole e outro, sentindo-me observado, procurei em meio a multidão quem parecia estar cuidando de cada movimento meu e, enfim, encontrei a dona dos olhos cor de mel. Era loira e, mesmo de longe, aparentava ser brevemente mais alta que eu.
Cumprimentei-a com um meio sorriso, pois, em festas tão íntimas, talvez aquela fosse a forma menos invasiva que encontrei de lhe dizer que poderia se aproximar, não havia riscos nesse movimento.
Falando a mesmíssima língua que eu, a passos firmes, aproximou-se. Os movimentos eram graciosos, mas assertivos, como os de uma modelo sobre uma passarela.
Encarando-a chegar perto, o primeiro pensamento que me ocorreu foi de que, quem quer que ela fosse, não se parecia em nada com . Não tinha aquele ar sério, tampouco aquele sorriso espontâneo e doce. Na verdade, a imponência de sua figura apenas me cheirava a sexo, o que muito provavelmente estava buscando naquela noite. E não cabia a mim decepcioná-la.
― Odeia festas?
― Na verdade, eu as acho um experimento social bem interessante.
― É mesmo? ― Crispou os cantos dos lábios, fingindo um misto de surpresa e interesse. ― Me fala mais sobre isso.
― Festas são um ambiente que tornam várias coisas que socialmente não são aceitáveis a luz do dia aceitáveis e coerentes. Em festas, você se permite ser um monte de coisas, tomar algumas atitudes e decisões baseadas unicamente em “eu quero fazer, então, por que não?” ― Dei de ombros.
― E você acha isso ruim?
― De jeito nenhum. Como eu disse, acho interessante. Eu gosto.
― Então, por que está aqui no canto?
― Meus amigos sumiram e eu precisava urgentemente de um cigarro. ― Riu. ― Você fuma?
― Não, mas acho que fumantes têm… algo a mais, sabe? ― Deu um sorriso sugestivo.
Soprei a fumaça na direção contrária a ela, contendo um sorriso. Apaguei o cigarro no cinzeiro sobre o parapeito da janela, deixando a bituca lá.
― Já que você não tem nada contra festas e não me parece ser antissocial, o que acha de dançar?
― Dançar?
― É. Algo contra dançar? ― Meneei a cabeça, com os lábios franzidos.
Começando a mexer o corpo lentamente, deu passos para trás, entrando em meio a outras pessoas que dançavam no espaço. Seguindo-a, também passei a me mover no ritmo da música à sua frente.
Não era uma música agitada nem uma música lenta. Tinha uma melodia até meio sensual, porém, ainda assim, mantive um certo distanciamento do corpo da estranha à minha frente. Não a tocaria até que parece querer isso ou, se ela me tocasse, talvez eu correspondesse.
O ambiente estava abafado. Por algum motivo, mesmo sendo festa em casa, os presentes pareciam ter algo contra ventilação, janelas abertas, ar-condicionado e semelhantes. E a temperatura, a cada segundo que passava, aumentava, uma vez que mais e mais pessoas se juntavam ao pequeno espaço da sala para dançar, reduzindo as distâncias entre os corpos, fossem os que estavam ao meu redor, fosse o da mulher à minha frente.
Poucos centímetros nos separavam, logo, não demorou para que passasse o braço sobre meu ombro, chegando ainda mais perto de mim.
Vez ou outra, enquanto dançava, seu corpo se esbarrava no meu e eu não sabia dizer se o calor que estava sentindo era tesão ou era uma sensação comum a todos os presentes. Talvez um pouco dos dois.
Seus olhos não se desgrudavam dos meus e pareciam piscar em câmera lenta. Seus lábios carregavam um sorriso sugestivo em todas as vezes que outras partes de seu corpo ― além do braço pousado sobre meu ombro ― roçava no meu.
Depositando uma mão em sua cintura, reduzi um pouco mais o espaço que nos separava, fazendo um sorriso travesso tomar conta de seu rosto.
Como se fôssemos cordas de um instrumento sendo tocadas na mesma tonalidade, demos passos ritmados para o mesmo lado juntos, repetindo isso algumas vezes.
Ouvindo a voz na minha cabeça que incessamente dizia “beije-a, beije-a”, acariciei seu rosto por alguns segundos com a mão livre, experimentando para saber se estávamos de acordo sobre isso. Não havendo resistência, acabei com a distância entre nós, colando nossos lábios.
Ambos os braços se enrolaram ao redor do meu pescoço, espremendo ainda mais nossos corpos juntos, como se isso fosse possível.
Sua boca tinha um gosto adocicado e alcoolizado, parecendo brincar sobre a minha. A mulher não usava apenas os lábios, mas a língua, o queixo e, se pudesse, todo o rosto, visto que se movimentava como um gato se esfregando no tutor em busca de carinho. Fazia muito tempo que não beijava alguém que aparentava se divertir ao mesmo tempo que parecia querer me engolir.
Normalmente, depois de alguns segundos, daria um jeito de me afastar, pois não era a pessoa que mais gostava de beijos e amassos demorados, ainda mais em público. Entretanto, algo naquela mulher me envolveu a ponto de me deixar ali, emaranhado em seu cheiro, sua presença, seu gosto. Algo nela me fez permanecer por mais tempo. Talvez fosse aquela sensação de que ela estava realmente se divertindo em estar comigo, não apenas ficando porque sabia quem eu era ou as coisas que poderia conseguir caso alguém soubesse que havíamos ficado.
― Sabe o que me dei conta? ― murmurei contra sua boca, observando-a ainda de olhos fechados, depois de se afastar o rosto poucos centímetros de mim.
― Hm? ― Passei a língua pelos lábios, tentando reduzir a sensação de pele molhada pela saliva.
― Que eu não sei seu nome e você não sabe o meu.
― Nomes são íntimos demais para serem ditas em público assim, você não acha? ― Trocamos um sorriso cúmplice. ― O que acha de eu te dizer em um local mais… privado? ― sugeriu, segurando umas das minhas mãos.
Era o tipo de questionamento que não precisava ser respondido. Tanto que só a deixei me guiar por entre as pessoas, subi alguns lances de escada até chegarmos à uma porta branca em um curto corredor.
Do lado de dentro, já com a porta trancada, estávamos em um banheiro bem espaçoso, onde, apesar de cabermos confortavelmente, preferimos ficar grudados um ao outro, contorcendo nossos corpos em meio aos beijos já meio descontrolados, fosse pela bebida, fosse pelo tesão.
Minhas mãos, aos poucos, começavam a demonstrar a urgência, assim como as suas, ao explorar tanto a pele que estava à mostra quanto a que não estava. Indo de zero a 100 quilômetros muito rápido, meus dedos saíram de sua nuca, passando por suas coxas, cintura até chegar aos seus seios.
Seu corpo tinha uma musculatura firme, mas não do tipo que gasta horas na academia. Era do tipo que vinha de fábrica, algo genético. Chegava a ser belo de se apreciar sob as pontas dos dedos.
E, mesmo que eu quisesse muito que chegássemos à última base, algo parecia errado comigo. Nem o beijo, nem o toque, nem a vontade ou qualquer outro fator estava sendo suficiente para me deixar duro, fato comprovado por uma das mãos da mulher, que acariciava meu pau por cima das calças.
― Desculpa, acho que meio que… ― Afastei-me, passando o dorso da mão pela testa, suspirando.
Mordendo o lábio inferior discretamente para mascarar um sorriso sem graça, encostou-se no mármore da pia, assentindo lentamente.
― Quem é ela? ― Franzi as sobrancelhas brevemente. ― Ou… ele ― hesitou.
― Como sabe que tem alguém?
― Você acabou de confirmar. ― Fechei os olhos, segurando a risada. Você é burro pra caralho, né, porra?
― É… alguém que eu conheci.
― Eu já transei com precoce, com broxa… mas nunca com alguém que tem essa pegada e simplesmente não fica duro ― ironizou. ― Você tem algum problema de saúde? Porque, se não tem, acho que não é apenas alguém que você conheceu e você bem sabe disso. ― Cruzou os braços em frente ao peito. ― Essa pessoa sabe?
― Ela meio que sabe. É complicado.
― Me explique. Eu tenho tempo.
― Nós já ficamos, mas não é nada sério e não sei se, quando nos vermos de novo, vai ser como se nada tivesse acontecido ou se vamos, sei lá, ficar de novo.
― Então, você não sabe como ela se sente?
― Na verdade, acho que sei. Ela tem medo que as pessoas descubram, porque isso poderia nos prejudicar e tudo o mais.
― E você?
― Eu o quê?
― Tem medo das consequências se as pessoas descobrirem? ― Dei de ombros.
Em flashes tão rápidos quanto raios em minha mente, tive memórias vívidas de meus encontros secretos com . Ao relembrar os lugares em que me tocou, sentia minha pele formigar. Conseguia sentir seu cheiro no ar e seu calor contra o meu corpo. O pau duro que deveria ter acontecido minutos atrás sob os estímulos da loira à minha frente resolveu se tornar real com um mero delírio, uma lembrança de tempos tão longínquos que pareciam escorrer como água entre meus dedos.
― Eu acho que vale o risco, porém não posso, não vou e nem quero forçá-la a nada.
― E eu acho que você deveria ligar para ela.
― Mas tá tão tarde.
― Se é recíproco isso que você sente, ela vai gostar de saber que você estava pensando nela. Talvez até esteja esperando essa ligação. ― Deu um meio sorriso.
Ajeitando o vestido e os cabelos, deu uma última olhada em mim e disse:
― Boa sorte.
― Onde vai?
― A noite só está começando. Acho que ainda posso encontrar o que procuro, não acha?
― Você tem uma bela estrutura óssea, sabia? ― Franziu a testa.
― Isso foi um elogio? ― zombou.
― Foi. Você tem uma postura bonita e seu corpo inteiro se move exatamente de acordo com a forma como você planeja. Não é todo mundo que consegue, mas é admirável. ― Riu.
Destrancando a porta, com a mão sobre a maçaneta, voltou-se para mim uma última vez.
― À propósito, meu nome é Kate.
― Matty.
― Boa sorte com a sua garota.
― Ela não é minha garota.
― Talvez ela não seja ainda, Matty. ― Sorriu e se retirou, fechando a porta atrás de si.
Para não ser incomodado, passei a chave pela maçaneta e me sentei na banheira, as pernas dobradas muito perto do meu peito. As palavras de Kate ecoavam na minha cabeça como um grito dado do alto do Everest. Ponderando se deveria mesmo ligar para cheguei à conclusão de que, se não o fizesse, o conselho da mulher iria construir uma cobertura de alto padrão na minha mente e permanecer lá por dias a fio.
Ainda refletindo se era realmente uma boa ideia, automaticamente, meus dedos foram dando toques na tela do meu celular até o Reddit abrir. Rolando as notificações, fui conferindo uma a uma.
Demorou alguns segundos para que a ficha caísse e eu compreendesse a grande movimentação que estava acontecendo há alguns dias.
Um print do último story que fiz em casa antes de viajar aparecia um sem número de vezes em diversas postagens, com as mais loucas deduções sobre onde eu estava e com quem estava, pois, analisando bem, dava para ver um pé e um tecido estampado no canto da imagem. O pé e o vestido de .
Lendo cada uma das respostas às publicações, curiosamente, encontrei um perfil que já era uma figurinha carimbada por ali e que eu sabia exatamente a quem pertencia. !
Querendo saber como proceder ou se havia algo que pudesse ser feito, procurei pelo nome de na agenda e cliquei para lhe telefonar.
Já no segundo toque, a ligação foi recusada. Tentei outra vez e o mesmo aconteceu. Não me dando por vencido, retornei de novo.
― Eu não tenho direito a um minuto de paz? ― quase rosnou do outro lado ao atender.
― Se está recusando minhas ligações é porque está com ele nas mãos, certo? ― zombei, fingindo normalidade, afinal, não queria alarmá-la caso não estivesse sabendo.
― Mas e se eu não quiser atender?
― O que você tá fazendo de tão importante que não pode atender uma ligação urgente? ― Essa era a minha forma de saber sobre ela, sobre seu dia sem ter que perguntar a respeito, sem demonstrar muito interesse.
― Tomando banho.
― Pra você entender o nível de urgência dessa ligação, eu não vou nem fazer comentários sobre o fato de você estar nua e falando comigo. ― Mordi o lábio inferior ao imaginar a água tremulando sobre seu corpo desnudo, a pele arrepiada a ponto de deixar os mamilos duros…
― Então, fala o que é.
― Você contou à sua amiga sobre nós?
― Claro que não. ― A resposta rápida veio como se já estivesse na ponta da língua.
― Como ela sabe?
― A culpa é sua, você sabe disso, né?
― Minha? ― Bom, eu sabia que, em partes, pelo menos, era mesmo. Só não achei que teria coragem de jogar na minha cara tão abertamente.
― Foi você quem postou aquela foto, Healy. Aliás, gostaria de te lembrar que eu só consenti em transar com você porque ninguém ia saber. ― Às vezes, parecia estar brincando, porém o fundo passivo-agressivo na tonalidade que usava não deixava dúvidas de que, na verdade, falava sério. Muito sério.
― Era a porra de um pé, .
― E você achou mesmo que as suas milhares de fãs não iriam entender isso como um ‘meu Deus, ele tá namorando de novo ou comendo a cidade toda?’ Por favor. Ou você é muito burro ou muito ingênuo. ― Calou-se por segundos e voltou a falar: ― Sabe o que é pior? Nem adianta você apagar porque elas, assim como , já tiraram print, salvaram, enviaram para todos os grupos e páginas possíveis.
― Você vai colocar a culpa só em mim, então? É isso?
― Sim. ― Até conseguia visualizar a cara de deboche que fizera ao afirmar. ― Se você me dá licença, eu estou no meu momento de relaxar e tomar banho.
― Você vai desligar? ― Estava puto com todas aquelas acusações. Mais puto ainda por não ver enxergar no horizonte uma solução. Entretanto, nada chegava aos pés de me deixar mais puto do que a possibilidade de não querer mais falar comigo.
― Você espera que eu faça o que? Sexting?
― Não é uma má ideia. ― Um sorrisinho se formou no meu rosto.
― Caralho, não sei nem por que eu ainda pergunto se já sei a resposta. ― Ouvi sua respiração soar bem alta. ― Boa noite, Healy.
… ― Tentei impedi-la de fazer o que ia fazer.
― Boa noite. ― Afiada, desligou na minha cara.
Isso não vai ficar assim!
Redisquei seu número e, surpreendendo a um total de zero pessoas, ninguém mesmo, caiu direto na caixa postal. Que desgraçada!
Possesso, decidi que não gastaria mais uma noite pensando em e seus belos olhos castanhos. Ou em seu corpo firme e quente. Ou nas curvas discretas que seus lábios faziam quando dava um sorriso de mil significados…
Levantando-me, parei em frente ao espelho, lavei o rosto, arrumei os cabelos, abri os primeiros botões da camisa e saí do banheiro.
De volta ao primeiro andar, aceitei todos os drinks que apareceram na minha frente, dancei com algumas pessoas diferentes e mantive meus olhos abertos em busca de algo em específico. Ao avistar algumas pessoas próximas a bancada da cozinha, bebi o último gole da minha cerveja, largando a garrafa em qualquer lugar a caminho de onde queria chegar.
― Tem alguém vendendo por aqui? ― Apontei com o queixo para as carreiras de pó sobre o mármore, onde as duas mulheres à minha frente, vez ou outra, debruçavam-se sobre.
― Tinha. Ele geralmente vem só no começo da festa e vai embora. ― Deu uma breve coçada no nariz.
― E você tem uma reserva pra me vender? ― As duas se entreolharam por alguns segundos.
Algo aconteceu durante aquele tempo, visto que ambas começaram a sorrir. Passando a língua pelos lábios, a mulher que antes estava em silêncio, acenou com a cabeça na direção da bancada.
― Toda sua. ― Estendeu a nota em forma de canudo para mim.
― Sério? ― Aceitei, vendo seu olhar retornar para sua amiga.
Não havendo uma nova resposta de ambas, entendi aquilo como um “sim”. Encaixando o canudo em uma das narinas, tapei a outra com o dedo e aspirei uma carreira inteira de pó. Inclinando a cabeça para trás, funguei e cocei o nariz, sentindo uma leve irritação.
De repente, as mulheres pareciam muito mais perto de mim do que antes. Pondo as mãos em meu rosto, a mais alta me beijou. A boca quente, úmida, exatamente como estavam suas costas, muito provavelmente, porque o pó estava batendo.
Sentindo seu braço se arrastar sobre o meu, o corpo da outra mulher se chocou contra nós. E, quando menos esperei, estávamos em um beijo triplo.
Era uma confusão, uma bagunça. Já não sabia mais nem quais lábios e língua me pertenciam. As mãos estavam emaranhadas em todos os corpos ao mesmo tempo, tanto que senti dedos em meus cabelos, na minha bunda, no meu peito. E eu nunca quis tanto ter mais mãos e mais dedos na minha vida, assim poderia agarrar e segurar, apertar, acariciar e apreciar tudo.
Sem sairmos daquele canto, procuramos por bebidas, preparamos mais carreiras e dançamos juntos.
Não sabia seus nomes assim como não sabiam o meu e isso não nos impediu de nos divertirmos nas muitas horas que se seguiram.
Por terem comprado uma quantidade relativamente grande de pó, conseguimos usar repetidas vezes ao longo da noite, intercalando com cigarros e algumas cervejas quentes que haviam ficado do lado de fora da refrigeração.
Sem certeza de quantas horas já tinham se passado e completamente bêbado, segurando nas mãos de ambas as mulheres, subimos as escadas rumo a um dos quartos. Empurrando-me contra a cama, caí de costas e a mulher mais alta subiu em mim, beijando-me outra vez. Sua amiga sentou-se em uma poltrona do outro lado do quarto e acendeu um cigarro.
Abaixando o quadril, começou a esfregar suas partes íntimas em mim, fazendo-me suspirar.
Mesmo adorando a provocação e ficando de pau duro muito rápido, sabia que não estava com a menor condição de transar com quem quer que fosse, pois 1) meu coração batia muito forte, o que me deixava ofegante com muita facilidade, e 2) sem a menor dúvida que eu não conseguiria manter um tempo razoável caso houvesse penetração, então, era melhor nem tentar.
Introduzindo uma mão dentro de seu short, escorreguei-a até o meio da suas pernas para ir de encontro ao seu clitóris.
Desviando a boca da minha, manteve nossos rostos colados, a respiração escapando em meio aos seus dentes enquanto me sentia tocando-a. Deslizando dois dedos para sua vagina, passei a entrar e sair devagar. Aproveitando a posição em que estava, começou a mexer o quadril no intuito de esfregar o clitóris na palma da minha mão.
Sob os olhos atentos de sua amiga, não queria que aquilo durasse mais que o necessário, afinal, plateia não era o meu elemento favorito durante o sexo. Acelerando a velocidade que a penetrava, a ouvi gemer mais e mais alto.
Um gemido escandaloso e até meio vulgar. Não era como se estivesse realmente sentindo intensamente, parecia mais que estava, sei lá, performando para a nossa espectadora.
Quando chegou ao orgasmo, tirou minha mão de dentro de sua roupa, levantou-se e ajeitou novas carreiras de pó sobre a mesa de cabeceira, porém cheirou apenas metade. O resto foi capturado pela ponta de seu dedo molhado e passado na gengiva.
Imitando seu gesto, esfreguei uma parte na gengiva, entretanto, também cheirei uma carreira inteira.
Cansado, deitei na cama e torci para que houvessem muitas horas até o dia raiar ― o que eu sabia que não tinha.

- x x x -


Fui o último a aparecer para almoçar.
Os cabelos molhados e os óculos escuros devem ter denunciado a Jamie um motivo para me lançar olhares reprovadores ao longo de toda a refeição.
Minha cabeça estava explodindo e eu mal conseguia formular e armazenar pensamentos. A noite passada inteira eram apenas flashes de acontecimentos. Tudo que me lembrava era estar em uma banheira, falando com e, depois, estar masturbando uma mulher, cujo rosto estava enevoado em minhas memórias. Puta que pariu.
― Não me interessa como você está ou se vamos ter que te arrastar durante o dia, mas te quero no ensaio em 20 minutos e não se esqueça que hoje temos show. Sem possibilidade de cancelamento, ok? ― Oborne entregou-me uma garrafa de água. ― Agora, recomponha-se. Ainda são só duas da tarde.
Merda.


#8

Quando eu te vejo o mundo inteiro se reduz apenas àquele quarto
(Don't Delete The Kisses - Wolf Alice)



A raiva que senti de , rapidamente, se transformou em saudades de ouvir sua voz, ficar imaginando suas caretas enquanto falava comigo ou, ainda, dos silêncios aos quais nos submetíamos em linha.
Era engraçado que, mesmo fisicamente distante, conseguia se fazer tão presente em uma única ligação. Debochando de mim, me xingando ou reclamando do que quer que fosse, eu podia senti-la muito próxima.
E aquela era uma noite propícia para querê-la por perto.
Logo após sair de uma entrevista seguida de um pocket show, por mais exausto que estivesse, não tinha sono e, se dormisse, as chances de ter pesadelos com a viagem da madrugada eram enormes. Portanto, decidi ligar para , uma vez que poderia ser a solução para uma noite mais tranquila.
Após algumas poucas tentativas de brincadeira, notei sua ausência de humor e evasão. Não que esse não fosse seu estado comum ao se dirigir a mim, todavia, naquela noite, parecia ser sua única forma de se comunicar comigo. Questionando o que havia acontecido, por fim, a fiz me contar sobre e sua obsessão com o pé em minha selfie, como não parou até chegar a uma resposta e como isso lhe causou problemas no trabalho.
Sabendo que a culpa por aquela situação era inteira e exclusivamente minha, lhe garanti que daria um jeito de consertar. Duvidando que houvesse algo que estivesse ao meu alcance, , por um segundo, também me fez duvidar do que eu poderia fazer, afinal, não tinha a menor ideia do que fazer.
E, ainda naquela noite, ao receber a primeira resposta de Jamie, confirmando que estava acordado, arrisquei um:

“Ainda estamos precisando de um assessor de imprensa?”

“Na verdade, decidimos que não era necessário preencher esse espaço, conseguiremos dar conta da demanda com apenas duas pessoas”

“Mas eu conheci alguém que poderia facilmente ocupar esse cargo”

“O que você ganha em troca?”

“Por que você sempre acha que há algo por trás?”

“Porque sempre tem. Quando se trata de você, sempre há algo por trás!”

“Isso definitivamente não é um tópico a ser discutido agora, mas, se quiser considerar a contratação de alguém, sugiro que seja , aquela repórter do
Repeat Daily

“Ela já está empregada, por que eu a ofereceria um outro emprego?”

“Porque ela é nossa fã, aposto que não só faria um ótimo trabalho, como não teríamos que gastar tempo ou dinheiro com treinamento, já que ela sabe mais sobre nós do que nos mesmos”


Um minuto se passou. Estralando as juntas dos dedos, esperei por sua resposta impacientemente.

“Você tem um ponto. Talvez não seja uma má ideia, afinal…”

“Obrigado”

“Amanhã resolvo isso, ok?”

“Sem pressa”

Bloqueando o celular, procurei pelo meu “estojo mágico”. Ao encontrá-lo, me muni de seda e erva, bolando o baseado que iria fumar antes de dormir. Ouvir a voz de havia me dado a paz de espírito que precisava para descansar, logo, fumar um baseado era só o complemento que me faltava: ter sono para dormir.

- x x x -


Os dias seguintes foram borrões. Como pinceladas molhadas sobre folha sulfite, todos os tons dos acontecimentos se misturavam. Saí mais do que deveria, bebi mais do que deveria, quase não dormi e, de quebra, acabei misturando um monte de drogas que mal me lembrava quais eram.
As marcas de picada em um dos braços e as partes inferiores das minhas narinas assadas denunciavam que eu tinha ido bem além de maconha e ácido.
Na quinta-feira de manhã, encarando meu reflexo no espelho, tive certeza que deveria ter morrido na segunda e meus amigos tinham esquecido de organizar meu velório. Não era possível que ainda estivesse vivo na situação em que estava.
Minha cabeça latejava de dor e meu corpo inteiro parecia ter acabado de ser retirado de um espaço minúsculo, desdobrado e chacoalhado. Meus músculos ardiam e minhas juntas mal se curvavam, tamanho era o desconforto que sentia.
Ainda assim, precisava embarcar junto com outros, visto que voltaríamos para casa. Portanto, tomei dois analgésicos e esperei que começassem a fazer efeito ― ou me matassem logo, qualquer um dos resultados era válido contanto que não sentisse mais dor.
Sentado na poltrona do avião, tentei ao máximo relaxar para pegar no sono. Minha companhia da vez seria Ross e eu não poderia ser mais grato que isso, uma vez que George ou Jamie fariam um sem número de perguntas a respeito do meu estado.
― Ansioso para voltar?
― É, acho que sim. ― Ajeitei o travesseiro de viagem no pescoço e me recostei. ― É sempre bom poder voltar.
― Você tem falado com o Louis nesses últimos dias? ― Meneei a cabeça. ― Prometi que iríamos ao jogo quando voltasse.
― Tenho certeza de que ele está ansioso por isso. ― Sorri.
Por longos segundos, Ross me encarou. Não era uma feição de pena, estava mais para analítica, como se estudasse o que se passava comigo, se deveria questionar se estava tudo bem ou se precisava de algo. Dificilmente, quando se tratava de algo que o preocupava, meu amigo assumia uma posição de enfrentamento. Na maioria das vezes, apenas observava em silêncio e se colocava à disposição sem dizer uma única palavra.
― Você se importa se eu dormir? ― Crispando os lábios, negou com a cabeça.
― Se precisar, me cutuque. Vou assistir alguma coisa, ok? ― Assenti.
Pouco antes do avião decolar, fechei os olhos para tentar dormir, o que funcionou, visto que não tenho mais memória alguma depois disso.

- x x x -


No sábado à noite, munido de um engradado de cerveja artesanal, saí de casa avisando a George que, se tudo desse certo, talvez não voltasse naquela noite. Parecendo entender o que aquilo significava, o homem riu, tragou o cigarro e meneou a cabeça em tom de brincadeira.
Em todo o trajeto, minha cabeça estava dividida. Parte de mim queria muito fumar um cigarro, a outra parte continuava a reafirmar o quanto era importante que me mantivesse longe do tabaco até chegar ao meu destino final. Se tudo desse errado, como bonificação pela tentativa, fumaria meio maço sem peso algum na consciência.
Na entrada do prédio, o porteiro não estava em sua cadeira como de costume, também não haviam moradores por perto para impedir minha entrada. Não sabia o número de seu apartamento e também não queria lhe telefonar, pois isso acabaria com meu elemento surpresa. Olhando ao meu redor, procurei por algo que pudesse denunciar sua posição dentro do edifício. As caixas de correspondência!
Conferindo cada uma das portinholas de madeira das caixas, notei as iniciais dos moradores. Passando os olhos fileira por fileira, vi as letras de seu nome indicando que seu apartamento era o 302 e, antes que alguém visse o desconhecido que não sabia onde a pessoa que visitaria morava, entrei no elevador.
Sua porta ficava ao final do corredor, à esquerda.
Do lado de fora, conseguia ouvir sua voz meio baixa e abafada, logo, ou estava com visita ou ao telefone. Em qualquer um dos cenários, talvez tocar sua campainha chamaria demais a atenção de suas companhias, portanto, bati à porta com as juntas dos dedos.
Demorando a ter um retorno de sua parte, bati de novo e aguardei.
Ao me atender, seus olhos se arregalaram discretamente e, o que quer que estivesse falando, se perdeu em meio ao choque de me ver à sua soleira.
― Mãe, pai, a gente pode conversar amanhã? ― Ah…
― Aconteceu alguma coisa? ― A mulher do outro lado da linha questionou baixo, como se fosse um segredo.
― Ah, não. acabou de chegar aqui. Hoje é noite das garotas. ― Dando o sorriso amarelo mais verdadeiro que já presenciei na minha vida, tranquilizou a mãe. Balançando a cabeça negativamente, contive uma risada.
― Tudo bem. Amamos você. Boa noite, querida. ― A voz de um homem soou, encerrando o assunto.
― Também amo vocês. Boa noite. ― Soube imediatamente que haviam desligado quando sua feição relaxou.
― Mentindo para seus pais descaradamente, ? ― Passei a mão pelos fios de cabelo que caíam no meu rosto. ― Eles não sabem que você costuma receber visitinhas masculinas na sua casa?
― O que você tá fazendo aqui? ― Em qualquer outra pessoa, acharia aquele tom rude, porém, em , sabia que era uma pergunta de verdade.
― Te trouxe cerveja artesanal canadense e não ganho nem um ‘oi’? ― zombei, fazendo-a revirar os olhos. ― Posso entrar? ― Suspirando com os olhos fechados, deu-se por vencida.
― Entra. ― Passei pelo espaço entre ela e a porta.
― Então é assim que seu covil se parece? ― Olhei ao meu redor, conferindo cada pequeno detalhe do ambiente. Tem exatamente a cara dela. Ela não poderia morar em um lugar que se parecesse menos com sua personalidade.
― Covil? Por acaso eu sou algum tipo de vilão? ― brincou.
― Era assim que George e eu chamávamos nossas casas quando éramos adolescentes.
― Pelo amor de Deus, Healy, síndrome de Peter Pan na minha casa não! ― repreendeu naquele tom zombeteiro que, às vezes, me confundia, pois sempre parecia ter um fundo de verdade.
― Não seja sem graça, . ― Dei um sorriso contido.
― Senta. ― Apontou para o sofá com a cabeça. ― E essa cerveja?
― Ah, presente. Podemos abrir agora? ― Ergui o engradado na altura de seus olhos, fazendo-a rir..
― Achei que fosse meu presente.
― E é. Por isso que eu perguntei antes de sair abrindo uma. ― Dei de ombros como se aquilo fizesse o maior sentido.
― Como isso faz algum sentido na sua cabeça? ― Sorri da careta que fez. ― Abre duas. ― Botou uma colherada de sorvete na boca.
― O que estava fazendo antes de falar com seus pais e eu chegar? ― Sempre que conversava com , meu eu mais curioso se manifestava. Queria saber como tinha sido seu dia, que me contasse cada detalhe, se estava bem, o que tinha feito, se havia algo que gostaria de ter feito e não o fez. Tudo.
Sobre ela, tudo era interessante.
― Coisas de garota gostosa. ― Com a colher, indicou o sorvete e a TV.
― É aquele reality com as Kardashians? ― Confirmou. ― Achei que você não fizesse o tipo de assiste isso.
― Você sempre acha um monte de coisas sobre mim, né? ― Inclinou a cabeça, encarando-me.
― Eu tenho uma imaginação fértil. ― Sorri sugestivamente.
― Ah, é? E o que mais você imagina comigo? ― Não consegui segurar o sorriso que cresceu no meu rosto. Negando com a cabeça, desviei o olhar de seu rosto. Imagino muitas coisas, .
Senti minhas bochechas esquentarem, como não sentia há algum tempo. Ficar envergonhado ou tímido não era do meu feitio, ainda mais, no que dizia respeito a mulheres. Passando a mão pelo rosto e, em seguida, pelos cabelos, tentei disfarçar, fingir que aquilo não estava me afetando na quantidade que estava. Sob seu olhar, às vezes, eu me sentia menor, prestes a ser engolido, mas não de um jeito negativo. era o tipo de algoz que sempre lhe faria pedir mais ao invés de lhe fazer implorar para parar.
― Tá me olhando assim por quê? ― Abri uma garrafa de cerveja para ela.
― Nada. ― Franziu os cantos dos lábios para baixo e deu uma golada na bebida.
― Tá calculando na sua mente como me contar que tá caidinha por mim? ― brinquei e ela riu.
― Puta merda, você se acha a última garrafa de champanhe no mercado em véspera de fim de ano, né?
― Bela analogia. Gostei ― debochei. ― Você sentiu minha falta?
― Não ― respondeu sem vacilar.
― Você é muito desalmada, .
― Não é como se você já não esperasse por isso. ― Encolheu os ombros. ― Você sentiu minha falta?
― Sim ― rebati sem pestanejar.
Arqueando as sobrancelhas, a mulher parecia perplexa com a resposta, como se não esperasse algo do tipo vindo de mim.
― Por isso te liguei tantas vezes, te mandei mensagem quase todos os dias… como eu disse, sua voz me acalma. ― Contida, sorriu discretamente, voltando a beber sua cerveja.
Continuei a encará-la, esperando por uma reação, qualquer que fosse. Uma risada, mudar de assunto, ruborizar… todavia, nada além do silêncio veio. Isso também era uma resposta, certo? Ainda mais quando vinha acompanhado do olhar perdido pelo ambiente, como se estivesse ponderando a respeito de alguma coisa.
― Você foi pra bem longe, né? ― Sorri, controlando minhas mãos para evitar tocá-la sem que me desse abertura para tal.
― É, parece que sim. ― Apesar de já ter bebido goles bem grandes, sua garrafa parecia ter bebida infinita, uma vez que sempre recorria a ela.
― O que acha de jogarmos aquele jogo de perguntas? A diferença é: quem não quiser responder vai ter que beber. ― Sim, essa era a minha tática para fazê-la falar sobre si mesma.
― Pode ser. ― Deu de ombros.
― Então, eu começo. Por que não falou a verdade para os seus pais?
― Porque eu sou uma mulher que mora sozinha. Eles ficam preocupados. ― A forma como respondeu fazia parecer que era algo óbvio.
― Sim, mas você poderia ter dito que eu era um amigo. Aliás, é o que eu sou, né?
― Sim, é o que você é. Mas os pais não entendem que filhas adultas recebem amigos homens em casa em um sábado à noite sem segundas intenções. Além do mais, gosto de evitar constrangimentos. ― reservada sempre dá às caras, afinal.
― De que tipo?
― Healy, não é mais a sua vez. ― Porra.
― Pois então faça sua pergunta.
― Você ficou com ciúmes do George naquele dia que ele saiu com a garota ao invés de com a gente?
― Óbvio que sim. Ele é um dos meus melhores amigos. Mas, pelo menos assim, ele não fica dando em cima de outras pessoas. ― Abaixei o tom de voz na última sentença.
― O que disse?
― Nada do seu interesse.
― Você acha que o George dava em cima de mim? ― Inclinou a cabeça em um gesto de curiosidade.
― Não acho. Tenho certeza. ― Repeti seu gesto. ― Ele teria uma chance com você?
― Se tivesse deixado claro no início, antes de você, sim. Por que não? ― Ok, não era isso que eu esperava ouvir.
― Mas e agora?
― Eu não costumo ficar com amigos ou parentes de alguém que já fiquei. Gosto de cortar os vínculos ao máximo. ― Ótimo.
― Então por que a gente continua se vendo? ― desafiei-a, querendo saber se isso a desconcertava de alguma forma, por mínima que fosse.
Aparentemente mordiscando a parte interna da bochecha, franziu os lábios em um movimento involuntário. E, então, finalmente chegou ao fim de sua cerveja.
― Ok, entendi. ― Contive uma risadinha, passando a língua pelos lábios.
― Aliás, como você sabia o meu apartamento? E como passou pelo porteiro? ― Mudou de assunto.
― O porteiro não estava quando cheguei e sua caixa de correio é a única que tem as suas iniciais.
― Esperto. ― Arqueou uma das sobrancelhas.
Fitando-a, vi o exato momento que mudou sua postura, passando a se mostrar mais firme, como se eu não mais a intimidasse. Por mais que gostasse daquela atitude, também queria saber o que se passava em sua cabeça sobre nós, como se sentia. Era tão difícil assim deixar explícito o que pensava respeito dessa relação?
― O que é?
― Por que você faz isso? Digo, nunca assume o que sente.
Jogando as costas contra o encosto do sofá, quebrou nosso contato visual.
― E o que você espera que eu diga? Estabilidade emocional nunca foi o meu forte.
― Nem o meu. ― Ri. ― Mas é engraçado como temos tantas coisas ruins e maus hábitos em comum.
― Pelo menos, eu não fumo.
― É, mas, às vezes, bebe igual a um caminhoneiro velho ― debochei.
― É você que tá me influenciando. Eu tinha conseguido beber menos, mas aí conheci você e tudo desandou ― rebatou em um tom zombeteiro. ― Enfim, só pra você não dizer que sou vaga demais e não te respondo, a verdade é que nem eu entendo o que estou sentindo. Às vezes, é como se estivesse em uma experiência extracorpórea, onde vejo toda a minha vida acontecer de um lugar em que eu não sou eu, que não estou vivenciando essas coisas. E sabe por que continuo aceitando te ver? Porque gosto disso, dessa sensação de dúvida sobre o que vem depois, essa aura de perigo em que a qualquer momento podemos ser pegos. Faz com que eu sinta que a vida vale a pena, entende? ― Assenti, pois, por mais estranho que fosse, compreendia cada palavra. ― Desculpa.
― Pelo que?
― Do jeito que eu falei, parece que eu tô te usando.
― Se você tá me usando ou não, eu não sei, mas eu realmente não me importo. ― Sorriu abertamente, parecendo satisfeita com a resposta.
Inclinando-me em sua direção, com o rosto apoiado na mão, voltei a olhá-la fixamente. Gostava de vê-la bem de perto. Ali, bem diante dos meus olhos, sorrindo, parecia ter rejuvenescido uns 10 anos. Acho que é assim que você se sente quando se permite falar e sentir algo.
era o tipo de mulher onde sua beleza residia nos detalhes. Os traços suaves do rosto eram harmoniosos. As sobrancelhas eram perfeitamente alinhadas e combinavam com seus olhos espertos. De perto, a linha em meio a testa ficava perceptível e mostrava que já havia marcado muitas preocupações. Os lábios escuros não eram grandes nem pequenos demais, pareciam ter sido feitos sob medida para construir aquelas feições. O cabelo era a moldura perfeita para a obra de arte que chamava de rosto.
Ela ainda era a mesma mulher deslumbrante de sempre.
Não sei se não notou que sua cerveja já tinha acabado, mas levou a garrafa novamente aos lábios. Deve ter bebido só as últimas gotas.
― Vem. ― Ficou em pé, chamando-me com um gesto.
― Pra onde?
― Até parece que você não sabe onde, né, inocente? ― Se ainda haviam dúvidas a respeito de seu convite, todas se acabaram assim que vi o sorriso que me lançou.
― Achei que você tivesse dito que aquela era a última vez. ― Largando minha garrafa no chão, levantando-me também.
― Acabei de mudar de ideia. ― No fundo, acho que nós dois sabíamos que aquela era uma mentira deslavada, mas tudo bem.
Em seu quarto, não houve tempo ou espaço para hesitações e meias palavras. Não havia fome ou saudades que não pudesse ser saciada.
Suas mãos eram tão rápidas e hábeis com botões que, antes que pudesse pensar em ajudá-la, já tinham aberto minha camisa e já estavam concentrando esforços nas minhas calças.
Parando de me beijar, franziu a testa, em uma expressão que soava bem irritadiça.
― Pelo amor de Deus, Healy, pra que usar roupas tão difíceis de tirar quando vem me ver? ― Rindo, abri os braços como um manequim, esperando que terminasse o que havia se proposto a fazer. ― Isso não é nem um pedido, é uma ordem: não apareça mais na minha casa com peças que demorem mais de cinco segundos para serem tiradas do corpo. Se fizer isso, você não passa nem da porta. ― Semicerrando os olhos, me intimou e eu quase gargalhei.
― Entendido, capitã. ― Tirando as pernas de dentro da peça, joguei-a em qualquer canto.
Deitando-nos na cama, mal podia esperar para cobrir seu corpo inteiro de mim. E, ainda assim, tinha a sensação de que não seria o suficiente.
Gostava de como era intensa em tudo o que fazia. Com ela, não haviam meios termos, meio tesão, meias vontades. Era tudo ou nada. Se me pressionava contra seu corpo, era para quase nos fundir. Se me beijava, era para me absorver. Se gemia, era em alto e bom som.
E a conexão entre nós era tão boa que sentia que poderíamos falar coisas que normalmente seriam bem broxantes, como o fato de ter admitido que a maioria dos caras com quem transou achavam seus peitos bonitos. Também pudera…
Com ela, tudo ficava quente. Fervendo. Eu mal sabia diferenciar a temperatura do seu ou de meu corpo. Assim como nossos gemidos se confundiam. Talvez estivéssemos equalizados na mesma frequência e, aos poucos, ganhando tonalidades só nossas, em uma sintonia só nossa.
Após o orgasmo, me deitei ao seu lado, ouvindo o som de sua respiração descompassada, que era como música para os meus ouvidos. Ao olhá-la, percebi que estava sorrindo. Perfeito!
Em uma breve troca de palavras, decidimos tomar banho antes de deitar outra vez ― apenas o banho! Por isso, fui para o banheiro enquanto a mulher pegava toalhas em seu armário.
Já embaixo do chuveiro, molhava os cabelos com a água fria, a fim de espantar o suor e o calor que me faziam grudar. Quando adentrou no box, deixei-a se molhar também. De pálpebras cerradas, passava as mãos pelos cabelos, o que fazia seu tronco se esticar de leve, dando uma belíssima visão de seu corpo desnudo.
Tateando o azulejo, procurava por algo. Quando me disse que era o shampoo, lhe passei a embalagem.
― Posso lavar o seu? ― Demorei alguns segundos para assimilar seu pedido. ― Por favor? ― implorou.
― Ok. ― Encolhi os ombros, cedendo.
Virando de costas para ela, senti seus dedos finos adentrando por entre meus fios, massageando meu couro cabelo com zelo, bem devagar. Um arrepio percorreu minha espinha. Fazia algum tempo que não compartilhava momentos assim com alguém, porém não me lembrava de sentir tanto carinho ou cuidado da outra parte quanto estava sentindo com .
― Você tem, tipo, fetiche com cabelo? ― brinquei.
― Não, mas eu gosto. E seu cabelo é lindo, só precisa de uma boa lavada e uma boa hidratação.
― O que você quiser fazer.
― Você conhece a palavra do creme para finalizar o cabelo cacheado? Se não, deveria. ― Virei-me para ela.
? ― Seus olhos estavam fixos nos movimentos que continuava a fazer nos meus cabelos.
― O que?
― Quando é seu aniversário?
― Quer saber se nossos signos combinam? ― ironizou.
― Eu não entendo nada de astrologia. Só sei que sou áries.
― Eu sou seu paraíso astral, então? ― Parou de mexer as mãos, olhando-me. ― Ah, é? O que isso significa?
― Que nos damos bem. ― Nossa. ― Cabeça embaixo do chuveiro, olhos fechados. ― Segui suas instruções, sentindo suas mãos passarem mais superficialmente pela minha cabeça, apertando as pontas do fios de vez em quando.
― Mas, sério, que dia é?
― 22 de julho, por quê?
― Acho que cai em um dos poucos dias que temos furo de agenda. Que dia da semana vai ser? ― Revirei a memória, tentando lembrar das 50 planilhas que Jamie tinha feito.
― Numa sexta-feira.
― Se eu te mandasse a passagem, você viria comemorar seu aniversário onde quer que a gente esteja? ― Fitando-me séria, tirou as mãos da minha cabeça.
― Por quê?
― Porque eu tô pedindo. Porque quero comemorar com você, mas provavelmente não vou estar aqui. ― Sorri, sentindo um incômodo no estômago ao pensar em estar longe dela de novo.
― Posso pensar?
― Claro. ― Involuntariamente, meu sorriso se fechou um pouco, pois esperava que concordasse de cara.
― Desculpa. Eu não gosto de tomar decisões por impulso ― justificou.
― Eu entendo. Sério. ― Novamente, cedi o espaço embaixo da ducha para que pudesse enxaguar seus próprios cabelos.
Antes de encerrarmos o banho, aplicou condicionador em nossas cabeças.
Enrolados nas toalhas, me entregou uma escova de dentes ainda lacrada e, não contendo a curiosidade, questionei-a sobre o estoque de coisas reservas, como escovas de dente.
― Tenho, ué. Eu troco a cada três meses. ― franzi as sobrancelhas. ― E a geralmente esquece de trazer ou aparece aqui sem planejar, então, tenho um monte de coisas reserva, tipo calcinhas, sutiãs, escovas de dentes… ― Acenei com a cabeça, compreendendo.
De repente, percebi seus olhos fixos em algo em mim ao mesmo tempo que senti algo próximo ao meu lábio superior.
― Que foi?
― Seu… ― Fez um gesto indicando exatamente o local onde eu sentia algo.
― Merda. ― Ao pôr um dos dedos, senti o líquido viscoso e nem ao menos precisava olhar para saber o que era. Ótimo momento para isso acontecer! Prendendo a ponta do nariz entre os dedos, inclinei a cabeça para trás . ― Pode…? ― Apontei para o rolo de papel higiênico.
― Claro. ― Enrolou algumas folhas na mão e me entregou.
Sentando-me sobre a tampa do vaso sanitário, limpei o que já havia escorrido, dobrei o papel e continuei a segurá-lo próximo às minhas narinas até que o sangue estancasse.
Apesar de já ter presenciado coisas piores ― ter me visto usando no banheiro de Amb era pior, né? ―, havia prometido para mim mesmo que não a exporia a nenhuma outra situação, o que, agora, estava comprovado que era relativamente impossível, visto que não tinha muito controle do meu próprio corpo.
― Não precisa se preocupar. Não é nada. ― Resolvi falar ao ver a feição estampada em seu rosto. ― Acontece com mais frequência do que você imagina. ― Talvez se a fizesse pensar que era algo corriqueiro nem mesmo conectaria aquilo com o vício.
Quando o sangramento parou, escovamos os dentes e nos vestimos para deitar.
Lado a lado na cama, encarávamos o teto.
― Matty?
― Oi?
― O que é… isso? ― Virei em sua direção, apoiando o cotovelo no travesseiro para descansar a cabeça na mão.
― Isso o quê?
― Isso. ― Apontou entre nós.
Dei de ombros desajeitadamente.
― Sendo sincera, eu não quero um relacionamento e sei que você sabe das minhas preocupações a respeito de algo entre nós dois, mas preciso saber o que tá rolando.
― Não me importo com o nome que queira dar a isso, mas concordo que é bom saber o que é. E o que você quiser, pra mim, é ótimo. Você não quer um relacionamento? Ok. Você quer só sexo? Tudo bem. Se você quiser só um amigo também, você tem um. ― Sorriu, parecendo aliviada.
― Eu nunca achei que você fosse esse tipo de cara.
― Você acha muitas coisas sobre mim.
Touché.
― Mas a jaqueta de couro engana, né? ― Riu baixinho.
― Você até que é convincente no papel de bad boy. ― Virou o corpo inteiro para mim. ― Que horas você precisa ir embora amanhã?
― Meu voo é ao meio-dia.
― Vai dar tempo de descansar um pouco, então. ― Arrastando-se sobre a cama, fez aquilo que eu não esperava: abraçou minha cintura, enterrando o rosto no meu peito.
― Matty? ― A voz saía abafada contra a minha pele.
― Sim? ― Passei um braço por seus ombros.
― Eu menti pra você. Sobre não sentir sua falta.
― Eu sei. ― Sorri. Finalmente!
― Como?
― Você jamais teria feito sexo comigo de novo se não estivesse com saudades. ― Beijei o fim da sua testa. ― Você é durona demais pra ceder a pressão externa. ― Mesmo que tivesse se encolhido e se escondido ainda mais em meu peito, tive a impressão de que estava sorrindo. ― Enfim, acho que deveríamos dormir. ― Assentiu devagar.
Depois do "boa noite", acariciei suas costas até sentir seu corpo ir amolecendo, indicando que havia pego no sono.
Isso é um sonho, quero continuar sonhando por mais um tempo. Por favor, NINGUÉM me acorde!


#9

Minha vida seria melhor se eu não estivesse envolvido
(please put me in a medically induced coma - carolesdaughter)



AVISO DE GATILHO: O capítulo a seguir aborda temáticas sensíveis referente a consumo e dependência de substâncias químicas.


Na manhã seguinte, acordei um pouco assustado, pois 1) não estava no meu quarto, porém nem lembrei que havia dormido com Isis, o que nos leva a 2) seu lado na cama vazio. Encarando o teto, passei na minha mente o máximo de informações sobre sua rotina das quais estava a par até que me lembrei das corridas matinais. Olhando o relógio sobre sua mesinha de cabeceira, vi que ainda não era nem sete da manhã. E eu já estou acordado?!
Pondo o travesseiro sobre o rosto, queria cochilar, pegar no sono novamente a qualquer custo. Mas não aconteceu. Apesar do cansaço físico, nada era capaz de me "desligar".
Portanto, levantei-me e fui ao banheiro. Despindo-me para o banho, vi o hematoma que se formara em meu ombro devido a mordida que me dera na noite passada. Maldita !
Sorrindo, tomei mais um banho, escovei os dentes, troquei de roupas e fui até a cozinha. Isis não estava por ali para me ajudar a encontrar o que precisava para um café e, muito provavelmente, não ficaria brava se encontrasse a refeição pronta ao voltar. E claro que isso não aconteceu.
Isis estava doce como mel fresco, como se nossa relação nunca tivesse tido uma fase espinhosa antes. Ela até mesmo aceitou comemorar seu aniversário comigo!
Nem conseguia acreditar que algo assim estava realmente acontecendo.
No entanto, o melhor de tudo foi que, antes de me deixar partir, se agarrou a mim forte, como se cogitasse a ideia de me deixar trancado em sua casa pelo tempo que achasse necessário. Depois, segurou meu rosto entre suas mãos e distribuiu beijos por toda minha pele: meus olhos, minhas bochechas, minha testa, a ponta do meu nariz, meu queixo e, finalmente, minha boca.
Os lábios se movimentavam devagar contra os meus, enquanto bagunçava meu cabelo. Senti-a sorrindo vez ou outra, prensando-me contra a parede ao lado da porta. Eu precisava sair em 10 minutos, entretanto, estava quase me esquecendo de toda e qualquer responsabilidade só para tirar sua roupa de novo, levá-la até o quarto e fingir que o mundo lá fora não existia.
Segurando seu rosto pelo queixo, encerrei o beijo com alguns selinhos.
― Eu sei, você precisa ir ― murmurou.
― Que fique explícito aqui que eu não quero, estou indo contra a minha vontade. ― Riu baixinho.
― Não se preocupe. Vai passar rápido.
― Quero acreditar que sim.
― Você confia em mim? ― Arqueei as sobrancelhas, surpreso. Não a imaginava soltando algo assim tão facilmente.
― Com toda a minha vida ― sussurrei de volta.
― Vai passar rápido. ― Selei nossos lábios outra vez.
Ajeitando os amassados das minhas roupas com as mãos, afastou-se e abriu a porta para que eu saísse.
Com apenas metade do corpo para fora, continuou me olhando até que eu entrasse no elevador, dando um último aceno.

- x x x -


Quando cheguei ao aeroporto, estava apreensivo. Sabia que não tinha trazido nada demais além de medicação emergencial junto com os receituários médicos, porém não conseguia evitar me sentir observado. Era como se a qualquer momento fosse ser abordado e levado para a salinha de segurança, onde me encheriam de perguntas a respeito do conteúdo que haviam encontrado nas minhas malas.
Só que, desta vez, não havia nada na minha bagagem.
Nem maconha.
Quando Adam tocou meu braço, sobressaltei de susto e o homem quase riu. Quase. Em um milésimo de segundos, ele percebeu que, provavelmente, não havia motivo para risadas, pois permaneci sério.
Tenso e quieto, embarquei com a banda para mais uma série de shows, encontros com fãs, entrevistas e o que mais aparecesse pelo nosso caminho. Não conseguia focar em nada, nem mesmo no rosto de .
Sua lembrança parecia enevoada em minha cabeça. Mal me lembrava da intensidade do brilho de seus olhos ou do tom exato deles, o que me deixava ainda mais apreensivo, suando frio.
E, na mesma medida que minha mente relutava para focar no que quer que fosse, meu corpo queria apagar. O cansaço era tanto que, aos poucos, as piscadas estavam ficando mais e mais lentas, compridas. Não queria dormir. Entretanto, não sabia quanto tempo mais conseguiria lutar contra a sonolência. Já estava bocejando a cada dez ou quinze segundos e meus olhos lacrimejavam por serem forçados a ficarem abertos. Logo, adormecer deixou de ser uma questão de escolha e passou a ser uma necessidade.
Todavia, quando chegamos em nosso destino, me sentia mais exausto do que antes. Não consegui interagir com ninguém, mal conseguia responder as perguntas que um repórter me fazia na entrevista que havíamos agendado e, aparentemente, os tremores que antes estavam só em minhas mãos, se espalhavam pelo meu corpo inteiro como se fossem calafrios.
Na hora de comer, meu corpo não parecia apto para fazer qualquer tipo de movimento. Até mesmo deglutir estava se tornando uma tarefa árdua, tanto que acabei por desistir para ir me deitar por algumas horas antes do show.
Inclusive, esse show em específico foi um dos piores que toquei na minha vida. As letras que me orgulhava tanto de ter composto estavam se esvaindo da minha cabeça. De algumas, lembrava poucas frases, por isso, pedia ao público para me acompanhar. Precisei soltar a guitarra algumas vezes, pois estava ficando impossível manter a agilidade dos dedos.
Só queria que aquela sessão gratuita de tortura acabasse o quanto antes.
Entretanto, quando chegou ao fim, era hora de uma nova sessão de tortura: a festa pós-show promovida pelo contratante do evento como uma espécie de meet & greet. Sendo assim, tudo que eu mais queria ― voltar para o hotel e dormir para esquecer que aquela noite tinha existido ―, não aconteceria tão cedo. Por ser um compromisso de agenda, não havia a menor possibilidade de fugir dele. No máximo, conseguiria despistar a todos e partir mais cedo.
O que eu fiz tão logo vi um casal injetando no banheiro.
E eu nunca senti tanta vontade de me enturmar em uma festa quanto naquele segundo. No entanto, tudo que fiz foi me desculpar, fechar a porta e ir embora.
Do lado de fora, após acender um cigarro, mandei mensagem para George avisando que não estava bem e precisava descansar. Questionando se necessitava de algo, Daniel ainda me pediu para avisar Jamie que estava voltando para o hotel sozinho, o que eu fiz. O empresário, por sua vez, não me respondeu, o que só poderia significar que talvez já tivesse passado da conta na bebida também e não seria eu que estragaria isso.

- x x x -


Dois dias mais tarde, eu continuava acordado como se tivesse cheirado meio quilo de pó, bebido um estoque inteiro de vinho e terminado a noite sendo atropelado por um caminhão. Não conseguia cagar há uns três, os tremores estavam ficando incontroláveis e totalmente perceptíveis.
A aquela altura eu sabia exatamente que todos aqueles sintomas só podiam ser uma crise de abstinência. Aliás, uma das mais horríveis. A situação estava ficando tão crítica que seria capaz de usar qualquer coisa que me fizesse parar de tremer e me mantivesse um pouco mais atento por cinco minutos que fosse.
Eu tinha aguentado mais do que das outras vezes e já me considerava vitorioso, por isso. Todavia, nem a imagem de vindo a minha cabeça a cada instante estava me fazendo desistir da ideia de procurar por alguém nas redondezas que vendesse pó.
Sabia que a algumas quadras do hotel, George havia comprado erva em um bar. Segundo ele, para o bartender te atender era necessário dizer que queria uma banana split com cauda. E foi exatamente o que eu fiz, quando sentei em frente ao balcão vazio.
― O que exatamente você quer? ― murmurou, secando um copo.
― Umas dez gramas de pó ― respondi no mesmo tom.
― 700 paus.
― Não tá meio caro? ― Franzi uma das sobrancelhas.
― Vai querer ou não?
― Aceita cartão?
― Não parcelo.
― É à vista mesmo.
― Vou pegar. ― E adentrou uma porta à sua esquerda.
Ao voltar, me fez passar o cartão na máquina para cobrar o valor que lhe devia e, logo, que a transação foi concluída, empurrou o pacote sobre o mármore na minha direção. Guardando-o no bolso, agradeci e saí.
Teria um show ainda naquela noite e precisava me preparar mesmo que minimamente para aguentar.

- x x x -


Antes de subir ao palco, tudo o que poderia ter dado errado, deu. A água do camarim acabou, sem querer, queimei o polegar no isqueiro e, ao que tudo indicava, estávamos com um problema técnico em uma das alas de saída de som da arena. É, era um péssimo dia para se estar vivo.
Sabendo que não iria conseguir tomar banho antes de entrar no palco, escolhi a roupa com a qual me apresentaria e comecei a me trocar por ali mesmo, visto que só a banda estava presente.
― Que é isso no seu ombro? ― Ross se aproximou, cutucando o hematoma que já estava começando a esquecer que estava ali.
― Nada.
― Cacete, ela arrombou seu ombro! ― George arregalou os olhos.
― Espera, isso foi uma mulher? ― Adam se intrometeu.
― Por que, de repente, eu pareço ter virado a atração principal do circo? ― contestei.
― Porque você nunca apareceu com uma tão grande. Não sei quem é ela, mas essa garota tem meu respeito ― zombou Ross.
― A sensação que fica é que você é o único que está sabendo aproveitar essa coisa de ser famoso da forma certa.
― Não se preocupem. Eu aproveito por nós quatro ― debochei.
― Ainda mais quando voltar para casa, né? ― Daniel passou um braço pelo meu ombro enquanto eu abotoava a camisa.
Lançando-lhe um olhar repreensivo, o homem riu, porém nossos amigos se entreolharam. Maldito Daniel!
Ao terminar de me arrumar, faltavam ainda quase 20 minutos para o início do concerto, o que fez meus amigos saírem para fumar e já irem conferir o final do show da banda de abertura.
Já eu, aproveitei o momento só para me trancar no banheiro, organizar duas carreiras de pó sobre o tampo da pia e cheirá-las, coçando as narinas em seguida.
Lavando qualquer resquício dos meus atos antes de desocupar o cômodo, dei alguns tapinhas no rosto, ajeitei a roupa e saí.
E nenhum show foi tão enérgico quanto aquele. Eu gritei, cantei, toquei o máximo que pude. Podia sentir a euforia de estar em frente ao público correndo em minhas veias. Uma sensação muito física, muito material. Era como se nada nem ninguém pudesse me parar, me impedir de fazer o que eu queria.
A resposta do público, como sempre, era muito positiva, uma vez que todos participavam à sua própria maneira, chorando, cantando, gritando, pulando, dançando.
Finalizando o show, agradecemos a plateia, deixamos os instrumentos nos devidos suportes e nos encaminhamos para as coxias, onde os roadies nos ajudavam a nos desfazer dos fios dos retornos. Parado ao meu lado, Adam pôs a mão em meu ombro, dando um leve aperto.
― Foi um bom show, cara.
― Eu também achei. ― Sorri.
― Você vai pra festa com a gente?
― Festa? Que festa?
― Os caras tavam a fim de ir numa festa de uma balada aqui perto.
― Acho que eu passo. ― Deu de ombros.
― Caso mude de ideia, vamos sair daqui em uma hora.
Enquanto a roadie tirava o resto dos fios do meu redor e me liberava, ponderei sobre a possibilidade. Estava cansado, precisava dormir, mas sabia que não iria conseguir. A fissura estava começando a aumentar, logo, se fosse para a festa iria acabar bebendo e, consequentemente enchendo o rabo de droga. Em uma quantidade que talvez não usaria se estivesse sóbrio.
Naquele momento, pondo e tirando o cigarro dentre os lábios, com os braços cruzados em frente ao peito, o saco de cocaína no bolso de trás da minha calça parecia pesar uma tonelada.
Ao mesmo tempo que parte de mim dizia que estava tudo bem se eu cheirasse mais um pouco, que não era nada que eu já não tivesse feito mais cedo, a outra parte me lembrava constantemente que não podia fazer isso. Onde ficava todo o meu progresso dos últimos dias? Já tinha usado para tocar, então, não deveria ir para uma festa e me trancar num quarto para usar.
Aquele estoque deveria ser apenas para emergências, certo?
Eu conseguia aguentar. Estava tudo sob controle. Já tinha parado uma vez e conseguiria parar de novo, era só tentar.
No entanto, entre um cigarro e outro, meu corpo aparentemente não me obedecia mais, fazia somente as próprias vontades e, por isso, quase uma hora mais tarde, me encontrei novamente naquele bar, sentado em frente ao balcão, aguardando pelo meu pedido: uma seringa e uma dose de heroína.
Não iria à festa, mas isso não foi o suficiente para me impedir de atender aos meus próprios impulsos.
E essa não foi a única nem a última vez que algo assim aconteceu.
Durante a semana, mesmo em outros países e cidades, sempre dava meu jeito de usar algo, fosse para fazer os shows, fosse para dormir. Vivendo sempre à beira do colapso. Agitado demais ou sonolento demais, perdendo detalhes dos dias, dos trabalhos, dos amigos. A única coisa que nunca me escapava os olhos e os dedos eram as mensagens de .
De pouco em pouco, não estavam chegando na mesma quantidade que antes e sempre em horários que não podia responder, seja porque estava e apresentando, seja porque estava dormindo. Às vezes, chegava a soar como se a mulher estivesse tentando me evitar.
Seria só impressão minha não fosse a ligação esquisitíssima que havíamos feito na noite anterior.
Assim que confirmei minha agenda das muitas semanas de show que ainda teríamos pela frente, como combinado, comprei sua passagem e decidi lhe telefonar para avisar.
Todavia, parecia distante. Ou melhor, tentando manter distância. A voz baixa que me dava apenas respostas curtas não deixava dúvidas. Mentiu estar cansada, quando, na verdade, eu sabia que havia algo a mais que não estava me contando.
estava fazendo de tudo para aquela ligação não durar mais do que o necessário, então, atendi seu pedido prontamente, me colocando a sua disposição quando estivesse pronta ou quisesse falar sobre o que lhe afligia. E, em consequência, até me esqueci de lhe avisar que, em sua visita à minha casa, tinha deixado para trás uma bolsinha com seus remédios.

- x x x -


Na semana seguinte, em mais uma de minhas noites solitárias pós-show, vi meu celular tocar, fazendo o nome de brilhar na tela intensamente.
, oi ― atendi.
― Oi. Você pode falar agora? ― Sua voz soava insegura do outro lado.
― Claro. Antes de você falar, eu esqueci de te dizer uma coisa: aquela sua bolsinha ficou lá em casa, se você quiser, posso pedir para alguém te entregar.
― É justamente sobre isso que eu quero falar. Bom, mais ou menos.
― Aconteceu alguma coisa? ― Nem desconfiava do que viria a seguir, porém o sangue já estava escorrendo do meu rosto em direção aos meus pés, afinal, nada de bom poderia vir quando usava aquele tom mais firme.
― Eu ainda estava com a sua chave, esqueci de entregar quando você esteve aqui. Aí fui até à sua casa buscar minha nécessaire.
― E achou ela? ― Puta que pariu.
― Achei… mas não foi só isso. ― Ouvi sua respiração soar alta e já imaginava o que estava por vir. ― Se eu te fizer uma pergunta, promete que vai ser sincero?
― Vai bancar a repórter? ― brinquei, tentando despistá-la.
― É sério, Matthew.
― Fala.
― Você tá usando? ― questionou tão baixo que sua voz se comparava à um miado. ― Digo, heroína. Você tá…
havia me encurralado.
Não era o tipo de tópico que eu falaria abertamente em voz alta ou admitiria. Ainda mais para ela, alguém por quem obviamente nutria sentimentos que ultrapassavam o desejo e a amizade.
― Talvez você tenha vindo pronta pra ouvir uma mentira, mas eu não vou fazer isso com você. Como eu disse durante os dias que você me entrevistou, eu sou um viciado, . Nada mudou desde aqueles dias até hoje. ― Suspirei, batendo o cigarro na borda do cinzeiro. ― Talvez te doa muito ouvir isso. Tanto quanto me machuca falar isso em voz alta, porém essa é a verdade.
Dei uma nova tragada, pensando sobre o que deveria dizer.
também nada disse, parece que sabia que eu tinha mais a dizer. Quase como uma mãe que espera a justificativa para os atos impensados e violentos de seu filho mais amado.
, isso não muda quem eu sou ou o que eu sinto. O mesmo Matthew que te irritou nos seus primeiros dias, que te fez rir de um monte de piadas ruins, com quem você dançou, que te beijou e com quem você fez amor… é o mesmo cara que tem um monte de drogas escondidas em casa, que foi pra reabilitação e não conseguiu ser curado. Independente disso, eu gosto muito de você. De verdade. Talvez mais do que eu deveria… ― Não havia momento mais apropriado para me abrir a respeito dos meus sentimentos. Se era a verdade que ela tanto queria, eu lhe daria ainda mais verdades. ― Diria até que acho que eu tô me apaixonando por você e não me surpreenderia nem um pouco se fosse isso porque você é assim mesmo. ― Uma risada fraca escapou dos meus lábios. ― Mas eu vou entender completamente se você não quiser mais nem olhar na minha cara.
O silêncio furtou a linha.
Não se ouvia nem um único ruído do outro lado, tanto que conferi a tela do aparelho para ter certeza de que ainda não tinha desligado.
― Você é boa demais pra mim, .
― Isso não é verdade. ― Apesar da voz entrecortada, ouvi o tom choroso.
― É, sim. Você é uma pessoa extraordinária em vários sentidos diferentes. É impossível não reconhecer isso em você. Só queria que soubesse.
― Matty?
― Quê?
― Eu preciso desligar. ― Será que ela tá me dispensando pra chorar em paz?
― Tá tudo bem?
― Eu preciso… é muita coisa pra processar ― confessou.
― Você tá sozinha? Quer que eu fale com a ?
― Não, tá tudo bem. Só preciso… descansar.
― Tem certeza? ― insisti.
― Absoluta.
― Me liga se precisar de alguma coisa?
― Ligo.
― Mesmo que você não queira conversar comigo, me manda mensagem amanhã de manhã falando se você está bem?
― Mando.
― Acho que isso é um ‘boa noite’.
― Boa noite. ― Fiquei esperando-a desligar, o que só aconteceu alguns segundos depois. Acho que também estava me esperando desligar.
Largando o celular sobre a cama, acendi a metade de um baseado que havia guardado no mesmo estojo onde deixava o garrote e a seringa.
Encarando os objetos por mais tempo do que se podia considerar normal, em um ato que misturava impulso e coragem, joguei-os na lata de lixo.


#10

Me assista pegar uma coisa boa e ferrar com tudo em uma noite
(I Think I’m OKAY - Machine Gun Kelly ft. YUNGBLUD & Travis Barker)



AVISO DE GATILHO: O capítulo a seguir aborda temáticas sensíveis referente a consumo e dependência de substâncias químicas.


Conforme os dias foram passando, percebi que mais difícil que admitir em voz alta para outras pessoas que eu realmente tinha um problema com drogas, era me manter longe delas. Não importava o que eu fizesse, onde fosse ou o quanto de força de vontade tivesse, nada parecia capaz de me afastar de todos os meus vícios.
Nada preenchia o vazio e a dor de não ter aspirado duas ou mais carreiras de pó ou de não ter descarregado uma seringa no braço. E, quando falo de dor, não era algo meramente emocional ou psicológico, era físico mesmo.
Meus músculos, minhas juntas, minha cabeça, meus órgãos internos de uma forma geral… tudo doía. Só aliviava quando cedia aos desejos de me anestesiar que me consumiam dia e noite.
Por mais que eu quisesse parar, estava mais que comprovado que só almejar algo não era suficiente para me fazer alcançá-lo. E, pouco a pouco, estava ficando cada vez mais deprimido. Não só com a minha incapacidade de me manter limpo por algum tempo, bem como pela falta de perspectiva de, em algum momento, a sobriedade se tornar algo concreto na minha vida.
Após aquela conversa com ― e algumas que se seguiram ―, tive medo que, quando nos víssemos de novo, algo estivesse diferente ou que ela decidisse que eu não valia seu esforço ou seu tempo. O que se mostrou uma preocupação sem fundamentos, uma vez que, assim que chegou o dia, embarcou no voo cuja passagem eu havia comprado para lhe presentear. Tamanha foi minha surpresa quando recebi sua mensagem informando que estava a caminho do nosso encontro em Paris.
Empolgado com sua chegada, não dormi ao longo da noite, fumei meio maço de cigarro, tomei um banho e rumei para o aeroporto para lhe buscar quase duas horas antes da previsão de seu desembarque.
Quando a vi passar pelo portão, esperando por sua mala com um olhar perdido. Foi inevitável sorrir, observando-a, cuidando da mala ao mesmo tempo que olhava ao redor, como se procurasse por alguém conhecido.
― Perdida, ? ― Abaixei o tom de voz ao pé de seu ouvido para que a conversa ficasse somente entre nós.
― Por que não me avisou que vinha? ― Virou-se, ensaiando aquele tom marrento.
― Queria fazer surpresa. ― Sorri. ― Com saudades?
― A gente pode falar sobre isso em um local que não tenha tanta gente ao redor? ― Puxando a alça da mala para cima, inclinou-a, fazendo as rodinhas deslizarem pelo chão enquanto nos encaminhávamos para a saída.
― Sua primeira vez em Paris?
― Sim. E provavelmente a primeira vez que passo mais de uma noite longe de casa depois de ir morar sozinha.
― Trouxe todos os seus remédios?
― Meu Deus, você é meu enfermeiro? ― rebateu em um tom de risada.
― Tá toda engraçadinha, né? ― Ri.
Antes de entrarmos no carro, coloquei sua mala deitada sobre o banco traseiro. Quando já estávamos devidamente acomodados e seguros dentro do veículo, dei a partida enquanto colocava uma música para ser nossa trilha sonora de volta para casa.
Ao som de Everything is embarrassing, de Sky Ferreira, batia as laterais dos dedões no volante. Já , não muito satisfeita, fazia toda uma performance com olhares sedutores, vidro abaixado, sorrisos sugestivos para a paisagem que passava apressada por nós.
― Você tem um ótimo gosto musical ― iniciei.
― Isso foi um deboche?
― Não, eu falo sério. ― Para entender que não era brincadeira, olhei-a brevemente com um sorriso, voltando a me concentrar na estrada em seguida. ― Já fez aula de música, né?
― Fiz parte do coral da escola no ensino fundamental e meu pai tentou me ensinar a tocar guitarra. Como eu já disse, não deu muito certo. ― Deu uma risadinha sem graça e anasalada.
― Por quê?
― Eu não tenho os dedos tão ágeis. ― Não consegui evitar o sorriso sem vergonha que tomou meu rosto. ― Quê? Não é mentira.
― Eu não disse absolutamente nada. ― Estapeou meu braço sem força alguma.
― Com a cara que você fez, nem precisa dizer nada mesmo. ― Riu.
― Fala a verdade, você tá aí me agredindo, mas sentiu saudades. ― A feição debochada era a resposta que ela não verbalizou. ― Pois saiba que eu senti. Alguém tem que admitir as coisas por aqui, né?
― Pode ficar com esse papel todo pra você. Eu não me importo. ― Cruzou os braços em frente ao peito.
― Mas, voltando ao assunto dos dedos, se você quiser me mostrar qual o problema, posso te ajudar. ― Involuntariamente, tirei a mão do volante para apertar sua coxa, apetitosamente descansada sobre o assento.
― Eu te deixo nervosa assim, ? ― parafraseei-a ao vê-la se remexer.
― Parece que sim, não?
― Você tá cansada?
― Nem um pouco. Ainda bem que você não foi sem noção o suficiente para comprar uma passagem de madrugada.
― Se eu comprasse as passagens de todos os voos que pego, jamais teria que levantar às 3h da manhã pra viajar. ― Eu falava sério.
― Vocês estão hospedados em que hotel?
― Ah, não. Não estamos em um hotel. Como a intenção era que você viesse comemorar seu aniversário, pedi emprestada a casa da minha mãe. ― Suas sobrancelhas se juntaram em sinal de incompreensão.
― Às vezes eu esqueço que a sua família tem esse fator… milionário que muda tudo. ― Apesar do tom de brincadeira, eu sabia que ela falava sério.
― Você preferia um hotel? ― Por um segundo, pensei ter acabado com tudo.
― Matty, por favor, eu ia passar meu aniversário trancada em casa, assistindo comédias românticas, bebendo, comendo pipoca e fazendo máscaras faciais com a . Não que esses momentos não tenham o seu valor, mas há um abismo entre isso e viajar pra Paris, né? ― Ri, sem graça.
Conforme íamos nos aproximando de nosso destino final, mais e mais parecia distraída com a paisagem ao redor. Seus olhos estavam vidrados na janela ao seu lado, olhando tudo que passava rapidamente por nós. Não sabia o que se passava em sua cabeça, mas seria capaz de pagar para saber. Às vezes, ela era como as garotas misteriosas dos filmes, porém sem pretensão alguma de ser.
Depois de estacionar o carro e tirar sua bagagem da parte traseira, entramos na casa.
― Onde estão os outros? ― Seus olhos correram todo o local sem pudor algum, como se estivesse atrás de algum ponto de familiaridade.
― Provavelmente, foram almoçar. Saíram junto comigo e eu pedi para deixarem a casa vazia por algumas horas pra que você pudesse descansar. ― A verdade é que havia despachado todos para as devidas funções que havíamos combinado mais cedo.
ainda não sabia, entretanto, seu presente de aniversário não consistia apenas em uma breve estadia na casa em Paris da minha mãe.
― Então, estamos sozinhos aqui?
― É, estamos. ― Uma espécie de sorriso sacana surgiu no cantinho de seus lábios. Dando passos curtos na minha direção mordiscou o lábio inferior e eu já podia imaginar o que vinha a seguir.
― E onde fica o quarto?
― Lá em cima. ― Apontei com a cabeça.
― Acho que você poderia me mostrar ele, né? ― Deslizou as mãos dos meus ombros até meu peito.
― Você não quer mesmo descansar antes?
― Eu tive mais de um mês pra descansar. Estou revigorada já ― brincou. ― Agora quero outra coisa.
― Se você tá pedindo, quem sou eu pra recusar?
― Esse é o espírito. ― Deu uma risada gostosa de se ouvir.
Não contei tempo e agarrei sua mão, levando-a escadas acima. Nem mesmo me preocupei com sua mala ocupando a sala. O mais importante era finalmente beijá-la, tirar sua roupa, desfrutar de um momento em sua companhia, não importava o quão breve ele fosse.
se preocupava com os mínimos detalhes de tudo, tanto que estava fechando a porta do quarto enquanto minha única preocupação era unir nossas bocas depois de tanto tempo separadas.
― Eu torci tanto pra gente não ficar em um quarto do lado da escada, do banheiro ou qualquer outra área comum ― murmurou contra os meus lábios.
― Por quê? ― Afastei-me para lhe ver.
― Com que cara eu vou olhar pras pessoas depois de ter gemido igual uma cadela quando elas, sei lá, foram buscar um copo de água à noite? ― Retomei o beijo sem acreditar no que ouvia, rindo.
As mãos sempre muito ligeiras de já estavam posicionadas sobre a fivela de seu cinto, a todo custo tentando soltá-lo desesperadamente. Segurando seus punhos, olhei-a nos olhos.
― Espera, espera, espera.
― O quê?
― Deixa eu fazer isso só uma vez? Geralmente, é você quem tira sua própria roupa e, inclusive, você é muito boa nisso porque eu pisco e você já tá pelada.
― São anos de prática tendo apenas um curto espaço de tempo pra fazer o serviço bem feito. ― Piscou um olho. ― Mas vá em frente. Hoje eu deixo.
― Vamos combinar uma coisa. Hoje é seu aniversário, então, eu cuido de você, ok? ― Sorriu provocadora, passando a língua pelos lábios.
― Sabe uma das coisas que eu mais gosto em você? ― Envolveu meu pescoço em seus braços e eu a incentivei a prosseguir, pondo as mãos em sua cintura. ― Você sempre inventa umas desculpinhas muito ruins só pra ficar no controle.
― Não é desculpinha. Eu realmente gosto de cuidar de você.
― Ah é? ― debochou. ― Me mostra como você quer cuidar de mim, então.
Voltei a lhe beijar, devagar, aproveitando o momento. Ao mesmo tempo que, entre nós parecia que tudo permanecia igual, parecia que a situação era completamente diferente. Nós dois estávamos ali, não havia mundo lá fora, não haviam outras pessoas, não haviam problemas. Só havia nós e o tempo parado.
Minhas mãos subiram de sua cintura, pelas suas costas, até alcançarem sua nuca e, consequentemente, seu maxilar, acariciando-o com os dedões. Ainda havia muita roupa em seu corpo e a única forma de sentir sua pele de algodão doce era em seu rosto, por isso, decidi começar a desafivelar seu cinto com calma. Em seguida, sem tirar meus olhos dos seus, me agachei à sua frente, abrindo suas calças e deslizando-as por suas pernas magníficas. As coxas tão próximas do meu rosto chamavam pelas minhas mãos, que as escalaram até alcançarem suas nádegas, que apertei depositando um beijo em seu ventre ao sentir seus dedos adentrando pelos meus fios de cabelo.
Sabendo bem o destino onde gostaria de chegar, minha boca foi descendo rumo sua virilha. Permanecendo ali por alguns segundos, passei a língua próxima a sua roupa íntima, fazendo-a soltar o primeiro gemido.
Observando-a, me ocorreu uma ideia que me parecia apropriada para um momento como aquele, onde estávamos comemorando.
? ― Pus-me de pé.
― Quê? ― O fio de voz soava meio entristecido, manhoso.
― Você já sentou na cara de alguém? ― Com os olhos saltando em seu rosto, sua pele ganhou uma cor rubra que nem imaginei ser possível, além da risada espremida de nervoso que saiu de sua garganta. Ela deve achar que estou brincando.
― Não?
― Pois hoje é o seu dia de sorte. ― Comecei a jogar os travesseiros no chão e me preparar em uma posição confortável para recebê-la sobre mim.
― É… sério?
― Por que eu brincaria numa hora dessas? ― Já deitado, levantei a cabeça para olhá-la. ― Anda logo, mulher. Depois não vai poder reclamar se alguém chegar e te ouvir gemer.
Sem nenhuma roupa inferior que nos impedisse de sermos felizes, ficou de joelhos com uma perna de cada lado do meu rosto. Entretanto, eu via a hesitação em se aproximar mais ou de fazermos aquilo.
― Tem certeza que não vai morrer sufocado durante o processo?
― Eu vou sobreviver e você vai adorar.
― Tem cer… ― Esticando o pescoço, pus a boca em sua boceta, passando a chupá-la. Segurando-a pelo quadril, a fiz se abaixar um pouco mais para que minha boca a alcançasse sem dificuldades.
A todo custo tentava me concentrar em manter meus movimentos constantes e contínuos, ao mesmo tempo que me atentava às suas reações e à minha respiração. Porém eram muitas coisas para se tomar conta. Ainda assim, fiz o meu melhor.
não só parecia ter gostado da proposta, bem como parecia estar tirando somente o melhor da experiência. Apoiando-se na cabeceira da cama, ela gemia, se mexia, puxava meus cabelos e sentia tudo naquela intensidade que só ela era capaz de demonstrar.
Mostrando a ela que não havia forma de me imobilizar, acariciei seus seios, suas coxas, sua bunda sem perder o foco no oral.
Seus espasmos vez ou outra a faziam se afastar de mim, quase me dar uma meia chave de coxa ou me sufocar, mas tudo bem. Tudo valia a pena diante das reações que eu presenciava a cada novo estímulo.
Apoiando a cabeça nos braços sobre a cabeceira da cama, as energias de , aos poucos, pareciam ir embora. Já não se esfregava mais com o mesmo afinco, apenas gemia, cada vez mais ofegante. O calor do ambiente fazia seu corpo suar e, consequentemente, se colar ao meu.
Por mais que estivéssemos grudando de suor, isso não evitava de, vez ou outra, o quadril de parecer perder o rumo devido aos espasmos. Era quase como se tentasse fugir de mim, algo que eu não deixaria acontecer, claro. Para mim, não era trabalho algum tê-la de guiar de volta aos trilhos para que não nos perdêssemos.
Particularmente, eu gostava muito de transar, o que é um fato que todo mundo deve saber. Porém, mais do que o serviço completo, preferia boquetes. Um boquete bem feito era como café da manhã: podia não ser uma refeição tão cheia de pratos principais e elaborados, como o almoço ou o jantar, entretanto, se bem feito, podia te manter satisfeito durante boa parte do dia sem que você voltasse a sentir fome ou tivesse uma queda de pressão brusca.
não era nenhuma rainha da felação. Tampouco poderia dizer que o que sabia fazer com a boca no meu pau era um trabalho exímio. Mas talvez fosse uma das únicas mulheres na qual gostei de passar muito tempo com a cabeça mergulhada entre suas pernas.
Ela sim sabia aproveitar cada toque, lambida, arrepio, sugada…
Fazia até as vezes em que quase me sufocou entre suas coxas valerem a pena!
Com um gemido esganiçado e tentando afastar o quadril de minha boca a todo custo, chegou ao primeiro orgasmo. Dentro do que havia planejado fazê-la sentir, ainda não tínhamos batido a nossa… meta. Guiando sua intimidade em direção à minha boca outra vez, a fiz prolongar o primeiro e, praticamente, emendar um ápice ao outro. Entre apertos, tapas e gemidos entrecortados, gozou pela segunda vez de maneira silenciosa, como se tivesse perdido a voz ou coisa que o valha.
Jogada de costas na cama, me observou tirar a camiseta, me limpar e deitar ao seu lado. Cansada, suada, descabelada: esses eram os adjetivos que aparentemente melhor refletiam quem era pós-sexo.
Em uma breve conversa, a mulher brincou sobre colocar a culpa em mim caso não conseguisse aceitar outro tipo de transa que não a satisfizesse como a nossa. E ela nem deveria. Mulher inteligente, gostosa e boa de cama merecia somente o melhor do melhor e eu, como um bom servo, me recusava a lhe oferecer menos que isso.
Bocejando, por fim, decidiu que era hora de descansar antes de começarmos a programação de aniversário da qual eu a havia informado, que incluía um jantar especial, um passeio romântico onde quisesse ir e qualquer coisa que quisesse fazer ao longo do fim de semana.
Aninhada ao meu peito, pegou no sono minutos depois de um último beijo que lhe dei no alto da cabeça.
Ao perceber seu corpo amolecendo e soltando cada vez mais o peso sobre mim, devagar, saí debaixo dela, fui até o banheiro no meu quarto lavar o rosto e as mãos. Em seguida, busquei por uma nova camiseta e desci rumo à sala para ver se mais alguém já havia chegado.
Na entrada da sala de estar, vi parada à soleira da porta que dava no quintal, apontando para algo.
Diferente do que achava, não era somente ela que havia ganhado uma passagem para aquele final de semana em Paris. Por mais que a conhecesse muito bem, havia alguém que a conhecia infinitamente mais e melhor do que eu: . Sabendo que só conversar sobre como seria uma comemoração perfeita não era suficiente, decidi trazê-la e encarregá-la das tomadas de algumas decisões, como e onde seria a festa, se seria para muitas ou poucas pessoas, quais músicas tocar, que bolo comprar.
― Uau, que eficiência!
― Fui a primeira a entrar em casa e dava pra ouvir a gritaria de vocês dois aqui da sala. Achei melhor arranjar alguma coisa pra não deixar seu irmão e o Adam ouvirem aquela safadeza.
― Não sei se alguém já te disse isso, mas você é uma verdadeira amiga. ― Acariciei seu ombro, rindo.
― Entendi perfeitamente por que você não queria ninguém aqui quando ela chegasse.
― E como estamos nos preparativos? ― Mudei de assunto antes que alguém ouvisse sobre o que falávamos.
― Adam ficou responsável de buscar o bolo daqui uma hora e meia, George ficou responsável pelas bebidas, sua mãe e Ross foram atrás de canapés ou qualquer coisa salgada que se possa mastigar.
― Eu não sei por que ainda não entreguei o controle da minha vida pra você. Tenho certeza de que faria um uso melhor do que eu.
― Fico honrada, mas eu passo essa oportunidade. Já tenho problemas suficientes vivendo só a minha vida. ― Ri. ― Ei, cuidado com essa cadeira! ― gritou ao ver Adam batendo com o pé do móvel em um vaso. ― Se tiver uma lasca que seja aí, Denise vai lascar a minha cara. A gente se fala depois. ― E atravessou uma parte do quintal para ir resolver o que quer que continuasse a acontecer.

- x x x -


― Adam, o bolo já chegou? ― Confirmou erguendo um dedão positivo.
― Você tem certeza de que ela vai acordar a essa hora? Quer dizer, acho que ela tá cansada, né? ― George, por algum motivo, sempre ficava ansioso com surpresas e, por isso, não parava de perguntar a respeito.
― Se ela não aparecer assim que terminarmos, eu tenho um plano.
― Acordá-la e fazê-la te bater até você pedir arrego? ― Ross bebia uma cerveja enquanto depositava a última bandeja de canapés sobre a mesa.
― Ótimo que eu sempre posso contar com o bom humor de vocês, patetas. ― Fingi um sorriso.
Checando se a caixa de som, as bebidas e todos estavam presentes, questionei estava tudo ok para que eu a chamasse para o quintal. Com todos de acordo, resolvi lhe telefonar, uma vez que, se a chamasse pessoalmente, talvez deixaria transparecer que estava aprontando algo. E não havíamos mantido segredo por tanto tempo para estragar tudo no último minuto, né?
A ligação estava quase caindo na caixa postal quando ouvi seus “alôs” roucos do outro lado. Desliguei imediatamente.
Pouco mais de cinco minutos depois, ouvi barulhos de passos na sala e resolvi ligar novamente para incentivá-la a nos procurar ou, ao menos, sair na rua.
Adam já estava com o bolo na mão e todos posicionados esperando-a quando fez uma das portas de vidro da sala correr, revelando sua figura. Animadamente, começamos a cantar parabéns.
Parecendo não entender o que se passava, a mulher ficou imóvel a porta, conferindo o rosto de cada um. Depois de alguns segundos, um sorriso se abriu tímido em seu rosto.
e eu fomos os primeiros a nos agarrarmos a ela, abraçando-a forte para parabenizá-la.
Esquecendo-se por um segundo de que estávamos na presença de parte da minha família, quase me chamou de filho da puta e, ainda por cima, recebeu apoio da minha mãe. O quão absurdo isso é?
― Parabéns, . ― Depositei um beijo no canto de sua boca e a vi se estremer, como se estivesse em estado de alerta pela minha atitude. ― Fica tranquila, não tem ninguém aqui que não saiba. ― Tentei lhe tranquilizar, o que pareceu pouco efetivo diante da careta que fez.
Depois disso, foi uma disputa entre todos os presentes para ver quem era o próximo a abraçá-la, parabenizá-la ou trocar meia dúzia de palavras com a aniversariante. Até mesmo minha mãe e meu irmão entraram na fila. Obviamente, aproveitei a oportunidade para apresentá-los sem o peso de uma formalidade, pois isso certamente faria com que fugisse correndo o mais rápido possível.
Querendo que a festa tivesse realmente um jeito de festa, onde poderíamos beber, comer e encerrarmos a farra a hora que bem entendêssemos, sugeri que fizéssemos jogos envolvendo bebidas, assim não daríamos chance para o tédio.
ganhou a competição de quem tomava mais cerveja sem abrir a lata, porém era péssima em beer pong ― ela tinha a pontaria de um ciclope gigante tentando acertar uma formiga. Ainda assim, todos que estavam na disputa soaram um puco surpresos por terem sido vencidos por uma mulher sempre tão séria que, até então, havia bebido tão pouco em nossa presença. É, eles realmente não te conhecem como eu conheço.
Quando Pearly-Dewdrops’ Drops começou a soar alto pela caixa de som, , que nem estava bêbada, aparentava ser a mais alterada entre todos, cantando alto e dançando como se estivesse no chuveiro. De longe, ela era a pessoa mais divertida que poderíamos levar a qualquer festa. a acompanhou com uma lata de cerveja na mão, cantando a plenos pulmões. Ela ficava estonteante quando se soltava, era uma pena que acontecesse tão pouco e em espaços tão restritos.
Ao som de Heart Of Glass, sumiu do meu campo de visão, minha mãe e Ross dançavam, George e conversavam próximos a mesa de bebidas.
― Acho que ela gostou da surpresa. ― Adam deu um gole em sua cerveja.
― É, acho que sim. ― Virei para ele. ― Você acha que tinha chance de ela não gostar ou de estar disfarçando? ― Deu de ombros.
― Não a conheço tão bem quanto você e a . E, considerando que foi a que organizou tudo, acho que deu tudo certo. ― Sorriu. ― Você gosta mesmo dela, né?
― É, gosto. Não tem mais por que fingir que não, né?
― Não que antes você fingisse muito bem. ― Sorriu. ― Mas eu realmente não imaginava que você fosse capaz de algo assim.
Franzi a testa, sem entender do que aquela crítica se tratava.
― É que, mesmo em relacionamentos assumidos, você sempre pareceu se esforçar ou se empolgar tão pouco. ― Deu de ombros. ― É pra valer agora?
Encolhendo os ombros, repensei sobre a possibilidade. Para mim, era muito óbvio que era algo mais sério. Eu não estava brincando com os sentimentos de em nenhum dos momentos que passamos juntos. E, ali, naquela festa que havia sido minha ideia, cujo todos os gastos haviam sido arcados por mim, não tinha a menor intenção de alimentar algo irreal. Tudo era palpável. Tudo fazia parte de um caminho que estava trilhando e que esperava que nos levasse a algum lugar juntos.
Entretanto, foi com a cabeça inclinada de Adam, procurando pelo meu olhar, que compreendi que não havia respondido seu questionamento. Apenas ponderei um milhão de coisas sozinho, dentro da minha cabeça.
― Acho que essa é uma pergunta que ela poderia responder como ninguém. ― Comprimi os lábios em um sorriso disfarçado.
Assim que pisou no gramado novamente, todos se sentiram forçados a, pouco a pouco, se juntar e dançar.
Conforme bebíamos, não importava mais qual música saía da caixa de som ou quem era o par que te tirava para dançar, o importante era não parar, não deixar o cansaço nos abater. Nada deveria ser capaz de nos impedir. Nem a noite caindo ou a brisa gélida que adentrava pelas nossas roupas.
Nas primeiras duas horas, o bolo já havia acabado ― a tentativa falha de evitar ficarmos bêbados demais antes do tempo ―, sobravam apenas alguns canapés e cerveja que parecia brotar do chão. No entanto, diferente de nós, aparentemente era a pessoa mais sóbria do grupo e havia parado de beber pelo menos uma hora antes de decidirmos que a música seguinte seria a última.
E, ao contrário de como imaginei que seria, não tentou monopolizar minha atenção, tampouco me deu espaço para que fizesse o mesmo com ela. Conversou, dançou, bebeu e se divertiu com todos, inclusive, com minha mãe e meu irmão. Todos estavam inclusos em seu conceito de comemoração.
Todavia, a última música deveria ser nossa. Por isso, a abracei pela cintura e ela se permitiu encostar a cabeça em meu ombro, deixando-me guiá-la ao som de Iris, do Goo Goo Dolls. Com muito esforço, não tropeçava em meus próprios pés ou nos dela. Tinha dormido pouco na noite anterior, bebido mais do que deveria, fumado meio baseado, uma infinidade de cigarros e nenhuma água. Meu corpo deveria estar pedindo socorro, uma intervenção.
― Obrigada por isso ― murmurou.
― Melhor do que passar sozinha, né? ― Beijei seu rosto, tentando fazê-la me olhar. ― Você ficou brava porque contei a eles sobre nós? ― Não deixaria esse assunto morrer antes que tivesse uma resposta a respeito.
― A culpa foi minha. Se eu não tivesse mordido seu ombro, talvez eles não soubessem. ― Minha risada saiu pelo nariz.
― No dia seguinte doeu demais. ― Riu, jogando a cabeça para trás. ― É sério, fui apoiar a mochila e quase chorei.
― É só um recado de onde você tá se metendo. ― Voltou a me olhar e, sem conseguir evitar, olhei para sua boca.
― Parece que o verdadeiro perigo não sou eu, hã? ― Balançou a cabeça, negando. Beijei-a rapidamente, o que não foi suficiente.
Abraçando-a mais forte, beijei-a ao som dos assobios e gritos de todos ao redor. Nada mais importava se eu a tivesse comigo.
Meio cambaleantes, fomos nos recolhendo um a um nos quartos, deixando a sujeira para trás. No dia seguinte, se tivéssemos coragem, faríamos a limpeza do quintal antes que minha mãe surtasse com o glacê pisoteado em sua grama tão verdinha e bem aparada.
Na cama, após uma breve conversa, acabou se entregando para aquele seu sono hibernal, do qual nenhum terremoto era capaz de acordá-la. Muito provavelmente, aquele era fruto de medicação com álcool, por isso parecia tão… desmaiada.
Já eu, não engatava pelo mesmo caminho nem que passasse 15 minutos seguidos de olhos fechados, fingindo estar dormindo, tentando me enganar. Nem estar bêbado ou chapado me fez relaxar. Talvez fosse horas de medidas mais drásticas.
Conferindo a hora na tela do celular, o desbloqueei e fucei por alguns minutos nas redes sociais. Qualquer coisa que me entretesse era suficiente, só não queria ficar com a cabeça vazia. Não havia nada de interessante acontecendo. Nenhum conflito, nenhuma briga, nenhuma exposição, o que é comum quando preciso me alienar.
Bloqueei o aparelho outra vez, deixando-o sobre a mesa cabeceira.
Tampando o rosto com as mãos por alguns segundos, respirei fundo.
Não era a minha melhor escolha, porém, naquele instante, me parecia ser a mais viável.
Olhando para as costas de , seu corpo mal se mexia com sua respiração, de tão profundo que era o “coma” em que estava.
Levantando-me da cama, remexi devagar em uma das minhas malas, em busca do estojo de metal que sempre carregava escondido. Encaminhando-me para o banheiro, encostei a porta, pois seria algo rápido e, não havia chances de ser encontrado naquele curto espaço de tempo em que estaria fora da cama.
Depositando o objeto sobre a pia, abri-o, peguei a colher, o garrote, a seringa, um dos meus isqueiros e o pequeno pacote enrolado. Adentrei a banheira e me sentei, afinal precisava estar mais relaxado para conseguir realizar a aplicação. Abrindo o pacotinho, pus o conteúdo na colher, aquecendo-o com a chama do isqueiro. Ao vê-lo totalmente líquido, com um pouco de dificuldade, consegui pô-lo dentro da seringa, deixando-a com cuidado sobre o meu colo.
Havia colocado uma dose um pouco maior do que o normal, afinal, era minha última e não tinha por que guardar tão pouquinho.
Segurando um dos lados do garrote entre os dentes, amarrei-o em meu braço para que minhas veias ficassem mais protuberantes. Ao ver a que seria furada, posicionei a agulha inclinada em sua direção e furei, aplicando todo o conteúdo lentamente.
Segundos depois, aquela sensação de tranquilidade começou a se abater sobre mim. Era como estar deitado em uma nuvem, flutuando, sendo carregado gentilmente pelo vento. Entretanto, como se uma tempestade tivesse se formado no meu céu cheio de nuvens, uma dor irradiou do fundo do meu estômago muito forte, passando a queimar o esôfago acima.
Antes que me desse conta, vomitei.
Meu corpo inteiro tremia de um jeito que havia experienciado poucas vezes na vida durante crises de pânico. No entanto, em nenhuma delas, tive tanta certeza de estar tão próximo da morte como naquela noite.
Haviam tantas vozes na minha cabeça, que não conseguia focar em uma única, mas tinha plena certeza que todas elas me culpavam pelo que estava por vir. E, por um segundo, antes que tudo ficasse escuro, questionei todas as escolhas de minha vida que haviam me levado até ali.
Talvez a vida não tenha valido a pena, afinal de contas.
Ao abrir os olhos, nos primeiros instantes, imaginei estar sonhando. Todavia, eu não sonharia comigo mesmo deitado em uma maca, com uma camisola que deixava minha bunda de fora e tomando soro na veia, né?
, sentada ao lado da cama, me encarava com olhos aliviados, um sorriso que denunciava seu contentamento estampado nos lábios.
― Onde caralhos nós estamos? ― resmunguei e a vi dar uma risadinha.
― No hospital.
― Que horas são?
― 3h46 da manhã ― respondeu, conferindo o relógio na parede à nossa frente.
― Por que estamos aqui? ― Agora, relutava com o cansaço e com um sono descomunal.
― Acho que devemos falar disso mais tarde, quando você já tiver descansado.
― Mas e você?
― Eu o quê?
― Não tá cansada? ― Negou com um aceno de cabeça. ― Onde estão todos? Só estamos nós dois aqui?
― George, Ross e estão lá fora. Adam ficou em casa, cuidando da sua mãe e do Louis.
― Posso falar com o George?
― Claro. Vou chamá-lo. ― Sorriu de forma doce outra vez e o único pensamento que tive foi que quase não vi aquele sorriso de novo.
― Não vai embora, tá? Volta com ele. ― Beijou minha testa e saiu.
Nos minutos seguintes, fiquei me questionando em silêncio quem havia me encontrado, como havíamos parado ali, se a morte realmente chegou a ser uma realidade depois que apaguei ou se me encontraram antes disso. Além disso, uma das coisas que havia acendido um sinal de alerta na minha mente havia sido a forma como me tratou. Jamais poderia imaginar que sua reação seria de tamanho alívio e conforto, como havia demonstrado.
Quando retornou, veio acompanhada de George, como pedi.
Meu amigo, por sua vez, não aparentava estar aliviado, tranquilo ou feliz. Na verdade, não havia emoção alguma estampada em seu rosto ou soando em sua voz quando disse:
― Como está se sentindo?
― Cansado. Como se tivesse sido atropelado por um trator. ― Tentei ajeitar minha postura. ― O que aconteceu?
― Matthew, já disse pra você que… ― começou, mas o mais alto não a deixou terminar.
, se ele quer saber, eu conto a ele. Você teve uma overdose de heroína na banheira do seu quarto. E sabe quem te achou? A . ― Conhecia Daniel o suficiente para saber que sua reação estava extremamente contida. Em outras situações, talvez eu até levasse uns tapas na cara, assim como quando éramos crianças. ― A pessoa que você trouxe aqui para comemorar o aniversário… você tem noção do que fez? Eu sei que você tem os seus problemas, nós já tivemos essa conversa antes, mas eu quero realmente entender. Não estou nem questionando o fato de você ter usado porque talvez você nem tivesse consciência do que estava fazendo, mas você sabia que ela vinha pra cá, por que comprou e trouxe isso? Por quê?
― Você não entende. ― Foi tudo o que consegui dizer.
No fundo, eu meio que já sabia por que deveria estar em um hospital. Aquela não era a primeira vez nem seria a última. Entretanto, algo em mim me fazia negar, recusar a acreditar que talvez tivesse razão.
Ao mesmo tempo em que me deixava afetar por cada palavra de George e era tomado por uma pontada de raiva crescente no peito, era inevitável não sentir vergonha.
― De fato. Eu não entendo, por isso estou pedindo pra você me explicar.
― George, para… ― assumiu aquela postura apaziguadora, com a mão no braço de meu amigo. ― Chega. Não é a hora de vocês terem essa conversa.
Concordando, o homem se retirou do quarto sem olhar para trás. Era como se estivesse com aversão à minha figura.
Ainda bancando a boa samaritana que não era afetada por nenhuma das merdas cometidas por mim, sentou-se ao meu lado novamente.
― Tá tudo bem? Você quer conversar? ― Pôs a mão sobre a minha, porém a retirei.
Não é justo com ela.
― Você pode me deixar sozinho? ― Em seu rosto, eu via a surpresa.
Os olhos avermelhados quase se arregalando, surpreendida. Nada daquilo era justo com ela. não merecia alguém como eu, que, na primeira oportunidade, fodia tudo, acabava com a festa, quase transformando-a em um enterro, porque era isso que eu fazia.
Não importava o quanto gostasse dela, parecia que nada era páreo para a relação que eu havia estabelecido com meus vícios. Nem a música, nem meus amigos, nem minha família, muito menos ela.
O que havia de errado comigo?
Era tudo que me questionava no entra e sai do quarto que se estendeu até a manhã seguinte.
Não fazia diferença se eram médicos, enfermeiros, minha família ou meus amigos. Nada era capaz de me tirar do torpor no qual o constrangimento e o remorso haviam me jogado. Mal conseguia olhar para o rosto de quem vinha me ver. Sobreviver era embaraçoso demais. Talvez eu não merecesse ser salvo. Talvez eu devesse ter sido esquecido naquela banheira até que não desse mais tempo.
A única pessoa que me tirou desse estado chegou na tarde seguinte, pisando duro, praticamente bufando.
― Achei que estivesse ocupado demais para vir a Paris. ― Ajeitei-me na cama.
― Eu estava. Até você quase morrer. Aí tive que cancelar todos os meus compromissos e vir o mais rápido possível. ― Pôs as mãos nos bolsos frontais da calça.
― O que você quer que eu diga? Desculpe por ser uma babaca? ― debochei.
― Parece que nem o deboche morreu. ― Permaneceu com as expressões congeladas daquele jeito sisudo. ― Falei com a médica que está cuidando do seu caso. Você vai ser liberado em breve, mas vamos cancelar os próximos shows para garantir.
― Cancelar? Claro que não. Estou ótimo. Saindo daqui podemos já ir para a passagem de som.
― Você perdeu o juízo?
― E qual vai ser a desculpa que vamos dar, Jamie? A não ser que dizer que eu quase morri seja uma opção.
― Óbvio que não.
― Então, não vamos cancelar. ― Passou a mão na testa, sabendo que aquela era uma batalha perdida antes mesmo do início.
― Garoto, escute… não podemos arriscar que você tenha ainda mais complicações. São só dois shows e você vai poder aproveitar um pouco mais a folga da sua namoradinha. Não era isso que você queria?
― Não é uma questão de querer ou não. Isso não é uma prova de múltipla escolha. Está decidido. Vai ter show, sim.
― Não, não vai.
― Você já se esqueceu completamente do que eu disse sobre você trabalhar para a banda? Você não toma as decisões.
― E nem você sozinho. Se não quiser ter problemas com seus companheiros de banda, pelo menos o show de hoje será cancelado.
Ponderei sobre por alguns instantes.
Havia muito em jogo. Contra Jamie eu até poderia vencer uma discussão, todavia, jamais contra a banda toda. No fim das contas, eu sabia que estava errado e não havia nem por que continuar a discutir o que quer que fosse.
― O que você me diz?
― Às vezes, eu tenho a impressão que você me odeia muito, só não diz nada abertamente, pois pagamos o seu generoso salário.
― Às vezes, você pensa demais, Matty. Tente descansar, ok? ― Saiu do quarto sem que eu pudesse pensar em rebater.
E, antes mesmo que me ajeitasse novamente na cama, mais uma pessoa entrou de supetão, a postura rígida, quase gritando:
― Que porra, Healy? ― Sobressaltei. ― Você vai fazer show? Você tá ficando louco, é isso?
― Eu preciso fazer, está na nossa agenda ― respondi como se fosse a única resposta possível.
― Você quase morreu, caralho! ― O rosto de estava rubro como nunca. A força que ela está fazendo para não gritar na minha cara me comove. ― Você tem consciência disso? Você quase morreu no meu colo! ― Contraí a glote como se fosse engolir, porém minha boca estava seca tal qual o deserto.
― Você quer o quê? Fingir que nada disso aconteceu? Que isso aqui não é um problema? Quantas mais dessa você aguenta, hã? ― Por um segundo, imaginei que fosse me empurrar ou me agredir fisicamente. Talvez suas palavras fossem iguais a golpes com tacos de beisebol dos quais não tinha como me desviar. ― Quantas vezes mais você planeja que sua mãe e seus amigos passem por isso? ― Respirou fundo.
Virou-se de costas, provavelmente, para que não visse as lágrimas que embargavam sua voz ao dizer:
― Eu não sou a favor de culpabilizar e muito menos de tentar manipular alguém para achar que as decisões que ela toma na vida estão erradas ou coisa do tipo. Mas eu não posso e nem mesmo consigo romantizar a forma como você age, como se isso fosse normal. Matty, você tava se debatendo no meio da madrugada no banheiro. Pode ser que você não se lembre do que aconteceu, mas eu nunca mais vou conseguir esquecer. ― Voltou-se para mim.
Desviei o olhar.
Não aguentava mais o peso da culpa de estar fazendo-a passar por tudo aquilo.
não era boa em disfarçar o sofrimento. Ficava estampado em seus olhos, como carimbo em tinta permanente.
― Eu sei que o fato de você não usar na frente de outras pessoas e sempre esconder tudo o mais fundo possível é uma forma de fingir que isso não existe. Mas existe. ― Sentou-se ao meu lado, fazendo-me sentir seu calor mais próximo. ― Tem dias que você tá tão trêmulo que eu realmente não sei como você consegue tocar. ― Pegou na minha mão. ― Todas essas coisas… não tô te falando porque quero te magoar. Você sabe que eu não seria capaz de fazer isso. Até porque quem sou eu pra te falar como você deve viver sua vida. Eu vomitei no carpete da redação quando soube que fui promovida, sabe? ― Funguei, controlando o choro que se apertava na minha garganta e se formava em meus olhos. ― Mas, se quer mesmo viver assim, pelo menos, assuma. Pare de se esconder como se nada estivesse acontecendo e seus amigos não tivessem nada com o que se preocupar.
Abracei-a forte. correspondeu, afagando meus cabelos e beijando meu ombro.
Era a primeira vez que alguém minimamente parecia entender minhas dores. Se não as entendia, ao menos se esforçava para pôr em meu lugar e não fazer com que me sentisse ainda mais envergonhado das coisas que fazia. estava tocando um local muito profundo dentro de mim, era possível que nem eu soubesse a localização exata. Só sabia que era lá onde ficava algo que estava quebrado em mim havia tempos.


#11

Me beije, faça rapidamente, eu estive esperando por muito tempo
(ride the dragon - FKA Twigs)



Depois do fatídico fim de semana catastrófico, a distância me fez perceber que eu podia sim conseguir mudar. Eu tinha família, amigos e uma pessoa que me queria tão bem que, mesmo após todos os acontecimentos, não saiu do meu lado ― metaforicamente, pois fisicamente estávamos longe.
Naquela noite, quase dormi de conchinha para todo o sempre com a morte, o que não parecia uma péssima ideia. Entretanto, considerava que estava vivendo um dos melhores momentos da minha vida e não estava aproveitando da maneira correta. Tinha amor, estabilidade financeira, companheirismo e uma vida confortável. O que mais me faltava?
Ainda não tinha a resposta, porém era exatamente atrás desse algo que eu sabia que deveria ir.
Com a passagem do tempo, não era mais só a falta de Isis que me deixava apreensivo e, sim, seu iminente encontro com Ashley. parecia empolgada com a ideia de estar prestes a encontrar mais um ídolo em breve e, por mais que soubesse o quão maravilhosa seria aquela oportunidade para sua carreira, também entendia que, a depender do depoimento da entrevistada, a repórter poderia não querer me ver nunca mais.
Ashley, com toda a razão, ficou muito magoada comigo. Mesmo que tivesse retomado contato algum tempo após nosso término, vez ou outra, parecia que aquela ainda não era uma questão totalmente superada. Eu havia alimentado dentro dela esperanças e sentimentos que nem sempre foram correspondidos.
Verdadeiramente, por algumas semanas, fui apaixonado por Ash e seu jeito espontâneo que beirava um comportamento pateta. Ela era uma garota bonita, cuja juventude estampava vigorosamente suas íris brilhantes, ousada e sensual à sua própria maneira. Era autêntica, tinha um olhar artístico refinado e muito criativa quando se encontrava sem recursos.
Desde o início Ash sabia que não era a única, porém, em algum momento, nutri dentro dela a expectativa de que poderíamos ser algo além de uma aventura, que construiríamos uma vida juntos. E a verdade era que eu não estava construindo uma vida nem mesmo individualmente, que dirá pensar em algo incluindo outra pessoa. Todavia, em dado trecho do percurso, havia um ruído em nossa comunicação. Ashley achou que poderia me fazer amá-la o suficiente para abandonar Gemma, transformando-a na única diante dos meus olhos.
sabia apenas a superfície de toda a história. Não sabia das mentiras e muito menos da minha irresponsabilidade afetiva para com alguém que deu o seu melhor para mim sempre que estivemos juntos. E, apesar de todo o profissionalismo, temia que a repórter concluísse que não haviam reais motivos para me dar uma chance, para permanecer ao meu lado.
Todo esse excesso de pensamentos trágicos estava me consumindo aos poucos. Estava vivendo todos os dias à base de calmantes e mensagens a todo instante para , no intuito de, em algum momento, fazê-la falar sobre como estava o preparo para a entrevista, se sua pauta incluía algo sobre mim ou coisa semelhante. Obviamente, não estava surtindo efeito. A mulher não me falava absolutamente nada, além de que estava animada e que, enquanto estivesse viajando a trabalho, não iria se comunicar comigo, pois estaria sozinha e precisaria fazer tudo o mais rápido e detalhadamente possível.
A agonia era minha melhor amiga.
Pelo menos até saber o que ambas haviam conversado ou se saíriamos ilesos dessa entrevista.
Não me aguentando, acabei mandando uma mensagem questionando se ela estava bem. Deve ser hora do show. Quase que imediatamente me respondeu com um “tudo bem” e dizendo que me ligaria quando estivesse de volta a Londres.
Jogando-me na cama, bufei e decidi que não havia mais nada que pudesse fazer a não ser lhe esperar ligar.
Para passar o tempo, fiz de tudo. Assisti filmes e alguns episódios de uma série, toquei guitarra, ouvi música, cheguei ao ponto de jogar carteado online. Tudo para o tempo andar um pouco mais rápido. Claro que nada disso funcionou, uma vez que só me ligou na noite seguinte, quando já estava sã e salva em casa, de banho tomado, embaixo das cobertas.
Queria que houvesse uma maneira discreta de entrar no assunto com ela sem que percebesse ou que, no mínimo, não sentisse o cheiro de armação no ar. Claro que isso não aconteceria. tinha o faro apurado demais para cair em algo tão básico assim. Se me respondesse, estaria apenas me dando corda para ver quanto tempo demoraria para me enforcar.
Aquela mulher parecia estar sempre um passo à minha frente.
Durante toda a ligação, soou normal, exatamente como estava antes de viajar, entretanto, não deu grandes detalhes sobre como fora o trabalho, se havia gostado de conhecer Ashley, se haviam se dado bem. Mas a considerar pelo ótimo tom de voz, arriscaria que tudo estava dentro dos conformes, inclusive, no que poderia dizer respeito a mim.
Ao término daquela chamada, mais uma vez, entrei em conflito comigo mesmo. Não era justo da minha parte tentar sustentar uma mentira nessa nova relação que estava construindo com . Ela já sabia o suficiente sobre mim para entender que talvez eu não fosse a melhor pessoa, que não era nem parecido com um santo e, ao meu lado, poderiam haver muito mais dores do que sorrisos. Gemma e Ashley eram as provas vivas disso.
Mas eu também conhecia o suficiente para saber que se apenas me abrisse a respeito das minhas preocupações com ela, com a estabilidade de sua sanidade ao se relacionar com uma pessoa que não podia lhe oferecer isso ― vulgo eu ― talvez não a fizesse reconsiderar dar um passo atrás.
Dentro de havia algo que a fazia permanecer firme, como se seus pés estivessem fincados em um solo muito fértil e houvesse criado raízes ao meu redor. E, ao que podia perceber, não era só comigo. era uma pessoa comprometida com todos. No entanto, não era uma fidelidade cega, que não era capaz de filtrar ou de criticar atitudes com as quais não concordava. A mulher poderia sim dedicar seu apoio incondicional a algo ou alguém, porém só depois de alertar sobre os perigos e as posturas inadequadas.
Esse certamente era um de seus traços mais bonitos. Também era um dos responsáveis por boa parte das cicatrizes que carregava e eu não queria ser mais um a feri-la.
Durante a batalha interna que travava contra mim mesmo, ainda precisava lidar com a fixação que tomava conta do meu cérebro e, consequentemente, do meu corpo também. Havia ― novamente ― decidido que não iria mais me drogar. E, nos últimos três dias, consegui me manter firme no propósito, superando qualquer adversidade, como calafrios, dores de cabeça constante, fadiga, falta de ar, um sono terrível que fazia minhas pálpebras pesarem durante o dia inteiro. Ou seja, além dos problemas que criava para mim, havia os que não tinha mais o menor controle sobre, só me restava na medida do possível lutar contra.
Em troca de algumas poucas gramas de erva e alguns cigarros, consegui com a produção de um dos nossos shows uma cartela de adderall. Não era a minha melhor opção para tentar me manter ativo, mas, naquele instante, era a única. E, apesar dos pesares, me parecia muito melhor que cheirar duas ou três carreiras de pó no camarim, certo?
Obviamente que foi assim que acabei quatro dias a fio acordado, sem a menor perspectiva de apagar, descansar, cochilar.
E, claro, o esgotamento físico não era o único efeito colateral adquirido após o segundo dia. Mesmo que não quisesse, era impossível não deixar a rispidez transparecer em meu tom sempre que me dirigia a outras pessoas, o mau humor me acompanhava desde a hora que encontrava com todos até o momento em que sentava na janela do meu quarto, sozinho, para fumar um cigarro.
Por isso, passei a evitar interagir, principalmente, com a equipe. Qualquer coisa que precisava, mandava mensagem para meus amigos ou para Jamie. Eles já estavam acostumados comigo e, muito provavelmente, sabiam o que estava se passando sem que precisasse me explicar.
Em uma dessas noites, isolado em meu quarto, tentava tirar do papel um riff que pareceu genial na minha cabeça. Todavia, os tremores que tomavam conta dos meus dedos não me deixavam colocá-lo em prática. Se fosse um pouco menos orgulhoso, poderia escrever a partitura e pedir a Adam que o tocasse pela primeira vez para sabermos se funcionava e se encaixava em alguma das músicas nas quais estávamos trabalhando.
Quebrando a cabeça pela vigésima vez, meu telefone tocou. Era .
Eu não estava em condições de atendê-la e tinha plena consciência disso, porém, se não a atendesse, precisaria dar uma explicação. Por mais que não fizesse questão de perguntar, algo em mim me obrigava a responder. Talvez, dentro de mim, um excesso de confiança gritava para que eu deixasse claro que não havia outra pessoa ou que não estava traindo sua confiança de nenhuma forma.
Atendi-a, pondo o celular no viva-voz.
― Oi, . ― Sem parar de tocar, tentei usar meu tom de voz mais neutro possível.
― Hã… oi? ― cumprimentou em um tom hesitante.
― Aconteceu alguma coisa?
― Eu é quem deveria estar perguntando isso. ― A preocupação já dando os primeiros indícios em sua voz. ― Tá tudo bem?
― Completamente bem. ― Quase disse entre dentes de ódio.
― É, eu tô também. Obrigada por perguntar.
― Merda ― murmurei.
― Se não for um bom momento, eu posso desligar.
― Não. Não precisa.
― O que tá acontecendo, então? ― Justamente o que eu não queria que ela questionasse ela questionou.
Logo, o que me restou foi simplificar a frustração e a exaustão que estava sentindo.
― Estou há horas tentando tocar um riff que veio na minha cabeça, mas não consegui acertá-lo nenhuma vez.
― Toca pra mim ― pediu e assim o fiz, errando exatamente na mesma parte que passara a noite inteira errando. ― Já tentou simplificar?
― Mas eu não quero uma versão mais simples.
― Tudo bem. ― Um suspiro soou do outro lado. Talvez você não seja o único exausto. ― O que eu fazia quando estava tentando aprender a tocar era: simplificar acordes e, conforme você consegue ganhar prática com eles, você os altera para formas mais complexas. Diminuir a velocidade também pode ajudar.
Segui seu conselho. Ia dar certo, mas não era esse o resultado que gostaria de obter, o que me deixou ainda mais desgostoso.
― Deu certo, né?
― É, deu ― admiti aquilo que soava mais como uma derrota.
― Tem mais alguma coisa que eu possa ajudar? ― Não respondi. ― Tem certeza que tá tudo bem?
― Não se preocupe. Estou bem. ― Isso não a convenceria, é claro. já tinha certeza de que nada estava bem, mas também não queria falar sobre e sabia que ela respeitaria isso.
― Tem algo que você queira me dizer, Healy? ― Seu tom endureceu. Consegui ver, no escuro do meu quarto, aquela máscara sisuda que assumia do outro lado.
― Acho que seria melhor se desligássemos.
― Ok. Até mais. ― Desligou sem mais insistir.
Largando a guitarra na cama, cobri o rosto. Urrei de ódio.
Não queria agir como um babaca com . Para isso, a solução que encontrei foi justamente agir como um babaca.
É, eu realmente precisava, sei lá, me tratar.
Sentando-me no parapeito de uma janela, acendi um cigarro e permaneci ali.
Por que tudo parecia, de repente, tão difícil, tão inalcançável?
Fosse , fosse o descanso, fosse a cura da qual eu tanto necessitava… tudo estava a milhares de milhas de distância de mim. Mesmo esticando meus braços, meus dedos não chegavam nem perto de tocar tudo que estava almejando. Talvez eu estivesse desejando mais do que poderia querer, algo que não era para mim.
De qualquer forma, ainda assim, precisava me desculpar pela forma grosseira com que havia falado com . Se ela não aceitasse meu pedido, me conformaria. Pelo menos a minha parte estaria feita.
Com o restinho de bateria que ainda tinha, mandei um sem número de mensagens perguntando se estava tudo bem, se poderia lhe telefonar, se podíamos conversar. Seus recibos de mensagens estavam sempre ativados, por isso, sabia quando havia recebido e lido. Contudo, muitos minutos após os envios e não havia nem sinal de vida dela.
Tentei fazer a primeira, a segunda e terceira ligação.
Todas chamavam exaustivamente e caíam na caixa postal. Por fim, decidi deixar um recado para sua secretária eletrônica, o qual eu duvidava muito que fosse ouvir. Ela jamais ouvia.
Talvez ela só precise de espaço, certo?
Com esse pensamento, resolvi me jogar na cama outra vez, fumar um baseado e esperar por um sonho que não viria.

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Na manhã seguinte, abri os olhos com raios de sol que transpassavam os vidros das janelas. Aparentemente, em algum momento da madrugada, consegui cochilar um pouco, porém fui burro o suficiente para esquecer as cortinas abertas.
Como quase em todos os dias, acordei pensando em . Tanto que meu primeiro movimento do dia foi pegar o celular para saber se já havia lido minhas mensagens ou retornado minhas ligações. Nem um nem outro.
Bufei e, contra a minha vontade corporal, levantei da cama.
Pensei em tomar um banho e aí subitamente me lembrei que havia uma banheira no outro cômodo. adora banho na banheira. Sorri com o pensamento e conclui que era uma boa forma de, mesmo distante, me aproximar dela.
Depois de ter preparado uma água quente, com pouca espuma, despi-me e adentrei à banheira, com o celular na mão seca. Antes de me permitir relaxar, redisquei o número da mulher em busca de dois minutos de sua atenção que fosse.
― Alô? ― Ouvi um ofego do outro lado da linha. ― Aconteceu alguma coisa? Você tá bem? ― Não consegui disfarçar minha preocupação, ainda mais quando não respondeu minha saudação inicial.
― Tô bem ― rebateu sem muita margem para um diálogo amigável.
― Você não parece bem. ― Suspirei. ― Olha, , me desculpe pela ligação de ontem. Eu não queria ser cuzão com você, mas não era um bom momento. ― Tomara que ela não queira saber por que não era um bom momento.
― Você só tinha que dizer. É tão difícil assim? Matthew, o mundo não gira em torno de você, logo, eu consigo continuar existindo mesmo se você disser que não pode falar comigo ou que não é um bom momento. ― Suas palavras saíam um pouco entrecortadas pela respiração pesada.
― Você tá ofegante? ― Não consegui conter o sorriso.
― Eu tô correndo.
― Meu Deus, , você fica sexy até irritada e praticando esporte. ― Minha voz saiu mais baixa, quase como se estivesse flertando com ela. Era impossível não flertar com quando a única imagem que tinha na minha mente era seu corpo torneado nas roupas justas que usava para se exercitar.
― Puta merda, Healy. ― Se eu estivesse por perto, talvez tivesse me socado.
― É nesses momentos que é muito triste estar longe de você. ― Seria ótimo ter sua companhia aqui, nessa banheira, comigo.
― Nem tudo pode ser resolvido com sexo, Matthew.
― Mas a gente não precisa resolver nada com sexo. A gente pode só ter bons momentos, certo? ― sugeri. ― Escuta. Realmente sinto muito por ter sido um idiota com você. Foi imaturo e deveria ter te avisado que não era uma boa hora, mas, ainda assim, você me ajudou. Quando eu digo que você é boa demais pra mim, eu falo muito sério. ― Sorri.
― Como você faz isso? ― Sua voz quase saiu como um sussurro.
― Isso o quê? ― Franzi a testa.
― Você me tem fácil demais, Healy.
― Ainda tá brava comigo? ― Voltei a sorrir.
― Você vai ter que me compensar quando nos vermos de novo. ― Um arrepio percorreu o meu corpo inteiro só de ouvir aquele tom sugestivo.
― Mas isso você não precisa nem pedir. Eu faço com maior prazer. ― Deu uma risadinha gostosa. ― Aliás, , você tem planos pro final de ano? ― Por algum motivo, uma ideia me ocorreu, como um raio e, antes mesmo de ponderar sobre, achei que seria ótimo verbalizá-la.
― Por que eu tenho a sensação de que você vai me convidar pra algo?
― Isso se você já não tiver nada em mente.
― No Natal, vou pra casa dos meus pais e, no Ano Novo, eu vou trabalhar, então, não vou poder ficar lá. O que você tem em mente?
― Minha família vem pra Londres pra comemorarmos juntos. Queria que você fosse.
― Uau… ― E o silêncio se fez na ligação.
― Que foi?
― É que… eu sei que já conheci sua mãe e seu irmão e aí tudo deu errado. Mas você não acha que isso é um pouco sério? Tipo, passar o feriado com a sua família… ― hesitava como quem tinha reais motivos para isso.
― Se você tá com medo pela reação deles, meus pais não fazem muito o tipo que coloca pressão ou fica fazendo um monte de piadas sem graça.
― Não é bem isso. É que… volto a perguntar, o que é isso?
― Sabe que eu não tô tentando te forçar a nada, né?
― Eu sei. ― Suspirou meio baixo. ― Eu me sinto mal porque você já me apresentou pra sua mãe, mas nem te falei o nome dos meus pais.
, eu não me importo e entendo que, se você não o fez, é porque tem seus motivos, certo? Além do mais, você pode muito bem ser uma amiga que estava sem ter onde passar o feriado. ― rimos.
Em outras situações, eu me importaria sim de saber tão pouco sobre sua família, de nem mesmo ter ideia de como eram seus pais. era tão reservada que não fazia o tipo que tinha 1001 fotos de família e amigos espalhadas pela casa. Para saber qual era a cara de seus pais seria necessário que ou ela te mostrasse uma imagem ou me apresentasse.
― Sua mãe e seu irmão viram a gente se beijar.
, meus pais são atores. Eles literalmente são pagos pra beijar bocas estranhas e de amigos ― brinquei. ― Tá tudo bem, é sério.
― Posso pensar?
― Quanto tempo você quiser. ― Não era a resposta que eu esperava, mas sempre era melhor ter um talvez ao invés de um não, certo? ― ?
― Sim?
― Já que estamos falando sobre isso, por que você nunca fala dos seus pais?
― Você nunca perguntou nada em específico. ― A resposta parecia simples demais para algo vindo de . ― Não acho que seja o assunto mais interessante do mundo para se falar sobre se a outra pessoa não perguntar nada. Por quê? ― Claro que poderia ser só isso, porém algo me fazia pensar que havia algo que não estava me contando.
― Nada. Acho que preciso te deixar correr, né? Me ligue quando tiver uma resposta, ok?
― Tá. Matty?
― Quê? ― Ficou em silêncio por alguns segundos.
― Não é nada. Estou com saudades. ― A voz meio trêmula do outro lado quase soava como se estivesse se afogando no rio que iria jorrar de dentro dela em lágrimas.
― Eu também estou ― respondi, tentando fazê-la minimamente sentir o que estava sentindo. ― Você sabia que vamos tocar no Reading & Leeds dia 28, né? Se você puder e quiser, poderíamos nos ver.
― Eu queria muito poder. O show de vocês vai ser no dia do meu plantão. Mesmo que eu saia correndo da redação, acho que não consigo chegar a tempo.
― E a tempo de me ver? ― insisti.
Por algum motivo, eu sentia uma necessidade quase física de encontrá-la, de senti-la por perto, de tocá-la. A falta que me fazia doía no meu âmago, às vezes, se pensasse muito sobre, um nó se formava na minha garganta, meus olhos ardiam e minha bochechas queimavam. A distância por um tempo tão prolongado estava me causando profunda tristeza, como talvez eu nunca tivesse sentido antes. É isso que chamam de paixão?
― Eu posso tentar.
― Vou pedir pra te arranjar uma credencial, ok? Venha se puder ― pedi uma última vez, reforçando o quanto queria vê-la.
― Eu vou tentar. Prometo.
― Nos falamos mais tarde?
― Claro. ― Sorri com sua confirmação e desliguei.
Eu tinha total compreensão do que estava sentindo e, se estivesse na minha frente, era provável que não conseguisse controlar o “eu te amo” preso em minha garganta. Claro que sabia também que tais palavras, ditas no momento errado, poderiam acarretar uma situação desagradável, uma tensão no ar e um estranhamento da parte dela.
Em determinados momentos, eu daria tudo para ser o sangue que corre por suas veias ou uma das sinapses para saber o que se passava por dentro, entender seus sentimentos, suas emoções e todas aquelas coisas que não me contava.

- x x x -


Para minha completa tristeza e infelicidade, havia confirmado poucos dias depois que não iria aparecer no festival, pois havia sido escalada para trabalhar no plantão justamente naquele domingo. Aceitando minha derrota, prometi a ela que tentaria arranjar uma folga nos próximos dias para visitá-la.
Tentando melhorar meu humor, George serviu para a banda toda vinho durante nossa passagem de som, o que momentaneamente funcionou. No entanto, ao começar a cantar A Change Of Heart, meus olhos lacrimejaram um pouco ao me lembrar da figura sorridente que estava me fazendo tanta falta. A música não havia sido escrita para , nem mesmo tinha algum conteúdo específico que me lembrava dela, todavia sabia o quanto gostava desta. Inclusive, secretamente, a peguei cantando enquanto lavava a louça algumas vezes, o que foi engraçado.
Entre o fim da passagem de som e nosso show, havia uma quantidade praticamente infinita de horas. Nesse meio tempo, tínhamos até umas três entrevistas agendadas, sendo uma delas com o Repeat Daily. Para minha completa decepção enquanto nos passava os horários de cada compromisso, vi que quem iria representar o RD era Zack.
Tive um breve estalo e resolvi tirar a limpo.
― Só ele?
― Como assim “só ele”? ― entregou sua prancheta para sua assistente e me olhou.
― Ele vem sozinho?
― Zack? ― Assenti. ― Acho que sim, não sei.
― Você não sabe se só ele pegou a credencial.
― Matty querido, eu cuido somente das credenciais da banda, da equipe e possíveis convidados. Não sei sobre outros tipos de credenciais, como de jornalista. ― Pôs as mãos em meus ombros. ― E, se você quer saber se a vem, não sei também. Ela não me disse nada e, se ela não confirmou com você, é provável que não venha.
― Você também não sabe de porra nenhuma, né? ― ironizei.
― Se nem você que come ela sabe, imagina eu que sou uma mera melhor amiga! ― rebateu no mesmo tom.
Fechando os olhos, deixei uma risadinha escapar.
― Relaxa. ― Balançou-me pelos ombros. ― Estou conversando com o Jamie sobre um possível respiro na agenda. Vai dar certo, ok? ― Sorriu.
― Eu sei que já falei isso, mas você é do caralho.
― É, eu sei. ― Abracei-a. ― Agora, vai se arrumar. Vocês têm a primeira entrevista em 40 minutos.
Atendi seu pedido, correndo para o camarim para me arrumar junto com os outros.
E, como já era esperado, as entrevistas foram rápidas e tranquilas, como tirar um curativo quando o ferimento já estava curado. Falávamos sobre o álbum lançado, sobre as portas que haviam se aberto, sobre nossos próximos shows e se já havia algum material novo sendo trabalhado para ser lançado. Entrevistas de dez minutos eram as minhas preferidas, pois não havia tempo a ser perdido com perguntas pretensiosas ou maliciosas, não me dava muita margem para me enfurecer e responder algo que fosse me colocar em maus lençóis. Começavam e acabavam impecáveis, do jeitinho que e Jamie gostavam.
Nossa última entrevista foi justamente com Zack, algumas horas antes de subirmos ao palco.
Como as outras, tinha perguntas breves, básicas e nada muito inovadoras. Entretanto, assim que o homem nos agradeceu pelo tempo e meus amigos foram voltando para o camarim, me aproximei dele.
― Zack?
― Sim? ― Virou-se para mim.
― Você veio cobrir sozinho?
― Ah, não. Eu tenho uma dupla, mas digamos que estamos cumprindo ordens. ― Bingo!
― Você é o parceiro da , não?
― Uau, você lembra disso? ― Franziu as sobrancelhas. Assenti.
― É ela que veio com você?
― É. Por quê?
― Você sabe onde ela está? Eu tentei falar com ela mais cedo e não consegui.
― Se você quiser, vou me encontrar com ela saindo daqui. Você pode ir junto.
― Mas não quero atrapalhar o trabalho de vocês.
― Não vai. A essa hora ela também já deve ter terminado de fazer a última entrevista.
― Então, eu vou. ― Segui-o para fora.
Zack, por já ter finalizado suas obrigações, estava animado para curtir algumas horas de festival e nem mesmo conseguia acompanhar sua linha de raciocínio, o único pensamento que rondava minha cabeça era o que diria quando a encontrasse. Sim, estava com saudades, mas também estava muito chateado por ter mentido que não iria ao festival.
Caminhando em meio à multidão, tentei ao máximo manter os olhos nos meus pés, no máximo, nas costas de Zack, assim conseguiria calcular pelo menos as primeiras palavras que diria a ela.
Claro que nada disso funcionou quando pus meus olhos na figura da mulher, sob a cobertura de uma tenda, bebendo um suco. Automaticamente, todo o sangue pareceu se esvair de sua cabeça quando me viu. estava pálida. Pálida como nunca imaginei que pudesse ficar.
Por mais que estivesse me esforçando para permanecer sério e sustentar a pose decepcionada, por dentro, dei uma risadinha sincera por ter causado aquele efeito ao me ver. Ela já está se sentindo culpada por ter mentido, apenas faça suspense.
Ao me aproximar, questionei se estava livre e poderíamos conversar. até tentou fugir, dizendo que em algumas horas teria uma última entrevista ― o que não tinha certeza se acreditei ou não ―, porém Zack, parecendo compreender a situação, disse que, desde que mantivesse o telefone ligado para se comunicarem, ela estava livre.
Considerando a quantidade de pessoas ao nosso redor, incluindo outros repórteres, não poderíamos conversar onde estávamos, precisávamos ir para um lugar mais reservado, o que não era nenhum problema para mim. Compartilhando a localização do GPS do meu celular, a guiei para um dos camarins vazios atrás do palco principal, pois, aos arredores, todos estavam preocupados demais com o que se passava com a atração se apresentando para olhar o que acontecia em outras áreas.
Ao vê-la se aproximando da porta, saí e a puxei para dentro, tapando sua boca assim que um grito saiu por entre seus lábios.
― Você me pede descrição e ainda grita? ― Arregalei os olhos, falando baixinho para que o barulho não vazasse pelas paredes finas.
O sorriso que deu em seguida foi completamente sem graça.
― Por que você não me contou que vinha? ― Cruzei os braços, esperando por uma resposta.
― Porque até então eu tinha concordado em vir em meu horário de folga, não a trabalho. Josh descobriu sobre nós e estou proibida de te entrevistar.
― Ah, ele sabe? ― Meus braços se afrouxaram. Ela sempre consegue me desarmar.
― Sabe.
― Como? ― Deu de ombros, como se isso não importasse mais.
― Ele me chamou para conversar, disse que já estava a par da nossa relação e que não iria me demitir, mas pediu para que eu não desse tanta bandeira. ― Olhava-me nos olhos enquanto falava, provavelmente, para que eu visse verdade em suas palavras. ― Desculpe não ter avisado. Eu poderia ter dito que não poderíamos nos encontrar enquanto eu estivesse trabalhando. ― Respirou fundo. ― Você tá bravo comigo?
― Estava, não estou mais. Sabe por quê? ― Acenou para que eu continuasse. ― Você acabou de dizer que poderia ter me avisado que não podia me encontrar durante seu expediente e aí você não o fez. E agora onde você está? ― Conforme ia me aproximando de seu corpo, ia deixando mais explícita aquela feição sedenta em seu rosto.
A língua passando pelos lábios, a mordida discreta, os olhos fixos na minha boca…
Sem sustentar aquela pose comportada, a mulher agarrou o colarinho da minha camisa, colando nossos corpos. Pus as mãos em sua bunda, apertando-a ainda mais contra mim, vendo um sorriso largo em seu rosto.
― Eu não só vim, como pretendo gastar meu horário de descanso aqui. ― E partiu para cima de mim como se não houvesse tempo a perder.
Rapidamente, um beijo caloroso se transformou em mãos que escorregavam por todas as partes, fosse pelo meu ou pelo seu corpo, o que já era suficiente para me lembrar por que senti tanto sua falta nos meses em que ficamos distantes fisicamente.
Afastando-se brevemente, cochichou:
― Não temos muito tempo, hoje eu vim de calça jeans e tô te devendo uma. ― Sem me dar muito tempo para compreender o que aquilo significava, amarrou os cabelos.
Quando entendi, selei nossos lábios logo após afirmar o quanto a ideia me agradava.
Para não perder o controle nem por um momento, segurou meu queixo e ameaçou:
― Mas é o seguinte: se empurrar minha cabeça ou bagunçar meu cabelo, eu paro e vou embora. ― Concordei sorrindo, achando que era uma troca justíssima.
Agachando-se à minha frente, abriu minhas calças, abaixando-as só o suficiente para encontrar o que lhe interessava naquele instante.
Usando uma das mãos, subia e descia pela extensão do meu pau lentamente, fazendo com que um rastro de arrepios se espalhasse por todo o meu corpo. E, quando achei que aquele tratamento já era mais do que merecia, a mulher passou a me lamber e me chupar, vez ou outra, pondo um pouco de pressão na mão e na boca ao sugar.
A forma como se concentrava em cada volta que sua língua concluía em minha glande me deixava à beira do precipício. Como já disse, não era nenhuma rainha da felação, mas era admirável o quanto ela fazia muito bem tudo o que se propunha.
Eu queria muito não gemer e tinha absoluta certeza de que meu rosto já estava completamente vermelho de tanto me segurar. Às vezes, ao tentar soltar o ar devagar pela boca, um suspiro, um grunhido, um gemido mudo acabava saindo. E aparentava estar se divertindo muito, uma vez que, sempre que me olhava, estampava uma feição de satisfação no rosto.
Aos poucos, os gemidos se tornaram inevitáveis e simplesmente desisti de tentar me segurar. Quando voltou a se concentrar a língua somente na glande, achei que poderia cair no chão. Minhas pernas estavam um pouco bambas e acabei gemendo quase como quem urra, obrigando, a mulher a se pôr de pé para tampar minha boca.
― Calado, Healy. ― Sussurrou, continuando a me masturbar. ― Nem eu nem você queremos ser descobertos, certo? ― Assenti, pressionando as pálpebras uma contra a outra.
Um tremor, semelhante a um calafrio passou pelas minhas costas, fazendo-a intensificar o movimento da mão.
Até que seu telefone tocou e quase gemi de frustração, pois sabia que iríamos parar. E qual não foi a minha surpresa ao vê-la tirar a mão da minha boca, atender o telefone enquanto ainda me masturbava?
― Oi, Zack.
― Preciso de ajuda. Meu celular morreu e tenho que compartilhar a última entrevista com a Patricia. Você pode vir até aqui me emprestar seu celular?
― Chego aí em 10 minutos. ― Sem querer, gemi alto demais, pois estava quase gozando. arregalou os olhos assustada, parando imediatamente de me tocar.
― O que foi isso?
― Passei por um cara bêbado agora há pouco. Já estou a caminho. ― Desligou tão rápido que ficou claro que Zack não havia a respondido. ― Porra, Healy! ― gritou.
― Desculpa. Ele ouviu? ― Reprimi uma risada.
― Ouviu e perguntou o que era. ― Deu uma risada desesperada, guardando seu celular.. ― Eu preciso ir.
― Mas você não vai terminar?
― Eu estou no meu horário de trabalho, lembra? ― Deu-me dois tapinhas, rindo.
― Mais tarde você tá livre?
― Que horas você viaja?
― Às 4h30.
― É, a gente consegue terminar isso mais tarde. ― Selou nossos lábios rapidamente. ― Não termine sozinho nem com outra pessoa, ok? ― Sussurrou como se fosse um segredo.
― Você não faz ideia do quão gostosa você fica quando manda em mim, né? ― Abriu a porta, sorrindo.
Em despedida, dei um tapa na sua bunda antes que saísse.

x x x -


Horas mais tarde, andando de um lado para o outro, aguardava por sua chegada, mesmo que só fizesse dois minutos que havia enviado a localização da cabine onde estava. Por um segundo, temi que não conseguisse vir, que um imprevisto acontecesse, que Zack implicasse com seu sumiço ou que, na pior das hipóteses, tivesse que ir embora antes do previsto, não tendo tempo nem mesmo de se despedir de mim.
― Jamais vou poder reclamar que não inovamos na ambientação, hã? ― brincou ao entrar e quase suspirei aliviado por poder vê-la antes de partir.
Tranquei a porta atrás de nós.
― Como você conseguiu a chave?
― É uma cabine de controle secundário, ninguém vem aqui se algo na primeira não falhar. ― Dei de ombros. ― Além do mais, conheço um roadie, que conhece um técnico de som, que conhece um técnico de iluminação. ― Riu.
― Espero que você pelo menos tenha pago todas essas pessoas.
― Eles me deviam favores. ― Abracei-a pela cintura, acabando com qualquer corrente de ar que ainda conseguia passar por nós.
Iniciando um beijo tranquilo, começamos a desfrutar daquele pouco tempo que teríamos juntos pela frente. Se pudesse, não a deixaria outra vez, não partiria de novo para longe de seus braços.
continuava sendo tão doce quanto mel, porém, ao fundo, em cada carícia que depositava em seu corpo, podia sentir o gosto amargo da despedida na minha boca. Era terrível saber que em tão pouco tempo teríamos que deixar um ao outro ir em direções opostas.
Afagar, roçar e perpassar seu corpo eram minhas atividades preferidas quando estávamos juntos. Era como correr milhas sem cansar, sem enjoar e sempre querendo mais. Era como um campeão olímpico que acaba de ganhar uma medalha de ouro e planeja as próximas conquistas.
Éramos muito bons em amar, pois não havia hora nem lugar ruim. Naquela cabine pequena e extremamente quente fizemos o nosso próprio mundo, a nossa morada por algumas horas. Nem o carpete áspero ou o pouco espaço para nos movimentarmos era capaz de nos impedir do que quer que quiséssemos fazer.
Depois de esfolar um dos joelhos no carpete devido ao atrito, saí de dentro dela para conferir a situação, dando uma risada dolorida pela ardência na pele. Vendo que não havia sangue nem nada com que me preocupar, posicionei-me outra vez para penetrar . No entanto, saindo de baixo de mim, empurrou-me delicadamente pelos ombros, indicando que eu me sentasse.
Assim que o fiz, encostando as costas na parede fria, a mulher pôs cada uma das pernas de um lado do quadril, lentamente, deslizando meu pau para dentro de si, como se me engolisse.
Começando devagar e aumentando a velocidade muito antes do que eu esperava, não desgrudava a boca da minha no intuito de abafar nossos gemidos. As paredes eram finas demais e, apesar do barulho externo, nenhum de nós dois era um exemplo de silêncio, logo, qualquer um do que passasse pela porta nos ouviria.
Abraçando seu tórax, aproximei-a do meu corpo. Sem imprimir a mesma força de quando mordi seu abdômen, mordi seu pescoço, sua clavícula e ainda mordisquei a ponta de seu ombro, fazendo-a soltar um suspiro e um sorriso.
Estava tão calor que nossos corpos pareciam colados um ao outro e que teríamos que nos destacar como velcro. Todavia, eu gostava da sensação do corpo de no meu. Era como se ela fosse meu encaixe perfeito.
resfolegava devido à temperatura e o cansaço, porém nem isso foi capaz de pará-la. E isso era válido para mim. Nunca tinha sentido tanta sede na minha vida, entretanto, sabia que, se necessário fosse e tendo-a ao meu lado, poderia passar um mês inteiro com apenas alguns litros de água.
estava prestes a gozar e o que me dizia isso não eram suas pernas trêmulas nem seus gemidos mudos, mas sim suas pálpebras fortemente pressionadas uma contra a outra e as pequenas contrações que as paredes de sua vagina faziam enquanto ela tentava retardar ao máximo o orgasmo que estava por vir.
Perdendo o pouco de controle que tinha sobre seus músculos, se desfez em um dos orgasmos mais lindos que já tive a honra de lhe proporcionar e assistir. Se eu acreditasse em toda essa besteira de Deus, paraíso e inferno, diria que aquela mulher era um ser angelical.
Por mais que do lado de fora houvesse um barulho ensurdecedor, ali, tudo que eu conseguia prestar atenção era em sua respiração ofegante, em seus olhos sorridentes e no som do meu próprio coração batendo. Não conseguia parar de sorrir olhando seu rosto cansado e suas bochechas avermelhadas pelo calor.
Haviam tantas coisas que gostaria de dizer a ela, mas sabia que nenhuma palavra contemplava por inteiro a intensidade muito menos mensurava o tamanho dos meu sentimentos por aquela mulher que se esforçava tanto para esconder o que sentia.
― Isso foi uma vingança? ― perguntou vendo o vergão avermelhado emoldurado por parte da minha arcada dentária próximo ao seu umbigo.
Sentada no meu colo, mantinha certa distância entre nós para que conseguíssemos nos olhar. Já eu, mantinha as mãos em seu quadril, pois gostava da sensação da sua pele em contato constante com a minha.
― Tá doendo? ― Cutuquei, fazendo-a rir.
― Não. Espero que não fique roxa.
― Tomara que fique pra, se alguém chegar a ver, saber que você não esteve sozinha nos últimos dias. ― Segurando seu rosto entre minhas mãos, puxei-a para perto e selei nossos lábios.
― Querendo marcar território? ― brincou.
― Prefiro dizer que estamos construindo memórias juntos. ― Rimos. ― Isis, na realidade, tem algo que eu quero te dizer. ― Pigarreei assim que parei de rir. Sabia que aquela era minha última oportunidade de dizer a ela o que precisava antes de partir e passar meses distante.
Mesmo se empenhando para permanecer com a mesma expressão tranquila de antes, a forma como seus ombros enrijeceram e seus olhos pareceram ficar absortos não passou despercebida por mim.
Escolhendo as melhores palavras que poderia usar, pus pequenas mechas de seu cabelo atrás das suas orelhas, fitando-a nos olhos.
― Eu acho que eu amo você. ― segurei suas mãos entre as minhas. Na verdade, eu tinha certeza que a amava, mas também sabia que talvez a certeza tivesse um peso que não estava disposta a aceitar.
Vendo a vinca que se formou entre suas sobrancelhas, completei:
― Não quero que você se sinta pressionada a me dizer algo ou a me corresponder, só achei que você deveria saber. ― Virando sua mão, beijei suavemente a palma.
O silêncio que se seguiu foi ainda mais constrangedor do que imaginei que seria. Ótimo, ela não sente o mesmo e vai se sentir obrigada a me dizer algo.
parecia congelada. Não disse nada, não se moveu e, aparentemente, mal respirava. Essa reação se estendeu por quase um minuto, o que me deixou verdadeiramente aflito. Ao que dava a entender, eu realmente era só uma foda boa que ela continuava repetindo até que uma melhor surgisse em sua vida.
Já arrependido de ter dito o que deveria ter continuado guardado, fui surpreendido quando, inesperadamente, me abraçou forte. De início, não entendi o que aquele abraço significava. Todavia, após alguns segundos compreendi que aquela era a demonstração de todas as coisas que ainda não conseguia pôr em palavras.
Beijei seu ombro durante longos segundos, explodindo internamente de felicidade por estarmos na mesma página.
Ao desvencilhar-se de mim, a mulher segurou meu rosto entre suas mãos, sorrindo e me olhando nos olhos e, assim, gastamos nossos últimos minutos na companhia um do outro.


#12

Apenas diga que você me ama, foda-se todo o resto. Preciso do seu amor, você não está impressionada?
(LIFE EATER - nothing,nowhere. feat. Travis Barker)



AVISO DE GATILHO: O capítulo a seguir aborda temáticas sensíveis referente a consumo e dependência de substâncias químicas, além de assuntos relacionados à saúde mental.


Não muito tempo depois do nosso encontro, publicou o que pareceu uma das matérias mais complexas e reveladoras de sua carreira. Ao ler o que havia sido capaz de escrever e assinar, entendi de onde vinham todas as ligações que duravam madrugada adentro por insônia ou ansiedade. E eu nunca desejei tanto poder lhe abraçar e dizer o quanto era formidável.
Nos meses que se seguiram, a correria me impedia de manter o contato que gostaria com . Fosse os últimos shows do ano, as milhões de entrevistas seguidas ou seu horário de trabalho mais que apertado, a única forma que encontrava de nos falarmos era ao longo da madrugada. Isso quando nem meu nem seu trabalho incluía uma festa, uma divulgação, um evento oficial.
Sem querer, nessas muitas festas, eventos oficiais, premiações etc. acabei novamente retomando à velhos costumes. Sim, nesse pacote estavam inclusos alguns pinos e picos. Logo, estava vivendo à base de drogas prescritas e ilegais para dormir ou acordar.
Mas, diferente das outras vezes, na maioria dos dias, conseguia me lembrar do que tinha feito, onde tinha ido e com quem havia estado, o que só poderia significar que talvez não estivesse mais abusando como antigamente. Usando somente o suficiente para sobreviver à rotina maluca.
O que me aliviava de verdade era saber que, em pouco tempo, e eu passaríamos mais alguns dias juntos, sem trabalho, sem dor de cabeça, sem interrupções ou companhias desagradáveis.
Durante o Natal, estaria meio incomunicável devido à viagem que faria para a casa dos pais, porém, no Ano Novo, estaria completamente disponível para aproveitarmos o feriado.
Mentalizar essas informações como um mantra sempre que me sentia à beira do colapso era o que me dava forças para respirar fundo e encarar mais uma plateia de milhares de pessoas.

- x x x -


Quando o feriado começou, fui o primeiro integrante da banda a terminar de arrumar minha bagagem e entrar na van para voltar para casa. Não aguentava mais viajar horas e horas, me apresentar sem deixar o cansaço transparecer, dormir em quartos de hotéis nada familiares ou comer refeições cujo gosto não reconhecia. Só queria chegar na casa dos meus pais, abraçá-los, ver , esquecer a vida badalada por alguns dias que fosse.
Assim que o carro entrou em movimento, com o balanço agradável, acabei cochilando. Estávamos todos à caminho de Londres, onde deixaríamos nossas bagagens em nossas devidas casas e partiríamos para rumos diferentes a fim de comemorar as festas de final de ano com nossos familiares.
Todavia, cerca de meia hora antes de motorista estacionar em frente à casa para deixar George e a mim em nosso destino, acordei e, felizmente, abri o instagram. A primeira conta que apareceu indicando ter conteúdo recente nos stories foi a de . Curioso, cliquei para saber como andava seu Natal em família.
Por motivos desconhecidos, a mulher havia postado a fotografia de um pombo sobre a placa da plataforma de trem que ia para sua casa. A postagem era de 18 minutos atrás. Ela está em casa?
― Ei, Chris! ― gritei. ― Você pode me deixar em outro endereço?
― Que outro endereço? ― George franziu a sobrancelha.
― sussurrei.
Respondeu com um “ah” silencioso.
― Você pode levar minhas malas para casa?
― Você não tá se aguentando de saudades, né? ― Riu.
― Eu preciso checar uma coisa. Chris, vou te mandar o endereço. ― Mandei a localização por mensagem para o motorista e não demorou até que tomássemos uma nova rota.
Não estávamos longe, apenas algumas quadras de distância, o que foi reduzindo conforme os minutos passavam. Aproximadamente 12 minutos depois, já havíamos chegado em frente ao prédio de . Chris nem mesmo se deu ao trabalho de estacionar a van. Pulando por cima de quem ainda estava sentado ao meu lado, saí do veículo e atravessei a rua, subindo os primeiros degraus da entrada do edifício.
Olhando para as janelas e sacada do apartamento, ainda não estava em casa, uma vez que mantinha tudo aberto não importava a temperatura ou a estação do ano. Portanto, resolvi telefonar.
― Onde vocês está, ? ― O acesso de tosse que tive enquanto a esperava me atender fez com que minha voz soasse extremamente ofegante.
― Chegando em casa, por quê? ― Por algum motivo, continuava encarando suas janelas, quase como se fôssemos Romeu e Julieta em uma peça de teatro e eu a estivesse esperando aparecer. ― Olhe pra sua esquerda.
― Por quê?
― Olha, cacete. ― Obedeci e, automaticamente, um sorriso se formou no meu rosto ao vê-la caminhando na minha direção.
― Onde você esteve?
― Na casa dos meus pais. ― Não era disso que eu estava falando, mas fingi que era.
― Ah, é verdade. Mas, espera, você não ia ficar lá até depois de amanhã?
― Ia, mas eu desisti. ― Interessante.
― Por quê?
― Digamos que muitas coisas aconteceram. ― Encolheu os ombros, como fazia quando queria dar um assunto por encerrado.
― Tipo o quê? ― Por fim, encerrou a ligação.
― Alguns assuntos inacabados de família. ― Deu de ombros.
― Tá fazendo a misteriosa hoje ― brinquei.
― Anda. Vamos subir. ― Indicou o caminho com a cabeça.
― Quer ajuda com a mala?
― Você acha que está falando com quem, Healy?
― Com uma mulher forte e independente que pode estar cansada. ― Parou de andar, lançou-me um olhar desacreditado e riu.
― Você não tem conserto mesmo, né?
― Bom, quando olhei sua cara, vi que seu dia não está sendo dos melhores, mas consegui te fazer dar duas risadas. Acho que devo continuar, né? ― Sorriu.
Tão logo chegamos ao seu apartamento, mal lhe dei tempo para largar a mala ou a bolsa. Ataquei seus lábios como a saudade que estava guardando no peito. Correspondendo, me deixou ter certeza de que estávamos na mesma página, sentindo as mesmas coisas, compartilhando mais do que apenas um momento sem nem ao menos dizer uma única palavra.
Era isso que a fazia tão extraordinária. Por mais que falasse muito pouco de seus sentimentos, cada vez mais, ela me deixava conhecer seu íntimo. Eu sabia quando estava triste, feliz, nervosa, com tesão, irritada, se segurando para não dizer o que não deveria só de olhá-la nos olhos. não sabia, mas era totalmente transparente para mim, como uma folha plástica.
E retornar para seus braços depois de tanto tempo longe era como voltar a memória mais aconchegante de minha infância. achava que era para mim como um móvel. Um sofá, uma mesa, uma geladeira. Algo que dentro de algum tempo eu poderia substituir por uma versão nova. Porém, para mim, ela era como uma casa inteira. Uma casa com alicerces fortes, acolhedora e agradável. E era muito bom habitá-la.
Nas horas seguintes, me dediquei a despi-la, a deitar com ela em seu sofá, a lhe fazer sentir bem, amada e tão desejada quanto merecia se sentir todos os dias de sua vida.
Naquele primeiro dia só nos dignamos a trocar a sala pela cozinha, em seguida, pelo banheiro e, para finalizar, seu quarto. Deitado ao seu lado, a observei adormecer. Mesmo se recusando e lutando contra o sono para ficarmos juntos por mais algum tempo, a convenci de que poderia descansar se quisesse, não iria fugir antes que acordasse. Rindo fraco, seus olhos foram se cerrando devagar até apagar, como luminárias cujas luzes são reduzidas devagar.
Quando a claridade já adentrava ao quarto por uma pequena fresta na cortina, senti as pontas dos dedos de correndo pelo meu rosto lentamente.
― Bom dia ― murmurei antes de abrir os olhos. ― Você não foi correr? ― questionei coçando meus olhos.
― Depois do tanto de exercício que fizemos ontem? ― ironizou. ― Não, obrigada.
― Engraçadinha. ― Apertei sua bochecha, fazendo-a sorrir. ― Posso te perguntar uma coisa?
― Já tá perguntando.
― Tá, mais uma. ― Concordou rindo da própria resposta. ― Lembra o que eu te disse na última vez que nos vimos no festival?
― Você me disse muitas coisas, inclusive ‘ah ah ah, vai, ’ ― tentou imitar meu sotaque ao longo de um gemido e tive que me segurar para minimamente parecer ofendido.
― Sua otária. ― Dei um tapinha em sua cabeça, ouvindo sua risada anasalada em resposta. ― Não isso. A outra coisa.
― Que você achava que me amava?
― É. Bom, eu estive pensando e… queria saber se você… ― Segurei suas mãos entre as minhas, depositando um beijo em cada uma.
― Healy…
... ― imitei seu tom de voz desconfiado.
― Você não tá tentando dizer o que eu acho que está, né? Porque se está…
― Se está o quê? Você nem me deixou terminar!
― Ok, vai, fala. ― Revirou os olhos.
― Você se importa de ir conhecer meus pais e passar o feriado conosco… como minha namorada?
― Isso é um pedido?
― É. Qual sua resposta? Ou precisa de um tempo pra pensar sobre?
― Sim.
― Sim o quê?
― Sim, pode me apresentar pra sua família como sua namorada ― respondeu, conferindo as próprias unhas, como se aquilo não fosse nada.
Pulei em cima dela, sentando-me sobre seu quadril, distribuindo beijos por todo o seu rosto.

- x x x -


Durante todo o trajeto e o primeiro contato oficial com minha família enquanto minha namorada, pareceu tensa. Mais do que já tinha visto antes. Entretanto, ela já conhecia minha mãe e meu irmão, que a adoravam, como também nunca tinha visto antes em nenhum relacionamento antigo. Meu pai, muito provavelmente, entraria na mesma onda. Já Lincoln, como usual, era neutro.
Nada deu errado nesse primeiro encontro, pois, em cada pequeno detalhe, era adorável, sobretudo quando falava de sua profissão. Dava para ver a paixão lhe transbordando pelo olhar, em seus gestos e no sorriso discreto em seu rosto. Era a mesma paixão e calor que senti quando era sua fonte.
À noite, deitados juntos, a vi relaxar pela primeira vez enquanto conversávamos antes de dormir. O rosto cansado indicava que, em breve, iria adormecer, portanto, estava aproveitando meus últimos minutos ao lado de sua figura desperta.
Nos dias que se seguiram, infelizmente, saía para trabalhar e chegava à noite para jantar, conversar e dormir. Era como estar vivendo uma rotina normal com ela, com o diferencial de que estávamos na casa de meu pai, na presença de toda a minha família. Por isso, quando não estava, aproveitava para ficar na companhia de meu pai e de meu irmão, principalmente.
Louis, inclusive, era um dos que mais tinham gostado de conhecer mais a fundo. Ambos haviam se divertido muito jogando alguns jogos de tabuleiro, algumas edições de guitar hero ou ensaiando para a peça que meu irmão iria estrear no próximo semestre. Ou melhor, Louis ensaiando e servindo de plateia.
― O que está fazendo? ― Parei no batente de sua porta.
me pediu um livro emprestado, mas não estou achando.
― Se você quiser, posso te ajudar.
― Não, tá tudo bem.
Aproximei-me, sentando-me ao seu lado no chão.
― Vocês estão se dando bem, né?
― Te incomoda? ― Olhou-me pela primeira vez.
― Nem um pouco. Eu gosto que você goste dela. Vocês são duas das pessoas mais importantes pra mim e fiquei com medo de vocês não se darem bem. ― Dei um meio sorriso.
― Ela é muito legal. Realmente não entendo como ela foi gostar de você.
― Foi o meu charme irresistível. ― Passei as mãos pelos cabelos.
― Por favor, que charme? Você parece uma lombriga em miniatura. ― Dei um tapa fraco em sua cabeça, fazendo-o rir.
― A sua hora vai chegar também, espero que saiba disso.
― Ainda vai demorar um pouco e acho que é disso que você tem mais raiva. ― Voltou a atenção para as caixas e pastas à sua frente. ― Mas, se quer um conselho, eu não deixaria ela escapar. ― Franzi as sobrancelhas.
― O que quer dizer com isso? Aos seus olhos, eu sou tão insuportável assim? ― debochei.
― Não quis dizer isso e você sabe muito bem.
― Talvez se você me explicar melhor, eu compreenda.
― Outra pessoa como ela você não vai encontrar. Quer dizer, eu sei que você não gosta que a gente fale sobre, mas ela cuidou de você no aniversário dela. Você não é só um cara. Você é família pra ela. ― Pôs a mão sobre meu ombro. ― Espero que saiba valorizar isso.
Surpreso com sua conclusão, não consegui responder, apenas encará-lo por longos segundos.
Aquilo não parecia ser algo inventado ou que concluíra em sua cabeça. Louis, desde criança, era muito sensível e não havia ninguém que conseguisse esconder o que sentia de seu faro. Geralmente, sem dizer nada, quando pequeno, sempre que eu precisava de algum conforto se esgueirava pelo meu quarto, me envolvendo em seus braços curtos e rechonchudos de criança.
Essa percepção parecia estar mais aguçada desde o divórcio dos meus pais, uma vez que ninguém precisou lhe contar sobre a separação.
Por fim, concluindo que estávamos muito tempo nos encarando, soltei em tom de brincadeira:
― Acho que vocês conversaram muito mais do que imaginei, né?
― Existem coisas que não precisam ser ditas. ― Deu um meio sorriso. ― Agora, se me dá licença, eu preciso terminar minha procura e arrumar tudo isso.
Assenti com um sorriso.
Baguncei seu cabelo de leve e saí.

- x x x -


À noite, a movimentação no andar de baixo não só denunciava que a cozinha estava a todo vapor, bem como a chegada de . Portanto, separei as peças de roupa que gostaria que ela me ajudasse escolher e lhe aguardei entrar no quarto.
Ao ouvir a porta abrindo, com os cabides em mãos, virei-me em sua direção para lhe mostrar cada uma das blusas em frente ao meu corpo. Eu poderia muito bem ter escolhido uma roupa sozinho, mas, no fundo, gostava quando participava. Sabia o quanto gostava quando pediam sua opinião sobre qualquer coisa, por isso, o fazia com frequência só para vê-la sorrir daquele jeito animado.
Como iria conversar com os pais, resolvi lhe dar um pouco de privacidade indo tomar banho durante sua ligação.
Enquanto a água escorria pelo meu corpo, lavei os cabelos e me ensaboei. Mesmo não fazendo tudo às pressas, por algum motivo, aquele banho parecia demorar menos que o normal. Pelo menos libero o banheiro mais rápido para a , ela deve estar precisando mais do que eu.
Enrolando a toalha no quadril, saí do cômodo a tempo de ouvir:
― … Vou passar com uns amigos. ― Amigos?
― Amigos? ― Pois é, eu pergunto o mesmo!
― É, mãe, amigos. Aquelas pessoas que a gente sai junto, conversa, se diverte… ― ironizou.
― Ok. Só fiquei preocupada que…
― Não precisa, ok? Eu estou bem.
― Tá bom. ― Incrédulo, continuei parado à porta do banheiro, mesmo depois de ter sorrido em minha direção.
― Mãe, preciso desligar. Tá na hora de me arrumar.
― Tudo bem. Feliz ano novo, querida. Nos mande notícias, sim?
― Tá. Feliz ano novo. Te amo.
― Também amo você. ― Desligou.
Não percebendo minha cara nem que eu estava imóvel, pegou suas roupas, depositou um beijo na minha bochecha e adentrou para seu banho.
Aproveitei o momento à sós para me vestir e esperá-la.
Quando a vi aparecer na porta já devidamente vestida, questionei:
― Amigos, ? ― Franziu a testa, parecendo não compreender.
― O que aconteceu?
― Eu é quem pergunto. De onde saiu essa merda?
― Matty, eu estava falando com a minha mãe. ― Na cabeça dela, aparentemente, fazia sentido.
― Ok, mas amigos? Seus pais não sabem?
― É complicado.
― O que é complicado? ― Levantei-me da cama. ― , eu não sou seu amigo. Sou seu namorado.
― É, há 4 dias ― rebateu mais alto.
― E qual o problema? Eu entendo que não quisesse falar pra eles enquanto não tínhamos nada, mas agora… ― Minha voz saía dura como aço.
― Matthew, meus pais não entenderiam.
― O que eles não entenderiam? ― Segurei-a pelos ombros.
― Eles não te veem da forma que eu vejo! ― Debateu-se para se livrar das minhas mãos.
Seu rosto ganhava uma coloração avermelhada. Já os meus olhos queimavam em uma mistura intensa de raiva e tristeza. Como ela podia fazer isso comigo?
― Você não contou a eles porque… tem vergonha… de mim ― conclui com dificuldade.
― Quê? Não! ― Fez uma careta indignada. ― Você entendeu tudo errado.
― Não. Tenho certeza de que entendi tudo certo.
― Matty, você não entende. Eu fui embora da casa deles mais cedo porque eu não… ― Tentou me conter pelos ombros, como eu havia feito com ela.
― Para, ! Chega! Eu não quero ouvir as merdas que você vai inventar! ― gritei, livrando-me de seu toque firme. ― Por que você aceitou namorar comigo se não tem nenhuma intenção de me assumir? Você tem medo do que as pessoas vão pensar da pobre e inocente que namora um drogado filho da puta? ― Apontei o dedo para sua figura, que parecia diminuir aos poucos.
― Para, Matthew! ― gritou em resposta.
― Você só quer que eu pare porque sabe que é verdade!
― Não é verdade ― murmurou.
― Eu sabia. Eu sabia, porra. ― Não contive uma risada que escapou dos meus lábios sem o menor humor.
Sem querer continuar debatendo algo que estava evidente, saí do quarto, batendo a porta.
Deveria sair de casa para evitar ver novamente naquela noite, porém, se eu saísse, muito provavelmente não voltaria antes do sol raiar e minha mãe não me perdoaria por ter perdido mais um ano novo em uma festa qualquer, drogado e transando com um sem número de desconhecidos. E a última coisa que precisava naquele momento era criar mais uma briga envolvendo outras pessoas, todas me culpando por ter estragado o encontro de família outa vez.
Contudo, também não conseguia ignorar a crescente dor no peito, o ar que começava a faltar em meus pulmões ou a cabeça que rodava. Meio cambaleante, caminhei até o quarto no final do corredor. Trancando a porta, senti os joelhos falharem e me sentei no chão.
O coração acelerado parecia querer arrebentar minha caixa torácica. Minhas mãos tremiam como nunca e meus pés estavam dormentes, exatamente como quando pisava na neve descalço.
Se eu tomasse calmante iria dormir. Além disso, tinha deixado todo o meu estoque de maconha no quarto onde estava. Os sintomas não pareciam nem perto de passar. Meu peito estava cada vez mais apertado, meu corpo já começava a produzir espasmos involuntários e minha visão estava embaçada.
Não estar perto de era difícil, entretanto, muito pior era a situação em que estávamos. Mas agora fazia todo sentido por que ela nunca falava de seus pais, não fazia menção de nos apresentar ou coisa que o valha. Ela nunca tivera a menor intenção, por isso aparentemente não se importava de estarmos em uma relação casual. Talvez não queria que ultrapassássemos essa barreira.
Tal conclusão fez meus olhos arderem de raiva. Então, por que aceitou meu pedido? O que somos realmente?
Olhando ao meu redor percebi que aquele era o quarto onde costumava guardar coisas que não poderiam ou não deveriam estar jogadas e na vista do resto da família. Engatinhando até o armário, abri ambas as portas e comecei a revirar as roupas que ali estavam dobradas, em busca do meu estojo de “primeiros socorros”.
Ao encontrá-lo, quase o beijei.
Levantando-me do chão, fui até o banheiro, onde abri o estojo, separando todo os itens que precisaria.
Umedecendo um algodão, o pus sobre a colher, que já estava com uma das muitas doses de heroína que eu tinha escondido em armários, bolsos de casacos e de das minhas malas. Depois de encher uma seringa nova, amarrei o garrote ao meu braço, pondo uma das pontas de borracha entre os dentes e, por fim, injetando a dose inteira de uma vez só.
Sentei-me sobre o vaso sanitário, pois sabia que logo sentiria os efeitos relaxantes no meu corpo.
O formigamento antes tão intenso, estava desaparecendo aos poucos, sendo substituído por uma sensação de prazer, que me percorria por completo. Meu peito, antes tão tenso, estava deixando a dor ir embora, como se nunca estivesse ali anteriormente.
Involuntariamente, comecei a sorrir, ao mesmo tempo que lágrimas escorriam dos meus olhos, afinal, não havia quantidade suficiente do que quer que fosse capaz de me fazer esquecer o que acontecera minutos antes. Era muito dolorido concluir que alguém que eu queria tanto talvez não me quisesse tanto quanto imaginara.
Sem nenhuma noção de tempo, ouvi alguém bater à porta, chamando-me para o jantar. Com dificuldade, pus-me de pé e andei para fora do cômodo. Ao chegar à cozinha, não conseguia me conectar a nada que ocorria ao meu redor. Tudo parecia distante, acontecendo em outro tempo e espaço, os quais eu não tinha acesso.
De repente, tudo ficou escuro.

- x x x -


Na manhã seguinte, ao abrir os olhos, de soslaio, vi posta ao meu lado, sentada. Levantei-me da cama e fui para o banheiro, trancando-me lá por alguns minutos. Joguei água no rosto, respirei fundo, encarando meu reflexo no espelho. A noite passada trazia um gosto amargo à minha boca. O que havia acontecido entre nós, o que fiz depois e o fato de não lembrar de nada do jantar para frente me deixava angustiado.
Saí do banheiro só quando criei coragem, coçando os olhos e evitando qualquer contato, por mínimo que fosse, com . O que incluía não responder suas perguntas. E, claro, isso gerou a reação inesperada, mas para a qual, no fundo, eu torcia que acontecesse: a mulher levantou-se da cama, arrumou suas roupas dentro da mala, fechando-a. Calçou os sapatos e pôs a bolsa sobre o ombro.
― Quando quiser ter essa conversa, sabe onde me encontrar. ― E partiu.
Sem saber o que fazer ou como deveria reagir, joguei-me na cama com a cara no travesseiro.
As horas foram se passando e eu quase nem me mexi sobre o colchão, não peguei meu celular na mão, não falei com ninguém, não saí para comer, tampouco fui ao banheiro. A noite já estava caindo lá fora quando duas batidas leves soaram pelo quarto pouco antes da porta se abrir.
― Como estamos por aqui? ― Minha mãe adentrou no cômodo. ― Você não pode ficar tanto tempo sem comer.
― Tô sem fome.
― Está mesmo ou está fugindo da sua família? ― Virei de barriga para cima para olhá-la. ― Seja como for, você não deveria passar o dia todo no quarto. Sei que é sua folga e você decide como gastá-la, mas não é bom investir somente no sono. ― Deu um meio sorriso, sentando-se ao meu lado.
― O que aconteceu ontem? Depois que eu apaguei…
― Te trouxemos para o quarto e, assim que percebemos que não era nada grave, ficou de olho em você para caso precisasse de algo. Vocês não conversaram?
― Conversar o quê? A conversa de ontem foi o suficiente para entender que e eu não queremos a mesma coisa.
― Tem certeza? Você a deixou se explicar?
― E precisava? Ela simplesmente não me apresenta pra família porque tem vergonha de mim, de quem eu sou.
― Não acredito que seja isso, querido. Nós conversamos e me pareceu muito mais que ela estava preocupada com você, querendo te proteger.
― Proteger? Do quê?
― De uma reação negativa da família.
― Acho que eu sei muito bem lidar com gente que não gosta de mim ― ironizei. ― Por favor, mãe, pare de tomar partido dela. Sei que você duas se deram bem, mas você não está me ajudando muito.
― Eu só quero que você veja por outro ângulo. gosta muito de você, querido, e sei o quanto você gosta dela também.
― Acho que é aí que mora o problema. gosta de mim e eu amo ela. ― Encarei meus dedos, pois sabia que as lágrimas que faziam meus olhos arderem escorreriam dos meus olhos.
As mãos de minha mãe deslizaram para o meu corpo, envolvendo-me em seus braços, tentando me acolher como fazia quando eu era criança.
Normalmente, não permaneceria por tanto tempo em seus braços, uma vez que abraços longos não era a melhor forma de me demonstrar afeto ou o que quer que fosse. No entanto, naquele dia, tudo estava tão dolorido dentro de mim que não vi melhor forma para entender que era algo passageiro, fosse porque iríamos nos reconciliar, fosse porque iríamos encerrar nossa jovem relação.


#13

Então eu me pergunto "eu sou o único procurando por essência?"; Fiquei chapado, isso só me fez mais solitário e sem amor
(SUBSTANCE - Demi Lovato)



AVISO DE GATILHO: O capítulo a seguir aborda temáticas sensíveis referente a consumo e dependência de substâncias químicas.


Seguindo os conselhos da minha mãe, após uma semana, fui atrás de . Literalmente corri atrás, visto que só consegui encontrá-la em seu horário de corrida matinal. E a mulher corria rápido. Muito mais rápido do que era capaz de acompanhar.
Finalmente cedendo, me levou para sua casa, onde conversamos daquele jeito que só nós dois sabíamos. Uma linguagem inteiramente nossa, que permitia que resolvéssemos todas as nossas diferenças sem vocalizar palavras. Claro, tivemos um pequeno ruído na nossa comunicação ― ejaculação precoce ― que facilmente corrigimos com uma mudança de estratégia ― masturbação seguida de um belíssimo squirt.
Mas, claro, os acontecimentos parecem ter acionado algum tipo de alerta na cabeça de , pois, enquanto estávamos deitados em sua cama, ofegantes, ela levou nossa conversa sobre orgasmo para um assunto que não achei que era o ideal para um pós-sexo de reconciliação:
― Ficar chapado é melhor do que sexo?
― Não é que seja melhor. Na realidade, os dois se parecem muito. ― Fixei o olhar no teto, evitando um possível constrangimento ou o surgimento da barreira que costumava nos separar quando este era o tópico. No fundo, eu sabia que teríamos que conversar sobre em algum momento, só não queria que fosse tão cedo. ― Sinto como se estivesse pisando em nuvens. Ouço tudo muito longe e sinto todo o sono que eu não tenho ao longo de uma semana inteira de uma vez só. É como se eu não tivesse nenhuma preocupação na vida. Ou não precisasse tê-las.
Era difícil descrever tudo o que eu sentia ou a forma como me sentia. Haviam coisas que não haviam comparativos a serem feitos, como sentimentos que ainda não haviam sido nomeados, por isso, não conseguiria fazê-la entender por que um dia gostei de senti-las.
? ― Virei-me para ela. ― Se a gente não conseguisse mais transar, você ainda iria me querer?
― Você sabe que a gente não precisa do seu amiguinho pra transar, né? Não quando a gente tem essas mãos e essa boca. ― Selou nossos lábios e não evitei o sorriso de alívio. ― Sem contar que um relacionamento vai bem além do sexo. Mesmo que às vezes pareça que é só isso que a gente faz. Aliás, você acha que tem algo de errado em obrigatoriamente transarmos quase todos os dias que nos vemos? ― Fez uma careta pensativa.
― Pra mim, não é nenhum problema. ― Sorri, levando um empurrãozinho no ombro. ― Se a gente considerar que passamos meses sem nos encontrarmos pessoalmente, acho que é até pouco. ― Puxei-a para mais perto.
― Mas você sabe que não podemos e não devemos resolver tudo com sexo, né?
― Já falei pra você. Nós não resolvemos nada com sexo. Apenas comemoramos a resolução dos problemas e já aproveitamos pra termos bons momentos através dele.
Séria e em silêncio, acariciava meus cabelos, meu rosto, minhas orelhas e o fazia prestando toda a atenção do mundo em cada detalhe. Em momentos como aquele, eu daria tudo para saber o que se passava em sua mente.
― Você sabe que pode conversar comigo sobre qualquer coisa, né? ― Sua voz era quase um sussurro. Se estivéssemos no escuro, poderia até dizer que estava rezando. ― A qualquer hora.
― Eu sei. ― Sorriu fraco, quase sem forças, como se fosse uma guerra perdida.
― Sabe mesmo? ― Continuou a acariciar meu rosto com atenção, parecendo gravar cada detalhe sob seus dedos.
― Você não tem que se preocupar com isso. ― Apertei um de seus ombros para tentar confortá-la de suas preocupações. ― Não quero te sobrecarregar com esse assunto.
― Você não tem que mentir ou esconder nada de mim, ok? Estamos nessa juntos. ― Abraçou-me, escondendo o rosto em meu peito. ― Eu estou aqui e vou permanecer enquanto você quiser.
Em resposta, a aconcheguei em meus braços silenciosamente. Mesmo que ela não me dissesse nada, seria incapaz de duvidar que poderia confiar minha vida em suas mãos.
Mas, claro, nunca foi nem seria a minha intenção sobrecarregá-la com meus problemas. Nem que para isso precisasse sufocar dentro de mim mesmo.
Após dois dias de amor, carinho e presença, tivemos que nos despedir de novo. E, óbvio, aquele aperto no peito apareceu novamente. Toda vez era a mesma ladainha.
Para tentar atenuar um pouco os efeitos crescentes da ansiedade, do lado de fora do prédio de , acendi um cigarro e caminhei lentamente em direção à estação de trem.
A duas quadras de distância de sua casa, encontrei com uma fã, que me abordou para tirarmos uma foto juntos. Melissa me mostrou suas três tatuagens relacionadas a banda, me disse o quão feliz estava em nos cruzarmos e, por fim, me ofereceu o baseado que estava fumando. Para não perder o costume, aceitei, dando uma tragada profunda e devolvendo.
Com um sorriso, a garota se despediu.
Sobrevivi, era tudo o que se passava em minha mente enquanto acenava para Melissa.
Ao chegar em casa, só deu tempo de pegar as malas que nem havia desfeito e botar na van.
Eu era muito grato pelo meu trabalho, pelos meus fãs, pelos meus amigos… mas não sabia quanto tempo mais eu conseguiria aguentar aquele eterno ir e voltar de lugares, sem nunca conseguir parar, sem nunca respirar, sem desacelerar.
Sem perceber, estava roendo as unhas até meus dedos sangrarem. Devia ter tomado um calmante antes dessa viagem.
Tínhamos três shows seguidos em três países diferentes e só de pensar já ficava angustiado. Como conseguíamos fazer aquilo?
Conforme a paisagem ia passando pela janela ao meu lado, a palpitação do meu coração ficava cada vez mais forte, fazendo com que ansiasse ainda mais pelas unhas já inexistentes em meus dedos. De repente, só as unhas não eram mais suficientes e não havia nada que eu pudesse focar minha atenção. Portanto, passei a mordiscar os lábios, arrancando as peles secas.
Eu era a perfeita demonstração de ansiedade.
No aeroporto, após despachar minha bagagem, tomei dois calmantes e torci para que fosse o suficiente para me fazer sossegar por algumas horas.
Para me apagar, só dois não foi o bastante, mas pelo menos aquietou meu coração por algum tempo.
Permaneci meio grogue durante algumas horas. Mesmo depois de chegar no primeiro de alguns hotéis pelos quais passaríamos nos próximos dias, caí na cama, sonolento, mas não o suficiente para dormir. Era apenas a sensação de estar flutuando entre a realidade e o mundo sonhos, como se eu não estivesse presente, porém consciente. Era quase como observar a si mesmo de fora do próprio corpo.
Algumas pessoas poderiam achar que era ruim se sentir assim. Eu não.
Era melhor do que sentir dor, do que se sentir impotente ou com um buraco tão grande no peito que só aumentava dia após dia.
Nunca fui muito bom em lidar com as coisas que sentia. Nem quando era jovem, nem depois de adulto. Haviam coisas que eu não sabia nomear e, talvez, nem mesmo tivessem um nome. O fato é que eu também não queria senti-las, o que estava cada vez mais difícil.
Nos dias que se seguiram, ao menor sinal de sobriedade, precisei de algo para me anestesiar. Qualquer coisa era válida: pó, maconha, bala, ácido, álcool, calmantes de qualquer princípio ativo. Literalmente qualquer coisa.
As janelas de espaço de uso estavam ficando menores, em pouco tempo, quando ficava sóbrio, minha mente era um borrão. Não haviam memórias nem boas nem ruins dos dias anteriores. Nesses pequenos espaços de tempo, aproveitava para falar com , conferir como ela estava. Pelo menos, lhe mandar uma mensagem para que soubesse que estava vivo e que não havia motivos para se preocupar.
No fundo, eu sabia que haviam motivos de sobra para que ela estivesse preocupada, mas minha namorada não precisava saber disso por mim, certo?

Interlúdio: George


Estava quase na hora de subirmos ao palco novamente e, mais uma vez, Matty havia sumido das nossas vistas tão rápido quanto piscamos. Não podíamos simplesmente subir ao palco sem o vocalista sem que ninguém desse sua falta, por isso, nos separamos pelos bastidores e o procuramos por todos os lados.
No banheiro, nos camarins, nas cabines técnicas, na plateia, no backstage… em todos os cantos. E, aparentemente, ele havia evaporado como fumaça pelo ar.
Pouco a pouco, todos foram desistindo e começaram a cogitar a ideia de adiar o show. Entretanto, eu sabia que essa não era a nossa melhor opção. Precisávamos encontrá-lo a qualquer custo até porque não tinha como fingirmos que esse não era um problema que poderia se tornar ainda maior caso fosse ignorado.
Sabendo que ele não estava do lado de dentro da arena, decidi procurá-lo ao redor do local do show, pois haviam algumas vielas e becos sem saída próximos dali.
Não muito longe do ponto inicial, enxerguei sapatos muito parecidos com os que eu já conhecia em pernas estendidas no chão, cujo tronco estava escondido através de uma lata de lixo. Adentrando no beco, não demorou para que visse que quem eu buscava estava sentado no chão, fumando um cigarro, camisa aberta e costas apoiadas na parede.
― Você sabe que horas são? ― questionei, agachando-me.
― Hora de desistir dessa vida miserável. Você não acha? ― Deu uma leve tragada no cigarro. O tom de voz arrastado denunciava que estava chapado, mas o atropelo em algumas palavras me dava a certeza de que talvez não fosse nem se lembrar dessa conversa no dia seguinte.
― Do que você tá falando, cara?
― De tudo. Eu cansei, G. ― Encarava os próprios dedos.
― Ok, entendi. Mas você sabe que não é jogado em uma sarjeta qualquer que você vai resolver o que tá se passando aí dentro, né? Existem formas mais efetivas de se pedir ajuda.
― Mas vai doer. E eu cansei de sentir dor. A minha vida inteira foi isso. Quanto tempo mais eu tenho que aguentar firme? Quanto tempo mais eu tenho que fingir que está tudo bem quando não está? ― Seus olhos estavam vermelhos e, aos poucos, a coloração foi se espalhando para o resto de seu rosto.
O olhar aos poucos começou a ficar banhado pelas lágrimas que começavam escorrer.
― Nós não podemos te ajudar se você não quiser que a gente faça algo por você. Ninguém nunca te disse que era fácil, mas também nunca dissemos que te deixaríamos sozinho em qualquer que fosse o momento. ― Após secar um dos lados do rosto, pegou minha mão entre as suas.
― Você é um irmão melhor do que eu mereço, sabia?
― Apesar de dar um pouco mais de trabalho, você é um ótimo irmão. ― Dei um meio sorriso. ― O que você acha de sairmos daqui?
― Nós temos um show pra fazer, né? ― Fez uma careta.
― E eu te prometo que será como nos velhos tempos. Lembra quando trabalhávamos durante o dia nos bares pra conseguir nos encaixarmos nas apresentações à noite?
― Era tão divertido, né?
― E não precisa ser diferente daquela época. Só por hoje, vamos tocar como se tivéssemos 17 anos de novo. O que acha? ― Com um meio sorriso, pôs o resto do cigarro entre os lábios e segurou minhas mãos com força para que eu o ajudasse a se levantar.
Caminhando para fora daquele beco, eu tinha minhas dúvidas se ele teria condições de tocar um set inteiro sem que tivéssemos problemas, porém, não havia muito que pudéssemos fazer em cima da hora.

Matty’s POV


Finalmente tínhamos um respiro de dois dias em nossa agenda, que nos permitia descansar na cidade onde estávamos ou fazer um bate volta para algum outro lugar. Eu, como já era de esperar, resolvi ir ver , pois havia lhe prometido que nos veríamos.
Estava a quase dois meses sem voltar a Londres e tinha plena consciência de que não estávamos na nossa melhor fase. Não por sua culpa. Eu estava lidando com tantas coisas ao mesmo tempo que, às vezes, não conseguia me dedicar a ela do jeito que gostaria. Pelo menos, não do jeito que merecia.
Portanto, para não correr o risco de algo dar errado e não conseguir ir, deixei para lhe avisar que iria lhe visitar quando já estava embarcando. Assim as chances de algo sair fora do planejado eram reduzidas.
O único fator com o qual eu não contava era encontrar com um grupo de amigos da época de escola quando desembarcasse. Todos estavam vindo de uma viagem que haviam feito juntos para ir a um festival em Ibiza e não era porque estavam voltando de dias de festa que as comemorações tinham acabado.
Fui convidado para seguir com eles até a casa onde aconteceria essa party after party e, no fundo, eu sabia que deveria recusar. Entretanto, não foi isso que fiz. Não só concordei, bem como entrei em um dos carros e fui para a festa.
Mais uma vez, prometi para mim mesmo que não iria usar nada, no máximo, tomar umas cervejas e ir embora. Todavia, é óbvio que não foi isso que aconteceu.
Depois da terceira dose de uísque e umas duas garrafas de cerveja, dividi um baseado com um estranho. E, como esperado, não foi difícil encontrar quem estava vendendo na festa. Por fim, acabei cheirando duas carreiras no banheiro antes de voltar a dançar por mais duas horas com aquela gente que eu nem sabia de onde tinha saído.
Em um lapso de consciência, que não sei de onde veio, me lembrei do que tinha que fazer.
Após encontrar minha bagagem em um dos quartos, resolvi cheirar o que ainda restava no pacote antes de partir para que não encontrasse nada nas minhas coisas sem querer e fui embora sem me despedir de ninguém.
Entrando no primeiro táxi que encontrei fui até sua casa, paguei o motorista e desci do veículo apressado.
O porteiro do edifício anunciou que a mulher já me esperava e que estava autorizado a subir, por isso, não demorou para que, de novo, me encontrasse parado em frente a porta envernizada de seu apartamento.
Assim que me atendeu, ataquei seus lábios como uma pessoa sem beber água há dias no deserto faria ao ver uma garrafa com tal líquido tão precioso. Pressionava seus lábios contra os meus com força, na ânsia de matar aquele desejo, que parecia estar se potencializando aos poucos. Era algo que não sabia a meu respeito, mas eu gostava muito mais da sensação do sexo depois de usar algo.
Segurando-me pelos ombros, afastou-se de mim. Encarnando-me, uma vinca se formou entre suas sobrancelhas.
― Você tá chapado?
― Mais ou menos. ― Ri. ― Eu estou em pleno uso das minhas faculdades mentais. Até sei como cheguei aqui. ― Dei de ombros.
Umedecendo os lábios, abaixou a cabeça e permaneceu olhando os próprios pés por alguns segundos. Ou talvez mais que segundos.
― Vai embora ― disse ao voltar a me olhar.
― Quê? , eu vim te ver. ― Tentei envolvê-la em meus braços, mas a mesma se esquivou, rápida como uma lebre. ― Não faz assim.
― Não, você não veio me ver.
… ― Outra vez tentei abraçá-la e a mesma escapou por entre meus dedos como areia.
Passando a mão pelo rosto, suspirou.
― Ok, meu tempo tá contado hoje, se você não quer nada comigo, vou embora.
― Você faz eu me sentir uma puta desse jeito. Tempo contado. ― Deu uma risada de escárnio, sem humor algum. ― Quem você acha que eu sou, Healy? Uma vagabunda qualquer que você paga por um determinado tempo pra poder foder?
― Eu nunca disse isso.
― Não disse, mas é o que parece. Matthew, eu te pedi uma única coisa. A porra de uma coisa só: pra você vir me ver quando pudesse. Só isso. Podia ser cinco minutos do seu tempo. Você vir aqui, me dar um beijo, talvez até só me perguntar como estou e ir embora. Só isso. Depois, se você quisesse sair daqui e ir foder com a cidade inteira ou encher o seu cu droga, você poderia, eu não ligo. ― Virou de costas para mim, as mãos na cintura, a postura enrijecida. ― Você não sabe o quanto significaria pra mim só o gesto de vir me ver. Eu passo semanas te esperando. Semanas…
… ― Queria me desculpar, me justificar, qualquer coisa que a consolasse ou que a tranquilizasse.
― Não, por favor, não fala nada. Matthew, apesar de parecer, o sexo não é importante pra mim. Se você quisesse vir aqui e só sentar em silêncio do meu lado, eu ficaria feliz em fazê-lo. Quanto tempo faz que nós não vamos a um encontro? Não bebemos juntos enquanto conversamos sobre qualquer besteira? Mas parece que só eu sinto falta disso. Você apenas quer manter sua foda fixa, a mais fácil, que está sempre disponível, não precisa implorar nem se dar ao trabalho de flertar. É como se eu fosse o número um da discagem rápida.
― O número um da discagem rápida é o mais importante ― conclui sem pensar como aquilo soaria.
Estar chapado tinha suas vantagens, porém também tinha seus defeitos, como a coragem de falar qualquer bosta sem pensar muito sobre ela antes.
Mordiscando o lábio inferior, pareceu sentir minhas palavras lhe apunhalarem, uma vez que se silenciou por um espaço de tempo incalculável para o meu cérebro.
― É ótimo saber que, enquanto eu sinto sua falta, de conversar com você, do seu cheiro, do seu jeito, você sente falta do buraco quente no qual bate punheta. ― Para responder àquela acusação, precisaria de muito mais sinapses trabalhando simultaneamente. Muito mais do que eu tinha disponível.
, espera…
― Não fala mais nada. Eu não quero falar com você nesse estado, eu não quero te ouvir. Muito menos que você me toque. Então, por favor, sai da minha casa.
― Por favor,
― Sai agora ― rebateu com firmeza. ― Eu tô te pedindo educadamente pra sair da minha casa, antes que eu resolva chamar o George ou, pior ainda, o Jamie. Eu realmente não quero ter que metê-los nisso. ― Vendo a dureza em seu olhar, assenti lentamente, decidindo ir embora. É o melhor que você tem a fazer.
Pegando minha mala, fui até o elevador, que ainda estava com as portas abertas e fui embora.
estava cada vez mais distante de mim e nem mesmo poderia culpá-la por isso, uma vez que eu era quem estava fazendo de tudo para decepcioná-la. Não haviam desculpas ou justificativas para os meus atos, apenas egoísmo e infantilidade da minha parte. Talvez eu ainda não esteja pronto para receber amor e ser recíproco na mesma medida. Talvez eu nem soubesse como fazê-lo.
Mas uma coisa estava cristalina na minha mente: era muito mais do que eu merecia.
A prova disso veio algum tempo mais tarde, quando a banda se reuniu para decidir que todos iriam trabalhar em horários distintos no estúdio para evitar que permanecessem mais do que o necessário na minha presença. O único que estaria sempre presente era George. A situação estava insustentável tanto para eles quanto para mim.
Durante os dias em que trabalhávamos, eram horas a fio revisitando minhas próprias dores e traumas em busca de inspiração, logo, só haviam duas reações da minha parte: plena revolta que se manifestava em insatisfação em relação a tudo e a todos ou o silêncio com o qual eu reprimia minha tristeza.


#14

Como posso viver minha vida privado do seu amor?
(Your Love (Has Ruined My Life) - Holding Absense)



Depois do dia que me mandou embora, e eu nos encontramos mais duas ou três vezes. O resultado foi desastrosamente igual. Quando não brigávamos, ela passava boa parte do tempo me encarando, procurando provas que lhe mostrassem que estava certa ao meu respeito ou, ao menos, um resquício que fosse dos meus erros. Nada fugia aos olhos atentos de .
Porém, o que acendeu um sinal de alerta em minha cabeça foi quando, durante uma conversa por telefone, pareceu perder o controle e gritar que me amava. Ela nunca disse isso. As palavras que tanto esperei que me dissesse acabaram saindo de seus lábios em um tom que misturava raiva e desespero, sentimentos pelos quais não queria ser responsável por provocar nela.
Tendo consciência de que era só questão de tempo até ela me abandonar como quase todos faziam nesses momentos, decidi que me anestesiar era melhor do que estar sóbrio para encarar o fim. Cada vez que via o relógio aumentar a contagem de segundos, minutos e, por fim, se transformar em horas, tinha mais certeza de que meu tempo com estava se esgotando.
Não muito tempo após essa constatação, George agiu pelas minhas costas achando que talvez pudesse ser a solução para os problemas que eu andava causando para ele e para a banda. Vê-la dentro da nossa casa, assumindo novamente o lugar daquela que deveria me tirar do poço em que havia me afundando sozinho me doeu mais do que imaginar nosso fim pela quinquagésima vez.
Tentando afogar aquela culpa dentro de mim, passei a ignorá-la, deixando que Daniel assumisse o papel de simpático, como sempre o fazia ao seu redor.
Entretanto, na primeira oportunidade, tentou a todo custo me fazer prestar atenção nela, consequentemente, descobrindo como eu estava me distraindo de sua companhia. Após tomar o meu celular das minhas mãos e passar alguns segundos encarando a tela, senti todo o sangue esvair do meu rosto, sabendo que ela compreenderia o contexto da conversa em poucas palavras.
Em um pulo, a mulher levantou-se da cadeira e saiu a passos largos do subsolo. Demorando alguns segundos para entender o que se passava, fui atrás dela, querendo descobrir o que tinha em mente.
― Onde você vai? ?! ?! ― gritei, tentando pará-la.
Por mais que nossa casa não fosse tão grande, para mim, era quase impossível acompanhar o ritmo de . A mulher tinha quase o fôlego de um atleta, o que a fazia ficar sempre muitos metros à minha frente.
Enquanto eu ainda estava chegando à porta do meu quarto, já se encaminhava para o banheiro com as mãos cheias, do que não demorei a identificar.
― O que você tá fazendo?! ― gritei outra vez ao vê-la jogar minhas balas, pó, seringa… literalmente tudo na privada.
― Eu não vou mais assistir isso sem fazer nada ― respondeu firme. ― Se você quiser mais, pode comprar, mas não me chame mais para vir aqui se você tiver isso em casa.
Tomado por um desejo de vingança, que nem consigo explicar de onde veio, voltei para o quarto em busca de sua bolsa para pegar o que havia de mais próximo de drogas lá. Ao encontrar seus potes de remédios, corri escadas abaixo, ouvindo o trote firme de seus passos contra o chão atrás de mim.
Antes mesmo que pudesse aparecer, liguei o triturador de comida da pia e joguei todos os comprimidos cano adentro.
― Você fala de mim como se você não se drogasse todos os dias também ― debochei ao ver sua cara assustada.
― Você é inacreditável.
― O que aconteceu com ‘estamos juntos nessa’ e ‘você pode me contar qualquer coisa’? ― tentei imitá-la falando.
― Essas coisas foram ditas pra um homem que ouve o que eu digo, que me leva a sério. Não pra um homem com síndrome de Peter Pan, que faz uma imitação merda da minha voz. Além do mais, você nunca teve o menor interesse de dividir nada comigo. Tudo que você fez depois do que eu disse foi só me ignorar, me fazer de trouxa e me tratar mal. Você acha isso justo? ― Seu tom de voz se mantinha estável, mas eu via que sua paciência havia acabado em seus olhos. ― Sabe, Matthew, às vezes eu me sinto completamente imbecil de ter me permitido me envolver com você.
… ― Pela primeira vez, me dei conta do que havia feito.
― Era pra ser só uma foda. Por que eu tinha que me apaixonar? Por que eu achei que com você seria diferente?
, eu… ― quase como um sussurro, tentei me justificar, me desculpar, qualquer coisa.
― Não. Eu ainda não terminei. Você sabe tudo o que eu passei por você? Briguei com a minha melhor amiga mais de uma vez, quase perdi meu emprego, vi um monte de gente estranha falando mal de mim na internet e nem mesmo podia me defender… briguei com meus pais por sua causa e você ainda achou que eu estivesse com vergonha de você!
Seus ombros se encolheram.
― O problema nunca foi você ser viciado ou o que quer que seja porque você sabe o quanto eu te amei apesar disso. ― As lágrimas tomavam conta de seus olhos. ― O problema é que você tá se destruindo e não está nem se importando com o fato de você tá afundando todos ao seu redor junto com você. Sua família, no ano novo, agiu naturalmente quando tudo aquilo aconteceu e achei que fosse porque eles não se importam, mas, agora, eu entendo que é porque eles estão cansados de lutar por algo que você não faz a menor questão.
Quando segurou meu rosto entre suas mãos, quase me derreti em lágrimas. O que eu fiz?
― Eu amo você, mas eu me amo mais e não quero que você me destrua.
Algo dentro de mim se quebrou. O fim estava ali e não havia mais nada que eu pudesse fazer para impedi-lo.
Quando explodia, eu sabia que era sua reação natural a coisas que estavam fora de seu controle e que só poderia aceitar. Quando suas palavras eram baixas e aveludadas, quase como se me aconchegassem em seu peito em uma noite fria, significava que não havia mais nada a ser feito.
Fechando os olhos, encostei minha testa na sua, tentando eternizar a sensação de seu corpo tão próximo ao meu.
― Eu sei o que tudo isso significa, mas eu quero ouvir você dizer. ― Abri os olhos, esperando-a.
― Eu amo você, mas eu não posso mais fazer isso. Nós nunca vamos dar certo. Não assim. ― Abracei-a, na tentativa falha de impedi-la de partir.
― O que você quer que eu faça pra você ficar? Eu faço.
Com um pouco mais de compostura que eu, afastou-me, segurando meu rosto novamente.
― Matty, olhe pra mim. Eu quero que você fique saudável e seja feliz. E eu te prometo que vou fazer o mesmo. ― Era como se me contasse um segredo.
Como um guerreiro que deu um último adeus a sua prometida antes de partir para a guerra e não voltar mais, secou minhas lágrimas, beijou minha testa e deu as costas.
Desde aquele dia, fiquei pensativo sobre o rumo que estava dando para minha vida. Até certo momento, tudo parecia certo, caminhando para a direção que imaginava que queria seguir. De repente, nada mais fazia sentido. Olhando para trás, aparentemente, eu tinha feito todas as escolhas erradas e elas haviam me levado até ali: o término do meu relacionamento, o afastamento dos meus amigos, a decepção da minha família…
Não havia nada de bom acontecendo em minha vida nos últimos meses. Nem mesmo a finalização do álbum, que deveria ter ficado pronto nos 40 dias anteriores. E nem isso havia conseguido realizar.
Cada vez o fundo do poço parecia mais próximo de mim e não havia maneira de sair de lá. Pelo menos, não sozinho. E esgotado como estava, já não sabia mais se me restavam forças para pedir ajuda, fazer promessas ou, até mesmo, me esforçar para melhorar.
No fim das contas, dia após dia, estava me acostumando com a dor no corpo, o incômodo de estar na minha própria pele e o desconforto que não sumia do meu peito. No entanto, quando anunciou nosso fim e nunca mais me ligou, senti como se todo o peso do mundo tivesse desabado sobre meus ombros.
Talvez essa dor fosse maior do que eu era capaz de suportar. Afinal de contas, ao que parecia, ela podia viver sem mim.
Todos ao meu redor sabiam que, por dentro, eu estava lidando com mais do que conseguia, carregando um fardo que era só meu, por isso, era inevitável, ao olhá-los, não perceber o pesar estampado em suas faces. Talvez eles também estivessem me culpando pelo afastamento de , uma vez que todos gostavam de sua presença.
Nos primeiros dias, até tentei me enganar indo a festas, encontrando pessoas que se diziam meus amigos antigos, mas dos quais não me lembrava nem de onde e nem quando nos conhecemos.
Foi em uma dessas andanças que acabei conhecendo Lilah.
Até onde sabia, ela era amiga de um amigo meu e, por estar em festas quase todas as noites ― Lilah era DJ em uma balada nas redondezas ―, sempre tinha algo a mais a oferecer além de um ombro amigo.
Quando nos encontrávamos, não conversávamos. Eram apenas trocas de palavras muito rasas que se poderia ter com um vizinho dentro de um elevador, por exemplo.
Nosso único objetivo era usarmos algo juntos, transar e viver como se não houvesse amanhã.
Mas o amanhã existia. E ele sempre chegava.
Com o amanhã, vinha a culpa, a dor e a solidão. Tão rápido quanto me vestia para voltar para casa, eu prometia que era a última vez, que não ia mais encontrar Lilah, que ficaria limpo.
Entretanto, conforme o sol se punha, suas mensagens faziam meu celular vibrar e, antes mesmo que pudesse calcular os danos, já estava entrando no carro para encontrá-la outra vez.
Lilah parecia sempre querer agradar, como se a sua arma de sedução fosse amaciar o ego de quem a acompanha. E eu sempre caia nessa armadilha.
Não havia nada de especial em nossa relação. Se é que posso chamar assim. Além disso, também não tínhamos nada em comum, tirando o fato de gostarmos das mesmas drogas.
Lilah gostava de abraçar, de fazer piadas de pinto em momentos que ninguém estava rindo e quase sempre elogiava a mesma calça que elogiava.
Nossos beijos eram comuns, o sexo, por mais extravagante, cheio de marcas, gritos e performático que fosse, era morno e sempre deixava um gosto amargo de culpa na minha boca.
Mesmo que e eu já não estivéssemos mais juntos e ela fizesse questão de me lembrar disso através da sua constante ausência, ainda assim, só de tocar Lilah, sentia como se estivesse a traindo. Às vezes, até conseguia me lembrar do olhar de decepção que me lançava quando não estava de acordo com minhas atitudes.
Deve ser isso que as pessoas chamam de não estar pronto.
Durante uma madrugada sem dormir, me levantei da cama e fui ao estúdio.
Havia a base de uma música pronta que não sabíamos ainda o que faríamos. Era possível que nem entrasse no álbum. Ou era o que eu imaginava até me sentar em frente ao computador ligado e ouvi-la novamente do início ao fim.
As palavras, ornadas pelo rosto de ao fundo, pulavam na minha mente.
Lembrei de como, mesmo tão parecidos, éramos tão diferentes. Mesmo presenciando quase todas as suas noites insones desde que havíamos nos conhecido, quando estávamos juntos, sempre era a primeira a dormir. E ela dormia tão profundamente, como se não houvesse problemas, dores, sentimentos ruins. Aquelas horas de olhos fechados eram seu momento sagrado.
Já eu, estava condenado a perambular pelo mundo acordado. Não havia drogas, camas ou rituais que me fizessem ter uma noite de sono tranquila. Não como as de .
Na verdade, os momentos em que conseguia dormir eram ao seu lado. Meu corpo moldado ao seu, sentindo sua pele sempre quente, ouvindo sua respiração tranquila.
Enquanto escrevia algumas frases, pensei nos instantes em que a mulher parecia fora do ar, mesmo acordada. Seus olhos se perdiam, ficavam opacos e eu nunca sabia o que se passava em sua mente. Eram nos breves segundos que seu rosto ganhava aquela feição pensativa que eu gostaria de invadir seus pensamentos, conhecer os lugares por onde sua mente vagava e por que gostava tanto de fazê-lo.
Por mais que fosse transparente aos meus olhos e eu tivesse a impressão que a conhecia como aos detalhes do meu próprio corpo, às vezes, tinha a sensação de que , em alguns aspectos, permaneceria como uma incógnita. Aquele era o seu mundo particular, do qual, mesmo querendo fazer parte, entendia que não poderia. Aquela era a área restrita de sua vida.
Quando decidi gravar uma primeira versão da música que havia escrito, vi pelo vidro da cabine de isolamento os pés e, depois, a figura completa e sonolenta de Daniel surgindo.
― Não sabia que você iria trabalhar agora ― disse ao apertar o botão que permitia que eu o ouvisse em meus fones.
― Tive uma ideia para aquela base que deixamos pronta. Nada demais.
― A letra está pronta? ― Assenti.
O homem entrou na cabine lentamente, como se arrastasse os pés, parando ao meu lado para ler a letra posta sobre a estante de partituras. Seus olhos passavam por todo o papel com o rosto sustentando a inexpressão.
― De onde veio isso? ― Desviou o olhar para mim.
Dei de ombros.
― Qual é? Isso aqui não veio do nada.
― O que você quer que eu diga?
― Que você seja honesto uma única vez. Seria ótimo, pra variar.
― Bom, agora não importa mais, né?
― Por que você acha isso?
― A pessoa pra quem eu escrevi já não tá mais aqui e, no que depender de mim, ela também não vai saber que é pra ela. ― Franziu a testa. ― Eu não quero mais atrapalhar a vida dela. Não mais do que eu já fiz.
Após alguns segundos me encarando, George ajeitou a postura.
― Vamos gravar? ― Assenti.

- x x x -


Nos dias que se seguiram, me mantive no estúdio, concentrado. Estar lá, com Daniel, me fazia esquecer de outras coisas, como Lilah ou meu término. Porém, ainda haviam coisas das quais eu não conseguia me desvencilhar, como as crises de abstinência.
Meu corpo inteiro gritava comigo e, às vezes, era impossível não gritar com as pessoas ao meu redor. Minhas reações a qualquer resposta contrária ao que eu desejava eram sempre negativas, mas em uma proporção muito mais exagerada, pois não tinha mais nenhum controle de mim mesmo.
Logo, não demorou para que, pelas minhas costas, meus amigos planejassem uma intervenção, usando como meio uma das únicas pessoas que talvez ainda tivesse algum controle sobre mim: .
No entanto, ao vê-la, percebi o quão injusto era pedir que estivesse ali por mim. não merecia a dor que já havia causado e muito menos que eu, de forma indireta, continuasse solicitando que se doasse para me salvar.
Por isso, na intenção de mantê-la longe, reagi à sua presença como só um filho da puta seria capaz de fazer. Gritei, me exaltei, acusei ela e George de terem um caso…
Quando o clima de raiva estava instaurado, corri para o meu quarto, deitando na minha cama em posição fetal. Eu sou um bosta mesmo.
Sem me dar muito tempo para remoer como estava me sentindo com as escolhas que estava fazendo supostamente pelo bem de quem estava ao meu redor, adentrou no quarto, sentando-se no chão à minha frente. Não compreendendo o que sua presença significava, questionei.
Para , a resposta parecia óbvia. Como se eu devesse me surpreender caso não viesse.
Tê-la ali, do meu lado, mesmo depois de tudo o que havia dito, fez entender o real valor do que tínhamos. Nem quando disse que não estava mais apaixonada por mim me abalou.
Por um breve instante, me lembrei da conversa que tive com Louis há alguns meses. “Você é família pra ela.”
Compreendendo o que aquele momento significava, me permiti ouvir atentamente as suas palavras. Mas não só isso. Permiti que elas entrassem pelos meus ouvidos e se instalassem no meu coração, pois não havia ninguém no mundo que estivesse se importando comigo mais do que ela. Tanto que, sob seus braços, me senti seguro para, enfim, descansar.

- x x x -


Terminar de compor e gravar o álbum ainda era a minha prioridade. Por mais que doesse, por mais que nem sempre eu estivesse com a disposição necessária, finalizar aquele trabalho era o que eu queria fazer, nem que isso custasse meu último fio de vida.
Após a conversa com , sua voz ainda ecoava na minha cabeça, sugerindo que deveria considerar me internar de novo.
No começo, achei que era besteira, que não deveria levar aquilo como uma opção. No entanto, os efeitos da abstinência estavam me deixando mais e mais vulnerável à ideia. Eu não podia mais viver daquele jeito. Eu não conseguia mais viver daquele jeito.
Escondido e solitário, passei a pesquisar locais onde pudesse me internar, longe de tudo e de todos. Eu já havia passado pela experiência de estar próximo da minha família e dos meus amigos e percebi que, novamente, essa não seria a abordagem que iria funcionar. Haviam experiências que precisava ter sozinho, estar por conta própria. Talvez isso me fizesse valorizar tudo de horrível que sentiria para ficar limpo.
Ao encontrar uma clínica nas Bahamas que oferecia um tratamento diferente de apenas vestir uma roupa branca e perambular por corredores, resolvi ligar para tirar algumas dúvidas. Na manhã seguinte, quando já havia decidido que iria me internar, mandei uma série de mensagens para :

, você está certa. Me transformei em algo que nem eu mesmo consigo reconhecer: um mentiroso. São mais mentiras que consigo aguentar e estou mentindo pras pessoas que eu amo, magoando-as deliberadamente. Eu não posso mais fazer isso.”

“Decidi que vou me internar e, dessa vez, eu vou levar a sério. Não quero mais ser a pessoa que arruína a si mesmo e romantiza isso.”

“Estou me programando para ir em duas semanas para uma clínica nas Bahamas. Queria que você fosse uma das primeiras pessoas a saber porque tenho um pedido a fazer.”

“Você poderia me levar ao aeroporto junto com a banda para que eu possa me despedir de você propriamente?”

Ansioso, não conseguia não encarar o telefone esperando por uma resposta da sua parte. E esta chegou apenas alguns minutos depois ― embora tenha parecido uma eternidade.

“Vai ser um prazer te acompanhar”.

Após sua mensagem, dei início ao processo de internação. Recebi as instruções e comecei a preparar a minha bagagem aos poucos.
Antes do fim do dia, anunciei a banda e a Jamie minha decisão. Ninguém se opôs, somente me pediram se seria possível focarmos no álbum nas semanas que ainda estaria em casa, assim, enquanto estivesse me tratando, o material seria finalizado. De acordo e sabendo que não tínhamos mais tempo a perder, colocamos as mãos na massa.
George e eu viramos algumas noites trabalhando juntos, ajustando canais, gravando e regravando vozes, finalizando letras incompletas. Havia muito a ser feito e, por mais que não conseguíssemos terminar o álbum inteiro, uma boa parte já estaria finalizada quando eu voltasse de viagem.

- x x x -


No dia anterior à minha partida, encontrei com a minha família para me despedir. No dia da viagem, reuni a minha segunda família, que estava sempre comigo.
Em algum momento, todos os olhos se marejaram ao dizerem “até breve”. Estávamos tão acostumados com a presença uns dos outros que qualquer semana fora fazia a saudade apertar antes mesmo de estarmos distantes.
No entanto, daquela vez, havia outra pessoa, da qual me despedi muito mais vezes em muito menos tempo. Se pudesse, jamais o faria. Porém, se prometesse, seria apenas mais uma das promessas que nunca pude cumprir com ela.
Quando chegou o momento de dizer tchau a , segurei ambas as suas mãos, beijando-as.
― Me prometa que, não importa o que aconteça, você vai continuar tentando. ― Seus olhos estavam banhados em suas lágrimas.
Assentiu e eu a abracei apertado. Queria que sentisse a força dos sentimentos que tinha por ela.
― Ei. ― Afastei-me, segurando seu rosto entre minhas mãos para fazê-la me olhar. ― Eu amo você, ok? ― Desta vez, a iniciativa de abraçar foi dela, mas muito mais rápido, como quem arranca um band-aid de uma vez só.
Dando os primeiros passos de costas para dar uma última olhada em quem ficava, parti para me transformar na pessoa que eles mereciam ter por perto.


#15

Você pareceu familiar quando eu te vi
(Talk - beabadoobee)



Os primeiros dias longe de casa foram extremamente estranhos. Não só por não encontrar os rostos que conhecia tão bem ao meu redor, mas porque haviam muitas regras a serem seguidas. Eu tinha hora para acordar e para dormir, para me alimentar, para tomar banho e para cuidar dos cavalos ― que era a minha principal atividade. Além disso, de todos os internos, eu era o único que tinha um horário específico para, sob supervisão, usar meu celular. Isso porque fiz um acordo com a direção da clínica para que permitissem, uma vez que, segundo meus argumentos, era "imprescindível que eu permanecesse minimamente atento ao que acontecia no mundo exterior".
Nas primeiras vezes, mandei mensagens para a minha família e para a banda. Por volta do quarto dia, sem aguentar mais, mandei mensagem para :

“Você sabe andar a cavalo?” Foi o que questionei durante a minha pausa entre o banho dos animais.

Como se já estivesse esperando pelo recado, respondeu em questão de segundos.

“Você não está tipo… na reabilitação?”

“Sim. Por quê?”

“Por que você tá me mandando mensagens? Ou melhor, por que tá falando de cavalos?”

“Não é muito difícil convencer um médico sobre o quanto você precisa do seu celular e que pode até ter seu uso monitorado, sabia?”

“E quanto aos cavalos?”

“Você sabe montar?”

“Você sabe?”

“Estou aprendendo”

“Tá decidido a voltar
cowboy?”

“Sou responsável por cuidar dos cavalos. Ter uma atividade faz parte do tratamento, sabia?”

“Como tem sido?”

“Um horror! O estábulo cheira a bosta mesmo depois que você limpa tudo, a comida não tem gosto e eu não posso nem mesmo escolher o horário em que vou tomar banho LOL”

“E como você tem se sentido?”

“Não tenho certeza. Feliz, apático, limpo, indiferente… quem se importa?”

“Eu me importo”

“Você sempre se importou, . É por isso que você é diferente de todo mundo.”

― Matthew, acabou seu tempo ― Joseph, um dos enfermeiros do local que sempre ficava com meu celular, avisou.
― Você deve tá cronometrando com o relógio acelerado. Dessa vez passou muito rápido.
― São só 15 minutos, lembra?
― Posso pelo menos me despedir? ― Assentiu.

“Acho que falei algo muito intenso pra ter te silenciado, né? Enfim, preciso ir. Se quiser falar comigo, fico disponível todos os dias no mesmo horário.”

― Toma. ― Entreguei o aparelho, voltando aos meus afazeres.
Precisava terminar todas as minhas atividades até às quatro da tarde, quando começava a minha terapia em grupo.
Todavia, como já era de se esperar, consegui me concentrar muito pouco ou quase nada nas minhas tarefas por não ter visto a resposta de . Se é que ela havia me mandado uma resposta.
Longe dela, algo que não saía da minha cabeça era a minha dificuldade em entender quais barreiras não deveriam ser ultrapassadas após o nosso término. Os limites, aos meus olhos, pareciam riscos na areia que foram apagados pelas ondas do mar.
Se em um dia ela saía da minha casa dizendo que se amava mais e não poderia mais se relacionar comigo, no outro, dizia o quanto me amava e como estava comigo. E não havia nada de errado nisso. Na verdade, acho que preferia mantê-la por perto, não importava quais fossem os seus termos.
Ao fim do meu trabalho, fui tomar meu banho antes da terapia e, quando estava pronto, fui para a sala onde acontecia. Sendo um dos primeiros a chegar, sentei-me em uma das pontas para aguardar os outros.
Sentávamos em roda para encarar uns aos outros enquanto falávamos. Haviam pessoas de diversas idades e locais diferentes. As motivações que os levaram ali variavam muito. Alguns haviam sido internados compulsoriamente, outros, assim como eu, por vontade própria. E não era incomum estar na segunda ou terceira internação.
Contudo, dentre todos os presentes, havia uma pessoa que me intrigava em todas as sessões. O nome dela era Angela. Quase não nos víamos fora das terapias em grupo. Seu quarto era no mesmo corredor do meu, porém há muitos metros de distância.
Ela quase nunca falava sobre por que havia resolvido se internar, como era a relação com as pessoas do seu dia a dia ou coisas que pudessem soar pessoais demais. Sempre que questionada, sua resposta era sobre como se sentia fisicamente, como estava a sua saúde e outros tópicos do gênero. Se não demonstrasse, mesmo que minimamente, os sintomas da abstinência, diria que aquela era uma enfermeira disfarçada de paciente.
Ao olhá-la, tinha certeza que a conhecia de algum lugar, mas sabia que nunca a tinha visto na minha vida. Pelo menos, não que me lembrasse. Era como se ela tivesse algo que me lembrava alguém.
Até que, um dia, decidi durante o nosso período de descanso puxar assunto. Sentados sob a sombra de um carvalho, conversamos sobre o livro que estava lendo e algumas outras aleatoriedades.
Angela tinha um sorriso bonito e, na hora, entendi a quem ela me lembrava: . O mesmo andar firme, a mesma postura bonita, o mesmo olhar desafiador. Mas, óbvio, havia algumas diferenças.
Enquanto tinha traços suaves e uma feição sisuda na maior parte do tempo, Angela estampava no rosto uma expressão suave que contrastava com as marcas do que parecia ser dor.
Mas ambas tinham algo em comum muito forte: sempre que nos víamos, sorríamos um para o outro.
Naquele dia na terapia não foi diferente. Assim que seu olhar cruzou com o meu, deu um meio sorriso e eu sussurrei de volta um “oi” todo contente em vê-la. E, por mais que tenha desviado o olhar em seguida, continuei a olhá-la até que o terapeuta chegasse.
― Como temos pessoas que praticamente ainda estão chegando, pensei em iniciarmos a sessão de hoje falando sobre o que os trouxe aqui. Quem não se sentir à vontade em dividir com o grupo, tudo bem. Quem quiser, lembre-se que esse é um espaço seguro e todos estamos passando pelo mesmo processo juntos, ok? ― Todos concordaram à sua própria maneira. ― Quem quer começar?
O silêncio reinou. Alguns se mexeram desconfortáveis em seus assentos e pudemos ouvir alguns pigarros incomodados com o momento.
Percebendo que ninguém o faria, ergui minha mão, afinal, eu quase nunca falava nessas sessões. Preferia as privadas.
― Matthew, por favor. ― Esticou a mão, sinalizando para que eu estivesse com a palavra.
― Bem, como a maioria aqui, essa não é minha primeira vez em recuperação. A diferença é que antes estava apenas tentando largar a cocaína. Agora, preciso largar heroína também. ― Franzi os cantos dos lábios. ― Relutei bastante até decidir vir, porque, como é de se esperar, eu achava que estava tudo sob controle, que estava só me divertindo e que tudo bem usar algo de vez em quando, né? Mas eu comecei a perder a confiança dos meus amigos, da minha família, além de ter perdido uma pessoa com quem me importava muito. No fim, a experiência não valeu os danos. ― Dei um meio sorriso sem graça.
― E como você acha que vai ser sua vida quando você voltar para casa? ― Rico, o terapeuta, questionou.
Dei de ombros em resposta, pensando sobre o que dizer.
― Meus amigos e minha família ainda vão estar lá. Eles sempre estiveram.
― E essa outra pessoa de quem você falou?
― Não sei. Ela me deu todas as chances do mundo e eu recusei uma a uma. Faria todo sentido se ela tivesse seguido em frente sem mim. ― Encarei minhas mãos para não ter que fazer contato visual com mais ninguém. ― Diferente de muita gente, eu não perdi tudo por causa dos vícios, mas perdi a única coisa com a qual me importava de verdade. Acho que isso foi mais do que imaginei que seria capaz. ― Meus olhos começaram a arder. Timing péssimo para isso, não?
Notando que eu não diria mais nada, Rico passou a palavra para a próxima pessoa enquanto eu permaneci quieto pelo resto da sessão.
Aquela era a conclusão a qual já havia chegado na minha cabeça, porém doía muito mais do que imaginava verbalizá-la. Era como estar ciente que estava passando por uma dissecação, onde quem abriria meu corpo reviraria todos os meus órgãos em busca das coisas mais obscuras que pudesse encontrar.
Ao final da sessão, fui para o pátio. Não estava com fome, apenas queria me deitar um pouco no gramado, sentir a brisa gélida e olhar as estrelas. Com as mãos entrelaçadas e postas abaixo da minha cabeça, estiquei meu corpo no gramado, relaxando todos os meus músculos pela primeira vez naquele dia.
De soslaio, pude ver um par de pés aproximando-se e, em seguida, a figura agachando-se ao meu lado.
― Foi muito corajoso o que disse hoje.
Olhei para o lado e vi Angela iluminada pela luz fraca da lua.
― A maioria das pessoas mente ou nem fala nessas sessões.
― Passei muito tempo mentindo sobre as coisas que sinto, acho que está na hora de assumir outra postura caso queira realmente que o tempo aqui valha de algo.
― Todo mundo passa por essa fase.
― Na qual você está? ― Deu uma risadinha, abaixando a cabeça.
― Você talvez seja a pessoa mais solitária da clínica.
― E com quem eu deveria conversar? Não conheço ninguém além dos meus enfermeiros.
― Agora você me conhece. Converse comigo. ― Virei a cabeça para olhá-la.
― Você tá sabendo do jantar de integração?
― Sim. ― Sorriu.
― E você vai?
― Não há muitos outros lugares que eu poderia ir além do jantar, não é?
― Bom, eu também estarei lá.
― Está me convidando para sentar com você? Porque eu vou aceitar, já que você é a única pessoa que eu conheço aqui além dos enfermeiros, então, seria meio deprimente se eu me sentasse sozinho ou sentasse com pessoas que não conheço, não é?

― Mas é assim que se conhece pessoas.
― Acho que estou bem só com as pessoas que já conheço.
― Não seja frígido.
― Acho que você não me conhece para usar essa palavra comigo. ― Semicerrou os olhos.
― Pois é o que está parecendo que você é. ― Pôs-se de pé. ― Eu te vejo lá?
― É. Nos vemos lá. ― Dei um sorrisinho de canto.

- x x x -


No sábado de manhã, Debrah, uma das minhas enfermeiras, veio fazer meu check up diário e questionar se eu iria ao jantar. Quando confirmei minha presença, fui informado que havia, inclusive, um código de vestimenta e um formulário que deveríamos preencher.
Todos os internos que quisessem participar precisavam trajar roupas sociais e o formulário era para você escolher algumas músicas que gostaria de ouvir, além de ceder o direito do uso de sua imagem pessoal para a clínica. Este último item precisei declinar por motivos óbvios.
Mas era a primeira vez em semanas que estava animado com algo. A ideia de normalidade estava voltando a me excitar mais do que a loucura e o perigo. Isso era bom, certo?
Quando a hora chegou, me aprontei e fui para a sala de recreação, que, por uma noite, viraria nosso salão de festas.
Às portas do local, percebi que o jantar se parecia mais com uma baile de formatura de escola, o que era, no mínimo, engraçado. Todavia, todos os presentes pareciam estar se divertindo ao som de Come On Eileen, do Dexys Midnight Runners. Alguns conversando em um canto, outros bebendo ponches e ainda haviam os que estavam concentrados em comer.
Para me entrosar com o ambiente, também me servi de uma dose de ponche e, enquanto bebericava, passei os olhos pelo local em busca de uma única alma conhecida que fosse.
― Procurando por alguém? ― Ouvi a tão conhecida voz em meus ouvidos.
― Apenas olhando o movimento.
― Movimento?
― É. Quero saber como todos agem por aqui. Não quero ser o esquisitão que fica no canto encolhido ou o único a dançar. ― Riu.
― Você já deve ter notado que não existe nenhum esquisitão aqui, né?
― Eu poderia ser o primeiro. ― Dei de ombros, rindo.
― Vem. ― Tirou o copo da minha mão e me conduziu para o meio do salão, onde algumas pessoas dançavam.
Embora tivesse um andar marcante, Angela era graciosa ao dançar. Seu corpo se movia com fluidez ao som da música, como se, aos poucos, deixasse de se embalar com os acordes para se tornar a própria melodia. Mais um ponto que a diferia de .
não era uma exímia dançarina como Angela, mas era uma boa parceira, dedicando-se ao máximo. Angela fazia mais o tipo que não importava se estava sozinha ou acompanhada. Era só ela e a música. Talvez não sobrasse muito espaço para um parceiro, diferente de .
Com minha ex-namorada, sempre havia espaço para mim. Não só na dança. , em pouco tempo, tinha remodelado toda a sua vida para que eu coubesse lá, confortavelmente.
Piscando algumas vezes com força, foquei no aqui e agora, tentando acompanhar Angela em sua dança contagiante. Sua empolgação quase me dava a impressão de que não estávamos em um baile que imitava nossos tempos de escola. Poderia facilmente dizer que estávamos, por exemplo, em uma festa promovida pela própria Angela aos seus amigos mais próximos.
Continuamos a dançar juntos por mais algumas músicas até que meus pés começassem a doer e cada célula do meu corpo implorasse por um cigarro. Pedindo licença, encaminhei-me para fora enquanto Angela passava a dançar com as pessoas que estavam ao nosso lado anteriormente.
No pátio, de frente para o gramado e ao lado de um grande salgueiro, tirei um cigarro do bolso e o acendi.
Era engraçado estar internado para me livrar de vícios e estar sustentando um vício ― o cigarro ― com a ajuda da clínica, inclusive. Acho que, no fim do dia, eles só queriam que estivéssemos minimamente confortáveis para enfrentar nossos demônios.
Refletindo sobre os dias que haviam passado, as coisas não estavam tão ruins quanto imaginei. De pouco em pouco, a abstinência estava cessando e, nunca imaginei que fosse dizer isso, mas a terapia estava me ajudando a compreender esse processo como algo que ia além de mim. Finalmente eu estava encarando as consequências dos meus atos, por mais doloroso que aquilo fosse.
O afastamento de , do meu trabalho, dos meus amigos, da minha família eram apenas o efeito colateral de tudo que eu havia feito até ali. E, apesar de não ter vergonha dos meus atos, não me orgulhava nem um pouco de como havia chegado naquele lugar.
Entre uma baforada e outra de fumaça, suspirava, limpando a minha cabeça de todas aquelas conclusões às quais chegava todos os dias. Não havia mais nada que pudesse fazer a respeito a não ser tentar melhorar, me tornar uma versão melhor de mim, seja lá o que isso signifique.
― Às vezes, você pensa demais, sabia? ― Olhei para o lado apenas para ver Angela ajeitando a echarpe sobre os ombros.
― O que te faz pensar que eu estava pensando? ― Dei uma nova tragada no cigarro, encarando-a.
― Os suspiros que dava para ouvir lá do baile. ― Rimos.
― São os pulmões de quem já fumou por muito tempo e mais do que deveria.
― Ah, tudo bem. Um cigarrinho resolve mais do que terapia, às vezes. ― Ofereci meu cigarro para ela e a assisti dar uma tragada profunda antes de me devolver.
Não queria ser intrometido, mas também não poderia perder a chance de finalmente perguntar a ela sobre as coisas que não dizia na terapia.
― Por que você nunca fala sobre sua vida pessoal na terapia? Tipo, sobre sua família, seus amigos, se você tem alguém te esperando?
― Não acho que isso vá mudar muito a vida de quem está ao meu lado. ― Deu de ombros. ― Geralmente, guardo esses assuntos para a terapia individual. ― Assenti, na esperança de que ela dissesse mais algo sem que eu tivesse que perguntar.
Dei uma nova tragada no cigarro, pondo umas das mãos em um dos bolsos da calça.
― O que você quer saber?
― Você vai me contar?
― Não devo?
― Você é quem sabe. ― Dei de ombros. ― Confia em mim o suficiente para isso.
― Você parece ser confiável. ― Dei um meio sorriso.
― Por que você veio parar aqui?
― Assim como você, perdi a pessoa que eu mais amava por causa do vício.
― Quem era?
― Meu marido. ― Passou a encarar as plantas ao fundo. ― Ele me apoiou na primeira vez que vim me tratar, me esperou, cuidou de mim. Mas, quando eu tive uma recaída, ele não conseguiu surportar a convivência comigo. ― Abraçou o próprio corpo como quem procura por algum acolhimento. ― Não foi uma única vez que eu usei ou uma quantidade pequena... sem perceber, eu estava dormindo na rua, roubando a carteira do meu marido, vendendo minhas joias... qualquer coisa para sustentar aquilo que já nem deveria mais existir. Quando ele pediu o divórcio, percebi que talvez eu estivesse no fundo do poço.
― Ele te deu um ultimato?
― Eu me dei. ― Deu um meio sorriso. ― Eu o amo tanto que não seria capaz de prosseguir sabendo que nosso fim foi minha culpa, não porque o amor acabou ou porque ele tem outra pessoa.
Pus o cigarro pela última vez na boca antes de apagá-lo.
― Sabe, teve uma coisa que uma pessoa me disse pouco antes de eu vir para cá: que não adiantava eu fazer isso por ela, pelos nossos amigos ou pela minha família, eu tinha que fazer isso pela pessoa mais importante da minha vida, que, no caso, sou eu mesmo. ― Pus a outra mão no bolso, virando para Angela. ― Quando parei para analisar dessa forma, tudo fez sentido. Ela me amava por quem eu sou, mas estar constantemente chapado fazia essa pessoa desaparecer. Não há por que ela continuar com alguém que não se importa consigo mesmo, né? Afinal, por que ela se importaria? Acho que, no fim das contas, seu marido deve se sentir assim também.
― Agora, ex-marido. E eu nem conheço essa pessoa, mas consigo entender por que você fala dela com tanto carinho. ― Sorriu.
― É, ela também é minha ex. ― Demos uma risadinha cúmplice.
De repente, algo parecia mudar. Angela não parava de acompanhar meus movimentos, assim como eu fazia com ela. Nossos olhos perseguiam um ao outro.
Eu sabia o que aquele olhar significava, só não imaginava que pudesse acontecer em um lugar como aquele, depois de uma conversa como aquela. Porém, nem mesmo o lugar ou a situação foi capaz de impedir o sorriso que trocamos em seguida.
Com o corpo encostado no tronco do salgueiro, a puxei pela mão para mais perto. Sem dizer nada ou resistir, a mulher começou a me beijar antes mesmo que pudesse tomar a iniciativa.
Não havia urgência nem desespero, mas era um beijo cheio de vontade. Angela aparentava ter esperado tanto quanto eu para que aquilo acontecesse.
Aos poucos, o ar parecia mais denso, o corpo de Angela quente em meio aos meus braços e contra o meu corpo, minha boca descendo para seu queixo e, em seguida, para seu pescoço.
Sua respiração, agora ofegante, passou a ficar levemente mais profunda, como suspiros. Fazendo as mãos deslizarem pela lateral do meu corpo, em segundos, estava com os dedos na fivela do meu cinto, tentando soltá-lo.
Parando de beijá-la, inverti nossas posições, pondo-a contra a árvore. Uma das minhas mãos entrou em meio às suas pernas, posicionando-se sobre sua calcinha. Meio desajeitado, acariciei sua intimidade por cima do tecido. Angela fechou os olhos, permitindo-se sentir meu toque.
Aos poucos, recostou a cabeça no tronco, relaxando os músculos, apenas o suficiente para aproveitar o momento. Sua respiração profunda, saía pela boca quase que em baforadas que iam de encontro com o ar frio que nos cercava.
A mulher tinha ao seu redor aquela aura de quem está aproveitando cada movimento de seu parceiro, desfrutando cada instante.
Angela era uma mulher tão elegante que até seu prazer se tornava algo refinado de se apreciar.
Porém, nosso momento não durou muito. Ao longe, ouvimos alguém chamar Angela e, imediatamente, nos entreolhamos com os olhos arregalados de susto. Ajeitando-se, a mulher afastou-se de mim, procurando pelo dono da voz.
Olhando-me novamente, fez um aceno de cabeça antes de entrar. Esperei alguns segundos e a segui.
Do lado de dentro, a vi conversando com alguém próximo de quem cuidava da música e, em seguida, aquela mesma pessoa foi resolver algo relacionado à decoração do espaço.
Logo após, Angela caminhou em minha direção discretamente, com um novo copo de ponche em mãos.
― Não sabia que você organizava eventos.
― Não sabia que era observador. ― Riu, dando um gole em sua bebida. ― Ninguém viu nada, caso esteja preocupado com isso.
― Você está?
― O quê?
― Preocupada. ― Deu de ombros.
― Não é incomum que pessoas sejam vistas transando por aqui. ― Olhei-a com a testa franzida. ― Que foi? É uma reabilitação para dependentes químicos, não significa que tenhamos que nos abster de tudo nos dê um pouquinho de prazer, certo? ― Dei um meio sorriso, voltando a me concentrar nas pessoas que dançavam um pouco distantes de nós.


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