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Atualizada em: 10/03/2024

ATO VII

Na televisão, a cobertura exaustiva sobre a queda do avião de pequeno porte só serve de gancho para as notícias do desdobramento das investigações que seguem nas mãos do Ministério Público. Há alguns dias que não me interesso tanto por saber o que eles estão descobrindo, não porque nada é exatamente novidade pra mim, mas, simplesmente não faz mais sentido.
Ao final de tudo isso a quem eles irão condenar por esses crimes se o autor deles está morto e transformado em pó?
— Você viu que loucura? Parece que esse cara que morreu no acidente era o maior pervertido. Estão dizendo que ele tinha uma masmorra sexual em casa, que prendia pessoas em cativeiro. Bizarro! — Escuto Tauany comentando com a moça do caixa da papelaria onde estamos repondo nossas canetas esferográficas e consumindo passivamente jornais de TV tendenciosos na hora do almoço.
— Eu ouvi dizer que os vídeos dele estão espalhados pela internet. Não mexo com isso, então ainda não vi. Nem sei se quero ver, parece que as vítimas eram crianças — A mais velha devolve, em um tom horrorizado maleável, que muda assim que ela vê na tela do computador o valor que Tauany lhe deve.
A possibilidade foi discutida, mas Helena descartou que as evidências pudessem vazar na terra de ninguém que é a internet. Mesmo assim, não confio totalmente nisso e a ideia de descobrirem meu envolvimento na história me deixa desconfortável.
— Bizarro... — Tau se vira para mim, esperando minha opinião sobre o assunto do momento.
— Pena que ele não vai ser preso pelos crimes que realmente cometeu — Dou de ombros, contribuindo com um pensamento recorrente. Ignoro os absurdos que as pessoas inventam por aí, como se a pura verdade já não fosse terrível o suficiente.
— Eu acho bom que ele tenha queimado vivo! — A mulher do caixa decreta, resoluta.
— Eu não. Acho que devíamos ter pena de morte nesse país e a execução desse tipo de gente, deveria ser televisionada. Mandando um recadinho para os doentes tarados em casa — Tauany é severa, lançando a opinião pesada assim, sem mais nem menos em um início de tarde de clima ameno. Ela junta as moedas do troco na carteira amarela e escorrega pelo balcão a sacola com uma caneta preta, um caderno de desenho e a caixa de lápis de cores que Tauany vem desejando há meses.
Apoio minha caneta sobre o balcão e me forço a parar de pensar na discrepância entre a opinião e a menina pequena e franzina diante de mim. Pago por minha caneta, a guardo na mochila e saímos da loja após trocarmos um rápido aceno com a mulher corpulenta e agora sorridente atrás do balcão.
— Eu estou esperando por esse azul há tanto tempo. Que emoção — Ela dá pulinhos no lugar, animada com as possibilidades de desenhos borbulhando em sua mente.
— Você acredita mesmo nisso de pena de morte? — Continuamos o caminho de volta para o campus e Tauany parece pensar no assunto.
— Não tenho certeza — Ela morde o lábio inferior. — Não me julgue, mas eu penso na situação como uma economia de recursos públicos. Nós temos presídios lotados e usamos os nossos impostos para mantê-los abrigados, alimentados, saudáveis. Executando prisioneiros condenados por crimes de violência extrema, como os sexuais, por exemplo, onde eles poderiam ficar presos a vida inteira, os recursos poderiam ser revertidos para outras áreas, como a saúde, educação — Meneio a cabeça, entendendo seu ponto de vista.
— Há curto prazo, sim, pode ser que poderíamos economizar alguns trocados. Mas você não acha que matar as pessoas acaba saindo mais caro ao longo dos anos? Digo, onde essa gente toda vai ser enterrada? E que método de execução usaremos? Injeções letais, cadeira elétrica ou os decapitando? — Tauany ri de meu questionamento, mas eu não poderia estar falando mais sério.
— E as vítimas e suas famílias? Você tem de concordar que, para algumas pessoas, a justiça só é realmente feita quando um assassino ou um predador sexual está morto — Tauany provoca, quando, novamente, sua pequena mente sedenta por sangue se faz ser compreendida.
— Estamos falando de deixar o Estado decidir quem vive ou morre, Tau. Vamos lá, estamos nós duas sendo condenadas por assassinato e... — Olho ao redor, conforme nos aproximamos do campus, encontro exatamente o exemplo perfeito de contraponto: Melissa e Tamires. Elas são gente boa, estudiosas e muito na delas. Possivelmente não cometeriam assassinato. Bem, nós também não. — E elas duas também — Diminuo o tom de voz, passando pelas meninas, as cumprimentando discretamente. — Qual dupla você acha que será condenada à morte? Nós duas ou elas? — Tauany morde o interior da boca, ponderando se as meninas brancas e de cabelos claros e lisos teriam o mesmo tipo de justiça que nós: negras e faveladas, de cabelos armados e considerados exóticos. — Com um sistema judiciário falho, quem sofreria com essas medidas severas seriam os mais pobres, as minorias étnicas. Gente como a gente, não como o imbecil do Arnaldo, gente cheia da grana e influência — Rolo os olhos que acompanham um suspiro cansado.
— Ah... sei lá, eu quero me formar em produção musical, não direito — diz de um jeito engraçado, quase ofendido. Mas sei que ela compreende onde quero chegar. — Eu só fico triste pelas pessoas que sofreram. Ele merecia ser punido, de qualquer jeito.
— É, eu sei — É conflitante para mim, assim como tudo que envolve a morte repentina de Arnaldo e seus crimes que nunca serão pagos por ele.
Parte de mim fica ligeiramente contente por saber que toda pessoa que conhece um pedaço desta história o detesta e não posso deixar de imaginar que se estivesse vivo, Arnaldo estaria arrancando os cabelos, perdendo a cabeça por ver sua lustrosa reputação ruir dia após dia.
Graças ao trabalho árduo e incessante de Helena, minha identidade tem sido preservada e por ser menor de idade e já ter dado meu depoimento pelo menos seis vezes, para várias pessoas diferentes, eu não seria levada ao tribunal para repetir a mesma história, assim como Lucca. É mais fácil continuar seguindo em frente sem que ninguém saiba que eu fui uma dessas vítimas.
— Quem será que o denunciou? — Me pergunto distraída, me permitindo imaginar se o acidente não tivesse acontecido e a denúncia fosse a única coisa a atingir Arnaldo naquele dia.
— Alguém esperto o suficiente para fazer isso e nem ficar por perto para receber os créditos — Tauany ri, pois, diante de tantas camadas de segredos sendo revelados e injustiça, para nós, meros mortais, só nos resta o riso meio sem jeito e descontente. Uma revolta sutil, obrigatoriamente efêmera, pois a vida tem que seguir. — Esperto ou medroso. De novo, não sei dizer — Entramos na sala de produção e é uma verdadeira sorte encontrarmos nossa estação de gravação preferida disponível.
Tauany e eu nos entreolhamos animadas, vamos até a cadeira giratória nos esbarrando no caminho.
— Você sempre fica na produção. Que saco! — Diz brava, adorável.
— Precisamos de uma cantora — Minha paciência é enorme, pois preciso convencê-la de que é melhor que ela cante e eu adicione os meus vocais depois, com mais privacidade. Tauany não tem em seu corpo nem a metade da vergonha que sinto. É como se eu me tornasse uma criança comemorando seu primeiro ano de vida: confusa, desconfortável, assustada.
Prefiro mesmo estar sozinha quando o fizer, assim minha voz pode se libertar das inseguranças. Eu também.
— Você canta, sua safada! — Ela já disse isso antes. Eu rio confortável em minha cadeira.
— A cápsula é toda sua, meu bem — Indico o cubículo minúsculo acolchoado e à prova de som. Somente uma pequena janela de vidro nos separa e eu vejo uma Tauany desgostosa se acomodar no banquinho e posicionar o fone de ouvido cobrindo somente uma das orelhas.
Damos continuação a um projeto paralelo que decidimos fazer em conjunto desde que nos conhecemos. Eu escrevi uma melodia, Tauany escreveu uma letra dramática, e, desde que tivemos acesso à sala de produção, temos trabalhado lenta e constantemente em uma canção que é uma verdadeira viagem entre ritmos, incorporando tudo o que aprendemos no primeiro quarto de curso às nossas próprias referências.
Claro que há brechas e partes faltando, mas sempre que podemos, gostamos de fingir que estamos no Abbey Road Studios, vivendo o sonho e sabendo exatamente o que estamos fazendo.
— Gostei dessa alteração no primeiro verso. Forças externas? — Provoco e ela me mostra o dedo do meio.
— Cuida da sua vida… Vamos do começo — Tau evita se aprofundar em suas razões para expressar seus encontros com o amor em suas letras. Olhando de relance, vendo que ela risca a folha com a letra e estuda possibilidades, minha amiga chega a parecer uma cantora e compositora profissional. Sua confiança e certeza em cada nota que emite é o que me deixa segura em me apoiar em seus vocais nesse projeto.
A melodia se inicia com um acorde simples e suave de piano, seguido por uma faixa de saxofone que é melancólica, acompanhando a letra. Se desenrolando em um ritmo de jazz e soul com a bateria marcando o tempo com uma batida aguda, porém, contida. O baixo traz o groove em sutileza, sustentando a harmonia enquanto a voz entra.
"Voam alto os pássaros, atravessando o céu,
Deixando suas casas para trás,
Nas asas, a esperança de encontrar
Novos horizontes onde pousar."
A voz é suave, assim como os outros componentes mais potentes da canção, quase sussurrando as primeiras estrofes, construindo o sentimento a cada palavra. À medida que a música se desenvolve e encorpa, Tauany aumenta a força, a emotividade, nos levando a sentir a dor do amor perdido, saboreando a doçura amarga das lembranças.
"Eu precisei rasgar meu céu
Na busca dentro de mim, não encontrei nenhuma paz
Assim como a narceja, deixei tudo para trás
Me despedi de seu inverno cruel."
Entra a ponte instrumental com solos ainda por lapidar de saxofone e o piano se intercalam, nascendo um diálogo dramático e melódico que reflete essa jornada emocional que Tauany descreve na letra.
É cômico saber de onde veio a inspiração para algo tão soturno. Tauany é o próprio inverno descrito na canção. Congelante e urgente, de missão intransponível. Se estou mesmo por dentro de toda a história, quem levou Tiago a correr e se esconder da nevasca foi ela, não ao contrário.
Aceito a liberdade poética de Tauany de se colocar na posição que quiser em sua própria história de amor. Desde que a música esteja finalizada antes das férias, eu faço vista grossa por sua ocupação de um lugar emocional que não lhe pertence.
"Os pássaros voam longe e eu não estou mais ao seu lado
Foi bom enquanto durou, mas eu sigo
Deixando a dor do passado para trás, aqui é quente e eu digo:
Lembranças são doces como um pôr do sol dourado".
O fim do refrão conclui a música com uma melodia residual emocionante, transmitindo a dor do amor perdido, mas a esperança da possibilidade de um novo surgir. Celebrando os momentos vividos com saudade, mas firme em seguir em frente.
Ou seja: o famoso perdido de Tauany.
Com o horário disponível para usarmos a sala acabando, decido por encerrar a gravação de hoje com um pouco mais de ideias na cabeça. Os instrumentos de sopro precisam de força, a bateria poderia ter uma espécie de eco sutil que atrasaria ligeiramente o tempo, dando um toque a mais na sensualidade da rouquidão da voz de Tauany no início do primeiro verso.
— E se nós entregássemos isso? — Tauany ajeita a bolsa transversal no corpo, agitando os cabelos após retirar os fones grandes das orelhas.
— Como trabalho de fim de semestre? Não acho que podemos entregar em dupla — Vejo minha amiga fazer uma careta descontente e caminho com ela para fora do campus, em direção ao ponto de ônibus.
— Eu decidi trabalhar um pouco mais naquela faixa, “Sundance”. Vou dar minha alma na masterização e esperar que dê certo — Tauany estala o pescoço, cansada.
— Eu te ajudo, podemos ficar até mais tarde na quinta e trabalhar na sua faixa até você ficar satisfeita — Sugiro e agilizo a fala, o ônibus dela se aproxima.
— Eu topo e agradeço, mas ficar satisfeita é difícil pra mim — Ela ri de sua própria condição e acena estilosa para o motorista que já a conhece. — Beijo!
Me acostumei muito cedo a voltar para casa com tia Vanessa, ouvindo as fofocas quentes que ela escuta pelos corredores do campus. Mesmo tendo se livrado de um processo que a obrigaria a arcar com as dívidas do marido, de quem ela estava prestes a se divorciar, as coisas se complicaram um pouco quando ela passou de uma das vítimas de Arnaldo para sua principal suspeita de assassinato. Bem, não exatamente, estão insinuando que ela tenha sido a mandante do assassinato.
Pelo mesmo motivo que foi absolvida de um processo, ela entrava em outro.
— Não acredito que eles acham que eu falsifiquei documentos da empresa onde Arnaldo alugava o jatinho. Eu nem sei como eu faria isso. Quem você tem que subornar e qual é o valor de uma mentira que pode custar a vida de alguém? — Tia Vanessa brada, andando de um lado para o outro sobre o tapete felpudo em nossa sala.
— Você não deveria estar se perguntando isso em voz alta. Pode parecer suspeito — diz Helena, monótona. Ela está sentada na poltrona que chegou há dois dias, parece confortável na poltrona de couro preta em formato oval. Os pés modernos, mas que me lembram a estética dos anos 1970 capturam a atenção de meus olhos toda vez que estou em casa nesses últimos dias. Acho que estou mesmo gostando dessa coisa de decoração, afinal.
— Eu não acredito nisso! — Minha tia chuta o próprio salto do pé, o fazendo voar na parede oposta, na cozinha. Pisco algumas vezes, absorvendo o clima tenso e me forçando a ignorar a bendita poltrona.
— Calma, tia. Vai ver faz parte da investigação, eles querem usar a demora do laudo do acidente para pressionar alguém. Qualquer um. Mas foi um acidente, não tem como não ter sido — Tento manter a calma por nós duas. Sei que é muita pressão e que a tia Vanessa esquece com facilidade das façanhas do marido. É claro que essa é mais uma jogada de Arnaldo para desestabilizá-la, deixando a entender que ela poderia querer sua morte por causa do dinheiro da herança.
A polícia se baseia somente em e-mails que Arnaldo trocou com um de seus colegas de trabalho nos últimos dias de vida. Helena teve acesso às tais “evidências” e analisando de perto, Lucca e eu decidimos que nitidamente se trata de uma conversa forjada, já que Arnaldo começa a citar sua infelicidade conjugal do absoluto nada, recebendo uma resposta quase que instantânea de alguém muito compreensivo e positivo sobre ele continuar a lutar pelo casamento. Uma baboseira sem fim que qualquer juiz com o mínimo de tato poderia descartar como prova contundente de que ela estaria envolvida na morte dele.
— Você tem mesmo só dezessete anos? — Helena pergunta pra mim, seu sorriso é interessado, admirado.
— Tenho — Franzo a testa, me distanciando do olhar arregalado da mulher.
— Na sua idade, eu ainda brincava de boneca. Você trabalha, faz faculdade, tem mais maturidade emocional que sua guardiã legal... Do que as crianças dessa geração são feitas? — Helena se volta para tia Vanessa, que entre se ofender e se orgulhar de mim, ela escolhe a segunda opção.
— Não sei o que faria sem você — Ela vem até mim, se sentando ao meu lado em sua cama. Com a mudança completa, conseguimos encaixar as duas camas em uma parede, que foi pintada de um tom levemente alaranjado para acompanhar toda a vermelhidão do resto do espaço. Um tapete maior foi colocado em um tom creme, uma cômoda grande compõe a arara para armazenarmos as roupas e as camas são separadas por um dossel transparente que, na verdade, só deixa o espaço bonito. Toda noite, tenho de cobrir o rosto com o cobertor por causa da claridade vinda da cama de tia Vanessa e suas conversas noturnas por mensagens com o professor Alexandre.
Na sala, a poltrona e minha cadeira-vaca servem para demarcar o local limite de onde as visitas devem ficar e aos poucos, o lugar ganhou vida, personalidade e pulsação por si só. Ainda faltam alguns detalhes, mas para mim, está perfeito.
— Tenho que ir trabalhar — Me levanto sem vontade. — Cuida dela pra mim, Dra. Helena? — Peço em tom divertido, tentando aliviar um pouco a tensão do momento.
— Com unhas e dentes — A mais velha pisca um dos olhos pra mim e eu mando um beijo no ar para minha tia.
Antes de entrar na lanchonete, prendo o cabelo no alto. Aproveito para localizar Guilherme com os olhos, demarcando o local de onde não devo chegar nem perto. A única forma de ficar confortável no trabalho desde aquela noite de sábado irritante é evitando-o, ele parece fazer o mesmo então, ficamos por isso mesmo.
Não é maduro, mas é a melhor solução por enquanto.
— Quando você vai trazer mais uma garçonete? Minhas costas estão me matando — Tina se debruça sobre o balcão da copa. O paninho cor-de-rosa que usa especialmente para limpar as mesas de sua porção no salão pende entre seus dedos de unhar curtas, pintadas em um tom claro de azul.
— Estou procurando, tenha paciência. Não é como se você não tivesse gostado do aumento de salário — Seco mais um copo, o guardando na prateleira de vidro logo depois. Com a demissão mais que óbvia de Romildo e o educado pedido de dispensa de Romário, fiquei com Tina e Guilherme, dividindo um dos salários dos irmãos entre eles.
— Isso é verdade. Com o Romário desenrolando as coisas lá na Gave, nós poderemos nos mudar em breve. Trocar só a fechadura não parece o suficiente, ainda não me sinto segura em casa — Tina confessa em tom mais baixo, buscando me confidenciar como andam as coisas no novo relacionamento e na nova vida, agora que Romildo alega ter voltado para a Bahia.
— Ele está gostando da fábrica? — Pergunto verdadeiramente interessada. Vendo todo o barraco da outra noite, o gerente que trabalha na fábrica de papel no bairro vizinho entrou em contato com o seu Valter, interessado em dar uma oportunidade para o rapaz atingido pela fúria do próprio irmão. Com os gritos dos três, o tal gerente ouviu parte da história e se comoveu por Romário, se oferecendo para treiná-lo em seu setor, com máquinas enormes que cortam e tingem papel.
O emprego novo deu a Romário a confiança que lhe faltava para agir com autonomia, distante do irmão controlador e ciumento. Ficar com a garota no final foi só a cereja em cima desse bolo de troca de socos e uma vida inteira sendo subjugado pelo próprio sangue.
Fico feliz por Tina. Com alguém seguro de si ao seu lado, ela emana uma energia doce que evidencia sua beleza interior, a deixando radiante.
A parte de mim que está morta para o romance acredita que toda essa dependência emocional possa ser bastante maléfica para qualquer relação, mas quem sou eu para opinar em qualquer coisa quando o assunto é relacionamento?
— Ele está interessado em alguns cursos, não sei dizer exatamente do quê. Está animado com as coisas, comigo. Estamos felizes, mas ainda não completamente — Entendo exatamente do que ela está falando. Essa sensação de que a qualquer momento seu chão pode ser puxado como um tapete e todos os seus planos implodirem é bem familiar para mim.
— Ele foi embora, Tina. Assim que vocês saírem da casa onde passaram por tantos traumas, as coisas vão ficar mais leves de processar — Só me resta ser otimista por ela e por mim também.
Termino de secar a pequena pia da copa e me debruço no balcão, ao seu lado. Não há muitos clientes e nós podemos colocar o papo em dia enquanto o movimento não se intensifica.
— Não vejo a hora de estar em um lugar só nosso, com espaço para novas lembranças — Ela chega a suspirar, sonhando acordada.
— Sei bem as lembranças... — Ergo uma das sobrancelhas, maliciosa.
— E você, amiga? Já se resolveu com o ciclista? — Não posso deixar de rir da forma como Tina se refere à . A maioria das vezes em que o viu, o rapaz estava andando de bicicleta.
A lembrança dele faz meu coração fisgar.
— Sim. Nós terminamos, ele não quer ser meu amigo e seguimos felizes dessa forma — digo rápido, já ensaiei essa frase milhares de vezes na minha cabeça. Ela ainda não soa agradável, ainda machuca. Mas tenho que continuar dizendo, até que se pareça como uma verdade absoluta. — Se a fila já andou, parece que tem alguém querendo tomar a frente — Ela indica Guilherme com o queixo. Acompanho discretamente, o vendo concentrado em sua tarefa de limpar o chão da cozinha.
— O Gui?! Não... — Abano a mão no ar, ignorando as minhas bochechas esquentando e as lembranças turvas daquele último sábado.
— Ih! Acho que ele está vindo falar com você — Tina ajeita melhor o corpo, descendo do banco giratório.
— Tina, fica aqui — Peço baixo, sendo ignorada por minha garçonete.
, podemos trocar uma ideia? — Ele apoia o cabo do rodo no balcão. Guilherme não me olha nos olhos, fica encarando minha barriga ou qualquer outra região além de meu rosto, o que me faz ficar rígida em uma postura desconfortável.
— Depende — Eu também não fico encarando.
— É sobre o trampo, relaxa — Ele reclama, meio mal humorado. Não que eu me importe.
— ‘Tá, fala aí... — Dou um passo para trás, tomando uma certa distância. Olho para a rua, na esperança de ser interrompida por um cliente com um pedido grande e elaborado para me tirar desta conversa, mas ninguém aparece.
— É que eu tive uma ideia — Não consigo evitar encará-lo com uma sobrancelha erguida, desconfiada. — E se nós tivéssemos uma espécie de karaokê na lanchonete? Só por um dia, não precisa ser aos finais de semana. Se bem que... Eu sei que o Lucas anima a galera, mas o mesmo set todo fim de semana está me deixando maluco — Guilherme suspira cansado, faz um esforço enorme, mas acaba olhando pra mim também, em busca de alguma reação para sua sugestão.
— Eu vou falar com o seu Valter. Quanto deve custar uma máquina de karaokê? — Guilherme solta uma risada breve.
— Eu nem pensei nisso direito. Foi mal — diz desanimado, quase desistindo. Em um impulso, eu tento animá-lo.
— É uma boa ideia — Guilherme meneia com a cabeça, mas acaba por sorrir e se afastar, dando meia volta para pegar o rodo que esqueceu encostado no balcão.
É uma boa ideia? Não a coisa do karaokê, talvez seja até viável fornecer uma distração interativa para os clientes, diversificar o público. Mas essa coisa toda com Guilherme é a última complicação que eu deveria ter em minha vida. Então, por que quando ele finalmente me olhou, eu senti um alvoroço por dentro?
Mais tarde, o conteúdo das panelas tremelicando sobre as quatro bocas do fogão recém-instalado traz o toque final no processo para uma casa se tornar um lar: comida. Tia Vanessa me enviou uma mensagem dizendo que iria dormir na casa do professor Alê, então, em nome da vontade de agradecer e compartilhar minhas bençãos, convidei Tati e Felipe para jantar na noite de terça-feira.
— É uma ideia incrível! — Tati comenta animada. — Eu sei que a grana vem das famílias que frequentam a lanchonete e tal, mas você deve dar atenção ao público mais jovem. Nós queremos um lugar para farrear! — Ela gesticula desatenta, derrubando um pedaço de alface sobre a poltrona.
— Você diz como se não ficasse morrendo de sono às onze da noite — Felipe adiciona, me fazendo rir. Ele se levanta do tapete e entrega o próprio guardanapo para a namorada desastrada.
— Ainda estou em fase de crescimento, preciso dormir bem — Ela se defende enquanto limpa os pingos de molho de salada sob meu olhar atento. — Desculpa — Sibila antes de sorrir sem jeito, dando continuidade ao jantar.
— Quanto será que vai me custar? — Imito a voz de seu Valter, fazendo meus amigos rirem.
— Uma máquina de karaokê deve ser umas 250 pilas Felipe comenta pensativo. Tati e eu nos entreolhamos e ela rola os olhos.
— Acho que nunca te ouvi falando gírias — digo animada, quase orgulhosa. Felipe ri sem jeito, uma risada daquelas meio patetas que têm um ronco do nada. É difícil suportar a vontade de apertar suas bochechas. Ele tenta ser mais másculo, mas só consegue ser fofo fazendo isso.
— Ele está se achando o rapper desde que fez amizade com o , o Jorge e o pessoal — Tati se distrai, ajeitando o cabelo do namorado.
— Como eles estão? — Pergunto casual, contornando minha verdadeira pergunta.
— Estão bem. Sabe como eles são, sempre buscando algo para fazer juntos. O tem ficado mais em casa, ele está dando duro na bicicletaria e com o curso em reta final, não tem muito ânimo para sair — Felipe desdobra o folhetim, me fazendo assentir em uma pequena satisfação. Quero saber mais, mas não quero levantar perguntas das quais não sei a resposta.
— Vocês ainda não se falaram? — Tati questiona, um sorriso triste brincando nos lábios rosados de minha melhor—melhor amiga.
— Não. Nós não somos namorados, nem amigos. Não temos motivos para nos falarmos — Eu sei que não tem espaço para me exaltar nessa situação, afinal, voltou a se chatear comigo por causa do meu comportamento com sua amiga.
Minha cabeça lateja só com a mera lembrança daquela maldita noite.
— Não fala assim, . É claro que ele é seu amigo, quem mais me ligaria no meio da noite pedindo ajuda por você? — Tati me repreende, falando sério.
— Sei lá, ele deve ter sentido pena de mim. Eu estou sempre um caco, é compreensível — Deixo o prato no chão, sem vontade de comer o macarrão com molho bolonhesa que preparei especialmente para a ocasião.
— Ele deve ter dito que não quer ser seu amigo porque quer ser algo mais — Felipe se distrai com a salada, tendo dificuldade em fazer uma refeição na ausência de uma mesa.
— E começa a sair com outra garota — Concluo, cética.
— Eles são só amigos — diz Tati, em uma monotonia que só quem repetiu a mesma frase mais de cem vezes pode carregar.
— O era só meu amigo também... — Insisto, fazendo minha melhor-melhor amiga me olhar com impaciência. — O que foi?
— Eu não quero falar — Ela desvia o olhar, formando uma garfada impossível com o macarrão.
— Mas vai. Você não tem escolha — Me inclino para frente, encarando profundamente os olhos dela, encurralando sua mente fiel à nossa amizade.
— Acho que você se fixou no detalhe mais inútil da noite e perdeu toda e cada chance de acertar as coisas com o no sábado — Ela fala rápido, despejando tudo ali mesmo. Antes que eu recupere o fôlego e proteste, Tati levanta o dedo indicador e volta a falar. — Você estava insuportável naquela noite, ninguém conseguiu conversar com você.
— Como assim? Eu me lembro de só ter sido grossa com a tal da Bia — Me defendo, mas logo percebo que não há pontos altos em meu comportamento naquela noite.
— Nada disso. Você estava ignorando todo mundo, trancada em seu próprio universo e qualquer um que chegasse perto era friamente descartado. Você se lembra da noite de um jeito diferente? — Ela quase ri, interessada por minha versão dos fatos.
— Com certeza! Eu estava me sentindo sozinha e bastante irritada. Não posso ser julgada por como me comportei nessas circunstâncias, posso? — Felipe meneia com a cabeça, amedrontado e hesitante em opinar. O que por si só já é uma opinião forte.
— Não estou te julgando — Tati morde o interior da boca, pensando por quase meio minuto. — Estou sim, mas é com preocupação e amor. As coisas não precisam ser tão definitivas e as pessoas podem mudar de ideia, inclusive você. Se você está tão tranquila com essa ideia de não ser nem amiga do , ótimo, mas não acho justo você usar a Bia como bode expiatório para as suas decisões — A encaro boquiaberta. Ouço o riso nasalado de Felipe e bufo frustrada.
— Eu não decidi coisa alguma. Foi ele quem terminou comigo, ele disse com todas as palavras que tem amigos demais. O que eu posso fazer? — Estou irritada, me sentindo encurralada.
— Estou cansada... Diz pra ela, amor? — Tati pede para o namorado e Felipe solta um pigarro nervoso.
— Dizer... Dizer o quê? — Felipe olha de mim para ela, confuso.
— Eu tenho que fazer tudo por aqui... Amiga, está nas suas mãos. Você deu um jeito em tudo o que estava errado na sua vida e vai deixar a peteca cair logo com a coisa mais fácil de se fazer, que é deixar ser amada por um gostoso? — Tati fala como se fosse óbvio e Felipe começa a rir.
— Podemos, por favor, mudar de assunto? — Imploro aos meus amigos e sou atendida. Eles começam a conversar sobre as próprias rotinas e em algum ponto, eu me perco na conversa.
Odeio quando Tati tem razão. Ela faz tudo parecer tão fácil e óbvio.
Não há nada de fácil ou óbvio nesta situação. Uma vez que decidiu por nós dois, não há nada que eu possa fazer.
Antes de sugerir a Noite do Karaokê para o seu Valter, faço uma breve pesquisa sobre quanto custaria essa nova empreitada. Falo com donos de bares na tentativa de comprar o maquinário necessário de segunda mão, mas ainda assim, o preço é muito alto.
Encantada com a ideia de termos mais pluralidade de sons e vozes durante o serviço, acabo por encontrar uma segunda alternativa que pode ser que funcione tão bem quanto.
— “Open Mic”? — Meu patrão repete, pela terceira vez.
— É, microfone aberto. Nós selecionamos uma quantidade de músicas instrumentais e disponibilizamos um microfone com uma caixinha de som do lado, é basicamente isso — Assisto o homem coçar o cotovelo, as sobrancelhas conversam entre si e logo, ele parece ter um veredito.
— Parece uma boa ideia. Eu mesmo tenho uma ou duas canções que gosto de cantar quando estou de bom humor — Ele confessa em uma risadinha convencida.
— Eu consegui alugar um microfone, só para fazermos um teste. Caso dê certo, consigo um bom preço por ele — Garanto firme, surpreendendo o mais velho, que solta um riso inesperado.
— Deixo nas suas mãos, — Ele apoia a palma cheia de responsabilidade em meu ombro e faz o que faz de melhor: deposita sua confiança em mim.

É quinta-feira. Tauany não veio para a aula, mas eu a vejo entrar no campus para trabalharmos em seu projeto de conclusão de semestre assim que a última aula do dia termina.
Vamos direto para a sala de produção e, com o fim das aulas daquele dia, ela está vazia.
Ao ouvir a faixa de Tauany, encontro imediatamente o que a confunde e dificulta a progressão para finalizar o trabalho: falta clareza. O gênero escolhido foi o Neo Soul e por ser um gênero relativamente novo, algumas técnicas específicas ainda não foram amplamente divulgadas, muito menos inclusas na grade do curso. Corajosa e ousada como só ela, Tauany me joga uma verdadeira bomba no colo.
— Precisamos identificar o que é pra ser mais suave e o que é pra ser mais intenso nessa faixa. A variação dinâmica é múltipla nesse gênero, então temos que diferenciar todos esses tons, sem prejudicar a qualidade do som final — Tomo a dianteira e em poucos minutos, estou modificando sua faixa, encontrando os instrumentos, separando o vocal e deixando que todos os componentes se falem e harmonizem entre si, mas brilhem em sua individualidade sonora.
— Não estou mais aguentando esse baixo abafado, sem groove — Ela puxa outra cadeira, se sentando ao meu lado.
Uso os dois computadores ao mesmo tempo, o meu para buscar informações e o do campus para colocar em prática o que os fóruns americanos me dizem para fazer na faixa de Tauany.
O processo de equalização é demorado, pois, nenhuma de nós duas sabe exatamente os conceitos da técnica, mas a curiosidade é grande e nos faz querer entregar um trabalho completo, sem limitações por conta do não saber.
Corrijo o tom da voz, adiciono groove ao baixo, separo os metais e a guitarra solo se destaca por consequência. Os ruídos são reduzidos e o volume, ajustado.
O gênero tende a valorizar uma atmosfera mais imersiva, é a voz que faz a ponte, que traz o ouvinte para o ponto de ruptura e é algo profundo, intenso.
O som arrepia os pelos de meu braço e após alguns ajustes menores, estou pronta para ouvir a canção no aparelho de som, a fim de testar a qualidade da faixa.
Em certo ponto, Tauany e eu nos levantamos, dançando ao som de sua mais nova música. Ouvimos os quase três minutos em diferentes volumes, gostando cada vez mais a cada vez que ouvimos.
— É isso! Você é uma desgraçada talentosa e abençoada com os melhores ouvidos que já conheci! — Tauany se joga sobre mim, os braços abertos e uma empolgação ímpar que me impede de me ofender.
— Acho que sim. Ficou boa pra caralho! — A abraço de volta, meio que emocionada ao perceber a diferença de algumas horas de trabalho na faixa.
O trabalho de Tauany está feito.
— "Bom"? Estou pensando em ligar para a rádio, gastar cada centavo e distribuir essa música. Tipo, agora! — Tauany chega a pular no lugar, tamanha a animação.
— Lembre—se de mim quando ganhar seu primeiro Grammy — digo brincalhona, voltando a me sentar na cadeira giratória com um sentimento muito bom crescendo dentro de mim.
— Com certeza. "Eu quero agradecer à minha primeira produtora, se ela não me obrigasse a cantar em nossos trabalhos da faculdade, eu não estaria aqui." — Tauany faz uma voz sexy, convencida e polida, segurando um peso de papel como o prêmio e olhando para além do que pode ver, sendo ovacionada em sua própria mente.
— E agora? — Pergunto sorridente, encarando a faixa desmontada diante de mim, no computador. Ainda é surreal como algumas barras juntas, em frequências diferentes formam uma canção complexa, cheia de vida.
Ser capaz de fazer isso é surreal.
— Agora, eu vou entregar o meu trabalho muito mais confiante — Tauany se senta também, ofegante e ainda muito feliz. — Você deveria entregar "Pôr do Sol Dourado". A música é sua, . Eu só escrevi a letra — Dá de ombros, Tauany não minimiza exatamente sua participação.
— Não sei... Não parece justo. Nós a fizemos juntas — Me sinto sem jeito, não gosto de me aproveitar de certas situações. A propriedade intelectual de minha amiga é algo que quero proteger, não me aproveitar dela.
— Ela é sua, . A ideia foi sua, o trabalho difícil foi todo seu. É uma música linda, se você não a entregar como seu trabalho de conclusão de semestre, vou dar um jeito de sabotar qualquer outra coisa que você apresente — Tauany decide irredutível e eu rio, mas acabo por aceitar que meu trabalho esteja quase terminado. Eu não teria outra opção melhor que esta faixa, de qualquer forma.
Todo o trabalho que tive para colocar cada pequena ideia junto com as outras e criar algo do qual tenho orgulho, me dá frio na barriga. Quase não parece possível ou certo.
— Tem certeza? — Mordo o lábio inferior, nervosa.
— Absoluta. Você merece a nota máxima de toda a classe. "Pôr do Sol Dourado" merece a nota máxima — Tauany me garante e com isso, não posso discordar.
Um alívio palpável me acompanha de volta para casa. Não há sensação mais gratificante do que a de trabalho feito, de tempo sobrando, de tarefa designada e executada com alguma perfeição.
Estou orgulhosa de mim como nunca estive antes. Sinto meu sangue correr com mais certeza, meus passos mais decididos, minha postura mais ereta e minha mente mais clara. Como no banho de chuva do outro dia, me sinto coexistir com meus problemas, com a calma de enfrentá-los um de cada vez, encarando a realidade sem desespero.
Sem perder o fôlego.
Talvez eu só esteja fugindo do que não consigo resolver, só que está dando certo e eu não tenho a coragem necessária para cutucar esse vespeiro que é a minha vida amorosa.
— Oi, — diz parte de meus problemas, Guilherme.
— E aí... — Devolvo sem vontade, ajeitando os botões ainda abertos na parte de baixo da camisa preta.
— Seu Valter disse que tenho que subir para pegar o microfone. Pode abrir a porta pra mim? — Pisco algumas vezes, pensando em uma forma de escapar dessa situação.
— Eu pego, não é tão pesado — Ele ergue uma das sobrancelhas, malicioso.
— O que foi, ? Não tem controle das suas ações? — Ele brinca com o piercing da língua, me olhando com as pálpebras meio fechadas, sedutor.
— Eu tenho controle de tudo — Respondo incomodada, detestando toda essa proximidade entre nós.
Sei... — diz devagar, quase sorrindo.
— Vamos logo, então... — Saio marchando para fora da lanchonete, fazendo o caminho pelo qual acabei de passar. Subo os degraus de dois em dois e abro a porta para Guilherme. Escolho ficar na pequena plataforma diante da porta enquanto ele entra, pega a maleta do microfone, a caixa de som e o pedestal, de uma vez só. — Cuidado com isso, é alugado — Aviso com um tom de voz muito cauteloso, não quero ser chata.
Não entendo bem porquê quero tanto mantê-lo de bom humor, eu não deveria ligar para o estado de espírito de Guilherme de jeito nenhum. Mas a vontade de não arranjar encrenca com ele é maior que qualquer ressalva.
— Eu sei... — diz monótono, mas acaba por sorrir quando passar por mim.
— Para de dizer isso... — Estou irritadiça, isso parece diverti-lo.
Enquanto Guilherme desce as escadas, tranco a porta e espero que ele esteja dentro da lanchonete para descer os degraus e voltar ao início do meu turno.
— Por que está tão brava? — Guilherme me surpreende na saída do pequeno vestiário ao lado da cozinha, me encurralando contra a parede. Literalmente.
— Quem disse que estou brava? — Devolvo e ele estala a língua dentro da boca.
— Não fala comigo, não olha pra mim. Eu sei que fui um imbecil no passado, mas agora estou tentando ser uma pessoa melhor. Eu sei que mereço o mínimo de consideração, um mísero farelo de humanidade — Guilherme se aproxima, abre os braços e toca a parede e o armário de latão com as pontas dos dedos. Eu acompanho seus movimentos engolindo em seco.
— Quanto drama... — Decido optar pela defensiva, me encostando na parede atrás de mim de bom grado, apoiando um dos pés nela só para mostrar a ele que sei o que ele está fazendo e que não vai funcionar.
— Então, você me beija e... E então, não quer mais saber de mim? — Guilherme toca no assunto e eu me forço a pensar naquela noite. Não na irritação profunda que senti por cada respiração de Bia, mas no final dela. Acontece que não me lembro de muita coisa antes de me sentir muito mal e depois pior, e então, decidir beijar Guilherme em sã consciência de que estaria pensando em .
O que foi que eu fiz?
— Eu te beijei e o que mesmo? — Na curiosidade, eu me aproximo. Chego a estreitar os olhos, forçando a memória, mas ela não vem.
— Não acredito nisso. Você não se lembra de nada? — Inclino a cabeça para o lado, negando rapidamente. — Olha... você se superou, . Não, você me superou — Guilherme faz um som reprovador, uma expressão desgostosa no rosto. Ele balança a cabeça de um lado para o outro em pura decepção, me deixando sozinha com o sentimento de que fiz algo tão errado que foi demais até para ele.
À noite, na tentativa de diversificar o público completamente, talvez até nos tornarmos outro tipo de restaurante, estendo o horário de serviço com ajuda de Tina, Guilherme e Marina, a nova garçonete cheia de experiência e alto astral.
Ela tem quase trinta anos e simplesmente adora a rotina do serviço. Ela gosta do som da campainha na hora de retirar um pedido, até mesmo os clientes ranzinzas. Ainda estou tentando me acostumar com o grande raio de sol em pessoa que é a mulher, mas gosto de sua energia e mais ainda, de todo seu bom trabalho.
Ela tem sido de grande ajuda com o treinamento do Gui, além de ser outra força feminina que incentiva Tina a melhorar dia após dia. Definitivamente uma boa adição para a lanchonete.
— Quando vamos poder usar este microfone? — Mari pergunta, usando o microfone. Assim que o viu parado em um canto, ela decidiu que deixar o equipamento ligado traria boas energias. Estou muito ocupada para discordar.
— Você quer ser a primeira? — Seu Valter se anima, ajeita o pano de prato no ombro e se apoia no balcão. Ele passa os olhos rapidamente pelas mesas, obtendo uma certa empolgação dos poucos clientes na noite fria.
— O que temos aqui... — Ela agarra o pequeno “cardápio” de músicas disponíveis, escolhendo um dos números. Ela mesma opera a máquina, que não passa de um pequeno aparelho de som atrelado ao microfone, o volume é decidido na caixa de som adjacente.
Mari sorri, aquece um pouco a voz e logo inicia a canção "Because You Loved Me", de Celine Dion. A boa gravação dos instrumentais da música é completa, com o vocal de apoio bem acentuado e eles combinam bem com o volume da voz afinada de Mari.
Enquanto continuamos o serviço, ela faz uma apresentação emocionante e entrega tudo, inclusive nos agudos. Não consigo evitar de ter ideias mirabolantes para ela cantar, mas como não sou boa compositora, não dou muita atenção à essa coceirinha no cérebro.
É tarde e estamos prestes a fechar. Mais um cliente entra na lanchonete e eu ouço Tina bufar frustrada e cansada. Levanto os olhos, na tentativa de salvar nosso último cliente do dia dos maus tratos exaustos de Tina quando vejo de quem se trata.
Enquanto atravessa o salão sorridente, ela parece andar lentamente, como na cena de um filme em que a garota dos sonhos entra na sala e uma brisa agradável bagunça seus cabelos perfeitos de forma que evidencie o quanto ela é bonita. Bia.
Eu quero correr e me esconder, me agachar e esperar em baixo do balcão da copa até que ela vá embora. Mas não faço isso, pelo contrário, desvio o olhar e tento prestar atenção somente em Mari incorporando a própria Celine em um bis da última parte, pois, não saiu de seu gosto.
— Eu quero salgados de queijo. Esse aqui também — Bia pede animada para uma monótona Tina.
— O que mais? — A mulher apressa, parecendo que está meio morta, meio viva.
— Você conhece o , certo? O moreno, alto, que anda de bicicleta? — Engulo em seco, sentindo bem os olhos de Tina queimando a pele de meu pescoço, energizada de repente pela possibilidade de fofoca.
— Sei, sei... O que é que tem? — Eu tento não ouvir, tento ignorar a presença dela e tratá-la como mais um cliente qualquer. Mas eu quero, assim como Tina, saber o que tem a ver com sua próxima refeição.
— Você sabe o que ele costuma comprar aqui? — Bia pergunta prestativa e eu me sinto mal por tê-la tratado de forma tão rude. Eu deveria ter deixado minhas inseguranças de lado e acreditado no fato mais sólido de que se todos os meus amigos, inclusive Tati, gostam dela em algum nível, eu supostamente deveria gostar também.
Acho que nos conhecemos fora de contexto. Eu já tinha meus vieses.
— Enroladinho da salsicha! — Tina fala rápido, tirando a ideia maléfica do bolso de trás no último minuto.
Coço os olhos, entendendo exatamente seu plano. Eu sei que que não gosta de salsicha.
— Oi, Bia. Tudo bem? — Me pergunto se é tarde demais perguntar seu nome. Chamar alguém de quem não gosto muito pelo apelido é quase humilhante.
— Oi, — É uma verdadeira droga que ela saiba o meu nome. Agora é ela quem é magnânima. — Tudo sim.
— Pode deixar, Tina. A gente se vê amanhã — Cutuco a mulher pelas costelas e ela me sorri rapidamente antes de arrancar o avental e correr para o vestiário, pegando sua bolsa e saindo da lanchonete como o próprio vento. Se tem algo que a motive mais do que fofoca, é poder ir para casa. — Desculpe por isso, ela está aqui desde às dez da manhã — Rio sem jeito, ela me acompanha, educada.
— Então... — Ela passa os olhos pelos salgados e eu visto uma luva, abrindo a parte de trás da vitrine. Abro um pequeno saco de papel e coloco lá dentro algumas esfihas fechadas de carne e frango, as preferidas de .
Coloco tudo em uma sacola e deixo sobre o balcão, me afastando um pouco dele, para dar ênfase a oferta de paz que estou prestes a fazer.
— Volte mais vezes, teremos Open Mic aos fins de semana — digo baixo, comedida. Temo que se eu falar no tom normal de voz possa assustá-la.
— Eu vou pensar... Quanto deu? — Ela pergunta um tanto agoniada. Eu não a culpo.
— Nada, é por minha conta. Desculpe pelo outro dia — Respiro fundo, odiando ter que fazer isso.
— Obrigada. Boa noite, — Ela assente apressada e sai caminhando pela calçada com seu vestido longo e esvoaçante, com sua jaqueta fina que não combinam com o tempo.
Eu sei que dei o primeiro passo para termos uma dinâmica neutra, mas não consigo evitar odiá-la. Só de imaginar que ficará feliz com a comida e, ao vê-la tremendo de frio, ele a esquentaria em seus braços em agradecimento me faz querer enfiar a cabeça no forno. Mas ao invés disso, eu encerro o serviço e deixo que o seu Valter feche o caixa e consequentemente, a lanchonete.
Eu me deitei exatamente à meia noite, são quase uma e meia e eu ainda não consegui dormir. Fico pensando em cenários alternativos para me convencer da verdade. Em uma montanha-russa de pensamentos e perguntas sem respostas, decido ligar para uma de minhas fontes mais confiáveis: Tati.
— Onde você disse que a Bia morava mesmo? — Minha curiosidade é maior que qualquer formalidade.
— São uma e meia da manhã, ! — Tati resmunga, mas não soa sonolenta.
— Desculpe, você estava dormindo? — Me sento no colchão, as luzes acesas e as cortinas do dossel escancaradas. Fechá-las me deixa claustrofóbica, como se as perguntas inundassem o espaço vazio na cama.
— Não, estava transando — Minha melhor—melhor amiga fala com naturalidade.
— Ah... Certo... Que nojo — Vou tendo minhas reações aos poucos, afinal, meu corpo está cansado, só minha mente trabalha insana em busca de respostas.
— Não é como se estivéssemos transando agora..., mas estávamos entre uma e outra, sabe? — Diz casual, me fazendo rolar os olhos.
— Não, não sei — digo, como se não fosse óbvio. — E então, onde ela mora? — Insisto, Tati toma algum tempo para pensar.
— Na rua do hortifrúti — Tati suspira, indignada.
— O hortifrúti da rua seis ou o da avenida? — Refaço o mapa em minha cabeça, tentando encontrar um motivo para Bia desviar tanto de seu caminho até a casa de .
, são uma e meia da manhã... Você vai visitá-la por acaso? — Pergunta impaciente.
— Não. É só... Nada, esquece — Desisto, enfrentando a dura realidade.
— Conversamos amanhã, certo? Amo você — Tati sorri, eu sei.
— Ama nada. Só quer saber do Felipe — Resmungo rancorosa.
— Você só diz isso porque está solteira agora — Ela desliga, sem me dar chance de protestar, afinal, é outra dura verdade.
O cheiro de pizza é intoxicante e após semanas sentindo a essência de orégano grudada em minha epiderme, voltei a hesitar quando o assunto é massa, molho e queijo juntos.
Tudo é planejado e executado tão bem que eu nem sinto quando o volume de clientes aumenta, causando um certo trânsito entre os pedidos. Nada que Dedé e Gabriel não resolvam, já que a cozinha trabalha a todo vapor.
No salão, tudo corre bem e logo, as figurinhas carimbadas da noite da pizza começam a aparecer.
— E será que tem lugar pra sentar? — Tia Simone olha em volta orgulhosa, após um breve cumprimento.
— Claro. Por você eu até expulso alguém! — Ela gargalha e Ricardo acompanha. Mesmo sendo honesta, vou até a despensa e tiro de lá uma mesa dobrada.
— Espera, eu ajudo — Guilherme pega a cadeira que apoio embaixo de um dos braços com uma mão, enquanto a outra força a mesa para que eu a solte.
— Eu consigo levar — Insisto e ele ri de leve.
— Traz as cadeiras, então — Ele vai até tia Simone, a cumprimentando com educação e cuidado, pois, o jeito como ela o encara é ameaçador.
— O vem? — Ricardo é quem pergunta, aliviando a coceira na ponta de minha língua.
— Sim, direto do curso — Ela confirma e eu sorrio. Eu preciso vê-lo, nem que seja de longe.
— Quando ele chegar eu trago mais uma cadeira — Aviso prestativa.
— Talvez duas. Aquela menina, Bia, pode aparecer também — Ricardo comenta inofensivo, Tia Simone o encara com olhos arregalados. Ele entende o recado e para piorar, olha para mim com pena.
— Certo, duas cadeiras então — Sorrio educada e me afasto da mesa, escondendo toda frustração lá no fundo, para analisar melhor essa dor em privacidade.
Fico olhando o relógio de parede em um misto entre querer que eles cheguem logo e não querer que eles cheguem de jeito nenhum. Na segunda opção, enlouqueço aos poucos por pensar que isso significaria que eles estariam sozinhos na casa, então, torço para que eles apareçam e se caso estiverem mesmo juntos, não sei como vou agir.
— Quanta tensão — Guilherme cochicha quando tem um espaço entre uma música e outra. Sua ideia de abrir um microfone para o público foi bem aproveitada e as pessoas parecem estar se divertindo. Todos menos eu.
A seleção de músicas românticas e melosas me dão dor de cabeça e eu quero chorar ouvindo “Careless Whispers” somente mais tarde, no refúgio de minha cama quentinha.
— Você poderia parar de reparar em mim? — Peço irritada, ele sabe que não é exatamente com ele, porque morde o lábio inferior para não rir.
— Você me dá instruções confusas, princesa — Ele se aproxima, me encarando fundo nos olhos.
— Como assim? — Me viro inteira em sua direção, o encarando de volta.
— Você sabe o que fez... Não sabe? — Ergue uma sobrancelha, ainda indignado. Mas não lembro porquê.
— O que foi que eu fiz? — Cruzo os braços na frente do corpo, ele observa o botão em minha camisa se esforçar para mantê-la fechada. — Guilherme!
— Nada. Eu fiz tudo — Ele dá ombros, me deixando sem chão.
— O que isso significa? — Pergunto mais alto, em pânico.
— Se você não lembra, não foi importante. Deixa pra lá — Guilherme se certifica de que está tudo em ordem em sua porção do salão e decide tirar sua pausa.
Ele sai da lanchonete e eu me revolto, indo atrás dele.
— Não me venha com essa de “deixa pra lá”. O que você fez comigo, Guilherme? — Ele rola os olhos, mudando o lado de calçada para acender um cigarro. Suspiro nervosa, agitada com a possibilidade de Guilherme ter se aproveitado de mim. Maldita bebida. Eu nunca mais renuncio ao controle da minha mente assim, nada de bom acontece quando faço isso.
Irritada e me sentindo usada, dou meia volta para voltar ao salão e dou de cara com . Ele olha de mim pra Guilherme e engole em seco.
— Oi — diz meio sem jeito, como se tivesse perdido a vontade de falar.
— Quantas cadeiras preciso pegar? — Me ofendo com seu olhar repreensivo.
— O quê? — pergunta e eu olho por cima de seu ombro, buscando por seu encosto e a encontro bem perto da tia Simone.
— Você vai ficar ou não? Eu preciso pegar as cadeiras, se sim — Tento passar por ele, colocando o trabalho na frente dos meus sentimentos agitados dentro do peito.
— Esquece o papo da cadeira, o que está rolando, ? — me puxa pelo pulso, sem força, só o suficiente para me manter parada diante dele. Isso sim é doloroso.
Não sinto que possa conter meus sentimentos e eu preciso fazer isso. Estou trabalhando, não posso odiá-lo com a força de quem o ama demais.
Preciso me concentrar.
— Eu não sei! — Detesto me sentir tão perdida, vulnerável. Perto dele eu não pareço ter escolha.
— Eu vim só te ver — diz como se as palavras machucassem sua boca. — Não acreditei no que vi quando cheguei. A mesma menina de sempre, correndo atrás do Guilherme — Ele desdenha, irritado.
— Não é nada disso. Podemos conversar depois? — Peço constrangida, alguns clientes podem nos ouvir e eles não fazem questão nenhuma de disfarçar.
— Qual é o problema de ela correr atrás de mim? — Guilherme solta a fumaça de seu cigarro, o apagando sob a sola do sapato. Ele atravessa a rua e transforma a conversa em um triângulo, comigo no centro dele.
— Eu tenho uma lista enorme. Você tem tempo? — retruca, o encarando destemido.
— Todo o tempo do mundo, manda ver! — Guilherme cruza os braços, erguendo as sobrancelhas em desafio.
— Não. Não! — Me vejo entre os dois e não vou admitir que mais socos marquem mais um fim de semana na lanchonete. — Você tem clientes para atender — digo para Guilherme, me aproveitando da hierarquia para não lhe dar opção de recusar minha sugestão. — E você... por que se importa se estou ou não correndo atrás de alguém? Só... vá embora. Tenho que trabalhar.
respira fundo. — Desculpa, só odeio te ver perto dele — Eu odeio o quanto pode ser honesto consigo mesmo e comigo. Seus olhos buscam algo nos meus e eu engulo em seco, tentando manter a pose profissional e me apoiando nela para prosseguir.
— Tenho que trabalhar, não posso fazer isso agora — Repito exausta, ignorando os olhares atentos ao desenrolar do pequeno drama que acontece ao som de Roxette.
No final da noite, sinto meu rosto vibrar e doer a cada sorriso falso em agradecimento aos clientes. Ao subir para casa, vasculho em meu mp3 pela música e já nos primeiros acordes do icônico saxofone, estou deitada em posição fetal. A música começa e eu sibilo junto com Michael George: "I'm never gonna dance again, guilty feet got no rhythm."

É o último dia de aula pelos próximos trinta e tudo o que eu consigo pensar é porquê não estou na cama.
Ajeito a mochila nos ombros, sentindo o peso do notebook junto com os cadernos e livros que eu não precisava estar levando hoje, mas não tive a menor cabeça para desfazer a mochila e prepará—la para um dia leve de apresentações na noite anterior.
Animado com o resultado dos trabalhos entregues, o professor Alexandre decidiu fazer uma pequena mostra com os sons dos alunos cujas notas foram altas, abrindo o espaço do anfiteatro para os familiares interessados.
Bocejo cansada e certa de que meus olhos carregam bolsas de olheiras profundas. Mas aqui estou, no vagão de metrô na linha azul, indo em direção a estação São Bento.
Ainda estou de olhos fechados, sentada sobre meus próprios calcanhares quando Tauany me empurra, me fazendo cair de bunda no chão.
— Bom dia! — Ela responde alegre ao meu olhar mortal. — Estava meditando? É mesmo uma prática saudável — Tauany usa uma maquiagem brilhosa, o batom parece diferente nos cantos da boca, como se tivesse sido retocado em uma cor parecida, mas não exata. As roupas apertadas de noite denunciam que ela está na rua desde ontem e toda essa animação é uma mistura de adrenalina com o costume de aparecer na faculdade virada.
— Minha mente é muito barulhenta para meditar — digo com um meio sorriso, encarando as pernas de pelos descoloridos arrepiados com o clima frio de início de dia. — Por que precisamos estar aqui para ouvir os trabalhos? Eu já ouvi o meu e o seu, estão bons. Me deixem dormir! — Reclamo mal humorada, arrancando uma risada dela.
— Quer tomar um energético? — Tauany se senta ao meu lado, tirando duas latas da mochila.
— Está quente. Faz mais sentido tomar café — Comento sisuda e ela dá de ombros. O som da lata sendo aberta ecoa pelos corredores vazios e eu me pergunto de novo o que diabos estou fazendo aqui.
— O Tiago veio, você viu? — Ela me cutuca, me fazendo assentir sem vontade. — Nem falou comigo... Metido — Ela mostra a língua, descontente.
— Mudou de ideia sobre o perdido? — Ela dá de ombros de novo, me fazendo rir.
— Digamos que a dinâmica do nosso jogo mudou um pouco — Tau dá um gole em seu energético quente.
— Você chama um relacionamento de jogo? — Ela me responde com uma expressão tão óbvia que me faz rir.
— Acho que vai começar, vamos? — Tauany se levanta primeiro, me oferecendo sua mão. Eu a pego e seguimos para o anfiteatro.
Quando entramos, percebo que o lugar está vazio, exceto por um conglomerado de pessoas se sentando logo na frente. Mesmo de costas, reconheço o barulho que meus amigos podem produzir juntos e não consigo evitar um sorriso ao vê-los ali.
Tia Vanessa é a primeira que se vira e acena em minha direção, cutucando tia Simone, que acena também. Logo ao seu lado, vejo Tati e Felipe, e ao lado deles, . Ele percebe a agitação da mãe e se vira um pouco na cadeira, me olhando por cima do ombro.
— Amiga, aquele é o ? — Tauany gruda em meu ouvido, fazendo uma expressão engraçada de ultraje quando eu confirmo em um aceno acompanhado de um longo suspiro. — Você precisa escalar aquele homem e plantar uma bandeira com a foto da sua bem no...
— Vai começar, Tau! — A interrompo, temendo que o final da frase dela arruíne meu dia.
Nos sentamos próximas aos outros alunos — além de nós e Tiago, mais uns quatro gatos pingados apareceram —, aguardando o professor Alexandre iniciar a mostra.
— Este ano tivemos descobertas incríveis. Em uma curta, mas profunda viagem ao interior de nós mesmos, pudemos encontrar todo tipo de som e melodia. Os trazendo à superfície com a ferramenta certa e os ouvidos aguçados, encontramos obras primas e rudimentares, alimentadas pela curiosidade das mentes brilhantes da turma de Produção Musical de 2007. Eu costumo fazer isso ao final dos anos de curso, mas este ano eu não pude conter a qualidade apresentada pelos meus alunos em seus trabalhos. Com muito orgulho por seu empenho, curiosidade voraz e persistência, apresento hoje o material reunido pelos alunos de melhor performance desse semestre. Aproveitem — Ele conclui, iniciando uma espécie de listening party, dando a oportunidade de exibir alguns dos trabalhos de seus melhores alunos. É nítido no rosto dele o quão orgulhoso ele está.
O desânimo e o cansaço que eu sentia se esvaíram assim que passei pela porta e vi minha família esperando por mim, mas ouvir os trabalhos de meus colegas em alto e bom som me deixa energizada, arrepiada dos pés à cabeça.
Como o professor Alexandre disse, é mesmo uma verdadeira viagem pelas entranhas de cada um ali. Ouço todo tipo de gênero: Rock, Funk, Samba, Eletrônica, Blues, Neo Soul, Jazz. Personalidades, cores, toda uma vivência individual, que se torna comunitária pela associação. É incrível o que a música pode fazer.
Do outro lado, nas fileiras centrais do pequeno anfiteatro, meus amigos curtem cada um dos sons, empolgados e curiosos. Ansiosos para que o professor Alexandre anuncie o meu trabalho.
Sinto o nó na garganta apertar toda vez que, vencida por minha curiosidade mortal, olho de canto de olho para e ele balança a cabeça no ritmo da música que ouve, mas acaba sendo atraído pelo meu olhar, desviando dos outros para conseguir me ver.
Sinto o frio na barriga ao ouvir meu nome ser anunciado em um microfone. Estou nervosa, pois, na ausência de um bom aparelho de som, não tive a oportunidade de testar a equalização da faixa após todas as modificações que fiz, incluindo meus vocais. A nota já foi emitida e eu já fui advertida sobre o que fiz de errado e tudo o que posso melhorar para a próxima faixa que produzir. Foi uma nota satisfatória, justa e animadora. Estou tranquila com ela, o que congela meus órgãos por dentro é a possibilidade de ouvirem demais, encontrarem demais de mim ali.
Os quase três minutos de faixa é ovacionado de pé. Parte de mim se envergonha por ter um verdadeiro fã-clube a meu favor, mas logo tudo fica mais leve. Tauany assume os elogios e chega a se levantar para dizer que a letra é de sua autoria.
Sem discrição, a garota se vira um pouco para os assentos mais ao fundo, dando uma piscadela para Tiago, que hesita, mas acaba por sorrir, animando Tau.
Pouco mais de uma hora depois, confabulando com meus colegas de curso sobre quem tirou a maior nota, sou obrigada a me gabar. É divertido estar em primeiro lugar agora que encontrei meu ritmo. Na última apresentação importante diante dessas pessoas, eu apresentei confusão e incerteza, hoje eu lhes sirvo um rumo, o mesmo que está se formando diante de mim.
É tão empolgante.
— Não acredito que estamos oficialmente de férias — Tauany suspira, passando um dos braços sobre meus ombros.
— Vou sentir sua falta — Faço um biquinho triste e ela franze o nariz.
— Eu também. Prometo tirar três dias para te visitar, sabe como é, agendar a canoa, o helicóptero e tudo o mais — Tauany provoca, me fazendo rir.
— Eu te encontro no meio do caminho, para negociar sua entrada com o povo do nosso pequeno vilarejo — Entro em sua brincadeira, recebendo um rápido abraço da garota baixinha.
Tauany sorri, olhando por cima de meus ombros. Tiago espera forçando uma carranca, mas é só ela se aproximar, piscando os grandes olhos de cílios bem alongados que ele se derrete inteiro.
Assisto os dois saírem do campus juntos e não os desejo nada além de férias cheias de boas memórias, juntos ou não.
Vejo tia Vanessa na porta do anfiteatro, conversando com seu namorado como alguém que se segura muito para não o agarrar ali mesmo, é hilário vê-los tentar manter as mãos longe um do outro.
E pensando em tentações, sem mais desculpas, encaro parado no centro do jardim. Tati puxa Felipe, interrompendo qualquer assunto que ele fosse começar com meu ex-namorado. Ela me dá uma piscadela nem um pouco sutil e eles se afastam, deixando sozinho.
— Então, você é uma produtora agora — mantém os braços para trás, hesitante e sem se aproximar muito. A distância que deixei de propósito é segura e saudável para nós dois.
— Ainda não, faltam mais três partes do curso — Conto nos dedos, envergonhada.
— Você produziu aquele som, não foi? — Assinto devagar. — Então, você é uma produtora. Uma muito boa, diga—se de passagem — Ele morde o lábio inferior, olhando em volta. Ainda está cedo e o céu claro intensifica a necessidade de estreitar os olhos.
— Valeu... — Troco o peso do corpo de uma perna para outra, o encarando em expectativa. — Aliás, como vocês todos chegaram aqui?
— Ah, essa é uma boa história — cruza os braços, me encarando com interesse. — A sua tia alugou uma van e nós nos empilhamos nela até aqui — Ele ri ao se lembrar da cena. — Na verdade, tem bastante espaço e foi uma viagem confortável, mas quando nos encontramos em frente à lanchonete antes do sol nascer foi como se preparar para uma viagem para a Aparecida do Norte — Ele ri mais forte, eu acompanho, mesmo não tendo a menor ideia do que é uma viagem dessas. Minha família nunca foi das mais religiosas. — Ah, se alguém perguntar, nós somos todos seus parentes — Comenta divertido.
Considero a última informação enquanto vejo Tati e Felipe aos beijos entre as pilastras mais afastadas do jardim.
Falamos sobre a mostra e sobre como o campus é diferente do que imaginamos quando somos crianças. Influenciados pela cultura americana, imaginamos que a construção de uma faculdade seja completamente diferente. Mais moderna, mais interessante. Após passar a decepção arquitetônica, está convencido de que está pronto para passar pela experiência. Ansioso, até.
— Falta pouco, está animado? — Pergunto enquanto andamos pelo jardim. Os esforços de meus amigos e tia para deixar que nós conversemos com privacidade é totalmente quebrado pela própria curiosidade deles. Os olhares furtivos e ouvidos em pé fazem com que o assunto de mais urgência seja cada vez mais adiado.
— Não exatamente. Eu sei que é só o começo de uma jornada longa. Acho que estou mais me preparando para o que vem depois de entrar na faculdade — Ele sorri de lado, ligeiramente nervoso.
— Você é bom em tudo o que faz, psicologia vai ser moleza — Não consigo evitar um esbarrão amigável em seu braço. O mísero toque eletriza minha pele e eu me arrependo imediatamente.
— Não tenho certeza. Parece que dei uma mordida maior do que posso mastigar — Ele coça a nuca, indeciso. — Não quero te encher com essas coisas, hoje o dia é seu.
— Eu não quero ter um dia — digo rápido, me arrependendo do jogo de palavras. Eu paro de andar, respiro fundo e organizo as ideias. — Eu quero saber como estão as coisas. Como você está. Me conta? — hesita, mas decide continuar o caminho comigo enquanto me deixa inteirada de como andam as coisas em sua vida.
Beto concordou em modernizar a bicicletaria, contanto que dê conta do serviço extra e se encarregue de toda e cada mudança necessária, o tornando uma espécie de sócio no micronegócio. Desde então, ele tem equilibrado o trabalho durante o dia e os estudos durante a noite. Ele não demonstra, mas parece cansado. Parece estar precisando de uma tarde de carinhos e filme ruim na TV. Sei bem como é, porque estou querendo a mesma coisa desde que terminamos.
Desde aquele dia em que, estranhamente, tudo mudou para melhor, venho querendo comemorar com horas sem fazer nada, com em volta de mim.
— Acho que as coisas vão se acalmar quando eu estiver estudando de manhã e trabalhando à tarde. Ainda vou estar cansado, mas terei a noite para descansar — Assinto devagar, sem coragem para dizer que ser jovem e ter várias responsabilidades que consomem muito de nosso tempo e esforço mental pode ser extremamente exaustivo, extinguindo qualquer período que possa ser chamado de “tempo livre”. Não importa quanto planejamento e disciplina estejam envolvidos, simplesmente não dá para dar conta de tudo. Ainda mais porque não conseguimos deixar uma chance de nos divertir escapar. Ou ter a necessidade preencher uma noite insone cantando clássicos dos anos 1980 de calcinha em plenos pulmões, pois a alternativa é chorar descontroladamente por não saber como lidar com um término ou a vida em si.
— Você pega o jeito, eventualmente — Suspiro sem jeito, ignorando meu devaneio. — Me avise quando souber como — Solto uma risada esganiçada, achando que, assim como o caminho pelo jardim, o assunto também tivera acabado.
— Sai comigo hoje? — pede de repente, evitando os olhares de Tati e tia Vanessa sobre nós. — Quero dizer, todos nós vamos para a lanchonete e... Eu estava pensando se você... Depois do trabalho, claro. Ou podemos fazer outra coisa, outro dia. Você... você é quem sabe — Preciso tomar algum tempo para superar a vontade de gritar ao ver agir dessa forma por minha causa. Tão nervoso, com sua respiração entrecortada em um riso meio desesperado, os olhos bem abertos em expectativa. Desvio de seus olhos para tentar conter a sensação quente que toma meu peito.
— Mas... E a... — castiga seu lábio inferior inocente e macio com seus dentes brancos e bem alinhados. Eu não poderia recusar seu convite, até se não estivesse morrendo de vontade de sair com ele. Para qualquer lugar, para fazer qualquer coisa.
— Nós podemos falar sobre tudo o que está passando na sua cabeça mais tarde, pode ser? — Assinto rapidamente, engolindo as perguntas que se acumulam no fundo de minha garganta. — Vamos voltar pra lá, não sei se aguento mais os olhos de todo mundo sobre mim. Não consigo pensar direito com tanta pressão — ri, mas sei que ele está nervoso e somente uma pequena parte dele está aliviada por eu ter concordado com um encontro. Ele hesita, optando por dar uma batidinha amigável em meu ombro antes e se afastar.
— Pronta para ir? — Tia Vanessa se desdobra para estudar tanto minhas expressões quanto as de , que chega a corar com tanta atenção.
— Para com isso, pelo amor de Deus — Fecho os olhos, sentindo os ombros pesados e um cansaço tão grande que não consigo nem brigar com ela.
— ‘Tá bem, mas quero saber detalhes depois. — Ela insiste, me fazendo bufar frustrada.
— Vocês tornam tudo isso tão mais estranho do que já é... Que droga — Reclamo ouvindo as risadinhas maliciosas e reprimo a vontade de ser mais uma buscando por sua expressão cheia de presunções, mesmo que eu seja a mais interessada nos pensamentos de agora.
— Vamos almoçar para comemorar? — Tia Vanessa sugere, mas eu intervenho antes que ela peça a opinião do júri maior.
— Podemos ir para casa e comemorar depois? — Jogo minha contraproposta com fé de que me deixarão descansar durante a tarde. Não compreendo o interesse coletivo em comemorar minhas férias, mas não é todo dia que querem me celebrar por qualquer razão que seja. Desde que eu possa me presentear com uma longa soneca, eu topo qualquer coisa.
— Mais tarde nós vamos jantar com a Simone e o Ricardo — Minha tia ajeita os cabelos para trás da orelha, os olhos vagam pela pequena aglomeração de pessoas e eu sei que o “nós” não tem nada a ver comigo.
— Tudo bem — digo menos mal humorada. — Vocês acordaram cedo, vieram até aqui. Isso já significa muito, já é uma comemoração em si. Obrigada — Vou até ela, a abraçando meio de lado, agradecendo a todos por virem.
Na volta para casa, nos esprememos na van e para minha sorte e surpresa, se senta ao meu lado.
Em silêncio e com pelo menos quarenta minutos sem nada para fazer, caímos no sono. Minha cabeça encostada em seu ombro, sua cabeça encostada na minha. Não é muito, mas significa tanto. Como pegar um pedaço sólido de paz e afofar abaixo da mente.
— Amiga, espera! — Tati desfaz os nós nos dedos de Felipe e corre até mim, antes que eu abra o portão. — Já ia esquecendo, tenho umas polaroids com o seu nome nelas.
— Eu não assinei nada — digo grogue, essas sonecas rápidas de carro parecem me deixar mais atordoada que as sonecas normais.
— É só um modo de dizer, minha mumiazinha fofa — Tati afaga meus cabelos, me entregando uma foto instantânea. A foto é escura e no primeiro olhar não chama muito a atenção.
Mas ao ajustar a vista e perceber que estou na foto ao lado de , no jardim do campus, sinto uma vontade súbita de rir. Um riso surpreso, emocionado.
sorri olhando para mim enquanto eu pareço esconder discretamente uma expressão derretida por alguma coisa que ele disse.
— Vocês nunca mudam, não é? — Tati acompanha minha contida e cansada alegria.
— Obrigada, amiga. Por tudo — Tati me abraça brevemente, voltando a correr para Felipe.
— É melhor você estar descansada para mais tarde! — Minha melhor-melhor amiga ameaça e eu rolo os olhos, voltando a observar a foto.
Ela tem razão, apesar de estarmos alguns meses mais velhos e eu sentir que vivi uma vida inteira somente nos últimos oito, a foto capta a essência do que representa pra mim. Ele sempre vai ser uma surpresa pela qual eu nunca estarei pronta, alguém que sorri e faz crescer dentro de mim uma luz tão forte que me faz temer ser tão falha, arrancando de dentro o melhor de mim por simplesmente ser quem é.
Logo estou deitada em minha cama de novo, um alarme irá soar estridente em exatas duas horas e meia. Ao lado do despertador, em uma tentativa de animar a versão de mim do futuro que vai querer continuar dormindo, pousa a foto que Tati me deu de presente. Sorrio esperançosa, esta noite está prometendo possibilidades e eu as aceito uma a uma conforme caio no sono.
A primeira tentativa da Noite do Microfone Aberto foi um fracasso, segundo Guilherme e Tina. As canções melosas e saídas direto do túnel do tempo dos anos 1980 e 90, não os agradaram. Por outro lado, seu Valter, Mari e eu não poderíamos ter ficado mais alegres com o resultado. No meu caso, de uma forma geral, receber clientes por volta dos quarenta é mais rentável. As músicas foram só um bônus, pois eu queria ter aproveitado mais as apresentações. Descobri que tem gente talentosa por toda parte e com exceção de alguns poucos que escolheram uma música pelo impulso da bebida e acabaram fazendo com que todos rissem, ouvi muitas vozes bem afinadas.
Hoje tenho a sensação de que vão encarar o microfone disponível com mais coragem, além de músicas, espero que alguém leia poesia, ou conte boas piadas. Qualquer coisa além do silêncio cortado pelo som de talheres batendo nos pratos.
A animação geral em torno de mais uma fase concluída por mim me intoxica e contagia lá pelo final da tarde. Em certo ponto, paro de me questionar porquê estou sendo tão cumprimentada pelo fim do semestre na faculdade. Não parece muita coisa pra mim, mas para eles, significa muito mais do que consigo compreender. No final das contas é bom, só eu sei como tem sido desafiador atravessar cidades e me dedicar a todas as minhas obrigações com o máximo de mim.
— Tudo bem aí? — Seu Valter pergunta, se aproximando meio receoso. Observa meu trabalho ao organizar o troco para mais tarde e dá um sorriso de lado, meio escondido pelo bigode grisalho. — ‘Tá indo bem, menina — Ele levanta o braço, tocando minhas costas com uma hesitação imensa.
Deixando de lado toda a lógica, aceito o abraço desajeitado do homem mais velho. Ele está nitidamente emocionado e apesar de não entender exatamente porquê, deixo minhas perguntas de lado.
— Obrigada, seu Valter — Sorrio sem jeito, sei que deve ser difícil para ele expressar assim os sentimentos. Ele solta uma risada nervosa e seca os cantos dos olhos, me fazendo percebê-los marejados.
— E aproveita também, a vida passa rapidinho — A voz embargada dele me emociona também. Há muito mais do que um simples cumprimento entre patrão e funcionária ali.
— Pode deixar — Dou uma fungada discreta, chacoalhando a cabeça para reprimir pensamentos que não tinha há algum tempo. Ver um adulto chorar é desesperador.
O homem respira fundo, estala a língua na boca e se afasta, seguindo o serviço, que começa a ficar intenso com o cair da noite.
Há alguns anos, a filha do seu Valter, Camila, faleceu após ter uma complicação em uma cirurgia rotineira e aparentemente simples.
Se estivesse viva, a Camila poderia estar se formando no final deste ano.
Acompanho o seu Valter com os olhos, sentindo emanar dele uma preocupação com o futuro, uma saudade que nunca passa e que o mantém voltando ao passado. Deve ser um presente incompleto, e disso eu entendo bem.
— Se cantarem “Menina Veneno” hoje eu não volto mais! — Tina reclama, os braços cruzados e os olhos fixos no equipamento ainda intocado. Desvio minha atenção para ela e quase rio de sua expressão enojada.
— É uma música maravilhosa! — Mari agita o vestido longo que veste em uma corrida até nós.
— Qual é a do abajur feito de carne? — Guilherme pergunta, se juntando à conversa.
— “Cor de carne” — Corrijo, ele franze a testa.
— Pra quê?! Não rima com nada — Ele se indigna, me fazendo rir.
— Não importa, desde que não cantem hoje — Tina volta a reclamar, a repulsa refletida em seus olhos.
— Coitado do Ritchie — diz Mari, arrasada.
A campainha interrompe a pequena discussão e as garçonetes se enfileiram organizadas para retirarem seus pedidos e se separam no salão, os entregando em suas respectivas mesas.
— Quer fazer uma aposta? — Guilherme sugere e eu demoro a perceber que ele esteja falando comigo.
— Eu preciso que a Tina volte amanhã, não a incentive a faltar por causa de uma música — Ele ri, mas balança a cabeça rapidamente, se aproximando de mim.
— Se cantarem “Menina Veneno” eu te beijo. Pode ser na bochecha, não precisa fechar os punhos — Ele olha para minhas mãos e continua sorrindo.
— Guilherme... Vai trabalhar — digo irritada, muito menos do que gostaria de estar. Ele ri travesso e dá meia volta no salão, indo atender a mesa onde um casal acabou de se sentar.
O som agudo do microfone sendo ligado arrepia a nuca de Tina, eu vejo quando ela faz uma expressão desgostosa quando “Evidências” começa a tocar. Ela simplesmente odeia toda e cada música, não me sobra alternativa além de rir de sua carranca.
Não temos a mesma sorte da outra noite de encontrar talentos disfarçados de clientes, um senhor já alterado canta com emoção interpretando a música de Chitãozinho e Chororó, um clássico brasileiro dos anos 1990.
Eu tenho que disfarçar, pois, em sua performance acalorada, eu sou seu objeto de inspiração. Ele aponta para mim, massageia o próprio peito. É tudo bem bizarro e hilário, mas não sinto que devo pender demais para uma ou outra reação. O coitado parece estar sofrendo bastante.
Ao olhar em volta, vejo Guilherme rindo tanto que seu rosto está vermelho.
— Quanto tempo tem essa música, pelo amor de Deus? — Pergunto entredentes quando Tina passa por mim.
— Agora não é engraçado, não é?! — Ela provoca, mandando um beijo para o senhor alterado, que inclui seu flerte na performance, forçando uma rejeição a ela.
— Eu não sou paga pra isso... — Resmungo em um sorriso polido, lentamente me distanciando conforme a música parece não ter mais fim. Fora do alcance do olhar de nosso artista da noite, eu rio e me recomponho ao mesmo tempo. Um leve constrangimento me faz querer esconder a cabeça no freezer.
Após “Evidências”, ainda não satisfeito em propagar sua paixão fervorosa, “Borbulhas de Amor” é interpretada pelo mesmo senhor apaixonadamente embriagado. E nem pagando eu entro no salão enquanto essa música toca.
— Oi, ! — Amália acena contente. Ela se senta em uma mesa mais afastada com os amigos.
— Alguém tem um monólogo pra fazer? Você precisa tirar esse tiozão de lá — Jorge se levanta, me dando um beijo no rosto.
— Como assim? Eu o contratei pra fazer um set inteiro — Brinco e meu amigo gargalha já amolecido. — Vocês têm tudo de que precisam? — Olho para a mesa, onde um refrigerante de dois litros roda pelos copos dos integrantes da mesa.
— Só esperando a pizza, sabe como é a larica... — Jorge pisca um dos olhos. Vermelhos e devagar demais.
— Saquei... — Rio de sua expressão engraçada e procuro pela avenida, esperando pela minha comitiva olímpica. Está tarde e ninguém apareceu ainda. Nem Tati com Felipe em seu encalço, nem o .
— Vamos sair mais tarde? Estou fazendo o convite agora para você não ter escapatória — Amália sorri com o lábio inferior preso entre os dentes.
— Vamos ver... — Ela estreita os olhos quando dou de ombros.
— Você vai querer ir — diz sinuosa, me deixando curiosa. O que poderia me fazer adiar meu encontro marcado com meu colchão?
Voltando para o salão, vejo que Mari e o seu Valter têm uma pequena discussão perto do microfone.
— O que houve? — Sibilo para Mari e ela sorri sapeca, dando o microfone na mão dele e ficando ao seu lado. “Hello It’s Me” de Todd Rundgren começa a tocar. Seu Valter estala o dedo e canta o que lembra da letra da música, mais se divertindo do que qualquer coisa. Mari faz os vocais de apoio e ele chega a dançar com seus quadris emperrados pelos anos.
— Vai, Valter! Vai, Valter! — Guilherme puxa o coro, incentivando os clientes a curtirem também. O mais velho o olha torto, mas agradece aos gritinhos animados que recebeu por causa dele.
A música acaba e logo, existe uma lista de nomes de pessoas que querem cantar também. É Mari quem controla o tráfego delas pelo microfone.
— E aí, será que vai rolar um abajur feito de carne hoje? — Gui provoca, esbarrando em meu ombro.
— Quer parar com isso? — Ele levanta as mãos, com um sorriso perigoso nos lábios. Rolo os olhos e atendo uma das mesas de Mari. Levo o pedido para a cozinha e aguardo até que esteja pronto.
Nos primeiros acordes, não reconheço a música que toca. Só quando a caixa do supermercado começa a cantar que eu fecho os olhos, contando os segundos.
Antes mesmo do refrão, Guilherme se materializa na minha frente, sorrindo vitorioso. Ele se inclina e deixa um beijo estalado em minha bochecha. Quando ele se afasta, meus olhos estão presos nos dele e eu chego a virar um pouco a cabeça, o acompanhando com o olhar.
Quando percebo o que estou fazendo, eu não sou a única. olha de mim para Guilherme com uma sobrancelha erguida, o maxilar travado.
Ele puxa mais uma cadeira, se juntando aos amigos na mesa mais afastada do salão. Em seu encalço, cumprimentando a todos, Bia exibe seu costumeiro sorriso aberto.
Eles chegaram juntos.
Com o microfone já em uso, Mari volta a seu posto e eu fico livre. Amália estica o pescoço e me chama com a mão.
— Merda! — Digo entre um sorriso forçado e dolorido. Caminho até eles querendo dar dois passos para trás a cada um que dou para frente.
... — Bia não parece feliz em me ver, mas tudo bem. Estou lutando contra a vontade latente da extinção dos seres humanos por causa dela neste exato momento. Não somos perfeitas, temos isso em comum.
— Oi — digo me virando para , ele sorri pequeno, sem me olhar diretamente. — Sabe se a Tati e o Felipe estão vindo? — Pergunto casual, vendo que ele dá de ombros. Ele parece irritado, mas quero continuar fingindo que não sei disso ainda. — O que vão querer?
Anoto seus pedidos e os levo de volta para a cozinha. Estou tensa, com a boca seca. Nervosa com como a noite pode se desenrolar.
Tudo corre bem no restaurante, com os pedidos saindo todos juntos, peço ajuda a Tina para carregar tudo para a mesa, mas ela está ocupada com uma mesa enorme onde duas famílias cheias de crianças se sentaram juntas, me restando somente Guilherme.
Ele posiciona as duas pizzas sobre a mesa, eu disponho as cervejas e os refrigerantes de lata e me certifico de que tudo esteja em ordem antes de me afastar com um sorriso.
— Caralho, acho que o vai me matar só com um olhar — Guilherme cochicha andando em meu encalço.
— Ele não é o único correndo esse risco — Devolvo rápido, o encarando com raiva.
— Você não tem senso de humor — Guilherme empurra meu braço, me fazendo rir de sua expressão afetada.
— E você superestima o seu beijo — digo baixo, o acertando em cheio.
— Como é que é, princesa? — Guilherme que já estava adiante, se vira de repente e me faz esbarrar em seu peito. — Vai dizer que também beijo mal agora? — Ele me intimida pela proximidade, me fazendo gaguejar uma resposta pouco clara. — Quem desdenha quer comprar, — Engulo em seco, sem resposta.
Não preciso nem me virar, eu sei que viu tudo pela expressão satisfeita de Guilherme, que se afasta e volta a trabalhar como se nada tivesse acontecido.
Eu tento fazer o mesmo, mas toda vez que tenho que passar pela mesa onde meus amigos estão sentados, preciso me esforçar para ignorar o par de olhos possessos sobre mim. Se não são os de , são os de Bia.
Mais tarde, estamos prontos para fechar e a agitação de meus amigos na calçada faz com o seu Valter insista que eu saia alguns minutos mais cedo.
— Vá e se divirta — diz o mais velho, com os olhos cansados. — Tome cuidado com os abutres — Ele agita as sobrancelhas, indicando o pequeno grupo de amigos em que Guilherme e se odeiam, cada um em uma curva da roda.
— Vou tomar... — Rio sem jeito.
Preciso de uma solução eficaz urgentemente.
Todo esse ar de triângulo amoroso está me deixando zonza e eu não gosto nada do caminho por onde estou me enfiando sem querer. Não sei se consigo continuar sentindo tudo o que venho sentindo sem explodir.
Chegou a hora de lidar com a minha vida amorosa.
Me despeço do meu patrão, de Mari e acompanho Tina para fora da lanchonete.
— O que vocês vão fazer? — Tina pergunta e eu levanto os olhos da tela do celular, onde digito uma mensagem para Tati.
— Não sei. Não faço ideia de onde estamos indo — digo distraída.
— Eu vou correr pra casa. Tenho coisas a fazer — diz maliciosa, cutucando minha cintura.
Recebo a resposta de Tati, dizendo que o jantar entre os pais dela e os de Felipe atrasou um pouco mais do que ela esperava, mas que já estavam chegando.
— E aí, trabalhadora brasileira. Vamos? — Amália agita, fazendo a atenção se voltar para mim. Engulo em seco, passando os olhos por todos eles.
— Posso me trocar primeiro? — Amália dá de ombros e eles voltam a conversar. Percebo que Bia fica tensa, o sorriso brilhante de dentes bonitos parece forçado e ao me flagrar encarando, ela rola os olhos.
Vou até o andar de cima, respirando fundo e absorvendo a atmosfera calma de minha casa. Tiro a camisa devagar, desabotoando os botões um de cada vez. Jogo a peça sobre a cadeira e piso na calça conforme ela sai de meu corpo. A luz da lua ilumina bem o quarto e eu procuro pelo vestido preto, longo e justo para usar com meus tênis e uma maquiagem simples, mas brilhosa.
Chego a cantarolar a música escolhida pelo seu Valter mais cedo, ajeitando os cabelos para cima e aproveitando para renovar o desodorante, sempre há a chance de uma leve sudorese por nervosismo me atacar. Quero estar prevenida.
Enquanto deixo o desodorante secar, resolvo que não vou usar sutiã. Abaixo a parte de cima do vestido e o removo rapidamente, agarrando as alças.
, posso usar seu... — Cubro o corpo com o vestido, esticando o tecido para me cobrir e obtendo cerca de 70% de sucesso na tentativa. — Banheiro — Meu rosto dói de vergonha conforme Jorge tem um vislumbre de meus seios.
— Caralho, por que ninguém nunca bate nessa porta?! É um ambiente aberto, pelo amor de Deus! — Estou gritando uma palavra sim outra não, tamanho o choque se multiplicando por meu corpo. Minhas bochechas esquentam tanto que sinto que vou desmaiar.
— Desculpa — Jorge fecha a porta rapidamente. Escuto uma agitação no fim da escada, a risada de Jorge e logo ele repete “ela está bem, ela está muito bem”. Merda.
Ponho o vestido e calço os tênis, respirando fundo várias vezes para me recuperar do susto. Com os dedos gelados e trêmulos de constrangimento, passo a sombra pó de borboleta branca no centro da pálpebra e reforço o lápis de olho.
Irritada, abro a porta com força, vendo todo mundo amontoado nos degraus.
— Disseram que você tem uma casa bacana — diz Amália, lendo minha expressão confusa.
— Podemos ir? — Vejo o carro de Felipe encostar do outro lado da rua e ele buzina, fazendo com que todos se dispersem devagar pela calçada.
Volto até minha cama e pego a pequena bolsa que peguei emprestado da tia Vanessa (sem que ela soubesse). Coloco meu celular, carteira e separo as chaves dos chaveiros. Bem, nem todos eles.
Tranco a porta, esfrego um lábio no outro para espalhar o gloss labial e começo a descer as escadas. Eu sinto Jorge olhando pra mim e querendo fazer piada, então o ignoro completamente, indo até o carro e agradecendo por ter com quem conversar além de todos que me viram seminua recentemente.
— Você está muito gata — diz Tati, se debruçando sobre o namorado para me ver mais de perto.
— Verdade — diz Felipe respeitoso, ele me mostra o polegar.
— Valeu — Faço uma gracinha para os dois, aguardando que eles saiam do carro. Não sei para onde vamos, mas sei que hoje nós vamos a pé.
Não demora até todos estarmos subindo a avenida, indo de encontro a uma praça ampla onde todo tipo de gente se encontra para passar a noite fazendo barulho e atormentando os vizinhos em volta. Parece divertido.
Mesmo de longe, a música pode ser ouvida e as conversas das mais diversas tribos faz um zumbido crescente conforme nos aproximamos.
— Fica perto de mim, aqui é meio perigoso — Sinto meu cotovelo ser puxado, me fazendo ficar para trás. É e ele não parece muito à vontade enquanto fala comigo.
— Eu agarro a sua perna, não deve estar cansativo o suficiente andar com a Bia pendurada na outra — digo irônica, sem pensar muito. quase ri, quase. Mas deve entender meu ponto quando continua a andar e vê Bia parada, esperando por ele.
Nunca estive aqui antes. Pedro nunca quis me trazer e ele achava que eu entenderia quando tivesse idade o suficiente para acompanhá-lo em um rolê como este.
A pista de skate localizada mais ao sul da praça é movimentada e a fumaça que vem de lá se junta rapidamente com as outras, menos aglomeradas pela praça inteira. É uma mistura doce de narguilé, cigarro e maconha que me deixa enjoada e me faz definir um tempo de resistência.
Procuro onde beber água e decoro bem a placa grande que indica a presença de uma borboleta específica na área. É uma placa detonada, toda rabiscada por canetas e restos de adesivos. Assim como o nome científico da borboleta, imagino que sua presença no lugar há muito não era observada.
Fico imediatamente entediada. É divertido nos primeiros dez minutos, onde quem está comandando a música parece conhecer o meu gosto e toca três conhecidas em seguida. Me faz dançar, mas depois de um tempo sem conseguir ouvir uma palavra sequer do que meus amigos dizem, fica irritante. Parece que para se jogar profundamente nessa atmosfera, preciso alterar minha mente alerta e produtiva, o que não estou disposta a fazer.
Sei que fui rude, mas acabo fazendo o que disse, ficando ao alcance de seus olhos.
Ele se diverte.
Dança e brinca com os amigos, arriscando alguns passinhos de dança enquanto relembram os bons e velhos tempos. Eu tentaria me aproximar, deixar que nossos corpos falem por nós e resolvam as coisas dançando bem perto um do outro. Só não consigo com Bia dançando ao seu lado, deslumbrante.
Eu vejo que ele olha pra ela, vez ou outra corresponde as investidas rítmicas em nome da diversão e então, eu tento parar de pensar nisso.
Danço com Tati e Felipe, achando hilário a sensualidade escondida nos quadris do rapaz. Decido me deixar levar pelo momento, só por um instante sinto a música agitar meus órgãos, fecho os olhos e deixo que ela me guie.
— Você dançando assim me traz boas memórias — Guilherme se envolve em meu ritmo, as mãos tocam minha barriga e eu respiro fundo, me virando em sua direção.
— O que você pensa que está fazendo? — O encaro fundo nos olhos, soando incrivelmente amigável.
— Não consigo parar de pensar em você. Faz alguma coisa — diz brincalhão, mas tem um certo desespero em sua voz.
— Não posso fazer isso de novo, Gui — digo entre uma risada. Ele me segura pela cintura, me mantendo perto. Estou calma, decidida de que não há nada neste mundo que me faça voltar a esse péssimo hábito. — Eu não sou a mesma pessoa que pensava que era apaixonada por você.
— Deve ser por isso que eu estou achando que te amo — Guilherme confessa, um pouco assustado. Sou pega de surpresa pelas palavras, em algum lugar dentro de mim eu quis tanto ouvir exatamente as mesmas palavras vindas dele e agora, elas não fazem a menor diferença.
— Isso é impossível — Apoio minhas mãos em seu peito, prestes a afastá-lo de mim.
— Por que sou eu dizendo? — Ele parece magoado.
— Sim, porque somos nós e por tudo o que houve — Guilherme solta minha cintura, me ouvindo atentamente. — Você definitivamente não me ama. Não amava antes e não pode amar agora, é absurdo — Eu chego a rir. Ele suspira e se afasta, me deixando com a sensação de que o magoei profundamente.
O que está acontecendo com o mundo? Onde foi que esta parte da minha vida ficou tão complicada?
Confusa, procuro por quem mais me traz clareza para a mente. Ao encontrá-lo, ele me olha com um desprezo que eu não mereço. O encaro de volta e indica um canto mais calmo na praça e eu abro meu caminho até lá.
— O que está rolando entre você e o Gui? — Questiona assim que eu chego perto.
— Nada — digo o óbvio e ele ri nasalado.
— Não acredito que está ficando com ele. De todos os caras, logo ele? — bufa irritado, me encarando com uma expressão que eu não conhecia.
— Por que você se importa? Você já está com outra pessoa! — Cruzo os braços na frente do corpo, irritada também.
— Eu me importo porque sei o que esse idiota fez com você. Você não merece passar por tudo aquilo de novo — É conflitante ouvir a preocupação de alguém em formato de bronca. Eu não entendo o que estou sentindo.
— Não é da sua conta. Você já tem outra pessoa para se importar. Aliás, onde ela está? — Devolvo o interesse e ele refaz o rosto em uma expressão confusa e irritada que quase me faz rir.
— Do que está falando? — Pergunta em um tom diferente, como se estivesse mesmo perdido na conversa.
— Não subestime a minha inteligência. Você sabe bem que estou falando da Bia! — rola os olhos, me fazendo sentir patética e odiar o tom de voz mesquinho que escapa de minha boca.
— Não viaja, — diz cansado. — Não tenho nada com ela — Ele se aproxima, lendo minha expressão. Eu desvio o olhar, considerando suas palavras por um momento. Eu preciso me esforçar para continuar duvidando.
— Não importa. Eu não me importo — Minto e ele percebe. Sua risada me captura e mesmo sustentando o olhar irritado de antes, toda essa proximidade está me deixando nervosa.
— Se importa, sim. — soa convencido.
— Não me importo. Eu beijei o Gui e posso ter feito mais, só não me lembro. E foi porque eu quis — Não sei o que estou dizendo. As barreiras que começavam a se dissolver, voltaram a se solidificar entre nós.
Os olhos de procuram pela verdade por todo o meu rosto, minhas palavras só não bastam. É quando me dou conta de que o magoei deliberadamente, só porque quis que ele sentisse o mesmo que eu toda vez que ele está com ela.
— Espero que esteja tão forte quanto parece. Dessa vez, não vou te ajudar a juntar os pedaços do que ele destruir — Engulo em seco, sentindo meus ombros murcharem.
— Não preciso da sua ajuda — assente devagar enquanto dá meia volta e sai da praça. Rio com sarcasmo quando vejo Bia correr atrás dele.
De volta a ação, decido que o estresse causado por ex-namorados não vale a minha atenção e sigo a noite com meus amigos.
O grupo triplica de tamanho com a aproximação de conhecidos de meus amigos. É quando faço amizade com um pequeno grupo de skatistas.
— Por que quando o assunto são os melhores rappers, as mulheres têm de ser citadas em uma lista diferente? — Amália questiona. Ela me passa uma garrafa de plástico de vinho barato, eu pego e entrego para a pessoa ao meu lado: um skatista bonitinho que está tão chapado que mal sustenta os olhos abertos, mas bebe o vinho.
— Simples: habilidade — Jorge comenta, segurando fumaça nos pulmões. — As minas não aguentam um freestyle — Ele recebe o cumprimento de outro skatista que concorda veemente.
— Queen Latifah, Missy Elliott, Lil' Kim, Lauryn Hill — Conto nos dedos. — Posso continuar se ainda não estiver envergonhado o suficiente pelo seu argumento.
— Me diz qual dessas ganharia uma batalha contra o 50 Cent — Jorge se agita, empolgado pelo desafio.
— Lauryn o comeria vivo — Tati solta a fumaça de um baseado para o ar, a voz rouca e sonolenta dá profundidade à opinião.
— E a Missy Elliott viria para dizimar a carcaça — Amália completa, me fazendo rir.
— Vocês estão loucas! As duas não têm o emocional de tomar sete tiros e continuar cantando! — O skatista apela, me fazendo rolar os olhos.
— Experimente se apresentar menstruada — Amália provoca, rindo da expressão enojada do rapaz.
— É a dor de sete tiros. Todo mês. Concentrada em um órgão raivoso que expele sangue. Sangue! — Tati completa, fazendo com que todos riam.
O clima está bom e é sempre interessante conhecer novas pessoas com opiniões malucas sobre o mundo. Mas o frio da madrugada começa a se entranhar entre as brechas dos pequenos grupos que permaneceram na praça.
Instintivamente, me levanto e limpo a poeira do vestido.
— Já está indo? — Jorge pergunta, brincando com a fumaça no ar.
— Já. Tenho que trabalhar amanhã — digo entre um estalar de pescoço e vejo quando Tati e Felipe se levantam também.
— Nós também já vamos — Em uma breve despedida, estamos descendo a pequena rampa na praça já quase vazia, com pequenos grupos aqui e ali.
, espera! — Jorge chama e eu fico para trás, vendo o casal se afastar lentamente, de mãos dadas. — Posso te acompanhar?
— Claro... — Digo sem jeito, me lembrando do episódio de mais cedo.
— Então... — Jorge começa. Ele guarda as mãos nos bolsos, um riso frouxo me deixando nervosa pelo assunto. — Queria me desculpar de novo, não pensei que sua casa não tivesse paredes — Ele ri e eu também, afinal, não teria como ele saber disso.
— Tudo bem, já passou — digo rápido, encerrando o assunto.
Caminhamos em silêncio pela avenida adormecida, mais adiante, Tati e Felipe conversam íntimos, soltando risadinhas maliciosas um para o outro.
— Então, quer sair algum dia desses? — Jorge lança a pergunta quando estamos há algumas quadras de minha casa. Tati está longe demais para me ajudar com uma intervenção e mesmo cansada de partir corações a noite inteira, sou obrigada a repetir a dose.
— Junto com o grupo? — Tento contornar a situação. Jorge ri, balançando a cabeça.
— Não... Só nos dois — Ele umedece os lábios com sua língua. Jorge está chapado, mas alerta. — Sabe, agora que você e o terminaram, pensei que você está liberada... Sabe, dessa coisa de ser irmã do Pedro e totalmente fora dos limites — Franzo a testa, sendo tomada pela total incompreensão.
— Ah, não acho que seja uma boa ideia — O silêncio volta a reinar e logo ele volta a rir.
— Beleza, então. Boa noite, — Jorge se afasta, fazendo o caminho reverso.
Fico parada no meio do caminho, concebendo o que acabara de acontecer.
Volto a me mexer, na tentativa de alcançar Tati antes de eles entrarem no carro e partirem. Ao longe, vejo Tati se despedir de alguém antes de fazer o mesmo comigo e com um suspiro, vejo sentado no meio-fio.
Aceno de volta para minha amiga e tiro a chave da bolsa. Me aproximo hesitante, essa maldita hesitação nos rondando é, de longe, a pior sensação.
Quando subo na calçada, vou direto para o portão. Ele não me olha de primeira, fica encarando os próprios tênis em uma respiração quase ritmada que me deixa ansiosa.
se levanta, mordendo o interior da boca e com uma expressão culpada no rosto.
Giro a chave na tranca do portão e ignoro com certa dificuldade o meio sorriso dele ao ver o único chaveiro com o qual escolhi sair esta noite.
Dou espaço e ele sobe as escadas primeiro. Estou nervosa, não sei o que estamos fazendo e todo esse silêncio está me matando degrau por degrau.
Ao entrar em casa, acendo a luz principal e deixo a bolsa sobre o balcão da cozinha. olha em volta, assimilando os novos detalhes que surgiram desde que ele esteve aqui pela última vez.
— O que foi? — pergunta quando seus olhos pousam sobre mim: olhos inquisidores, braços cruzados na frente do peito.
— Estou esperando a Bia saltar do seu bolso ou sei lá... — digo mal humorada, me irritando por estar irritada. ri. Não a risada escandalosa de quando percebe que estou ciúmes, uma mais contida.
— Ela está com o Gui, em algum lugar... — Ele estuda bem minha reação.
— Quando isso aconteceu? — Não consigo evitar o estranhamento, o que parece diverti-lo de leve.
— Muita coisa pode acontecer em duas horas — diz discretamente julgando minha demora.
— Tipo o quê? — O encaro em desafio.
— Tipo... alguém como o Gui se tornar uma pessoa menos ruim — não tem certeza das próprias palavras, mas acaba por garanti-las com um sorriso.
— Então, vocês dois são amigos agora e resolveram me odiar juntos? — Fico na defensiva, incomodada com a ideia.
— Não odeio você, — Ele coça a nuca, um tanto nervoso ainda. — Eu sinto muitas coisas por você, mas ódio definitivamente não é uma delas.
— Ainda não entendo como a Bia terminou com ele... — digo em um murmúrio confuso.
— Vamos dizer que eu dei uma ajudinha... — dá de ombros, sorrindo. — Faz algum tempo que ela está afim do Gui, apesar de eu achar isso uma besteira enorme, eu a ajudei a falar com ele. Acabou que apartar uma briga entre nós dois a ajudou bastante com isso.
— Vocês brigaram? — Fico apreensiva, buscando por machucados e manchas de sangue por seu corpo.
— Não exatamente... O Gui me contou que você deu o maior fora nele — ri de um jeito infantil que me faz rolar os olhos, mas acabo sorrindo também.
— Ele disse umas loucuras sobre achar que me ama e eu tive que fazer isso parar — muda de expressão, chegando a ficar pálido.
— Ele disse o quê?! — Pergunta baixo, sem fôlego.
— Você conhece o Gui, sabe que ele nem deve entender o que isso significa — Abano a mão no ar, tentando dar leveza à informação.
— Que filho da puta! — volta a se irritar, me assustando um pouco. — Aquele desgraçado não poderia ter feito isso!
— Calma, ... Ele só se confundiu, é claro que ele não me ama. Por que amaria? — me devolve a pergunta com uma risada debochada e sem humor, que me deixa completamente perdida.
— Porque não tem nada em você que não seja amável. Porque cada vez que você sorri, o mundo se ilumina um pouco mais e qualquer imbecil que perceba isso faria qualquer coisa pra te manter sorrindo o tempo todo. Porque não tem ninguém nesse mundo que seja mais incrível, inspiradora e amável que você, . É até um pecado você se perguntar isso, não parece óbvio? — parece irritado, cansado como se já tivesse repassado esse assunto diversas vezes em sua mente.
— Não... — Balanço a cabeça devagar, um pouco atordoada com as palavras e a forma como elas estão sendo entregues em meus ouvidos. — Se eu sou mesmo tudo isso, por que estou sozinha? Por que você está por aí com outra garota? — Cruzo os braços na frente do corpo, incomodada com este fato como se fosse culpa dele.
— Só estou te deixando entender sua própria vida. Não queria ser mais um peso entre tantos outros — se defende, coça os olhos e respira fundo, pesado.
— Você foi a parte mais fácil desses últimos meses. O fator decisivo pra me manter aqui volta a me olhar com pesar.
— Eu não tinha ideia...
— Eu nunca te disse.
Passamos um tempo nos encarando, reconhecendo um no outro toda sorte de sentimentos. Mas um deles parece borbulhar com um pouco mais de força: raiva.
— Eu sei a verdade agora, mas não consigo ignorar o que senti toda vez que imaginei o Guilherme te beijando, tocando seu corpo... — resmunga, indignado. Chega a grunhir irritado com os próprios pensamentos.
— Não foi exatamente fácil te ver com a Bia o tempo todo — Devolvo no mesmo tom.
— Eu até pensei em dar um beijo nela, mas... — morde o interior da boca, me olhando enquanto eu tento conter a implosão só com o distante pensamento.
— Mas o quê? O que te impediu de beijar uma garota linda e interessante? — Solto os braços nas laterais do corpo, não tenho a força para encará-lo com a raiva que gostaria.
— A Bia é gata, inteligente, tem uma história de vida meio conturbada. É uma garota legal... — Respiro impaciente, não sei se os elogios precedem um motivo coerente para ele ter recusado sua chance com ela.
— Esses não são motivos para não beijar alguém — digo comedida, não estou em posição de determinar o que é certo ou errado sobre beijos, afinal de contas, eu beijei o Gui por livre e espontâneo despeito.
— É que o grande defeito da Bia é muito difícil de ultrapassar — vai se aproximando e eu estudo rapidamente cada movimento dele.
— Ela tem algum defeito? — Pergunto com desdém, o fazendo sorrir de lado. assente devagar. — Qual? — Ergo uma das sobrancelhas, lentamente desestabilizando com sua presença tão marcante e tão próxima que consigo sentir o cheiro de sua respiração sempre doce.
— Ela não é você, — Ele suspira pesado, olhando todo meu rosto. Eu puxo ar para responder, mas não tenho uma boa resposta para isso. Ao me deixar sem palavras, sorri e dá mais um passo em minha direção, me fazendo engolir em seco. — Eu amo você, . Você pode espernear e surtar à vontade sobre isso. Mas meu sentimento não vai mudar. Eu te amo faz tempo e não tem nada que me faça mudar de ideia sobre isso. Nada.
Solto uma risada inesperada, surpresa e curta. Acontece muito rápido quando me dou conta da linha fina e distinta de qualquer outra coisa que já tenha sentido antes, percorrendo meu corpo e me deixando confortável, restaurando minha confiança, me deixando segura.
— Eu amo você! — digo sem perceber. Meu subconsciente tem pressa em contar a ele sobre meus maiores e mais assustadores segredos. — Eu demorei para perceber, para ter certeza, mas é só porque eu não sabia que podia sentir algo assim sem fazer besteira — Sorrio sem jeito, aliviada e assustada na mesma quantidade.
— Eu sei — inclina a cabeça para o lado, soltando uma risada gostosa e convencida. — Eu sei.
Estou ofegante. As palmas de minhas mãos suam e eu sinto meus pelos arrepiados por todo o corpo. A boca seca, os olhos fixos nos dele, que encaram meus lábios entreabertos com tanto desejo que eu poderia entrar em combustão instantânea.
— Estou tão bravo com você... — Ele me olha com uma expressão que desmente o que suas palavras me dizem.
— Também estou brava com você — Arqueio uma sobrancelha, o fazendo rir.
— E aí, como você quer resolver isso? — adota outra postura, uma muito sexy que deixa difícil querer pensar em qualquer tipo de diálogo.
Mordo meu lábio inferior devagar, meus dedos viajam até sua corrente de prata, brincando com ela em seu pescoço. Lentamente eu o puxo pela corrente, colando meu corpo no dele.
não perde tempo e me mantém por perto com as mãos em meus quadris. Ele se inclina, puxando meu lábio inferior com os dele, fico na ponta dos dedos dos pés e o beijo como tenho sentido vontade há mais tempo do que consigo lembrar.
— Espera... — Me afasto dele, indo até a porta e a trancando. Deixo a chave no tranco, evitando que qualquer surpresa aconteça.
Eu mal me viro e está atrás de mim. Beijando meu pescoço, acariciando minha cintura com uma mão, gentilmente me fazendo arquear as costas, empinando o quadril em sua direção. Com a outra mão, acaricia minha barriga, fazendo seu caminho pelo vale entre meus seios, agarrando um deles, mordendo a pele arrepiada em meu pescoço.
Me enlouquecendo gradativamente.
Quando me dou por mim, estou sentada sobre o balcão da cozinha. A bolsa está no chão, assim como o moletom e a camiseta de . Ele está entre minhas pernas, apertando minhas coxas e subindo meu vestido cada vez mais.
Minhas mãos bagunçam seu cabelo, minhas unhas arranham seu pescoço e costas. Quero sentir o calor de sua pele contra minha mão, conhecer cada centímetro de seu corpo.
A lembrança nada sutil do pau de me faz gemer contra seus lábios e eu deixo de controlar meus instintos. Deslizo minhas mãos por seu peito e abdômen, abrindo sua calça sem cerimônia.
Massageio a extensão, aproveitando de sua distração momentânea para retribuir o puxão em seus lábios, mas eu uso os dentes. abre os olhos minimamente, encontrando os meus ardendo em chamas.
Eita... — sibila, parecendo ligeiramente vulnerável. Eu solto um riso malicioso, quase maldoso. Desço do balcão praticamente esfregando meu corpo no dele, subindo meu vestido até a cintura, no processo. Me ponho de joelhos, encarando seus olhos surpresos e curiosos.
— Posso? — Peço devagar, brincando com o elástico de sua samba-canção preta. O tecido macio é tão convidativo.
— Pode fazer o que quiser comigo — diz rápido, engolindo em seco logo depois. Mordo a língua, evitando uma risada mais longa. Decidida a mostrar a ele que também tenho um truque ou dois na manga.
Mesmo concentrada e sabendo bem o que me espera, não consigo evitar um sobressalto surpreso quando finalmente ponho os olhos em tudo aquilo. Estou salivando e completamente fora de mim quando me inclino e começo um boquete tímido.
Estou levemente insegura com minhas habilidades para a coisa. Convenhamos, meu objeto de estudo anterior era diferente e eu fui muito criticada até aprender a fazer direito.
O masturbo com uma das mãos, ouço a respiração pesada de e aproveito para respirar fundo também, compreendendo meu caminho para saciar minha vontade e, por consequência, parte da dele também.
Decido me concentrar em sua glande, passando a língua e sugando de leve enquanto o masturbo devagar, com certa firmeza no pulso.
Ouço aspirar em um gemido contido, aumentando meus movimentos. Ele se apoia no balcão atrás de mim, emaranhando a mão livre em meus cabelos e ditando como quer que eu me mova. Completamente focada em lhe dar prazer e sentindo uma onda de tesão me tomar, eu obedeço.
Mais habituada com seu pau em minha boca, eu me arrisco, engolindo um pouco mais e delirando com o gemido rouco que escapa por seus lábios.
parece ensandecido. Os olhos dele estão abertos minimamente e ele morde o lábio inferior com força, controlando as próprias reações. Decido aumentar meus movimentos, estudando sua expressão. O escuto xingar baixo e acho divertida a sensação de poder que sinto correr pelas minhas veias.
Eu quero continuar até o final, mas tem outros planos. Sem nem me avisar sobre suas intenções, ele me pega no colo, me erguendo no ar e encaixando meu corpo no seu. Toda a movimentação me assusta e parece diverti-lo o modo como me agarro nele para não cair.
Como se eu fosse feita de ar, me leva para a cama com facilidade e deita meu corpo sobre o colchão macio. Seus lábios beijam meu pescoço, bochechas, queixo. Tudo o que encontra pela frente.
Suas mãos vasculham meu corpo, se livrando do vestido justo sem dificuldades. sorri ao me ver somente de calcinha sob ele, os olhos brilham em um misto de satisfação e desafio.
Eu sinto que não estamos próximos o suficiente. Enquanto se distrai com beijos languidos em minha barriga e o lado direito de meu quadril, me estico um pouco e busco por uma camisinha estrategicamente colocada na gaveta de baixo da cômoda.
— Que pressa é essa? — pergunta, atordoado com minha movimentação sobre ele.
— Eu quero você — Ele muda o olhar em seu rosto, ficando mais interessado em meu desespero. — Agora!
Como um soldado com uma ordem recebida, se coloca de prontidão e me deixa matar minhas vontades uma por uma. Devagar, com mais rapidez. Por cima, por baixo. De lado, de costas, de frente. Em pé.
Sinto meu corpo dar viagens inteiras ao redor da galáxia, exploro os mais secretos limites de meu desejo. Conheço cada parte de mim. Encaro de volta o abismo antes de me jogar nele com um rosto risonho e destemido, pois sei que terei um lugar macio para cair.
O peito de parece o lugar perfeito para descansar minha cabeça latejando por bater na cabeceira por vezes demais. Enquanto tento normalizar minha respiração e fazer com que meus poros se suavizem e me deixe menos arrepiada, acaricio o alto de minha cabeça, soltando um gemido dolorido ao encontrar o ponto central da dor.
— ‘Tá doendo? Me desculpa... — beija o topo de minha cabeça, me fazendo rir.
— Tudo bem. Estava aqui justamente pensando que valeu a pena — ri também, abraçando meu corpo e me ajeitando melhor sobre ele.
Está amanhecendo lá fora e nós nos encaramos em silêncio. Os corpos entrelaçados e suados, enganchados e sem a menor pretensão de desfazer tal laço.
acaricia meus cabelos que em algum momento foram soltos, mesmo achando que eles estão muito bagunçados, não me importo tanto com isso. Ele me olha como se eu fosse a pessoa mais linda da face da Terra.
— Eu sou um filho da puta, egoísta pra caralho — Arregalo os olhos com a torrente de xingamentos que profere. Minha mão sobre seu peito sente o coração de batendo tão rápido que começo a temer pela sua saúde.
— Não fale assim de você mesmo. Ou da sua mãe — Advirto, curiosa pra saber onde essa conversa vai dar.
— Eu não deveria ter feito isso. Você está conseguindo se reerguer e eu só te atrapalho — Ele suspira profundamente, parecendo bastante triste.
— Você está arrependido? — Ameaço me sentar, me afastar dele. não me deixa.
— De jeito nenhum! Minha falta de consciência está me fazendo te querer agora mesmo — Cerro os olhos, o encarando sem entender nada. — Eu não quero ficar longe de você.
— Eu não quero que você vá a lugar algum — digo rápido, com uma necessidade imensa de deixar isso claro. — Você me faz continuar, . Todo e cada pensamento que tem você nele, me faz sorrir. Você tem sido a melhor parte da minha vida por mais tempo do que posso contar. Eu quero você e quero que isso… — Gesticulo dramaticamente de mim pra ele. Não consigo dizer a palavra assim, na cara dele. — Continue. Acho que preciso que isso continue — ri, um pouco constrangido. Eu também fico, mas estou mais aliviada por ele desfazer o quase bico nos lábios.
— Que pervertida… — comenta com um resquício de riso que faz minhas bochechas esquentarem.
— Uma boa garota pode ter vícios secretos… — Nós rimos juntos e esconde o rosto com o travesseiro, me deixando o vislumbre de seu torso sobre minha cama. Reforçando meu ponto.
Eu volto a me deitar sobre seu peito, apoia o travesseiro embaixo da cabeça e passa o braço por baixo de mim, encarando meu rosto inteiro.
Agora é o meu coração que acelera.
— Cansada? — Pergunta de repente, a voz rouca de sono e gasta pelos gemidos graves durante a madrugada parece melódica em meus ouvidos. Assinto devagar, sentindo o carinho de seus dedos em minha cintura.
— Sim, mas não quero dormir — sorri daquele jeito que me faz sentir flutuando de alegria por ser o fator que causa aquela expressão tão plena em seu rosto.
Ele me surpreende com um beijo, como se me puxasse do ar tão aleatório e me fizesse orbitar em volta dele.
Como eu poderia cogitar ficar longe dessa sensação? Desse amor?
Mais tarde, um bocejo interrompe meu agradecimento ao cliente, que me olha como se eu não tivesse nenhuma responsabilidade ou profissionalismo. Mas não consigo me importar com a expressão desgostosa que o acompanha na saída da lanchonete. Ele é um cliente recorrente que passa tempo demais na mesa e não consome de acordo. O grosso é ele.
— A noite foi boa? — Guilherme pergunta em um cochicho e eu rolo os olhos.
— Já está pronto pra me dizer se esse machucado na sua boca é decorrente de uma certa briga? — Questiono, pela quinta vez. Guilherme ri, mas geme de dor, passando a língua no local ensanguentado.
— Foi só um soquinho de nada… — Dá de ombros, tentando esquivar quando me aproximo pra ver mais de perto.
— Não acredito que você e o brigaram por minha causa. Isso é ridículo! — Cruzo os braços na frente do peito, irritada.
— Você é muito convencida… Nós brigamos porque não gostamos um do outro, só isso — Ele é quem rola os olhos agora.
— E qual é o motivo pelo qual vocês não se gostam? — Gui ergue uma sobrancelha, se recusando a responder. — E então, você está com a Bia agora?
— Não leve a mal, . Mas isso não é da sua conta — Eu mereci essa. E é exatamente por isso que guardo meu sermão para outra hora.
— Só quero me certificar de que as coisas não vão ficar estranhas entre nós aqui na lanchonete. Por causa do que você me disse ontem — digo constrangida, a mera lembrança me dá vontade de rir. Mas escolho respeitar a pessoa que Guilherme quer se tornar.
— Com certeza, nós estamos bem — Gui apoia a mão sobre meu ombro. — Quanto mais as horas passam, eu percebo o quanto eu estava confuso. Eu não amo você! — Guilherme solta uma risada exagerada, deslocada da ocasião.
— Isso é bom de ouvir — Rio sem jeito também, feliz por termos esclarecido isso.
— Desculpe por ter… Você sabe. Eu sinto que mereci isso, por aquela — Gui aponta para o lábio meio inchado com um meio sorriso. Eu o acompanho, confusa sobre o que fazer depois.
Gui guarda as mãos nos bolsos, agindo de um jeito diferente. Não um que incomoda tanto que me dá vontade de tomar dez banhos seguidos, mas um agradecido. Amigável.
— Por baixo de tantas camadas de vacilo, você é uma boa pessoa, Gui. Estou orgulhosa por ter vindo hoje e por levar tudo isso numa boa. Obrigada — Ele se surpreende, solta uma risada aliviada junto com um suspiro e assente rapidamente.
— Por falar nisso, preciso voltar ao trabalho — Gui dá alguns passos se afastando, seus olhos parecem calorosos e diferentes do que costumavam ser, tão hostis. — Valeu, .
Mais tarde, fechamos a lanchonete e ainda é cedo para dar o dia como terminado.
Vejo Gui parado do outro lado da calçada. Um cigarro aceso entre os lábios, os olhos esperançosos e fixos na esquina. Logo vejo porquê ele olha tão intensamente pro caminho, ele sorri tão abertamente que quase derruba o cigarro na própria camiseta. É Bia quem o faz sorrir tão abertamente, de forma tão doce e que o faz parecer, mesmo que bem remotamente, alguém passível de amar de verdade.
Sinto um estranho frio na barriga, um bolo de palavras se entala em minha garganta e eu preciso me concentrar nas chaves em minha mão, trancando a porta de metal ferozmente.
Bia está acompanhada de , que usa os pés para mover a bicicleta no mesmo ritmo da garota. A conversa entre eles é amigável e eu sei que nem de longe estou com ciúmes, mas não consigo ignorar a sensação crescendo dentro de mim.
— Oi, linda — diz , olhando de mim para o casal do outro lado da rua. Eles ainda agem com aquela hesitação, o constrangimento dos primeiros encontros e tudo isso é muito estranho de assistir.
— Por que ninguém mais acha isso errado? — Pergunto um pouco irritada, mas é só o cansaço falando mais alto.
— Acho que não é da nossa conta — dá de ombros. — Eu a avisei sobre o Gui, ela parece saber onde está se metendo — diz tranquilo, acompanhando meu olhar cheio de julgamento.
— Ela parece ser tão… E ele é tão…. — Solto um grunhido irritado, fazendo rir de leve.
— Eu sei… Mas talvez eles combinem, sei lá — diz indeciso, mas acaba por dar de ombros de novo. Mordo o lábio inferior, intrigada com o beijo que Gui dá na bochecha de Bia, fazendo a garota perder as forças nos joelhos. — Ele não vai magoá-la, tem gente o suficiente para se certificar disso — Ele volta a me encarar, buscando em meus olhos a motivação para tanta preocupação.
Na sombra de qualquer dúvida de , lanço os braços em volta de seu pescoço, o trazendo para mais perto.
— Oi, lindo! — Seu sorriso meio constrangido ilumina meu dia, me fazendo sorrir também e voltar a habitar o momento presente, sem deixar que preocupações hipotéticas me impeçam de aproveitar algo bom que está, literalmente, diante de mim.
— Você não tem jeito, não é? — Ele reclama entre os vários beijos que dou em seus lábios. — Sempre querendo consertar a vida alheia… — Ele rola os olhos, mas acaba por rir mais forte com minha insistência.
— O que posso fazer? Vocês não tomam jeito na vida se eu não der bronca… — Fico constrangida sob o olhar cerrado de . Sorrio abertamente, o forçando a fazer o mesmo.
— E aí, qual é a boa de hoje? — Gui pergunta casual, os dedos entrelaçados nos de Bia, que me encara como se esperasse pela minha reação ao vê-la com ele. — O Jorge está chegando, querem agitar uma festinha?
— Eu só quero deitar na minha cama e descansar — Sinto as mãos de em minha cintura e outros planos me passam pela cabeça, mas não vou compartilhá-los com meu ex e sua atual paquera.
— Você só pensa em dormir, garota… — Guilherme retruca e eu lhe mostro o dedo do meio sem perder tempo.
— É diferente quando você tem responsabilidades reais na vida — estala a língua dentro da boca, contribuindo para o bico nos lábios de Gui aumentar um pouquinho mais.
Em pouco menos de uma hora, o estúdio sem paredes que chamo de lar está cheio de gente contra a minha vontade. De novo. Desta vez, estou mais preparada para isso; a casa está em ordem, Bia está devidamente avisada sobre não mexer nas minhas coisas e, claro, o fator mais tranquilizante que existe está presente, apoiando minhas costas com seu peito forte e braços em volta de mim.
— Não vale! — Amália grita, as cartas transbordam do arranjo em uma de suas mãos. — O está dizendo o que a deve fazer, não estamos jogando em duplas! — Ela reclama, me fazendo rir.
— Não sei do que está falando — digo descarada, tendo as cartas de Uno organizadas de acordo com o poder delas.
— Não é justo! — Volta a murmurar, comprando mais quatro cartas do monte gasto.
— Minha vez! — Jorge analisa as cartas minuciosamente, a tensão é construída aos poucos e então, ele lança a carta mais temida: a que reverte a orientação do jogo. Amália abre a boca em expectativa, os olhos brilham e ela mal tem palavras para descrever o deleite que é a oportunidade de uma vingança imediata.
— Não acredito! — Ela grita, jogando as cartas com força junto com as outras já descartadas. Em sua mão não havia nenhuma carta boa e ela desiste, completamente desgostosa. — Odeio esse jogo!
— Joga essa — diz , em meu ouvido. E eu jogo a carta de reverter de novo, rindo enquanto Amália recolhe suas cartas e tenta pegar uma +4 clandestinamente.
— Trapaceira! — Acuso brincalhona e ela rola os olhos.
— Você está jogando em dupla, calada! — Com a trapaça nítida de Amália, o jogo se torna uma verdadeira bagunça e as regras param de valer uma a uma.
— Desculpe, … — Bia dá seguimento ao jogo, me obrigando a comprar mais cartas. Ela também tem alguém sussurrando estratégias em seu ouvido e é justo que eu compre.
— Vocês são muito moles… — Jorge se anima, ele é quem tem menos cartas agora. Afim de acabar com seu jogo, passo discretamente uma carta para Amália, que joga depois de mim. Ela o bloqueia e ainda lhe mostra a língua. — Sacanagem… — Ele murmura, colocando uma carta de volta com as outras duas.
— Não tenho chances de ganhar… — Vinícius cospe as palavras junto com uma carta azul qualquer.
— Foi mal, — Bia bloqueia minha vez de jogar e o sorrisinho em seus lábios destoam de suas palavras.
— Não precisa se desculpar toda vez que me prejudicar no jogo… É só um jogo — digo meio irritada, mas só porque é óbvio demais.
— Credo… — Ela crispa os lábios, levantando as sobrancelhas tão alto que parecem prestes a se juntar com o restante de sua cabeleira bem ajustada em um rabo de cavalo.
— Eu disse que esse jogo não é coisa que amigos deveriam fazer juntos — Tati alerta, sentada em minha cama e assistindo o jogo de cima.
— Era isso ou truco. Um tio meu já foi baleado por causa de truco, então… — Jorge dá de ombros, recolhendo as cartas e começando a embaralhá-las para uma nova rodada.
— Ele morreu? — Pergunta um sonolento Felipe. A voz dele mal é ouvida, já que ele está meio deitado no colo da Tati e ela mantém uma das mãos sobre seu rosto em um carinho preguiçoso na barba por fazer.
— Não, ele perdeu um dedo. É até engraçado, isso não o impede de ser mal educado com as pessoas — Jorge ri enquanto fala.
— Quando ele mostra o dedo de meio, parece que o punho dele está fechado — Guilherme comenta, fazendo todos gargalharem.
— Ele já entrou em muitas brigas sem querer por causa disso — Jorge lamenta, distraído com as cartas. Mas todos nós estamos rindo, imaginando o mecânico mal humorado mostrando o dedo imaginário com a mesma atitude que tinha antes de perdê-lo.
— Esse foi o relato mais engraçado de membro fantasma — diz Felipe, distraído em sua própria mente.
— Não entendo metade do que você diz, mas gosto de você, carinha — Jorge sorri de boca fechada, deixando Felipe sem reação.
— Idem — diz rapidamente, engasgado e corado.
Na segunda rodada, a insanidade sem regras continua. Mesmo roubando, Amália termina com o maior número de cartas na mão e decide que nunca mais falará com nenhum de nós. E ela consegue. Passa a noite inteira nos ignorando e curtindo a festa conosco, mas sozinha em seus pensamentos.
No dia seguinte, toda a bagunça que meus amigos fizeram com uma simples passagem me inspira a fazer uma boa faxina.
É o primeiro dia em que sinto que estou mesmo de férias. É segunda-feira e a lanchonete não abre, então tenho o dia inteiro pra mim e minhas tarefas.
Depois de limpar, reorganizo a disposição dos poucos móveis e detesto toda e cada formação que vejo no amplo retângulo.
Pouco antes do almoço, estou arrependida e faminta. É quando tia Vanessa chega chacoalhando suas chaves e sacolas de papel com o almoço dentro delas.
— Você é uma santa! — digo aliviada, me sentando na cadeira-vaca. Pronta para almoçar.
— Que bom que você pensa isso — Ela não está tão animada quanto eu achei que estaria. Diante de nós, no tapete felpudo, está sua refeição preferida e eu não a vejo salivando pelo nhoque à bolonhesa.
— Ah, não… — Meus ombros murcham, ela sorri triste. — Está tudo bem, só estou cansada disso tudo — Ela tira os saltos, se senta no chão e massageia os próprios pés. — Posso te contar um segredo?
— Sempre — Escorrego da cadeira, ficando ao seu lado.
— Quando o Arnaldo morreu eu senti uma espécie de alívio. Me senti horrível por isso, até entender que talvez eu merecesse esse tipo de paz. Com ele vivo, eu nunca conseguiria seguir em frente — Ela sorri, mas em seus olhos se acumulam lágrimas que começam a escorrer por suas bochechas bem maquiadas. — Por mais aliviada que eu estivesse, foi só por um segundo e agora parece que eu estou pagando por me sentir daquela forma. Ter que ficar sentada lá, ouvindo as mesmas perguntas de pessoas que não querem aceitar minhas respostas é frustrante e eu estou exausta. Eu queria que ele simplesmente… — Ela suspira profundamente. — É loucura.
— É um segredo, não vou contar pra ninguém. Não importa quão louco seja — Me aproximo um pouco mais, pegando sua mão com a minha, a cobrindo com a outra.
— Eu me pego desejando que ele pudesse voltar de alguma forma, explicar o que aconteceu para as pessoas só para que eu possa seguir em paz — Ela confessa tudo de uma vez. A voz amedrontada de minha tia me dá calafrios. Até em um cenário onde ele a faria algum bem, a ideia é tremendamente aterrorizante.
— Mas ele está morto. As cinzas dele estão… — O pensamento pesa tanto que minha cabeça inclina um pouco para o lado. — Onde estão as cinzas dele?
— Não quero dizer — Minha tia morde o lábio inferior, como se selasse a boca para não tocar no assunto. Mas seus olhos não mentem, eles vão direto para a última gaveta da cômoda.
— COMO PÔDE?! — Me levanto em um pulo, indo até a gaveta com ela em meu encalço.
— Eu ia jogar fora, mas como eu poderia fazer isso? Ele foi uma pessoa, não posso simplesmente abrir a lixeira e jogá-lo fora como uma casca de banana ou pote vazio de iogurte desnatado — Ela se defende, desesperadamente.
— Eu posso! — Pego o saco plástico com o mal reduzido a pó e caminho firme para o banheiro.
! — Minha tia me segue, mas não tenta me impedir ativamente.
— Não acredito que trouxe ele pra cá! Esse lugar era pra ser livre de Arnaldo — digo irritada, encarando o saco pendendo entre meus dedos.
A lixeira está aberta, mas não tenho o impulso de imediato.
Encaro o amontoado de cinzas humanas e da madeira do caixão caro em que ele foi cremado e sinto meu estômago embrulhar. Seguro em minha mão o medo, a confusão, a tristeza de tantos e então, entendo o que fez a tia Vanessa macular nosso lar com os restos mortais de seu ex-marido.
— Não consigo fazer isso — confesso surpresa, devolvendo o saco plástico pra ela.
— Nós estaremos prontas algum dia. Até lá, eu vou tirar isso daqui — Ela o coloca dentro de um dos sacos de papel e o deixa dentro de sua bolsa.
— Você vai andar com ele por aí? — Cruzo os braços, meio perdida. Não há uma boa resolução para esse problema.
— Vou deixar na casa do Alê — Ela dá de ombros, indiferente.
— Não consegue ver o que está errado nisso? — Tia Vanessa prende um riso um pouco tarde, o que a faz praguejar a si mesma pelo desrespeito com o falecido marido.
— Não tem nada de errado. O Alê não se importa, não tem medo de fantasmas e, possivelmente, ficará feliz em transar na frente dele — Ela indica a bolsa, me fazendo cobrir o sorriso maldoso com uma mão.
— Esta é uma parte do meu professor que eu realmente não quero conhecer — Coço os olhos, um pouco constrangida.
— Você está certa, desculpe. Nós temos limites — Ela deixa a bolsa de lado, faz um carinho em meu braço. — Vamos comer?
Durante o almoço, tento distraí-la de seus problemas com minha vida amorosa agitada e gosto de como ela fica aliviada ao saber que e eu estamos próximos novamente.
— Acho bom que ele tenha voltado a ter juízo — diz indiferente, mas os olhos sorriem de felicidade.
Estou prestes a respondê-la quando seu telefone toca e sua expressão fica tensa de novo. Helena. Não demora até tia Vanessa calçar os sapatos novamente e endireitar a postura.
— O que aconteceu? — Pergunto alarmada, prestes a acompanhá-la independente de onde ela esteja indo.
— A Dr. Helena disse alguma coisa sobre análise de novas evidências. Ela não sabe o que significa, mas temos que ir para uma audiência. Agora — Sua voz treme, assim como suas mãos.
— Eu vou com você! — Ela nega rapidamente.
— Se esta for a última vez que você me vê fora da cadeia, que seja aqui. No seu santuário — Ela sorri, mas está aterrorizada, eu vejo.
Ela ajeita a maquiagem, coloca a bolsa no ombro e beija minha testa antes de ir.
Assim que ela sai de casa, ligo para Lucca e ele demora uma eternidade para atender.
— O que é tão importante que te fez interromper meu banho de sol? — Ele atende entediado.
— Acho que estão revisando o caso — digo rápido e ouço o som de água, depois, a respiração ofegante de Lucca. — O que eles têm?
— Não sei. Mas vou descobrir — Lucca está determinado e ao ouvir o som do elevador tinindo em meu ouvido, estou preparada para que a ligação caia. O que acontece, mas em poucos minutos, Lucca retorna a ligação e tudo o que consigo ouvir é a discussão acalorada entre ele e Rafael. O mais velho reclama sobre o chão molhado e eu só consigo imaginar a cena de Lucca saindo da piscina e marchando direto para o elevador e em seguida, para o apartamento 615, onde Rafael tem morado sozinho desde a morte do pai e desde que tia Vanessa finalmente se viu livre de noites insone naquele mausoléu.
— Você acha justo uma mulher inocente levar a culpa? Diz isso pra , vamos ver o que ela acha! — Lucca fala mais próximo do alto—falante, praticamente gritando.
? — A voz cansada e monótona de Rafael me faz suspirar.
— Você sabe o que está acontecendo? — Pergunto ansiosa, mas contida. Quero que ele confie em mim para me dizer se souber de algo.
— Eu não te disse para deixar esse assunto com os adultos? — Ele resmunga, quase paternal.
— Ninguém me vê como uma criança, Rafa. Não fui criança quando fui obrigada a cair nesta armadilha, não fui criança quando consegui sair dela e me colocar de pé. Não me venha com esse papo ridículo à essa altura. Se não contar agora o que sabe, tenho provas o suficiente para virar esse jogo e te colocar no lugar da tia Vanessa. Quem, além de você, teria mais motivos para querer o Arnaldo morto? Claro, seu único filho e assistente pessoal, alguém que, da noite pro dia, herdou uma quantia nojenta de dinheiro e nenhum dos milhares problemas financeiros do pai — Solto o blefe com a segurança de alguém que realmente tem algo nas mangas. Mas sequer tenho mangas em minha blusa de alcinhas, quanto mais um plano.
Prendo a respiração, porque do contrário, Rafael vai perceber que estou desmontando com sua demora.
— Vocês são impossíveis! — Rafael se desarma, estala a língua dentro da boca e consigo imaginá-lo rolando os olhos com tamanho despeito, quase sorrio com a imagem.
— Vão inocentá-la — Ele conta sem emoção, mas sinto meu corpo amolecer em alívio.
— Jura? — Pergunto com a voz embargada, nada faz mais sentido agora do que tia Vanessa estar, finalmente, livre.
— Juro — Rafael solta um riso morno, muito estranho vindo dele. — Eu queria fazer uma surpresa, mas você é insuportável — Ele reclama, mais confortável.
— Eu odeio surpresas — Devolvo ainda segurando a expectativa.
— É… Eu sei — Ele completa, desgostoso.
— Como? O que aconteceu? — Pergunto curiosa e ele ri mais forte.
— Um mágico nunca revela seus truques — Arregalo os olhos, ignorando um mal pressentimento. Mas não uma pergunta: Rafael é confiável ou, só está do nosso lado porque é conveniente para seus planos misteriosos?
— Amiga, preciso desligar — Lucca toma o celular da mão de Rafael. A urgência em sua voz denuncia os próximos passos de meu amigo e eu sorrio maliciosa. É difícil, mas tento deixar minhas ressalvas de lado, mesmo que pareça uma grandíssima burrice.
— O beije por mim também. Obrigada! — Desligo antes de ser xingada e tomo algum tempo para apreciar a boa notícia. Os comos e porquês ficam para uma outra hora.

É madrugada quando a tia Vanessa chega. Mesmo exausta, com bolsas enormes embaixo dos olhos e uma postura prostrada para frente, um esboço de sorriso molda seu rosto bonito, corajoso e inocente.
— Acabou — A bolsa pende do ombro, falta força em seus tornozelos e os saltos começam a tremelicar suas pernas. Vou até ela, dando apoio a mulher atordoada.
— Acabou! — Repito, mais entusiasmada.
— Não! Ainda não — diz energizada de repente, ela recupera a bolsa e me puxa pelo pulso escada abaixo.
— Aonde vamos? — Pergunto em um sussurro. Não sei o que vamos fazer, mas a expressão travessa no rosto de tia Vanessa me diz que, provavelmente, é algo ilegal.
— Acabar com isso de uma vez por todas. — Ela apressa o passo, me fazendo segui-la com interesse. Andamos algumas quadras e subimos uma ladeira enorme para chegar até uma construção ainda por terminar da prefeitura.
Dá pra ver o bairro inteiro daqui.
Mesmo adormecido, é acolhedor e familiar. Das ruas asfaltadas, até os becos onde as escadas são feitas de lascas de madeira, onde os vizinhos tomam conta dos filhos dos outros vizinhos como se fossem os próprios e o senso de comunidade se vê em cada detalhe, como as escadas improvisadas e as latas de lixo comunitárias.
O lugar que chamo de lar, onde ando tranquila por conhecer as várias famílias que moram em cada casinha amontoada, ou nos sobrados de fachadas lascadas.
O meu lar.
O lugar que amo.
— Ele iria odiar isso aqui — Tia Vanessa encara o horizonte, as árvores cheias parecem com borrões escuros na ausência da luz do sol.
Sem pensar, tia Vanessa abre o saco e espalha as cinzas de Arnaldo ao vento. Ficamos em silêncio, observando a nuvem de poeira se dissipar com a brisa leve que a faz dançar antes de desaparecer para sempre diante de nossos olhos.
— Como se sente? — Pergunto baixinho, mesmo que estejamos sozinhas ali.
Tia Vanessa demora mais para sair do transe, ela encara o horizonte mais uma vez, suspirando profundamente. Ela vira um pouco a cabeça em minha direção, os olhos marejados e muito brilhantes me encaram com tanta vida.
— Livre.


ATO VIII

Acordar pela manhã sem o som estridente de um despertador e uma rotina completa me esperando me deixa feliz logo cedo. Os tímidos raios de sol que invadem o quarto através das brechas da cortina dançam pelo lugar, me convidando a levantar e abri-la por completo. Assim que o faço, recebo a manhã de bom humor. Levanto os braços, improvisando um alongamento e tentando me acostumar com a temperatura fria, apesar do calor hesitante do sol.
Olho em volta e vejo a linha que a sombra da janela forma bem no meio da casa, limitando o restante do lugar do mínimo calor.
É o suficiente para me convencer a voltar para a cama, me cobrir e aproveitar aquele silêncio por mais alguns minutos até que a sombra diminua no lugar.
Fico encarando o pedaço de céu que consigo ver pela janela, o clamando como meu. Administro o tráfego lento e gracioso das nuvens pelo meu pedaço de céu minuciosamente. Nada me passa despercebido. Observo seus formatos, sua densidade, a forma como elas parecem se despedaçar tão satisfatoriamente desreguladas.
No alto do prédio que estão construindo para algum projeto de moradia do governo, um Caracará pousa sobre o parapeito, bem no alto.
Observo a ave se banhar ao sol, esticar as asas e exibir as penas bicolores em um voo longo para longe.
Tudo é tão sublime e pacífico, acontece tão lentamente relaxante, quando percebo, a vista se torna um tanto enfadonha.
Essa conclusão me tomou uns quarenta minutos.
Foi o ronco vindo do estômago que me fez levantar de meu pequeno forte para comer alguma coisa e começar o dia de verdade.
O som do molho de chaves se chacoalhando no portão desvia minha atenção da música tocando no rádio e logo vejo o rosto corado, suado e de olhos cercados por profundas olheiras de tia Vanessa.
— Bom dia — diz sonolenta.
— É permitido dizer “bom dia” quando a pessoa ainda não dormiu? — Finjo me perguntar com seriedade, deixando minha xícara com achocolatado de lado para massagear muito de leve meu queixo.
— Está tão na cara assim? — Ela pergunta, ajeitando a alça do vestido e o casaco, como se isso fosse melhorar seu estado.
— Sim, na sua — Aponto meu pão de queijo em sua direção e ela faz uma careta desgostosa que me faz rir.
— Vou tomar um banho e dormir um pouco. Essa coisa de recuperar o tempo perdido está quase me matando, não tenho mais a resistência de quase vinte anos atrás… — Ela reclama, deixando os saltos, a bolsa, o casaco e sua meia-calça como migalhas por onde passa.
— Recuperar o tempo perdido? Qual é exatamente a sua história com o professor Alexandre? — Pergunto curiosa, cruzando os calcanhares sobre a poltrona.
— Naquela época nós não tínhamos tanta disponibilidade assim, se é que me entende… — Ela lê minha expressão confusa e rola os olhos. — É difícil transar em um camarim minúsculo, acompanhados de mais dezesseis pessoas. Eu era maluca, mas orgias sempre foram o meu limite pessoal.
— Certo, eu entendi — digo rápido, a impedindo de continuar. — Aproveitem… a … Liberdade? Eu acho… — Tia Vanessa ri de minha expressão desgostosa.
— Você age como se não transasse. Desencana! — Ela dá de ombros, começando a puxar o zíper do vestido de veludo vinho com certo cuidado. — Me ajuda com isso? Está meio… frouxo — Assume sem vontade e eu suprimo um riso, indo até ela.
— É diferente fazer e falar sobre fazer… Sei lá — Toco sua cintura para indicar que já acabei. Ela suspira e segura o tecido contra os seios.
— As duas coisas são naturais e saudáveis — Me lembra com certa veemência.
— Eu sei… — Resmungo.
— Por falar nisso, o dormiu por aqui? — Ela passa o olhar pela cama bagunçada e eu me afasto sentindo as bochechas esquentarem.
— Não. Ele foi embora de madrugada — digo rápido, repassando a última semana com um sorriso bobo no rosto.
Por termos passado o Dia dos Namorados sem estarmos namorando, sugeriu que comemorássemos com estilo, mesmo que atrasados. Na segunda-feira, nós cozinhamos juntos o jantar em minha casa, com direito a duas rodadas de sobremesa. Na terça-feira, me levou para tomar sorvete na hora do almoço, transformando minutos em horas com seu carisma mágico. Na quarta, era minha vez de surpreendê-lo com algum tipo de experiência e já que ele tinha de trabalhar e estudar naquele dia, eu o encontrei em sua casa, onde assistimos metade de um filme e passamos o resto da noite nos beijando como se não fosse haver mais chances. Na quinta-feira, decidimos abrir nossa comemoração para outros casais, então saímos com Tati e Felipe para um barzinho não muito longe. Ninguém bebeu nada alcoólico, mas ainda assim, nos divertimos.
Ontem, sexta-feira, após me ajudar a fechar a lanchonete, nós subimos e aproveitamos cada segundo juntos. No balcão da cozinha, no tapete da sala, embaixo do chuveiro.
Nós tivemos cinco melhores dia dos namorados em somente um ano e eu mal posso esperar para o próximo.
— Vocês vão sair mais tarde? — Ela pergunta como quem não quer nada.
— Acho que sim, por quê? — Ela morde o lábio inferior.
— Queria dormir na minha cama hoje, mas não sozinha… — Tia Vanessa resmunga a última parte, chega até a fazer um biquinho.
— Entendi o recado — Eu até tento ponderar e evitar a escolha óbvia, mas ao lembrar de ontem a noite e como me faz sentir, não tem jeito. Eu sei exatamente onde vou dormir esta noite.
— Me avise onde irá ficar… — diz antes de entrar no banheiro. — Aproveite o dia, querida. Eu vou repor minhas energias — Ela fecha a porta e eu compreendo a mensagem subliminar de que ela quer ficar sozinha em casa o dia inteiro.
Após lavar a louça do café da manhã, troco de roupa e calço meus tênis. Alcanço o celular e minhas chaves, avisando a tia Vanessa que estou saindo com um grito do qual não tenho certeza se ela pôde ouvir, mas saio de casa mesmo assim.

Sempre gostei das estações mais frias do ano.
Combinam melhor com minhas roupas, meu cabelo demora a obter a aparência de sujo, ficando brilhoso e surpreendentemente comportado. As ruas ficam mais vazias, mas em contraponto, todo o cenário adota uma cor bonita. Nas árvores, folhas caídas, penso até que o céu adota um tom mais esbranquiçado no outono. Tudo está em constante mudança e é uma verdadeira beleza poder testemunhar o fechamento de mais um ciclo da natureza.
Encaro o céu até que meus olhos se incomodem com a claridade, lacrimejando tanto que lágrimas finas escorrem até o meio de minha bochecha. E eu as sinto, assim como sinto todo o entorno com imensa gratidão.
Ouvindo música com o volume dos fones no último, me sinto em um videoclipe e logo sou acolhida pela sensação gostosa pela qual espero todos os anos. O ar frio entra em meus pulmões me energizando, me deixando inspirada.
Me desconecto da natureza e do concreto dividindo espaço para me mostrar seus encantos e encaro a janela do quarto de Tati, esperando que ela atenda aos cinco apertões de campainha que eu dei há pouco.
— Sorte sua que o meu pai não está em casa, ele tem odiado o som da campainha ultimamente — Tati me recebe na porta com um sorriso mole no rosto. Isso e os cabelos bagunçados me garantem que não estaremos sozinhas nessa minha visita.
— Será que ele não odeia o que vem depois do som da campainha? — Devolvo brincalhona enquanto subimos as escadas. Pela porta entreaberta vejo Felipe ajeitar o short e rio comigo mesma.
— Isso também faz sentido — Minha melhor-melhor amiga concorda e após batidinhas leves na porta e o consentimento de Felipe, adentramos o cômodo.
— E aí, … — Ele me cumprimenta sem olhar diretamente para mim e eu compreendo.
— Oi — digo encarando um ponto específico no teto, me certificando de que nada constrangedor aconteça.
— Eu devia ter pedido mais um minuto. Com licença — Felipe se explica e dá passos apressados para fora do quarto. Tati e eu nos entreolhamos e ela dá de ombros, me fazendo morder o lábio inferior com força para não rir de meu amigo e seu amiguinho inoportuno.
— Então… Tudo bem? Não nos vimos depois do nosso encontro duplo. Já disse que amo nossos encontros duplos? — Tati se anima, sorrindo de orelha a orelha.
— Só umas mil quatrocentas e setenta e sete vezes. Eu gosto também — Sorrio de volta. — Estou bem. Dormi bem, tive uma semana ótima. Estou gostando dessa coisa de férias — Tati solta um riso único, desses que quase não se parecem como uma risada, mas a reação física de um sentimento bom. — E você?
— Um pouco ansiosa para segunda. — Ela solta a respiração devagar, esfregando o tecido da calça legging preta na altura dos joelhos.
Tati começa em seu primeiro emprego na segunda-feira, uma empresa em crescimento de telemarketing contratou metade dos jovens da cidade. O salário não é muito bom, mas para alguém como Tati, que precisa conquistar alguma independência financeira para começar seu próprio negócio, é um bom início. Com a carga de horas flexível, ela poderá conciliar as duas coisas, ou é o que queremos acreditar.
— Você vai ficar bem. O que é falar com pessoas no telefone por seis horas ao dia? — Minha pergunta volta para mim e eu começo a entender o desânimo de Tati.
— As pessoas podem ser horríveis quando estão com razão — Minha melhor-melhor amiga rola os olhos, suspira frustrada e desaba na cadeira.
— O que você vai fazer? — Fico interessada, me pergunto o que acontece por trás daquelas paredes há meses.
— Atender uns telefonemas de pessoas reclamando de mal funcionamento no serviço. Com a popularização dos computadores, a internet discada é a opção mais adequada para conexão no conforto do lar. Mas a tecnologia ainda tem falhas, por isso, eu basicamente vou agendar visitas técnicas para conserto de equipamentos e instruir as pessoas a tirarem seus equipamentos da tomada e inseri-los novamente. Tudo isso enquanto eles me xingam até a próxima geração — Tati coça a nuca, reavaliando suas escolhas. Me assusta a forma como ela deixou de ser a calorosa Tati por um instante.
— Parece uma tarefa que exige que você se abstenha de se aproximar muito pessoalmente do problema. Como se faz isso? — Tati ri engasgado e me olha como se fosse óbvio.
— Você deixa tudo o que é você no armário, antes de entrar para a posição de atendimento. Adota uma persona sarcástica, indiferente e sobrevive dia após dia. — Assinto devagar, não compreendendo completamente, mas me agarrando ao propósito e deixando os meios de lado.

Eu não poderia estar mais feliz com meu emprego. O desafio de estar cara a cara com o público é imenso, mas ninguém nunca me xingou olhando nos meus olhos na lanchonete.
— Tem certeza de que não quer trabalhar comigo? Eu sou legal, pergunte ao Gui. Não, ele não. Pergunte à Tina, com ela eu sou legal mesmo — Volto a insistir, só para vê-la sorrindo de novo.
— Obrigada por oferecer pela milésima vez. Eu te amo por isso. Mas não, obrigada. — Ela é decidida e eu me orgulho disso. Tati já começou o trabalho árduo.
— O convite permanece aberto — Levanto os braços em uma desistência temporária.
— Eu posso trabalhar pra você? — Felipe volta ao quarto, se inteirando do assunto.
— Eu administro uma lanchonete, não um hospital — digo confusa com seu pedido.
— Eu não sei se vale a pena voltar pro próximo semestre, passei raspando. ‘Tô me sentindo um merda — Felipe desabafa enquanto desaba na cama. Encara o teto com uma expressão triste e eu olho para Tati em busca de orientação sobre como prosseguir.
— Você não é um merda, amor. É seu primeiro semestre, foi desenhado pra você falhar e se sentir exatamente assim. Mas você não falhou, e daí que foi de raspão? O resultado é o que importa. Garanto que se a caísse dura no chão, aqui e agora, você seria capaz de salvá-la — Tati diz com certeza, mas não posso deixar de esticar o braço e dar as três batidinhas na madeira da cama.
Só por segurança.
— Provavelmente eu entraria em pânico e ligaria para uma ambulância, mas fico feliz por você pensar que eu conseguiria fazer isso — diz o rapaz com um meio sorriso que se intensifica quando as mãos deles se tocam.
— Certo… Você precisa se distrair. O que vamos fazer hoje? — Lanço a pergunta e espero até que o olhar intenso do casal termine e eles possam estar na mesma conversa que eu.
— Deveríamos sair — diz Tati, animada de novo.
— Eu topo, mas não quero dirigir — Felipe avisa, antes que sua direção seja inclusa nos planos.
— Justo — Dou de ombros. — Para onde vamos?

— Nós temos que ir para a Matriz! — Amália bate na mesa a cestinha de uma meleca que em algum momento foi sorvete de menta e chocolate com calda de morango, e faz com que todos a olhem interessados.
— Legal, não sabia que você era religiosa — Felipe comenta desavisado, pensando que ela se tratava da Catedral Diocesana Nossa Senhora da Conceição, que popularmente é chamada de Igreja Matriz. — É mesmo uma construção belíssima, uma das riquezas da nossa cidade. Eu super topo — Amália olha para Felipe com compaixão e paciência, mas está quase explodindo com a vontade de rir.
— Não é bem a igreja que estamos indo ver… — Amália olha para mim, eu olho para , que já está rindo há algum tempo.
— Tem uma roda de rima lá perto, irmão… É isso que nós queremos ver — Jorge explica, sem a misericordiosa empatia feminina.
O som de entendimento que sai dos lábios em formato de O de Felipe faz todos nós rirmos e ao perceber o papel que fez, nem ele se aguenta.
Estamos em uma praça no meio da tarde, tomando sorvete e papeando sobre um futuro próximo. Termino minha casquinha e tomo um tempo para observar meu entorno.
Percebo que temos nos encontrado bastante de forma orgânica. Jorge, Amália, Guilherme, Bia, Felipe, Tati, e eu.
Gosto de pensar que sou como um elo que une toda essa gente diferente nesta amizade ácida e instável, mas forte. Se deixarmos as desavenças entre nós de lado, encontramos tanto em comum que foi inevitável formarmos uma espécie de nova gangue na cidade. O barulho de nossas conversas é denso, as risadas são fortes e verdadeiras, por mais que o motivo seja a zoação com algum de nós na maior parte do tempo.
Às vezes, quando nossas risadas se harmonizam em uníssono, é quase como poder tocar a essência da mais plena tranquilidade. Como se, fora daqui, os problemas que nos perseguem tirassem folga e nos deixasse aproveitar o momento na presença um do outro.
Com tudo de ruim que acontece todos os dias, mesmo com as diferenças, fico feliz por termos esse lugar como seguro.
Gosto de como a influência de meu irmão permanece viva não só em mim, mas em todos aqueles que o conheceram mais profundamente. O Pedro acreditava que a amizade traz uma adrenalina sutil, que carbura lentamente e mantém uma chama acesa. Aquela vontade de contar algo engraçado a um amigo assim que acontece, a possibilidade de aprender com o próximo, um lugar que não é físico, mas é móvel e torna qualquer lugar em um lugar melhor, por causa daquelas pessoas.
Ver Jorge e Felipe interagindo com o peculiar carinho da amizade masculina, me faz acreditar que temos isso. Um lugar livre para sermos quem somos em nossa mais infantil e pura verdade.
— Está decidido? — Jorge busca a confirmação de todos e logo a obtém. — Nos encontramos no ponto de ônibus às oito.
— Você precisa de roupas emprestadas. — Amália aponta para Felipe e ele é impedido de se ofender.
— Tem razão, eles vão acabar com você se for vestido assim. — comenta com pesar.
— O que tem de errado com minha camisa de botão e calça larga? — Felipe cruza os braços.
— Você quer que eu diga a verdade? — Jorge o analisa da cabeça aos pés.
— Eu já sei o que ele vai vestir — diz Gui, com a boca cheia de confeitos.
Tati solta um grito agudo, chamando atenção.
— Vocês vão fazer um makeover no Lipe?! — Ela grita de novo, saltando no lugar e batendo palmas. Exultante.
— Você deixou tudo estranho agora — Jorge se constrange, assim como Gui. Em contrapartida, Felipe tenta disfarçar, mas gosta da ideia.
— Tenho umas ideias também… — fica pensativo.
Os rapazes começam a falar sobre roupas e rapidamente nos dividimos em opiniões. Todos eles têm ideias de combinações e peças específicas em mente. Tamanho não é problema, já que as roupas deles são, pelo menos, três números maiores que o necessário. A ideia é trazer o estilo das ruas para o estudante de medicina. Deixar que ele se pareça por fora como se sente por dentro, mesmo que somente por uma noite.
A animação é tanta que logo estamos todos marchando, casa por casa, recolhendo os itens dos quais eles falaram tanto.
Paramos por último na casa de , onde decidimos beber uma água e acabamos por ficar lá mesmo.
indica seu quarto para que Felipe possa se trocar com privacidade enquanto ficamos na sala, discutindo combinações entre as peças.
— Acho que devemos definir uma paleta de cores, senão ele vai ficar parecendo um poser. — Jorge comenta distraído com algumas camisetas.
— Eu sei que o Lipe é presença. Com certeza ele vai querer chegar lá com esta pegada. — Guilherme monta a opção de look com uma pequena variação de camisetas vermelhas, calça baggy bege e muitas correntes chamativas para o pescoço e calça.
— O Felipe não tem força muscular na parte superior do corpo pra carregar isso tudo! — discorda prático, fazendo Tati olhá-lo com revolta nos olhos claros.
— Ei! — Ela reclama, mas meneia com a cabeça. — Realmente, é meio exagerado.
— Eu digo que ele deve ir de preto. Simples, confortável, estiloso. Não tem como errar — pega somente uma das correntes que Guilherme propôs, colocando sobre uma camiseta preta lisa, calça baggy também preta e os tênis brancos cintilantes que o Gui abriu mão excepcionalmente para este makeover.
— Boné? — Jorge pergunta, colocando alguns sobre as peças no sofá.
— Dependendo do casaco… — Gui aponta e assente veemente.
— A ideia é fazer ele se misturar na multidão. Senão, ele fica nervoso — Os rapazes ponderam e parece que uma votação se inicia entre eles.
— O que quer que vocês decidam, só não digam nada sobre ele andar diferente. Ele tem umas ideias e todas elas são podres! — Tati adverte em voz baixa, deixando os rapazes com um misto de curiosidade e repulsa no olhar.
— Eu gosto do seu jeito de pensar, Gui. Mas devo concordar com o , eu não quero andar com um poser. — Jorge analisa o conjunto formado por e acrescenta uma de suas jaquetas, compondo bem o estilo com alguns acessórios discretos para o pulso.
— Isso é importante pra você, já entendi. — Guilherme resmunga.
— Você poderia usar essa roupa. — Bia se pronuncia, tocando algumas das camisetas com as pontas dos dedos. Guilherme a encara como se ela tivesse meia dúzia de olhos.
— Eu já tenho o que vestir! — Gui se exalta, mas não parece destemido como penso que ele queria parecer.
— Então, vocês estão bem sobre o que vão vestir mais tarde? — Pergunto discretamente, somente checando com as meninas se isso não é mesmo uma grande preocupação.
— Eu ‘tô de boa — diz Amália, bastante tranquila.
— Eu também — Tati surpreende, nem um pouco preocupada.
— Eu tenho algumas ideias, nada muito elaborado. É só imitar você, — Bia aponta para minha calça de moletom larga e regata por baixo do moletom de zíper que, originalmente, era de . Não sei bem o que sentir.
— A imitação é a maior forma de elogio, afinal? — Tati pergunta imediatamente, como se não pudesse esperar por minha resposta. Bia espera por ela também, me pressionando.
— Acho que sim… — Dou de ombros, desviando fisicamente da conversa. Passo pelo sofá, onde os homens discutem moda e me dirijo ao banheiro, só para fugir da conversa mesmo.
Antes de conseguir fechar a porta, entra no banheiro também, me fazendo suspirar em surpresa.
— O que você quer? — Pergunto com os braços cruzados na frente do peito. — Achei que estivesse ocupado — Ele se aproxima devagar, com uma das sobrancelhas erguidas, ele nem parece me ouvir.
Os olhos fixos nos meus lábios, parecem enfeitiçados, entregues. Não há mistério algum em suas intenções.
me encosta contra a porta e chega a me levantar um pouco do chão com seu abraço em minha cintura. Ele me beija e me faz acreditar que era exatamente isso o que eu vinha fazer aqui, sem chateações ou constrangimentos, somente a necessidade de me afundar nele sem que ninguém veja.
— Que saudade! Nunca mais recuso um convite para dormir na sua casa — Ele beija meu pescoço, me colocando de volta no chão. Em todos os sentidos.
— Eu te disse que você iria se arrepender. Deveria haver uma lei que proíba namorados de dormirem separados no inverno — arregala um pouco os olhos. Passamos os dias dos namorados juntos, mas, não tínhamos definido exatamente se essa coisa começando com N era mesmo para acontecer entre nós. — O que foi?
— Eu ia te pedir hoje… Mas você me poupou muito estresse, obrigado por isso — Ele ri nasalado e eu me aproximo dele de novo.
— Ia ter um pedido? Eu quero um pedido — Exijo, buscando seus lábios com os meus.
— Agora vai ter que esperar até o casamento — diz assim, sem mais nem menos. Agora sou eu quem tem os olhos arregalados em pânico. — O que está longe de acontecer, só para deixar claro — Ele acrescenta, me fazendo encará-lo com certa descrença. Não é possível. É muito cedo!
— Você pensa nessas coisas? — Pergunto agarrada ao seu pescoço, trancada no banheiro com ele.
— Não — Ele responde rápido demais, me fazendo rir de sua mentira. — Minha mãe está preparando um casamento e me pedindo todas essas opiniões sobre arranjos de mesa e decisões sérias como ter uma banda tocando ao vivo ou um DJ. Eu me peguei pensando em como poderia ser se eu me casasse um dia e… Bem… Noivas são algo importante em casamentos e… Eu pensei que você… — Ele gagueja, cora, solta um pigarro e tem todo o tipo de tique nervoso.
É reconfortante saber que eu não sou a única a entrar em pane quando o assunto é o nosso futuro. Significa que nos importamos com o que vai acontecer depois.
Um silêncio cobre o momento e nós ficamos nos encarando por pelo menos uns dois minutos antes de qualquer um de nós ter coragem de dizer alguma coisa.
— Eu não tenho idade para casar! — Sou eu quem fala primeiro. Um riso desesperado é compartilhado por ele.
— Nem eu! Eu só… É culpa da minha mãe, ela me fez pensar demais sobre esse assunto — se defende, constrangido. Sinto que minha reação não foi a mais agradável e respiro fundo, olhando o homenzarrão diante de mim, completamente apaixonado, pensando em arranjos de flores e uma vida inteira ao meu lado.
— Mas é fofo que você pense nessas coisas. — Ele assente, ainda sem me olhar.
— Eu sei, eu sei… Só esclarecendo, eu não quero me casar com você, pelo menos não por alguns anos. Ok?
— Ok! Ok — Ele volta a me olhar e nós assentimos juntos. — Eu não espero que você faça um pedido, pelo menos não por alguns anos. Só… Esclarecendo — ri, voltando a concordar. Ele ainda não parece aliviado o suficiente. — Mas eu te amo agora. Acho bom você saber disso — digo meio sem jeito, ainda achando engraçado o som da minha voz ao dizer estas palavras.
— Eu te amo agora — Ele repete, suspirando profundamente. parece refletir demais na frase, quase se distanciando do momento por conta disso, mas eu o capturo pelos lábios, o beijando lenta e apaixonadamente.
— Caralho, quase esqueci como é bom ser seu namorado — Eu rio ainda próxima de seu rosto, o abraçando e ficamos assim por um tempo.
— É bom, é? — Beijo seu pescoço, sorrindo ao sentir a pele se arrepiar contra meus lábios.
— Tem gente em casa, menina… — aperta minha cintura, não parecendo se opor nem um pouco aos meus carinhos.
— Eu não ligo — digo contra seus lábios, sendo impedida de seguir em frente por batidas insistentes na porta, atrás de mim.
— Eu quero fazer xixi! — Amália reclama do outro lado, nos fazendo rir.
assente rapidamente e se afasta, abro a porta e encaro Amália como se pudesse refazer seu DNA com a mente e transformá-la em um pedaço de madeira. Ela olha de mim para e gargalha antes de entrar no banheiro e bater a porta com força.
— Que folgada… — resmunga, rolando os olhos. Ele me abraça pelos ombros e voltamos à sala, vendo Felipe exibir seu traje para mais tarde.
Ele parece outra pessoa, confiante em seu elemento. O preto ressalta sua pele e até seu corte de cabelo desleixado começa a fazer sentido. Então, é esse cara que a Tati vê quando olha para o antigo nerd da escola.
— Uau! — Escapa pelos meus lábios e eu olho para , buscando reprovação, mas ele está orgulhoso do amigo.
— Eu conheço o Lipe, sei qual é a dele! — se afasta de mim para cumprimentar Felipe e é bonito ver como a amizade forçada deles acabou se tornando verdadeira, não só pela convivência.
— Valeu, meu mano! — Felipe gira a chave completamente, soando como alguém do grupo, não um mauricinho como a maioria de nós julgou por tantos anos. — E se eu fizer uma parada assim quando eu andar? — Ele mal começa e nós gritamos em uníssono:
— NÃO!

Mais tarde, nos encontramos no ponto de ônibus como combinado. Chegamos todos em pares, ferindo diretamente a camada de ozônio com a concentração enorme de desodorante, perfume e laquê em um só grupo.
Guilherme e Bia são os últimos a chegar. Ele encosta o carro da mãe no meio-fio em frente a lanchonete e já se desculpa antes mesmo de bater a porta do carro.
— E aí? O que achou? — Bia pergunta pra mim. Ela está linda, é claro. Os longos cabelos trançados desde a raiz caem sobre os ombros protegidos por uma jaqueta do namorado, por baixo, um top azul claro deixa à mostra sua barriga. As calças mais largas, inclusive na cintura, deixam as alças finas da calcinha para o lado de fora e todo o conjunto se parece muito com algo que usei há alguns dias em um de nossos encontros. Exceto pela calcinha à mostra, pois, a cada dois segundos, a puxava para o próprio deleite e eu acabei por escondê-la em algum ponto.
O fato é: Bia está linda, mas o estilo definitivamente não combina com ela, porque ele é meu.
— Eu disse que não queria andar com posers… — Jorge resmunga ácido ao ver a garota posar com toda sua falta de ginga. Engulo em seco, vasculhando em minha mente por algo decente pra dizer. — Arrasou — Tento parecer convincente, já que estou praticamente olhando no espelho e vendo uma garota branca. Mas não é possível, meu rosto se contorce em um riso e o desespero toma conta. O que deveria soar como um elogio fervoroso soa como uma pergunta incompleta e eu vejo Bia lutar com todas as suas forças para compreender minha reação genuína de desconforto.
— Você foi bem — acaricia meu braço, falando baixinho.
Eu sei que ele está mentindo e o agradeço por isso.

Esperamos pelo ônibus há pouco mais de dez minutos e estamos fazendo cálculos financeiros para dividirmos toda a grana que temos juntos. Com o valor das passagens de volta separado, entramos no impasse de quanto deve ser destinado para os integrantes do grupo que consomem bebidas alcoólicas e quanto iria para os que não consomem.
— Levando em consideração que a bebida é mais cara, nós deveríamos dividir em 60/40 — Jorge impõe.
— Mas nós somos maioria — diz Bia, irritada.
— Você é nova — Ele devolve repentino, como se estivesse esperando pela oportunidade de lembrá-la.
— Ela é nova, mas também está certa. Nós somos maioria — Conto novamente e vejo que Tati está hesitante.
— Na verdade, eu estou afim de beber hoje — Felipe dá de ombros.
— Não quero ficar numa página diferente da dele — Tati continua, sorrindo de boca fechada.
— E se… — começa, mas logo desiste. Cutuco suas costelas com a ponta do indicador e ele suspira, tomando coragem. — E se cada um pagasse por si? Estamos em um grupo grande, mas vamos acabar nos dividindo em pares mesmo. Ver vocês discutirem sobre isso é mais estressante do que ser responsável pelo próprio consumo — Todos ficam em silêncio por um momento.
— Por que estávamos dividindo mesmo? — Tati pergunta, ela era a calculadora humana sendo usada.
— Era assim que fazíamos antes — Jorge responde, mas encara com certa agressividade no olhar.
— Porque éramos adolescentes duros, alguns de nós não tinha nem o da passagem. Não é mais assim. — diz o óbvio, forçando o amigo a refletir e logo a carranca se suaviza.
— É… Eu era um desses — Jorge ri, mas há certa dor na lembrança. — Quando a conta não fechava, nós íamos de skate, lembra? — assente rindo.
— Não depois daquele rola! — Meu namorado comenta, só os dois conhecem a história.
— Quem diria que duas rodas te fariam se sentir mais seguro do que quatro — Jorge dá de ombros, mantendo o sorriso cheio de memórias no rosto.
— Muito mais! Até uma roda da bike me deixa mais seguro — conclui.
O dinheiro é devolvido às carteiras, o acordo de cada um ser responsável pelos próprios gastos é fechado e o ônibus finalmente chega.
Tomamos todos os assentos do fundo, o barulho é inevitável, pois todos engajam na mesma conversa animada.
A viagem toda não dura nem trinta minutos devido ao horário e a ausência do trânsito conhecido no percurso, logo estamos diante de uma pequena multidão amontoada e os gritos podem ser ouvidos ao longe.
As batalhas são pré-selecionadas e alguns dos competidores já são conhecidos do público.
O lugar é mal iluminado e nem deveria ser considerado como um evento em si.
Se trata de uma calçada grande com espaço o suficiente para acomodar um pequeno palco de uns dois degraus no centro da multidão e atrás dele, um sistema de som ligado clandestinamente na energia elétrica de um dos comércios do beco largo. Cada batalha dura, no máximo, quatro minutos. Cada minuto dividido em dois, podendo ter um quinto round, dependendo da votação do público e dos jurados. Os jurados (algum rapper mais famoso ou alguma autoridade da cultura, como dançarinos, poetas, etc.) tomam suas decisões sem olhar para os competidores, deixando tudo muito técnico e impessoal.
Observamos de longe primeiro, absorvendo a atmosfera do ambiente. Tem gente de todo lugar da cidade, até de fora dela. Todos os estilos juntos em um só lugar.
A batida do beat escolhido para a batalha atual é hipnotizante. A cada segundo, ela nos carrega em bando e nos traz para mais perto de si. É automático, mal percebo quando estou sendo meio que amassada pela multidão.
É quem define a distância mais segura, ainda que garantindo a diversão.
As rimas podem ser ouvidas e as reações são arrancadas diretamente do peito.
Eles falam da luta diária da cena do Rap brasileiro underground, das desgraças e delícias da vida, mas, principalmente, se ofendem de forma hilária.
Palavras como derrotar, bater e até matar são usadas, mas só por licença poética e pelo poder de entrar na mente do oponente, embaralhando suas ideias e atingindo o ponto que, por muitas vezes, os fazem travar ou gaguejar. O que é a verdadeira morte na hora da rima improvisada.
É tudo muito dinâmico e real. Cru, eu poderia resumir assim. Tão rudimental que arrepia os pelos de minha nuca quando algum rapper acerta a melodia com seu flow e tudo se conecta.
É preciso estar presente de corpo e alma para absorver bem uma experiência assim, tudo acontece tão rápido que é como ser testemunha da passagem de vários cometas. Cada um exibindo sua particularidade e esbanjando musicalidade em sua curta, mas intensa passagem.
Tudo é inédito e pode ser que se perca após o momento, então é necessário se entregar.
Em cima e fora do palco.
— Faz barulho quem gostou do MC GQ! — O mestre de cerimônias agita o público, o barulho é intenso e me faz rir com uma involuntária animação.
— Façam aquele som para o GustaRapper! — Ele volta a pedir, dessa vez, nós gritamos também, engrossando o coro para o competidor que acaba vencendo este round.
A competição faz uma pausa e é aí que me dá sede.
— Vamos beber alguma coisa? — assente, entrelaçando nossas mãos e saindo em busca de um vendedor ambulante com sua caixa de isopor.
Quando nos afastamos um pouco do palco improvisado, percebo que nossos amigos se dissiparam e se misturaram na pequena multidão. estava certo, afinal.
Ao longe, fazendo uma dança sensual e expansiva, vejo Tati e bem ao lado dela, com cara de quem quer se esconder de vergonha, seu namorado.
— Que. Lugar. Incrível! — As bochechas coradas e olhos vidrados de Tati denunciam seu estado, a expressão constrangida de Felipe me faz acreditar que nos preocupamos muito com o membro errado do grupo.
— Ela bebeu um copo de catuaba e ficou assim. — Felipe responde à minha reação totalmente chocada. Tati o corrige, dizendo que foram dois e meio e corta a frase antes de terminá-la, gritando animada quando ouve uma música conhecida tocando.
— Isso é tão divertido! — Ela continua dançando em volta do namorado ao som de R&B, fazendo para ele o próprio show.
— É um jeito de ver essa situação… — Felipe comenta, impedindo que Tati esbarre em um casal passando por perto. Ele abaixa os braços dela, a puxando pelo pulso para uma dança mais comedida, próxima a ele.
— Cadê o resto do pessoal? — pergunta, acenando para um vendedor que se aproxima.
— Acho que ouvi o Gui dizendo que ia se inscrever… — Felipe dá de ombros, buscando pelos amigos com o olhar.
— Se inscrever pra batalha? Por que ele faria isso? — Pergunto aos risos e Felipe volta a dar de ombros.
— Se ele for ruim, nós ainda temos que torcer por ele? — O rapaz me pergunta com a voz mais baixa.
— Acho que sim…
— Sério? — Ele une as sobrancelhas e eu aceito o refrigerante de limão que me oferece.
— Obrigada — Ele sela nossos lábios, os dele tem gosto de refrigerante de cola.
— O que o Gui está fazendo no palco? — Tati pergunta, nos fazendo olhar para o centro da multidão.
Ele parece nervoso, incerto sobre como prosseguir. Ele encara as pessoas em volta e parece procurar por algo.
— Nós devíamos ir pra lá? — Pergunto para e ele não consegue ultrapassar o choque.
— Nós precisamos ir pra lá! — Tati sai em disparada e empurra algumas pessoas, conseguindo espaço logo na frente do palco. — Você consegue, Gui! — Ela grita sobre o murmúrio coletivo.
— Vai, amor! — Bia incentiva, se fazendo ser encontrada do lado oposto ao nosso no palco. Tati acena para ela e logo ficamos todos em um só lugar.
— O que ele está fazendo? — Jorge pergunta nervoso. — Desde quando o Gui é rapper?! — O desespero transborda pelos seus poros.
— E eu que sei?! — ainda parece não acreditar no que os seus olhos veem.
Eu não entendo o motivo para todos ficarem tão alvoroçados e apreensivos. Acredito piamente que toda vez que Guilherme passa vergonha, nasce uma fada em algum bosque distante.
— Ele está bêbado ou algo assim? — Pergunto estranhando o estresse se acumulando nos vincos de suas testas. Meu sorriso debochado vai sumindo e dando lugar a uma expressão preocupada também.
— Nós chegamos há vinte minutos, não deu tempo de se embebedar — diz Amália, mas eu aponto para Tati e ela meneia com a cabeça. — Ela é café com leite.
— Não acredito que ele vai fazer todos nós sermos banidos do rolê! — Jorge resmunga preocupado. Deixando suas motivações mais claras.
— Vocês são tão negativos. E se ele for incrível? O próximo Eminem? — Bia questiona com seu olhar sonhador e maquiagem brilhosa. Por um instante, eu quase me permito acreditar na possibilidade, mas a risada sincronizada de , Amália e Jorge me garantem que o rapaz não tem chance.
— Certo — começo, mas sem muita certeza do que direi a seguir. — Talvez ele não seja bom, nem o suficiente para ser o próximo Vanilla Ice. Mas ele é nosso amigo, temos que apoiá-lo já que não temos mais tempo para impedi-lo. — Jorge continua rindo.
— Vanilla Ice… — Repete, como um menino alheio ao momento.
— Não acredito nisso… — coça os olhos, o riso persistente faz sua expressão ser adorável.
— Vai, Gui! — Amália grita, incentivando. Sua expressão é hilária.
— É isso aí, moleque! — Jorge manda, dando alguma confiança para o rapaz pálido e tenso, exibindo naquele palco somente um fantasma de si mesmo. Uma fração minúscula da confiança exacerbada que ele esbanja normalmente cheio de hostilidade e superioridade.
Tenho sentimentos complexos sobre o que estou prestes a assistir.
— Temos uma inscrição de última hora! — O MC pega o microfone, chamando a todos que se dispersaram durante o intervalo para se juntarem novamente. — E apesar de ele não ter respeitado o prazo do projeto, nossos jurados aceitaram dar uma chance a ele — A plateia vai se agitando aos poucos, os murmurinhos vão engrossando e a tensão vai ficando maior também.
Gui empurra o microfone da mão do MC, o irritando. Ele aponta para um dos jurados e faz um gesto com a mão, o chamando.
O homem magricela, de sorriso plástico e uma presença de palco impecável — mesmo que neste ele só possa dar uns cinco passos bem largos —, está prestes a expulsar o Gui da competição pela audácia, quando o jurado se levanta de cabeça baixa, balançando-a de um lado para o outro.
Eu não o reconheço logo de cara, mas quando ele aceita o desafio de Guilherme, vejo o líder do Monsters sorrindo convencido. A expressão incomodada de quem foi tirado de sua zona de conforto, encarando seu antigo parceiro de grupo.
A plateia vai à loucura com a nova atração.
— Esse cara var acabar com o Gui. — Ouço Jorge dizer e não sei explicar porquê, mas aquele olhar me deixa apreensiva.
— É uma ocasião especial — O MC abafa a voz contra o microfone, dramatizando ainda mais a encarada entre os dois homens no centro do palco minúsculo. — Vai ser pessoal! — Ele volta a gritar e a plateia se une em coro, repetindo: “Quero ver sangue! Quero ver sangue! Quero ver sangue!”.
— Merda… — lamenta, observando a cena com atenção.
A batida começa fazendo alguns pescoços e cabeças acompanharem seu ritmo que dita seriedade ao momento de decisão.
É mesmo uma ocasião especial, ao invés de dividirem um microfone, cada um tem o próprio. As caixas de som são as testemunhas mais próximas da tensão que emana dali.
Como cortesia, o mais velho deixa que Gui comece e ele respira fundo, com fogo nos olhos.

“Você disse aquele dia que a vingança galopava
Gritou, berrou, usou, surtou enquanto eu te deixava
Veio que nem uma puta, achando que as ideia me levava
Entrei, zoei, peguei e 'cê nem desconfiava
Tentou me atrasar, falou uma pá pra minha senhora
‘Meu filho, vê se supera’ esse seu papo aí não cola
Eu tô aqui com a minha banca e uma mina louca que me adora
Depois do que rolou no Monsters, Henrique,
Quem é que tá aqui contigo agora?”

Guilherme começa nos deixando chocados com o flow assertivo e a frieza de sua letra ácida, provocativa. Os gritos que são libertados do fundo da garganta da plateia preenche os trinta segundos de Gui e vejo ele se encher de esperança.
Henrique meneia com a cabeça, avaliando a recepção da galera às rimas de Gui. Ele se prepara, encostando o microfone contra os lábios e chegando bem perto de seu oponente para demonstrar que não tem medo do desafio.

"Me chamou de puta, esse cara é inconsequente
Já tentou ensinar ética de trabalho pra um incompetente?
Sua noia por poder deixou teu cérebro corroído,
Correu de volta pros parceiros, o chute que te dei foi muito dolorido?
Entrou, zoou, pegou, mas eu sabia que tava de passagem
Quem é verdadeiro reconhece quem 'tá só de trairagem
Sua banca 'tá em choque, porque é difícil de acreditar
Eles 'tão pensando: 'Não é possível, o Gui nem sabe rimar'
E não sabe dançar, não tem humildade
Fala aí, Gui, como é ser um perdedor profissional de verdade?
Me chamou de puta, porque disso ‘cê entende
A mina que te adora é aquela ali na frente?”


Não há como descrever o que acontece na plateia no momento em que Henrique bate o microfone no de Gui, o derrubando de propósito, senão como uma reação efervescente. Bicarbonato de sódio e vinagre em um encontro rápido e corrosivo.
Ao ouvir a ofensa direta, Bia tenta subir no palco improvisado sendo impedida por Amália, que tenta lhe convencer de que tudo não passa de provocação barata.
Henrique mira os olhos sedentos por mais diretamente pra mim, me deixando desconfortável. Ele sorri como sorriu meses atrás, na minha primeira e última competição de dança.
Ele volta a se sentar na cadeira de plástico destinada aos jurados como se fosse seu trono de direito e é ovacionado enquanto Gui é educadamente expulso do palco.
A plateia não perde tempo e estende o julgamento até o ponto em que Gui se vê obrigado a sair de perto da multidão.
— É… Isso foi um massacre! — Jorge comenta com os olhos perdidos.
— Espera, Gui! — Bia corre atrás dele, devolvendo um xingamento ou outro pelo caminho.
Em certo ponto, o que Jorge mais temia acontece e todos nós somos vistos como ameaça.
— Acho que o rolê acabou pra nós — comenta, olhando em volta com uma expressão fechada, intimidando os mais curiosos que nos encaram descaradamente com olhares maldosos.
— Vamos sair logo daqui — Puxo Tati e empurro , seguindo Felipe e os outros para longe da aglomeração de pessoas.
— Que ideia idiota! — Amália comenta em um meio riso nervoso e envergonhado.
— É, mano. O que você tinha na cabeça? — Jorge dá um salto e agarra Gui pelo pescoço.
— Me larga, cara! — Ele reclama irritado, sem paciência para brincadeiras.
— É sério, Gui. O que foi aquilo? — pede com um pouco mais de compaixão. Guilherme para de marchar em direção ao ponto de ônibus de onde viemos e puxa meu namorado para um canto, para conversarem sozinhos.
— Isso é uma boa ideia? — Felipe pergunta baixinho. — Você sabe, eles não vão querer resolver tudo no soco? — Felipe apoia as mãos no alto da cintura, olhando a cena dos dois com interesse.
— Eu não sei, eles são imprevisíveis. Talvez o Gui tente beijar o à força, aí não posso garantir nada — digo me virando em direção a meu amigo, que ri mais tranquilo. — Vamos comprar água para a Tati — Ele concorda e começa a procurar por um vendedor ambulante.
A última coisa de que precisamos agora é Tati vomitando o ônibus inteiro no caminho de volta para casa.
Quando o transporte chega, somos obrigados a reorganizar as duplas. e Gui vão juntos mais ao fundo para continuarem a tal conversa profunda, Amália apoia a cabeça de Tati com o moletom grosso que tirou do corpo por estar entrando em combustão por conta do constrangimento. Felipe e Jorge discutem tecnicalidades de uma rinha de rima e acabo por aprender um pouco mais dessa parte da cultura Rap enquanto ignoro a presença de Bia sentada ao meu lado.
Não que eu não goste dela ou de sua presença no geral, mas sempre que tem oportunidade, Bia gosta de lembrar sobre o mal entendido que houve entre nós como se já estivéssemos na parte em que podemos rir do ocorrido.
O fato de ela se sentir tão confortável comigo por ter me “conhecido” através de relatos de outrem me deixa bastante desconfortável. Ela sabe disso. O que me faz pensar que, talvez, não seja um ataque constante, mas um traço irritante de sua personalidade com o qual eu deva aprender a lidar, já que ela está no grupo agora e é querida por pessoas que amo.
Logo, eu tenho de dar um jeito de me acostumar com ela.
— Fico pensando se o seu irmão estivesse aqui — Bia fala com um certo ar de nostalgia. — Acho que ele não teria deixado o Gui subir no palco… Você sabe, ele tinha bom senso — Ela balança a cabeça de um lado para o outro, lamentando o fato de ele não estar aqui.
— Você nem o conheceu — digo o óbvio, ela ri sem jeito.
— Mas é como se tivesse conhecido. O Gui fala muito dele. — Franzo a testa, decidindo entre me irritar ou ignorar qualquer coisa que ela diga em busca de meu propósito de gostar dela. Mas não é justo com ela, muito menos comigo.
Eu preciso ser honesta.
— O Gui não era um bom amigo pro Pedro. Pra nenhum de nós, na verdade. O tal Henrique foi um babaca em te envolver na rima só pra fazer a galera gritar e acabar com tudo, Bia. Mas ele mentiu, Gui? — Olho por cima do ombro, o buscando no fundo do ônibus. Ele abre a boca, mas não responde. Completamente abalado. — Você pisou na bola com todo mundo, você sabe disso. — Volto a encarar Bia, ao meu lado. — Você não o conhecia, nenhum de nós sabe o que ele teria feito se estivesse aqui, porque ele não está. E se estivesse, talvez, ele deixasse o Gui ouvir algumas daquelas verdades, porque ele mereceu ouvir aquilo — Bia me olha de olhos bem abertos, tão sem jeito que não tem reação.
— Eu não conheço tão bem a história… — Ela se defende e eu rio nasalado.
— Não mesmo. E não tem problema você não saber o que houve. Só saiba que foi um saco pra todo mundo, e ainda é — Dou de ombros, um pouco cansada de confrontos.
— Eu realmente quero ser sua amiga, . Me ajuda? — Bia engole em seco, magoada.
— Eu não te conheço direito. Me deixe te conhecer de verdade, não uma versão do que você acha que a que as pessoas que eu amo conhecem espera que você seja — Despejo tudo e espero por sua reação. Ela não vem. Bia assente e vira o rosto para a janela, assistindo os prédios chiques ficarem para trás depressa.
Primeiro, me sinto mal por ela ter ficado claramente chateada. Depois, sinto um pouco de vergonha do alívio que sinto em algum lugar na garganta. Aquela pequena e estarrecedora verdade estava ali incomodando há tanto tempo.
— Você tem razão — Bia volta a falar, um pouco mais baixo desta vez. — O seu irmão é uma lenda pra esse pessoal. São tantas histórias e lembranças contadas o tempo todo, é quase como se eu tivesse vivido tudo isso também. Porque é lindo. Uma amizade dessas, com tantos altos e baixos, lições e cumplicidade. Isso é raro, . Vocês são mesmo como uma família e eu não tive isso em lugar algum. Eu paro de me esforçar para ser quem eu acho que você quer que eu seja, mas você pode parar de me julgar por querer fazer parte? Não é nisso que o seu irmão acreditava, afinal? Que o Funkz e as pessoas que fazem parte dele fossem acolhedoras e amigas umas das outras? — A mágoa de Bia se transforma em alívio também, eu vejo em seus olhos. Ela estuda minha reação surpresa, porque, ela está certa. Não é como se eu estivesse aberta para novas amizades, pelo menos não com ela.
— Me desculpe — digo tão verdadeiramente envergonhada por ignorar um valor tão importante pra mim.
— Está tudo bem — Ela pega minha mão com a sua e eu resisto ao reflexo de me afastar. — Eu tenho uma irmã também, eu fico cega quando o assunto é ela — A compreensão dela me deixa constrangida, emocionada.
— Obrigada.

— Então, toda essa zoação é permitida. Inclusive toda a insinuação de homicídio? — Felipe pergunta divertido, Jorge concorda no mesmo tom.
— Desde que rime… — Ele pondera. — Mas não se engane, os crimes acontecem o tempo todo, alguns se originam na rinha, outros vem de antes disso… O negócio é focar na arte e não se meter em encrenca — Ele vira um pouco o rosto, olhando para Gui de soslaio.
— Eles vão querer nos matar agora? — Felipe se preocupa, todos nós rimos.
— Não, cara… Mas agora nós temos de retaliar. Rimando, na pista… Como for. — Jorge parece determinado.
— Como assim? — Tati pergunta sem deixar de encarar o teto. Ela garantiu que essa é única forma de chegarmos em casa sem mais vergonhas em nossa lista de hoje.
— Nós temos que retaliar, ué… — Ele dá ombros, ela não vê.
— Eu ouvi, só não entendi — Reclama mal humorada, passando pelos estágios de seu pileque muito rapidamente.
— Ele está falando de um novo desafio — explica, desanimado.
— Vocês não estão sugerindo o que eu estou pensando, não é? — Amália sorri de orelha a orelha.
— Do que vocês estão falando, gente? — Bia pergunta, irritada com o mistério.
— Não… — ri nervoso, desacreditado.
— Nós vamos montar um grupo novo! — Jorge grita, chamando a atenção dos poucos passageiros na parte da frente do ônibus.
— Nós vamos? — Pergunto, olhando em volta e buscando por respostas.
— Não. Nós temos que recuperar o Funkz! — Gui entrelaça os dedos, apoiando o queixo sobre eles.
— Ai, graças a Deus! — Amália joga as mãos para o alto, agradecendo ao material de revestimento do ônibus pela ideia.
— Você só pode estar brincando — digo incrédula. Estou rindo, mas só porque a ideia é ridícula mesmo.
— Eu pareço estar brincando, ? — Guilherme pergunta sério, me olhando com certo desprezo.
— Vamos com calma… — toca em seu ombro, o fazendo encostar no banco novamente. — Se você quer mesmo fazer isso, vai precisar de toda a ajuda que puder receber. — Adverte, divertido.
— É, Gui… Você precisa melhorar essa sua atitude individualista se quiser a melhor B-girl de Guarulhos do seu lado — Amália tira uma sujeira de sob suas unhas, fala com pompa e espera a reação do rapaz.
— Você é, no máximo, a terceira melhor que conheço. — Gui massageia o próprio queixo, organizando mentalmente seu ranking.
— Boa sorte com seu grupo. — A garota volta a se sentar no banco, o dedo do meio em riste.
— Ei, estou brincando! — Guilherme se estica um pouco, tentando encostar na garota. — Não tenho culpa de ter sobrado os medianos…
— Na verdade, tem sim — pontua, deixando o rapaz sem jeito.
— Você tem um jeito muito estranho de pedir ajuda — Felipe pondera, olhando com certa fascinação para Guilherme.
— Certo, certo. Eu peço desculpas por ter sido um imbecil e por ter nos colocado nessa situação — Ele resmunga, mas de alguma forma, suas desculpas parecem genuínas.
Parece mesmo difícil para Guilherme reconhecer seus erros, por mais que ele esteja se empenhando em assumir uma personalidade mais verdadeira e leal, ele ainda tem um longo caminho pela frente.
— São coisas demais para se desculpar… — Amália continua irritada.
— Me desculpe por dizer que você é a terceira melhor B-girl. Se serve de consolo, as duas primeiras são gringas — Guilherme olha para nós, esperando pela nossa reação para decidir se vai ou não seguir em frente. Ficamos olhando de Amália para ele, até que ela sorri.
— Mentiroso desgraçado! — Ela reclama brincalhona, nos fazendo rir. — Sorte sua que estou louca para voltar a competir, senão eu estava fora.
— Obrigado por isso.
— Espera… É isso? Nós somos um grupo agora? — Jorge fica de joelhos no banco, atraindo um olhar nada amigável do motorista do ônibus.
— Eu sei que meu estilo engana, mas eu não danço nada… — Felipe é modesto, mas seu semblante preocupado é hilário.
— Sem ofensas, irmão, mas não estava contando nem com você e nem com a Tati — Jorge morde o interior da boca, receoso.
— Ai, graças a Deus. Já estava pensando em uma forma de quebrar uma perna para escapar — Tati massageia as próprias têmporas, ainda concentrada em sua própria sobriedade.
Vejo meus amigos se animando e fazendo planos, não consigo não ficar apreensiva. Olho insistentemente para , até obter sua atenção. Ele fica me encarando como se lesse minha mente, como se soubesse exatamente o que estou pensando.
— Você ainda dá saltos, ? — Jorge pergunta, certa malícia escorre dos cantos de seus lábios quando ele sorri.
— Faz um bom tempo… — Ele coça a nuca, voltando a me olhar como se tivesse um segredo urgente para me contar.
— Você tem que voltar a praticar. Se quisermos vencer aqueles idiotas, temos que voltar com tudo — Jorge parece preocupado, mas pelo que conheço do rapaz, esse é seu estado de paz.
Estar preocupado com algo o faz sentir vivo, enquanto eu começo a sentir uma ansiedade sólida se formar bem no centro de meu estômago.
— Eu não tenho que fazer nada — ri nervoso, vendo as expressões confusas voltadas para si. — O Guilherme apronta e somos todos obrigados a limpar a bagunça? E tudo porque ele queria se provar? — olha para Guilherme, que o encara com o maxilar travado. — Você não quer ser o líder deles? Pode começar sendo honesto e contando porquê fez essa palhaçada hoje — diz irritado, incentivando Guilherme a se abrir conosco.
As atenções se voltam pra ele e Guilherme solta um suspiro profundo.
— Eu me senti confiante por estar com uma banca — Nunca foi tão difícil ser honesto, cada palavra que sai da boca de Guilherme parece cortar sua língua. — Fiquei feliz por retomar a amizade com vocês e senti que poderia tirar uma onda com o Henrique quando o vi na mesa de jurados sozinho. — Ele esconde o rosto entre as mãos.
— Isso… Foi… Fofo — Amália decide, olhando em volta e tentando nos convencer de sua linha de raciocínio.
— Fofo? Foi só uma amostra de como o Gui continua sendo o idiota competitivo de sempre. Querendo tirar vantagem até do fato de ter amigos… — Rolo os olhos, impaciente.
— Como isso não é fofo? Ele se sentiu energizado pela nossa amizade, se sentiu corajoso por nossa causa — Amália apoia a palma sobre o próprio colo, tocada com seus sentimentos.
— Obrigado por entender — Gui estica o braço e eles compartilham de um toque rápido de mãos.
— Tenho que concordar com a . Eu consigo pensar rapidamente em umas cem formas melhores de você mostrar apreciação por nós. — Jorge está pensativo. — Mas te perdoo, nós vamos voltar a competir!
— Que fofo, amor. Por você, eu aprendo qualquer coreografia — Bia sorri apaixonada, me fazendo rolar os olhos de novo.
— Obrigado, princesa — O apelido derrete Bia, mas me deixa ligeiramente enojada por lembrar de todas as vezes em que ele me chamou assim. — Qual é,
— O quê? — Pergunto irritada. Ele pisca os olhos, chega até a fazer um biquinho implorando silenciosamente.
— Preciso de você — volta a atenção para ele, me fazendo rir de sua expressão curiosa para o restante da frase. — Nós precisamos de mais pessoas para o grupo, se eles virem que você me perdoou, eles vão seguir o exemplo. Fora que… Eu não tenho a menor intenção de ser o líder deles, esperava que você fizesse isso, . Até porque você é infinitamente melhor que eu em todos os aspectos necessários. — Gui olha esperançoso para meu namorado e ele volta a olhar para mim.
— Finalmente, terra firme! — Tati se levanta e puxa a cordinha, indicando nosso ponto para o motorista já irritado com nosso barulho incessante.
Nos levantamos e descemos do ônibus.
Com as pernas esticadas e o sangue fluindo melhor, vou até e o abraço pela cintura, deitando a cabeça em seu peito.
Seu coração bate acelerado.
— Não quero fazer isso — diz baixinho, os braços em volta de meus ombros e o corpo meio curvado para frente, me envolvendo quase que completamente.
— Nem eu — Confesso aliviada por finalmente saber que estamos na mesma página sobre o assunto.
— E agora? — Levanto os olhos, encarando os dele tão esperançosos por uma saída vinda de mim.
— Bem, ele precisa de ajuda — Pondero, sentindo suas mãos acariciarem meus braços, pousando em minha cintura.
— Eu odeio competir! — reclama, eu rio.
— Eu odeio competir também! Eu dançaria todos os dias se fosse por diversão, mas quando tem o peso de uma competição envolvido...
— Eles nos olham como se pudessem arrancar nossos olhos com as próprias mãos… — comenta com uma expressão engraçada.
— E agora? — Pergunto e ele ri, balançando a cabeça de um lado para o outro.
— Eu perguntei primeiro — Ele devolve, me vendo ter mil reações negativas em uma fração de segundo.
— E se fosse só desta vez? Nós reunimos o grupo e dançamos uma última vez e é isso. Independente do resultado, estamos fora depois — parece pensar em minha sugestão. Me tomando de assalto quando me beija do nada.
— Vou te poupar dessa — Ele beija minha testa. — Me desculpe por isso — Ele avisa, antes de me soltar e ir até o grupo ainda aglomerado no ponto de ônibus. — A não vai dançar porque ela vai fazer o nosso beat — As reações de surpresa (incluindo a minha) são barulhentas e logo dá um jeito de nos calar. — Eu não lido bem com liderança, até porque não sou competitivo como vocês. Então, eu topo, desde que o Jorge tome seus remédios em dia e seja nosso líder. — Ele ri de leve, vendo que o amigo aceita a tarefa de bom grado.
— Então… Temos uma B-girl, três B-boys, uma produtora e uma fotógrafa. Precisamos de mais dançarinos — Guilherme passa o braço sobre os ombros de Bia e suspira.
— Dois B-boys e meio… — Jorge corrige, olhando Guilherme da cabeça aos pés. — Acabou a moleza, rapaz. Você vai se tornar um B-boy completo nem que seja a última coisa que eu faça — Jorge ameaça, bastante intimidador.
— Um B-boy e meio… — Felipe ri disfarçadamente.
— ‘Tá rindo do que, playboy? Eu mudei de ideia, talvez possamos usar esse seu molejo para alguma coisa, afinal — diz o rapaz, andando em volta de Felipe e o intimidando.
— Precisamos de mais volume — Amália completa, passando os mesmos olhos minuciosos sobre Bia.
— E aí, qual vai ser? — Jorge assume uma postura responsável e imponente, um general.
— Acho que consigo tempo para ensaiar… É só eu não dormir, tipo… Nunca — Felipe duvida de cada palavra que diz.
— Ótimo! Vamos começar a recrutar pela manhã — Jorge se anima de novo, nos fazendo rir com a alteração clara na voz. Ele vestiu a camisa do líder e já está exercendo os deveres.
— Então, podemos festejar esta noite? São só… onze e meia? — Amália faz uma expressão enojada.
— Podemos ir para a minha casa — diz , um pouco indeciso sobre a própria sugestão.
— Acho que ainda dá tempo de comprarmos algo para comer — Felipe ainda está rindo de Tati, mas reconhece seu lugar de cuidar dela até que ela fique completamente sóbria para que ele possa levá-la para casa sem provocar a ira dos pais da garota.
— E beber. Estamos comemorando! — Jorge corre e bate os calcanhares de tanta alegria.
— Obrigado, pessoal — Guilherme está quase emocionado. Bia entrelaça seus dedos nos dele e ele sorri pra ela, sem jeito. — Vocês são incríveis...
— É, tanto faz… — rola os olhos, mas sorri de lado. Gosto de vê-lo ser amigável com Guilherme, mostra mais de seu coração grande e acolhedor.
— Só um segundo — Tati levanta o dedo indicador, ajeita os cabelos para trás e apoia as mãos nos joelhos, vomitando há poucos passos de nós. Ao terminar, ela seca os cantos dos olhos, respira fundo e levanta os braços pra cima, comemorando e sendo ovacionada por nossos amigos.
As coisas que apoiamos em nome da amizade…

Simone e Ricardo foram passar um fim de semana na casa de praia. Às vésperas do casamento, eles decidiram comemorar suas respectivas despedidas de solteiro com quem eles pretendem passar o resto da vida.” Minha vida inteira foi uma despedida de solteiro, agora eu só quero sossegar”, Ricardo deixou bem claro. E faz sentido. Quando se encontra um amor puro e cheio de leveza e alegria como o deles, ficar separado, nem que seja por uma noite, parece loucura.
O grupo logo se divide em equipes e enquanto alguns vão buscar comida e bebida para todos, o resto de nós ficou para rearranjar a sala da casa de em um lugar menos familiar e mais apropriado para uma festa.
Todos, menos Tati, têm alguma tarefa e então, os móveis da sala foram afastados, o tapete enrolado e encostado no canto da sala. Toda e cada almofada colorida é guardada com cuidado no quarto do casal e com a música ligada em volume ambiente, pode-se dizer que estamos mesmo comemorando alguma coisa ali.
— Acha que eles vão demorar muito? — Bia pergunta da janela, Tati a responde com um murmúrio dolorido e eu sou a única outra pessoa na sala que não está com dor de cabeça e ressaca precoce.
— Não muito, eles foram de carro — digo como se fosse óbvio e ela suspira cansada.
vem da cozinha, com alguns copos de plástico e guardanapos, ele ouviu a meia conversa e olha de mim para Bia como se quisesse dizer algo.
— Vocês não são obrigadas a gostarem uma da outra, sabe disso, não é? — Ele pergunta baixinho, disfarçando a ideia com um carinho em minha cintura e um sorriso que me deixa com dificuldades para pensar.
— Estou me esforçando aqui — Reclamo chateada e ele ri baixo.
— Não deveria ser difícil assim — Ele ri de minha expressão inquieta. — Vocês só precisam encontrar um jeito de conviver.
— Tipo o que você está fazendo com o Gui? — Insisto e ele faz uma careta adorável.
— É… — Resmunga desgostoso. — Acontece que eu odeio o cara. Toda vez que eu olho pra ele, lembro de como ele pode ser um babaca em níveis inimagináveis. Por mais que eu queira que ele entre em um portal para o deserto e nunca mais volte, eu tenho que conviver com ele e toda a sua burrice incompetente — Ele rola os olhos, me fazendo rir e parece satisfeito.
— Eu não a odeio. Só não a conheço o suficiente — Esclareço com certa atitude, o que o faz me olhar desconfiado.
— Eu escolho acreditar que você acredita nisso — diz devagar, me provocando.
— Cala a boca — digo me desvencilhando dele, ele ri mais forte e se afasta para aumentar o som, arrancando um quase protesto de Tati, que começa a reaver a cor natural na pele do rosto.
A música está alta, os corações batendo no ritmo grave da música. O centro da sala não fica vazio por muito tempo, é Amália quem começa a mostrar seus passos.
Quando menos se espera, ela mostra porquê se considera a melhor da cidade. Amália é talentosa e seu passado com a ginástica olímpica a faz destemida. Ela inicia seu Power Move, girando continuamente com a ajuda do cotovelo apoiado no chão. Quando completa sua quarta volta, Amália é ovacionada por continuar a girar com o apoio das costas.
Seu controle corporal, força, agilidade e musicalidade transbordam pelo espaço. É quase sufocante o quanto ela é boa. Seus movimentos arrancam o ar de nossos pulmões.
Ninguém nunca sabe o que ela fará a seguir.
Ao terminar, ela manda um beijo no ar para Guilherme, como se o desafiasse a ser o próximo. E ele aceita o desafio, entrando na roda que se formou naturalmente em volta de Amália anteriormente. Gui tira sua jaqueta na batida da música, a entregando para Bia e começando com tudo o que sabe sobre Pop e Lock, mudando completamente o estilo da pequena “competição” que se inicia.
Dá pra ver que ele vem ensaiando, sua ansiedade é nítida e ele chega a perder o tempo da música hora ou outra, mas estamos nos divertindo e nada disso importa agora.
Jorge acompanha os movimentos de Guilherme e logo, todos estão dançando juntos.
Aceito ser girada no lugar mais uma vez por e deixo a pista de dança improvisada ainda rindo com a tontura gostosa que me acomete.
— Bem-vinda ao círculo da labirintite — Felipe me oferece um dos salgados que eles comem e eu agradeço, pegando uma coxinha e me sentando ao lado de Tati no sofá, que está quase na cozinha de tão afastado.
— Como está se sentindo? — Pergunto a ela, que sorri de boca cheia.
— Enjoada e maravilhosa. — Eu rio e concordo.
— Você faz parecer divertido. — Ajeito seus cabelos enquanto ela assente. — Me avisa se precisar de alguma coisa.
— Eu tenho tudo de que preciso — Ela levanta a caixa quadrada cheia pela metade com salgados diversos e estica a perna para envolver Felipe no montante.
Observo se aproximar e ele joga o corpo ao lado do meu, ajeitando meu corpo sobre o dele e me fazendo sentar em suas coxas.
— Péssima ideia ter chamado todo mundo pra vir pra cá — Ele cochicha em meu ouvido e eu tento ignorar o arrepio que sinto subir por meus braços com a proximidade e a facilidade com a qual ele me colocou sobre si.
Ainda não me acostumei com o fato de não pesar quase nada pra ele. Na verdade, ainda não concebi direito o fato de ser forte pra caramba.
— Eu te ajudo com a bagunça — digo meio preocupada com a verdadeira zona que a sua sala ficou e ele balança a cabeça de um lado para o outro.
— Não é sobre isso… Talvez um pouco. Mas é que agora, eu só queria ficar sozinho com você — Ergo uma das sobrancelhas, entendendo bem do que se trata.
— Se trancarmos a porta do seu quarto, estaremos sozinhos. — Sugiro no mesmo tom de voz que ele. Sinto seu rosto se contorcer em um sorriso bem perto do meu. Ao me afastar, os olhos de me encaram como se houvesse fogo neles e eu me levanto sem pensar duas vezes, entrelaço nossos dedos e o guio para seu próprio quarto.
Ignoramos os gritinhos maldosos e bate a porta atrás dele. Seu lábio inferior está preso entre seus dentes e ele me olha como se eu já estivesse completamente nua. Solto sua mão só para trancar a porta e me certificar de estaremos mesmo sozinhos e sem surpresas enquanto estivermos por aqui. O puxo pelo colarinho da jaqueta, andando de costas até sua cama.
— Eu já disse que adoro as suas ideias? — Ele beija meu pescoço, subindo minha camiseta lentamente.
— Acho que hoje não… — Me perco em seu olhar por um segundo e então ele sorri, fazendo com que minhas pernas amoleçam e eu agradeço por não ter de usá-las para me sustentar de pé agora.
— Eu adoro suas ideias… — Ele beija minha bochecha. — Seu cheiro… — Meu maxilar. — Sua pele… — Morde o lóbulo de minha orelha, me deixando desorientada.
Eu gemo sem perceber, só por antecipação. Quero mais de sua pele, então começo a tirar sua jaqueta, enquanto chuto meus tênis para longe. faz o mesmo, nos separando minimamente só para se livrar das mangas da jaqueta pesada.
Seu abdômen parece ter um ímã para minhas mãos. A menor parte desnuda chama minha atenção e eu estico o braço, encostando a mão fria em sua pele quente. puxa o ar por entre os dentes e observa o caminho de meus dedos com interesse. Eles sobem, mas, mudam de ideia, como se tivessem vida própria, descendo cada vez mais. Agarro o cós de sua calça larga e começo a me desfazer do botão, do zíper.
Eu o quero tanto.
… — Ele chama, seus olhos ainda se decidindo sobre ver o que vou fazer ou me encarar em confusão. Ele fecha os olhos, soltando o ar com força quando acaricio seu pau por cima da cueca. — Tem… Tem gente em casa… — diz arfando, sem muita resistência.
— Eu não vou fazer barulho — digo rápido, excitada demais para me importar com qualquer outra pessoa fora desse quarto.
— Duvido… — morde o lábio inferior, me fazendo gargalhar. Ele tira a própria a camiseta, a minha e logo está tirando minha calça também. E eu deixo. Adorando ser virada de um lado para o outro com tanta destreza.
Antes que ele se deite sobre mim, me viro de costas. Seu peso me faz arfar, mas são os beijos em meu pescoço que fazem o ar sumir de meus pulmões completamente. Suas leves mordidas me fazem arquear as costas e o tapa que ele desfere em uma de minhas nádegas me faz querer mais. enfia os dedos polegares nas alças finas de minha calcinha e está prestes a puxá-la quando ouvimos batidas na porta.
As primeiras cinco vezes foram fáceis de ignorar, as outras dez fazem bufar irritado. Ele se levanta, suspira frustrado, pega a camiseta no chão e a veste, esperando que eu me cubra com o lençol.
— Cara… — Jorge faz uma pausa, provavelmente vendo a expressão desgostosa de . Ele até tenta dar uma olhada para dentro do cômodo, mas fica propositalmente na frente da brecha. — Nós temos visitas.
— ‘Tá, irmão. Chama quem você quiser, só não bate nessa porta de novo ou não respondo por mim — está prestes a fechar a porta novamente, mas Jorge quase entra no quarto para impedir.
— Não, mano! — Ele parece preocupado. — É o Henrique.
— O quê?! — Pergunto confusa, já de pé e vestida pela metade.
— Vistam suas roupas, nós vamos sair e ver o que ele quer… Estejam preparados. — Jorge some de nosso campo de visão após o aviso.
— Preparados para o quê? — Volto a perguntar, ainda mais confusa. dá de ombros.
— Eu vou matar o Guilherme! — Ele bate a porta de novo, irritado.
Nos vestimos rapidamente e ao sair do quarto, tenta me impedir de acompanhá-lo.
— Pode ser perigoso, linda — diz preocupado, a voz macia quase me convence.
— Mais um motivo para não te deixar ir sozinho — Ele ri de meu argumento. — Você tem quase dois metros de altura, alguém precisa proteger a metade de baixo do seu corpo — Fico firme e ele rola os olhos.
— Só… Fica atrás de mim e se der briga, corre pra casa. Promete? — Ele pede sério e eu meneio com a cabeça. — !
— ‘Tá… — digo de má vontade.
— Estou falando sério — Ele toca a ponta de meu nariz e eu o franzo, o seguindo para fora da casa.
No meio da rua parcialmente escura, dois grupos se enfrentam. A conversa é tão intimidadora e sombria que acontece em tom baixo de voz. Henrique trouxe a própria banca, para fortificar a razão de estar aqui: mostrar, mais uma vez, que Guilherme está errado.
Alguns rostos conhecidos estão do lado oposto ao nosso, as expressões perdidas e curiosas não parecem raivosas como as outras que são desconhecidas e isso me dá um lampejo de esperança.
— Você preparou mais algum versinho? Aquele lá estava fraco demais — Henrique, o líder do Monsters sorri convencido, confortável. Eles estão em maior número e se aproximando cada vez mais de fechar um círculo em volta de meus amigos.
— Merda! — xinga, apertando o passo.
— Qual foi, Henrique? Entrei tanto assim na sua mente pra você sair de lá da Matriz pra vir encher o saco? — Guilherme sabe que está em desvantagem, mas nunca dará o braço a torcer.
— Sentiu saudade? — Jorge adiciona, fazendo as narinas de Henrique se inflarem de raiva.
— Achei importante vir esclarecer algumas coisas… — Henrique olha em volta, seus companheiros de longa data encaram Guilherme como se pudessem matá-lo ali mesmo. — Podemos estar nos reestruturando, mas ainda somos o Monsters. Nós ainda derrotamos vocês na Regional do ano passado e derrotaremos vocês em qualquer outra ocasião, hora ou lugar. É só marcar. — Os rapazes se encaram com seriedade, o clima está tenso e tudo parece perigoso.
— Não temos medo de vocês, nunca tivemos. Se ganhar do nosso grupo desfalcado e abalado é vitória pra você, só mostra o quão baixo e covarde você é — Guilherme devolve e os ânimos esquentam um pouco mais.
Eles começam a se empurrar e tudo aquilo parece uma grande e leviana perda de tempo.
— Isso é ridículo! — Digo vendo a cena toda: homens feitos se ofendendo gratuitamente, incendiando picuinhas antigas e brigando para provar quem tem mais amigos.
Entendo que há rivalidade entre os grupos e concordo que seja até benéfico para ambas as partes que haja concorrência, mas tanta raiva e ódio não combinam com nada que a cultura verdadeira representa. É sobre comunidade, é sobre estarmos juntos no mesmo barco e seguirmos juntos para além da linha onde nos colocam por sermos quem somos e vir de onde viemos. — Cresçam! — Digo mais alto, chamando a atenção de alguns deles.
— Você tem alguma coisa pra dizer? — Henrique sequer olha para mim, deve ser difícil reconhecer qualquer outra coisa além de seu alvo de ódio.
— Já estou dizendo! — O encaro com certo escárnio, desviando da parede protetora que ergue diante de mim. — Pelo amor de Deus, vocês são homens crescidos agindo como se estivessem em um parquinho. Percebem como é patético ficar aqui e assistir vocês se encarando como se fossem se matar, quando a solução pra saber quem é melhor virá de uma competição de dança? — Parece tão óbvio e eu nem consigo disfarçar. segura um riso, escondendo o rosto com uma das mãos. Os outros tentam disfarçar o constrangimento com minha pergunta.
— E quem é você? — Henrique pergunta irritado, me olhando nos olhos sem a recorrente arrogância pela primeira vez.
— É a irmã do Pedro… — Alguém sussurra e ele arregala os olhos, as sobrancelhas se suavizam e ele quase sorri.
— Claro… — Ele solta uma risada rouca.
— O que isso quer dizer? — Cruzo os braços na frente do peito, não gostando nada do jeito como ele me olha.
— Seu irmão sempre foi o mais cabeça de nós. Imaginei que você fosse mesmo seguir os passos dele. — Henrique suspira, afrouxando um pouco a pressão em volta de meus amigos.
— E aí? Vai rolar ou não? — Um de seus companheiros parece agitado, querendo briga.
— Cala a boca, Vitor — Ordena em um rosnado e é obedecido imediatamente. — E então, Gui, onde e quando? — Volta a encará-lo, dessa vez com mais espírito esportivo.
— Preciso de um tempo. Como você pode ver, não tenho um grupo ainda — Guilherme expõe suas condições e Henrique parece ponderar o que é justo.
— Nos vemos em um mês, no ginásio da escola. — Henrique escolhe voltar as origens, revisitar o lugar onde tudo começou: o pátio da escola.
— Fechado — Eles apertam as mãos e se encaram uma última vez antes de as visitas inesperadas dispersarem rua acima.
— Achei que ia precisar dar um soco em alguém... — Tati lamenta, sendo amparada por um Felipe sonolento.
— Com esses punhos delicados? — Ele devolve, muito mais que aliviado por termos escapado de uma boa surra.
— Mandou bem, . — Jorge se aproxima, tocando o punho fechado no meu.
— Vocês são ridículos… — Reclamo de saco cheio e ele ri.
— Desculpe por isso. — Guilherme volta a se desculpar, com a maior cara de arrependido.
— Acho que você deveria começar a pensar em se desculpar por lote. Tipo, a cada cinco idiotices que você fizer, uma desculpa — Amália sugere enquanto todos voltamos para a casa de .
— É, cara… A palavra já está se desgastando — comenta, sendo empurrado pelo amigo e esbarrando em mim.
— Ei! — Reclamo, mas acabo rindo também.
Todos eles entram, mas eu fico no quintal. Encaro o céu e tento decifrar o que Henrique disse sobre Pedro. Sobre mim.
Foco minha atenção em uma estrela solitária e muito brilhante no céu limpo da noite. Respiro fundo e percebo que não há muito mistério, Pedro era alguém admirado até mesmo por seus oponentes e ser comparada a ele nesse sentido é novo e gratificante pra mim.
Sou chamada com um assovio e me viro sorridente para , que me espera no batente da porta.
— O que foi? — Ele faz a pergunta um pouco mais alto que a música que volta a tocar.
— Você já se sentiu próximo de quem você quer ser? — ergue uma das sobrancelhas, pensando em uma resposta.
— Bem, eu tento ser o melhor que posso ser todos os dias. É disso que está falando? — Balanço a cabeça de um lado para o outro, ele envolve meus braços e me protege do frio.
— Quando você faz a coisa certa sem nem pensar muito sobre isso. Acho que fiz isso hoje. Talvez esteja fazendo até há mais tempo que isso… Eu só… Me sinto bem. De verdade — sorri abertamente, mas busca em meus olhos pelo “porém”. — Por que sinto que isso não é exatamente bom? — Ele investiga minha alma, arrancando um riso nervoso do fundo de meu peito. — Esquece… Só estou sendo desconfiada — Confesso e o vejo murchar os ombros. — Esquece, . Estou bem. É só…
— Tudo bem. Você tem motivos para duvidar de quando as coisas estão indo bem — Ele ri ainda um pouco preocupado. — Tem alguma coisa que eu possa fazer para te lembrar de que nada vai te fazer mal?
— Tem uma ou duas coisas que você pode fazer… — Fico na ponta dos pés para alcançá-lo com um beijo. Ele sorri contra meus lábios.
— Estou à disposição — Ele garante, me levantando do chão com um abraço. Ele ri mais forte com meu grito surpreso.

Na manhã seguinte, levantamos junto com o sol e todos se dispersam para suas casas em busca de um bom banho e uma xícara de café forte para podermos acordar de verdade. O único animado desde os primeiros raios de sol é Jorge e ele também é o primeiro a sair em busca de um local para os ensaios e claro, mais dançarinos.
Ele nos deixa com a tarefa de contatar todo e cada antigo membro do Funkz para uma reunião de última hora. Quanto mais gente pudermos trazer, melhor.
Quando todos vão embora, invado o chuveiro com lá dentro e temos nosso próprio ritual matinal. Cheio de mãos bobas e enrolação embaixo d’água.
— Então… O que vai ser? — Pergunto do nada, brincando com a toalha enrolada em meu corpo.
— Eu achei que já estivéssemos atrasados. Mas se você quiser, podemos ir de novo… — havia acabado de vestir a camiseta, mas já está disposto a tirá-la imediatamente.
— Não isso… No casamento da sua mãe, teremos banda ou DJ? — Não consigo não rir de sua expressão ligeiramente decepcionada.
— Os dois, mas eles não sabem disso ainda — adota um sorriso maldoso, mas só parece adoravelmente animado para o casório de Simone e Ricardo. — Eles reservaram duas horas de show, isso não é nem perto do tempo decente para uma festa de casamento. Então, depois que a banda sair, teremos mais algumas horas de boa música remixada e loucura na pista de dança. — Ele já se imagina no dia, dançando antecipadamente. Não tem como não ficar animada também.
— É um bom presente. Você é um padrinho incrível — Me aproximo dele, quase vestida por completo.
— Eu não tinha pensado dessa forma. Achei que por ser o filho da noiva, não tinha que dar presentes. — ri sem jeito, pensativo.
— É claro que tem que dar presente, você é o padrinho mais importante do casamento — Ajeito a costura de sua camiseta e ele sorri enquanto estou distraída.
— Você vai entrar comigo, não é? Não consigo me vestir com aquela roupa e andar sozinho por aí, vai que eu acabo parando nas Ilhas Malvinas? — se desespera um pouco e eu rio do pânico estampado em seu rosto.
— Você deve ficar simplesmente irresistível com um bom terno — digo para acalmá-lo primeiramente, depois, penso no vestido maravilhoso que tia Vanessa me deu com o propósito de ir ao casamento. Não tenho a menor dúvida sobre exibi-lo desta forma, ele merece. O vestido também. — E sim, desde que a sua mãe concorde, eu entro com você. — Ele suspira aliviado e é louco me sentir necessária assim.
— Eu deveria ter avisado antes, mas ela meio que já está contando com sua presença no ensaio e tal… — Ele coça a nuca e eu o cerro os olhos.
— Você só está perdoado porque eu já tenho o vestido — Ele imita minha expressão, me fazendo rir em seus braços.
— Por acaso é aquela coisa coberta por um saco suspeito na sua arara de roupas? — Ele mantém um ar misterioso, eu ergo uma sobrancelha, assentindo. — Estou curioso.
— De jeito nenhum! Ele é tão lindo que pode te cegar sem a luz certa — Meu comentário parece incendiar a mente de com ideias e eu adoro todo o suspense.
— Eu aceito o risco! — Ele insiste e eu balanço a cabeça de um lado para o outro, decidida a surpreendê-lo no dia.
— Vai valer a pena, prometo — Selo nossos lábios e me afasto dele para continuar a me vestir. Estamos mesmo atrasados e não quero despertar a fúria de Jorge, pretendo frequentar os ensaios, mesmo que não seja exatamente necessária neles. E ele já ameaçou me banir, caso atrapalhasse com meu “namorico”.
— Odeio surpresas… — Ele resmunga.
— Ei, essa frase é minha — Ele ri.
— Acho que a convivência com uma maluca por controle como você me fez ficar assim. — Vejo uma blusinha que esqueci em seu quarto há alguns dias e a jogo em sua direção como punição pelo insulto.
— Que estranho, porque a convivência com um hippie como você me fez ficar mais… Relaxada e presente no momento. — Termino minha frase sentindo que nem querendo muito consigo dizer algo ruim sobre . Ele é uma boa influência pra mim. Sempre foi.
— Acho que ficar meio neurótico com as coisas me ajudou a tirar alguns projetos do papel. Não é tão ruim assim, afinal de contas — Ele gira a blusinha pelas alças com os dedos, brincando com ela.
— Como se você não fizesse um milhão de coisas antes — Termino de calçar os tênis e decido finalizar os cachos rapidamente, o atraso está começando a ficar preocupante.
— Sim, mas nada que fosse me render algum tipo de fruto no futuro. Agora eu sou sócio do Beto, daqui há alguns anos vou me formar em algo que pode ajudar pessoas. Eu sinto que tenho um foco diferente para as coisas. E não tenho dúvidas de que me inspirei em você. Não tem nada que você não consiga fazer e isso é bem incrível. Quero ser assim também. — Sinto o rosto quente de dentro para fora, todo o meu corpo se esquenta assim, na verdade. Corro até ele e o abraço sem as mãos, pois estão melecadas de creme.
Não consigo dizer como é bom me sentir amada desse jeito. Com tanta admiração, carinho, cuidado.
— Bem, eu tenho que continuar. Esta vida foi um presente muito grande, não posso desperdiçar. — concorda com vigor, ele sabe bem do que estou falando.
— Eu te amo, . Obrigado por estar aqui. — me abraça mais forte, beija minha bochecha e sorri mesmo com os olhos marejados.
— Obrigada por estar aqui. — Repito mais baixo e ele sorri mais, assentindo de novo.
— Hmm. O Jorge já mandou umas cinco mensagens. Não vou nem abrir, mas temos que correr. — guarda o celular no bolso, junto com suas chaves e pega a mochila que organizou enquanto eu terminava o banho.
— Já acabei! — Amasso um pouco mais os cachos, detestando o resultado, mas confiando que uma hora ele irá secar e mostrar sua beleza. — Para onde estamos indo?
— Você vai gostar! — Solto o ar dos pulmões e o sigo para fora da casa. Subo na bike e logo estamos pedalando pelo bairro.
Mesmo com o clima frio, o dia está claro. Ainda é cedo, mas já se pode ver algumas pipas no céu, vários pontos coloridos tão altos que nem parecem estar atrelados a alguém aqui no chão. Vez ou outra é possível ouvir ao longe o grito infantil da palavra “relo”, que significa que o objetivo da batalha aérea foi concluído. As linhas envenenadas cumpriram seu dever e ao olhar pra cima, o cair gracioso de uma das pipas é aguardado com esperança, entusiasmo.
Os passos apressados são ouvidos em ecos da rua de cima, a gritaria e risadas se misturam com a busca por ar e toda a comoção para ver quem será premiado com uma pipa novinha em folha começa em frente a uma casa de muro alto, onde a criançada não perde tempo e começa a bater palmas, chamar por nomes aleatórios e apertar o botão gasto da campainha insistentemente.
Observo tudo com um sorriso calmo no rosto, até ver um pequeno grupo de adolescentes e até adultos entrarem na briga pela pipa.
— Aquele mano não teve um filho ano passado? — pergunta distraído com a movimentação próxima a nós.
— Acho que sim… — Rio da expressão raivosa do rapaz na calçada. Ele faz mesmo questão de reaver sua pipa e não aceita o fato de ter sido cortado por uma criança. É hilário.
faz uma curva e olho para cima, notando que conheço o caminho. Ele olha de relance pra mim e morde o lábio inferior enquanto paramos em frente ao antigo local de ensaio do Funkz.
— Ainda quer fazer isso?
— As memórias boas que tenho aqui são infinitamente maiores do que as ruins. Então, sim. — beija minha testa e me espera descer da bicicleta antes de fazer o mesmo e a encostar ao lado da pequena porta do pequeno galpão de tintura lascada e janelas embaçadas.
Dou batidas na porta, mas ao abri-la em uma brecha, vejo o local cheio e a conversa volumosa impediria qualquer um de ouvir as tímidas batidas. Entramos juntos e todos nos encaram por alguns segundos.
— Eles sabiam que nós viríamos, certo? — pergunta entredentes.
— Odeio quando nos olham assim... — Respondo no mesmo tom e logo entro em conflito sobre continuar na sala ou dar as costas e continuar andando até estar longe de todos ali.
Fica quase impossível respirar, mas logo Jorge faz seu caminho até nós, seguido por Leah e é por vê-la ali que me sinto mais calma.
— Nossa produtora, pessoal! — Jorge aponta em minha direção e as faces confusas e desgostosas logo se tornam surpresas.
O abraço curto que troco com Leah desencadeia outros cumprimentos e mesmo introvertida, faço questão de olhar cada um nos olhos. É um momento de bastante tensão. É como se eles estivessem vendo um fantasma e pra mim, bem, pra mim é algo mais assustador que lidar com fantasmas, pois são pessoas reais e estas sim podem me machucar de verdade.
Não só podem, como já fizeram.
— Sinto muito por tudo, . — Uma das B-girls diz enquanto me abraça rapidamente, eu assinto e sorrio por educação, mas estou ficando tonta com tanta gente me tocando.

— Só quero começar agradecendo a todos por virem tão rápido. Não consigo expressar a emoção que sinto por ver esse lugar lotado como costumava ser — Jorge fica tímido, um riso muito emocionado o faz parar um pouco para respirar. — Eu entrei no Funkz depois de ele ter sido fundado, como alguns aqui já sabem. Éramos quatro caras e a Leah, competir nem passava pelas nossas cabeças, mas o compromisso já existia. Todos os dias após a aula, nos juntávamos atrás da quadra e marcávamos a coreografia sem música, porque ninguém podia saber que estávamos ali — Ele relembra, Leah seca os cantos dos olhos e se esforça para não chorar. Vou até ela e a mulher segura minha mão com força. Eu deixo. Eu tenho a força de que ela precisa agora. — A ideia do grupo era promover bem-estar, desafio, amizade, união. Ninguém sabia muito bem o que estava fazendo, mas tínhamos essa força nos obrigando a dividir tudo o que tínhamos para enriquecer o grupo. A técnica veio depois, junto com muito estudo e esforço. O grupo foi crescendo, as competições apareceram e a coisa ficou séria. Então, por um segundo inteiro nós fomos os reis e rainhas da dança de rua regional. Um segundo. No segundo seguinte, tudo mudou. Para alguns de nós mais do que para outros — Jorge lança um olhar piedoso para mim e Leah. Suspirando com pesar. — E toda aquela amizade e união se dissolveram, o desafio se desfez assim que vocês decidiram tomar o caminho mais fácil e entrar para o grupo que já estava ganhando. Ninguém nem pensou no bem-estar daqueles que além de também estarem sofrendo, estavam feridos e precisando de nós, sua família. Nós perdemos, galera. Não só o regional do ano passado, mas perdemos parte da nossa família e nenhum de nós parou um segundo para processar isso. — Ninguém diz uma palavra na sala cheia. Há pelos menos vinte pessoas no cômodo pequeno e o silêncio é ensurdecedor. É como se tivéssemos tomado este segundo para processar e não demora até um choro contido ser ouvido aqui ou ali.
Engulo em seco, tentando me manter forte por Leah. Por mim.
— Estamos aqui porque devemos algo ao grupo — Leah tem a voz trêmula, ela aperta ainda mais o encaixe em nossas mãos. — Nós devemos àqueles que não estão aqui uma última demonstração de apreço pelo que eles criaram. Esse grupo acolheu vocês, aceitou seus defeitos e diferenças. Te deu espaço para ser quem você quiser ser e te escolheu por você ser quem você é de verdade. Nós devemos a eles ao menos mais uma tentativa. — Ela está decidida. Mesmo com a barriga enorme, Leah vai competir e em seus olhos, além de uma tristeza profunda e intransponível, há um fogo determinado.
— Ontem a noite, nós recebemos a visita do Henrique, líder do Monsters. — Jorge entra no assunto principal. — Não importa o porquê, mas nós fomos desafiados. E não sei vocês, mas faz tempo demais que sonho com essa revanche. — Os murmurinhos começam e as pessoas parecem começar a se dispersarem do assunto. Um ou outro fazem corpo mole e é desanimador vê-los agir assim após tudo o que foi dito.
— Eu estava na Matriz ontem. Eu vi o que o Gui aprontou… — Um dos B-boys diz descontente. Os olhares acertam Guilherme em cheio e ele se mexe desconfortável.
— Eu quero me desculpar com todos vocês por ter desestruturado nosso grupo em um dia que mal restava forças para nos apresentarmos. — Ele começa, incerto. — Eu fui ganancioso, prepotente e acima de tudo, desleal com a família que me acolheu e não me deu nada além de grandes amigos, boas memórias e um lugar seguro, onde eu fiz todo tipo de besteira. Eu estou arrependido de verdade por ter deixado vocês na mão naquele dia e em todos os outros em que eu fui um babaca — Gui está visivelmente inquieto, mas seu pedido de desculpas está sendo ouvido, pelo menos. — Meninas, eu fui… É… — Guilherme olha em volta, buscando pelo apoio da namorada que morde o interior da boca apreensiva por ele.
— Um escroto? Desgraçado de merda, aproveitador? — Ariane sugere, do meio da pequena multidão. Me surpreende que ela tenha acertado em cheio, mas fiquei ainda mais chocada por saber que ela foi uma das vítimas do charme fajuto de Guilherme.
— É… Posso concordar com isso. — Ele ri sem jeito. — Eu fui mesmo um escroto e tenho tentado me redimir, vocês podem perguntar pra . — Ele faz com que a atenção seja voltada pra mim e eu sinto que devo dizer algumas palavras de apoio ao grupo.
— Nós todos cometemos erros uns com os outros. Nos distanciamos quando as coisas ficaram difíceis e demos as costas aos que precisavam de um coletivo seguro onde descansar e se curar na hora em que mais precisávamos ficar unidos. — Minha voz trava um pouco, é pessoal demais e dividir essa mágoa com eles é difícil. — Eu… Nós perdemos uma boa parte do que costumávamos ser e não nos resta outra escolha além de juntar o que sobrou e seguirmos em frente. O Funkz nunca será como antes e essa nem deve ser a ideia de nos juntarmos aqui. Nós temos de olhar para o futuro, porque é o que o Otavio e o Pedro iriam querer de nós. — Respiro fundo, encarando nos olhos cada um com uma coragem que meus amigos não tiveram de dizer seus nomes. — Nós somos uma família, pelo menos eu sempre vi o Funkz desta forma. Está na hora de agirmos como os irmãos e irmãs que foram forjados dentro de cada um de nós ensaio após ensaio, competição após competição. Algumas famílias não são ideais, eu entendo, mas no final das contas, essa é a melhor coisa que pôde acontecer conosco: termos um ao outro. Então, sim, o Gui é um idiota, mas é um de nossos irmãos. Se vocês não quiserem competir por ele, façam isso pelo coletivo. No final das contas, se alguém mexe com um de nós, mexe com todos. — Termino me sentindo energizada pela vibração intensa que recebo da maioria dos participantes do grupo.
— Quem somos? — Jorge puxa o coro e eu nem me lembro qual foi a última vez em que ouvi o grito de guerra do grupo com tanta vontade.
— Funkz!
— QUEM NÓS SOMOS?!
— FUNKZ!

O grupo retorna oficialmente com quase todos os integrantes mais antigos, o total de quatorze de nós. Mas em toda formação, sempre sobrarão dois lugares.
Naturalmente se forma um novo conselho e fico um pouco desorientada com o fato de eu estar nele.
— Nós temos que trazer novos sons, o grupo é cheio de pluralidade e nós devemos explorar mais isso — diz Leah, a mão na barriga e a expressão fechada de quem está grávida há tempo demais, segundo ela mesma.
— Certo, mas não pode ser um carnaval também. Ainda temos de manter a identidade musical do grupo. — Jorge intervém, pensativo.
— Eu tenho uns mashups no computador, posso enviar pra vocês ouvirem — Sugiro e logo me sinto vista, ouvida. Eles escutam o que eu digo e levam minhas observações em consideração.
Acho que não sou mais a irmãzinha mais nova de todo mundo. Ou talvez ainda seja, mas eles não me veem somente no diminutivo. Eu gosto bastante da sensação de pertencer ao grupo daqueles que tomam as decisões.
— Eu ouvi os que você postou no MySpace. Como assim você é uma produtora musical agora? — Leah pergunta com certo deboche, mas de seus olhos transbordam orgulho genuíno.
— Eu nem me formei ainda… — Respondo sem jeito, tentando me esconder atrás de um dos braços de , mas ele se recusa a me ofuscar neste momento.
— E já está arrebentando desse jeito — Ele completa, me abraçando pela cintura e me posicionando em sua frente. Respiro fundo, sentindo seu carinho em minhas costelas. Chego até a morder o lábio inferior para impedir o sorriso convencido de dar as caras.
— Enfim, vocês só precisam me dizer o que querem e eu faço acontecer — digo sem pensar e acabo soando um pouco presunçosa, mas, fazer o que? É a mais pura verdade.
— Ei, vocês podem se juntar um pouco mais? Se não se importarem, quero documentar os ensaios. Tudo bem? — Tati interrompe. As mãos estão um pouco trêmulas, a maioria daquelas pessoas a intimidam até os ossos. Mas ela está convicta, com a câmera em uma das mãos e ao receber o aval, ela sorri, respira fundo e, deixando a tremedeira de lado, captura o momento exato em que formamos um grupo chamado Funkz. De novo.
Sinto aquela sensação gostosa de perceber que esse momento vai se tornar uma memória importante e me sinto grata por Tati tê-la imortalizado com sua sensibilidade.
— É isso, valeu! — Diz indiferente, olhando fixamente para a lente de sua câmera, voltando a tremer.
— Ei — Me viro para , que ainda me mantém sob seus toques. — Amo você — Cochicho e ele solta um suspiro surpreso.
— O que é isso agora? — Suas bochechas coram e ele me abraça para tentar esconder que está se derretendo todo por mim.
— Eu lembrei que não disse de volta mais cedo e… Bem, eu amo, então, só queria dizer. — Dou de ombros e ele me beija rapidamente.
As pessoas ficam nos dizendo constantemente o quão somos lindos juntos e toda e cada demonstração de afeto entre nós é recebida com o entusiasmo dedicado à filhotinhos de animais. O que é um saco, mas bonitinho da parte de nossos amigos e familiares.
— Vocês me dão vontade de vomitar… — Amália cantarola quando passa por nós, em direção a saída. O ensaio terminou e todos que dormiram na casa de ontem à noite se parecem com zumbis.
— Nós ou as três garrafas de vinho barato que você detonou ontem à noite? — devolve ácido e eu rio respeitosamente de minha amiga que se parece com a personificação da ressaca.
— Uma mistura das duas coisas — diz colocando os óculos de sol e gemendo ao sair na luz do dia novamente.
Nos despedimos de alguns que ainda passam por nós, subimos na bike e me leva para casa.
— O que vai fazer hoje? — está sentado no banco da bicicleta, seus braços estão em volta de meus quadris e eu não consigo parar de beijá-lo.
— Trabalhar nas faixas pro grupo, ler um livro… Sentir saudades. — Volto a beijá-lo e ele ri contra meus lábios.
— Nós vamos nos ver mais tarde? — Assinto veementemente, o abraçando pelos ombros.
— Não vá! — Digo dramática, sentindo a vibração de seu peito em uma risada gostosa contra o meu.
— Preciso trabalhar, querida. — Ele entra no personagem, merecendo mais um carinho antes de ir.
— Até mais. — Cruzo os braços, mas sorrio enquanto ele dá uma volta inteira na minha frente. Aperta a buzina duas vezes e ergue a parte da frente do quadro da bicicleta. Rolo os olhos, mas acabo rindo.
Subo cada degrau como se flutuasse sobre as nuvens.
Pego as chaves no bolso da calça, seleciono a certa com calma e destranco a porta de casa devagar, quase com preguiça. Fico pensando em me deitar em minha cama para uma soneca criativa antes de começar a trabalhar.
?! — A voz esganiçada de tia Vanessa soa antes do som surdo de seu corpo caindo no chão. Me viro antes de ver demais e ouço as risadas ao sair rapidamente da casa.
— Nós precisamos de paredes! — Constato comigo mesma, tentando apagar a imagem que meu cérebro faz questão de completar de meu professor nu e de joelhos sobre a cama de minha tia.
Durante sua miserável queda, ela levou consigo o lençol que os cobria.
Espero uns bons cinco minutos até ouvir o chiado atrás da porta e me preparo para evitar contato visual prolongado.
— Bom dia, . — O professor Alexandre diz muito educado. Eu aceno com a cabeça, completamente muda. — Nos… Vemos… Por aí. — O homem chega a escorregar em um dos degraus com tanta pressa. Massageio os olhos antes de entrar em casa de novo.
— Você está vestida? — Pergunto incerta, minha tia ainda tem os resquícios de um riso nervoso muito pronunciado em seu rosto.
— Agora sim. — Rolo os olhos e entro sem encará-la diretamente.
— Nós precisamos de paredes — diz minha tia, coberta com o lençol em volta do corpo.
— É… — Me sento em minha cama e nos encaramos por alguns segundos.
— Ou… — Ela engole em seco, as mãos inquietas brincam com um fio solto no lençol e eu me aproximo mais dela com curiosidade. — O Alê me pediu para ir morar com ele. O que você acha disso? — Abro e fecho a boca várias vezes, cancelando toda e cada frase que me vem à cabeça. Não quero ser negativa, mas não consigo não me preocupar. — Eu pensei em tudo, nós estamos há vinte minutos de distância. Eu vou instalar uma linha telefônica aqui e nós podemos reforçar o portão. Você ficará segura. E claro, eu vou esperar até o seu aniversário. — Ela parece animada com a ideia, não quero mesmo ser negativa.
— Você está preocupada comigo? E você? — Ela sorri, provavelmente sabendo que eu viria com as perguntas difíceis.
— Eu sei que você acha cedo, nós também. Mas não somos mais adolescentes, . Quer dizer, eu não sou. — Ela ri de sua própria confusão.
— Eu não estou brava por ter visto vocês. É que são quase meio-dia, achei que vocês já estariam… De pé — Odeio como minha frase soa e ela ri mais ainda.
— Você pode ficar brava, eu também. É uma situação constrangedora. Que bom que estamos quites — Ela despeja tudo rapidamente.
— Você tem certeza? — A encaro séria, temendo que os sentimentos de minha tia estejam entrando no caminho da clareza.
— Tenho certeza, meu amor. O Alê é de verdade. Nós somos de verdade. — Ela estica o braço e tenta pegar minha mão com a dela.
— Tia?! — Me afasto um pouco enojada, mas adoro ouvir a risada escandalosa que ela dá.
— Me desculpe, eu esqueci que estava…
— Não! Não diga — Interrompo antes que seja tarde e ela desiste. — Eu vou odiar morar aqui sozinha, saiba disso. — Aponto o indicador em sua direção. — Por isso mesmo as portas estarão abertas para o caso de você querer voltar. — Cruzo os braços, um pouco contrariada, mas, não há muito o que fazer além de confiar em seu julgamento e torcer para que ela tenha o conto de fadas pelo qual esperou a vida inteira.
— Depois que eu tomar um banho, eu vou te dar um abraço tão apertado que você vai pedir ajuda! — Ela se levanta com cuidado, mantendo o lençol escondendo boa parte de seu corpo.
— Abraça minha perna. — Estico o pé em sua direção e ela bate na ponta do tênis, me fazendo desequilibrar.
— Trouxa! — Ela sai correndo enquanto eu me espatifo no chão.
— Que palavreado é esse, Vanessa?! — Ela gargalha com a porta do banheiro já fechada e eu me levanto do chão, achando muito difícil criar adolescentes nos dias de hoje.

Sair de casa e ver o céu já tão escuro me faz xingar mentalmente. Fiquei tão envolvida na faixa que estou produzindo para o Funkz que esqueci do trabalho na lanchonete. Acontece que tive uma espécie de epifania enquanto dormia que me fez cair da cama, de frente para o computador. Então, estive trabalhando no mashup por tanto tempo que nem me importei em olhar para o relógio. Eu estava em um estado além do tempo, mas meu entorno não pode me acompanhar.
Quando chego na lanchonete, ajeito o último botão da camisa social e solto sorrisos polidos de dentes alinhados para os poucos clientes que já estão por ali.
— Você está atrasada — diz Guilherme entediado com seu avental e olhar perdido pela calçada.
— Não. Estou fazendo uma entrada triunfante — Corrijo convencida, batendo em seu ombro de leve. Ele sorri e me segue até a copa, onde ficarei pelo resto da noite.
— Posso te perguntar uma coisa muito pessoal? — Ele pede com a voz aveludada, mais baixa que o normal.
— Acho que tivemos emoções o suficiente para um fim de semana, não? — Procuro me ocupar para evitar qualquer conversa íntima com Guilherme. Podemos ser amigos, mas com ele, os limites devem ser bem desenhados e colocados em evidência vez ou outra.
— Eu sei. Mas é que… — Ele suspira, implorando com os olhos pidões e eu rolo os meus, impaciente.
— O que é? — Cruzo os braços na frente do corpo, tentando mostrar desinteresse e até desconforto antes mesmo de saber do que se trata.
— Acho que estou apaixonado — Franzo o cenho, achando muito estranho ouvir o conjunto de palavras saindo da boca dele. — De verdade, muito apaixonado, . Eu quero fazer direito dessa vez, então, me dê alguma dica. O que o faz que te deixa tão sorridente e motivada? Eu quero fazer o mesmo pela Bia. — Eu quero rir, mas seu semblante desesperado me impede de ser uma babaca.
— Sorridente e motivada? — Ele assente, curioso. — Eu não sei. Ele é bom pra mim em todos os aspectos. Todos — Ele não parece compreender o que está sendo dito nas entrelinhas, mas não direi nada além disso se ele não souber como pedir.
— Você está falando de… — Guilherme começa a gesticular bastante com o corpo todo e eu trato de impedir que ele se empolgue demais.
— Sim, mas também de outras coisas. Se eu pareço motivada, é porque ele me apoia honestamente, com opiniões verdadeiras e pensadas com atenção para o assunto em questão. Ele ouve o que tenho a dizer, aprecia minha opinião sobre decisões importantes que ele deve tomar… — Dou de ombros, meio que evitando sorrir ao revisitar como é ser amada desse jeito na frente dele.
— Então… Basicamente, ele te ouve e divide coisas da vida dele com você. — Guilherme simplifica e eu acabo por concordar. Se ele não souber mesmo o que fazer, esse já é um bom começo.
— É… Tipo, meus seios são tão interessantes pra ele quanto meus pensamentos. A atenção é visível e quase palpável. — Guilherme cerra os olhos em incredulidade.
— Agora você está exagerando! — Ele ri, lutando contra a própria vontade de encarar meus seios. — Não tem como. Faça um teste, mostre os peitinhos pra ele enquanto diz algo sério. Ele não vai ouvir uma palavra. — Ele se debruça no balcão.
Peitinhos? — Ergo as sobrancelhas e assisto enquanto Gui volta dez casas no jogo da vida.
— Força do hábito… — Ele cora um pouco. Vejo uma de suas mesas ser ocupadas e o encaro até que ele volte a trabalhar e dê o assunto por encerrado.
— Guilherme! — Ele para no lugar, se virando para mim. — Se você magoá-la, eu te dou outra surra — Aviso séria e ele ri, mas depois me encara com um pouco de medo, pois eu não estou rindo. Não poderia estar falando mais sério.
Bia não é minha melhor amiga, mas não merece nem um pouco do veneno que os sentimentos de Guilherme podem se tornar.
Me despeço de Tina e Guilherme na porta da lanchonete, apago as luzes e troco as chaves de uma mão para outra. Estou fisicamente cansada, mas mentalmente ativa. É uma combinação perigosa que costuma me visitar durante a noite e só ir embora quando faço algo útil com ela.
Passo o corpo pela porta minúscula e estou pronta para trancar a lanchonete quando sinto mãos grandes taparem meus olhos e boca. Ao invés de se enrijecer e lutar por liberdade, meu corpo relaxa quando inspiro o cheiro gostoso do perfume de . Cítrico, refrescante, completamente intoxicante.
— Você ia ficar toda molinha assim se fosse um assaltante no meu lugar agora? — Sua voz soa divertida em meu ouvido, me fazendo rir e sentir o bater de asas no estômago. Deito a cabeça para trás, alcançando seu peito forte. Me aconchego ali só por alguns segundos, não quero ter de esperar até que estejamos no andar de cima para começar a descansar em sua áurea tranquila.
— Se ele tivesse essa pegada… — Ouço sua risada, mas condeno minha frase. Não sei o que faria com o próximo que me tocasse sem minha prévia autorização.
Sinto que todos têm o direito de corrigir um erro com diálogo, mas quando o erro é tocar indesejadamente outra pessoa, o diálogo deve ser um taco de beisebol bem empunhado.
— Você está bem? — Ele pergunta, me abraçando pela cintura, apoiando o rosto na volta de meu pescoço, nos balançando só um pouquinho.
— Estou.
— É que você está segurando a chave em frente a fechadura, mas… — Ele ri e eu suspiro.
— Um minuto. — Fecho os olhos por um instante, depois tranco a porta e me viro para ele. — Agora sou toda sua.
— Não diga isso… — Ele me beija calmamente, ajeitando as tranças que fiz com as mechas da frente do cabelo para atrás de minha orelha.
— Não dizer que sou sua? — Ele fecha os olhos, mordendo o lábio inferior de forma pecaminosamente sensual.
— Não tenho interesse em ser um desses namorados possessivos e controladores que dizem ‘minha mulher’ como se você fosse um troféu… — Ele engrossa a voz, me fazendo rir. — Mas é muito excitante que você se disponha a…
— Ser sua? — Ergo uma sobrancelha, o desafiando.
— Muito excitante. — Ele reitera, as mãos espalmadas em meus quadris.
É esse olhar calmo e ao mesmo tempo incendiário que mexe com a minha cabeça, inverte minhas prioridades e faz com que eu queira que ele tenha tudo de mim.
Esse tipo de coisa não se pode ser ensinada.
Sinto muito, Gui.

No andar de cima, precisamente cinquenta e três minutos depois, estou colhendo as consequências de minhas provocações. Extasiada, satisfeita e quase no fim de uma pequena viagem pelas galáxias de meu próprio interior, mas muito envolvida por ela, meus olhos ainda estão fechados quando volta para a cama já de banho tomado. Ele me cobre com o cobertor e sei que ele está me olhando.
— Você está bem?
— Você tem me perguntado muito isso hoje. — Eu rio e ele me acompanha, meio insatisfeito.
— Eu não diria que você está distante, porque isso aqui foi espetacular. Mas… Sabe? — Assinto, me sentando na cama.
— Eu sei. Estou com essa melodia na cabeça e preciso encontrar uma forma de expressar essa melodia de alguma forma — inclina um pouco a cabeça, seus olhos transbordam incompreensão. — Parece algo como pulsação, com ritmo contínuo e sólido por si só. Todas as outras coisas se alinham dentro deste ritmo. Entende? — Cruzo as pernas sobre as dele, o olhando esperançosa.
— Não — Ele ri um pouco desesperado, mas se põe a pensar. — Um ritmo constante? Tipo… Um coração batendo? — Ele sugere, detestando o próprio palpite.
— Exatamente como um coração. — Me levanto, carregando o cobertor comigo e passando por cima dele animada. Vou até o notebook e o abro, buscando entre meus arquivos algo que Leah me enviou como um agrado dias antes.
— O que eu faço? — Ele pergunta, se aconchegando entre meus travesseiros.
— Me dê meia hora — digo meio distraída, pegando os fones de ouvido. Antes de abafar os sons externos, ouço a risada de e sorrio. Ele sabe que durante esses minutos, estarei fora de órbita e seu apoio em formato de silêncio é imprescindível.

O som agudo de vários solados de pares de tênis raspando sincronizadamente no chão liso do velho galpão de janelas embaçadas é nostálgico. As fileiras de pessoas concentradas em cada movimento refletido no espelho amplo mais adiante, respiram em uníssono, produzindo um som volumoso. Como o de uma tropa devota.
É o quarto ensaio desde a reunião do Funkz, e, como era de se esperar, não foi nada fácil reunir tantas ideias em um só conceito que fosse aceito por todos os integrantes de forma unânime.
Jorge ainda estava preso aos antigos costumes do Funkz, preso às músicas, aos movimentos. Foi Leah quem o trouxe para a realidade, lhe mostrando novas formas de homenagear e manter viva a ideia daqueles que criaram algo importante, mas mostrar a nova face do Funkz, reformulado não só visualmente com os novos integrantes, mas em seu cerne. É claro que ele fez jogo duro, mas acabou cedendo eventualmente.
Algo que nunca mudou no Funkz foi a franqueza entre seus integrantes. Toda discussão é válida porque é importante, assim, os puxões de orelha ficam menos doloridos e ninguém fica chateado depois.
Nos últimos três dias, nos reunimos sempre que pudemos para acertar detalhes da coreografia, produzir e ouvir os mashups que serão usados na competição e, nesse período, tivemos todo tipo de discussão que foram validadas pela necessidade de darmos o nosso melhor, a falta insana de algo que nos foi tomado de repente e que, tão de repente quanto, temos a chance de recuperar.
Estou assistindo ao ensaio do Funkz do banco, como fiz por tanto tempo. A diferença é que estou extasiada pela ideia de só observar daqui, vendo minha música mover corpos talentosos e dedicados de forma brilhante.
Ter minha interferência nas músicas que tocam alto nos alto—falantes do aparelho de som dá um toque diferente ao ensaio, pelo menos pra mim.
A ansiedade e a aflição para saber o que eles achariam da seleção de músicas com novos arranjos e destaques escolhidos a dedo por mim quase me corroeu por dentro nos últimos dias. O bolo maciço de insegurança foi se dissolvendo aos poucos dentro de mim ensaio após ensaio, a cada surpresa genial com a qual meus amigos me presentearam ao criarem movimentos incríveis usando exatamente os pontos altos das minhas alterações para trazer frescor e novidade.
Leah, Jorge e Amália assinam a coreografia e vê-los explorando novos horizontes, se empenhando no desafio e acima de tudo, se divertindo horrores no ensaio é muito mais gratificante que qualquer elogio elaborado sobre meu trabalho na produção.
Eles me mostram que captaram exatamente a atmosfera de batidas pesadas contínuas, que priorizam agudos e trazem metais triunfantes. É tudo ou nada. Tanto a música quanto a coreografia passam esta mensagem de urgência.
Esta conexão me deixa arrepiada até a alma.

— Você perdeu a cabeça? — ri, mas está vermelho, nervoso e confuso. Jorge sugeriu que ele desse um salto duplo carpado que aterrizasse em um power move que necessitaria que fosse, pelo menos, quarenta centímetros mais baixo. — Eu não consigo fazer isso!
— Com essa mentalidade negativa, não vai conseguir mesmo! — Jorge devolve irritado e impaciente. O de sempre.
Você consegue fazer isso? — cruza os braços, deixa a coluna ereta e encara o rapaz de cima, evidenciando a diferença em suas estaturas.
— Não. Por isso estou dizendo pra você fazer. — Ele sorri.
Na cabeça de Jorge, isso é ser persuasivo.
— Eu não vou fazer! — bate o pé.
— Eu faço. — Guilherme se levanta do chão de repente, faz uma pausa meio que esperando que todos o aplaudam por ele ter se prontificado, mas o que recebe são olhares desconfiados de que ele consiga dar o salto mortal sem machucar a si mesmo e aos outros.
— Duvido. — Jorge o desafia. A postura debochada do baixinho faz tanto Guilherme, quanto o encararem com certa irritação.
E então, uma pequena competição de saltos começa entre os rapazes e o ensaio é paralisado momentaneamente.
— Por que eles precisam competir exaustivamente sobre tudo? — Bia pergunta cansada, a mancha de suor na gola de sua camiseta cinza sobe e desce conforme ela busca por ar.
— Pelo menos eles não estão se batendo… — Tati menciona, nos fazendo concordar veemente.
— Homens… — Amália rola os olhos, entediada.
— O que eles estão competindo agora? Quem cair primeiro de cara no chão, vence? É isso? — Bia volta a perguntar, as mãos trêmulas alcançam os joelhos e ela os observa com fascínio e exaustão em seus olhos brilhantes.
— É importante. Um movimento desses bem executado pode nos fazer ganhar a batalha. — Explico compreensiva, já que é mesmo importante.
— Vocês aí! Quem disse que o ensaio acabou? Parou a fofoquinha, está na hora de vocês aprenderem a nossa parte da coreografia — Leah estala os dedos, ordenando as mulheres do grupo em suas posições.
Fico curiosa pela parte mais sensual da coreografia e minha atenção imediatamente vai para Leah, que mesmo com a barriga de quase sete meses, lidera com graça e precisão os movimentos de Vogue e Stiletto que incorporou na coreografia afim de diminuir a velocidade da parte anterior e dar um respiro aos rapazes, que entrarão depois com uma porção mais vívida de power moves e saltos acrobáticos. Mas sem perder a atenção da plateia.
— 5, 6, 7, 8 — conta Leah, coordenando os passos afiados. Ela brinca com formatos e alturas, explorando a precisão de suas dançarinas ao máximo. Cada detalhe é revisitado, moldado para ser nada além de perfeito.
Vejo que ela implica com a posição das mãos de Carina, uma b-girl que está mais acostumada com girar com a cabeça no chão por diversas vezes. Rebolar e requebrar claramente não é sua praia.
— Desse jeito você vai arranjar uma hérnia de disco — Ariane comenta, tirando sarro da b-girl que apesar de desconfortável, está dando seu melhor.
— Ei, ei… Se está vendo dificuldade, é melhor tentar ajudar antes de julgar. — Leah soa bastante maternal em sua sugestão, deixando a garota constrangida. — E você, ‘tá olhando o quê? — Ela fixa sua carranca permanente sobre mim e eu começo a gaguejar.
O tempo passa, mas a sensação de ser minúscula diante desta mulher nunca some.
— O-o… Ensaio. — Minha voz sai falha e ela ri com escárnio.
— No meu ensaio, ninguém fica só olhando. — Ela nem percebe, mas soa exatamente como Pedro, quando Tati e eu íamos espiar o grupo ensaiando.
— Mas eu…
— Mas nada, … Mexa-se! — Ela manda e eu obedeço.
— Eu não quero atrapalhar — digo sem jeito, sendo motivada por Amália que acena freneticamente para que eu fique ao seu lado, na frente.
— Faça o seu melhor. É tudo o que pode fazer — Leah apoia a mão em meu ombro e eu respiro fundo, encarando meu reflexo no espelho e acompanhada de tantas outras, me sinto à vontade.
Uma rápida revisão depois e com um lugar definido por Leah, estou pronta.
A desaceleração da música anterior dá início a “Ring The Alarm” do álbum B’Day da Beyoncé.
Nos alinhamos em duas fileiras, de cinco e quatro dançarinas. Viradas umas para as outras, é como se acordássemos quando o alarme toca. Os pés acompanham a batida mais aguda, enquanto os braços trazem o formato de um grande olho que pisca rapidamente evidenciando Leah, que se destaca com um passo a frente, usando das mãos para trazer o vogue de baile que aprendeu com o tio durante toda a infância nos anos 1990.
Ele foi um homem viajado, inteligente, caloroso e definitivamente belo como a sobrinha. Foi por causa dele que Leah se apaixonou pela dança.
Moisés teve a vida ceifada cedo demais, como acontece com quem é muito bom e tem tanto para compartilhar em tão pouco tempo.
Sua doença causava repulsa nos outros, mas para Leah, ele permaneceu sendo a pessoa mais bonita, extraordinária e corajosa que conheceu.
Seus passos de Vogue têm a marca dele e de todos os outros com quem Moisés topou por seu caminho extenso e muito bem aproveitado por entre os mares deste planeta.
— Energia! — Ela exige, enquanto coordenamos mexer a parte superior do tronco sem mexer mais nada e manter a expressão ameaçadoramente sensual no rosto. — Cruza, vira. Sol-da-di-nho. Braço errado, Carina. Isso! — Ela toma um tempo para respirar e analisar a imagem de frente. — Mais força nesse pé! — Ela observa cada movimento como uma águia. — Lindo!
Repetimos algumas vezes, concentradas e nem um pouco incomodadas com a divisão clara no galpão. Mas não demora até nosso sincronismo, contagem, música e o melhor, a diversão que estamos tendo enquanto ensaiamos começa a incomodar o outro lado.
— Vocês estão nos desconcentrando aqui! — Guilherme é o primeiro a reclamar, pois caiu de cara no chão após um salto. Ele levanta com uma flexão e nos encara colérico.
— Para de ser nojento que passa — Ariane devolve e eu rio.
— Não desse jeito, garota. Se enxerga — Ele comenta ácido e se aproxima. — Sua música alta de contagem maluca está desconcentrando todo mundo — Ele explica.
— Será que não podemos diminuir o volume? — Bia pergunta, alheia às regras do grupo. Quando há um impasse e ele precisa ser dissolvido, esta situação em si se torna secundária. O show deve continuar.
— Alguém fala com ela… — Leah respira fundo, se abstendo de se estressar. Ou é o que parece, pois a veia em sua testa começa a dilatar. — Seu trabalho é saltar e pousar na batida, encontre o ritmo ou não salte. É simples — Ela se direciona a Guilherme, que engole um dicionário inteiro de reclamações sob o olhar tirano esverdeado e hipnotizante da mulher.
— Você tem razão… — Ele se afasta respeitosamente, chamando a atenção de Jorge e Vinícius, que não concordam com sua rápida desistência.
— Espera aí… Que covardia é essa? — Jorge bate no peito de Guilherme, o fazendo reprimir um gemido. — Qual é, Leah?! Seja razoável. O que estamos fazendo aqui é perigoso. — Ele tem suas ressalvas, mas conviveu por mais tempo no círculo íntimo da mulher, deve conhecer maneiras de convencê-la.
— Vocês sempre podem fazer isso em outro lugar… — Ela ajeita as longas tranças para trás do corpo, esticando a postura.
— Onde?
— Numa sala cheia de plumas para não machucar sua cabecinha — diz ironicamente paciente, fazendo o rapaz bufar irritado. O fato de ainda estarmos rindo não ajuda e ele faz um gesto com a cabeça, juntando seus garotos e os grupos de homens e mulheres se encaram.
— Espera! O que está acontecendo? — Bia pede alarmada, ficando no centro dos ânimos se elevando.
— Você não quer fazer isso, Jorginho — Leah provoca, em seus lábios um sorriso convencido descansa, como deve ser.
— Eu acho que eu quero, sim. Manda ver! — Ele empurra alguns dos rapazes, fazendo espaço. No aparelho de som, a “Ring The Alarm” dá lugar para “Kitty Kat” e imediatamente os dançarinos no recinto estão sentindo seus corpos cederem à batida.
Leah mistura Vogue e Street Dance com provocações intermitentes a Jorge e ele parece se divertir, pelo menos até ela encenar colocar uma coleira em seu pescoço e puxá-lo pelo colarinho da camiseta, cantando “let’s go, little kitty kat”.
Jorge se afasta incorporando o Krumping mais lentamente, mas ainda expressivo. Acertando cada batida com uma parte diferente de seu corpo, usando os braços e pernas para dar um efeito quase que cortante aos movimentos. Jorge é bom, não há nada que ele deva provar aqui, mesmo assim ele se entrega de corpo e alma, até chegar a ponte para o refrão e ele começa a imitar nossos passos da coreografia anterior, rebolando mais rapidamente e encaixando a coreografia em uma música diferente. Provocando Leah de forma baixa.
Ela rola os olhos, abanando as mãos em sua direção, enquanto ele é ovacionado por todos nós, mesmo que seja uma competição nítida.
— Acha que acabou? — Amália pula no centro, interrompendo o último movimento de Jorge.
Ela começa sentindo a música, andando em volta e esperando pela próxima ponte, quando ela chega, Amália a interdita para sempre. Em um freestyle que junta todas as suas especialidades de forma sublime, ela explora sua flexibilidade, agilidade e musicalidade impecáveis.
— De jeito nenhum! — Vinícius se revolta quando Amália o segura pelos quadris e joga os cabelos avermelhados por todo seu peito em uma descida rápida e sensual. Ela se levanta, toca a ponta do nariz dele e joga um pouco mais de cabelo em seu rosto antes de sair rebolando.
O gesto avassalador, intrigante e direto deixa o rapaz sem reação, o desclassificando da pequena competição que mal começou e já teve seu fim, pois todos estão dançando juntos.
E é óbvio que nós vencemos.
O ensaio não foi totalmente perdido, ficou definido que a parte aérea da coreografia será executada por Vinícius, Gui e Jorge. Eles terão de ensaiar por uma hora antes do ensaio principal, para garantir que tudo corra bem.
— Você me deu uma nova dor de cabeça, — Leah reclama sentada com as pernas abertas no chão. Ela se apoia nos braços e me encara sem muita vontade de levantar. Então, me sento ao seu lado.
— O que foi que eu fiz? — Pergunto paciente, assistindo a mulher acariciar a própria barriga.
— A coreografia fica melhor com nove dançarinas e você não vai dançar. O que eu faço agora? — Solto um murmúrio compreensivo, afinal, a formato do olho ficou muito mais definido com uma nona pessoa para alinhar bem os cantos e ganhar um pouco mais de espaço para Leah.
— Eu resolverei este problema que criei sem querer — Admito um pouco cansada, mas já com uma ideia brilhante em mente.
— Acho bom! — Leah dá um sorrisinho de lado. — Agora, me ajude a levantar. Preciso tomar um banho e deitar o resto do dia — Ela suspira e eu fico de pé em um piscar de olhos. Lhe dou o apoio de que ela precisa e a acompanho até o ponto de ônibus.
— Você parece preocupada — digo quase inaudivelmente, mas é verdade.
— Temos que começar a divulgar o evento. O Henrique já falou com a escola e está tudo certo nessa parte — Ela suspira. Leah faz muito isso agora, como se nada que ela fizesse fosse realmente relevante.
— A Tati já está cuidando dos panfletos e ela teve a ideia de criar uma página no MySpace para o grupo — Ela ergue as sobrancelhas, surpresa.
— Eu não tinha pensado nisso — Cerra os olhos, pensativa.
— Estamos cuidando disso. Somos como um corpo humano, onde cada órgão tem sua função. Você é o coração, continue bombeando o sangue para todos nós. — Sorrio e me sinto aliviada quando ela ri baixinho. Esse é o máximo que ela consegue, mas já é alguma coisa.
— Você é tão esquisita — diz balançando a cabeça. — Mas isso é bom. No fundo, somos todos esquisitos.
— Eu li em algum lugar que esquisito pode significar raro em algumas línguas — Leah sorri mais abertamente.
— Então, você é esse tipo de esquisita — Ela alcança minha mão com a sua, respirando profundamente mais uma vez. Ela encara o céu claro de poucas nuvens por alguns segundos e depois lança as esmeraldas curiosas sobre mim. — Você está bem?
— O quê? — Rio nervosa, intimidada. — Ah, sim. Tudo está bem. — Estranho a pergunta e Leah reflete em minha resposta.
— Isso é bom — diz após algum tempo, apertando minha mão um pouco mais antes de soltá-la.
— Quer dizer, tem sido um ano infernal e maravilhoso ao mesmo tempo. Não posso dizer que estou tranquila, mas não é mais como se eu estivesse esperando algum tipo de tragédia acontecer todo dia pela manhã. — Leah ri e concorda.
— Eu me sinto assim também, não é o ideal, mas… — Balanço minha cabeça devagar. — Se preocupe mais com você, ok? Não dá pra cuidar de todo mundo, eu sei como isso é frustrante de admitir.
Mas podemos começar de dentro pra fora. — Ela dá de ombros, distraída com o ônibus que se aproxima pela esquina.
Ela se levanta do banco e me dá um rápido beijo na bochecha. Eu a ajudo a subir no ônibus e espero até ver que ela esteja acomodada para dar meia volta.
Fico pensativa. O pedido de Leah começou a ressoar de formas diferentes em mim, mais profunda. Quase como um aviso.
— Onde você estava? Preciso da sua opinião aqui — Amália me puxa pelo braço. — A Ariane acha que é mais flexível que eu. Porque há dez anos atrás, ela era bailarina e blá blá blá — Explica rolando tantos os olhos que eles parecem estar prestes a pular em mim.
— Uma vez bailarina, sempre bailarina — Ariane comenta sem vontade.
— Talvez, mas não é o seu caso — Amália provoca.
— Se você acha que esfregar as coxas no asfalto é alguma coisa especial, eu realmente não posso te ajudar — Ariane ri com escárnio e logo estou no centro de uma discussão acalorada e nem um pouco amigável.
As outras meninas começam a dividir seus pensamentos, algumas delas reclamam da atitude pouco amistosa de Ariane, outras, a defendem.
— Que porra vocês estão fazendo?! — Jorge entra no meio, tentando separar as duas garotas que gritam tão perto uma da outra que duvido que estejam sequer se ouvindo.
, faz alguma coisa! — Guilherme intervém também, me dando uma responsabilidade que eu não sabia que tinha.
— O que eu tenho a ver com essa briga? — Encaro Guilherme, que segura Amália pela cintura, ao mesmo tempo que tenta se esquivar dos braços da garota.
— Não sei, você é mulher! — Ele grita desesperado e eu respiro fundo.
Começo pelo meu entorno, perguntando às meninas porquê elas estão gritando e vejo que, uma a uma, começam a se concentrar em suas vozes interiores.
A sensatez pode ser cansativa e eu nem consigo disfarçar.
— Vocês estavam zoando os meninos por fazerem este tipo de coisa agora a pouco, o que está rolando? — Não consigo conter uma risada silenciosamente revoltada e sem a menor paciência para intrigas tão pequenas.
— Eu não sei, ela veio pra cima de mim! — Ariane acusa, olhando Amália com certo desprezo.
— Fala sério, Ariane, você não é uma pessoa muito agradável — Bia comenta, um pouco tímida.
— Por que eu disse que você dança mal? Eu não disse nenhuma mentira! — Ariane toma um tempo para se dar conta de que estamos perdendo tempo.
— Me solta! — Amália brada e ajeita as roupas e cabelo. — Você é desprezível e eu definitivamente não gosto nada de você. Mas temos que trabalhar juntas. Então, ou você para de criticar todo mundo em volta, ou está fora do grupo — Amália aponta o dedo em riste para a garota.
— Você deveria ter começado por aí — comento distraída, imaginando como teria sido menos constrangedor pra todo mundo se ela tivesse escolhido essa abordagem. Amália dá de ombros, mas acaba por concordar.
— Dois votos do conselho e você está fora, Ari. Você sabe — Jorge solta os ombros dela, a olhando com compaixão e amizade.
— Então, não posso mais dizer a verdade? — Ariane ergue uma das sobrancelhas grossas, debochada.
— Se ninguém pediu sua opinião é só ser malvada, não sincera — Amália comenta ácida, fazendo alguns de nós rir.
— Tanto faz… Eu paro — Ariane cede e eu ouço vários suspiros aliviados.
Com o fim de mais um ensaio intenso, me despeço de meus amigos e subo na bike para que nos leve para casa.
No caminho, ele parece perceber meu desânimo e solta um dos lados do guidão para cutucar minha cintura até que eu abra os olhos e o encare.
— Que foi? — Pergunta rapidinho, com um leve vinco no centro da testa.
— Sinto como se fosse mãe de vinte crianças — digo brincalhona, mas presenciar e apartar brigas entre adultos o dia todo é bastante exaustivo.
— Eu deveria ter ajudado mais, desculpe por ter ficado rindo da sua expressão descrente — Ele apoia a mão no alto de minha coxa. — Você parecia tão entediada no meio de toda aquela gritaria. Foi muito engraçado!
— Eu estava mesmo — ri mais forte, sendo obrigado a parar de pedalar.
— E aí, na minha casa ou na sua? — Com o pé encostado no chão garantindo nossa segurança, ele se inclina um pouco, pensando.
— Minha casa — O sorriso malicioso que ele me dá me faz rolar os olhos, mas acabo por rir e me aconchegar em seu peito enquanto ele faz o desvio no caminho.

No sábado à noite, me despeço de meus amigos na lanchonete mais cedo. Na rua, a família de me aguarda no carro para irmos até o local do casamento para o ensaio.
— Por que temos que ensaiar? É só passar por entre as cadeiras e ficar perto de onde toda a ação acontece. Eu consigo fazer isso — resmunga pela segunda vez, inconformado.
— Porque esse é o meu primeiro casamento de verdade, eu estou gastando uma fortuna nele e tudo deve ser perfeito! — Simone responde convicta e ouço meu namorado bufar irritado.
— A vista do sítio à noite é linda, vocês vão gostar — Ricardo tenta animar um pouco os ocupantes do carro após um dia atarefado de trabalho.
— Eu adoro a ideia de vocês se casarem perto da natureza, parece libertador — Completo, me juntando à nobre missão de Ricardo de aliviar os ânimos.
— Isso se não chover — reclama mais uma vez, parecendo chateado.
O casamento acontecerá em um sítio há trinta minutos de Guarulhos. Simone me mostrou as fotos outro dia e com a decoração que ela escolheu, tudo parecerá saído de um conto de fadas.
Não entendo o porquê de estar tão mal humorado e agindo tão estranho desde o almoço, quando nos sentamos a mesa após uma conversa privada entre mãe e filho.
— Você está bem? — Pergunto baixinho quando Simone e Ricardo saem do carro para liberarem a nossa entrada no portão característico do terreno. responde com um aceno de cabeça lento, com a expressão fechada. Exatamente igual às outras três vezes em que lhe perguntei.
— Vamos acabar logo com isso — Ele sai do carro e bate a porta com força.
Já dentro do sítio, vemos a grande casa branca iluminada por dentro e por fora. As trilhas são cobertas por pedras brancas, que se destacam no meio de tanto verde da natureza. A piscina também é iluminada e a fumaça fina que cobre a água azul me deixa tentada à um mergulho aquecido.
A trilha segue até o lado da casa, onde um espaço grande e coberto por uma tenda abriga pelo menos cem pessoas nas cadeiras decoradas com botões de rosa e tecido delicado. Mais ao norte, centralizado como um altar, um pequeno palco de um degrau nos difere dos convidados.
Dois funcionários da agência organizadora do casamento medem o lugar com atenção, ainda falta um tapete vermelho que fará o caminho entre as cadeiras até o altar.
Os adultos conversam com a organizadora de eventos, muitos detalhes são revisados e tudo parece tão dinâmico que é fácil se perder no assunto.
— Isso parece mesmo difícil — Comento divertida, puxando o braço de para tentar distraí—lo de seus pensamentos. A organizadora apresentou uma situação urgente com a falta de guardanapos da cor combinada. Simone tem de escolher entre dois tons de bege idênticos, mas só eu acho isso hilário.
— Desculpa, linda. Não estou mesmo no clima. — entrelaça seus dedos nos meus. Ele nem consegue respirar fundo mais, tamanha a agonia transbordando de seus olhos.
— Certo, o que está acontecendo? — Ele desvia o olhar do meu, prestes a se afastar por completo quando eu o puxo pela camiseta, grudando meu corpo no dele. — E você vai me contar, porque do contrário, eu vou jogar nós dois na piscina. Eu não estou brincando! — me encara profundamente, até que desiste de manter segredo e então, se certifica de que não somos necessários no momento.
— Vem comigo… — Ele me puxa pela mão, nos esgueirando pela mata até um pouco mais distante da casa. De onde estamos, ela até parece menor.
— O lugar é de tirar o fôlego! — Fico inspirada com a vista. Não estamos tão longe da cidade, mas o céu daqui é brilhante e toda essa luz ilumina a terra fértil. As sombras das árvores frutíferas espalhadas pelo lugar parece tirado dos cenários de um dos livros fantásticos que eu costumava ler.
Parece um bom lugar para selar uma promessa eterna de amor.
— Você é de tirar o fôlego! — Sob a luz da lua sem intermediários, se parece mais com ele mesmo. Ele me beija de forma tão doce que nem parece o mesmo amargurado de antes.
Quando o beijo acaba, eu estou arfando.
— Certo, vai me contar agora o que é que está acontecendo? — Cruzo os braços, tentando me manter séria.
— Acho que estou perdendo a minha mãe… — Ele confessa e eu contenho meu rosto de sorrir.
— Isso é natural. Mas mesmo que ela esteja se casando com o cara dos sonhos, você sempre vai ser o verdadeiro amor da vida dela, eu garanto e-
— Não, não… Eu sei disso tudo. Não estou tendo uma crise de ciúmes. — Ele ri pela primeira vez no dia e eu me sinto contente e confusa ao mesmo tempo.
— Então, o que ‘tá rolando? — Inclino um pouco a cabeça.
— Eu acho que ela se mudou e esqueceu de me contar — Ele parece intrigado, um pouco traído.
— O que está acontecendo com esses pais? — Pergunto para mim mesma, mas balanço a cabeça, focando no problema de .
— Eles vão passar a lua de mel na casa de praia, minha mãe pediu demissão e aparentemente andou comprando móveis e enviando para lá — Ele ri nervoso. — Eu não estou bravo que ela esteja se mudando, só para deixar claro. Estou bravo porque ela não me disse e quando eu a confrontei no almoço, ela mentiu. Na minha cara! — Ele fala mais alto, irado. Eu me esforço para pensar em uma boa razão para Simone esconder algo assim de e agir tão indiferente, como se não importasse.
— Talvez ela estivesse esperando a hora certa para te contar? — Sugiro e ele ri com escárnio.
— Quer saber? Não importa, eles deixaram isso bem claro. Não quero mais falar disso com essa lua cheia incrível iluminando você desse jeito — Ele volta a me abraçar pela cintura.
— O que você vai fazer? — Pergunto ainda envolvida no assunto.
— Eu vou beijar você — E ele o faz, me distraindo momentaneamente enquanto me aconchega em seus braços.
Por alguns minutos, deixo que faça uma pausa e espero que ele a use para não pensar mais no que o aflige.
— Onde estão os padrinhos? — Ouço a voz aguda da organizadora do casamento tremer em desespero. Descemos com menos pressa do que subimos, aproveitando a noite olhando de volta para nós em um silêncio cheio de preocupações.
No caminho de volta para casa, o clima fica ainda mais pesado. Parece que todos no carro têm a mesma expressão culpada e pressionada pelo assunto não mencionado. Nem Ricardo ousa alterar o clima para melhor, mantendo o silêncio reflexivo.
— Tem certeza? — Pisco algumas vezes, não demora até que eu encontre compaixão por dentro de mim. Ele diz que quer ficar sozinho, o lance de “não lidar bem com frustração” apareceu novamente e dessa vez, quero mostrar a ele que quem decide o quanto posso ou não aguentar de seu péssimo humor, sou eu.
— Sim — Insisto acreditando em minha convicção de que por mais que ele tenha me pedido, não precisa realmente ficar sozinho esta noite. Não quando ele se sente tão traído e abandonado.
Então, vamos todos para a mesma casa com o mesmo silêncio sufocante. Em casa pelo menos a tensão se espalha conforme as pessoas se dividem pelos cômodos, remoendo os próprios pensamentos. Tia Simone no quarto, Ricardo na sala, na cozinha.
Jantamos juntos e foi legal saber que consigo sustentar uma conversa com Ricardo, acabando por decidir definitivamente que gosto muito do homem.
Eu não poderia estar mais feliz pela tia Simone e os anos de parceria, alegria e amor que a aguardam ao lado dele. Eu até diria isso a ela, se a matriarca não estivesse encarando o filho como se estivessem em uma batalha mental intensa. não fica muito atrás, enquanto assistimos a última novela do dia na TV, ele não perdeu a oportunidade de apontar o comportamento de qualquer personagem sendo honesto com os outros a sua volta na trama.
, por que você não vai dar uma volta? Seu mau humor está estragando minha última noite solteira — Perto do final dos comerciais do último bloco da novela, Simone brinca. Meio que obrigando a mim e o pobre Ricardo, sentado ao seu lado, a soltarmos uma risada nervosa.
— Você deve estar contando os minutos para não estarmos mais sob o mesmo teto, não é? Adivinha, as telhas do meu quarto são diferentes do resto da casa — se levanta abruptamente, fazendo meu corpo que estava apoiado ao seu tombar para o lado no sofá. — Nós reformamos o telhado! — Ele grunhe irritado e marcha com força até o quarto, batendo a porta em seguida.
Seria completamente desrespeitoso da minha parte rir das expressões emocionais de meu namorado, mas não leva jeito para ficar bravo. Pelo menos não com a tia Simone.
— Eu me lembro. Ele passou o dia inteiro ajudando o pedreiro, queria saber como consertar caso desse algum problema. Ele sabia quão difícil foi pra gente pagar aquela reforma, mas tinha goteira pra todo lado no quarto dele. Tadinho. — Simone suspira triste com a memória, um desespero soturno se instaura na noite que precede o casamento.
— Eu vou… ver se está tudo bem — Levanto meio sem jeito, vou até ela no sofá e lhe dou um beijo de boa noite na testa. Dou meu toque de mãos com Ricardo e os deixo aproveitarem o que restou da noite a sós.
Bato tímida na porta, não sei o que me espera atrás dela mas conheço bem quem está do lado de dentro. Está destrancada e eu solto um longo suspiro antes de entrar em seu quarto.
— Desculpe por aquilo — diz envergonhado, sem me olhar diretamente. organiza suas revistas, mas parece mais bagunçá-las sobre a cômoda.
— Você não é muito bom em confrontos — digo em um só fôlego e concebe minhas palavras imediatamente.
— É… — Ele coça a nuca, ameaçando rir de si mesmo. — Eu odeio isso.
— Eu sei. Também odeio — Me encosto na porta fechada, mordendo o interior da boca e o estudando minuciosamente. não me olhar agora me enlouquece, pois não faço ideia do que ele está pensando e não consigo ver em seus olhos o quão profundo sua mágoa o machuca. Ainda não sei se isso é bom.
— Mas você é boa nisso — Aponta enquanto se alonga, ele parece cansado. Quando finalmente me tira de meu desespero, ele me olha e parece tão perdido que me sinto rachar por dentro.
— Você sabe, a prática leva à perfeição. Eu venho brigando a minha vida toda e posso reconhecer a diferença entre amor e ódio em uma briga. Vocês definitivamente se amam. — solta o ar dos pulmões lentamente. Ficamos nos olhando por um tempo e eu começo a me perguntar se falei demais.
— Eu falo com ela amanhã. — Ele solta os braços ao lado do corpo, exausto de várias maneiras. — Obrigado por ter ficado. Me perdoa por hoje.
— Não é culpa sua. — Garanto paciente, me movendo devagar pelo quarto.
— Acho que me desesperar por algo que não tem jeito é um pouco minha culpa, sim — diz contrariado, se jogando sobre a cama com as mãos bagunçando os cachos perfeitos.
— Eu diria que é uma reação razoável. — Dou de ombros, ri.
— Eu não acho que agir como uma criança sonolenta é a melhor opção pra resolver qualquer coisa. — A risada de não me transmite nenhum humor.
— Tem razão. — Vou até a janela, dou uma breve olhada na rua vazia e mal iluminada. Fecho a cortina e me viro pra ele, decidida a exterminar qualquer mal estar que ele esteja experienciando. — Mas não posso te culpar por amar tanto alguém que esteja se sentindo traído por ela ter seguido com a vida sem ao menos te avisar antes.
— Sempre foi o sonho dela morar perto do mar. — divaga encarando o teto. — Queria poder me sentir só feliz por ela, mas essa sensação de que tudo vai mudar é tão confusa e… Assustadora. — Ele levanta o queixo, me encarando como se me desafiasse a me aproximar e eu dou um passo em sua direção.
— Tudo vai mudar, mas você dá conta. — Dou mais um passo, esbarrando as coxas no colchão macio. estica o braço, emaranhando os dedos em minha camiseta, me puxando para um encontro atravessado sobre a cama.
— Obrigado por ter ficado, repete, entrelaçando os dedos nos meus, eu os aperto como uma confirmação de que estou exatamente onde quero estar.

No meio da noite, acordo com sede e está dormindo pesado demais para voluntariamente me acompanhar até a cozinha como sempre faz. Visto a calça jeans por baixo da camiseta grande de algum time de basquete e ajeito os cabelos, ainda sentindo muito sono, mas com o corpo todo em alerta e desidratado.
Ao chegar na cozinha, a figura tensa sentada em uma das cadeiras da mesa não chega a me assustar, mas termina de despertar meu corpo por completo.
A necessidade de resolver os problemas dos outros fala mais alto em mim que a necessidade por água.
— Não conseguiu dormir também? — Tia Simone pergunta baixinho. A voz triste e o olhar meio perdido me derretem por dentro. O que sinto por essa mulher é intenso e me faz ir até ela de coração aberto.
— Acho que senti que você precisava conversar — brinco e ao ouvir sua risada, mesmo que triste, me sinto confortável.
— Ele já te contou, não é? — Assinto devagar e ela ergue uma das sobrancelhas. — Menino enxerido, eu ia contar! Acredita que ele mexeu nos meus documentos e achou as notas fiscais? Ele daria um bom detetive, isso sim — Ela ri mais forte, mas depois suspira desgostosa.
— Então, você vai mesmo se tornar uma dessas mulheres tranquilas e bronzeadas que moram à beira-mar? — Ela rola os olhos, mas acaba rindo. Simone se levanta e vai até o armário, tira de lá dois copos e então os apoia sobre o balcão. Serve os copos pela metade com leite gelado e me oferece um deles. Eu aceito e assisto enquanto ela volta a se sentar.
— É tão errado que eu queira virar uma página na minha história? Mudar o cenário, alguns personagens — Ela questiona com o olhar sonhador, mas desperto.
— Não mesmo! — A encorajo. — É diferente pra gente, nós ainda não tivemos todas essas experiências e talvez não tenhamos acumulado tantas histórias aqui como vocês. Acho que entendo. O vai entender também, eventualmente — Não é fácil, mas parece certo.
— Sabia que você ia me entender. — Ela alcança minha mão com a sua, sorrindo cúmplice.
— Entendo, mas ainda vou sentir sua falta. — Sorrio triste, tendo aquela sensação de fim de ciclo se aproximando.
— Eu estarei aqui em um piscar de olhos se vocês precisarem de mim. — Ela garante, dando mais um gole em seu leite. — Então, a Vanessa também já te contou?
— Ela fez parecer que seria decisão minha, mas os olhos dela brilhavam tanto enquanto ela contava a novidade… Acho que tenho que confiar nela, não é? — Tia Simone sorri orgulhosa, me deixando um pouco sem jeito.
— Ela me inspirou a fazer essa mudança de vida, a Vanessa merece um voto de confiança e saber que estará segura se precisar voltar atrás — diz cheia de sabedoria e eu assinto, orgulhosa por ter pensado por esse lado também. Só há uma coisinha que precisa ser resolvida antes das caixas começarem a surgir aqui e ali.
— Queria ter tido uma conversa franca assim com o . Pobrezinho, deve achar que estou o excluindo da minha nova vida. — Ela coça os olhos, mostrando alguns dos mesmos trejeitos de diante de uma frustração. Eles são tão exatamente parecidos que me assusta. — Como ele vai cuidar de tudo?
— Nós vamos cuidar um do outro. — Ela suspira aliviada.
— Vocês vão morar juntos, então? — Ela fixa os olhos bem abertos sobre mim e eu me sinto pequenininha.
— O quê?! — Me engasgo com o leite, apoiando o copo sobre a mesa com tensão em cada movimento. Eu não tinha me dado conta de que e eu estaremos comandando nossos lares de agora em diante. Não me ocorreu que a possibilidade poderia surgir além da forma de piada.
Eu também não sabia como a mísera ideia poderia me apavorar até os ossos.
— Não quero que ele se sinta abandonado. — Ela confessa, voltando a ficar apreensiva.
— Fale com ele, tia. O é seu filho, ele vai entender. Compaixão e compreensão correm nessa família. — Decido me tirar da equação, mantendo a ideia fora de circulação por enquanto.
— Não sei como. Parte de eu ter escondido toda essa mudança foi porque ele é o meu bebê. Como vou dizer para o meu bebê que não estarei aqui todos os dias? — Ela pergunta e sabe que eu não tenho a resposta, mas parece aliviada mesmo assim. Colocar pra fora faz o problema parecer menos pesado, pelo menos um pouco.
— Você o criou bem. Ele vai se virar com as coisas do dia a dia, você garantiu isso — Ela sorri orgulhosa de novo, dessa vez por saber que criou um bom homem.
— Eu sei. Estou falando das pequenas coisas. Ele me conta tudo, do jeitão dele, mas conta. Tenho medo de perder isso. — Ela morde o interior da boca, pensativa.
— Tia — digo chamando sua atenção. — Isso nunca vai mudar. Quando as coisas ficarem complicadas, eu tenho certeza de que o vai saber que você estará lá pra ele, mesmo que não imediatamente de forma física. — Ela solta um riso e suspira, termina de beber seu leite e encara o copo vazio sobre a mesa.
Então, esta é a face de um amor tão arrebatador que chega a doer. Uma preocupação longa e bem enraizada no presente e futuro, ao mesmo tempo em que se vê toda a expectativa se transformando diante de seus olhos em algo que jamais se poderia imaginar. Cuidar de alguém minúsculo e indefeso até o ponto de não perceber que toda essa miudeza se esvaiu e que toda aquela vulnerabilidade se dissipou com o tempo. Ter de aceitar novos medos, novas preocupações, chateações.
Amar tanto alguém que até seus defeitos mais esdrúxulos se tornam passíveis de perdão.
Então, esta é a face de uma boa mãe enfrentando seus erros e amando tanto seu filho a ponto de magoá-lo. A mesma coisa que o machucou, o curará.
— Certo, agora temos que descansar. Um casamento nos aguarda e a noiva não deve parecer cansada. — Engulo a vontade de chorar, sentindo as lágrimas umedecerem meus cílios e sorrindo para esconder tudo isso.
— Tem razão! — Ela sorri de um jeito diferente, este é mais realizado, cheio de vida.
Me levanto e guardo os copos na pia, os deixando para depois. Acompanho tia Simone até a porta de seu quarto, lhe dou um abraço forte e prometo vê-la em algumas horas.
De volta ao quarto, me deito na cama recebendo os braços de me puxando para mais perto.
Fico um tempo esperando o sono voltar, impedindo que alguns pensamentos me deixem acordada o restante da noite.
Estou inquieta e até um inconsciente pelo cansaço consegue perceber. Ainda dorminhoco, ele beija meu ombro e ajeita melhor o corpo atrás de mim, me fazendo sentir segura e quentinha.
Fugindo de pensamentos com problemas complexos e sem solução, esbarro em outros, que nem se parecem com problemas.
Simplesmente não consigo parar de pensar em como seria ter isso todas as noites. Os braços fortes de envolta de minha cintura, os lençóis cheirosos me dando vigor para o dia seguinte e a sensação permanente de que tudo se encaixa, pelo menos dentro deste quarto.
Como seria isso?
O frio na barriga e a boca instantaneamente seca de novo me respondem de imediato.
— Eu deveria estar dormindo… — Resmungo num sussurro, ignorando tudo e focando no dia seguinte.

O caos e o desespero me despertam e toda a correria e vozes do lado de fora do quarto me deixam zonza sem que eu sequer tenha me levantado ainda.
— O que está acontecendo? — Me sento na cama, sentindo a cabeça girar.
— Os parentes do Ricardo chegaram… — encara a porta apreensivo, me deixando apreensiva também. — Imagine o Ricardo multiplicado por dez — Ele cobre o rosto com o travesseiro, bufando irritado.
— São só por algumas horas, não vai ser tão ruim assim. — Tento fazê-lo se sentar novamente, sem sucesso. — !
— Certo! — Ele resmunga, se levantando.
Durante o café da manhã, tenho uma amostra do porquê é tão reservado quanto aos familiares de Ricardo. Eles são numerosos, barulhentos, inconvenientes.
O sotaque mineiro seria um verdadeiro deleite se não fosse uma camada fina e ineficaz de proteção para as atrocidades que saem de suas bocas a cada cinco minutos.
— Vocês estavam fazendo o quê? Demoraram pra sair do quarto… — Uma das primas de Ricardo implica pela segunda vez, exigindo uma resposta.
— Tentando dormir? — responde meio irritado, me fazendo prender um riso.
— Só tentando? Tava difícil? — Outra se inclina sobre o prato, nos encarando curiosa.
— Sim, tinha umas dez pessoas gritando no corredor — diz , irônico. Eu o cutuco nas costelas, ele rola os olhos, inconformado.
Uma discussão acalorada se inicia na mesa. Não sei bem sobre o que eles discutem, pois todos falam uns sobre os outros e é cedo demais para absorver tantas informações e rostos novos.
O que sei é que toda a organização alcançada na noite anterior fora arruinada. O número de padrinhos aumentou graças ao ciúmes das primas de Ricardo, que se sentiram de fora da festança sem o holofote sobre elas.
Eu sugeri a que me deixasse em um dos bancos para que ele pudesse entrar com uma delas e evitar maiores desastres. Mas ele se virou lentamente em minha direção, os olhos arregalados e completamente enojados com a ideia. “Não se atreva!”, ele disse. Então, engoli minhas ideias junto com o pão de queijo recém assado e me deixei levar pelo caos instaurado.
Decido que, salvo o grande interesse no que dois jovens fazem em um quarto de porta fechada, os parentes de Ricardo parecem ser gente boa.
Eles têm os problemas que eu imagino serem normais com famílias grandes que vivem juntas. Uma vida pertence a todos e o que acontece nela deve ser discutido com paixão.
Eles são um povo animado, pois chegaram há poucas horas de uma viagem pela madrugada e a energia que eles trazem consigo é de pura festa. Os abraços são apertados, mesmo que não te conheçam. O falatório é tão grande que ninguém consegue ouvir os próprios pensamentos, mas a bagunça é calorosa, divertida.
— Você até que é bonita — diz a primeira novamente, encarando o emaranhado de cachos presos no alto de minha cabeça. Meu filtro social ainda não acordou, então, fico um tempo decidindo se isso foi ou não um elogio. A deixa passa e eu troco um rápido olhar perdido com meu namorado, que mantém os lábios afastados em choque.
Enquanto nos dividimos para cabermos nas vans alugadas, descubro que, por uma necessidade religiosa da mãe de Ricardo, as mulheres vão em um utilitário e os homens no outro.
Me despeço de sem pressa, os próximos trinta minutos serão tortuosos em um lugar fechado cheio de gente desconhecida.
— Vocês não se desgrudam nem um minuto? — Tia Vanessa afeta a voz, nos fazendo encará-la com estranhamento. — Imagina se eu fosse esse tipo de chata?! — Ela ri sozinha e se aproxima com os sacos com os vestidos.
— Achei que não fosse chegar a tempo — digo sem a menor preocupação.
— Eu sinto que estou sempre há cinco minutos de qualquer lugar, é incrível! — Ela vira o rosto, sorrindo para o namorado que ajeita os capacetes no assento da moto. Ele nos vê e acena com a cabeça, eu devolvo um olhar sério, tenho planos para o professor Alexandre que não podem passar desta noite.
— Você não vem com a gente na van das madrinhas? — Peço quase emocionada pela possibilidade de não ter de ir sozinha, mas minha tia crispa os lábios.
— Eu só vim perguntar se você pode levar meu vestido com você. Você sabe, não posso deixar o Alê ir sozinho de moto. Ele pode sentir frio nas costas. — Rolo os olhos, fazendo minha tia achar graça.
— Eu te ajudo — diz , na desculpa de matar mais alguns minutos ao meu lado. Ele também não está exatamente animado para passar os próximos minutos rodeado de maridos insatisfeitos e cheios de piadas de mau gosto sobre compromisso.
Vamos os três em direção a van, que já está cheia pela metade.
— Então, vocês vão dormir no sítio hoje? — Tia Vanessa pergunta, se virando para enquanto eu ajeito os vestidos no que eu imagino ser um banco vago. Eles discutem detalhes de minha segurança enquanto são observados por mais alguém além de mim.
— Quem é essa? — A prima mais nova de Ricardo, Priscila, pergunta gritando bem perto do meu rosto.
— Minha tia — Respondo tomando alguma distância da garota. Priscila é um pouco mais velha que eu, mas não aprendeu sobre sutileza ou espaço pessoal no lugar de onde veio.
— Bonita ela. Você também. Genética boa — Priscila não parece ter certeza de suas palavras, soando ligeiramente crítica e eu sorrio de boca fechada somente por educação. — Uma aparência… forte… traços firmes.
— É, nós somos pretas. — Não consigo deixar de soar divertida enquanto a menina fica completamente corada.
— Eu não quis dizer que… É que o cabelo de vocês é parecido… E… Os olhos… — Assisto Priscila se enrolar nas próprias palavras com paciência e eu quase sinto pena dela.
— Tudo bem, respira. — Dou toquinhos de leve em sua mão e ela ri sem jeito, vermelha como a bandeira que se ergue sobre ela.
— Tchau, amor! — Tia Vanessa me manda um beijo no ar e sai de meu campo de visão antes que eu possa respondê-la.
— Você vai ficar bem? — pergunta, quando puxo ar para me despedir de meu namorado, vejo Priscila se retorcendo no assento da van. Ela joga os longos cabelos loiros para trás do ombro, deixando os seios apertados do decote à mostra. Eles ficam bem no meio do campo visão e tanto , quanto eu ficamos encarando os seios da garota no meio da conversa.
— Hmmm… — Nenhuma palavra que se forma em minha cabeça é apropriada para o dia do casamento de tia Simone e Ricardo. Então, eu assinto com um riso preso no fundo da garganta.
— Você é muito fofo, sabia? — Priscila sorri de orelha a orelha, me fazendo coçar os olhos e as têmporas, na esperança de que os poros de minha pele exalem mais paciência. — Deve ser um namorado maravilhoso!
pisca algumas vezes, confuso. Volta a me olhar, em busca de respostas para o que está havendo.
— Isso é sério? — pergunta em voz alta. Dou de ombros, vendo que Priscila olha de mim para ele com atenção. — Ok… — se afasta, mas não antes de dividir um pensamento comigo: Que porra foi essa?
Quando vejo os portões do sítio se abrindo é como se estivesse submersa, vendo o céu repleto de oxigênio logo adiante. Abro a porta da van com ela ainda em movimento, tamanha é a pressa para estar longe da harmonia de vozes intermitentes que nem a bronca do motorista me faz olhar para trás quando meus pés tocam o chão.
O ar fresco e vista estonteante de um dia claro me distraem de todos os zumbidos. Ajeito os vestidos no braço, absorvendo a imagem diante de mim e não consigo sentir nada além de uma enorme expectativa para esta cerimônia.
O casamento eu já sei que vai fantástico, mas esta noite tem que ser maravilhosa. Tia Simone e Ricardo merecem isso.
— Ei! ! — Tia Vanessa acena com uma taça meio vazia. Vou até ela com a expressão aliviada por ver um rosto conhecido.
— Quem é essa gente mal vestida? — Pergunta entre dentes, disfarçando com um abraço apertado.
— Parentes do Ricardo. Não fale com eles — Aconselho rapidamente, evitando que a tia Vanessa passe pelo risco de ser obrigada a dizer verdades. Ela tem bem menos paciência que eu quando o assunto é lidar com gente intolerante.
— Eu vou tentar — Ela faz carinho em meus braços, sorrindo abertamente.
— Ei! — Me viro para o meu professor, que fica confuso antes de entender que estou falando com ele. — Vamos conversar. — Cerro os olhos em sua direção e organizo meu tempo para encaixar a famigerada conversa dentro da lista de coisas que tenho que fazer hoje.
Tia Vanessa crispa os lábios e dá passos largos e exagerados para o lado, a expressão culpada é divertida, mas não posso deixar que ela me distraia. Eu sei que ela ainda pode nos ouvir, nada mais justo. O assunto da conversa é ela.
— A Nessa me disse que vocês conversaram. — Ele adota a pose séria de professor e eu ergo uma das sobrancelhas, equiparando o tratamento.
— Sim, nós conversamos. Eu acho que é uma péssima ideia, porque ela só está começando a viver de novo e eu gostaria que ela tivesse mais tempo para fazer isso sem distrações. — Cruzo os braços, o encarando.
— Eu não sou nenhum garoto à toa, — Ele se ofende, me deixando satisfeita por atingi-lo. — Muito menos alguém que vai machucá-la. Não devo satisfações da minha vida a você, mas eu amo a Vanessa. Esperei por ela por muito tempo e estou disposto a esperar ainda mais se for o caso. Não quero me intrometer na relação de vocês, pelo contrário. Quero te ajudar a cuidar dela. Não que ela precise, pois esta conseguindo se virar muito bem. Eu quero que ela seja livre tanto quanto você, só preciso acordar ao lado dela todos os dias. Mas se não for a hora, eu posso esperar — Ele suspira pesado, desarmado.
O homem alto, cheio de músculos e o vinco permanente na testa se abre e fica vulnerável pra mim. Por causa dela.
Era exatamente isso o que eu estava buscando.
— Ok! — Mudo minha postura, sorrindo mais abertamente. — É melhor fazê-la feliz! — Ele ri aliviado, quebrando os protocolos da faculdade e abraçando uma aluna. Sua sobrinha postiça.
— Se eu puder dar a ela metade da alegria que ela me dá…
— Certo, certo. Sinto que tenho informações demais sobre a felicidade de vocês. — Tento esquecer o que não vi outro dia. — Só não pisa na bola e... tenha cuidado nas estradas... — Meu professor toma um tempo para me compreender e acaba sorrindo.
— Pode deixar — diz tímido, olhando de relance pra ela e sorrindo de um jeito quase infantil.
— Tenho que ir. Se divirtam hoje à noite! — Me afasto dele, indo até ela que lê minha expressão e sabe que tem sinal verde para seguir com seus planos mais malucos.
— Eu te amo, sabe disso? — Ela cochicha quando passo por ela, meneio com a cabeça mas acabo por concordar.
— Eu te amo mais! — Ela cora, deixando a taça ainda por terminar de lado em uma das bandejas e saltitando até abraçar seu homem. Estou atrasada, mas vale a pena parar tudo para ver o amor seguir seu rumo.
Quando me viro, meu coração salta uma batida, ficando completamente descompassado. está prestes a pular na piscina, sem camiseta e a menor noção de que ser quem ele é, o proíbe de ficar molhado em público. É simplesmente errado ser lindo desse jeito.
Estou tão hipnotizada que não consigo ficar brava com os respingos de água que acertam o plástico do saco dos vestidos.
— Desculpa — diz sorridente, passando a mão pelo rosto e tirando o excesso de água. Ele chacoalha a cabeça, fazendo os cachos se animarem e dançarem respingando por todos os lados.
— Pelo quê? — Engulo em seco, vendo que ele ergue o corpo da piscina com facilidade. ajeita o short meio torto pela força do mergulho, prende o lábio inferior entre os dentes e acompanha meu olhar nada disfarçado para seu abdômen úmido e esculpido por deuses lascivos.
— Você está me deixando sem graça. — apoia as mãos na cintura, erguendo uma sobrancelha.
— Não estou fazendo nada! — Sinto meu rosto esquentando e tento desviar o olhar, mas não quero tanto assim.
— Esses vestidos parecem pesados, me deixa te ajudar a levar lá pra cima? — Sua sugestão me faz arfar ligeiramente constrangida.
— Você quer saber? Eles não são tão pesados assim. Estou atrasada, com licença. — inclina a cabeça para o lado, um sorriso enviesado que parece ler meus pensamentos sujos torna difícil me mexer, mas eu consigo.
— Você não precisa de seis horas pra ficar bonita… Poder gastar vinte minutos comigo. — Ele reclama, tentando se aproximar.
— Tem razão, eu quero que seu queixo caia quando me vir de novo. Então… Eu… Vou… — Vai ficando cada vez mais difícil respirar conforme ele se aproxima. Os dedos gelados e ainda úmidos tocam minha bochecha, arrepiando meu pescoço e todo o resto.
— Estou intrigado — diz rouco, bem baixinho e esbarra os lábios nos meus de propósito.
— Espere e verá… — Devolvo a provocação, abrindo os olhos e encarando os dele bem de perto. Queimando de desejo.
Depois de dar dois longos passos para longe dele, giro em meus calcanhares e subo as escadas. Ando apressada por entre os corredores, buscando o quarto onde vou me arrumar.

Quase seis horas depois, encaro meu reflexo no espelho e é difícil acreditar que aquela sou eu. O aspecto abatido, sobrecarregado e tenso nem parece ter feito morada em minhas feições por tanto tempo. O corpo que vejo não é desnutrido, mas cheio de curvas saudáveis e amadas em sua essência. Mas além disso, o que cobre esse corpo sobrevivente evidencia tudo aquilo que um dia fora renegado e encoberto.
Calço os saltos e olho novamente, me vendo mais alta, mais elegante. O decote do vestido é de bom gosto, mas realça meus seios, os deixando mais levantados e vistosos. O colete estruturado faz com que minha postura melhore em 100% e a saia longa é suave, se mexendo graciosamente conforme ando pelo cômodo.
Tia Vanessa trançou parte de meu cabelo, entrelaçando a parte da frente em um rabo de cavalo alto e cheio com cachos mais abertos. Algumas mechas mais finas caem em meu pescoço e testa, dando um charme a mais ao penteado. A maquiagem, também feita por minha tia, é brilhosa e vai fazendo sentido a cada minuto que passa e o dia ensolarado vai dando lugar a uma noite fresca e estrelada.
Quando fico pronta, preciso de um momento de silêncio antes de tamanha exposição.
Longe do espaço seguro, onde tia Vanessa e Simone me encheram de elogios, me sinto deslocada por estar tão diferente do habitual.
Estou um pouco nervosa e preciso me convencer de que esta noite não é sobre mim e sim sobre o amor de Simone e Ricardo florescendo durante o clima inóspito do inverno ou qualquer bobagem como essa que tire o foco sobre mim e os dois minutos em que ficarei em certa evidência.
Caminho apressada pelos corredores, ouvindo os saltos em meus pés tilintarem no chão de madeira envelhecida. Ao virar um dos corredores, dou de cara com e encontro o motivo maior para ficar calma. Ele estará bem ao meu lado.
— Eita! — parece baqueado ao me ver. Ele dá um passo para trás, me olhando da cabeça aos pés e um sorriso lindo ilumina seu rosto.
— Não é justo. Você está muito lindo! — Digo tentando me aproximar dele, vou enlouquecendo aos poucos com a visão de usando um terno azul escuro que, misteriosamente combina perfeitamente com meu vestido.
— Quem é você para dizer isso depois de ter roubado a beleza do universo inteiro? — Ele xinga baixo, ainda incrédulo e eu começo a me sentir constrangida. — Vem aqui, agora! — Ele me puxa para seus braços, buscando meus lábios.
— A maquiagem! — Digo rápido, vendo que ele deliberadamente ignora meu aviso. Me beijando com vontade, pressionando meu corpo na parede e me fazendo esquecer qualquer perturbação.
O pigarro rouco da matriarca da família de Ricardo faz se afastar rindo.
— Boa noite, dona Esther — cumprimenta cavalheiro. Ela olha desconfiada de mim pra ele, levando seu ar reprovador consigo ao passar por nós.
— Pouca vergonha… — Resmunga a mais velha.
— Ela é um amor — comento cheia de ironia e ri baixinho.
— Linda desse jeito, você vai me fazer cometer uma atrocidade na frente dessa gente toda. — Ele volta a se aproximar, sinuoso.
— Vamos dar algo pra elas se chocarem de verdade! — Incentivo, ouvindo gargalhar.
— Não me provoque! — Ele roça seu nariz no meu e ficamos assim até que alguém vem nos chamar.
Chegou a hora.
A cerimônia é liderada por uma pastora, amiga do casal. Ela fala sobre o amor ser paciente, resistente à tudo, inclusive ao tempo. Fala sobre como Deus vê esse tipo de união e se alegra com a manifestação do mais puro e complexo dos sentimentos.
No meio de seu sermão, me perco um pouco nas reações das pessoas ao redor. Vejo sorrisos orgulhosos, ouço suspiros apaixonados. Gosto de pensar que toda essa energia boa é o motivo pelo o qual as pessoas fazem festas de casamento. O matrimônio é algo que eles dividirão entre si no dia a dia, mas esta alegria, este momento cheio de expectativas e sonhos, deve ser compartilhado com aqueles que amamos e que nos amam também.
Vejo exatamente o momento em que a barreira das diferenças cai por terra e tudo o que resta é o amor dos dois, prevalecendo acima de opiniões e supostos valores.
Por esta noite, só o que importa é celebrar Simone e Ricardo.
E nós os celebramos.
Após a chuva de arroz sobre o casal, vamos direto para a pista de dança, onde a banda já nos aguarda com os sucessos que embalaram a vida dos dois até este momento.
me guia pelo lugar com as mãos firmes em minha cintura, nos fazendo girar por entre os casais como dois profissionais do forró, mas não o suficiente para ofuscar os recém-casados. Ricardo é um verdadeiro pé de arrasta chinelo e exibe a esposa com pompa pela pista de dança.
Durante o jantar, nos sentamos à mesa em volta dos noivos.
Por sermos os únicos completamente sóbrios, e eu temos a maior diversão ao ouvir os discursos alterados pela bebida. Renato, irmão mais velho de Ricardo, diz palavras emocionadas e ácidas ao mesmo tempo, nos fazendo nos entreolhar com estranheza e um riso engasgado.
— Ricardinho vivia trancado no quarto, principalmente depois de ter aprendido a brincar com o menino! — Tia Simone encara a mesa horrorizada, a bochecha apoiada na mão se enrubesce gradativamente. — Até hoje, quando estamos lá na casa da mãe, eu penso que ele está no quarto, lendo revistinha, ouvindo música… Sinto sua falta, maninho! — Renato se perde nas próprias palavras, a emoção é tamanha que ele se abstém de concluir o discurso. O homem chora alto, deixando todos na mesa constrangidos e com expressões diversas de desespero.
Tento entender o lado do homem, é difícil lidar com a distância entre estados. Mesmo que eles tenham a disposição, não é simples para eles se encontrarem de uma hora para outra.
Observo Ricardo apoiar o irmão, ele se levanta e algumas palavras de carinho são trocadas em um longo e apertado abraço.
— Você tem que dizer alguma coisa! — Simone gruda as unhas no braço de , que reclama em um grito mudo.
— Dizer o quê?! — a encara incrédulo, depois olha para o salão repleto de familiares e amigos.
— Qualquer coisa melhor do que a imagem do Ricardo “brincando com o menino”! — Ela cospe as palavras, me fazendo rir. A mulher me lança um olhar irritado e eu paro na hora.
— Desculpe — digo envergonhada.
— Eu sou péssimo com isso! — resmunga, sem vontade alguma de se levantar e chamar a atenção para si. — E é melhor com isso… — Ele tenta jogar a responsabilidade no meu colo.
— É o casamento da sua mãe e do seu padrasto. Agora oficialmente — suspira cansado.
— Por favor, filho. Você é coeso, inteligente e você me ama. Não quer que eu tenha memórias ruins desse dia, quer? — Ela pisca os olhos, as unhas ainda cravadas no tecido do blazer.
— Vocês duas me pagam! — Ele resmunga, se fazendo ser ouvido por nós duas, sentadas cada uma de um lado do rapaz tímido, que se levanta e bate o garfo da taça de água.
— Você consegue! — Incentivo, encostando minha perna na dele por baixo da mesa.
— Não sou muito bom com isso, então, sejam pacientes. — Ele avisa, encarando a taça e suspirando ao ouvir os risos espalhados entre as mesas no salão. — É um verdadeiro privilégio estar aqui hoje celebrando o fato de a minha mãe finalmente ter desencalhado! — Ele recebe um tapa de Simone e ri da própria brincadeira. — Desculpa. Só precisava quebrar o gelo antes de dizer o quanto estou feliz pelo Ricardo finalmente fazer parte da nossa família. Ele se dedicou. Bastante. arranca mais alguns risos, mas tem a atenção total de todos no recinto. — Ele é um cara legal. Além de fazer minha mãe feliz, o que não é uma tarefa fácil, ele é um bom amigo e se tornou um conselheiro pra mim. Não tenho como agradecer toda vez que você faz o ambiente se preencher ao fazê-la rir com suas piadas horríveis — Ricardo meneia com a cabeça, concordando em discordar. — Eu sei que você vai cuidar dela. É evidente que você está dedicado a ser o parceiro dela, até quando ela não tem nenhuma razão. O que eu entendo, não é saudável contrariar a dona Simone. Mas em cada detalhe, você demonstra ser perfeito pra ela. Eu desejo a vocês dois uma vida repleta de alegrias, amor e boas risadas. Que vocês possam continuar nos colocando no chinelo na pista de dança por muitos anos! — Simone sorri, se ajeitando no abraço do marido. — Quero propor um brinde a essa união mágica, que vocês continuem construindo essa história de amor verdadeiro. Seja bem-vindo, Ricardo. Eu te amo, mãe. Obrigado. — Toda sua timidez o toma por completo e ele esconde o rosto na curva de meu pescoço enquanto é aplaudido.
— Isso sim é um discurso! — Simone se aproxima, dizendo entre o sorriso. — Eu te amo, filho — Ela o beija na testa, limpando a marca de batom em seguida.
— Você é tão bom com as palavras! — franze o nariz, constrangido.
— Me sinto estranho com tanta gente me olhando.
— Acho que me apaixonei mais um pouquinho por você por causa desse discurso. — Junto os dedos indicador e polegar, ergue uma das sobrancelhas.
— O suficiente para finalmente sair daqui comigo? — Ele ameaça se levantar, já que Simone está ocupada recebendo bobó de camarão na boca, ela não se importará com nossa ausência. Pelo menos não de imediato.
não espera até estarmos sozinhos e logo me abraça pela cintura, fazendo minhas costas baterem em seu peito com certa força. O gemido alto e sugestivo que escapa por meus lábios é tão indesejado quanto a presença da mãe de Ricardo, por uma segunda vez no dia, enquanto interajo com meu namorado.
— Vocês não se desgrudam? — Ela pergunta perplexa, bastante incomodada.
— Ela é minha namorada! — se vê obrigado a explicar. A mulher rola os olhos e continua se arrastando de volta para a mesa dos mais velhos.
— Ela nos odeia. — Observo a senhora nos praguejar de longe.
— Definitivamente. Eu queria ligar pra isso, mas tenho outros planos. — beija meu pescoço, nos guiando para longe dos olhares reprovadores.
Fazemos o mesmo caminho do outro dia, desta vez mais lentamente, pois os saltos furam a terra sob meus pés e eu tenho de me esforçar para subir o morro.
— Você está linda, . Já te disse isso hoje? — me espera no alto do morro, com a mão estendida pra mim.
— Eu posso ouvir pela décima vez, sem problema. — O abraço pelos ombros, respirando fundo e me arrepiando com a brisa leve que nos encontra no topo no morro nesta noite de lua cheia.
— Você está deslumbrante — diz baixinho, encostando a testa na minha. Nós rimos da proximidade, mas continuamos assim. Tão próximos que nossos pensamentos se entrelaçam. — Eu quis mesmo dizer aquilo pra eles.
— Eu sei.
— Eu quero mesmo que eles sejam felizes. Só não queria ter me sentido tão excluído. — Ele dá de ombros.
— Eu sei. — Eu sorrio, suspira aliviado.
— Eu vou ficar bastante tempo sozinho… — Ele nos balança no ritmo lento do vento.
— Foi o que concluí... — Me preocupo com o rumo da conversa. — Vocês vão vender a casa? — Pergunto fingindo indiferença, o que percebe imediatamente. Ele está encarando minha alma escancarada.
— Ok, o que está havendo aqui? — Ele me afasta pela cintura, me encarando suspeito.
— Nada. — Minha voz sobe algumas oitavas, deixando a mentira explícita. chega a rir.
— Desembucha, bonitona — diz divertido e eu não consigo não rir junto.
— É que a sua mãe disse umas coisas… Eu não tinha pensado nessas coisas antes, mas ela disse. — me encara atento, meio que mordendo o interior da bochecha em antecipação. — Agora que nós estamos falando disso, eu… Eu não sei o que dizer! — Coço os olhos e tento organizar melhor os pensamentos antes de voltar a falar.
— Ah, não… Ela fez com você também? — parece preocupado. — Eu não acredito na minha mãe, ela enlouqueceu de vez!
— Ei! Estamos sequer falando da mesma coisa? — Ele respira fundo.
— Ela sugeriu que você fosse morar comigo, não foi? — rola os olhos quando eu assinto devagar. — Isso é loucura. Não é?
— Ah, é… Loucura total. — Começo a pensar no tempo em que passamos juntos e como tudo seria tão mais fácil e economicamente simples.
— Nós deveríamos fazer as coisas no nosso tempo! — Sugere vendo a ausência de expressão em meu rosto internamente conflituoso.
— Você está certo. Não é porque a vida delas está mudando que a nossa precisa mudar também! — não entende de cara do que estou falando. — A tia Vanessa vai morar com o Alê, em breve — Dou de ombros e ergue uma das sobrancelhas.
— Sério? — Ele morde o interior da boca, intrigado.
— Eu estou sempre sozinha em casa, não é como se fosse mudar muita coisa. — Rio um pouco triste e ele pega minha mão, entrelaçando nossos dedos carinhosamente.
— Você deve estar preocupada e ansiosa como o inferno com isso. — supõe e eu gargalho.
— Acho que estaria se fosse um cenário diferente, mas confio no Alê e acredito na tia Vanessa. Se ela acha que é a coisa certa, eu acredito. — Ele ri de leve.
— Não ia achar tão ruim morar com você. Sua casa é muito mais legal que a minha — diz despretensioso.
— Exatamente por isso que eu quero aproveitar ela sozinha. — finge ser atingido no peito.
— É justo — pondera. — Acho que vou arranjar um colega de quarto.
— Nada de garotas! — Digo rápido, emendando uma palavra na outra.
— O quê?
— Nada — ri, eu rio.
Ficamos por isso mesmo.
Voltamos para a festa e animamos um pouco mais a pista de dança.
Em algum momento após o DJ chegar, os saltos se empilham ao lado da pista e todos se alinham para dançar coreografias atemporais de É o Tchan!.
A noite toda é tão deliciosa e memorável. Todos se divertem bastante e aproveitam da boa comida e bebida na companhia uns dos outros com tanto entusiasmo que realmente dá a impressão de que uma grande e barulhenta família está se fundindo.
Os noivos são os que se divertem mais, eles mergulham noite à dentro, dançando uma música após a outra.
Ao subirmos para os quartos, perto do amanhecer, estamos todos exaustos.
se livra dos sapatos e do blazer do terno. Eu deixo os saltos perto dos sapatos dele e deito ao seu lado ainda com o vestido que permaneceu impecável até o fim da festa.
— Obrigado por me acompanhar. — resmunga, bêbado de cansaço.
— Eu adorei — digo esbarrando os lábios nos dele, sinto um sorriso se formar contra eles.
— Eu adoro você — diz sonolento, os olhos já estão fechados.
apoia a mão em minha bunda e adormece quase que instantaneamente. Eu me aconchego em seu peito e fecho os olhos pelo que parecem ser poucos minutos, mas já é tarde quando acordamos. O sol se faz presente e o dia claro é convidativo.
Um churrasco à beira da piscina nos espera lá fora.
Após um banho gelado, tento reaproveitar o penteado da noite passada de um jeito fofo e descontraído. O vestido de noite é trocado por um mais leve, mais curto, infinitamente mais sem graça e meus pés não aceitam nada além um chinelo confortável.
, nós temos que descer — aviso enquanto borrifo perfume no pescoço.
— Só mais dez minutos. — Ele voltou a dormir depois de tomar banho e nem terminou de se vestir.
… — Volto a chamar, quase cantarolando. Ele responde na mesma melodia em um resmungo, me fazendo rir.
Vou até a janela e fecho mais as cortinas, nos dando alguma privacidade. Vou até ele e me sento sobre suas pernas, tocando seu abdômen e passeando com os dedos pelo cós de seu short.
— O que você quer? — Ele ainda está de olhos fechados, mas o sorriso safado que mantém no rosto me incentiva a continuar.
— Acordar você. — Inclino o corpo para frente, deixando meu hálito bater contra a pele exposta de sua barriga. Os músculos se enrijecem quando eu deixo uma trilha de beijos descendo em direção ao short de pano mole que cobre seu corpo.
— Eu não acho que vá funcionar… — abre os olhos imediatamente quando envolvo seu pau em minha mão, massageando a glande com a língua.
— Tem certeza? — Subo os olhos até os dele, bem abertos.
Ele morde o lábio inferior, observando enquanto o chupo.
— Quem estava cansado? — Ele devolve, respirando fundo ao jogar a cabeça para trás, apreciando o que faço.
O masturbo com uma das mãos enquanto sugo a glande, ouvindo meu namorado gemer sob meus toques e ficando cada vez mais envolvida com minha própria brincadeira.
Meus pelos se arrepiam com suas respostas, fico molhada quando lhe dou prazer assim. Quando me empolgo de verdade, sinto uma movimentação e abro os olhos, vendo mexer na própria mochila.
— O que você está procurando? — Pergunto risonha vendo tanto desespero.
— A porra da camisinha! — Diz apressado, me fazendo rir mais.
Quando ele finalmente a encontra, a entrega pra mim e eu sei exatamente o que fazer. Com certa habilidade, coloco a camisinha em e me posiciono sobre seu pau devidamente vestido.
— Não vai nem tirar a calcinha? — pergunta confuso e animado.
— Eu quero você agora! — O desafio com uma sobrancelha erguida.
... — sorri enviesado, levantando meu vestido até a cintura e enchendo a mão para deixar um tapa bem dado em minha bunda.
Ele afasta minha calcinha, esbarrando os dedos em meus clitóris, iniciando uma leve carícia.
Gemo seu nome em êxtase e ele ajeita meu quadril sobre ele, xingando qualquer palavrão que vem à sua cabeça quando eu rebolo em seu colo.
Abafo o gemido lânguido da primeira estocada com uma mordida em seu ombro, me mexo lentamente, rebolando e sentindo por toda a parte.
Ele mantém meu corpo perto do dele, não dita meus movimentos, mas se delicia com sua autonomia. Suas mãos às vezes estão em minhas coxas e bunda, em outras, em minha cintura e costas, me abraçando em busca de mais contato.
Seus beijos em meu pescoço são hipnóticos e eu me perco na sensação por um momento, aumentando a velocidade em meus quadris, o chocando contra e gemendo cada vez mais alto.
No corredor, as conversas ficam cada vez mais densas, nos fazendo considerar inconscientemente que se podemos ouvi-los, é capaz de que eles também possam nos ouvir.
Mesmo mordendo o lábio inferior e tentando minimizar os sons que faço, fica impossível. Encaro como se pedisse por sugestões e ele umedece os lábios.
— Foi mal... — diz baixinho antes de se inclinar em minha direção e tapar minha boca com a palma da mão.
Sinto algo incrível se misturar com o tesão que já estou sentindo. Minha mão vai de encontro com a dele, mas não estou tentando tirá-la, e sim fazer com que ele intensifique mais a pressão contra meus lábios entreabertos. parece entender o recado.
Levado pela novidade, rapidamente inverte as posições, ficando por cima de mim. Ele beija meus lábios, levantando minha perna e a apoiando em sua cintura. Depois, ele volta a tapar minha boca com força e me mostra logo em seguida o porquê.
Experimento um novo tipo de sexo: selvagem, indiscreto, devasso, avassalador e tão bom que parece errado. Incrível.
As estocadas são rítmicas, profundas, quentes e rápidas. Tudo começou com uma brincadeira para acordar , agora que a missão foi cumprida, sou eu quem está quase apagando de tanto tesão.
Uma de minhas mãos deixa de arranhar suas costas, e segue o caminho até meu clitóris. Começo a estimulá-lo, me sentindo ficar fora de mim e desalinhada da melhor forma possível.
Como se estivesse ao avesso. Sensível ao toque, escorregadia.
— Adoro quando você faz isso. — cochicha em minha orelha, tomando cuidado para não atrapalhar os movimentos de minha mão.
Em um certo ponto, ele esquece de me impedir de gemer, harmonizando os próprios gemidos com os meus. Quando começo a beirar os gritos, ele volta a tapar minha boca.
Seu rosto está próximo do meu e eu não consigo evitar olhá-lo fundo nos olhos entre piscadas descoordenadas de paixão. Seu maxilar travado e o olhar devoto me arrepiam a espinha. Seus olhos brilham intensamente, penetrando minha pele e me intoxicando permanentemente.
morde o lábio inferior, quebrando o contato rapidamente, só para me ver sob ele, me contorcendo de prazer.
Ele está arfando e algo me diz que está perto do próprio clímax. É quando ele dá estocadas ainda mais fundas, mais lentas e completamente enlouquecedoras.
Um grito esganiçado é abafado por sua mão na hora certa, denunciando meu orgasmo e o sorriso libidinoso no rosto de mostra que ambos estamos satisfeitos com ele.
— Te machuquei? — Ele pergunta, me dando vários beijinhos nos lábios entreabertos em busca de ar.
— Só o suficiente — digo rouca e ele ri.
— Sua safada! — Me dá um beijo mais longo e se levanta em direção ao banheiro.
— Bom que você parece energizado, você terá de me carregar a partir de agora. — Mexo as pernas uma contra a outra, aproveitando a sensação gostosa dos espasmos restantes. Ouço sua gargalhada e em seguida, batidas na porta.
Ajeito a calcinha e o vestido, me sentando na cama rapidamente. A porta se abre e é Priscila, ela sorri sem jeito quando me vê.
— Bom dia — diz com pouca vontade e eu aceno com a cabeça. — Oi, . Dormiu bem? — Ela se anima ao ver meu namorado sem camiseta saindo do banheiro.
— E aí… Dormi sim e você? — pergunta educado, buscando a peça de roupa sobre a cama.
Ô, se dormi — Ela sorri abertamente, mostrando a fileira de dentes amarelados.
— Eu achei o colchão meio desconfortável… — Comento, chamando a atenção dos dois.
— Achei que estivesse acostumada com dificuldade. — Priscila deixa no ar.
— Nós já vamos, Pri. Pode esperar lá fora? — é solícito, chega até a abrir a porta pra ela sair.
— Ela com certeza sonhou com você… — digo baixinho, fazendo rolar os olhos enquanto tranca a porta.
— Você é tão malvada! — Ele cruza os braços, meio constrangido.
— Vai dizer que não percebeu? — O encaro com os olhos cerrados, desconfiada de que ele esteja gostando da atenção.
— Certo, eu percebi. Mas não era assim antes de você. — Ele ri nervoso, me fazendo franzir a testa incomodada. — Eu não era exatamente um solitário, mas também não era todo confiante e confortável perto de mulheres. Agora é como se eu não precisasse me preocupar com que elas pensam de mim… Quer dizer, você é minha namorada. Eu não preciso me importar com o que ninguém pensa de mim. — termina de se arrumar, passa o braço pelo meu ombro e sorri, me encarando até eu sorrir também. — Assim é melhor.
— Não é como se eu pudesse culpá-las, você fica cada vez mais gostoso. A cada dia que passa. Que ódio! gargalha enquanto abre a porta.
Um verdadeiro comitê nos espera no corredor, responde aos muitos desejos de bom dia com somente um, bem tímido e comedido. Ele beija minha testa e involuntariamente — ou nem tanto assim —, entrelaço nossos dedos sobre meu ombro.
Fico feliz por fazer parte do seleto grupo de mulheres felizes com seus pares nesta festa de casamento.
O forró e o sertanejo tomam de conta de nossos ouvidos, animando os mais velhos e até as crianças, fazendo com que eles dancem em qualquer lugar na festa. Em pares ou sozinhos.
Os acordes apaixonados, embalam os músculos mais rígidos, como os da mãe de Ricardo, que dança agarradinha com um dos netos mais velhos.
e eu partimos mais cedo que os outros convidados, ainda temos ensaio ao cair da noite e eu quase posso sentir as férias se esvaindo por entre os meus dedos.
Mal chegamos na minha casa, já nos trocamos e descemos aos tropeços com a bike escada abaixo, apressados e prestes a nos atrasar.
Ao chegarmos no antigo galpão, vejo começar a se preparar. Ele se alonga a cada passo que dá, usando a porta para esticar bem os braços.
— Ainda dá tempo de fazer isso, calma… — Espalmo minhas mãos em suas costas e ele ri.
— Eu sei. Mas estou dolorido por uns esforços que andei fazendo… — Ele chacoalha as sobrancelhas e eu rolo os olhos, passando por ele. — Não vamos mesmo falar sobre aquilo? — Sua expressão deliciosa me faz parar alguns segundos para recordar a melhor forma de abrir o apetite de toda a história.
— Agora? Estamos atrasados — digo o óbvio, cumprimentando os que estão mais próximos de mim e não têm a menor ideia do que estamos falando.
— Hmm… — passa os olhos pela pequena multidão e estala a língua. — Não somos os últimos a chegar.
— Oba! — Sorrio animada. — O Gui e a Bia ainda não chegaram!
— Não sinto que seja uma vitória chegar somente alguns minutos antes deles… — torce os lábios, olhando por cima dos ombros para ver Guilherme e Bia descerem no ponto de ônibus logo adiante.
— Não é uma competição… Agora, anda! — Puxo pela mão, ele parece interessado demais no casal se aproximando apressados.
Com todos presentes, o ensaio começa sem interrupções. O tempo é um fator crucial e cada minuto em que estamos juntos é aproveitado para aperfeiçoar e incrementar detalhes que se tornam necessários quando lapidados e executados com o fervor apaixonado, aceso pela competitividade promovida pelo líder, pela oportunidade.
É a chance do Funkz de se restabelecer e pelo o que vejo a cada ensaio, é que a ideia vai se manter viva para além da competição improvisada. Jorge pode ser temperamental, mas é um bom líder. Justo e democrático, como deve ser no caso de um grupo cheio de gênios fortes e sentimentos conflituosos à flor da pele.
— Galera… — Jorge pede para que o conselho que se formou organicamente se reúna após o longo ensaio. Leah, Jorge, Amália, Vinícius, , Tati e eu nos sentamos em um pequeno círculo confortável, trocando ideias. É quando Jorge desdobra um grafite desenhado em papel, nós nos empurramos para tentar ler o que está escrito ou muito mal desenhado ali. — Precisamos de novas camisetas!
— Você desenhou isso? — Vinícius pergunta com a cabeça inclinada e a cara de quem chupou limão.
— Desenho não é bem o meu forte, mano. Mas essa parada me acordou de madrugada e eu precisava compartilhar… É isso. — Ele empurra a folha de papel amassada na direção de e ele suspira antes de se inclinar e pegar o desenho.
— Tudo eu! — Resmunga desgostoso, analisando o desenho e depois lançando o desenho em direção ao amigo. — Não vou estampar isso. Me desculpe a franqueza, mas sua inspiração noturna te deixou na mão. O que é isso no lugar do que deveria ser um Z? — Pergunta desanimado.
— Então, aí é que ‘tá, cara… Eu sonhei com uma de nossas batalhas. Lembra do efeito que o Otavio e o Pedro costumavam fazer? O Otavio saltava por cima, fazendo o “homem inclinado”. Lembra? — O rapaz chega a se levantar de tanta empolgação.
— Sim, o Pedro vinha por baixo, replicando a pose, mas lançando um power move enquanto nós entrávamos com krumping. Foi lendário! — Amália completa, os olhos brilhantes de nostalgia e admiração.
— Eu me lembro disso… — sorri de lado, as lembranças o fazem baixar a guarda por um instante. Mas logo ele encara o amigo com descrença. — Isso aqui nem de longe se parece com a pose que eles formavam! — Ele aponta para o Z no desenho que nem se parece com a letra. Não se parece com nada, só uns rabiscos de boné.
— Eu tenho algumas fotos dos ensaios, podemos digitalizar a imagem de alguma forma? — Leah oferece, os olhos cheios de compaixão tentam determinar nas linhas do desenho de Jorge qualquer coisa com que ela possa se identificar. — Gosto da cor, azul claro é a cara do Funkz 2.0.
— Podemos deixar os detalhes em branco mais acentuados, diminuir a letra e tirar o excesso de… O que é isso? — Tati pergunta, fazendo Jorge bufar irritado.
— Brilho. — Ele responde sem vontade, me fazendo rir baixinho.
— Certo, acho que posso fazer isso acontecer — diz Tati, animada com o curso de edição de imagens que mal começou e já surtiu efeito em suas criações.
— Com o desenho atualizado e a imagem digitalizada, não tem motivos pra você não estampar algumas camisetas… Vamos lá, você é o único que pode fazer isso por nós! — Jorge junta as mãos, implorando para que meu namorado desfaça a expressão desinteressada.
— Na verdade, você prometeu que me ensinaria a arte da serigrafia, lembra? — Me viro pra ele, que sorri de lado.
— Esqueço que você se lembra das coisas — diz cansado, se alongando logo atrás de mim.
— Quer dizer que se a sua namorada te pede algo, você faz? — Jorge parece ofendido, o que me faz rir.
— Basicamente... — o encara como em um desafio. Jorge o encara de volta, boquiaberto.
— O que foi, Jorge? Se arrependendo de ter perdido a única garota que te aturou como namorado? — Amália provoca, ajeitando o cabelo do rapaz.
— Você nunca me aturou… — Ele se desvencilha do carinho dela, deixando o clima vago demais.
— Eu faço as camisetas — diz , só para evitar que o antigo casal comece a se engalfinhar diante de nossos olhos.
— Eu ajudo! — Encaro com uma felicidade quase infantil. Jorge sorri aliviado.
— Vocês são tão fofos, tenho vontade de vomitar! — Ele mantém o sorriso, olhando de mim para .
— Eu ia dizer isso! — Amália empurra o braço de Jorge, contrariada.
— Vocês ainda têm tanto em comum… — Comento brincalhona, me divertindo com a expressão enojada de Amália.
— Nunca mais! — Ela diz pra mim, mas olha pra Jorge, que lhe sorri enviesado e deixa de dizer coisas que ficam estampadas em seu rosto.
Se fôssemos fazer uma camiseta deste momento, eu adicionaria corações por toda a parte.
Jorge engole em seco, bastante envergonhado. Ele olha pra mim por alguns segundos, mas logo desvia, escondendo de mim os resquícios de uma vontade há muito tempo adormecida em seu peito.
— Passo na sua casa pra deixar as camisetas essa semana... — Ele avisa, acertando alguns detalhes com sobre tecidos que não me prendem, pois estou exausta.
Após a menos comum das segundas-feiras, tomo um banho e como um pedaço de bolo de casamento que estava dando sopa sobre o balcão da cozinha e mesmo cansada, sinto que o sono se esvaiu. Entediada, vou até o computador e o abro, sabendo exatamente que o programa de produção musical está aberto e as várias barras representando componentes de minha mais nova criação me cumprimentam felizes ao me ver.
Ouço duas vezes, parando quando a música se iniciaria por uma terceira vez.
— Ainda falta alguma coisa… — Bagunço meus cabelos, coço os olhos. Fico um bom tempo encarando a tela do computador, esperando que ele fale comigo e me diga o que eu quero saber.
Eu sei que um computador comporta as infinitas possibilidades do saber, mostrando milhares de formas diferentes de alcançar determinada informação. Mas sem uma pergunta, como ele saberia do que preciso agora? Mais metais? Um grave mais poderoso? Baixos envolventes ou uma guitarra pesada em um solo infinito?
Começou como parte do projeto para a competição, algo novo e completamente autoral para preencher algumas lacunas. Mas então, ganhou força e agora não sei o que fazer com a canção que faz morada em volta de mim, mas ainda não consigo expressá-la do jeito que a sinto.
Cansada e bastante frustrada com minha própria criatividade, decido me deitar e me distanciar do problema.
Encaro o teto esperando o sono vir e junto com ele, um sonho esclarecedor.
A manhã seguinte chega cheia de novas perspectivas, não as que eu esperava para minha música, mas para minha carreira como produtora em si.
Parte dessa empreitada maluca e agitada, é encontrar talentos de artistas que complementem minha visão e me ajudem a trazer projetos à vida. Neste caso, é a visão de Leah que precisa ser revelada. Com isso em mente, uso a manhã de minha última manhã de terça-feira livre para encontrar Tauany.
Leah vem me cobrando não tão sutilmente pela nona integrante de seu ato na competição. Eu disse a ela que se não encontrasse alguém que pudesse me substituir na nona posição, eu voltaria atrás, dançando uma última vez ao seu lado.
Acontece que não quero mesmo fazer isso, além de ter uma ideia muito melhor.
— Por favor! — A garota é sisuda, difícil de dobrar. Mas prometi a Leah e farei o que for preciso, inclusive implorar.
— O que eu ganho com isso? — Tau sacode o black power azulado, piscando os olhos grandes e intimidadores em minha direção.
— Minha eterna gratidão — digo rápido, ela ri nasalado.
— Esta moeda está em baixa na minha economia — comenta tranquila, me fazendo rir.
— Por favor, eu prometi à minha amiga. Você pode participar só dessa parte, não precisa se preocupar com o restante da coreografia. Eu faria isso, mas odeio competir e… — Engulo em seco, jogando minha última carta: a competição.
— Espera, quem serão os jurados? — Ela finge desinteresse, mas sei que ela está caindo na minha armadilha.
— Ouvi dizer que o Nelson Triunfo estará por lá… — É mesmo uma possibilidade. Nelson é um dos precursores do breaking dance no Brasil, é mágico como ele se divide em centenas de pedaços para aparecer em eventos pequenos como o que estamos organizando. É mesmo um homem humilde, que nunca esqueceu de onde veio e apoia os que estão começando, além de incentivar a arte por onde passa.
Ele tem orgulho de dar pequenas palestras sobre a fundação na zona sudoeste da cidade de São Paulo, que faz o serviço de, por intermédio da arte, educar, conscientizar e recuperar jovens das ruas. É um trabalho bonito e que merece todo e cada espaço para ser lembrado que existe.
— Jura? — Assinto devagar. — Eu topo — Ela xinga baixo, provavelmente fazendo contas matemáticas e mapeando todo o seu deslocamento até Guarulhos.
— Eu te ajudo com a passagem — complemento rapidamente.
— Acho bom mesmo! — Ela ri, envolvida pelo meu poder de persuasão. — É melhor a coreografia ser bacana também! — Avisa com seu pequeno indicador em riste.
— Isso eu posso te garantir. — Ela bate palmas animadas.
Mais tarde, Tauany e eu colocamos nossas mochilas nas costas e partimos rumo ao pesadelo astral dela, mas ao que eu chamo de lar.
Chegamos ao fim do ensaio dos rapazes. Os sons dos pés fincando no chão no ritmo da música é energizante e assim que entramos na sala, somos recebidas com entusiasmo.
— Então, esta é a sua solução? — Leah ajeita as longas tranças, encarando Tau da cabeça aos pés.
Eu contei tudo sobre Leah, então, Tauany a vê como a verdadeira deusa que ela é.
— Eu não tenho dúvidas — digo sorrindo para Tau, que morde o interior da boca.
— Vamos começar, então! — Leah marca os passos devagar, vejo as meninas se ajudando e repassando detalhe por detalhe enquanto Tauany aprende a coreografia.
Gosto de voltar a observá-los do conforto do banco de madeira.
Do lado oposto do galpão, os rapazes parecem estar conseguindo evoluir nos saltos acrobáticos e tudo está correndo tão bem, me dá a pretensão de começar a achar que podemos mesmo vencer essa coisa, afinal.
Ver Tau se dando tão bem com minhas amigas me faz sentir bem, também. Mas além da sensação de ser como um elo unindo partes de meu pequeno mundo, sinto uma pontada de uma saudade ácida, quase azeda. Saudade de alguém que desperta o melhor e pior de mim.
Lucca.

— Eu não estou afim de atender o telefone, mas pode ser que eu te mande uma mensagem depois. Tchau! — A voz de Lucca soa debochada em sua caixa postal pela segunda vez na noite e eu começo a me preocupar com a ausência da tal mensagem.
Me sinto mal por ter passado quase um mês inteiro de férias, com bastante tempo livre e só agora me lembrar de meu amigo.
— Nada do Lucca? — pergunta, se jogando na cama ao meu lado, balanço a cabeça e deixo o celular perto de meus pés. — Ele vai ligar.
— Eu sei… É só… — Finjo um sorriso que é recebido com certa desconfiança e é merecida, já que quero mudar de assunto e eu sei o quanto meu namorado detesta que eu faça isso. — Podemos fazer as camisetas amanhã?
— Acho que sim, ainda estou esperando a Tati terminar a edição da imagem. — Ele se deita mais confortável, ajeitando os cobertores sobre nós com bastante atenção.
— O Jorge já conseguiu as camisetas? — se levanta novamente, pegando o celular sobre a cômoda e digitando rapidamente.
— Obrigado por me lembrar… — Ele ri sem jeito, voltando a se deitar.
— Falo com Tati amanhã de manhã — digo me ajeitando também. Seu corpo quente é mais que necessário para anular os 19° lá fora.
— Certo. Obrigado, linda — Ele beija minha bochecha. — Boa noite!
me abraça e logo adormece, eu fico olhando as cortinas dançarem em frente a janela, banhadas pela luz tímida da lua.
Passo os olhos pelo quarto, vendo nossas coisas juntas bagunçando seu quarto e tudo parece tão corriqueiro e familiar.
Nossos tênis com as meias meio enfiadas para dentro ficam juntos perto da cômoda, em uma das gavetas da mobília, uma blusa de alças finas pende para fora. Assim como meu desodorante fica perto do dele na penteadeira do guarda roupas. É onde ele fica.
— Será que é tão loucura assim? — Cochicho baixinho, deixando que a vontade avassaladora tome conta de meu peito, só um pouquinho de cada vez. Como se acomodasse a ideia em minha cabeça.
Me acostumei com o ressonar tranquilo de , na verdade, não consigo contar quantas noites passei em claro pela falta que sentia da vibração de sua respiração me acalmando, de sua mão firme em minha cintura, me afastando dos pesadelos. De sua presença forte e segura, me fazendo sentir forte também.

Será que é tão loucura assim?


ATO IX

Crescendo com mais bocas para alimentar do que mãos trabalhadoras em casa, minha família nunca teve que se planejar para experiências divertidas nas férias. Nós não tínhamos grana para viagens, nem parentes morando relativamente longe para visitarmos. Éramos só nós três, partilhando do calor e do tédio no mês de julho. Mas Pedro, sendo ele a personificação da alegria e da hiperatividade, criou para nós, as crianças, uma espécie de gincana que pudesse nos manter entretidos durante as longas semanas sem nada para fazer. Não era nada muito elaborado, na verdade; a simplicidade da coisa toda era o que mais me atraía a participar. Pedro me fazia escolher uma atividade de que gostasse muito de fazer, dar uma nova chance a algo que odeio e encontrar algo que ainda não tenha tentado e praticar até ficar boa o suficiente naquilo, para decidir se gosto ou não. O fato era que ajudava bastante. Não só com o tédio, ou com as redações espirituosas que as experiencias me rendiam.
Foi assim que encontrei o violão, nas férias de julho de 2001. Era algo que eu nunca havia tentado antes e eu pratiquei o suficiente para me apaixonar pelas cordas. Naquele mesmo ano, descobri que, definitivamente, odiava a cor amarelo. A redação daquele ano foi inteira baseada na tristeza que senti quando uma das cordas se arrebentou, fazendo um som perturbador, que me deixou inquieta. Foi Pedro quem me mostrou como trocar as cordas e afiná-las em seguida. No ano seguinte, mudei de ideia e tudo o que eu possuía tinha um tom claro de amarelo, inclusive o violão.
Eu não me lembro exatamente quando começamos a tratar essa gincana como tradição, ainda assim, por vários anos, me vi sendo responsável por minhas próprias preferências, por aprimorar meus gostos, aprender coisas novas e praticar com afinco para buscar excelência. E tudo isso graças à Pedro e seu empenho em ajudar as pessoas a evoluírem.
Ele queria que eu crescesse e encontrasse em mim a minha personalidade. É uma lição e tanto.
Prestes a entrar na minha última semana de férias da faculdade, me peguei pensando no quanto fiz coisas de que gosto muito, mas não aprendi nada novo. Talvez, se eu me esforçar bastante, possa encaixar a minha recente amizade com Bia na coluna das coisas das quais eu odiava e mudei de ideia. Só que não me parece suficiente.
É esta sensação de estar devendo algo à tradição que me faz levantar animada logo cedo, vestir uma camiseta velha que posso sujar de tinta e caminhar determinada pelas ruas. Primeiro passo pela casa de Tati, depois vou a todo vapor para a casa de .
Enquanto espero que ele abra o portão, crio um diagrama mental para entender toda a mobilização necessária para que as camisetas novas do Funkz fossem feitas. Tudo começa com Jorge batendo perna no Brás em busca de camisetas brancas de qualidade e com um bom preço. Enquanto isso, Tati e seus colegas do curso de edição digital passaram uma aula inteira criando uma arte à partir da ideia abstrata do b-boy. Com a arte feita, ela encomenda a impressão das imagens em um filme especial chamado fotolito na gráfica do bairro, que é o mesmo lugar onde compra o material necessário para as impressões no tecido. Além de tintas e emulsificantes, encomenda com o marceneiro alguns cortes de ripas de madeira em dois tamanhos diferentes, na intenção de montar telas retangulares com uma folha de poliéster bem esticada no centro delas. Tudo isso para podermos começar a estampar as camisetas.
Vejo todos os materiais reunidos sobre a mesa e os encaro, me esforçando para que meu cérebro não desmonte no processo de compreender o que é necessário para que tudo aquilo se transforme em uma camiseta estampada no final.
tem um ar divertido e sonolento, ele me olha como se lesse as milhares de perguntas, que nem sei como fazer, surgindo em minha cabeça.
- Quer começar? - A voz ainda rouca de sono soa baixa, mas ele está tão empolgado quanto eu.
Como um excelente professor, é generoso e explica as minúcias de cada passo do que estamos fazendo com paciência.
- Como isso se chama? - mistura duas substâncias viscosas, de cheiro forte e cores nada convidativas. Ainda assim, estou convicta de que manipular produtos químicos de forma clandestina nunca fora tão sensual.
- É uma emulsão. Nós misturamos estas resinas com o sensibilizante fotossensível que, exposto à luz, endurece e se torna uma camada resistente para receber a imagem. - Ele separa o pequeno pote com a tal emulsão, me fazendo borbulhar em antecipação.
- E agora nós vamos pra parte de imprimir? - ri, balançando a cabeça de um lado para o outro.
- Vamos deixar que a emulsão descanse um pouco. - Ele me abraça pelos quadris, apoiando o queixo em minha cabeça. - Está vendo aquelas bolhas? Quando elas estourarem e a emulsão estiver completamente homogênea, nós podemos continuar. - Ele mantém o tom macio na voz, tão calmo e tranquilo. É a fórmula perfeita para me fazer entender algo complicado e, melhor ainda, gostar muito da experiência.
- Ainda não entendo como vamos passar o desenho por esta tela - digo desconfiada, fazendo gargalhar.
- Tenha mais fé, criança. - Ele me balança de um lado para o outro. - A emulsão cria uma película na tela, certo? Quando imprimirmos a imagem nessa superfície, vai ser como queimar pontos específicos, criando buracos minúsculos que é por onde a tinta vai passar e pintar a zona selecionada no tecido. - Ele fica atento ao tempo no relógio em seu pulso, vez ou outra, dá uma olhada na emulsão e se certifica de que tudo esteja organizado e pronto para ser usado.
- Ainda não faz sentido – digo afetada, teimosa.
ergue uma das sobrancelhas, repreendendo minha insolência em silêncio.
- Vai fazer sentido quando gravarmos as telas – diz paciente, me passando uma delas.
- É agora que usamos a calha? - Pergunto animada, segurando o objeto em mãos.
- É, sim. – me deixa fazer tudo com calma, dirigindo meus movimentos. - Um pouco mais de emulsão - delega enquanto vejo a mistura esverdeada e grudenta cair lentamente na calha.
Tenho medo de minha empolgação ser demais e acabar fazendo besteira.
- E agora? - Me viro em sua direção, um pouco insegura sobre o que fazer em seguida.
- Eu posso te mostrar como fazer nesta aqui e você faz na próxima, pode ser? - Assinto rapidamente, trocando de lugar com ele. Pelo que me foi explicado antes, a emulsão se acumulando no canto da tela não é boa coisa. - Seus movimentos devem ser precisos, mas delicados. A ideia é passar uma camada fina de emulsão sobre os dois lados da tela, igualmente. - Ele faz com destreza, com a praticidade que a experiência lhe proporciona.
- Me diz se eu fizer algo errado... - Começo temerosa, apoiando uma das telas sobre a mesa da cozinha.
- Deixa eu te ajudar. – se posiciona atrás de mim, os braços fortes acompanham os meus, ele posiciona minhas mãos com firmeza, uma segura a moldura, a outra mantém a calha levemente inclinada sobre a tela de poliéster. - Devagar… - Sussurra em meu ouvido, encostando o corpo no meu e movendo minhas mãos com gentileza. Satisfeito, ele gira a tela e repetimos o processo do outro lado.
Depois da segunda tela, tenho alguma ideia de como seguir criando a base da impressão, mas não acho de todo ruim as instruções que sussurra em meu ouvido, mantendo meu corpo pressionado contra o dele.
Fazemos uma tela para cada componente do desenho, divididos entre os fotolitos. É imprescindível que a ordem das telas esteja sempre bem organizada, serão várias camadas como um quebra-cabeças que se empilha e no fim, as várias imagens formam uma só.
As cortinas estão fechadas e escolheu este ambiente por conta da luz amarelada da cozinha, evitando o desgaste imediato da tela e o fácil acesso à área de serviço.
- Um pouco mais de força... - Ele toca meu pulso, sorrindo ao me ver terminar a última tela com certa apreensão. - Profissional! - Rio baixinho com sua gentileza.
faz uma análise rápida nas outras telas, se certificando de que a camada de emulsão esteja proporcional em todas elas. Após termos certeza de que é seguro descartar uma nova demão de emulsão, passamos para a secagem.
Passamos algum tempo segurando secadores de cabelo em frente as telas, com cuidado e atenção.
- E agora? - Bato as mãos uma na outra, empolgada.
- Espera um pouco... – me deixa na cozinha e entra no próprio quarto, quando sai de lá, ele carrega uma caixa de madeira enorme nos braços.
Ele posiciona a geringonça sobre a mesa e eu vejo as muitas lâmpadas tubulares e fluorescentes lá dentro. O encaro com a testa franzida em desentendimento e ele me sorri abertamente, orgulhoso.
- O que é isso? - Pergunto, olhando dele para a geringonça empoeirada.
- Minha reveladora! - Ele se anima, apoiando a mão sobre ela com carinho. - Eu construí quando tinha uns doze anos. Ainda funciona, quer ver? - Ele liga a reveladora na tomada, ligando as luzes em um botão suspeito e quase me cegando no processo.
- O que isso faz, além de queimar as córneas de trouxas desavisados? - Aperto os olhos até que ele desligue as luzes, um resquício de seu riso zombeteiro me faz rir também.
- Foi mal! - Ergo a perna, mas mal chego a acertá-lo na coxa. desvia ainda rindo. - Primeiro, temos que posicionar o fotolito no local exato onde queremos que o desenho fique na camiseta. - Ele marca o desenho na tela já seca, prendendo os cantos com um pedaço de fita adesiva em cada ponta do impresso.
Vejo que entrar em contato com seu antigo passatempo deixa empolgado também, então não fico incomodada com a parte do processo que ele faz praticamente sozinho. Gosto de observá-lo concentrado e segurando um sorriso infantil entre os dentes enquanto se delicia com a própria habilidade.
Com certa rapidez, cobre as lâmpadas com uma tampa de vidro e posiciona a tela com o fotolito sobre ele. Por cima disso, uma toalha grossa e preta garante que a revelação ocorra sem problemas, e, pressionando todas as camadas para baixo, ele empilha uma série de livros grossos.
olha para o relógio novamente, depois encara a reveladora e estala a língua dentro da boca.
- Demora muito? - Ouso perguntar, fazendo cerrar os olhos em minha direção, ofendido.
- Dois minutos e meio, para ser exato. – Ele ergue uma das sobrancelhas, me olhando de cima a baixo. - Como quer matar esse tempo?
- Eu tenho uma ideia…
- Adoro suas ideias! - Quando me aproximo dele, me ergue sobre a mesa, apoiando as mãos sobre ela.
- Eu sei. – Ele se aproxima mais e o sorriso de moleque arteiro se altera ligeiramente em um muito mais difícil de ignorar.

Tudo o que esquenta, uma hora precisa esfriar. Às vezes só água se livra de resíduos com eficácia e é exatamente isso que fazemos com uma mangueira no quintal.
- Consegue ver a imagem abrindo? - diz empolgado.
A imagem da tela aparece clareando o conceito pra mim também. Finalmente tudo faz sentido. Rio ao identificar o contorno daquilo que Jorge jurou serem dois b-boys dançando, agora muito mais delineados, sua ideia não parece tão ruim assim.
- Posso tentar? - solta a mangueira, a qual eu pego em menos de um segundo. Ele a posiciona próxima tela e se delicia com minhas reações entusiasmadas com a mágica de sua habilidade, que agora posso dizer que aprendi e que gosto bastante.
Com generosidade, calma e uma atenção minuciosa para os detalhes, passa a tinta na tela, que se prende no tecido branco da camiseta e, uma após a outra, o desenho reformulado de uma nova era visual do Funkz nasce.
Ajudo a estender as camisetas no varal para secarem e vejo as diferenças nos tamanhos com muita ansiedade. Não vejo a hora de estarmos todos uniformizados, prontos para a batalha.
Com o trabalho feito, recebo um beijo na têmpora de surpresa.
- Obrigado pela ajuda. – Apoio a cabeça em seu braço, sorridente e ligeiramente cansada de tanto aprendizado. Mas feliz por ter continuado com a tradição de meu irmão.
- Obrigada por ter me ensinado a arte da serigrafia, mestre. – ri fraco, balançando a cabeça de um lado para o outro, modesto. - Se nada der certo, você pode viver da venda de camisetas estampadas – digo no ímpeto de exaltar seu trabalho exuberante com materiais improvisados, mas acabo por atingi-lo de alguma outra forma.
- Muita coisa precisaria dar errado pra eu acabar nesse caminho. - franze o nariz, descartando a ideia imediatamente.
- Como assim?
- Quero me distanciar dos passos do meu pai a qualquer custo, . Isso é divertido, mas, não dá futuro. - Com um suspiro profundo, começa a guardar os materiais restantes. - Ele tem uns trinta negócios furados como vender camisetas, por exemplo. Não quero acabar como ele, sozinho e falido. - Ele ri sem emoção.
- Vocês têm algum contato? - Pergunto receosa de que minha curiosidade seja o suficiente para magoá-lo.
- Não mais. Acho que é melhor assim, a bagunça dele só ia deixar minha mãe triste. - Dá de ombros, parecendo estranhamente bem com isso.
- E quanto a você? - Volto a perguntar insistente e ele sorri triste, olhando de relance para a pulseira trançada em seu pulso.
- Ah, você sabe. Se ela estiver bem, eu estou bem. Nós não precisamos mais dele.
- Entendo. - levanta os olhos, me estudando com a atenção de sempre. Ele sabe que é diferente pra mim.
- Não consigo perdoar a estupidez deles. Você é alguém que vale a pena observar crescer. - é sincero, demonstrando a indignação com meus pais por serem ausentes.
Eu venho tentando evitar pensar neles e na falta que sinto da época em que éramos uma família de verdade. Nós quatro.
Não tenho muitas lembranças completas daquela época, mas um fragmento daquela sensação ainda vive em mim e é por causa dela que minhas esperanças não morreram completamente, só estão encolhidas e escondidas dentro de mim, para que não possam me impedir de continuar seguindo em frente.
Tenho medo de deixar que a ausência deles me transforme em alguém que não aprecia aqueles que ainda estão aqui.
- Que pervertido! – Comento em um sussurro, tentando aliviar a tensão do assunto.
- Não desse jeito, trouxa… - Ele ri, voltando sua atenção ao armazenamento correto do restante dos materiais espalhados sobre a mesa. - Eu não tenho culpa de você ter ficado tão gostosa nos últimos anos! – se defende, me fazendo gargalhar e expurgar os demônios em minha mente.
Nunca vou me sentir verdadeiramente completa. Eu sei disso e fiz minhas pazes com este fato. Sempre vão faltar as partes que se perderam, a que nunca mais vai voltar. Eu perdi tanto, mas também ganhei muito mais do que poderia esperar.
As evidências disso estão por toda parte, nas camisetas novas do Funkz secando lá fora, esperando para serem usadas com orgulho. Estão nas almofadas enfadonhas e coloridas que me cercam quando sento no sofá da casa de , e principalmente, no amor que compartilho com as pessoas ao meu redor. É como se tivessem me tirado o chão, mas de alguma forma, eu ainda consigo caminhar. Talvez eu esteja voando, sei lá. É meu dever me preencher com a vida em volta de mim e ser grata pela força de ser minha própria pessoa, com a sorte de estar cercada de pontos de referência de muita confiança.
Eu nunca estarei sozinha.

- É isso, seus desgraçados! Sumam daqui. - Jorge recupera o fôlego, após um ensaio intenso e exaustivo antes da batalha contra o Monsters.
Os nervos estão à flor da pele e ele usa toda oportunidade que encontra de nos fazer rir e cumpre sua missão, como um líder dedicado, orgulho e, acima de tudo, grato aos esforços da equipe. E que equipe! Sempre fui fã do estilo plural do Funkz, que quebra moldes e inova de forma surpreendente, mas eles se superaram desta vez.
Não vejo a hora de vê-los performar tudo o que vieram ensaiando nas últimas semanas.
- Mas é melhor vocês voltarem para a festa, mais tarde. Não me façam ter que ligar! - Leah adiciona, antes que a sala se esvazie por completo.
- Eu já vou ficar por aqui mesmo… - Amália se joga no chão, ficando imóvel logo depois. Ela poupa energia até ao respirar.
- Nosso trato não envolvia festinhas, – diz Tauany, sisuda.
Ela não parece exausta como o resto de nós, mas energizada pela competição que está tão perto que seus olhos brilham intermitentes. E eu sei porque ela passou os últimos dois dias na minha casa, a garota está fervorosa. Tudo o que ela faz é em prol da competição. A dedicação voraz dela me faz sentir péssima por comer mal e dormir pouco a maior parte dos meus dias.
- Eles ficam em volta de qualquer caixa de som e chamam de festa – explico na expectativa de que minha amiga aceite ficar também para comemorar o fato de termos conseguido passar um mês juntos sem que ninguém se ferisse gravemente.
Independentemente do resultado da competição, passar tanto tempo juntos, trabalhando pela mesma razão, faz as pessoas se aproximarem. E nós ficamos próximos, alguns mais que outros.
Pelo menos as brigas pararam e essa vitória eu aceito de muito bom grado.
- Eu não estava reclamando, adorei a ideia! Ainda bem que sempre saio de casa prevenida – diz maliciosa, olhando por cima dos ombros.
- Prevenida? - Olho em volta, buscando pela possível nova vítima dos charmes mortais de Tauany.
- Eu trouxe um look de festa! - Ela explica, animada como só ela.
- Então, vamos começar a nos arrumar! - Amália volta a se mexer, a possibilidade de se vestir bem a faz ressuscitar.
- Eu ainda tenho que trabalhar… - Suspiro já exausta e ouço minhas amigas me vaiando. - Alguém tem que pagar as contas! - Devolvo parcialmente irritada por ter sido gongada por ser responsável.
- Podemos ficar na sua casa, então? - Amália ignora minha irritação, se apoiando em meu ombro. - Não vamos mexer em nada, prometo! - Ela completa, me fazendo erguer uma sobrancelha em hesitação.
- Sem bagunça! - Me vejo obrigada a adverti-las previamente.
Eu não as culpo por quererem passar tanto tempo em minha casa. O lugar exala energia feminina e a tranquilidade necessárias para relaxar após um ensaio como o que tivemos e, não menos importante, nos preparar apropriadamente para uma festa.
- Confio em você! – Entrego o molho de chaves para Tauany, ignorando a expressão nitidamente ofendida de Amália.
- Anos de amizade… - Ela comenta baixinho, desgostosa.
- Exatamente por isso! - Toco a ponta de seu nariz, enfurecendo a garota, que me castiga com seu poderoso dedo do meio coberto por anéis.
Nos dirigimos para a saída do galpão de ensaios e eu deixo que minhas amigas andem um pouco mais adiante. Procuro pela melhor carona do lugar e sorrio quando o encontro acertando detalhes da coreografia com Felipe. Seu charme e gingado ainda não deixaram de me surpreender, além da evolução em sua confiança. Que é exatamente o que o está ajudando a desenvolver agora.
- Se solta um pouco, eu consigo perceber que você está contando os passos. Quero ver você se divertindo. De novo, vai lá... - se posiciona, repetindo a parte da coreografia com, pelo menos, metade da energia de sempre. Felipe se empenha mais, mostrando a ele o que pensa em fazer. Vejo fabricar uma forma de corrigir alguns detalhes sem quebrar o espírito aventureiro de Felipe, que é resiliente, mas não de ferro.
- Eu entendi o que estou fazendo de errado. - Ele sorri, sem jeito. - Eu tenho dificuldade com essa parte, então, preciso contar e saber para onde tenho que ir depois do braço e tal… - explica apreensivo, mas sorridente por identificar onde precisa trabalhar mais.
- Vamos juntos… - fica ao seu lado, observando atentamente passo a passo. - Pra esquerda, Lipe. Dois, três, parou. É isso! - Ele comemora dando vários tapinhas na nuca de Felipe, que reclama, mas está rindo aliviado.
- E tem que fazer tudo isso com um olhar matador no rosto – interrompo a celebração para ver Felipe ruborizando lentamente.
- Tenho que trabalhar nisso também… - Ele coça o olhos, exausto.
- Uma coisa de cada vez, cara. – apoia a mão em seu ombro, chacoalhando um pouco o amigo. - Não esquece de se divertir e tudo o que fizer lá vai valer a pena. – Felipe volta sorrir constrangido, mas agradece a ajuda de e se despede brevemente de nós.
- Está tão perto de acabar! - chega a me levantar do chão com um abraço empolgado, me pegando de surpresa. - Preciso dormir! - Eu rio de seu desespero, compartilhando de sua necessidade por descanso.
- Não diga essa palavra, eu vou… - Cubro a boca, bocejando. - Trabalhar ainda! - Reclamo muito mais chateada do que realmente estou, só para ser amparada com muitos beijos estimulantes.
- A que horas você quer que eu te pegue mais tarde?
- Não precisa, as meninas vão ficar na minha casa e nós voltamos juntas. – Ele assente devagar.
- Isso parece perigoso… - Imito seu gesto, rindo maliciosa.

Mais tarde, após negociar um meio período na lanchonete, seu Valter me libera mais cedo e eu me junto às garotas no andar de cima.
Tento ignorar a bagunça em minha casa - normalmente bastante organizada - em nome do ritual que vejo se formar no lugar. Por causa da música alta, roupas estilosas espalhadas por todos os lugares, vozes agudas fofocando e uma energia intensa de preparação para algo grande se acumulando por todos os cantos, fico exposta ao contágio imediato e não demora até que eu esteja me decidindo sobre o que vestir também.
A pressão pela competição fica em segundo plano e fica fácil aproveitar o momento e a companhia uma da outra. Se me dissessem há algumas semanas que eu estaria trocando dicas de maquiagem com Ariane em um clima totalmente amigável, eu riria. Mas agora, é nítido que, o que se parecia com um pesadelo pra mim, acabou por ser uma experiência interessante.
Não é tão ruim assim aumentar os limites dos horizontes quando o assunto é amizade.
- Eu preciso dizer que fiquei surpresa quando você se pronunciou sobre o Gui! - Amália cutuca Ariane, que imediatamente cobre os olhos com uma mão, completamente envergonhada.
- Eu fiquei quieta por tanto tempo, porque achei que foi uma verdadeira bênção divina ter perdido a vez pra , mas, eu precisava xingar ele. Em público. - Ariane explica, fazendo muitas cabeças balançarem em concordância.
- O Gui desperta isso nas pessoas… - Amália avalia, pensativa.
- E você, , qual é a sua? - Ariane se vira em minha direção. Eu paro de ajeitar os brincos, dando total atenção a ela. - De alguma forma, você acabou ficando com o cara que eu queria. Duas vezes seguidas. Como faz isso? - Ouço os murmurinhos acalorados das outras meninas, entrando na brincadeira.
- Eu não fiz nada. Eles só vieram até mim – digo tímida, sendo engolida pela onda de gozação das outras. Os gritos em diferentes tons preenchem a casa, me fazendo sentir que disse algo proibido. Bem, o barulho e o olhar mortificado de Ariane, fixo em mim.
- Eu soube que até o Jorge tentou sua chance… - Amália soa magoada e eu me sinto obrigada a me defender, só não sei exatamente como.
- A se tornou um mulherão e chamou a atenção de um, dois ou praticamente todos os caras que conhecemos. E daí? Isso não é culpa dela. – Tati intervém, chamando a atenção dos olhares curiosos para si com confiança. - Tratem seus cotovelos doloridos e vão atrás do que vocês querem! - Aconselha, me deixando orgulhosa e constrangida na mesma medida.
- Desde quando você é corajosa assim? - Ariane pergunta ligeiramente ofendida, mas um sorriso brincalhão esboça em seu rosto.
- Eu tenho irmãs mais velhas que são incrivelmente lindas e inteligentes, tive que desencanar desse tipo de insegurança cedo na vida… - Explica, fazendo com que um assunto se inicie entre as duas. Apesar de acalorada, a discussão parece produtiva e é bacana ver Tati nessa posição.
Nós duas crescemos muito nos últimos meses.
- Estou pronta! - Tauany exibe o conjunto de short e jaqueta de couro, com uma blusinha brilhosa transparente por baixo. Os cabelos estão partidos ao meio, presos no alto da cabeça, adornados por presilhas coloridas em formato de borboletas.
- Eu também! Quem mais falta? Estamos ficando sem tempo… - Tati reforça o gloss nos lábios e também parece ter terminado de se aprontar.
- Só um minuto! - Amália pede com a voz arrastada, sua concentração está em passar o lápis de olho na linha d’água sem lacrimejar.
Antes de sairmos, percebo que Ariane ficou para trás e começo a me preocupar com retaliações no futuro.
- Então, sem ressentimentos? - Ela evita olhar diretamente nos meus olhos, me deixando insegura sobre o que sentir.
- Claro – diz rápido, dando de ombros. - Acho que a Tati tem razão. Fora que você e o formam um casal lindo, não demorei muito tempo pra perceber isso. – Ela ri sem jeito, me deixando constrangida também.
- Valeu... – Troco o peso do corpo de uma perna para outra, percebendo que o conforto nessa nova amizade ainda não é completo.
- Eu só queria te dizer pra ficar de olho no Gui com aquela coisinha frágil. Ela confia demais nele… - Ariane cruza os braços na frente do corpo, mas espera que eu divida meus pensamentos acerca do assunto. Até hoje de manhã, eu não teria me preocupado tanto, mas depois do ensaio, Guilherme e Bia foram para casa e ele não foi trabalhar na lanchonete como disse que faria. Apesar das falhas e da inexperiência, esta é a primeira vez que ele falta ao trabalho e essa não é a atitude do novo Gui no qual quero tanto acreditar.
- O Gui tem sido vigiado de perto, mas não acho que a Bia seja frágil. Você só precisa conhecê-la um pouco mais, vai perceber a verdadeira força dela. - Rio de leve, me sentindo diferente em relação à garota, aos poucos e muito lentamente.
- Tanto faz… Quer dizer, você sabe. Ninguém merece o mal que o Gui pode causar, todo cuidado ainda é pouco. - Ela dá de ombros, me fazendo concordar.
- Eu sei. – Nos encaramos por um momento e ela suspira pesado, eu diria até que um pouco entediada. - Vamos? - Forço um sorriso educado, a apressando um pouco, já que somos as únicas ainda na parte de cima da escada.
Se há uma forma de saber o que está havendo com Guilherme, é pressionando-o. E é o que eu pretendo fazer.

Caminhamos em pequenos grupos pelas calçadas, os braços entrelaçados em cumplicidade e os risos debochados cheios de confiança, ecoando pelas ruas, captando a atenção até dos mais distraídos que passam por perto. Uma nuvem perfumada nos acompanha a cada passo ousado que damos em uma sincronia involuntária.
Nos abstemos da simplicidade e conforto dos tênis, calças de moletom e camisetas extra largas para esbanjar de corpo e alma no glamour da noite guarulhense; com vestidos e saias de tecidos leves e brilhosos, shorts apertados mostrando o alto das coxas, tudo adornado com lantejoulas coloridas. A noite estrelada parece brilhar ainda mais por nossa causa.
Paradas diante do galpão, é Tauany quem pergunta se estamos no lugar certo. Acontece que toda a poeira acumulada do lado de fora do antigo galpão foi dizimada, deixando a fachada com uma aparência nova.
- Parece reformado! - Ela se surpreende ao ouvir que os rapazes passaram boa parte da tarde limpando o lugar e o deixando com uma cara mais saudável.
Pela porta aberta, posso ver que não somos as primeiras a chegar, pelo contrário. O restante do grupo já está reunido, além de seus convidados.
- Onde vocês estavam?! - Leah mantém o vinco flexionado na testa, passando os olhos pelas nossas roupas, uma por uma. - Estão perdoadas... - Ela cruza os braços e volta para dentro, batendo os pés nas rasteirinhas confortáveis que ela já disse odiar milhares de vezes, mas com os pés inchados com a gravidez avançada, é o único par que lhe serve e os deixam respirar.
- Vocês deram um trato no barraco, parabéns! - Amália elogia o trabalho da tarde de Jorge e outros b-boys. O rapaz assente rapidamente, distraído com o acender de um cigarro preso entre seus lábios. Seus olhos dão passadas rápidas pela garota, o fazendo queimar o dedo com o isqueiro.
- 'Tá gostosa, Amália - diz sem vontade. Mesmo assim, ele não consegue deixar de espiar as coxas grossas da b-girl tão perto de si.
- Eu sei! - Ela rebola para longe dele, vindo em minha direção. - Ele ainda está olhando? - Assinto discreta, achando todo esse joguinho deles hilário.
Ao entrar no galpão limpo e organizado para abrigar uma festa de verdade, procuro pela outra metade do relacionamento mais estável que conheço. Ao encontrá-lo, ele já está olhando pra mim e ignorando qualquer coisa que Vinícius esteja lhe dizendo.
Me aproximo devagar, vendo seu sorriso ficar cada vez maior. está sentado no banco de madeira, mas se levanta quando chego perto dos dois.
- Saindo daqui... - O rapaz reclama desgostoso, claramente cheio de inveja.
- Oi – digo devagar, começando a me sentir constrangida com o jeito como ele estuda a fenda estratégica em meu vestido curto, deixando boa parte de minha perna exposta.
- Oi… - Ele umedece seus lábios, gostando muito do que vê.
- Preciso sentar! - Reclamo cansada, rindo de suas sobrancelhas erguidas em alerta.
- Sorte sua, eu tenho o melhor acento da casa. – Ele volta a se sentar no banco, dando dois tapinhas na própria coxa. Eu não resisto e ajeito o quadril em seu colo.
- Sem safadeza! - Aviso ao perceber sua mão subindo por minha coxa descoberta.
- Então, levanta! - Ele ameaça me empurrar, mas só me ajeita melhor sobre ele, me fazendo rir. Ele encosta o peito forte em minhas costas, me puxando para ainda mais perto. - Vestido bonito. É seu? - Assinto devagar, assumindo a compra impulsiva que fiz no dia anterior. A influência de Tauany ficando em minha casa não é nada boa.
- Por quê? - Pergunto curiosa, o caminho de seus dedos subindo por minhas costas parecem desligar parcialmente meu cérebro e eu esqueço momentaneamente onde estou e o que estou fazendo.
- Porque essa fenda me deu ideias agressivas, não sei se iria gostar que eu o estragasse... – diz baixinho, mordiscando o lóbulo de minha orelha.
- Sim, eu quero! - Escapa por meus lábios, o fazendo rir rouco.
- , vem cá! - Amália me chama animada, ela está parada diante de uma mesa cheia de petiscos e bebidas. - Você precisa experimentar isso!
- Quer alguma coisa? - Pergunto para , que nega rapidamente.
- Vá comer alguma coisa, você vai precisar de energia – diz devagar, batendo a palma da mão em minha bunda, me fazendo levantar e praticamente correr para a mesa.
No centro do galpão, meus amigos não perdem tempo e já estão dançando como não houvesse um amanhã garantido. Se divertindo assim, eles nem parecem o mesmo grupo tenso do ensaio de horas antes.
- O que é isso? - Pergunto ao passar os olhos pelos quitutes dispostos sobre a mesa. Estou mesmo com fome e considerando meus planos para mais tarde, devo evitar os salgados com temperos fortes, como cebola e alho. Rejeito a coxinha dourada e gordurosa brilhando para mim sobre as outras tão aparentemente deliciosas quanto, o que me resta é um bolo de chocolate sem calda, nitidamente solado.
Os quadrados parecem ter sido cortados por uma colher, o que os deixa em formatos que eu quero acreditar que são quadrados. Mas poderiam ser perfeitamente heptágonos empilhados uns sobre os outros.
- É bolo, ué... - Amália responde o óbvio e corta um pedaço grande ao meio para dividirmos. - Come devagar!
- Eu sei. Não tenho a menor intenção de ter má digestão esta noite. – O tom malicioso escorrega por meus lábios sem que eu perceba, denunciando meus planos.
- Esse comecinho de namoro é precioso… - Seu sorriso adota uma nota melancólica. - Se eu não fosse tão viciada nela, talvez pudesse me acostumar com a próxima fase.
- Que fase é essa? - Pergunto curiosa, não faço ideia do que ela está falando.
- Aquela fase em que você se sente segura para ser você mesma, poder dividir qualquer loucura que vier a cabeça e ainda saber que a outra pessoa ainda vai continuar te amando. - Amália desabafa, me deixando constrangida pelo conjunto de informações que ela despejou sem nem me envolver na história primeiro. - É o Jorge, … Eu não consigo parar de pensar nele. - O som de entendimento que faço é alto e esclarecedor.
- Acho que estamos nessa fase há algum tempo… O e eu. Talvez já tenhamos começado nesta fase – digo pensativa, vendo que ela continua sorrindo triste. - Desculpa, não queria tripudiar...
- Eu sei, relaxa. O lance com o Jorge foi culpa minha, ele estava investido. Eu só achei que alguém melhor apareceria e você sabe, estar apaixonada por alguém novo é viciante. – Dá de ombros, cortando mais um pedaço do bolo. Não tenho alternativa, a não ser dividir com ela mais uma vez.
- E apareceu? - Pergunto de boca cheia, ela nega.
- E agora, o bonde passou… - Ela o busca com os olhos, vendo que ele se diverte com os amigos e divide uma dança animada com Tauany.
- Eu não teria tanta certeza. Ele pareceu magoado quando vocês tocaram no assunto, no outro dia. - Tento animá-la, mas não parece possível.
- Eu fiz besteira, ele tem razão em estar chateado. – Ela volta a me olhar, meio sem esperanças.
Mas eu sou insistente, a romântica incorrigível dentro de mim simplesmente não aceita que as coisas não se resolvam entre eles.
- Eu acho que isso significa que ele ainda sente alguma coisa por você. Eu posso estar falando besteira, mas alguém que não sente nada não fica tão chateado… De onde eu vejo, ainda tem solução… - Amália analisa minhas palavras com atenção. Ela enche um copo pela metade de uma bebida âmbar e vira o conteúdo de uma só vez na garganta. Ela bufa amarga, chacolhando a cabeça para os lados.
- Me deseje sorte! - Ela ajeita o decote do vestido, andando destemida até o ex-namorado.
Eu espero não tê-la aconselhado errado, só lhe disse o que eu vi durante quase um mês de convivência de perto com os dois e suas lamúrias mal resolvidas. Tão ensurdecedoramente silenciosas.
Eles são adultos, o que decidirem é responsabilidade deles.
Certo?
Devidamente alimentada com generosos pedaços de um bolo ligeiramente seco, denso e solado, como previ, decido fazer meu caminho de volta para o banco e enrolar um pouco mais antes de escapar dali, com me guiando para qualquer lugar onde possamos ficar sozinhos.
- Eu adoro os seus amigos! - Tauany grita bem perto de mim, interceptando meu caminho. Com a chegada abrupta de Amália, ela se retirou com estilo e não perdeu o ritmo.
- Eles são incríveis! - Olho para o galpão cheio de alegria de novo e suspiro aliviada, feliz.
Não achei que fosse ver tal cena de novo.
- O que é isso? - Tau pega um pedaço de bolo também. - Um gostinho de chocolate na boca não faz mal a ninguém! - Ela dá de ombros, mordendo um pedaço generoso.
- Quero saber quem fez esse bolo. Tem um fundo interessante no gosto, não sei dizer o que é – digo pensativa, minha amiga cerra os olhos e parece não fazer ideia do que estou falando. Tauany não sabe cozinhar nada além de macarrão instantâneo.
É engraçado ver, pela segunda vez, uma de minhas amigas beber álcool para ajudar o bolo a descer pela garganta. Não parece uma mistura nada agradável e sua expressão azeda me faz rir muito. Ela chega a me oferecer um gole e eu recuso.
- Eu quero ficar alerta hoje...
Do outro lado do galpão, Vinícius tenta recomeçar a conversa de antes, mas não tira seus olhos de mim. Eu o vejo fingindo interesse, balançando a cabeça e concordando, mas seus olhos deixam mais do que nítido que sua mente não produz nada bom, para minha sorte.
A música para de repente, evidenciando um soluço feminino vindo da porta.
Bia tem o rosto inchado, vermelho e lágrimas grossas molham suas bochechas trêmulas. Todos os olhares se direcionam para Guilherme, ao lado dela. Ele está pálido, de olhos arregalados e ofegante.
- O que você fez? - Leah é quem o puxa pela gola do uniforme da lanchonete, encarando o rapaz profundamente.
- Ele não fez nada, Leah. Foi culpa minha! - Bia intervém, tentando se colocar entre os dois a qualquer custo, é quando entro no aglomerado de pessoas para defender a segurança de meu sobrinho.
- Devagar! - Empurro Bia com força, que me olha cega de desespero.
- É isso o que ele faz, você acredita que é culpa sua quando ele é o monstro! - Ariane comenta, ácida.
- Eu não fiz nada. Eu juro! - Guilherme levanta as mãos, assustado. - Foi a minha mãe! Acho que… - Leah o solta, empurrando o rapaz pelo peito. - Ela me expulsou de casa – diz Gui, ajeitando a gola da camisa polo.
- Ela já não tinha feito isso? - Amália pergunta baixinho, fazendo o rapaz suspirar exausto.
- Eu estava indo trabalhar… - Ele começa, olhando pra mim.
- Nós estávamos no quarto… - Bia interrompe, percebendo que Gui titubeia em contar a verdade como ela é. - O Gui estava se preparando pra sair e nós… Vocês sabem, nós estávamos nos despedindo de forma entusiasmada e a mãe dele entrou no quarto sem bater. - Bia recebe reações variadas de compreensão. Quem nunca passou por isso que atire a primeira pedra.
- No meio da tarde? - Amália pergunta, incrédula.
- E por acaso tem hora para responder ao chamado da paixão? - Gui protesta, provocando uma reação generalizada de nojo instantâneo.
- Você é muito brega! - Leah rola os olhos, voltando para sua habitual indiferença em relação ao rapaz.
- Ela passou a tarde inteira xingando a Bia dos piores nomes possíveis. Eu nem sabia que mães sabiam xingar daquele jeito! - Guilherme recebe um olhar reprovador da namorada pela piada descabida, que enxuga mais uma lágrima grossa. - Eu tentei defender a Bia, acalmar minha mãe… mas deu muito errado. - Guilherme encara o chão, a voz trêmula ao se lembrar da tarde que passou sob o terror psicológico da própria mãe.
- Foi horrível! - Bia volta a chorar e se lança contra mim, me pegando de surpresa com seus braços finos em volta de meu pescoço.
- O...k… - Demoro até retribuir o abraço de que ela tanto parece precisar. Bia não fazia o tipo de garota que quebraria com a encheção de saco da mãe do Gui. Mesmo assim, lhe dou algum aconchego. Afinal, já estive no lugar dela antes, e a mulher pode mesmo ser uma megera.
É exatamente o que digo a ela.
- Ei! - Gui reclama, confuso e encurralado pela situação.
- Cala a boca, Guilherme. A sua mãe é péssima, não tem nem como discutir… - Leah pondera, deixando um carinho meio desajeitado no braço de Bia.
- Ela é um monstro! - Amália completa.
- É melhor encontrar um fantasma na cozinha no meio da noite do que topar com ela... – Ariane comenta, me fazendo rir. A dona Meire não é mesmo um amor de pessoa.
A conversa se estende entre insultos nem tão sutis à mãe de Guilherme, e, de forma menos sarcástica, palavras de apoio à Bia.
A garota faz questão de explicar que só tem “encontros íntimos” com Guilherme na casa dele, porque não é autorizada a receber visitas na pensão onde mora. E, ainda nas palavras dela, o Gui é alérgico aos produtos de limpeza que usam nos motéis.
- Seu infeliz, pão duro! - Jorge bate na nuca de Guilherme com um tapa que ecoa entre nós, desencadeando um riso mais lento vindo de Leah.
- Odeio esses caras que investem mais em seus tênis do que em suas garotas… - Ela reclama ácida, encarando Guilherme da cabeça aos pés. Ele usa um par de tênis caro nos pés.
- Isso foi um presente! - Ele se defende.
- Da sua mãe? - Jorge inicia a zoação, mas vejo Gui suspirar exausto de ser alvo de ofensas. E parece que ele fareja essa faísca de compaixão crescendo em meu peito.
- O que você quer fazer? - pergunta impaciente, vendo a troca de olhares entre mim e Guilherme durar mais do que ele pode suportar.
- Estou pensando em morar sozinho. - Guilherme estufa o peito e as risadas que acertam seu rosto não são o suficiente para desinflá-lo. - Eu sabia que vocês teriam essa reação, por isso ia pedir ajuda só pra . - Ele me encara perdido, desolado.
- Eu? - Todos olham pra mim e eu me sinto zonza. Tento me convencer de que é a atenção repentina, mas algo a mais acontece dentro de mim.
- Você é a única que sabe o que fazer quando esse tipo de merda acontece. Me ajuda? - Gui chega a se inclinar, buscando pela resposta imediatamente em meus olhos. Eu me afasto dele, olhando em volta e buscando por , que se materializa atrás de mim.
- O que você quer que eu faça? Não vou dividir meu quarto com você! - Tento disfarçar ao secar as lágrimas de Bia que escorrem por meu braço. Mas descubro que não há um jeito furtivo de fazer isso.
- Qual é a sua, Guilherme? - fica agressivo, percebendo que estou pra lá de desconfortável.
- Eu não sei o que fazer! - Ele solta os braços ao lado do corpo, despertando pena em todos que veem a cena. - Preciso de ajuda, galera. Eu só tenho vocês agora… - Ele olha por cima do ombro, derrotado.
- Eu estou realmente tocado com seu pedido sincero… Mas não tem o que eu possa fazer – diz Jorge, as sobrancelhas unidas em uma ligeira decepção.
- Vocês sabem que eu ofereceria, mas meus pais estão começando a aceitar mais gente em casa só agora… - Leah alisa a barriga, recebendo um sorriso compreensivo de Bia.
- Vocês vão morar juntos agora? - Ariane pergunta, descrente. Bia arregala os olhos, escolhendo o silêncio e o desviar agressivo de qualquer olhar curioso por sua resposta.
- Não, nós estamos começando a nos conhecer. Só eu preciso de um lugar pra ficar. - Guilherme explica, soando bastante racional e maduro, o que me surpreende. O Gui que conheci não seria capaz de lidar com as consequências de seu destino e daria um jeito de deixar outra pessoa resolver a situação por ele.
Um pouco desse instinto retorna aos olhos amendoados do garoto, quando ele me olha esperançoso.
Começo uma pequena oração, pedindo ao universo que nos rege que não permita que Guilherme diga o que acho que ele vai dizer.
- Posso ficar com você por um tempo? - Ele coça a nuca, sabendo a magnitude do que está me pedindo.
- De jeito nenhum! - Respondo, minha voz sendo duplicada pela de , que o encara absolutamente atordoado com o pedido.
- Você ficou louco? - pergunta como se fosse óbvio que a ideia é completamente insana.
- Estou desesperado aqui, você tem uma ideia melhor? - Guilherme insiste, então, eu começo uma nova oração. Nesta, eu peço que não faça o convite, mas, nem sei mais porquê me dou ao trabalho.
- Você pode alugar um quarto na minha casa… - não pensa direito, eu sei. Consigo ver em seus olhos que a ideia sai mal formada, ele só pensou na primeira coisa que servisse para deixar Guilherme o mais distante de mim possível.
- Sério, cara? - Gui parece emocionado, surpreso de verdade com a generosidade de .
Eu sinto alguma coisa também, só não sei bem o que é ainda.
- Não… - Eu rio, nervosa. - Né? - dá de ombros, analisando a situação impossível. - Não!
- Ele precisa de ajuda! - parece ler meus pensamentos, explicando logo porque diria algo assim.
- É, . Eu preciso de ajuda! - Guilherme provoca, me fazendo encará-lo com uma expressão fechada para suas gracinhas.
- Você faria mesmo isso por nós? - Bia flutua até ele, fazendo erguer uma sobrancelha ao ouvir o “nós”. Ela se joga sobre ele, o envolvendo com um abraço claramente desconfortável.
- Você é um homem melhor do que eu. Não tenho mais dúvidas! - Guilherme o abraça também, prendendo meu namorado em um sanduíche irritante de possibilidades ainda mais irritantes.
Sentindo minha cabeça rodar e meus olhos coçarem, dou meia volta, saindo do galpão e marchando o caminho de volta pra casa.
Preciso ficar sozinha com essa nova sensação tomando conta de mim.
Enquanto caminho apressada, me sinto estranhamente leve. Meus passos são precisos e consigo sentir meus músculos trabalhando para me levarem o mais distante possível do galpão onde todos os meus amigos ainda estão.
É estranho estar com tanta raiva e saber disso, mas não sentir a irritação borbulhando meu sangue como faz normalmente, me deixando cega, impulsiva e liberando uma agressividade que não combina com a pessoa que quero ser um dia.
Tem algo errado comigo. Definitivamente tem algo errado comigo.
- Você anda muito rápido quando está com raiva! - me alcança, ele está ofegante e eu o encaro com os olhos cerrados.
Estou brava com ele. Isso também é diferente.
- Acho que estou fisicamente dizendo que quero ficar sozinha... – devolvo ácida.
- Ai! - Ele reclama, dando mais alguns passos enérgicos, se colocando em minha frente. Me impedindo de andar. Me enfurecendo de vez.
- O que você quer? - encara minha agressividade com a cabeça inclinada para o lado, um olhar curioso e uma postura cautelosa.
- Quero conversar com a minha namorada. Será que você pode chamá-la, senhora personificação do caos? - Ele ri do novo apelido, eu não. Embora ache que sirva bem, pois sinto uma ligeira vontade de incendiar o planeta inteiro.
Não queria que ele me visse assim.
Não quando não conheço os limites dessa nova forma de sentir raiva.
- Eu não entendo. Por que você faria isso? Você sabe o que ele fez comigo. Como pode acolhê-lo na sua casa? Eu durmo lá! - Grito as perguntas em sua direção e elas são válidas, entende isso. Sou grata por ele entender a diferença e separar o tom irracional de minha voz, das questões que realmente devemos tratar.
- Eu sei – diz paciente, só agora ele teve coragem de me tocar. Sua hesitação me faz sentir como alguém que odeio e cada centímetro que ele se mantém distante me machuca tanto. - Mas eu não pensei direito, até pensar. Eu não vou mudar de ideia. – fala sério e eu fecho os olhos, respirando fundo. - Você deu uma oportunidade a ele e isso transformou aquele boçal em alguém minimamente decente. Eu só quero fazer a mesma coisa. Eu odeio o cara, tenho todos os motivos pra vê-lo na miséria e me alegrar com isso, mas por sua causa, não consigo mais ser assim.
- Eu dei um emprego a ele, não o coloquei dentro da minha casa! - Insisto, irredutível.
- … - Me desvencilho de seu toque, atravessando a rua. - Você vai mesmo continuar brava desse jeito? - Ele me alcança novamente.
- Você vai mudar de ideia? - Devolvo a pergunta, muito focada em estar certa.
- Não posso. É a coisa certa a se fazer, você sabe disso. - crispa os lábios, esperando que eu seja razoável. Surpreendendo à nós dois, bufo irritada e esbarro nele antes de continuar andando como se destruísse o chão por onde passo. - !
Ajeito o vestido conforme ele sobe em minha fuga. Não sei se estou sendo escoltada, mas é melhor deixar um pouco mais para a imaginação dos bêbados nas calçadas dos bares.
- Vai se foder! - Respondo irritada a um suposto elogio ou outro e recebo risadas como resposta.
Minha cabeça começa a pesar, meu coração palpita e não é pela caminhada enérgica.
Não entendo o que está havendo dentro de mim e conforme a atenção em minha revolta vai se dissipando, um deserto se instala em minha boca.
Que porra é essa?
Fico com medo, começo a hiperventilar e procuro por meu porto seguro.
E é sempre ele, meu anjo da guarda, que, apesar de minha petulância, está sempre de prontidão.
- Estou me sentindo estranha… - confesso meio sem vontade, meu desespero não é grande o suficiente para me fazer dobrar o braço assim tão facilmente. Mas o encaro com certa urgência.
- Como assim? - Ele pergunta interessado. As mãos nos bolsos, os cabelos sendo gentilmente bagunçados pelo vento. Eu quase esqueço que ele levou à máxima “mantenha seus inimigos mais próximos ainda” ao pé da letra.
- Minha boca está seca, eu consigo sentir perfeitamente o formato dos meus pés, meu coração está batendo muito forte e eu tenho quase certeza de que meus olhos estão cheios de areia. – Despejo meus sintomas um a um, piscando várias vezes.
crispa os lábios, segurando uma risada que me deixa ligeiramente ofendida.
- Você comeu o bolo de chocolate? - tem compaixão em seus olhos enquanto assinto devagar, mas ele está sorrindo abertamente demais. - Eu deveria ter avisado sobre eles, desculpe, linda. - solta uma risada adorável, mas que me deixa confusa. - Acho que você está chapada, amor. Quantos você comeu?
- O quê?! - Minha voz soa aguda demais para meus próprios ouvidos. Dar nome ao conjunto de sensações não me deixa menos irritada e começo a me preocupar com como isso pode terminar. - Ai, meu Deus. Eu quero vomitar! - Não quero, meu corpo não parece rejeitar nem um pouco as alterações, mas grande parte de mim quer que isso tudo pare.
- Calma, deixa eu te levar pra casa. – para de rir, entrelaçando os dedos nos meus e andando bem devagar ao meu lado.
Meus passos são cautelosos agora, eu faço esforço para parecer completamente sóbria e isso parece divertir meu namorado, que se deleita de forma comedida e até respeitosa.
- Ainda estou brava com você! - Deixo claro, o fazendo assentir vagarosa e carinhosamente.
Apesar de confusa, eu até gosto da sensação de leveza em meu corpo. Chego a rir baixinho dela, fazendo me olhar divertido.
Ele me leva para casa, me acomoda em minha cama e me serve, pelo menos, uns três copos com água. Desfaz o trançado das alças do salto e os deixa perto da cama, massageando meus pés, um de cada vez.
- Como se sente? - Pergunta receoso, ele está pensativo e tão sério.
- Com tontura e enjoo – digo entre um suspiro, os olhos fechados e a cabeça girando. - Eu vou matar a Amália, juro! - ri baixinho.
- Vai ficar tudo bem. Estou aqui com você, nada ruim vai acontecer. – Ele garante, tentando me tranquilizar, mas a sensação de que meu coração vai explodir a qualquer momento não passa.
- Eu estava planejando experimentar em um ambiente controlado, com calma - digo rindo, mas estou brava porque estou rindo de mim mesma.
- Você estava planejando fumar maconha? - Ele ri mais forte. - Quem faz isso?
- Alguém que não toma decisões do nada! Alguém que não é impulsivo! - Aponto o indicador em sua direção, me distraindo com ele por alguns segundos. - Eu odeio não conseguir me concentrar em ficar puta com você! - se deita ao meu lado apoia a cabeça nos braços cruzados e me encara como se me desafiasse.
- Sinto muito? - Ele provoca, esbanjando um sorriso lindo que faço questão de ignorar.
- Gostaria que o fato de você estar prestes a dividir sua casa com o Guilherme fosse parte dessa brisa indesejada. – Ele suspira pesado, voltando à uma seriedade intrigante.
- Você não acha que foi corajoso da parte dele ter pedido ajuda antes de fazer besteira? - Ele se vira em minha direção e apoia a mão em minha coxa. Como se testasse a temperatura da situação.
- Sim, mas será que ele não pode começar a resolver os próprios problemas sozinho? Você sabe, pra variar um pouco… - volta a rir, mas vejo em seu rosto que ele não concorda exatamente.
- Ele parecia bastante desesperado. E a Bia, coitada… Nunca a vi tão mal, ela estava soluçando. - Ele suspira de novo, encarando o colchão.
- Você vai mesmo ajudá-lo, não é? - Pergunto, mas sei bem a resposta.
- Estou tão confuso quanto você, . Não sei muito bem o que estou fazendo, ajudando um cara que desprezo, correndo o risco de te deixar permanentemente chateada comigo por causa disso. Mas é a coisa certa, eu tenho que ajudá-lo. Ele precisa da nossa ajuda – diz calmo, cheio de empatia e as palavras vem diretamente de seu coração enorme que, nem querendo, eu consigo detestar. - Me apoia nisso? Afinal de contas, é meio que por sua causa. – O encaro incrédula e ele rola os olhos. - Você me inspira a estender à mão até para o meu maior inimigo, você é boa assim. Lembra? - Ele me encara sério por algum tempo.
- Odeio quando você me dá bronca… - Meu murmúrio superficialmente amolecido o faz me puxar para um abraço que eu resisto no começo, mas me deito sobre seu peito com intenções egoístas. Um ritmo normal de batimento cardíaco pode inspirar o meu coração a voltar a se comportar.
- Odeia nada! - Ele faz um carinho gostoso nas minhas costas.
- Por que você e o Gui brigam tanto, afinal de contas? Eu sei que isso vem de antes de começarmos a namorar, então… Qual é a história? - Pergunto curiosa e desinibida.
coça a nuca, um pouco sem jeito.
- ‘Tá brincando? - Ele umedece os lábios, ficando empolgado. - Nunca vou perdoá-lo por ter chegado primeiro.
- Chegado primeiro em mim? - Ele assente vigorosamente.
- Eu queria que você me olhasse do jeito que olhava pra ele. Aquele imbecil nem percebia – diz irritado, indignado com minha falta de sorte no passado. - Se bem que… - cerra os olhos, uma malícia convencida toma seus lábios deliciosos. - Gosto mais do jeito que você olha pra mim…
- Ah é? De que jeito eu te olho, então? - Me inclino um pouco, tentando me concentrar em seus olhos e evitar que os meus passeiem livres demais por seu rosto.
sorri sem jeito, desviando o olhar por alguns segundos, só pra respirar fundo e me fazer pensar que o que ele sente por mim é grande demais para se pôr em palavras.
- Eu sempre recebo duas mensagens do seu olhar. Muito claras. - Ele fica sério, me explicando com certa propriedade. - A primeira, mais doce e que sempre me deixa tranquilo, me fazendo acreditar que posso fazer qualquer coisa. E a outra… Ah, a outra mensagem é difícil de ignorar, . - Ergo as sobrancelhas, interessada em sua análise.
- E que mensagem é essa? - Me aproximo sem nem perceber, esquecendo momentaneamente que estou brava com ele por qualquer motivo idiota que seja.
- Você me olha como se quisesse me beijar. O tempo todo – diz convencido, me fazendo rolar os olhos.
- Você é muito cheio de si. Como é esse olhar? - Me afasto dele, me sentando sobre suas pernas. Cruzo os braços na frente do corpo, me olha como se tivesse sido desafiado. Ele se senta no colchão, nos levando para mais perto da cabeceira.
- Você me olha profundamente, procurando minha alma. Então, morde o lábio inferior de leve e suspira devagar, relaxa os ombros para trás e inclina a cabeça um pouco. Fica me desafiando a chegar em você. Então, fica exatamente com esta cara de safada, eu não resisto… - suspira, levemente desesperado com as expressões que ele parece narrar em tempo real.
- Eu não faço tudo isso… - digo teimosa, constrangida por ser lida com tanta facilidade.
Ele balança a cabeça de um lado para o outro, me encarando incrédulo, entregue.
- Você ‘tá fazendo agora, ! - Comenta divertido.
O que seria de nossas vidas atarefadas se não tivesse auto controle por nós dois?
- E então… - Insisto desconfortável, mas assim como eu o fiz dizer exatamente as palavras, me castiga da mesma forma.
- E então, o quê? - Ergue uma das sobrancelhas, provocante. Mas sei jogar seu jogo.
E sou eu quem tem toda a vantagem que se pode ter nesta partida.
- Por que não está fazendo nada? - Ajeito os quadris sobre ele, fazendo o tal do vestido subir de vez, se enrolando em minha cintura.
engole em seco, impedindo um sorriso sem vergonha de aparecer.
- Você está brava comigo, lembra? - Cerro os olhos em sua direção. No fundo, me divirto com o homem lutando contra os instintos de colocar as mãos em tudo o que o vestido deixou de cobrir.
- E daí? - Dou de ombros, o encarando com uma birra fingida.
- Não me entenda mal, mas você dá medo quando está brava - diz cauteloso, a voz macia nem chega a soar como uma ofensa e eu me compadeço da necessidade dele de se manter a uma distância saudável. - Mas ‘tô querendo tirar esse seu vestidinho desde que te vi entrar no galpão…
- Você deu a entender que queria rasgá-lo – corrijo, o vendo suspirar frustrado. - Mas você não pode. Estou brava, tem razão... - morde o lábio inferior, processando as mensagens confusas que transmito.
Estou prestes a ouvir uma reclamação, provavelmente cheia de razão de meu namorado. Mas ele é impedido por um grito desesperado vindo da rua. Seja quem for, está com raiva, e chama por mim.
O maxilar de trava e ele vai apressado até a janela, voltando a me olhar com confusão nos olhos.
- Quem é? - Pergunto desinteressada, não estou esperando visitas.
- É o Gui… - Ele suspira, eu rolo os olhos. - O que você quer que eu faça?
Penso bem em minha resposta. Não quero me ressentir com , ao mesmo tempo que não quero impedir que ele siga seu coração.
Não posso impedi-lo de fazer algo bom, ele tem as razões próprias para acreditar que ajudar Guilherme agora é uma boa ideia.
Ajeito o vestido ao me levantar, calço os chinelos e o encaro meio impaciente.
- Vamos resolver isso de uma vez… - digo desgostosa, caminhando lentamente para fora de casa.
Vejo o desespero de Guilherme ainda do alto da escada. Ele caminha de um lado para o outro na calçada, as mãos tão inquietas quantos os pés e os olhos angustiados não me engolem por pouco.
Espero atrás do portão, avaliando seu estado mental antes de me envolver em mais uma briga com Guilherme.
Ele não me fará perder a cabeça. Não desta vez.
- Estou decepcionado com você! - Guilherme começa, a voz trêmula e os olhos se enchendo de lágrimas começam a me assustar um pouco.
- Acho que você deveria rever seus conceitos sobre decepção. Quem está desesperado por ajuda é você, não eu. - Percebo a presença de Bia quando ela me olha com mágoa.
Ótimo. Magoei o casal de pessoas de quem menos gosto.
- Isso é verdade, mas todo mundo esperava que eu fosse acabar desse jeito. A minha surpresa foi precisar da sua ajuda e ter as suas costas caminhando para longe como resposta. - Ele cruza os braços, nitidamente triste e por minha causa.
- O que você queria que eu fizesse? Tem noção de como é bizarra a ideia de dividir uma casa com você? Com todo o nosso histórico? - Gui toma algum tempo para cair em si e eu espero paciente que ele entenda minhas limitações. Quero ajudá-lo a se reerguer, dar chances para que ele se torne responsável, que ele possa restaurar sua preciosa imagem social, mas tudo dentro dos limites.
- Eu não esperava que fizesse isso. Entendo que não sou alguém em quem você possa confiar, mas esperava que me aconselhasse. Você é forte, . Sua força vai muito além de um soco bem dado, mas, algo maior. Você enganou o destino, escolhendo para onde sua vida te levaria. Eu só queria que você me mostrasse como fazer isso. Eu realmente preciso mudar o rumo da minha história e não conheço ninguém que tenha sido tão bem sucedido nisso quanto você. - Guilherme recebe o apoio da namorada, que segura sua mão com os dedos entrelaçados nos dele. Ela o encara orgulhosa, entendendo a dificuldade de Guilherme em ser honesto e se abrir dessa maneira. Olho por cima do ombro, vejo com as sobrancelhas erguidas, como se me perguntasse “e agora, linda?”.
- Não sabia que pensava isso de mim…- Fico sem jeito, ilhada por um mar de bondade que, aparentemente, eu ajudei a encher.
- Eu penso. Todos nós pensamos, na verdade. Temos orgulho de você, . Com tudo o que aconteceu, ninguém imaginou que você se tornaria alguém tão… - Guilherme estala os dedos, passando os olhos pela luz do poste em busca da palavra certa. Vejo que as lágrimas ainda estão se acumulando lá, assim como a verdade de alguém que precisou perder tudo para entender a grande piada que é a vida.
- Brilhante! - É Bia quem completa a frase, fazendo com que ele concorde veemente. Guilherme enxuga os cantos dos olhos, ainda esperando que eu diga algo que alivie o peso em seu peito.
Guilherme não foi bom namorado, não foi bom amigo, não foi bom filho. Mas tenho quase certeza de que ele está tentando ser uma pessoa melhor agora, e por isso, não posso ignorar essa faísca pulsante de esperança que se acende em meu peito.
Eu sei que meu irmão não pensaria duas vezes em ajudá-lo e vejo essa mesma vontade em , que apoia a mão em minha cintura, deixando claro que a decisão é toda minha.
- Eu não teria conseguido recuperar a minha vida das mãos do acaso se não tivesse a ajuda de boas pessoas. Uma mulher cheia de sabedoria me disse que é preciso uma vila inteira para que alguém possa voltar a crescer e eu não vou te impedir de experimentar a sensação de ser dono do seu próprio destino. – Guilherme esconde o rosto na parte de dentro da camiseta, seus ombros chacoalham e ele funga algumas vezes. - É melhor não fazer com que eu me arrependa disso, Guilherme, senão…
- Já sei, … Você vai me dar outra surra! - Ele seca os olhos, sendo amparado por Bia, que comemora em silêncio.
- Não, não vou ameaçar você desta vez. - Ouço a risada de , mas tento me concentrar. O futuro de um homem está nas minhas mãos e Guilherme é, claramente, alguém que pode acabar morto sem ajuda.
Não quero mais esse peso em minha consciência.
- Mas eu vou! - intervém. - Se você der motivos pra minha namorada ficar chateada comigo de novo, eu te dou uma surra. Sem brincadeira! - Ele avisa, o indicador em riste, apontado para o peito de Gui, que se enche em expectativa.
- O que é isso? É um sim? - Ele se ilumina com um sorriso esperançoso que me faz sentir quente por dentro.
- É… acho que sim… - Dou de ombros, esperando que os detalhes sejam discutidos entre as partes que dividirão o mesmo teto.
- Eu estou tão agradecido! - Gui abre os braços, ameaçando um abraço do qual escapo, deixando que desfrute da alegria do rapaz.
- Primeira regra: sem abraços ou qualquer tipo de toque indesejado… Mas essa é uma regra universal. A ausência de um sim, significa não. - empurra os braços do rapaz para longe, ajeitando a própria camiseta no corpo, desconfortável.
Rio da dinâmica agressiva dos dois quando recebo os braços magrelos em volta de meu pescoço. De novo.
- Obrigada, . Eu sabia que você o ajudaria – diz baixinho, como se fizesse uma oração de agradecimento e eu sinto as bochechas queimarem. Ao contrário dos rapazes, eu aceito o abraço de Bia.
É a gratidão que leva boas ações adiante. Só me resta ter fé de que Guilherme poderá retribuir esse gesto de bondade e continuar alimentando esse ciclo.
É tarde e a noite esfria a cada novo item que inclui em sua lista de regras de convivência, então nós subimos para minha casa. Bia anota tudo, por mais irônico que seja, e organiza as tais regras as dividindo em blocos.
- Certo, então, não posso andar de cueca pela casa... - Guilherme frisa as condições, fazendo suspirar impaciente. - Brincadeira… Eu sei que não posso exibir meus músculos. - Guilherme faz um muque e é quase automático pra mim olhar para o braço de , amplamente mais forte e musculoso, sem esforço.
- Se você respeitar as regras e pagar o aluguel em dia, não vejo problemas em dividirmos a casa por um tempo. - Gosto do jeito sutil como deixa claro que a situação é temporária.
- Certo. E qual vai ser o meu quarto? - Guilherme pergunta e um silêncio se acomoda na conversa. me olha por cima do ombro, cheio de perguntas mudas.
Faço um sinal com a cabeça, o chamando para mais perto de mim e longe das negociações.
- Eu não tinha pensado nisso. O quarto da minha mãe é maior, o que você acha? - Encaro o homem diante de mim roer a unha do dedo polegar em sua indecisão.
Não queria opinar em decisões grandes assim, achei que concordar que acontecesse fosse tudo o que eu tivesse que fazer.
- Eu gosto do seu quarto. Você acha que precisa de mais espaço? - Devolvo a pergunta e o vejo mastigar o próprio lábio inferior.
- Eu não sei! - Ele ri meio desesperado e eu suspiro.
- Eu gosto do seu quarto – divido com ele a única verdade que sei e espero que ele tome a decisão que lhe couber melhor.
- Não precisa decidir agora. Eu posso dormir no sofá hoje e conversamos de novo amanhã. – Guilherme sugere, bastante calmo e compreensivo com os impasses.
- Parece uma boa ideia – digo incentivando os dois a resolverem seus assuntos entre si.
- Estou com sono… - Bia reclama baixinho, encosta a cabeça no ombro de Gui e o encara fixamente, como se colocasse uma ideia em sua mente através do toque gentil em seu peito.
- Eu te levo pra casa, princesa. – Ele beija a testa dela, protetor.
Eu quase sorrio, vendo que o antigo Guilherme que ignorava as necessidades de suas namoradas não está mais ali.
- Acho que é melhor eu ir andando também. – se vira em minha direção. Ele ainda me olha com certa ressalva, desconfiado de que eu mude de ideia a qualquer momento.
- Almoçamos juntos amanhã? - Pergunto me aproximando, buscando sua mão com a minha.
- Sim! Nós podemos fazer macarronada! - Guilherme se anima, demorando um tempo para entender que “juntos” significa somente e eu.
- Com certeza, linda. – ignora a presença do casal, me dando um beijo barulhento no pescoço, só para me fazer rir.
É estranho que esta tenha sido uma discussão séria entre nós. As coisas não parecem horríveis, mas também não estão completamente resolvidas. É como se entendêssemos um o ponto do outro, mas, a discordância, mesmo que momentânea, nos colocou em lugares opostos.
Deito a cabeça no travesseiro refletindo sobre mudança. Tudo se modifica o tempo todo e temos que saborear quando as coisas estão bem, talvez assim tenhamos a força necessária para suportar quando o pior vier.
Olhando bem de perto, essa nem é uma mudança tão horrenda assim. Ainda não tive tempo para listar as boas coisas que virão com a mudança de Guilherme, mas não sinto aquele pavor de que algo horrível possa acontecer a qualquer momento. Pelo menos, não sobre essa parte da minha vida.
Penso em como me portar agora que sei que meus amigos me veem como alguém forte. O que isso significa? Esta é mais uma de minhas responsabilidades agora? Eu tenho que ser forte o tempo todo para não decepcioná-los?
O que eles parecem admirar é só um monte de situações com as quais eu lutei para sobreviver. Se isso é ser forte, então, talvez eu seja.
Durmo com uma sensação nova no peito. Se parece com uma nova perspectiva.
- Que ano maluco… - Sussurro cortando o silêncio da noite. Orgulhosa pra caramba de mim mesma.

Encaro a fachada da casa de e repenso o almoço em sua casa. O cheirinho gostoso que vem da janela da cozinha é o que me faz desistir de voltar pra casa e insistir até que passe a tarde comigo na segurança do meu lar.
- Bom dia, linda! - abre a porta assim que ouve o som das chaves chacoalhando no portão. Ser recebida com esse sorriso é outro motivador potente para me fazer encarar a primeira manhã de meu ex morando na casa de meu atual namorado. - Ainda bem que você chegou, não aguento mais o Guilherme!
- Isto é repentino… - Provoco uma risada forçada de meu namorado.
- Ele canta no chuveiro, … Ele canta alto no chuveiro! Às seis da manhã! - Ele me puxa para dentro da casa, as almofadas coloridas formam um pequeno forte no centro da sala, cobertores e travesseiros estão espalhados e parece que está acomodando um batalhão de crianças bagunceiras.
- O que aconteceu aqui? Vocês tiveram uma batalha de almofadas? - Pergunto rindo, não conseguindo imaginar a cena. hesita em responder, me fazendo arquear as sobrancelhas em entendimento.
- Eu ganhei… Se te ajuda a assimilar melhor – sugere ele, constrangido.
- Estou procurando exaustivamente um lado bom nisso tudo… - Me refiro à bagunça na sala de estar, que deve estar dando uma coceira nas palmas de tia Simone, onde quer que ela esteja agora. - Acho que pode ser um jeito saudável de resolver seus conflitos. Guerra de almofadas… - Respiro fundo, tentando não rir da ironia de ser a mais nova no recinto e, ainda assim, ser a pessoa mais madura.
- Então… nós estamos… bem? - morde o interior da boca e, querendo aproveitar que não há mais ninguém na sala, resolvo mostrar a ele o quão bem estamos com um beijo profundo, quente e demorado.
Estive desejando isso desde que ele descreveu assertivamente a forma como eu o quero o tempo todo. Sempre querendo mais um beijo.
- Arrumem um quarto! - Guilherme entra na sala, secando os cabelos e rindo como uma hiena.
É muito cedo para odiá-lo, muito cedo.
- Dá um jeito na sua vida! - Forço uma risada parecida com a dele, fico satisfeita quando vejo que o acertei em cheio.
- Vai ficar jogando na cara? - Ele cruza os braços, desconfortável.
- Foi mal, essa foi a última vez – digo sem jeito, escondendo o rosto no peito de , que ainda ri de minha piada sem graça.
- Eu aprecio seu pedido de desculpas. Significa muito pra mim. – Guilherme insiste, me fazendo rolar os olhos. - Eu vou ajeitar essa bagunça pra gente poder almoçar… - Ele se espreguiça, começando a dobrar os cobertores e jogar as almofadas de um lado para o outro no sofá, afim de organizá-las de acordo com suas cores.
- Ele vai ficar para o almoço… - Fico contrariada, mas constato em voz alta para mostrar que estou acompanhando.
- E a Bia já está chegando – completa o rapaz, sorridente.
- Isso soa incrível! - Me viro para , que murcha os ombros meio cansado de todo meu desânimo.
- Vem cá… - me puxa pela cintura, nos trancando em seu quarto. - O que eu faço pra te fazer parar com essa ironia cortante? - Ele apoia as mãos em minha cintura, seus olhos são divertidos, mas vejo que é uma situação difícil pra ele também.
- Estou com dificuldades em decidir… - abre a boca, um suspiro ofendido quase me faz rir.
- Eu entendo que não é exatamente fácil, mas eu estou tentando aqui, . Me ajuda? - Ele usa os polegares, um de cada lado em minha cintura. O carinho que ele faz ali é tão bom que eu não poderia negar nada. Mas finjo resistência.
- É tão estranho! - Confesso, sendo imediatamente compreendida.
- Imagina como foi pra mim? Acordar com aquela cantoria e depois, toda a bagunça na sala… mas é legal ter mais alguém da minha idade aqui. Estou tentando acreditar que essa versão do Gui não é tão ruim assim, mas vou precisar de você do meu lado pra isso funcionar. Então, meu amor, me ajuda? Por favor? - Ele me força a encará-lo, não tenho escapatória.
- Sabe o que está me pedindo, não é? - assente, o olhar pesado de culpa. - Você fica me dizendo que essa decisão tem a ver comigo e que é inspirada nas minhas ações. Mas isso é você, é a bondade imensa do seu coração ainda maior… - Ele sorri de lado, me fazendo suspirar. - Vamos… almoçar. – Cada fibra do meu corpo se esforça para se manter firme nesta posição.
Está feito.
- Você é incrível! - Ele me beija na testa, abraçando meu corpo com carinho.
Do lado de fora, ouço a agitação de Guilherme com a chegada de Bia e logo as batidas na porta são ouvidas também.
- Preciso das suas chaves! - Ele abre a porta empolgado.
- Não te disse pra bater na porta e esperar uma resposta antes de entrar? - fica irritado.
- Aqui… - Empresto a minha, recebendo um olhar confuso de Guilherme.
- Por que você tem a chave do portão? Você nem mora aqui… - Gui pontua.
- Nem você, até ontem – digo irritada também, recebendo um olhar reprovador do rapaz. Ergo uma sobrancelha em sua direção, o desafiando a argumentar.
- Quero uma cópia também! - Ele cruza os braços, mudando a direção do olhar afetado de mim para .
- Tanto faz, cara… - fica muito mais à vontade em ignorar as mudanças de humor de Guilherme.
- Vou buscar minha princesa – diz ele, dançando seu caminho até a porta da saída.
- Por que estou fazendo isso mesmo? - Pergunto andando relutante para a cozinha. As mãos de meu namorado relaxam os músculos de meus ombros com uma massagem enquanto ele ri.
- Você é uma boa pessoa. Além disso, você me ama e sabe que vou te recompensar por ser maravilhosa assim. – mantém a pegada firme, mas escorrega as mãos por minhas costas, as pousando em meus quadris com a força necessária para deixar claro de que todo esse altruísmo vai valer a pena eventualmente.
- Sim, eu sou uma boa pessoa… – Estou prestes a ceder ao arrepio que atravessa meu corpo, subindo e descendo, deixando difícil respirar.
- Oi, gente! - Bia cora assim que nos vê, sendo meio que atropelada por Gui.
- Vocês estão pegando fogo, hein?! - Ele anuncia, me fazendo rolar os olhos pela milésima vez. Me afasto de minimamente, só para encará-lo nos olhos e aceitar sua proposta em silêncio.
Você me deve uma. Ou várias.
O almoço é constrangedor, nos sentamos à mesa e todo assunto parece delicado. Nos encaramos em silêncio pela maior parte do tempo, ao terminarmos de comer, Gui se oferece para lavar toda a louça e recebe a ajuda da namorada, que se vê compelida a reorganizar a cozinha de acordo com as necessidades dos rapazes. tenta protestar, mas resiste com um coçar de olhos e uma fuga evasiva da cozinha.
- Não quero me intrometer… Mas vocês já decidiram sobre os quartos? - Bia seca uma vasilha grande, os olhos brilhantes e curiosos buscam os de , inquisidores.
- Espera! - Gui vem correndo da cozinha, a esponja cheia de espuma é amparada pelas duas mãos, afim de não molhar o chão. - Se você decidir em me dar o quarto maior, o aluguel vai ser recalculado? - Pergunta sério, avaliando suas opções.
- Eu não sei… - olha pra mim, esperando que eu saiba sobre o assunto. - Qual é, você entende melhor dessas coisas. - Ele insiste.
- Parem de me envolver nessas decisões! - Aponto o dedo para os dois, recebendo diferentes níveis de chateação com minha decisão em não me meter.
- Ninguém quer se comprometer? - Bia arregaça as mangas, literalmente. - É justo que você pague mais por mais espaço, amorzinho, mas como o deve saber, você não tem tanta grana assim. Então, se você ficar com o quarto maior, é justo que se responsabilize por mais coisas na casa, tipo, as compras, limpeza – sugere divertida, vejo que não sou a única a se deliciar secretamente com os dois tendo que se virar juntos.
- Faz sentido… - Gui pondera, secando as gotas de água que caem no chão com a própria meia.
- Você vai lavar as suas roupas. – comenta, vendo Gui concordar rapidamente.
- A Bia me ensinou como fazer – diz orgulhoso, fazendo a namorada corar.
- Então, o Gui fica com o quarto maior? - Bia pergunta esperançosa. - Eu trouxe alguns lençóis, você sabe… Em caso de…
- Ai, meu Deus! - Cubro o rosto com as mãos, reconhecendo só agora que corro o risco de ouvir Guilherme e Bia transando.
- Não seja infantil! Eu considerei a possibilidade. Não acho que seja um problema ouvir vocês fazendo amor – diz Guilherme, completamente à vontade com a ideia.
- Você é nojento! - Aponto para Gui, mas olho para Bia, lhe mostrando no que ela está se metendo.
A garota sorri.
- Morando em uma pensão, eu aprendi a ignorar os gemidos alheios como uma profissional. Posso ensinar minhas táticas pra vocês, se quiserem. - Procuro dentro de mim a compaixão que consegui criar por Bia para abominar suas palavras sem desintegrar a imagem de boa moça que tenho dela.
- Por favor, parem de falar – peço encarecidamente, incrédula. - Dê o quarto a ele, em nome de tudo o que é mais sagrado. Dê o quarto a ele! - Insisto para meu namorado, que concorda de imediato, rindo de meu desespero.
- Vocês são pessoas maravilhosas. Nós prometemos não fazer tanto barulho! - Bia deixa o pano de prato sobre a cadeira, assim como a vasilha. Sem perder tempo, ela pega sua mochila e agarra a gola da camiseta de Gui, que a segue para o antigo quarto de tia Simone e fecha a porta em um estrondo.
suspira, me olhando por algum tempo.
- Quer ir pra sua casa? - Pergunta já calçando os chinelos.
- Com certeza!

25 de Agosto, 2007

Me lembro quase que imediatamente de todas as vezes em que recorri à chantagem emocional, apelando para o lado mais doce da inspetora que cuidava do portão da escola na época do Ensino Médio. A mulher levava à sério a regra de não deixar que ninguém entrasse após o primeiro sinal, a menos que esta pessoa fosse eu, com um bombom de chocolate branco em mãos. Eu me achava uma grande negociadora na época, mas ela só estava tentando me ensinar o precioso valor da pontualidade.
É nostálgico estar parada um pouco antes da entrada do colégio, esperando por Tati. Cumprimento os rostos conhecidos com um sorriso pequeno, estou ansiosa e me sentindo exposta demais sem o restante de meu grupo comigo.
Uma sensação bastante familiar, especificamente para este ambiente.
É sábado de manhã, mas graças a um projeto do governo, a escola abre meio período como um espaço para as famílias da comunidade, oferecendo atividades de lazer gratuitas e vários outros incentivos à saúde, como esportes e caminhadas guiadas pelo bairro. Tudo é administrado por voluntários, em sua maioria estudantes da universidade federal da cidade, que trocam um pouco de seu escasso tempo livre por algum crédito extra.
- Desculpe o atraso! - Tati salta do carro de Felipe, carregando uma mochila aberta pela metade, tirando de dentro dela a câmera já pronta para os registros de testes. - Você é a primeira a chegar? - Ela pisca muito, agitada. Eu consigo sentir a tensão emanar de minha melhor-melhor amiga e sinto que preciso acalmá-la.
- Leah e Jorge estão lá dentro, terminando de delimitar o espaço para a batalha. Acredita que a escola está sediando um evento regional de pingue-pongue? - Tati assente devagar.
- Eles são dedicados, vai ser acirrado esse ano - comenta atrás da câmera, a apontando para mim.
- Pingue-pongue? Sério? - Pergunto curiosa. Tati dá de ombros, distraída com os ajustes no painel da câmera. Tantos anos de amizade e ainda tanto para aprender sobre ela.
- Me ajuda a pensar! - Comenta baixinho, mas a ignoro para me certificar de que Felipe vá conseguir chegar até nós. Ele está pálido, claramente nervoso. Seus passos são lentos, hesitantes e extremamente amedrontados.
- Você está bem? - Pergunto discreta, Felipe pondera.
- Não – diz rindo de puro desespero. - Eu...Eu encontro vocês lá dentro. - Ele cerra os olhos, de repente, caminhando muito rapidamente para dentro da escola.
- Ele vai vomitar, não é? - Solto um suspiro compadecido de seu nervosismo.
- Vai, sim… - Tati solta um murmúrio cheio de empatia e volta a se concentrar em seu trabalho.
Tati passou as últimas semanas divulgando o evento e, agora que ele está acontecendo, ela precisa alimentar seu blog com as melhores fotos que puder tirar e eu não quero atrapalhá-la.
- Isso é tão nostálgico! - Tati traduz meus sentimentos, entrelaçando seu braço no meu, como fazíamos antes de entrar na escola. Éramos como a armadura uma da outra.
É bom ainda me sentir assim.
Enquanto passamos pelo pequeno corredor inevitavelmente escuro, toda essa nostalgia me faz revisitar memórias boas, ruins, péssimas. Vemos a cantina do lado esquerdo, agora fechada, mas de frente para as fileiras de mesas longas onde costumávamos nos sentar em tribos e achar que tudo o precisávamos saber estava ali dentro daquelas paredes pintadas de um tom muito sério de verde.
Eu não esperava ter que voltar aqui tão cedo. Não é exatamente desconfortável, ainda assim não parece natural.
- Fiz bem em te esperar. Este é um lugar estranho para se estar agora – digo rindo, mas Tati percebe meu desconforto.
- Eu sei. Passei o ano todo fugindo de instituições de ensino, e estar aqui agora, me faz sentir culpada por aquele garota esforçada que nunca reparou que o teto desta escola é precário por ter passado a maior parte do tempo estudando. Aquela rachadura sempre esteve ali? - Inclinamos a cabeça em sincronia, observando que a rachadura vai da parede até o meio do teto da cantina.
- Acho que sim… - Vasculho em minha memória e encontro a lembrança de ter um cardápio pendurado bem onde começa a rachadura. - O que eu sei, além de que esta rachadura é muito perigosa, é que você deixa aquela menina orgulhosa todos os dias por estar realizando os sonhos dela. Você é um gênio, e daí que não vai usar toda essa inteligência curando pessoas doentes? Você dá a elas motivos para viver pela beleza da sensibilidade do seu olhar, deixe que o Felipe se preocupe em costurar corações ou seja lá o que ser um cirurgião significa. Você é uma fotógrafa incrível. É o que a mini Tati queria, é o que você quer.
- Cala a boca, não quero chorar… Embaça a lente. - Tati olha para cima, abanando os olhos. - Hoje não é dia para lágrimas, de qualquer jeito. Talvez de emoção, pela vitória.
- Você tem razão. - Aceito seu abraço de lado, evitando olhar para seus olhos marejados para manter os meus sem umidade excessiva. Hoje não é um dia para lágrimas.
- Acho que é um bom jeito de encerrar o ciclo. Não só com o Funkz, mas com aquela parte das nossas vidas. - Tati suspira, buscando por sua câmera para captar imagens que só ela sabe o que significam.
Se eu fechar os olhos e forçar muito de minha memória abarrotada, consigo ouvir os sons variados dos alunos brigando por cartas colecionáveis, sentir o cheiro do perfume doce em demasia impregnando a cantina e os corredores, os gritos agudos das meninas colocando algum bom senso na cabeça de um garoto que confundia amizade com liberdade.
- Bons tempos... - Tati comenta como se lesse minha mente. - Lembra de quando os meninos estavam jogando bola e o Caio acabou com sete pontos no queixo? - Ela relembra risonha, olhando para o local onde o menino deixou uma poça de sangue e lágrimas.
- Parece que faz tanto tempo desde que estivemos aqui. Mas não tem nem um ano, nós ficávamos sentadas ali em cima, julgando a tudo e todos. - Aponto para o alto do palco que, na ausência de um espetáculo estudantil, servia como nossa pequena corte durante os recreios.
- Nós éramos pessoas diferentes... - Tati ruboriza, provavelmente se lembrando dos horrores que já disse sob a proteção da confidência adolescente.
- Uma coisa não mudou, ainda somos amigas. - Cutuco suas costelas, a fazendo rir, me deixando satisfeita por vê-la menos nervosa.
- Melhores-melhores amigas! - Corrige, fotografando o espaço vazio onde costumávamos nos sentar e presumir a vida alheia sem culpa.
- Onde estão todos? - Pergunto vendo Leah e Jorge ao longe, conversando com um dos voluntários do projeto.
- O Lipe, você sabe, deve estar no banheiro. - Ela ri baixinho, repreendendo o próprio gesto logo depois.
- Vou perguntar para a Leah se ela tem notícias do pessoal. Te encontro depois? - Tati assente e eu faço meu caminho pelo pátio da escola, me dirigindo à quadra esportiva.
A mesa de pingue-pongue reluz mais ao canto, um lugar reservado para eles. Em um espaço menor mas considerável, um quadrado grande de papelão nivela o chão e o torna quase seguro para as acrobacias que acontecerão ali.
Respiro fundo. Estranhamente, não sinto o nervosismo que achei que fosse sentir.
Me pego pensando que ocupo um terceiro papel em toda a minha história com o Funkz, fui de maior fã, a integrante e agora, acompanho o grupo por uma nova perspectiva. Ainda sou sua maior fã, ainda faço parte dele como uma de suas vértebras e agora tenho a grande responsabilidade de fornecer um dos elementos cruciais para eles, a música.
Talvez eu tenha me metido com algo grande demais. Oferecer meu trabalho para colegas de faculdade e minha família é diferente de deixar que vários desconhecidos, alguns deles com seus próprios vieses, ouçam o que minha mente produz.
- Perfeccionista. Igualzinha ao seu irmão. – Ouço a voz de Henrique e ao contrário do que imaginei, não me sinto desconfortável por enfrentá-lo sozinha, ainda mais quando vejo que ele também está desacompanhado.
- Você fala muito sobre o Pedro. Eu conheço todos os amigos dele, por que não me lembro de você? - Cruzo os braços, o encarando de forma quase amigável. A curiosidade para saber mais sobre a história deles é maior que meu receio quanto ao rapaz de sorriso maligno.
- Porque nunca fomos amigos – diz em um suspiro, rindo meio sem jeito. - Seu irmão sempre foi de correr pelo lado certo. Nunca aceitou as minhas ideias para o grupo – confessa de forma honesta, se aproximando um pouco mais.
- Você fazia parte do Funkz? - Ele balança a cabeça.
- Não existia Funkz nessa época - explica cabisbaixo. - Como eu disse, seu irmão era muito certinho e me rejeitou.
- Democracia sempre foi um valor importante para o Funkz. Não imagino o Pedro ignorando um membro por puro capricho. - Devolvo ácida, o fazendo arregalar um pouco os olhos.
- Você o conheceu melhor do que eu – diz com desdém, mas eu concordo. - Acho que o Pedro sabia que todo super-herói precisa de um vilão. - Henrique engole em seco.
Fico tentando entender o que seus olhos me dizem. Não é como se ele sentisse a falta de Pedro, mas quase isso. Respeitar seus oponentes tem dessas surpresas. Sem competição direta, o jogo perde a graça. Meu irmão acreditava nisso mais que em qualquer outra coisa.
- Quem é você nesta analogia? Vilão ou herói? - Pergunto motivada pela necessidade de conhecê-lo. Talvez Henrique entenda melhor do que eu sobre uma parte de Pedro que ele nunca me mostrou.
- Se você não for o herói da sua própria história, ela nem merece ser escrita. – Dá de ombros, me deixando pensativa. - Que vença o melhor grupo, pirralha! - Henrique se afasta conforme o barulho de seu grupo entrando na quadra esportiva se intensifica.
Penso em corrigi-lo, dizer a ele que somente Pedro me chamava de pirralha, mas algo no jeito como ele disse isso me faz entender que suas palavras não carregam um pingo de ofensa.
Foi seu jeito de desejar boa sorte ao seu oponente direto.
- Manda ver, Henrique! - Provoco, o fazendo dar um sorriso competitivo e faminto pela vitória.
Ele não sabe ainda, nem eu tenho total controle sobre isso, mas a certeza que tenho de que vamos vencer vem de muito além do que podemos compreender.
Como se soubessem que preciso deles para frisar um argumento, meu grupo de amigos entra pela porta da quadra. Barulhentos, esperançosos, animados.
É por vê-los ali, todos juntos, que eu sorrio aliviada.
Deslizo o zíper do moletom, exibindo a estampa de nosso grupo com orgulho sobre meu peito.
Mesmo que em outro plano, Pedro e Otavio estão conosco. Eu posso sentir.
- Chegou a hora, caralho! - Leah agita a todos, balançando a barriga protuberante em uma dança animada.
- Chegou a hora… - Bia suspira, nervosa.
- Desfaz essa cara, agora! Você é uma diva confiante, corajosa e talentosa! - Leah grita as palavras de encorajamento no rosto da garota, que se encolhe em seu nervosismo.
- Obrigada? - A voz de Bia soa trêmula, mas ela trata de acreditar nas palavras de Leah.
É uma questão de acreditar ou morrer.
- Antes de começarmos, preciso dizer algumas palavras. – Gui levanta o braço, todo tímido.
- Ah, lá vem ele se desculpar. Nós te dissemos pra fazer isso em lote, garoto… - Amália apoia o cotovelo no ombro do rapaz, que sorri.
- Nada é mais satisfatório do que te ver se precipitando – diz ele, tirando o braço da garota de cima de si. - Eu quero agradecer. Vocês provaram, mais uma vez, que a amizade de vocês é o maior tesouro que um imbecil como eu pode encontrar. Obrigado por acreditarem em mim e por estarem aqui hoje. Significa muito! - Ele começa a se emocionar, vejo outros olhos se encherem de lágrimas também, mas não demora até todos estarem sobre ele, dando tapinhas em suas costas e dizendo coisas fofas como “cala a boca, idiota, vamos nos concentrar!”.
- Se juntem aí! - Grita Tati, há uma distância considerável. É rápido, mas ela capta a imagem do grupo antes de tudo e eu fico pensando no intuito por trás da foto que se imortalizará através do tempo.
A amizade está presente, independente do resultado.
Isto é o Funkz.
- Agora é serio, galera. – Jorge interrompe o burburinho cheio de expectativa do grupo. - Isso é surreal. Este momento, agora mesmo, é a realização de um dos meus sonhos mais loucos. O Funkz de volta é como uma lufada de ar fresco nesse calor infernal. Eu amo vocês! - Nosso líder sorri, passando os olhos pelo grupo unido.
Alguns olhos se dissipam, observando o grupo rival se preparar logo ao lado.
Jorge percebe as dúvidas surgindo, e, para minha surpresa, o sorriso compreensivo que toma conta de seu rosto só pode ser fruto de uma boa memória.
— É só mais um grupo. Estamos prontos, só precisamos nos concentrar e nos divertir. – As palavras soam familiares, então me lembro, esse foi o último conselho que Pedro nos deu como líder.
- Não importa o que acontecer, estaremos juntos. Isso é o que realmente vale a pena. - É Leah quem completa, me emocionando profundamente.
- Quem nós somos, porra? - Gui puxa o coro, aumentando a tensão competitiva no grupo, que se junta ainda mais. As mãos são empilhadas no centro de um círculo e ouço as risadas animadas em minha volta.
- Funkz! - Respondemos, desagradando o rapaz pela falta de sincronia e paixão.
- Mais alto! QUEM NÓS SOMOS? - Não há nada que se compare com a energia que dividimos. A amizade, o compromisso, a vontade de fazermos emendas entre nós mesmos. A necessidade de estarmos juntos. Tudo isso é poderoso demais para ignorar. Tudo o que é superficial fica em segundo plano, estamos todos vivendo o agora. E esse é o maior presente que podemos oferecer àqueles que já se foram.
Eles estão aqui. Eu posso sentir.

Os jurados se sentam em carteiras escolares, não parece luxuoso ou confortável, mas consigo observar que há seriedade em seus critérios, apesar de ser uma competição amadora.
O ginásio da escola começa a encher, nos deixando confusos com a movimentação.
- Essa gente está aqui pelos nerds do pingue-pongue? - Vinícius pergunta, olhando por cima do ombro e vendo o lugar ainda mais lotado do que na época do campeonato de futebol interclasse.
- Eles estão aqui por nós, idiota! - Amália dá um peteleco em sua cabeça, fazendo o rapaz reclamar, mas sorrir empolgado.
- Hora do show, seus filhos-da-puta! - Leah se anima de novo, me fazendo rir.
- Ei, ei… Espera aí – diz , me puxando para mais longe da confusão.
- O que foi? Está nervoso? - O abraço pela cintura, o olhando de baixo.
- Não… Só queria ficar com você antes de… Tudo aquilo. – Ele suspira, passando os olhos pelas equipes se preparando.
- Vai ficar tudo bem. - O abraço com mais força, o fazendo sorrir.
- Eu sei. Estou feliz por estarmos aqui, mas não vejo a hora de acabar – confessa em um tom baixo de voz, me confiando seu atual maior segredo.
- Eu entendo – digo compreensiva. Ele franze o nariz, fazendo uma careta adorável. - Vai acabar logo. Agora, vai lá e arrasa com aqueles manés! - Giro seu corpo, dando um tapinha em sua bunda.
- Não gosto de você competitiva! - Ele reclama, fazendo corpo mole.
- É culpa da Leah, ela me infectou com a vontade de fazer homens adultos chorarem – explico somente para vê-lo rir mais forte, e me sinto aliviada quando consigo.
Sei que está nervoso, meio desconfortável e pressionado para dar o melhor de si, mas vejo também o vislumbre de uma faísca com potencial de incêndio em seus olhos.
Nem sei por onde começar a agradecê-lo por ter me deixado de fora dessa. Tenho certeza de que a ansiedade me corroeria por dentro se eu estivesse competindo ao seu lado.
Os murmúrios da plateia que se forma vão se intensificando cada vez mais, percebo Leah começar a rever seus conceitos sobre convites digitais e a surpresa no rosto da mulher por mais que seja comedida, está presente.
- Eu sou tão boa nisso! - Tati bate palmas animadas. Todo seu esforço divulgando o evento lhe rendeu uma árvore imensa com frutos que transbordam as cestas do Funkz. Com a ajuda de Felipe e, inesperadamente, Ariane, Tati conseguiu visibilidade online para os dois grupos, iniciando uma comunidade com registros e atualizações tanto do Funkz, quanto do Monsters.
- Eu confesso que duvidei que meia dúzia de pessoas fossem aparecer, que bom que eu estava errada… - diz Leah, carrancuda.
- Se esse é o seu jeito de agradecer, eu aceito. – Tati sorri de boca fechada, acostumada com o mau humor da mulher. Depois de passarmos um mês juntos, acho que todos ficamos imunes ao olhar congelante e deboche constantes.
- Tanto faz! – Ela devolve irônica, mas sorri sem que Tati veja.
Passando os olhos pelos conhecidos do bairro que enchem as arquibancadas, sinto meu coração bater mais rápido ao ver tia Vanessa, Simone e Regina sentadas juntas na arquibancada aos risos.
Chamo Tati e e mostro a eles onde suas mães estão sentadas e elas nos veem, acenando de volta.
Tudo acontece rápido, como um pensamento do qual a gente se arrepende de ter assim que acontece, mas não o suficiente para que eu possa retirar o pedido descabido que é atendido inesperadamente.
Minha mãe procura por um lugar para se sentar onde possa ficar incógnita, eu reconheço seus movimentos inquietos e os passos hesitantes.
- Você está bem? - cochicha, me fazendo desviar o olhar antes que ele siga meus olhos e dê de cara com meu fantasma da vida real.
- Sim! - Com rapidez, eu o abraço de novo, evitando que ele veja meu rosto mentiroso e amedrontado.

Por mais que tenhamos organizado o evento e escolhido o painel de jurados, após aceitarem o convite, são eles quem decidem quais serão os critérios usados para definir qual será o melhor grupo da região.
Por termos somente dois grupos, as batalhas serão divididas em etapas mais minuciosas. Primeiro, cinco de nossos melhores dançarinos farão uma batalha um contra um, contra os melhores do grupo rival. O grupo que ganhar mais pontos nesta rodada, segue mais tranquilo para o combate entre equipes, onde, além de avaliarem a criatividade e versatilidade como grupo, serão avaliados a musicalidade, técnica e estilo de cada um separadamente.
Com o coração apertado mas esperançoso, me despeço momentaneamente de meu grupo.
- Vocês são incríveis! - digo para o grupo, me virando rapidamente para , que falta mastigar a bochecha pelo lado de dentro. - Ei, você vai ficar bem! - Fico na ponta dos dedos dos pés, lhe dando um beijo rápido e discreto.
Fico próxima ao equipamento de som, preparada para entregar nossos mashups para o DJ. É quando percebemos que não há um DJ à disposição e um leve caos começa a encontrar suas brechas para se instaurar no evento.
- E agora? - Leah pergunta, seu rosto apavorado é imitado por Jorge e Henrique. Por um momento, estamos todos do mesmo lado.
- Não acredito que vocês não chamaram um DJ! - Henrique acusa, contribuindo muito pouco para uma solução.
- Nós chamamos, ele só não veio! - Tati responde à altura, tentando encontrar uma forma de resolver o problema. Até que ela olha pra mim sorridente.
- Eu não sei nada sobre ser DJ! - Me defendo rapidamente, sentindo o interesse crescer sobre mim.
- É só apertar um botão. A parte difícil, você já fez! - Leah sabe que não tem razão, mas não parece um bom momento para checar.
- Isso é demais… - Balanço cabeça de um lado para o outro, buscando por algum apoio.
- Qual é, … Você consegue fazer isso! - Guilherme insiste, com seu jeito deturpado de me incentivar.
- Você quer fazer isso, linda? - é o primeiro a se interessar por meus pensamentos acerca do assunto.
Coço os olhos, suspiro pesado. Mas acabo concordando com um aceno de cabeça imperceptível.
- Certeza? - Insiste ele.
- Não parece que tenho escolha… - Ele sorri compadecido, me beijando na têmpora.
Me posiciono diante do equipamento, tirando meu notebook da mochila e o conectando com as caixas de som.
O mestre de cerimônias, MC Greg, é um rapper em permanente ascensão e de agenda bastante vaga que aceitou nosso convite em um piscar de olhos. Ele me dá algumas instruções de como prosseguir de acordo com suas deixas, elas são muitas, mas, o trabalho para esta situação em específico é um tanto quanto intuitivo.
Um dos b-boys do Monsters entrega a ele um CD com o logotipo deles, e o MC balança a capa transparente entre os dedos, me olhando com certa malícia.
- Olha lá, mocinha... Sem sabotagem - diz em tom divertido, fazendo uma brincadeira irritante na hora em que decido pegar o CD de sua mão.
- Esta batalha só está acontecendo porque todos nós entendemos o que é justo. Se for para ganharmos, não será por conta de sabotagem com a música deles. O que, provavelmente, não funcionaria. Eu sei que eles encaixariam suas coreografias em qualquer ritmo. Eles são bons assim. É por isso que queremos derrotá-los de forma limpa - explico animada, mostrando porque devo merecer sua confiança. O homem fica constrangido de primeira, vendo sua brincadeira sendo levada tão à sério. Mas é exatamente isso que quero que ele tenha em mente.
Isto é muito sério.
- Respira fundo! - Ele me lembra, e eu o faço. - Se depender só da sua torcida, o tal do Funkz já ganhou. - Ele me dá uma piscadela marota, entrando no personagem.
No palco, os jurados têm uma breve conversa com os líderes dos grupos. Algo como relembrar regras, acalmar os ânimos e muito papo estimulante. Nem preciso ouvir, só ver as chamas nos olhos competitivos de Jorge e o sorriso presunçoso no rosto de Henrique, já posso imaginar o show que eles estão prestes a dar.
Os juízes se sentam em suas carteiras, os olhos minuciosos em busca de algum fator diferente e absolutamente novo.
Eu sei o que eles buscam. Nós temos exatamente o que eles querem.
Vejo os nervos se agitarem quando o incrível Nelson Triunfo retira uma moeda do bolso. Ele é o ídolo de, pelo menos, metade desses dançarinos. A opinião dele conta muito e simplesmente estar na posição de ouvir suas considerações já é fantástico. É quando vejo os líderes e seus dançarinos demonstrarem o verdadeiro respeito ao momento.
As intrigas, confusões, pendências pessoais, tudo isso é deixado de lado e uma ética esportiva é quase unânime entre os dançarinos. Eles se cumprimentam, alguns se desejam boa sorte, pois estiveram juntos em algum momento dessa caminhada.
- Nenhum comportamento desrespeitoso será tolerado! - diz o mais velho. - Ouvi dizer que vocês têm uma vingança pendente.
- Acho que podemos dizer que é uma revanche, não uma vingança. - Jorge dá de ombros, fazendo Henrique e o jurado rirem.
- A vingança vem na próxima. Hoje, vocês vão perder por uma segunda vez. - Henrique tenta, mas depois de conversar com ele e talvez ter conhecido uma nova faceta do rapaz, sei que, mesmo provocando, o respeito é mútuo.
- Manda ver, então! - Jorge ajeita a camiseta no corpo, orgulhoso.
A moeda gira no ar.
Eu chego a rir em expectativa, tenho o melhor lugar para ver tudo acontecer de perto.
Como sempre, a moeda cai em nosso favor e repetindo a tradição, Jorge dá partida para o oponente, afim de ver o que eles prepararam.
- Vai lá, meu monstrinho... - Jorge gira Amália para o centro do “palco”. Não demora até ela incorporar sua persona combativa e teatral.
Exibida e destemida, ela ostenta sua flexibilidade, sua esquisitice classuda e marcante.
E tudo isso só esperando pela pessoa que irá batalhar contra ela.
- Ela veio animada! - O MC aproveita para brilhar, fazendo com que o início daquela tarde cinzenta comece a esquentar.
Outra mulher é selecionada para a primeira batalha, e, inspirada por Amália, ela faz uma entrada e tanto. Ela dá passadas laterais, apoiando a mão e depois o pé no chão, girando pelo lugar na frente de Amália, ao terminar as estrelinhas com os dois pés no chão, a mulher estala o pescoço, encarando minha amiga com soberba.
Por mais que eu esteja entretida, fico esperando pela deixa do MC, pousando o dedo inquieto sobre o botão no teclado do computador.
Finalmente chegou a hora.
É tudo ou nada.
Chegou a hora de recuperar a honra do nosso grupo e terminar a missão que começamos há quase um ano atrás.
A música começa, suas batidas frenéticas tomam conta do momento e não há diferença entre quem as escolheu, todo dançarino presente sente a vibração modificar as células em seu sangue.
A b-girl do Monsters parece procurar um bom momento para começar a encaixar seus movimentos, dando espaço para Amália começar a alfinetar sua apresentação. Apontando para o relógio de pulso, ela boceja, fazendo o corpo se mover de forma parecida com a de sua oponente, mas com muito menos entusiasmo.
A insinuação de Amália a afeta imediatamente, fazendo com que a dançarina entre ligeiramente descoordenada do ritmo da música, fazendo uma rotina que fica difícil recuperar o tempo perdido.
- Não mexa com ela com esse Footwork! - O MC atiça, encorajando de forma neutra. Ele pede por energia da plateia, aumentando a confiança da dançarina.
Ela termina sua entrada com uma pose típica de b-girl, cruzando os braços e inclinado o queixo em direção a Amália.
Vestida com sua armadura impenetrável, Amália começa combinando Popping e Locking, com seu perfeccionismo que beira à patologia. Isolando precisamente partes do corpo, no ritmo da música.
Brincando com ele, demonstrando a superioridade de sua técnica ao fazer seus braços encolherem e se esticarem inesperadamente, como se seus músculos estourassem a cada batida.
Ela demanda todo o espaço disponível, girando o corpo na ponta do tênis, esbanjando seu absoluto controle corporal.
Na deliberação, não há tempo nem para piscar. A decisão é unânime e o primeiro ponto é do Funkz.
Amália inclina o corpo para frente, agradecendo à sua adversária e é recebida com elogios por ela.
O cumprimento é rápido e profissional, mas gosto de ver como as coisas começaram bem e justas.
Os participantes do segundo embate são selecionados e eles se encaram no centro do palco com menos espírito esportivo do que as que vieram antes deles.
É claro que Caio, um dos b-boys do Monsters que flagrou sua namorada sob os encantos de Guilherme, tem uma rixa pessoal para resolver com ele.
Bem, desde que seja com passos de dança e não troca de socos, por mim está valendo. Pela ordem, o grupo vencedor da etapa anterior deve começar e então, vejo Gui se preparando.
Ele respira fundo e incorpora a batida.
Seus ombros, cotovelos, mãos, joelhos e pontas dos pés são como parte de uma sinfonia que trabalha de forma distinta. Cada parte de seu corpo interpreta uma nota alta, diferenciando totalmente do restante da música tão agitada. Fica explícito o que ele está fazendo e é notável que Guilherme se tornou, finalmente, um b-boy completo.
Olho para nossos amigos animando o rapaz, concentrados e alinhados em seu ritmo. Felizes por vê-lo dar o melhor de si, talvez pela primeira vez na vida.
Ele parece orgulhoso também, suas expressões faciais são certeiras, divertidas. Transferem exatamente a alegria que ele está sentindo.
Ao terminar seu tempo, Gui ainda extrapola alguns segundos para se exibir, claro. Com um giro estiloso, ele para de frente para Caio, beijando o logo do grupo ao qual ele pertence.
Caio ri com certo escárnio, chega a se virar para os amigos e fazer chacota do gesto de seu oponente.
Ele começa com movimentos poderosos de Footwork, se movendo rapidamente em volta de Gui, desafiando a velocidade com destreza. Seu controle corporal e musicalidade transbordam pelo espaço.
Ao olhar a bancada de jurados, vejo que eles têm dúvidas e fazem pequenas anotações em suas pranchetas.
O b-boy faz seu caminho de volta para o centro, compartilhando da ginga com seus amigos, mudando completamente de ritmo. Usando do Locking para trazer dramaticidade à mudança na música, Caio é assertivo travando milimetricamente suas articulações, com ajuda de seu grupo, ele cria visuais poderosos e cheios de energia.
Os votos da plateia são contados primeiro, o tal MC Greg é obrigado a explicar que eles devem escolher somente um participante e gritar por ele, para não confundir a contagem.
Enquanto os moradores do bairro decidem quem ganhou esta rodada pra eles, fico tentando descobrir qual é a decisão entre os jurados. Eles conversam bastante.
Pelo povo, Caio é o vencedor, a onda de seus movimentos dessincronizados mas harmoniosos com seu grupo se alastrou pela porção que está mais próxima do Monsters.
- Justo! - Ouço a voz pouco afetada do MC dizendo fora do microfone que a decisão foi tomada e fico apreensiva por Gui. - O vencedor desta rodada é o grupo… - Ele faz uma gracinha com seu braço, o passando por entre as equipes só para vê-las se contorcendo em agonia.
Seu braço para do lado direito, onde o Monsters está, mas rapidamente muda de direção, duas vezes.
Um empate.
O próximo a dançar pelo Funkz é Vinícius, ele parece empolgado enquanto a moeda está no ar, e quando ela cai, ele não pensa duas vezes em aceitar a vitória e quebrar a tradição de testar as habilidades de nossos adversários sempre que pudermos.
Com o Breaking, Vinícius começa de pé, lançando o corpo em movimentos cheios de atitude e ritmo. Os braços se estendem, se movendo como se estivessem alheios ao tronco. Os pés batem com força no chão, e logo ele começa a girar o corpo em Power Moves, segurando as pernas no alto com o apoio de uma das mãos, enquanto a outra brinca com seu equilíbrio.
Vinícius apoia o pé no chão e contorce o corpo, usando a ponta de seu tênis pesado como um eixo. Como se estivesse florescendo, o último estágio de Vinícius é tirar seu próprio boné e o oferecer para seu oponente.
O outro b-boy não está para brincadeira, ele pega o boné de Vinícius e o arremessa para longe, desestabilizando o último movimento dele. Agressivo, ele domina o espaço com movimentos amplos e rápidos com seus punhos fechados, dando mais dinamicidade aos passos de Krump.
A expressão fechada e ameaçadora em seu rosto faz Vinícius recuar, não deixando que o bom senso de seu adversário seja o único responsável por impedir que ele leve um soco certeiro.
Todo o vigor da mistura da paixão e da raiva faz com que a apresentação do b-boy do Monsters seja uma verdadeira explosão de energia. Ele utiliza de seu talento nato para criar um ambiente insano, valorizando sua originalidade e dominando a improvisação.
Não há surpresas quando tudo continua empatado entre as equipes após a decisão conflituosa dos jurados. Não resta alternativa além de dar pontos para as duas equipes.
A batalha continua e o palco é agraciado com mais uma batalha de b-girl contra b-girl. O clima fica tenso quando o choque entre os estilos de Ariane e Débora, antiga integrante do Funkz, nos faz ficar de queixos caídos.
Débora vem com o Stiletto, mostrando que os saltos altos podem ser agressivos e graciosos na mesma medida. Ela usa da sensualidade para provocar os rapazes do grupo, fluindo entre eles sinuosa, chutando e deslizando com dominância do tempo da música, que é lento e sedutor.
Ela joga os cabelos, rodopiando a cabeça enquanto desce em um espacate tão lento que desafia a gravidade. Ariane traz a sutileza do balé, com uma mistura ousada de Vogue e faz o tempo parar com seus giros de tirar o ar.
É em um desses giros que a bailarina escorrega e cai no chão, gritando.
Tudo acontece muito rápido e eu mal consigo enxergar quando a maioria dos integrantes do Funkz a cercam com preocupação. A cena é tão assustadora que faz com que Débora esqueça que estão em lados opostos, correndo até a antiga companheira para ajudá-la a se recompor.
Ariane insiste que a torção foi superficial e se recusa a deixar que a pausa momentânea se torne ainda mais longa.
- Vocês já têm os votos? - Diz competitiva, massageando o tornozelo direito.
- Calma, nós precisamos saber se você está bem antes de continuar. – O MC explica paciente, se abaixando para olhar de perto o inchaço já aparente.
- Eu vou ficar melhor se souber que ganhei! - Ela devolve, apressada.
- Vamos com calma, Ari. Você acha que consegue continuar? - Jorge parece preocupado, não do jeito bom que resolve os impasses. Seus olhos ficam arregalados ao ver o tornozelo de Ariane.
- Até o fim! - Ela grita de volta, decidida a competir custe o que custar.
- Bom, eu estou aqui prestes à parir… - Leah comenta, ponderando sobre a possibilidade. - Tem certeza?
- Absoluta. Eu vou estar bem para a rodada de equipes, mas não contem comigo na de cyphers – Ela contorce o rosto rapidamente, provavelmente transformando a dor em vontade de vencer.
- Vocês decidem... – MC Greg se afasta, voltando à competição e pedindo para que a plateia faça barulho para quem eles mais gostaram.
Mais um empate faz os nervos dos dançarinos se retesarem, prestes a explodirem.
A primeira etapa será decidida por uma batalha entre os dois líderes dos grupos, Henrique e Jorge se encaram no centro do palco e Henrique escolhe o lado certo da moeda.
Ele mistura ritmos e gêneros, contando uma história com a música escolhida em seus passos.
O começo é mais solto, experimental e rudimental demais. Ele chega a errar propositalmente o tempo óbvio da música, nos ambientando em sua busca intensa e dedicação afiada. Criando um ritmo próprio enquanto encontra o caminho para a excelência.
A coisa se desenvolve rapidamente, saindo de um passinho seguro para festas, até uma combinação intricada e empolgante de movimentos precisos.
Um verdadeiro show de um homem só.
Jorge assiste tudo com atenção. O momento é tão intenso que ele não se mexe, exceto por seus olhos ávidos, ligados nos menores detalhes da trajetória de seu adversário.
Na sua vez, Jorge aposta firme em sua especialidade: a mistura poderosa de Popping e Locking. Ele tem uma presença magnética, uma energia eletrizante.
Começa com Toprock, dominando o ritmo com a parte superior do corpo, usando os braços para dar o efeito de “estourar” com seus passos. No rosto, a expressão fechada e agressiva anuncia a transição suave de um ritmo para outro, incorporando o Krump e sufocando o espaço seguro de Henrique aos poucos.
Quando está perto o suficiente, Jorge encerra sua montagem com o Locking, evidenciando que sua apresentação se tratava de blocos. O topo, o meio e o fundo de uma lata cheia de talento e ginga.
A deliberação é difícil, eu vejo. A plateia não consegue se decidir, assim como os jurados, que não podem simplesmente aceitar um novo empate. Alguém tem que sair vencedor desta etapa e é responsabilidade deles decidir quem terá vantagens na próxima parte dessa empreitada.
A expressão decepcionada no rosto do nosso líder é rapidamente substituída por uma mais esportiva.
- Parabéns, mano! – Jorge troca um cumprimento com Henrique, que assente brevemente e se reúne com seu grupo para aproveitar os cinco minutos de intervalo entre as rodadas como os vencedores.
Preocupada, deixo minha posição temporária de DJ e me junto aos meus amigos, que estão tensos e nitidamente impactados com o resultado da primeira etapa.
- Estamos só começando, então respire fundo e mantenha o foco. Nós vamos conseguir – Leah incentiva Jorge, que se perde da posição de líder por um momento, abalado com a responsabilidade imensa que carrega.
- Você deu seu melhor, eles tinham que escolher um. – Bia apoia a mão no ombro do rapaz, que assente brevemente.
- A batalha não está perdida, foi só uma etapa… Nós somos o Funkz, se não for dramático, não tem graça! – Amália sorri tímida, cutucando as costelas do rapaz.
- Vocês têm razão. Ainda não acabou… - Jorge olha por cima do ombro, percebendo que a tensão é um bloco sólido pressionando todos os dançarinos presentes no local.
- Acho que vou vomitar! - Felipe engole em seco, eu espero. Imaginar o rapaz tendo que engolir de volta o conteúdo de seu estômago me deixa aterrorizada. Seu rosto parece mais pálido que o normal e ele usa a camiseta para secar as mãos suadas.
- Respira fundo, cara. Também estou nervoso… - sussurra a última parte, passando o braço pelo ombro do amigo.
- Eu estou tentando... – Ele sorri sem jeito, encarando o chão. Sua respiração está ruidosa e descompassada, não parece que ele está sendo bem-sucedido em sua tentativa.
- Eu sei os passos, estou aqui, estou vestido… Por que sinto como se estivesse atrasado, pelado e despreparado? - Ele questiona, me fazendo cobrir a boca para rir.
- Isso é bom. Significa que você se importa. – diz qualquer coisa que lhe vem à cabeça, buscando por meu apoio.
- Vocês dois vão ficar bem. – Coloco uma mão em cada ombro deles, olhando de um para outro com carinho, me demorando com .
- Sinto que se eu conseguir fazer isso, posso fazer qualquer coisa. É disso que tenho medo. – Felipe pondera, o riso rouco que escapa de seus lábios parece ligeiramente animado pelo desafio, mas seu rosto continua paralisado em uma expressão medrosa que é hilária. Mas não direi isso a ele.
- Certo... – se vira para Felipe, encarando o rapaz com determinação no olhar. - Você está pronto! Você vai fazer isso porque nós temos que fazer. – Incentiva a si mesmo no caminho de tranquilizar o futuro médico do nosso grupo de amigos.
- É o que homens fazem! - Felipe diz mais alto, fazendo morder o interior da boca.
- É o que as pessoas fazem… No geral! - Corrige delicadamente, chacoalhando os ombros do rapaz.
- Vamos lá! - Felipe volta a gritar, chamando a atenção do grupo e acabando por desencadear uma enxorada de incentivos uns para os outros.
Com o fim do intervalo, assumo minha posição novamente e começo sentir um frio na barriga ao pensar nas probabilidades. O empate não significa nada, Amália tem razão, o Funkz tem a fama de encarar embates acirrados com um espírito inabalável. Não posso deixar que o empate na primeira etapa faça com que eu perca minha fé no que vi ser criado, ainda temos um longo caminho pela frente.

As equipes se reúnem no “palco”, se preparando para uma rodada empolgante e espontânea de cyphers. Todos os dançarinos têm uma entrada com dez segundos cada para mostrar seus talentos e encantar a plateia e o júri com suas habilidades únicas.
É quando tomo um tempo para ver todo o desconforto e insegurança simplesmente deixarem o rosto de , tais sensações meramente humanas não parecem atingi-lo quando ele está com sua expressão de jogador ativa.
Eles se posicionam, a energia contagiante faz com que a plateia se aproxime, fechando um círculo grande em volta daqueles que se encaram com avidez.
A música começa, os Monsters se agrupam e fazem uma espécie de contagem, liberando de seu montante, o verdadeiro monstro entre eles. O b-boy é talentoso, os passos que ele joga na roda de dança são impressionantes e é difícil acompanhar seus movimentos precisos.
Na vez do Funkz, Vinícius começa emulando o mesmo movimento do b-boy anterior, intercalando seu próprio estilo e fluindo pelo lugar com propriedade. Um por um, eles vão mostrando a que vieram, entregando seus corações e interpretando cada milésimo de segundo com emoção e paixão.
A empolgação da plateia é tanta que o lugar parece ficar menor, preenchido pelos gritos energizantes da torcida polarizada, mas engajada, na batalha.
O momento da deliberação é torturante. Ninguém consegue decidir qual grupo merece os pontos da rodada e a indecisão dos jurados e da plateia é sinal de que as equipes excederam as expectativas, lhes dando um verdadeiro show.
- Eu não queria estar no lugar de nenhum de vocês! - O MC Greg faz graça no microfone, apontando seu indicador para todos no palco. Jurados e dançarinos.
- Temos uma decisão. – Nelson se põe a frente, conferindo com seus colegas se a decisão é mesmo a que ele está prestes a anunciar.
- O palco é todo seu, mestre. – O MC se afasta, deixando que a lenda do break dance faça uma pausa longa, tortuosa e agonizante.
- Funkz! - Ele ergue o braço rapidamente, indicando o grupo vencedor da rodada.
As expressões tensas não se desfazem, pelo contrário, é agora que a batalha começa de verdade.
Uma brecha fora aberta nas portas do tudo ou nada, tenho certeza de que os dois grupos tentarão escancará-las aos chutes.
Na ponta esquerda do palco, Guilherme se destaca, pronto para dar a partida. Seu corpo vibra com antecipação, mas ele está focado, controlando seus ânimos e os canalizando para o momento. Seus movimentos fluem cheios de atitude e estilo, como se fossem uma tradução física de sua personalidade. De todas as suas personalidades.
É usando o beat em que estive trabalhando que eles começam, ágeis como gatos urbanos, lançando-se uns contra os outros em uma série de movimentos astutos, acompanhando a batida pulsante de um coração pequenininho, mas cheio de força.
A cada batida, o grupo vai se dispersando, paralisando em uma formação triangular que evidencia Leah e a fonte desta batida cativante.
O grupo tem uma confiança palpável. Sua especialidade no Popping e Locking são evidentes, mostrando que eles são mestres da técnica. Cada movimento é como uma explosão controlada de pura energia. Os braços estalam precisos, enquanto as poses congeladas dão destaque ao Locking.
Cada membro do grupo incorpora na coreografia seu estilo próprio, criando uma elegância calculada, com sequências encantadoras.
se põe no centro, executando um complexo padrão de Popping, onde isolamentos e ondas percorrem seu corpo de maneira hipnotizante, que ultrapassam seu corpo, movendo o grupo dividido em dois e dando a impressão de estarem puxando partes de seu corpo. Gui assume o centro, com Freezes de Locking, iniciando o padrão para o resto do grupo que executam poses que parecem esculpidas em pedra.
Com o grupo todo "descongelado" eles trocam suas posições, sempre esbanjando estilo e originalidade, brincando com o ritmo e exibindo a excelência que eles lutaram para reaver.
É refrescante e muito empolgante. A energia que eles compartilham transborda no lugar, seus movimentos são explosivos, ao mesmo tempo que são graciosos, sincronizados e cheios de personalidade.
As mulheres tomam o centro, executando a rotina afiada com eficiência, diminuindo a velocidade da apresentação com a sensualidade dos movimentos fortes e expressões compenetradas.
A coreografia aérea traz a tensão de volta, mas só para aqueles que estão assistindo, a diversão estampada nos rostos dos rapazes saltando dá a ligeira impressão de que o que estão fazendo é fácil. Os movimentos de break dance desafiam a gravidade, os Power Moves enchem os olhos.
O desafio está vivo, a união mais que presente.
Os olhares penetrantes transmitem paixão e confiança, além de superar as habilidades de seus oponentes, o Funkz está quitando uma dívida com eles mesmos. Fica nítido na forma como eles dominam cada um dos passos, assim como o controle de seus corpos em cada movimento; com seus giros precisos, Flips ousados e uma sincronização impecável.
A batalha atinge o clímax quando e Jorge surpreendem, usando o que muitos diriam ser sua fraqueza à favor deles. Jorge arrisca, dando um salto mortal para trás, enquanto usa sua força para elevar o salto do amigo ainda mais com suas costas, posando com estilo quando Jorge aterriza no tempo exato do fim da música.
A pequena multidão formada por moradores do bairro, amigos de amigos e familiares irrompe em aplausos e gritos. Os dançarinos, ofegantes mas sorridentes, se unem para celebrar a paixão em comum pela dança, pelo grupo, pela entrega.
O "palco" improvisado com papelão se transforma em um centro efêmero de autenticidade, criatividade, pura energia e amizade.
Fico emocionada por ver com meus próprios olhos o que eles foram capazes de fazer hoje.
Eu tenho certeza de que meu irmão ficaria orgulhoso do que criou, independente da decisão dos jurados.
Olho para nossos adversários e vejo Henrique sério. O sorriso enviesado, malicioso e cheio de confiança parece quebrado ao meio. De onde vejo, ele até parece fazer um bico surpreso e bastante intrigado.
- Eu estou arrepiado! Arrepiado! - O MC ergue o braço, mostrando os pelos eriçados eufóricos.
O Monsters se prepara também, prestes a colocar em jogo tudo o que vieram trabalhando nos últimos meses. Eles têm como habilidade principal o poder de juntar a crueza agressiva do Krump com a leveza cômica do Breaking, entrando com a energia rudimentar e atitude intensa.
Eles trazem uma fusão dinâmica de movimentos acrobáticos e expressões ameaçadoras. O Toprock inicial é uma mistura de Footwork técnico do breaking e o Stomp provocador do Krump.
Em cada ponta de seu lado do palco, um dançarino executa Power Moves, como Headspins e Windmills e há tanto para ver em tão pouco espaço que começo a me sentir tonta.
Enquanto isso, outro b-boy incorpora elementos do Krump, lançando-se em cima de meus amigos com Arm Swings e exclamações vocais guturais, que ecoam ameaçadoras pelo espaço.
Vejo que as tentativas de intimidar o Funkz não funcionam, eles devolvem as provocações de forma cômica, replicando os passos de dança do rapaz a fim de desconcentrá-lo como foram provocados em sua vez.
Tudo faz parte dessa dinâmica ousada.
A sutileza do Funkz e a crueza do Monsters colidem com a deliberação dos jurados. Cabe a eles decidir, já que o público está extasiado demais com o show que receberam para opinar. O MC tem problemas para fazer com que eles se calem após as apresentações explosivas das duas equipes, mas retoma o controle da situação como um verdadeiro artista.
- Será que os jurados vão escolher as poses sofisticadas do Funkz? Ou será que os Power Moves intermináveis do Monsters vão levar essa? - O MC Greg leva a plateia por uma montanha-russa de sentimentos e estilos, deixando claro que eles foram testemunhas de uma batalha épica, onde a diversidade de talentos brilhou mais forte que as intrigas e desavenças entre os grupos. - Foi uma manhã de pura magia, e agora chegou o momento de reconhecer o grupo que, além de conquistar o palco, conquistou também nossos corações. Vamos às considerações dos nossos ilustres jurados.
Neste momento, as instruções que o MC Greg me passou mais cedo não importam mais. Deixo qualquer música genérica tocando e me junto ao meu grupo, esperando pela deliberação acirrada e demorada.
Passo um braço pelos ombros de Leah, vendo que ela dá a mão à Jorge, que abraça Amália e ela continua a corrente de boas energias. Logo, todo o grupo está unido fisicamente, com somente um pensamento passando por toda uma rede de pessoas esperançosas, exaustas e absolutamente orgulhosas de si mesmas e de seus companheiros.
- Com uma mistura de estilos que cativou a todos nós, o grupo vencedor mostrou uma combinação única de elegância, técnica e um trabalho em equipe fantástico. Cada movimento foi uma expressão da mais pura paixão, cada pose uma obra de arte em movimento. Este grupo não apenas dançou hoje; eles contaram uma história cativante através de seus corpos, deixando uma impressão duradoura em mim e em meus companheiros jurados. - Nelson Triunfo é o escolhido para ser o porta-voz da decisão. Vemos os olhos técnicos passarem por todos nós, depois eles viajam até o Monsters. Jorge salta no lugar, empolgado demais por ver seu maior ídolo de perto. O mais velho ri rouco, alongando sua pausa dramática ainda mais. - Sem mais delongas, ladies and gentlemen, é com imenso prazer que anuncio o grupo Funkz, como os grandes campeões desta batalha extraordinária! Seu talento e dedicação brilharam, iluminaram este palco e as nossas almas com a verdadeira essência da dança de rua. Estou orgulhoso por testemunhar o que houve aqui hoje!
A estrondosa salva de palmas preenche meus ouvidos, o vozerio parece distante e o tempo parece passar mais devagar. Meus amigos comemoram, se abraçando e parabenizando uns aos outros. Mas o que sinto é, de certa forma, desolador.
Procuro no meio da multidão pelo rosto mais inesperado do dia e sei que estou abusando da santidade que resolveu ouvir meus pensamentos e trazê-la até aqui hoje. Mas ela não está mais lá.
Fico parada olhando para o vazio, sentindo meu corpo ser abraçado e balançado, mas não consigo me mexer.
É quando a certeza me atinge, como o próprio acidente acontecendo outra vez dentro de mim.
Esta vitória não significa nada para mim sem ele aqui.
- ? - apoia a base de minha coluna, me puxando para um abraço. - O que foi?
- Acabou… - Ouço minha voz chorosa. Ele acaricia meus cabelos, me apertando um pouco mais contra si. - Ele se foi, .
O Pedro se foi.
Seguro o tecido de sua camiseta com força, tentando controlar as lágrimas e o impulso de meu corpo em simplesmente ceder. É uma tristeza grande demais, incômoda e indesejada. Destoa do momento e eu não quero que ninguém me veja assim.
- Vem comigo! - entrelaça nossos dedos e nós saímos correndo da quadra esportiva, depois da escola e continuamos a correr até o edifício ficar distante.
Ofegante, para no alto da escadaria que corta caminho para sua casa, checando a umidade em meus cílios.
- Eu não estou mais chorando… - Subo os degraus que faltam, me sentando no alto da escada e encarando o percurso percorrido com certa pressa.
- Tudo bem. Quer conversar? - Ele levanta a camiseta, evitando se sentar sobre ela no degrau imundo.
- Estou me sentindo um pouco estúpida. Não sei por que estou me sentindo desse jeito, mas sinto. – assente, mesmo sem entender direito.
- Se sente estúpida por sentir falta do seu irmão? - coloca em palavras e eu rolo os olhos, me sentindo ainda mais estúpida.
- Eu não queria me envolver tanto com o Funkz, foi uma fase na minha vida e eu achei que tivesse superado. Mas me envolvi, e agora estou sentindo que a vitória não é o suficiente.
- Como assim, linda?
- Essa é a parte que me torna estúpida. Eu achei que… - Suspiro, odiando ter que dizer em voz alta. - De alguma forma… Eu achei que ganhar deles fosse consertar as coisas. Trazê-los de volta. É estúpido, não é? - ergue as sobrancelhas, tomando algum tempo para escolher bem o que vai dizer.
- Não é, não. Acho que todos nós pensamos assim, mesmo que por um instante. – Ele dá de ombros, tentando dar leveza ao julgamento pesado que faço com meus próprios sentimentos. - Você sente falta dele, . Isso não é estúpido, desejar que ele volte também não. – Apoio minha cabeça em seu ombro, olhando as nuvens falhadas no céu azul. O tipo de dia preferido de Pedro.
- Às vezes, sinto que essa semi presença dele nas coisas que faço no dia a dia é uma tortura. Mesmo machucando tanto, não sei o que faria sem essa sensação de que ele está prestes a chegar. Mas ele nunca chega e eu não sei o que fazer com essa espera além de seguir vivendo… - pega minha mão com a sua, entrelaçando nossos dedos com calma e precisão.
- Você já está fazendo o melhor que pode, amor. Eu sei, estou vendo. Ele estaria orgulhoso de você, sabe disso, não é? - Assinto rapidamente, enxugando mais uma lágrima teimosa.
- Ótimo! Agora, nunca mais chame minha namorada de estúpida. Ela é incrível! - Ele me encara afetado, esfregando a ponta do nariz no caminho de minhas lágrimas, as secando de vez.
- Eu nunca mais irei insultar tamanha divindade – brinco também, sentindo o amargo dentro de mim se adoçar aos poucos.
- Acho bom! - beija meus lábios, rapidamente. Selando um acordo.
- Deveríamos voltar, não é? Eles devem estar procurando por nós… - Me preocupo, prestes a levantar e vestir minha capa invencível de socialização.
- Ainda não. Eles podem continuar procurando um pouco mais. – aconchega meu corpo no seu, beija minha testa e me dá todo o tempo do mundo para sentir e ser o que eu quiser.
Conversamos sobre tudo e nada, revisitando momentos da batalha que acabara de acontecer e dividindo emoções eufóricas sobre o que vimos e fizemos.
Parabenizo meu namorado pela performance, salientando suas maiores qualidades e o deixando encabulado com os elogios impróprios pela sua entrega.
Famintos, mas não ainda prontos para encarar nossos amigos e as milhares de perguntas sobre nosso paradeiro no momento da celebração, decide me levar para casa. Nós tomamos um banho, almoçamos e acabamos pegando no sono no meio da tarde.
- ! - Abro os olhos no completo escuro, o braço de pesa em minha cintura e eu não tenho a menor vontade de levantar. - !
responde quem quer que esteja gritando nossos nomes do lado de fora com um murmúrio ininteligível.
- ! - É o grito masculino alarmado chamando por mim que o faz abrir os olhos e erguer uma sobrancelha desconfiado.
- Eu dormi? - Pergunta ainda aéreo.
- Nós dormimos… E eles nos encontraram. – Me viro em sua direção, ouvindo os gritos se intensificarem e começo a reconhecer as vozes uma por uma conforme desperto de vez.
- O que quer fazer? - Ele aconchega a cabeça no travesseiro, me olhando com interesse. - Podemos encher uma panela com água e jogar pela janela - sugere me fazendo rir rouca.
- Me sinto melhor agora. Acho que podemos comemorar a vitória pelo o que ela é, não pelo o que eu queria que fosse. – assente, beija minha testa e se levanta preguiçoso.
- ! - É a voz impaciente de Leah que grita agora, ele responde com outro grito e eles começam a se comunicar assim até que ele vista uma camiseta e desça as escadas para abrir o portão.
Enquanto meus amigos sobem as escadas transformando seu falatório em uma espécie de zumbido animado com uma pitada de irritação, me convenço de minhas próprias palavras. Começo por aceitar que esse espaço vazio é grande demais, não só pra mim mas para meus amigos também. É perto deles que sinto que vou encontrar formas de me curar e fazer essa ferida em minha alma se fechar. Mesmo que um pouco de cada vez.
Ao me ver, meio descabelada e com o rosto cheio de marcas do travesseiro, Leah desfaz a carranca brava comigo e sorri pequeno, vindo até mim com os braços abertos.
- Estou tão orgulhosa de você, ! Nós vencemos e é tudo graças a você. Obrigada. - Ela me aperta mais forte em seus braços e eu tento não amassar meu sobrinho entre nós, mas ela não me dá espaço para afastar meu corpo.
É quando sinto uma vibração atingir meu estômago pelo lado de fora, me assustando. Olho para minha amiga assustada e ela ri de minha expressão desesperada.
- É só um chute, . Ele está dizendo que está orgulhoso também. Todos nós estamos! - Sorrio meio sem jeito, encarando a barriga dela se mexendo de forma bizarra e fantástica bem de perto.
- Cara, eu queria tanto que ele estivesse aqui! - Leah assente quando ergo a mão tímida, prestes a tocar a protuberância pequenininha.
- Em dias como os de hoje, eu não tenho dúvida de que o Pedro daria um jeito de fugir do céu pra assistir de perto o que fizemos. - Ela ri baixinho, se perdendo em pensamentos por um instante.
- E eu? Não tem ninguém orgulhoso de mim? - Jorge passa um braço por cima dos ombros de Leah, a trazendo de volta.
- Eu estaria se você tivesse vencido a sua batalha no um contra um. - Amália provoca, recebendo um entusiástico dedo do meio como resposta.
- Estou esperando pelos agradecimentos. Eles serão bem-vindos à qualquer momento. - Gui se senta em minha cadeira-vaca e sorri convencido, puxando Bia para se sentar em seu colo.
- Você foi bem, príncipe. Estou orgulhosa de você! - Ela cochicha, mas uma pausa no vozerio faz com que o apelido de Guilherme seja o novo motivo de chacota.
Todos se acomodam no espaço pequeno, dividindo a comida e bebida que trouxeram consigo.
- Parece que estou dando uma festa... De novo. - Me viro para , que ri baixinho.
- É nosso último fim de semana de férias, . Aproveita! - Tauany me oferece um pouco de sua bebida, a qual eu recuso veemente.
- Isso é verdade, na segunda-feira, alguns de nós voltam a estudar e alguns de nós começam a estudar... - Tati cutuca , o fazendo franzir o nariz. - Alguns de nós só vão perder um pouco mais de alma no telemarketing.
- Alguns de nós não querem lembrar disso agora... - imita seu tom de voz, demonstrando o nervosismo mais que justificado. Ele não tem ideia do que o aguarda.
- Amém! - Felipe comenta, esticando as pernas no tapete.
- Se o povo clama, então, que haja festa! - Brinco sem perceber que Jorge já tratava de colocar uma música para tocar, dando um efeito teatral à minha concessão.
- Essa camiseta ficou tão sem graça... - Tauany chacoalha o tecido branco de minha camiseta estampada, pelo menos três números maiores do que preciso e torce o nariz.
- Não julgue, este foi o meu melhor trabalho! - Defendo minha habilidade recém adquirida na serigrafia e ela balança a cabeça de um lado para o outro.
- Não, a estampa ficou animal! Estou reclamando do caimento, por que não quis customizar como nós fizemos? - Pergunta, me deixando sem jeito para responder.
- Quis deixá-la intacta porque, tecnicamente, ela não é minha. - Tau franze a testa em confusão.
- Você é nova, vai entender eventualmente... - Bia abana a mão, tranquilizando a outra e nos fazendo rir.
- Quem diria que uma ideia do Jorge poderia ficar tão boa? - Amália provoca, recebendo um olhar feio do amigo.
- Um dia poderei ser um artista com a ajuda da tecnologia. Vou poder dizer o que quero produzir e a inteligência artificial fará todo o trabalho – diz esperançoso.
- É, com a sua inteligência superficial, você vai precisar mesmo de um robô pra fazer qualquer coisa. – Amália comenta descrente, fazendo o rapaz encará-la com fúria.
- É artificial. Você não entende nada de tecnologia, Amália, sossega! – Ele desiste de se chatear, invertendo o resultado de suas picuinhas costumeiras. É Amália quem bufa frustrada para seu deleite.
- Vocês ficaram nervosos? - Tati pergunta curiosa, a garrafa de cerveja que passa de suas mãos para as de Felipe já começa a fazer efeito, deixando a garota confiante e com a fala macia.
- Não, querida. Eu já sabia do resultado quando pisei na escola! - Amália é quem responde, cheia de pompa.
- Quanta confiança... - Jorge dá um gole em seu vinho barato. - Se você fosse assim quando estávamos juntos, não surtaria toda vez que uma garota falasse comigo.
- Qual foi, Jorge? ‘Tá muito nostálgico pro meu gosto. Ficou com saudade? - Ela se inclina, tomando o queixo do rapaz com a mão, encantadora.
O jeito como eles se olham é intenso, eletrizante. Ela se afasta, constrangida.
- Cala a boca… - Jorge balança a cabeça de um lado para o outro, mas um sorrisinho começa a surgir nos cantos de seus lábios.
- Vocês parecem duas crianças… - reclama, se espreguiçando. - Todo mundo sabe que vocês estão se pegando, podem parar com o teatrinho. - Jorge abre a boca, incrédulo.
- Como assim? - Tati pergunta, animada. Em um pulo, ela se aproxima do casal. Os olhos grandes e infantis brilhando na possibilidade de mais um casal sendo formado no grupo.
- Defina “todo mundo”? - Amália junta as mãos, entrelaçando os dedos com uma expressão quase psicótica.
- Tirando a Tati, aparentemente, todo mundo aqui já sabia… - Meu namorado não percebe que falou demais, não até perceber os olhares confusos de nossos amigos sobre si.
Nem eu esperava por essa.
- Eu não sabia de nada… - Leah olha para os amigos com um sorriso divertido nos lábios.
- Nem eu! - Gui levanta a mão, vendo outras cabeças balançando em negação.
- Acho que só você percebeu… - Jorge se mexe desconfortável, mas olha para Amália, que ainda insiste em se fazer de desentendida. - Anda, Amália, assume que me ama e acaba logo com isso – apressa convencido.
- Assume você que me ama. Não teve problemas em dizer noite passada… - A garota nos deixa interessados pela conversa. Pouca coisa neste mundo deixa Amália constrangida, seu relacionamento com Jorge é uma delas.
- Vocês são tão fofos juntos! - Tati junta as mãos sobre o peito, os olhando de forma adorável.
- Era exatamente isso que eu queria evitar. Você e a sua boca grande, ! - Amália reclama, mas não se afasta quando Jorge se senta ao seu lado, no tapete.
- Eu não sabia que era segredo. Vocês estavam se agarrando ontem depois do ensaio, estou surpreso que só eu tenha visto. - se vê incomodado, desconfortável com os olhares sobre si, ele se esconde atrás de mim.
- Não acredito que não me contou – digo magoada, me virando em sua direção.
Como ele pôde esconder uma fofoca dessas de mim?
- Gente, é só o Jorge e a Amália. A história deles é mais velha que andar pra trás… - Ele se defende.
- Não contamos por que não é da conta de ninguém! - Jorge se acomoda com o braço sobre os ombros de Amália e é engraçado ver como ela finge desconforto, mas se deita melhor em seu peito com uma expressão desgostosa claramente forçada.
Eles são estranhamente perfeitos um para o outro.
Com a minha casa cheia de desocupados exaustos e merecedores de descanso, me vejo quase que compelida a deixar o lugar sob os cuidados de Tati, que é a única que conhece bem minhas manias e preferências, e seguir com para a casa dele.
Mas não antes de avisar à tia Vanessa que tem um bando de adolescentes em nossa casa.
- E como você está agora? - Tia Vanessa pergunta após ouvir minha desculpa para ter sumido logo depois do veredito dos jurados. Ela disse ter ajudado Tati e Leah a me procurar pela escola, mas em certo ponto de suas buscas, decidiu que eu estava segura, já que também estava desaparecido.
- Bem, eu acho. Só é uma coisa a menos para fazer. - Disfarço o cansaço mental com um riso debochado que parece divertir minha tia.
Todas as nossas ligações têm sua própria trilha sonora, já que ela sempre está experimentando algum bar com pagode ao vivo tocando.
- O que eu devo esperar ao chegar em casa amanhã à noite? - Ela adota um tom mais sério, como se realmente quisesse opinar na invasão em nossa casa.
- Tudo no lugar – respondo rápido, sabendo bem que meus amigos não mudarão um grão de poeira do lugar graças ao meu controle sobre cada elemento da casa. Eles não querem ter que lidar com a minha ira.
- Tudo bem. … - A respiração de tia Vanessa vacila, como se ela cortasse uma palavra prestes a sair. - Você a viu, não é?
- Sim.
- Eu falei com ela. - A voz sempre animada adota um tom cansado, daqueles que a gente usa quando não vê solução para um problema.
- Deve ter sido estimulante… - Brinco para disfarçar a ansiedade por saber como essa conversa se desenrolou.
- Não, não foi. Sinto muito, . Eu não sei quando minha irmã mais velha deixou de ser minha irmã para se tornar… Aquela pessoa. Você merece mais – diz com pesar. Uma pausa longa dela é aproveitada por mim.
- É por isso que eu tenho você.
- Eu amo você, . Com tudo de bom que me aconteceu nos últimos meses, você ainda é a melhor delas. - Nos despedimos depois de uma série de elogios sinceros e melosos. Encerro a ligação com os olhos marejados e o corpo transbordando de emoções muito poderosas.
- Ei… - apoia minha cabeça em seu ombro. Ele ouviu a conversa em silêncio, respeitosamente segurando um riso quando as coisas ficaram dramáticas demais.
- Eu estou tão feliz que as aulas estão voltando. Preciso tirar férias dos meus sentimentos.
- Espera, o quê? - Ele me faz rir de sua expressão ofendida.
- Não desse jeito… - Ele balança a cabeça de um lado para o outro, se ajeitando melhor sobre a bike.
- É melhor correr! - Ele ameaça, chacoalhando os protetores do guidão como se fossem aceleradores.
- Você não me faria correr a essa altura… - Duvido, mas ainda assim, tomo alguma distância.
- Tem razão. Sobe aí… - Ele termina de fazer uma volta ao meu redor, me atraindo para si com o dedo.
Eu me sento no quadro da bicicleta, apoio as mãos no guidão e aproveito a brisa fresca da noite bagunçando meus cabelos enquanto pedala para nos levar para sua casa.
É estranho chegar na casa no meio da madrugada e não ouvir a TV ligada em um volume desnecessariamente alto, ou o trocadilho batido de Ricardo nos perguntando se estamos atrasados para o jantar ou adiantados para o café da manhã, seguido da risada volumosa da tia Simone. Essa ausência incomoda, mas não sinto que deva tocar no assunto. Deve estar sendo difícil para também e até que ele queira, não direi uma palavra sobre quanto sinto falta de sua família.
Ainda pior que a ausência de Simone e Ricardo, é a noção da presença constante de Guilherme no quarto da frente. E esta noite, ele está acompanhado.
Assim que chegamos, percebo que não somos os únicos na casa e trato de ficar no quarto para evitar novas conversas por hoje.
Sento na cama e fecho os olhos, absorvendo o silêncio e descansando meus ouvidos por algum tempo. Meus amigos são tudo para mim, mas a frequência de suas vozes juntas por horas a fio chega a me deixar cansada.
- Quer água? - Oferece , distraído com sua própria preparação para se deitar. Concordo com um murmúrio e o vejo sair do quarto.
Exausta, deito a cabeça onde é macio, decidindo tomar mais um banho para dormir completamente refrescada e não consigo evitar o começo de uma organização mental de minhas tarefas para o dia seguinte na lanchonete. O inventário precisa ser refeito, assim como as compras de insumos e a encomenda de bebidas.
Me distraio pensando no quanto odeio falar ao telefone com a secretária da distribuidora. A mulher carrega um tom preguiçoso e sem a menor vontade de fazer suas anotações corretamente, ocasionando um erro ou outro em nossos pedidos.
É quando escuto um chiado característico, de ritmo constante. Começa com a cabeceira da cama batendo contra a parede violentamente, então, o gemido feminino abafado vai aumentando de intensidade e volume, gradualmente.
Me sento de novo no colchão, os olhos arregalados e tentando me manter confusa, pois a alternativa é entender exatamente o que está acontecendo no quarto em frente.
Mas fica impossível quando eles começam a usar palavras.
- Assim, princesa. ASSIM! - Cubro o rosto com uma vontade enorme de rir. chega no quarto, igualmente apavorado.
- Estamos mesmo ouvindo isso? - Pergunta contrariado.
- Ele deve estar matando aquela garota… Só pode! - Não sei bem porquê, mas estou cochichando.
- Parece que ela já morreu e virou um fantasma muito sofrido. - ri sozinho e eu ergo uma sobrancelha, desconfiada. Parte de mim fica meio insegura por ele estar ouvindo gemidos absolutamente eróticos de outra garota.
- O que a gente faz? - Abraço minhas pernas, assombrada por estar nesta situação, com estas pessoas.
- Eu não sei o que fazer! Eu deveria bater lá? Não quero ser o xerife do sexo – diz ele, desconcertado e incerto sobre como se comportar.
- Xerife do sexo? Quer saber? Não responda… - Volto a me deitar na cama, encarando o teto.
- Não acredito nisso… - bate a porta e começa a andar pelo quarto.
- Queria que o meu senso do ridículo não fosse tão acentuado. Talvez eu pudesse me dispor a competir contra eles – digo sem pensar direito, sentindo a cama afundar ao meu lado em poucos segundos.
- Nós podemos! - parece se animar com a ideia.
- Não gosto da ideia de alimentar a imaginação podre do Gui quando o assunto é o meu sexo – deixo claro, fazendo concordar rindo.
- Eu vou falar com ele! - Ele respira fundo, mas não se mexe.
- AI, GUILHERME! - Ouvimos novamente.
- Meu Deus, ele está matando aquela garota! - Repito um pouco mais alto na esperança de que eles se toquem do barulho que estão fazendo. - Eu vou tomar um banho e deixar você resolver isso…
- Isso! Eu... resolvo isso! - bebe toda a água, se preparando.
Passo pela porta do quarto tapando os ouvidos. Me sinto infantil, mas ninguém merece ouvir os amigos transarem.
Durante o banho, não posso deixar de refletir em uma culpa retardada. Me ocorre do absoluto nada que, talvez, a tia Simone tenha experimentado um pouco desta mesma frustração por minha causa.
A ideia faz meu estômago revirar.
É baseada nessa culpa que desisto da ideia de envergonhar Bia por seus gritos prazerosos. Há alguns impulsos que são impossíveis de segurar, ainda mais quando se está apaixonada.
Quando saio do banho, o barulho sexual cessou e no lugar dela, uma possível discussão acontece na sala.
Os tons das vozes são baixos, mas as palavras que estão sendo ditas têm uma certa agressividade.
- Eu não sabia que estávamos fazendo tanto barulho! - Guilherme se defende.
- Mas estavam! Não sou obrigado a saber como você gosta que as coisas sejam feitas. Façam mais silêncio! - É engraçado ver tão rabugento, não resisto ao me aproximar.
- Olá, … - Gui sorri em minha direção, olhando minhas pernas descobertas e o colo ainda molhado do banho.
- Ow, irmão! - empurra Guilherme pelo peito, o fazendo se desequilibrar consideravelmente.
- Desculpa, cara. – Ele ri, nervoso. - Se eu não posso andar pelado pela casa, ela também não pode! - Ele aponta pra mim, voltando a encarar minhas pernas.
- Guilherme! - O repreendo, fazendo Bia sair do quarto vestida com uma camiseta do namorado.
- Gui, estou com frio... Ah, oi gente. - Ela ajeita os cabelos, bastante desconcertada. Bia olha para os rapazes sem camiseta, mas demora mais seu olhar sobre mim.
- Eu não sei como essa situação poderia ficar mais constrangedora! – Coço os olhos, me dando conta de que, se contar nós quatro ali, naquele cômodo, não há nem três peças de roupa cobrindo nossos corpos.
- Já pensou se a sua toalha caísse agora? - Guilherme sugere, recebendo meia dúzia de olhares furiosos em sua direção.
- Guilherme! - É Bia quem o repreende agora, o fazendo suspirar.
- Vocês não entendem o meu humor… - Ele lamenta, abaixando a cabeça, mas não antes de dar mais uma boa olhada em minhas coxas.
- Chega! - fica irritado o suficiente para gritar. - Você, pro meu quarto. E vocês… Calem a boca! - aponta para mim, depois, para os outros dois. Eu faço o que ele manda, ouvindo sua respiração pesada e descontente colada em minha nuca. Quando ele bate a porta do quarto, eu sei que estou encrencada.
- Vou soar muito mesquinha se eu te disser “eu te avisei”, não é? - assente com veemência, fingindo um sorriso que deixa sua expressão irritada de um jeito divertido.
- Você tinha que aparecer lá só de toalha? - Meu namorado aponta para o algodão que cobre meu corpo de forma precária.
- Não achei que fossem me notar... – Dou de ombros, me defendendo de forma pobre. cerra os olhos em minha direção, uma risada curta e cheia de desdém se faz ser ouvida.
- Você sai do banho exalando a essência da luxúria e não quer que te percebam? Não seja ingênua, . – Ele diz meu nome com certa raiva, o fazendo soar diferente nesse tom de voz.
Eu não resisto ao ar perigoso que emana dele. Intrigante, imprevisível.
- Você está com ciúmes? - Ajeito a toalha no corpo, espalhando um pouco do creme hidratante nas palmas das mãos.
- O que você acha? - As primeiras duas palavras saem em um tom, as outras duas em outro. O segundo é menos raivoso, quase macio, distraído ou hipnotizado. Eu estar espalhando o creme pelas minhas coxas deve ter algo a ver com isso. - Você é impossível!
- O que estou fazendo agora? - Uso uma voz ainda mais aveludada, sensual e inocente. fecha os olhos com força, mas acaba rindo.
Ele se deita na cama e nem espera que eu termine de espalhar o creme hidratante pelo corpo ao me puxar e me fazer acompanhá-lo.
Em algum momento da longa madrugada, uma verdadeira sinfonia de gemidos pode ser ouvida entre os intervalos dos latidos dos cachorros de rua. Mas graças a um acordo mudo e muito bem estruturado, ninguém dirá uma palavra sobre isso.

Ainda está escuro lá fora quando o rádio relógio me desperta. A voz animada do radialista me dá bom dia, além de me atualizar sobre o clima de hoje, dizendo que é melhor levar um guarda-chuva na bolsa se não quiser voltar para casa ensopada no período da tarde.
Ainda segundo o radialista, há um pequeno trânsito na rodovia Presidente Dutra, então, me apresso no café da manhã, comendo pão com margarina enquanto calço os tênis, a mão enfiada em somente uma das mangas da jaqueta jeans que cobre a camiseta preta sem estampa.
Já completamente vestida, escovo os dentes e agarro a mochila pesada, saindo de casa em seguida.
No caminho para o ponto de ônibus, cumprimento as figurinhas carimbadas indo para o trabalho na capital, acostumadas com o trajeto longo e exaustivo, alguns encostam a cabeça em qualquer lugar minimamente plano para descansar antes de um dia de trabalho. O trajeto até o trabalho por si só exige uma preparação física e mental.
Virando a esquina, vejo Felipe e sua carranca preguiçosa guiando o caminho até o ponto de ônibus para meu namorado. parece nervoso mas empolgado, quase como se soubesse o que o espera nas próximas horas.
O ônibus chega e, pelo menos metade das pessoas que aguardavam no ponto sobem nele.
Entre um solavanco e outro do coletivo, encontramos uma forma de aproveitar mais esse tempo juntos. segura na barra mais alta das estruturas de segurança do ônibus e eu me seguro nele, tendo absoluta certeza de que não vamos tombar para o lado.
- Seja bem-vindo ao resto da sua vida... - Felipe comenta desanimado, cochichando sobre o ombro, fazendo rir de nossa situação: em pé em um ônibus lotado.
- Não é tão ruim assim... - responde no mesmo tom. Receio que estar com o corpo pressionado contra o meu em um espaço tão pequeno contribua para que ele pense dessa forma.
- Espere até chegarmos na estação de metrô... - Felipe provoca, um riso maldoso nos lábios rosados do futuro médico faz me olhar curioso.
Apoio a cabeça em seu peito, o abraçando mais forte com certa pena. não está preparado para o metrô de São Paulo em horário de pico. É um lugar que transforma as pessoas em sua pior versão. Até as mocinhas mais bem educadas chutam as pernas de idosas supostamente inofensivas por um lugar para sentar.
Eu já vi acontecer, mais de uma vez.
- Nos vemos mais tarde! - Felipe acena mais adiante, mais perto da catraca que divide nossos caminhos na estação Luz, da linha azul.
- Bom dia, amor! Te ligo mais tarde. - se despede com um beijo rápido e corre para alcançar o amigo, já que vão para o mesmo campus.
Eu sigo meu caminho com expectativas para o novo semestre. Estou cada vez mais próxima de concluir esse sonho que se iniciou não sendo meu, mas que carrego o fardo com orgulho.
Apesar de já estar meio cansada pelo trajeto, ao passar pelo portão do campus e rever alguns dos rostos conhecidos do semestre passado, fico animada.
Cumprimento Tauany e ela morde o interior da boca, um pouco apreensiva.
- E aí, que cara é essa? - Me sento ao seu lado no banco do jardim bem cuidado, que aguarda a primavera com pequenos botões de flores lutando para se desenvolver, sendo adubadas com todo tipo de bitucas de cigarros.
- Vim me despedir do pessoal do curso. - A garota crispa os lábios grossos, esperando pela minha reação.
- Não. - Ela ri de minha descrença.
- Como assim "não", ? Já está feito. Estou de coração partido, por isso vim dizer pessoalmente. - Ela despeja tudo de uma vez.
- Você só pode estar de brincadeira comigo, Tauany! Nós somos as duas únicas mulheres que sobraram na classe, você não pode me deixar sozinha! - Cruzo os braços, rejeitando a ideia de todas as formas possíveis.
- Nós ainda vamos nos ver. Eu faço parte do Funkz agora, lembra? - Ela passa o braço pelos meus ombros e eu desvio do abraço lateral e cheio de culpa de minha amiga.
- Eu sei. Só não acredito que está me abandonando aqui sozinha... - Balanço a cabeça, bastante decepcionada por esta ser uma profissão que espanta as mulheres a todo custo.
- Você não estará sozinha, o Thiago ainda quer se formar... - Ela dá de ombros, como se fosse simples assim.
- Nós nunca trocamos nem meia palavra sem que você estivesse mediando a conversa. - Ela sorri de boca fechada, provavelmente ignorando meus argumentos porque, como ela mesma disse, já está feito.
- É a sua chance de melhorar essa relação! - Rolo os olhos, desinteressada. - Eu vim te pedir pra ser forte, pra continuar isto por nós duas. Eu não consigo e, pra falar a verdade, não quero tanto assim. Eu quero cantar e dançar, vou perseguir essa paixão e vou precisar de uma produtora foda que estará se formando em alguns anos e já vai estar derrubando tetos com sua música visceral e verdadeira. Posso contar com você? - Tauany me diz a verdade, eu sei. Além dos olhos grandes e sinceros, o fato de ela ter vindo até aqui me dizer pessoalmente que está deixando o curso diz muito sobre suas intenções.
Acho que seria muito mais difícil apoiar sua decisão se ela não estivesse largando o curso para seguir seus sonhos.
- Certo... - Ela joga os braços finos e fortes em volta de meu pescoço e ri aliviada.
Pensamentos sobre recomeço tomam minha mente durante a segunda-feira, ofuscando a apresentação breve que o professor novo faz de si mesmo e do semestre, tentando empolgar os poucos alunos que sobraram com as novidades e tarefas que virão. O recomeço, muitas vezes, é um equilíbrio delicado entre deixar ir e abraçar o que está por vir. Uma melancolia nostálgica se encontra com uma esperança inevitável, e elas dançam juntas a música que é a vida. Sempre em movimento, inventando passos novos e encaixando em melodias inesperadas. É onde descobrimos resiliência, força e vulnerabilidade. Onde decidimos se construímos uma escada feita de lições aprendidas e memórias vividas com vigor, ou afundamos em dúvidas amargas e impossíveis de digerir.
É com essa melancolia que passo o tempo no estúdio naquela terça-feira. Mesmo fazendo parte de um trio, exploro o equipamento sozinha, imersa em sentimentos solitários que se fundem com notas de um piano digital. Entre cabos, botões e projetos por se iniciarem, começo a visualizar os degraus de minha escada solitária sendo construída.
No fim da manhã de quarta-feira, uma palestra sobre produção musical feminina primeiro me deixa meio irritada por poder contar nos dedos quantas alunas se juntaram no anfiteatro, depois, fico inspirada. A palestrante convidada é uma produtora de estúdio renomada, que já trabalhou com diversos artistas em gêneros mais diversos ainda.
Ela ressalta que cada produtora, engenheira de som e compositora traz dentro de si uma narrativa singular, influências distintas de suas próprias vivências e uma abordagem única à música. Enriquecendo e expondo a indústria a uma variedade de estilos e experiências.
- Por muito tempo, fomos abrigadas nos bastidores dos bastidores da indústria musical, agora, o palco da produção musical tem rachaduras por onde uma ou outra de nós passamos, de vez em quando. A ideia é escancarar esse espaço, incluir uma gama diversificada de vozes fortes e criativas. Redefinir o panorama sonoro, fazê-los reconhecer o talento intrínseco que as mulheres oferecem. Quebrar barreiras! - Ela se ilumina, fazendo sua voz ecoar dentro de mim e me deixar confortável, no lugar de uma dessas mulheres de voz e musicalidade fortes, com algo importante a dizer.
Na quinta-feira, ainda sinto os resquícios da energia eletrizante da palestra e coloco toda essa inspiração empoderada na aula de laboratório de áudio.
Me pego cantarolando uma melodia que se parecesse muito com o esboço de uma nova composição. É esta sensação esperançosa em formato de melodia que faz um dia de trabalho na lanchonete parecer menos estressante. Mesmo que meus funcionários estejam trabalhando em complô para tornar este dia ainda mais longo.
- Dá pra parar de sonhar acordada e me ajudar a resolver isso? - Tina estala o dedo na frente de meus olhos e eu pisco algumas vezes, me situando no meio de uma discussão já morna entre ela e Guilherme.
- Resolver o quê? - Pergunto entediada, olhando de um para outro com certa decepção. A essa altura, eu esperava que eles pudessem resolver suas picuinhas entre si.
- Eu quero fumar, mas ela não quer ficar na minha zona do salão. - Guilherme acusa, o cigarro pendendo atrás da orelha e os olhos coléricos pela interrupção do desenvolver de seu hábito nada saudável.
- Fuma depois... - Sugiro, como se fosse óbvio.
- Eu não posso fumar depois. A Bia não gosta do cheiro e o seu namorado não me deixa fumar em casa. Precisa ser agora! - Guilherme me olha com urgência.
- Para de fumar de vez. Ninguém gosta desse cheiro de morte te cercando... - Tina abana o paninho cor-de-rosa na direção dele, que o espanta com um tapa.
- Vai lá, Gui. Eu fico com a sua parte do salão... Mas se tiver gorjeta, eu fico com ela. - Ele cerra os olhos em minha direção, ponderando por um momento.
- Ah, foda-se! - Ele tira o isqueiro do bolso, prende o cigarro entre os dentes e fica a um passo de acendê-lo dentro da propriedade.
- Do outro lado da rua. 'Tô sentindo o cheiro daqui! - Tina provoca, fazendo o rapaz rolar os olhos e atravessar para a outra calçada.
Os poucos clientes que ainda fazem suas refeições no salão vão diminuindo aos poucos e a equipe começa a lavar a cozinha.
Quando Guilherme volta de sua pausa longa demais, dispenso as garçonetes pela noite e o espero escovar os dentes e lavar o rosto antes de fecharmos a lanchonete juntos. Temos mais de uma razão para nos aproximarmos e, já que agora o Gui está com os quatro pneus arriados por Bia, ele é oficialmente inofensivo.
- O vai dormir na sua casa hoje? - Pergunta distraído com o próprio celular, um sorriso aliviado faz seu rosto cansado parecer mais leve.
- Acho que sim. - Sinto falta da sensação que Gui está sentindo agora e apresso , também por mensagem.
- Já está com saudade? - Guilherme sorri malicioso.
- Não é da sua conta. – Apesar da rispidez, estou sorrindo.
- Eu sei que o está. Ele só fala de você, o tempo todo com cara de quem odeia estar vivo longe de você. - Guilherme dramatiza, ele não ouve quando solto um suspiro, com o coração apertado.
Três dias nos comunicando somente por mensagens e ligações muito curtas são dias demais.
Eu sei que ele tem se desdobrado para dar conta de sua rotina, eu também estou ocupada, então finjo que estou levando a distância com normalidade. Mas não vê-lo todos os dias é uma alteração muito difícil na minha rotina. Ele é como uma dessas vitaminas complementares. Quando está por perto, me sinto até mais saudável.
- Minha princesa! - Guilherme aponta para a esquina, rindo frouxo ao ver a namorada andando apressada, ela se esforça para acompanhar a pressa de , que pedala muito rápido até mim.
É a primeira vez que fico feliz por vê-los chegando juntos.
- Oi, !
- Oi, Bia.
Acenamos uma para outra, mas não consigo tirar meus olhos de .
- Oi, princesa.
- Oi, príncipe! - Bia se lança nos braços de Guilherme e eles iniciam um beijo gráfico e sonoro demais para acompanhar de tão perto. Por isso, com sua sagacidade aguçada, passa um braço por minha cintura e me faz cair sentada no quadro da bike.
- Oi, linda – diz devagar e bem baixinho, só para que eu ouça e guarde o tom grave, ofegante, extremamente sedutor.
- Oi! - Me agarro em sua cintura, achando minha posição sobre a bicicleta muito insegura. - Eu vou cair!
- Não vou deixar. – para a bicicleta próxima ao meio-fio, apoiando os pés no chão. Eu desço do quadro, o abraçando pelos ombros.
- Que saudade!
- Não, saudade é mero eufemismo. Eu senti um buraco crescendo no meu peito, tão grande que me impedia de respirar. Até agora... – Ele me aperta mais contra si, me fazendo rir com tanto drama. No final, não era exagero do Gui.
- Nós nos vimos há três dias! - Tento justificar, mas o buraco no peito dele tem exatamente o mesmo formato do peso que é a ausência deste homem nos meus dias.
Senti tanta falta de sua leveza.
- É tempo demais! - Ele resmunga, ainda agarrado em mim.
- É, sim. Quer subir? - Pergunto sinuosa, acenando para o casal que se afasta mais adiante.
- Quero sim. – Ele manobra a bike pelo guidão com uma mão, enquanto a outra se embrenha por dentro de minha camisa e se acomoda em minha cintura.
Dormir pouco sempre vale a pena se isso significar passar horas conversando com .
Sua primeira semana cursando psicologia chega ao seu fim exatamente como esperávamos: ele está empolgado, nervoso e curioso pelos anos que virão e tudo o que ele ainda irá aprender.
É nítido que o foco de é ajudar as pessoas a encontrar caminhos de se conhecerem, se aceitarem e viverem uma vida melhor. Sua ânsia pelo conhecimento está focado nisso, em ajudar as pessoas, e estou determinada a ajudá-lo a cumprir essa tarefa, seja como for.
Hoje, tudo o que quer é a pressão de um corpo feminino sobre o dele. E para a sua sorte, eu tenho exatamente o que ele precisa para se sentir melhor.
Na manhã seguinte, repetimos tudo de novo. Café da manhã apressado, ônibus lotado, metrô lotado, doses de um conhecimento brando e finalmente, o fim de mais uma semana.
Atarefada, saio do campus sem olhar para os lados. Minha cabeça se divide em todas as tarefas que preciso executar no dia e na organização necessária para arranjar tempo para estudar no fim de semana.
É quando percebo um carro chique e preto me seguir de perto, com a velocidade baixa e os vidros escurecidos fechados. Sinto meu coração bater mais depressa, uma sensação ruim e muito familiar toma conta de meus movimentos e eu começo a correr pela calçada, notando que o carro também aumenta a velocidade ao me acompanhar.
Encurralada pelo trânsito agitado da avenida, sou obrigada a parar e o carro chega a subir na calçada, me assustando.
- E aí, cretina. Vai mesmo recusar uma carona? - A janela do banco de trás vai sumindo devagar, revelando um magricela, de aparelho nos dentes e óculos escuros de marca.
- Lucca, seu filho-da-puta! Quer me matar de susto? - Apoio a mão no peito, aliviada que seja ele no carro importado e imponente.
- Sentiu minha falta, piranha? - Ele abre a porta, me dando espaço para sentar no carro de bancos de couro de cor clara e aparência impecável.
- Por onde andou? Por que não atende essa porcaria de telefone?! - Não sei porque estou tão brava com ele, quando na verdade, quero abraçá-lo e colocar o papo em dia.
- Meu celular não funciona no exterior… - diz misterioso, com seu sorriso malicioso e olhar convencido.
- Exterior? - Pergunto confusa, o olhando desconfiada.
- Eu te explico no caminho, agora, dê o seu endereço para o John. Ele nos levará através do portal até Guarulhos... – Lucca cruza os braços, esperando que eu diga para o motorista solícito onde eu moro.
No caminho longo e tortuoso para Lucca, ele encontra uma forma de se distrair, me contando o que esteve fazendo nos últimos meses.
- Você estava certa, desmascarar o Arnaldo foi só o começo do caos. Ele era peixe pequeno neste esquema nojento, os arquivos que ele possuía foram sua chave de entrada. O que ele fez conosco foi uma tarefa para uma iniciação, . Tem ideia do quanto eu estou enojado com tudo isso? Eu não consegui parar até encontrar todas as peças para esse quebra-cabeças sádico. Eu atravessei fronteiras atrás de evidências. Me senti uma Carmen Sandiego moderna – diz Lucca, num tom muito baixo de voz. Ele conta que teve contato com provas que colocaria o mundo como conhecemos de cabeça para baixo. Poderosos exercendo seu poder sobre aqueles que não tem poder algum, centenas de pessoas que sequer são donas de seus próprios corpos. Homens e mulheres abusando da vista grossa das autoridades, fomentando ainda mais um círculo de injustiça e crueldade que só cresce silenciosa e tragicamente no mundo inteiro.
- Com quem você esteve? Alguém sabe que você falou com todas essas pessoas? E os documentos, estão seguros? - Pergunto temerosa. Lucca é corajoso, destemido e mais que obstinado. Alguém tem que se preocupar por ele.
- Quanto menos você souber, melhor. - Ele sorri divertido, me deixando desconfortável.
Ele parece tão diferente, não fisicamente. Lucca ainda tem a aparência de alguém que não sabe nada da vida, o que é seu maior trunfo. Ele reconhece a dor e não tem medo nenhum de usar todos os meios que tem para acabar com ela.
- Mas… Lucca... – Respiro fundo, tentando entender tanta leveza em seu semblante já que ele acaba de explodir um vespeiro.
É a frieza que tanto admiro nele agindo em todo seu vigor.
- Eu sei, eu sei! Devia ter te contado, mas o Rafa me pediu segredo e eu entendi depois que é importante proteger você dessas coisas. Esta não é a sua vida, é a nossa. – Ele crispa os lábios, esperando que minha expressão amarrada suavize.
- Espera… Vocês estavam juntos? - Chego a pular no banco do carro quando me ocorre.
- Quem você acha que bancou todas as viagens? - Ele rola os olhos, mas ri de um jeito quase infantil. - Eu, Rafa e a pequena Paris combatendo criminosos. Não parece um romance policial de época? - Ele suspira, sonhador.
- Então… Vocês estão juntos? - Junto os punhos em uma espécie de oração.
- Não. - Lucca pondera por alguns segundos. - Nós estávamos juntos lá, estivemos juntos aqui, mas não estamos juntos. – Ele estuda minha expressão descrente e a ignora.
- E agora? - Lucca toma algum tempo até entender que não me refiro ao seu não-envolvimento com Rafael.
- Prisões, julgamentos, mais prisões… Só temos que esperar. – Ele sorri vitorioso, orgulhoso de sua empreitada.
- Eu sabia que você iria continuar lutando pela justiça por aqueles que não podem se defender sozinhos. Estou orgulhosa, Lucca. – Sorrio verdadeiramente feliz por ele ter conseguido.
- Engraçado como uma motivação egoísta como a vingança se torna um serviço público da noite para o dia, graças à uma favelada da floresta... – Lucca sorri também e eu escolho ir pelo caminho em que não me ofendo.
- Seu riquinho de merda! - Me encosto no banco macio, aproveitando do ar condicionado bem ajustado.
- Sua pobretona incrível! - Rimos cúmplices e não demora até chegarmos no bairro onde todos me conhecem e acham completamente estranho me ver dentro de um carro como este.
Subimos as escadas e vejo os olhos atenciosos de Lucca passarem por todo o lugar minuciosamente.
Ao terminar sua análise, Lucca se senta na cadeira-vaca e dá seu veredito:
- É colorido, cafona, desarrumado e aconchegante. Se parece com você. Amei! - Ele sorri e tira do bolso um embrulho pequeno.
- O que é isso? - Pergunto quando ele estende o embrulho em minha direção, hesitando antes de pegar.
- Eu não sabia o que você precisava e tenho certeza de que você mataria uma planta… Então… - Ele gesticula na direção do presente. Ao desembrulhar, vejo um chaveiro simples. O formato de um violão pequenino em madeira, com cordinhas minúsculas e uma gravação em tinta dourada no verso que diz: "Merci pour la chanson".
- Eu não falo francês – digo confusa, relendo as palavras em voz alta com a pronúncia que me vem à cabeça.
- Claro que não. – Rola os olhos, petulante. - É um jeito mais sofisticado de te agradecer por marcar um dos momentos mais sombrios da minha vida com sua luz. – Estou prestes a expressar com um som amoroso o quanto estou grata pelo gesto. - Quase não me custou nada, mas sei que só por ser importado já vale alguma coisa pra você… - Ele me olha esperando pela enxorada de xingamentos, mas eu continuo sorrindo, verdadeiramente grata por não estarmos sozinhos naquele momento e mais ainda por estarmos juntos agora.
- Obrigada, Lucca. Depois de vender isso para uma loja de velharias, ficarei rica! - Ele abana o ar, rindo mais forte, mas vejo como ele se alegra ao me ver colocar mais um chaveiro em minha coleção em constante crescimento.
- E então, onde está o homem capaz de estremecer as estruturas da sua vagina? - Coço os olhos envergonhada, escondendo o rosto instantaneamente corado.
- Ele deve estar chegando da faculdade agora. Você quer conhecê-lo? - Me sento na cama, enviando uma mensagem para e perguntando se ele poderia atrasar alguns minutos antes de começar o trabalho na bicicletaria para me ver.
- Com certeza! Eu vi fotos dele e preciso saber se continuaremos amigos ou se nos tornaremos rivais no amor. – Ele insinua, me deixando curiosa para esse encontro.
- Eu garanto, não há nada que você possa fazer que seja melhor do que os meus truques! - Cruzo os braços, aceitando seu desafio.
- Você consegue colocar os pés atrás da cabeça? - Arregalo os olhos.
- Por que você faria isso?! - Pergunto incrédula, o fazendo se engasgar num riso cheio de malícia e diversão.
- Amplitude e fricção… - Lucca explica, olhando fundo em meus olhos.
Volto a esconder o rosto, pressionando bem as pálpebras contra os globos oculares na tentativa de parar de imaginar meu amigo em uma posição comprometedora.
- Você é tão pervertido! - Ele gargalha, satisfeito com minha incredulidade ofendida.
- Também senti sua falta – completa, se ajeitando melhor na cadeira que combina perfeitamente com modelito em preto e branco.
- Eu sei. - Sorrio, verdadeiramente feliz por ele estar bem. - Como é Paris? - Pergunto curiosa, encantada com a ideia de noites quentes regadas à bom vinho e boa comida.
- Depois de um dia, fica entediante. É uma cidade, . Cheia de ratos, lixo, gente mal-educada e armadilhas para turistas. - Rio do tom magoado do último item.
- Para onde mais vocês foram? - Dobro as pernas sobre o colchão, animada com as histórias inusitadas que Lucca tem para dividir.
É impossível acreditar que duas pessoas viajando juntas e tendo experiências únicas, enquanto correm certo perigo ao lutar por justiça não tenham se deixado levar pela paixão, nem que seja só um pouco. Fico imaginando os dois em jantares românticos, cercados por fotos de suspeitos e relatórios de testemunhas acumulados, esperando por sua atenção para serem analisados. Talvez sob à luz de velas, pois Lucca gostaria do drama de ter que estreitar os olhos para ler sua própria caligrafia tremida e miúda, por sempre tensionar demais a mão ao escrever. Rafael andaria de um canto a outro no quarto de hotel, consternado e aflito como sempre. Irritado com a inquietação dele, Lucca se levantaria, com uma boa piada picante para distraí-lo de seus pensamentos perturbadores, lhe oferecendo uma taça de vinho.
- ? - Lucca chama, não parece ser a primeira vez. Talvez eu tenha me distraído com minha própria fantasia para o casal, deixando meu amigo desconfortável, para variar. - Acho que estão ligando pra você.
Meu celular avisa a chegada de uma mensagem de e eu sorrio, indo até a janela para vê-lo cobrir o rosto do sol com a mão livre, a outra segura o guidão da bicicleta.
- Sobe! - Grito animada.
Não demora até subir as escadas e quando entra em minha casa, ele a deixa encostada no balcão da cozinha.
- Oi, linda! - me cumprimenta com um abraço um pouco mais íntimo, me beijando enquanto apalpa minha bunda com propriedade.
- Eu ganho um desses também? - Lucca descruza as pernas, se levantando com fascínio nos olhos úmidos.
- Você deve ser o famoso Lucca – diz sem jeito, ignorando a encarada junto às palavras cheias de malícia de meu amigo.
- E você, o deus grego de chocolate da . - Lucca devolve, o fazendo rir e olhar pra mim em busca de socorro.
- . Você sabe disso – repreendo meu amigo, mas não consigo não rir.
- . Todo amigo da é meu amigo – diz ele, educado. - Posso pegar minha mão de volta? - Pergunta baixo, um pouco intimidado.
- Desculpa! - Lucca fica corado, olhando para mim e, sem disfarçar, vira os dois polegares para cima, com a expressão mais contente que já vi em seu rosto.
- É… Eu sei! - fica sem jeito, mas é a minha vez de exibi-lo com orgulho.
- Certo. , foi um imenso prazer conhecê-lo, infelizmente preciso ir. - Lucca sorri para ele, dando mais uma olhada de perfil e, sim, de costas também. - O Senhor tira, mas o Senhor também dá! - Lucca enrosca o braço no meu, me guiando por minha casa até a porta.
- Desde quando você é religioso? - Pergunto aos risos, ouvindo rir também enquanto se senta no tapete para nos dar privacidade.
- Está brincando?! Se Deus não o esculpiu pessoalmente, Ele estava respirando no pescoço de quem desenhou aqueles braços. Estes braços, , é a prova de que Ele existe. - Lucca bufa impressionado, fazendo os lábios tremerem de um jeito engraçado.
- Eu não posso discordar… O abdômen nem parece real, meu amigo. E nem me faça começar a falar sobre... – digo com pesar, fazendo Lucca gemer em antecipação.
- Vocês dois ficam lindos juntos. Fico feliz que tenham se acertado, finalmente. - Ele rola os olhos, fingindo indiferença.
- Você sabe, deixar alguém amar o que a gente odeia sobre nós mesmos pode ser bastante libertador – sugiro sinuosa, o vendo torcer o nariz.
- Eu sei o que está fazendo, não vai funcionar. Não é quem nós somos, simples assim – diz com certeza, sabendo bem que me refiro à sua relação nublada com Rafael.
- Eu vou acreditar que você acredita nisso. - Uso as palavras que costuma usar contra mim e vejo exatamente a reação incomodada que elas me provocam nele.
- Você está bem? Precisa de alguma coisa? - Lucca me olha profundamente, falando sério.
- Estou bem, juro. - Ele sorri satisfeito.
- Você merece. - Lucca me abraça de lado. - Ah, espere notícias nossas em breve.
- “Nossas”? Não sei se quero que o Rafael saiba onde moro – digo irritada, ainda não confio totalmente nele.
- Meio tarde pra se preocupar com isso. Fica tranquila, . É coisa boa, eu acho… - Dá de ombros, colocando os óculos escuros no rosto como uma verdadeira estrela de cinema.
- O que está querendo fazer comigo? Sabe que odeio mistério e surpresas… - O encaro com os braços cruzados na frente do corpo.
- Então, esqueça que eu disse qualquer coisa. Tenho que ir. - Lucca olha mais uma vez para minha casa, orgulhoso do que construí.
- Obrigada pela carona e por ainda se lembrar de mim, mesmo depois de viajar o mundo – digo o acompanhando escada abaixo.
- Ah, … continue selvagem! - Ele tem a audácia de acariciar minha bochecha enquanto o encaro com um desprezo mentiroso.
- Vá antes que alguém roube o som do seu carro – digo propositalmente monótona, o fazendo rir.
Fico na calçada enquanto Lucca entra em seu carro e dá as coordenadas para John, o motorista.
Eu me apresentei ao homem mais cedo. Ele se chama João mas, bem, Lucca não poderia aceitar isso e o renomeou.
- Você está bem? - apoia a base de minhas costas.
- Estou aliviada que ele esteja vivo. - Solto um suspiro longo e não ri. Na minha vida, isso é uma grande preocupação.
- Gostei dele. As investidas diretas cessam em algum momento? - Ele me abraça por completo, apoiando o queixo sobre meu ombro.
- Não – digo rindo. - Me desculpe por isso. Eu encorajo que você dê respostas curtas e grossas, não seja tímido.
- Vou lembrar disso – diz beijando meu ombro, prestes a se despedir para ir ao trabalho.
- ?
Eu era criança quando fui vítima da minha primeira traição. Deveria ter uns seis anos, aquela idade em que não se tem filtro e não sabemos bem como se "ler o cômodo". Foi antes do meu pai nos deixar, antes do começo do fim da nossa família.
Ele estava bêbado, querendo sair para beber mais e nos levar com ele, como um passeio noturno em família. Eu fiquei empolgada, não éramos muito de sair para comer fora e, enquanto uma criança feliz por ver o pai mais alegre que o normal, embarquei na ideia, insistindo muito para irmos com ele.
Minha mãe não gostou.
Na manhã seguinte, com fome por ter jantado um pacote de biscoitos na noite anterior que fora mais longa que o normal, me distraí com meus pedaços pequeninos de giz de cera no verso de uma folha de papel já usada. Ouvi minha mãe reclamar em voz baixa com as amigas, dizendo o quanto minha atitude irresponsável havia deixado a situação insustentável na noite passada. Como eu a havia deixado chateada. A aporrinhação de uma criança não deveria ser o fator responsável pela briga que se estendeu durante a madrugada, muito menos o motivo de sua reclamação.
Eu entendo isso hoje. Sabendo bem que minha mãe procuraria qualquer um para culpar, menos o real responsável por sua infelicidade, eu entendo que eu era o receptáculo mais próximo para sua ira. E ela aproveitou disso, sempre que pôde.
A voz dela soa tão magoada agora quanto soou naquela época, em que somente por chamar meu nome, ela me fazia sentir culpada por existir como parte deste grande problema que é a sua vida.
- Mãe – digo surpresa, confusa, assustada.
- Eu estava voltando do supermercado. Ouvi umas beatas fofocando sobre terem visto você dentro de um carro chique. Quis ver se não era um camburão. - Ela evita me olhar diretamente, mas analisa os braços de em volta de mim, agora ainda mais protetor.
- Acho que era uma BMW – diz ele, sério e baixo, alerta como um guarda-costas.
- Não era um camburão. - Ela constata, ele balança a cabeça.
- O que você quer? - Encontro coragem para perguntar, chamando a atenção dela para mim. não merece a indiferença cortante da voz dela.
O olhar vago e vazio de bons sentimentos continua ali. Eu sei lidar com ele, só não consigo mais ser combativa o suficiente para suportar tamanha frieza.
- Te dar os parabéns pela tal batalha. Eu soube que a equipe do seu irmão venceu. - Dá de ombros, apertando os dedos em volta das alças das sacolas que carrega.
- Você sequer assistiu à apresentação inteira? - Sinto se afastando. Sua educação na tentativa de nos deixar à sós me apavora. O puxo pela camiseta, o mantendo por perto.
- Não. Eu assisti o que eu precisava e fui embora – diz simplesmente, apressada para continuar seu rumo em direção à total solidão.
- Certo.
- Eu soube que a sua tia está namorando… Como estão as coisas? - e eu nos entreolhamos, confusos.
- Você quer mesmo saber? - Ela dá de ombros. - Por que não ligou? Nós moramos aqui, por que não veio perguntar como as coisas estavam quando a tia Vanessa ficou viúva? Ou quando ela estava sendo investigada? - Sinto meu peito pesar, cada vez mais. Como se estivesse se enchendo de uma raiva contida há muito tempo, despertando antigas sombras que rasgam feridas que nunca se fecharam de verdade.
- Com quem pensa que está falando? Eu sou sua mãe! - Ela clama o título, me fazendo rir com escárnio.
- Não, não é. Você mesma disse que seu único filho está morto – corrijo, me lembrando da última vez em que, pela falta dela, eu me senti absolutamente sozinha.
- Se você for levar em consideração o que eu disse enquanto estava sofrendo a perda do meu filho… - Ela ri sem jeito, usando a fachada da vítima da história.
Não desta vez.
- Você sempre foi a mãe do Pedro, mas uma pessoa totalmente diferente para mim. Você ter dito aquilo libertou nós duas. Se ficássemos juntas naquela casa, nós também não sobreviveríamos e não teríamos uma nova chance. Ele me salvou, mãe. Você tem que perdoá-lo por ter escolhido ser verdadeiro consigo mesmo até o fim, talvez assim você possa encontrar uma forma de se perdoar também.
- Você acha que sabe da vida… - Ela cospe as palavras, prestas a emendá-las com sua descrença em mim.
- Mas eu sei. - Interrompo convicta. - Você não pode simplesmente negar algo do qual não fez parte. Eu sei sobre a minha vida. Sei o quanto você deixou tudo ainda mais difícil. Sei também que não é inteiramente culpa sua. Sei que te perdoo e sou grata por tudo o que me fez passar. Você me forjou mais forte e eu sei que nunca mais vou deixar que alguém me faça sentir menos do que sou. - Minha mãe me encara com ofensa no olhar e isso não me surpreende.
- Você é uma ingrata! Como pode dizer que todos os esforços que fiz para te criar sozinha não significaram nada? - Ela deixa as sacolas no chão, alterando a expressão culpada para uma mais irada, acusadora.
- Espero que você tenha uma segunda chance, mãe. Para encontrar a vida que você queria ter. Ainda dá tempo. - Tento sorrir, mas sinto profunda pena dela.
Pena é algo tão amargo para se sentir por alguém quanto o ódio. Há um vazio na pena, uma sensação de impotência ao ver alguém que já fora bom um dia sucumbir ao sofrimento e à miséria, se deixando definhar dia pós dia.
- Você se acha melhor do que eu? - Ela grita, se lançando contra mim e dando de cara com uma parede maior que nós duas.
- Dona Vânia, com todo respeito, acho melhor a senhora ir embora. - a mantém parada pelos ombros, seu toque é temeroso por mim e por ela, que tem a palma estendida, fervendo em ira. - Vocês deveriam conversar com mais calma outra hora – sugere calmo, educado. A frequência de sua voz falha um pouco, demonstrando o choque que ele sente ao ver de perto quem ela realmente é.
tem uma mãe amorosa de verdade, garanto que ele nunca vira tamanho desprezo nos olhos de alguém em relação aos filhos e isso é apavorante. Eu entendo a aflição dele e me sinto péssima por ele estar nesta posição agora, me defendendo de minha própria mãe.
- Não tenho mais nada pra dizer… - Ela se desvencilha dele, agarrando as sacolas de qualquer jeito e batendo o pé pela calçada em sua frustração.
- Você está bem? - se vira em minha direção, ainda assustado.
- Me pergunte de novo mais tarde – digo baixo, respiro fundo e me deixo ser abraçada por ele. - Obrigada por ter ficado comigo, me desculpe por isso.
- Eu não vou a lugar algum. - Ele sorri se mostrar os dentes, me abraçando ainda mais forte.
- Nós temos que trabalhar – digo com a voz embargada, me recuperando do golpe que nunca veio, mas machucou mesmo assim.
- Certo. Eu volto logo para dormirmos juntos. - beija minha testa, protetor.
- Estou ansiosa. É a melhor parte do meu dia! - Ele toca a ponta de meu nariz, me fazendo rir fraco. sobe na bike, pronto para começar a pedalar.
Aceno para ele, torcendo para que ele não caia enquanto faz uma de suas manobras convencidas.
Mais ao fundo do cenário, o balançar dos cabelos cacheados presos para o alto com desleixo me faz respirar fundo de novo, segurando bem o ar em meus pulmões, juntando todas aquelas lembranças, os sentimentos ruins, as palavras dolorosas e as expurgando ao soltar tudo para fora.
A vejo caminhar para longe, segurando o peso das sacolas e das consequências de suas ações e decisões.

Espero que ela encontre sua segunda chance, um dia.

Continua...


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Nota da autora: Quantas desventuras ainda aguardam a Eve nessa história? Esse capítulo foi mesmo uma montanha-russa, difícil até para escrever. Mas aqui estamos.

Oi, meu amor! Coisa boa demais poder dividir mais essa partezinha maluca da minha cabeça com você. (2006) é uma história crua, difícil de engolir. Ela tem sido um desafio para mim desde o início. Como fã assumida e orgulhosa de romances clichês, de problemas cotidianos e amores impossíveis, juntar isso à tragédia me deu um, dois ou dez nós na cabeça e eu sigo tentando desembaraçar essas ideias para trazer uma história emocionante, cheia de esperança, mas com responsabilidade por tratar de assuntos tão delicados.

Eve é uma personagem em constante evolução. Em cada capítulo ela aprende algo novo sobre si ou sobre o mundo, às vezes não é muito flexível à essas mudanças e acho que parte dessa resistência tem muito a ver com a falta de experiência em si mesma. O Leo, por outro lado, não se surpreende com as nuances da vida e tenho certeza de que essa visão mais despreocupada dele possa ajudá-la a enxergar as coisas com mais leveza também.

Espero que estejam gostando de fazer essa escavação de tragédias junto comigo. Prometo que as coisas vão começar a se resolver uma por uma e nossa menina vai poder voltar a dormir tranquila (mais alguém ficou com pena dos hábitos de sono dessa garota?).

Por fim, mas nunca menos importante, obrigada demais por acompanhar meu desenvolvimento como autora. Cada clique significa um pedacinho do meu mundo sendo construído e eu nunca vou ser grata o suficiente por essa chance maravilhosa de compartilhar com você meu sonho sendo realizado pouco a pouco.

Qualquer sugestão, reclamação, puxão de orelha e claro, os surtos, vem me ver no Instagram, o link está abaixo. Mas aquele comentário aqui muda tudo, você sabe.

Um beijo enorme. Tear.



OLÁ! DEIXE O SEU MELHOR COMENTÁRIO BEM AQUI.

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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