Finalizada em: 07/11/2019

Capítulo Único

Eu me pergunto, como eu deveria me sentir quando você não está aqui?
Porque eu queimei todas as pontes que construí quando você estava aqui
Eu ainda tento, me prender à coisas bobas, eu nunca aprendo
Oh, por quê? Todas as possibilidades
Tenho certeza que você ouviu
That’s What You Get - Paramore


Tudo tem um princípio.
Olhei mais uma vez para os lados, a rua que estava cheia de carros agora estava vazia e só com a van da emissora estacionada, depois encarei a chave pendurada no meu mindinho e bufei, insatisfeita. Mais uma vez fiquei encarregada de levar os equipamentos sozinha para a sede. Isso não era um problema, em partes era o meu trabalho como estagiária. O real X dessa questão é que sempre sobrava pra eu levar todos os equipamentos para a van e depois dirigir ela até a sede e aí relatar o que entreguei e o que foi feito, para daí sim fazer o meu trabalho e ir para casa. Como normalmente os eventos que o meu grupo ia era à noite, eu chegava em casa quase com o dia amanhecendo. Poucas vezes conseguia dormir antes de ir para meu curso de manhã.
Mas bem dizem por aí, vida de estagiário não é fácil. Quando saí do Brasil para fazer o curso aqui em Madrid, imaginei que não seria moleza, principalmente se conseguisse algum estágio durante o período. Estava preparada para viver isso, mesmo assim me frustrava algumas situações que passava, como a do momento.
Em meus braços eu tinha dois tripés, no braço direito duas maletas com os fios e dentro do carrinho as caixas com as câmeras de filmagem. Então restava o meu dedo mindinho para colocar a chave – e torcer para que no caminho empurrando o carrinho, ela não caísse, porque aí sim eu teria complicações na minha logística de carregamentos.
Com todo o cuidado do mundo, apoiei os tripés na van, mantendo meu corpo bem próximo para não ter perigo de cair e riscar. Coloquei as maletas no asfalto e mais uma vez me certifiquei que a rua estava segura para eu abrir a van. Apertei o botão no controle do alarme para destravar, mas a porta de trás não se abriu, tentei outra vez, mas sem sucesso, mais outra e mais outra, continuando no mesmo resultado. Respirei fundo e olhei para os lados, vendo que só tinha eu mesma naquela rua deserta – o que era incrível, porque do outro lado tinha um evento enorme e muita gente. Ajeitei os tripés para que não caíssem quando eu tirasse meu corpo dali e dei a meia volta no veículo, indo até a porta do motorista. Tentei outra vez e desta vez a porta se abriu, então eu só precisava abrir a de trás.
Mas ainda assim, tentando mais duas vezes, ela não abria porque estava emperrada. Talvez por dentro alguma travinha não estivesse certa, mas eu não podia entrar e deixar as coisas do lado de fora. Suspirei mais uma vez e coloquei as mãos na cintura observando os objetos em meus "poderes", pensando nas minhas opções. Qualquer coisa que acontecesse com esses equipamentos, poderia me considerar uma ex-funcionária da emissora.
Não sei quanto tempo fiquei parada desta forma, mas levei um susto ao ouvir uma voz próxima demais do meu ouvido, me tirando de um provável devaneio.
– Desculpa, eu não queria te assustar... – me virei encarando o rapaz, não conseguindo olhar seu rosto com total definição por conta da luz fraca do poste; mal entendi o seu espanhol que era carregado de sotaque e muito rápido.
– Eu... me desculpa, não consegui entender muito bem, você fala rápido demais. – disse fazendo uma careta.
– Eu pedi desculpa. – ele repetiu e dessa vez entendi, também pude enxergá-lo melhor assim que deu um passo à frente. – Não queria te assustar. – sorriu simples, parecendo sincero.
Levou alguns segundos para que meu cérebro de torcedora nata de futebol, reconhecesse que era quem estava em minha frente. Ele estava no evento – o mesmo que meus companheiros foram cobrir, mas que agora estavam sabe-se lá onde – que era voltado à uma instituição beneficente. Pelo o que entendi bem, era um leilão para arrecadar fundos para a construção de um centro de treinamento pra um time de futebol infantil, que era de crianças carentes e o era o maior doador de materiais para o leilão.
– Ah, sem problemas... – respondi sincera.
– Tá com problemas? Precisa de ajuda? – segui seu olhar em direção às coisas, percebendo que sua intenção era me dar mesmo uma "mão".
– Eu não estou conseguindo abrir a porta da van e preciso colocar essas coisas lá dentro. Achei meio perigoso entrar pela frente e deixar as coisas aqui até eu conseguir abrir por dentro... – coloquei as mãos na cintura novamente, explicando a opção mais fácil que tinha.
– Bom, entra lá então, eu fico aqui do lado de fora. – sorriu se aproximando do carrinho.
– Ok, eu vou tentar destravar por dentro, fica perto da porta pra você me ouvir caso eu precise que destrave aqui por fora. – o instruí e me afastei.
Entrei pelo lado do motorista. Enquanto a porta de trás da van travava a lateral de passageiros também tinha o mesmo "destino", então a única opção era eu me espremer entre os bancos da frente para passar para o lado de trás. Quando cheguei à porta que precisava abrir, vi que era realmente a trava de dentro que estava com o problema.
– ‘Tá me ouvindo? – disse alto, o chamando.
– Sim. Precisa que eu faça o quê? – perguntou, parecendo que sua voz estava bem próxima.
– Afasta os dois tripés da porta, tenta colocar com cuidado no carrinho junto com as caixas. – disse e o ouvi concordar. – Por favor, com cuidado! – pedi.
– Pronto! – a resposta veio poucos segundos depois.
– Agora eu vou contar até três e forçar a porta, no três você vai puxar a maçaneta e aí a porta vai abrir com tudo, tá? – disse calmamente para ele entender.
– Ok.
Puxei a maçaneta de dentro duas vezes e não consegui, então forcei com o corpo e quando senti a porta mais "mole", iniciei a contagem.
– Vou contar... 1, 2 e... 3!
Ao abrir, meu corpo foi jogado para a frente com força, por perder o apoio que era a própria porta. Porém, do lado de fora, estava na mesma direção e colado na porta também. Ou seja, eu perdi o equilíbrio e caí em cima dele. Foi um tombo bem 'honesto', digamos; caí em cima dele parecendo um cobertor e ainda senti que meu joelho acertou partes sensíveis do corpo do mesmo.
– Me desculpa... – digo, encarando seus olhos que estavam bem próximos, roçando a pontinha dos nossos narizes.
– Não... tem... problema... – disse com dificuldade.
– Ai meu Deus! Eu te machuquei? – me desesperei.
– Você... está com... o joelho...
– AH! Me desculpa! – me atentei e saí de cima do mesmo, sentando ao seu lado ainda no asfalto mesmo. – Tá tudo bem?
Ele apenas assentiu positivamente com a cabeça, sentando-se devagar.
– Espero poder ter filhos ainda. – disse com a voz um pouco melhor, levando a mão na sua região íntima.
Me levantei, batendo a mão levemente no jeans que usava para tirar a sujeira e o olhei novamente.
– Se você não puder ter filhos vou ficar conhecida como a mulher que te deixou estéril. – ri fraco, meio nervosa. – Mas veja pelo lado bom, nenhuma – fiz aspas com os dedos e careta ao usar um termo machista – "Maria chuteira" vai te dar o golpe da barriga, você pode continuar curtindo a vida adoidado e tal.
Ele se levantou me encarando estranho, o que fez eu me sentir péssima com meu comentário. Às vezes eu tinha essa perda de noção do ridículo e quando ficava nervosa, comentava coisas mais sem noções ainda.
– Me senti ofendido... – ele franziu o cenho. – E você usou um termo machista, realmente não gostei.
– Você acha isso machista? – disse incrédula.
– Claro, você não?
– Ah... eu- – ! – viro para trás vendo Pilar vir em minha direção; ela era, digamos que, minha chefe sempre simpática e dona do "mulherão da porra". – Ainda bem que você não foi embo...ra, ainda. – a vi se desconcentrar ao ver que estava em minha frente. – , achei que tivesse ido embora.
Dei dois passos para trás, indo em direção ao equipamento, deixando os dois no papo amigável – e com intenções por parte dela, claro, aliás, quem não teria? Aquele homem era mesmo irresistível, não só pela beleza, mas pelo charme e simpatia. Afastada dos dois comecei a colocar as coisas na van, quando estava na última caixa do carrinho, Pilar se aproximou, me dando a maleta que ela trouxe.
– São os microfones, Sara esqueceu de colocar no carrinho. – ela sorriu, aquele sorriso que me deixava intimidada sempre.
Com 34 anos, Pilar era muito bem sucedida. Apresentava um quadro no programa El Hormiguero, da emissora – aliás, era este programa que estava cobrindo o evento e que eu ficava a maior parte do meu tempo como estagiária. Sempre simpática, auto confiante e dona de si, além de ter um coração maior que o mundo e ter a imensa vontade de ajudar o próximo sem nenhuma intenção de se auto satisfazer com prazer. Era pura bondade. Pilar Rubio era uma das mulheres que mais me intimidava, ela só perdia para Rihanna, mas a diferença é que eu não convivia com a cantora, mas com a apresentadora.
– Deixa tudo direitinho lá, ok? Por favor. – me pediu docilmente e eu pude enxergar parado atrás dela, olhando para seu celular. – O Eitor deu uma arranhada no cabo do microfone E6, aí pode colocar no relatório que foi por mal uso mesmo... Samanta passou e derrubou da mão dele. – concordei a vendo revirar os olhos. – Boa noite, querida, até amanhã.
Pilar saiu, se despedindo de com um "Te vejo lá dentro" e ele sorriu minimamente, me virei para organizar as coisas e fechei a porta da van, forçando a maçaneta para não ter problema de abrir. Era uma porta de opinião, quando travava, travava mesmo; quando ficava frouxa, ficava frouxa. Bem redundante, mas é para dar o impacto mesmo.
– Eu sou .
Pulei no lugar, levando um susto, sentindo meu coração acelerar e apoiando minha testa na porta. Respirei fundo.
– Puta merda! Você está aqui ainda!? – disse me virando.
– Desculpa, te assustei de novo... – ele fez uma careta.
– Tudo bem, não tem problema, agora estamos quites porque eu quase matei seus possíveis filhos. – dei de ombros e ele riu.
– Enfim, eu sou ... . – estendeu a mão. – .
– É, eu sei. – dou a mão para cumprimentá-lo. E eu sou . Silva.
– É, eu sei. – ele repetiu e eu fiquei séria. – Tem seu nome no seu crachá, embaixo da foto. – apontou com a mão livre e eu olhei para o acessório.
– Poxa, é mesmo. – soltei sua mão bruscamente, pois havia esquecido que estava segurando a mesma ainda, para segurar o crachá.
– E agora, vai pra onde? – o olhei, desviando a atenção.
– Levar tudo isso para a emissora e depois ir pra casa. Hoje vou deixar o trabalho acumular para amanhã, todo esse problema com a porta me cansou. – sorri fraco.
– Quer ajuda pra abrir a van quando chegar lá? – perguntou rápido.
– Ah... – tomei fôlego para responder. – Tem os meninos que fazem a segurança, eles podem me ajudar se eu precisar, não precisa se preocupar, .
– Pode me chamar de . – o sorriso desta vez foi o maior da noite. – Mas você tá complicando, era uma forma de eu te chamar pra ir tomar alguma coisa. Se você quiser, é claro. Eu posso ir com você, te sigo com meu carro e espero você terminar, aí vamos pra algum lugar comer e jogar conversa fora. Se você não gostar, pode ir embora a hora que quiser, pedimos um táxi e você vai.
Eu não estava tão convencida, até encarar seus olhos iluminados pela luz do poste.
Eu não devia ter encarado aqueles olhos.

– Você é muito boazinha, isso sim.
Fred me olhava como se eu fosse uma coitada. Ele estava terminando o próprio relatório de uso de equipamentos para trabalhos externos e, como sempre, incrédulo ao me ver fazer o relatório de quem era responsável por aquilo da equipe que eu ficava. Frederich era diferente de todos ali na emissora; britânico puro, feito de uma educação surreal, o "câmera men" não deixava que seu estagiário fizesse seu trabalho.
– Eles são legais comigo, posso ser legais com eles também. – termino de adicionar a última palavra à folha, o olhando com um sorriso simples formado em meus lábios. – Aliás, você conseguiria dizer não à Pilar Rubio? Aquela mulher te convence só por respirar. – abro a pasta e coloco a folha, assinando meu nome.
– Quero ver se a auditoria pensa o mesmo que você quando ver suas assinaturas aí. Pilar é toda...
– Poderosa. – completei para ele, vendo que tinha dificuldades de encontrar uma palavra.
– Isso, pode ser... enfim, mas ela não é de ferro e é funcionária assim como todos os outros daqui. Tem teto de vidro. – ele terminou sua observação, também finalizando seu relatório.
Me levantei, sem dizer mais nada para não me prender por muito tempo ali, olhando para meu relógio de pulso. estava esperando há pelo menos vinte minutos do lado de fora da emissora. Não que eu quisesse me apressar para ele e estivesse ansiosa para ir tomar algo com o jogador, mas é que era ruim e falta de consideração ficar enrolando ali dentro. Mesmo que ele tivesse insistido que me esperaria, eu tinha que ser compreensiva.
– Não vai ficar mais? – Fred me perguntou, ele sabia que normalmente eu ficava mais um pouco para adiantar outras coisas.
– Hoje não. – peguei minha bolsa em cima da cadeira e guardei a pasta na gaveta de arquivos.
– Quer carona? Tô terminando aqui e hoje Jesuela não usou o carro então deu para vir com ele.
Frederich disse se levantando e fazendo o mesmo que eu tinha feito com seus relatórios, pegou seu casaco que estava no encosto da cadeira que sentava e se virou para mim, sorrindo fraco. Ele sempre me dava carona quando nossos horários de ir embora coincidiam. Jesuela era sua esposa; eles não gostavam muito de esbanjar dinheiro, então viviam muito bem dividindo um carro, talvez fosse pelo período de férias das crianças que ela não estava usando.
– Não vou precisar, Fred, muito obrigada. Manda um beijo para Jesuela e as crianças, diz a Biel que vou levar o aranha pra ele essa semana. Vou sair e depois ir pra casa, amanhã preciso fazer algumas coisas cedo para a entrevista na Kick'em quinta. – pego o celular indo em direção à porta, vendo seu olhar sugestivo – Bom descanso!
– Juízo moça!
Ri fraco ao, já no corredor, ouvir sua voz. Fred, com seus trinta e seis anos, era um cara bem legal. Ele e sua esposa sempre me convidavam para jantar com eles, eu me divertia bastante com as crianças e acredito que as crianças também se divertiam comigo.
Caminhei pelo estacionamento, deixando a chave da van na guarita com o rapaz responsável por guardá-la no lugar certo. Quando passei pelo portão e vi o carro preto parado do outro lado da rua, senti meu corpo travar um pouco. Eu estava inconscientemente preocupada com o que iria fazer em um restaurante caro com um jogador de futebol mundialmente famoso como .
Desde que cheguei em Madrid, o pouco contato que tive com os espanhóis da minha faixa etária foi no mínimo aterrorizante. Tanto que passei a focar mais em meu objetivo: terminar meu curso e em seguida ser fotógrafa de campo – trabalhar em eventos esportivos, tendo minha primeira opção de esporte o futebol. Com isso, perdi toda a destreza em flertar, então sim, eu estava preocupada com como seria aquele negócio todo que tinha planejado. Eu não sabia se ele iria flertar comigo, se ele queria apenas uma companhia, se ele queria os dois.
Respirei bem fundo, sentindo o oxigênio em meu cérebro, me fazendo colocar a mão na maçaneta da porta. Era isso, eu iria entrar no carro e ir jogar conversa fora com um cara que eu só tinha visto na televisão e algumas vezes de longe em eventos. Se eu conseguisse ser menos robótica, talvez, bem talvez mesmo, iria gostar de mim.

O caminho era longo, pois estávamos indo para uma região bem afastada de Madrid, mas estava sendo tranquilo. Trocamos algumas palavras falando sobre a música que tocava e eu acabei por descobrir que era muito fã de Enrique Iglesias. Quando eu disse que não gostava muito do estilo e que preferia ouvir Madonna, o espanhol ficou desconfiado e disso surgiu um grande assunto. Ele queria a todo custo me fazer gostar do estilo latino.
– Sério, ... Você é brasileira e prefere ouvir Madonna do que música com estilo latino! Você está sendo a brasileira errada, vai ter que nascer de novo.
O ouvi dizer incrédulo, entrando com o carro na área do valet do, que eu supus, ser o restaurante que iríamos. Ele saiu antes que eu pudesse dizer algo e quando me dei conta, estava abrindo a porta para mim. Achei incrível não ter nenhum paparazzi perto, pois era bem comum que algum flash ou outro fosse direcionado para ele.
– Ainda não estou conseguindo entender seu problema com meu gosto musical. – digo sendo guiada por ele, tendo sua mão na base de minhas costas.
– Madonna é maravilhosa, sim. Mas, não gostar de um reaggaeton é estranho. – pude sentir que seu rosto estava bem próximo a lateral do meu.
– Eu não vou dizer mais nada a você. – cruzo os braços.
– Não? Vai sentar na mesa e ficar só me olhando?
– E comendo, você que vai pagar, então, não custa aproveitar, não é mesmo? – viro meu rosto, olhando para cima, em seus olhos e dou um sorriso cínico.
– Então era por isso? – coloca a mão livre em seu peito, parando de andar e mudando sua outra mão das minhas costas para a cintura. Sua expressão era afetada e eu fiquei preocupada, era só uma brincadeira. – Você só queria comer de graça esse tempo todo? Eu dividi minha playlist com você nesses últimos quarenta minutos e você só estava pensando em me dar o golpe do estômago? Estou devastado.
O sorriso que se formou em seus lábios, sutil, mas perceptível, me fez respirar vendo que ele estava brincando também. Ri fraco e logo um rapaz bem vestido apareceu para nos guiar até nossa mesa. Pelo o que entendi, tinha ligado pedindo para que deixassem uma mesa pronta para nós dois.
fez o pedido das entradas e quando eu menos esperava, já tinha uma garrafa de vinho aberta em nossa mesa e duas taças servidas.
– Você vai beber? – perguntei o vendo levar a taça em direção aos lábios, com a sobrancelha arqueada.
– Vou. Por quê?
– Ah, não sei, talvez porque tem um carro lá fora que você vai dirigir... mas assim, não sei né. – dou de ombros.
volta a taça para a mesa, mantendo seu olhar em mim.
– Gostei do seu senso de humor. – sorriu e eu pude perceber que, mesmo sendo novo, as ruguinhas em seus olhos ficavam mais aparentes.
– Eu faço meu melhor. – pisco, levando a taça até a boca e coloco meu celular em cima da mesa.
– Me conta sobre você, senhorita Silva.
pega o cardápio e começa a folhear. Instantaneamente me pego inerte ao pensamento petulante que sempre me assola quando alguém me diz essa mesma frase ou os derivados dela, sem saber como falar sobre mim mesma.
– O que você quer saber? Meu nome já sabe, onde trabalho também... – digo bebendo o vinho, sentindo o álcool descer quente pela garganta.
– Sei lá, você. Me fala do que você é feita, não biologicamente. – colocou o cardápio na mesa, apoiando o rosto em cima das mãos. – A julgar pelo seu modo de falar, descobri que você é brasileira.
– Então continue seu joguinho. Vamos ver o quanto você acerta. – o olhei desafiadora.
– Você tem uma irmã mais velha que está fazendo faculdade de alguma ciência exata, seus pais estão aposentados e tem uma vida de alto nível ainda, viajando pelo mundo afora. – se ajeitou na cadeira, ainda me olhando. – Fotografia não era sua opção e você acabou por vir pra Madrid porque alguma coisa muito importante te fez mudar de ideia. Seus pais queriam que você fosse para alguma faculdade cara do país e não ficaram animados com a ideia da filha mais nova ir pra um outro continente. Você sente falta deles todos os dias, mas tem muito orgulho para admitir isso. Acertei?
Respiro fundo, tentando manter meu olhar em seus olhos, de certa forma ele acertou em cinquenta por cento da minha história.
– Terceira lei de Newton. – curvo o corpo para frente, apoiando os braços na mesa. – A terceira lei de Newton diz que, basicamente, para se ir a algum lugar devemos deixar algo para trás. – sorrio simples. – Meu pai e minha mãe são aposentados sim, mas nenhum deles sempre teve uma boa vida. Nós tivemos o básico e muitas vezes quase suficiente. – suspiro, ainda mantendo a mesma firmeza para contar a ele coisas sobre mim que eu não falava a ninguém. – Meu pai era pedreiro, trabalhou dia e noite debaixo de sol, chuva, frio e calor, tudo para poder dar o que podia a mim e minha irmã mais nova. Ele construiu a própria casa, todo mês durante quatro anos ele vinha com alguma coisa para fazer algum lado. Mês era o banheiro, mês era a cozinha. Nós morávamos com minha avó materna, a casa era bem pequena e às vezes alagava por conta do rio que corta a cidade. Até que quando o básico da estrutura ficou pronta e nós nos mudamos. Ainda era no subúrbio de São Paulo, de vez em quando, com temporais muito fortes, alagava também, mas era mais raro do que quando morávamos com a minha vó.
– Não precisa continuar se não quiser... – ele disse compreensivo.
– Não se preocupa, não tenho vergonha da minha história. Eu nunca tive alguém interessado em ouvir e que me ouviu, como você está fazendo, sem pena. – sorri, bebendo novamente o vinho.
– Não preciso ter pena de você, na verdade estou te olhando com admiração. Sua família deve ser muito unida e... bom, continua. – incentivou, mantendo a mesma expressão interessada em me ouvir.
– Eu estudei em escola pública; meus pais mantiveram eu e minha irmã na mesma escola desde o ensino fundamental até o colegial. – terminei o conteúdo da taça e serviu mais. – No ensino médio fiz curso técnico de mecânica e tive a certeza que iria me formar em engenharia mecânica. Mas meu pai conheceu Anestor Burghesi, um engenheiro. Anestor contratou meu pai para construir a casa dele na zona sul, ser o chefe da obra. Meu pai foi. – sorri me lembrando do homem. – Ele ajudou muito a minha família e contratou meu pai para trabalhar na empreiteira dele. Ele era solteiro e iria morar sozinho em São Paulo naquela enorme casa, então decidiu contratar minha mãe para cuidar da casa para ele e nos levou para morar na casa do fundo. Eu odiava câmeras, mas Anestor tinha uma atividade favorita: fotografar. Dois anos depois ele faleceu e nós descobrimos que ele tinha deixado tudo para nossa família, a empresa dele ficou para minha irmã mais nova tomar conta. – ri fraco. – Ela é brilhante e está cursando administração.
– Caraca. – ele murmura.
– Sim, dá pra acreditar nisso? Ele não tinha filhos, não tinha ninguém. Só aquele império que construiu por anos, com muito trabalho, igual meu pai com a casa dele.
– E como você decidiu que iria fazer fotografia?
Olhei para os lados me lembrando como Anestor me fez criar certo carinho pelas câmeras.
– Porque mesmo não gostando de ser fotografada, ele deixou pra mim todo seu equipamento, câmeras de todos os tipos e anos. E de alguma forma eu senti mais prazer e satisfação fotografando os jogos de futebol dele de quinta-feira, do que fazendo fórmulas de física. Calcular o ângulo certo para enquadrar uma imagem em momento exato, me faz ter mais vontade do que calcular o ângulo da hipotenusa. – ri, sorrindo abertamente.
abriu os lábios para falar alguma coisa, mas meu celular em cima da mesa tocou, notificando o lembrete que eu havia programado: "Dormir bem para relaxar e estar tranquila na entrevista da Kick'em". Ele olhou e ficou curioso.
– Kick'em? É a Kick'em que estou pensando? A de fotos esportivas... – perguntou e eu confirmei com um aceno de cabeça. – Caraca! Me conta mais, se quiser, claro.
– Eu termino meu curso na próxima semana, aliás, meu trabalho final ficou maravilhoso, te mostro qualquer dia. – pisco sorrindo.
– Vou adorar ver. – ergue a taça afirmando.
– Então, eu termino o curso e, modéstia parte, fui muito bem em tudo, terminando como a aluna exemplar. – sorri meio convencida, apenas por brincadeira. – Minha instrutora do trabalho final trabalha para a Kick'em em alguns eventos específicos e ela me indicou para eles. Consegui uma entrevista depois de amanhã, sexta.
– Na verdade – ele olhou pro relógio no pulso. – já é meia-noite, então é amanhã. – ergueu o rosto sorrindo.
– Eu tô muito ansiosa, sempre fui calma e tranquila, mas tô realmente ansiosa. – digo deixando minha ansiedade transparecer. – Se eu passar, vou sair mundo afora fotografando jogos importantes. Posso fotografar uma final de UEFA Champions League e os campeonatos mais famosos do mundo, Premier League, LA Liga, Bundesliga... Isso seria incrível! – me animo.
– Caramba! Seria mesmo, eu não consigo dizer que imagino sua felicidade porque não sei como é essa sensação. – fez um bico.
– Pensa num... não sei... – penso um pouco. – Imagina um El Clásico. Isso! – sorrio. – Ganhar um el clásico pra você é a mesma coisa que passar nessa entrevista.
– Puts, ganhar do Barcelona é tudo na vida...
– Sim! No Bernabeu já é bom, agora imagina no Camp Nou!? – incentivo-o a pensar, mordendo o lábio.
– Cara, isso é incrível! – sorriu abertamente. – Você tem um el clásico amanhã então.
– Tenho. E vou ganhar, de goleada!

parou o carro na frente do prédio de kitnet que eu morava e eu continuei olhando para frente, mordendo o lábio. O jantar havia sido incrível e em algum dado momento ele percebeu que eu não conseguia mais beber o vinho, então tive que confessar minha fraqueza para o álcool. Ele entendeu perfeitamente, o que me fez enxergar o quão diferente dos caras estranhos com quem eu já havia me relacionado em todos os meus 21 anos.
Minha mãe sempre me dizia: "Um dia você vai encontrar alguém, pode ser com vinte, trinta ou setenta anos, você vai encontrar alguém que te faça querer dizer tudo o que pensa. Pode ser depois de um mês, um ou três anos, até mesmo depois de uma década. Ou no mesmo dia que se esbarrar com tal. Mas você vai encontrar essa pessoa, ela pode ser passageira ou não, depende apenas de vocês.". E honestamente, olhando para aquele painel do carro, a rua escura e ouvindo aquela música que agora estava baixa, eu sentia que queria dizer mais, compartilhar tudo e fazer mais para poder ter o que dizer a ele.
Silenciosamente decidi tirar minha bolsa do meu colo e estender minha mão, pegando na dele. virou o rosto pra mim e sorriu, aproximando devagar. Não demorou muito e também não foi nada rápido, foi o tempo certo. Nossos lábios se encaixaram e eu senti aquele encaixe ser perfeito. A mão dele foi para minha perna e a minha em seu pescoço, ambos fizemos carinho um no outro. Até o beijo tomar um ritmo diferente, ordenado pelos dois. A mão em minha perna foi subindo para minha cintura e a minha em seu pescoço descendo, tendo a audácia de entrar por baixo de sua camisa e sentir sua barriga definida. E foi assim, um beijo com mãos bobas, até eu decidir que precisava de mais. E provavelmente ele também, pois quando percebeu o movimento que fiz, para abrir minha calça e a tirar, me ajudou a pular o meio de nossos bancos, me dando passagem para sentar em seu colo.
Eu não estava ligando se estávamos na rua, não queria sair dali e me separar dele até conseguir chegar dentro do meu minúsculo apartamento. Minhas mãos ágeis denunciaram isso quando foram para a braguilha dele, abrindo o zíper sem nenhuma dificuldade. Nos olhamos uma última vez, depois dele fazer a devida proteção com a camisinha, com nossos sorrisos sincronizados, e eu me senti mais do que preparada, tomando seus lábios novamente.
A sensação de ser preenchida por ele, de subir meu corpo e descer para o ter em mim, foi incrível. Meus lábios foram castigados enquanto não estavam colados aos seus. Quando me senti ofegante e satisfeita, deitei a cabeça em seu ombro, ainda sem me mover. Sentindo seus dedos que estavam por dentro de minha camiseta, passearem por minha cintura – talvez haveriam marcas pela forma que ele apertou, eu veria isso depois. Seguido do arrepio gostoso por sentir sua pele passando sobre a minha.
– Ei... – ouço sua voz rouca, erguendo o rosto apenas para o olhar. – Pega isso aqui.
Endireito meu corpo, o vendo tirar a pulseira de pingentes de cavalos que usava.
– Eu ganhei do meu pai quando era criança. Sempre gostei de cavalos. – sorriu pegando meu pulso e colocando a pulseira. – Costumo dizer que ela me dá sorte. Sempre a uso em jogos e, claro, uso uma fita para cobrir. Estou te dando para te dar sorte amanhã.
, é sua... eu não posso aceitar. – olho para meu pulso.
– Você me devolve depois. – o olhei vendo seu sorriso. – Depois do seu el clásico, porque semana que vem eu tenho o meu. – riu fraco e eu o acompanhei, selando seus lábios em seguida.
Eu podia aceitar como uma forma de o ver novamente.

Foi de quarta para quinta-feira, semana passada, que e eu tivemos um jantar incrível. Trocamos telefone e passamos o final de semana conversamos sobre tudo, até pensando em quando iríamos repetir o final daquele "encontro" em uma cama ou outro lugar mais confortável. Não havia recebido nenhuma mensagem ou ligação sobre o resultado da entrevista na Kick'em. A pulseira ainda estava em meu pulso e todos os dias eu a olhava, lembrando do momento em que teria de devolver.
Até que na terça eu recebi uma mensagem dele, perguntando se eu cobriria o evento que ele iria naquele dia. Por sorte, ou coincidência, Pilar precisou de mim e eu confirmei a ele que sim, então marcamos de nos encontrarmos depois e ir fazer alguma coisa.
Porém, no caminho para o evento, contei inúmeras vezes que Pilar citou o quão interessada se manteve em depois do leilão. Para ela, a forma que ele agiu e se portou, era incrível. Eu não discordava dela, mas não deixei de sentir um pontada de "ciúme". Não disse nada, não contei sobre minha noite com ele, era algo muito pessoal e nosso. Se fossemos para frente, uma hora ou outra todos saberiam.
Eu estava bem animada com tudo, o final do curso, os elogios pelo meu trabalho, o evento. Ver pela segunda vez e poder contar pra ele pessoalmente como foi minha experiência na entrevista. Tudo estava me deixando animada. Até, de longe, ajudando Sue a ajustar o áudio, ver Pilar entrevistando-o quando passou pelo meio de repórteres. Ela fez o que disse que faria, seria simpática como sempre e flertaria com ele, não só pelo humor do programa. Eu não a culpava, ela não estava fazendo nada de errado. Ele não correspondeu, meu coração ficou menos acelerado. Mas o e-mail que chegou em meu celular, no momento em que ele entrou e ela voltou para nossa direção, me fez repensar.
Kick'em havia me notificado formalmente por e-mail que minha entrevista havia dado resultado e eu precisava comparecer no dia seguinte para a parte burocrática do contrato de trabalho.
Eu havia sido aprovada.
Kick'em me contrataria.
Eu sairia pelo mundo fotografar.
ficaria em Madrid.
Nós não podíamos seguir adiante.
Pedi licença para Sue, vendo Pilar se aproximar e fui para a rua. Me sentei no meio fio, afastada, e olhei para a pulseira em minha mão. Seria difícil, eu já sentia que iria ser, me despedir dele, mesmo que fossem poucos dias. Mas eu tinha que fazer isso, eu não podia o prender sendo que eu mesma não me prenderia.
Digitei a mensagem mais breve possível, dizendo que não poderia sair com ele naquela noite porque haviam me dado trabalho a mais de última hora e em seguida a resposta veio em um carinha triste, junto com um "tudo bem" e "nos vemos amanhã, pode ser?". Não respondi, ignorei a vontade de dizer sim e controlei meus dedos.
Voltando para o ambiente com todos os outros, vi Sue dar seu último incentivo para que Pilar fosse fazer a última entrevista com .
– Pergunta se ele vai embora sozinho hoje! – ela riu e a outra lhe deu um sorriso antes de se virar e seguir em frente.
Suspirei olhando mais uma vez para a pulseira.
Terceira lei de Newton.

O meio.
Era isso, 3 x 1 Liverpool. Os gols? Capturei todos. Meu trabalho sempre foi satisfatório e em noites como as de hoje, eu me sentia prazerosa vendo todo o resultado do meu esforço, resultado de noites mal dormidas por ficar fazendo relatório alheio. Aprendi muito com o que vivi e hoje eu podia dizer que meu conhecimento já era grande, não o suficiente – pois conhecimento é infinito, sempre podemos aprender mais –, mas grande.
Entrei no saguão do hotel cumprimentando meus colegas da Kick'em e indo até o grupo de supervisores da equipe de fotos. Artur, o primeiro amigo que fiz na empresa, me recebeu de braços abertos. Ele, Sue e Ryan eram meus companheiros de supervisão.
A Kick'em sempre colocava quatro grupos em cada ponto do local de evento, a fim de não perder um clique importante sequer. Eles estavam eufóricos, assim como eu, por todo o conjunto da obra: as fotos haviam ficado espetaculares, eu, por mais que não fosse minha função mais, consegui capturar o gol de Gareth Bale de bicicleta que foi totalmente favorável ao título e havia ganho sua terceira UEFA Champions League consecutiva – isso era um marco histórico, que somente o próprio havia tido o prazer de ter. .
– O que vocês estão vendo aí? – perguntei, percebendo que eles estavam concentrados em uma imagem na minha câmera.
– Você me deu a câmera na van e nem tinha me dito que além da imagem do Bale, tinha uma de completamente eufórico com o Zidane, vem ver... – engoli seco esticando o pescoço, aquele nome ainda me causava lembranças que eu sempre lutava para esquecer.
Então eu senti meu coração parar, não pela adrenalina de ver campeão pela terceira vez seguida e ter capturado isso com as lentes que um dia eu tanto odiei, mas por ouvir a voz que eu nunca esqueci me chamar pelo apelido que, hoje, se tornara tão conhecido. Ele não sabia, mas ninguém me chamava de antes de .
...?
Me virei, realmente sem saber como reagir, sentindo meu sorriso que era largo para Artur, diminuir. Me perguntando internamente como é que ele havia me reconhecido, sendo que minha própria mãe toda vez que me via dizia que eu não me parecia mais comigo mesma. O olhar de diretamente em meu pulso, da mão que carregava a câmera me respondia: a pulseira de cavalos, aquela que eu nunca tirava e que, em suas palavras, era para me dar sorte anos atrás em meu "el clásico".
– Você... – ele parecia petrificado ao me ver, o queixo se movimentava, mas da boca quase nada saía. – Está diferente. "Sim, Sese, eu estou", em mente foi o que eu respondi, somente, pois ao mesmo tempo em que abri os lábios para dizer algo, vi Pilar e seus olhos extremamente claros me encararem, trazendo aquele sorriso de dentes perfeitos e autoconfiança, que seis anos atrás me faziam sentir como se eu fosse menor.
– Não é possível! – ela estava animada em me ver, mesmo que eu me sentisse irrelevante a isso. – , você está... Diferente!
Pilar me abraçou. Forte. Firme. De forma calorosa. Eu me sentira irrelevante a ela, mas nunca pude dizer que a mulher era uma vilã na minha história. Ela não era, eu fui. Então a abracei de volta, sem tanta intensidade, mas abracei. Fechei os olhos para não cruzar meu olhar com , eu sabia que ele me encarava até então, da mesma forma petrificada. E eu nunca admitira para mim mesma que ainda me doía a consequência de ter agido pela emoção.
Quando ela se afastou, algum interno do clube, disse que e Pilar precisavam sair logo do saguão por segurança. Vendo ele concordar e continuar me olhando sem dizer nada, me fez ficar dura no lugar. Pilar me deu um tchau, dizendo que adoraria poder me reencontrar em qualquer outro momento. Eu concordei, automaticamente claro, não que eu fosse me esforçar para entrar em contato com ela. Mas fui educada pelo menos.
Ao perceber os dois longe e a aglomeração que havia se formado com a presença deles e dos demais jogadores se desfazer, pude respirar aliviada.
– Eu... – olhei para meus amigos que me encaravam sem entender. – Encontro vocês amanhã no aeroporto.
Sorrio simples e sigo para alguma direção qualquer, só me dando conta de onde fui parar quando senti o líquido forte descer quente pela minha garganta, batendo o copo no balcão e pedindo outra dose do mesmo conhaque com limão.
Não passei desta segunda dose, pedindo apenas um Mojito e amendoins como petisco. Então não estava bêbada o suficiente para não ter certeza de que, depois daqueles quarenta e cinco minutos desde que cheguei ao bar do hotel, o rapaz cheiroso e bem vestido que se sentou ao meu lado era ele.
– Me lembro que você mal conseguiu beber o vinho aquela noite. – sua voz grossa estava neutra, tentando puxar assunto comigo de forma amigável. – Talvez o tempo tenha mesmo mudado a gente. – completa.
– E você esperava que não? – continuo olhando para os amendoins. – O tempo serve pra isso, mudar a gente.
Nem eu e nem dissemos nada por um tempo e eu apenas aproveitei a sensação de poder sentir o perfume dele, ainda era o mesmo a qual me lembrava.
– Por que você sumiu? Até hoje eu não consigo entender, ... – ele disse quebrando o silêncio.
Eu pude sentir a necessidade dele em sua voz. Pude perceber sua confusão interna, parecia que por todos esses anos havia guardado consigo toda aquela dúvida e da maneira como sua voz soava, eu senti uma ponta de culpa por parte dele.
– Eu... passei na entrevista da Kick'em...
– Isso deu pra ver. – virou com o corpo em minha direção, me interrompendo. – O que eu quero saber é...
– Não me pede uma justificativa, por favor. – viro somente meu rosto o olhando, desta vez sendo eu a interromper ele. – Eu não vou saber te dizer. Só consigo lhe dizer que é difícil sim, conseguir entender o que aconteceu e por que eu decidi que era melhor não te dizer nada. – faço uma breve pausa para organizar as ideias.
respira fundo e se vira novamente para frente, pedindo por duas taças de vinho. O barman logo atendeu colocando-as em sua frente. Ele empurrou com o dedo uma para mim.
– Terceira lei de Newton. – ele resmunga.
– O quê? – digo sem entender.
– Você me disse: "A única forma de se chegar a algum lugar é deixando algo para trás." – virou todo o líquido de sua taça. – É incrível que, Pilar é maravilhosa demais, eu amo ela. Entende? – não respondo por reconhecer que era uma pergunta retórica em seu monólogo. – Mas eu nunca consegui apagar aquele breve momento que tive com você em dois mil e doze. Foi incrível ficar dentro do carro conversando sobre tanta coisa e... eu me senti tão próximo de você, de uma forma que eu não sinto com a mulher que está comigo há 7 anos. – riu fraco. – Não tenho dúvidas sobre o que eu e ela temos, mas fico pensando como teria sido com você.
– Murphy. – digo tentando dar um tom de humor. – A lei dele dizia que o que tem que dar errado, vai dar.
– Prefiro o Newton. Ele não é tão pessimista assim.
Ficamos em silêncio, por breves segundos que pareceram minutos.
– A gente daria errado, ? – sua voz agora era somente curiosa.
– Não sei, talvez. – ri nasalado o vendo abaixar os ombros. – Mas se serve de consolo a você, eu também sempre me pergunto isso. Eu também me sinto como se a minha aproximação com você seja maior do que com qualquer outra pessoa que conheço a anos e convivo.
Percebo que estamos próximos demais e acredito que também percebeu, pois se afastou no mesmo momento que eu.
– Eu vou indo, , foi bom te ver... – me levanto, começando a me afastar.
– Espera. – segurou em meu braço sem apertar, com todo cuidado para não ser tão invasivo. – Você trocou seu número?
– Nunca. – mordo o lábio o vendo fechar os olhos.
– Então você...
– Recebi todos os seus recados, mensagens... até e-mails. – sorri sentindo sua mão desfrouxar do meu braço. Me viro, ficando completamente em sua frente. – Eu sinto que você foi o maior sacrifício que eu fiz pra estar onde estou, não foi ter deixado meu pai e minha mãe no Brasil, porque mesmo viajando toda semana pra um lugar diferente, eu ainda os vejo e estou com eles sempre que posso. – respiro fundo. – Você eu deixei... Você foi minha lei de Newton e, não vou mentir dizendo que me arrependo, mas também não irei dizer que não sinto falta do que poderia ter sido o nosso segundo encontro no seu carro... Mas já foi, e seguimos os anos à frente.
– Você seguiu em frente? – olhou firme nos meus olhos.
Novamente estive mais próxima do que gostaria, então me afastei.
– Veja como estamos. Seguimos em frente todos os dias. – pisco sorrindo, para encerrar o momento. – Boa noite e parabéns, capitano. Você deveria se preparar para sua comemoração amanhã quando chegarem e forem para Cibeles.
Me despedi uma última vez, acreditando que não o veria mais, pois quando eu fosse para o aeroporto pegar meu voo, ele já estaria em Madrid.
– Nós sairemos amanhã, às 6h do aeroporto. – foi a última coisa que eu ouvi antes de me afastar totalmente.

Meus pés estavam moles igual gelatina. Meu coração ainda batia tão rápido quanto o carro de Lewis Hamilton em pista de Fórmula 1. Minha cabeça parecia um caldeirão de bruxa – daquelas tipo João e Maria que é cheio de coisas, de ingredientes nada a ver – porque estava cheia de pensamentos que eu evitei nos últimos anos, era tanta coisa que eu não estava conseguindo organizar nada. Só consegui me mover por ser algo automático, da porta para a cama.
Me joguei como se aquele colchão fosse tirar tudo o que eu estava sentindo, toda a apreensão e, de forma infeliz, aquela sensação de querer ter colado mais o meu corpo no dele. Inconscientemente eu sabia que não era possível tirar isso de mim, e mesmo decepcionada, me senti orgulhosa por ter me controlado mesmo que parcialmente. Não era errado eu dizer a ele o que senti e ainda sentia, era? Palavras não levam ao adultério. E mesmo que fosse "feio" da minha parte, não disse "eu também" para cada uma das vezes que eu expus como me sinto com relação a ele, portanto, não fizemos nada errado a não ser de uma conversa sincera.
Por anos eu vivi achando que agir pela emoção sempre iria me prejudicar, ter achado que eu era menor e menos merecedora que outra mulher, por não ter a confiança em mim mesma, foi a maior sabotagem comigo mesma. Viajar o mundo afora trabalhando, sem criar raízes, me ensinou a confiar mais em mim mesma, me amar mais para, assim, conseguir amar outra pessoa. Hoje eu consigo concluir que é isso o que ganhamos quando deixamos nosso coração falar: o amor. Não importa qual tipo, o mais importante é próprio.
Meus olhos estavam quase se fechando quando ouvi batidas firmes na porta, as batidas do meu coração que estavam começando a normalizarem, voltaram a ficar aceleradas e somente na terceira vez que as batidas ecoaram, mais firmes aliás, me levantei. Olhei meu reflexo no espelho do banheiro antes de caminhar apressadamente até a porta. Com a mão na maçaneta eu pedia a qualquer que fosse a divindade acima, que a figura do outro lado não fosse o espanhol a qual, contraditoriamente, eu queria ver – quando eu disse que estaria no aeroporto na sala de embarque, era pra me dar mais tempo para me acostumar com a ideia de que ele poderia aparecer.
Acabou que meu coração normalizou, mas de uma forma ruim, me fazendo sentir a pressão baixa, quando abri a porta e dei de cara com Pilar Rubio e seus grandes olhos, não maiores que o sorriso bem alinhado e branco.
Respirei fundo e sorri normalmente, tentando inspirar em mim mesma minha autoconfiança para encarar a mulher.
... ... não sei. – ela parecia confusa. – Podemos conversar, por favor?
Eu podia dizer que não, que as diversas taças de vinho que tomei junto com o namorado dela estavam começando a fazer efeito e eu logo dormiria, mas educadamente meu corpo deu espaço para que ela entrasse, aumentando milímetros do sorriso. Me virei para fechar a porta, encostando a testa na madeira por poucos segundos antes de me virar, cruzando os braços e parar no mesmo lugar.
– Olha, me desculpa aparecer aqui e ser direta assim, mas eu não posso ir embora de Kiev e não conversar sobre isso com você... – ela dizia calmamente, parecia estar confusa e, curiosamente, sem toda a autoconfiança que sempre exalava de si.
– Você não precisa fazer isso, Pilar... – a respondi, cortando-a. Não precisava ser nenhum gênio para saber que ela falava sobre .
– Sim, eu preciso. – suspirou me olhando com os ombros baixos. – Eu não posso ir embora daqui sabendo que eu tô vivendo uma vida com ele, que... – mordeu o lábio, pensando por segundos, talvez estava escolhendo as palavras certas. – ...que talvez não era para eu viver, entende?
Franzi o cenho, tentando entender. Pilar estava se sentindo culpada de estar com ? Isso eu não consegui acompanhar e percebendo minha confusão mental, ela explicou:
– Quando subimos para o quarto aquela hora, surgiu a dúvida entre nós dois sobre de onde te conhecíamos e... – mais uma vez ela parou pensativa. – Você podia ter ficado, Raul tinha um projeto perfeito para você na emissora, ......?
– Pode me chamar de mesmo. – esclareci, sorrindo para ela se sentir confortável e recebi um aceno positivo de cabeça.
– Bom. Você podia ter ficado. – repetiu, suspirando.
– Não, eu não podia. – a respondi, soltando os braços ao lado do corpo. – Eu tinha 20 anos, queria o mundo e estava trabalhando para isso. – completei indo até o frigobar, pegando uma água, sentindo minha cabeça começara a latejar, resultado do vinho. – Olha, se você está sentindo que, não sei – dou de ombros –, roubou algo de mim, deveria parar. Se fosse para ser a minha vida, teria sido. – me sentei na poltrona, respirando fundo e ingerindo o líquido. – Se eu tiver de viver um relacionamento com ele, isso irá acontecer. As coisas que têm de ser, sempre serão. Em 2012 eu tinha que sair para o mundo e viver tudo o que vivi.
Dei um tempo para que depois de ouvir, ela pudesse entender e compreender.
– Eu e nos damos muito bem, eu o conheço e todos os dias aprendo algo novo sobre ele. – se sentou no sofá a minha frente. – E hoje eu vi um brilho no olhar dele ao olhar para você, o mesmo de quando ele encontra com a irmã que não mora perto ou quando vê as crianças depois de um tempo longe. O brilho de saudade. – sorriu e eu senti suas palavras tocarem algum ponto em mim que eu mantive quieto por anos.
– Você está dizendo como se você fosse uma vilã nessa história. – ri fraco, disfarçando o nervosismo da frase.
– E não sou?
– Não, você não é... – sorri sincera. – Ninguém é. Me diz, por que está aqui?
– Eu sei que você estava no bar com ele e que conversaram. – se ajeitou, colocando as mãos no joelho e eu senti o amargo do vinho em refluxo na minha garganta, o que não passou despercebido por Pilar que se levantou, mantendo o sorriso simpático. – Eu o amo. Nós nos amamos, . – me levantei ouvindo suas palavras firmes com o tom confiante na voz e ela veio até mim, colocando a mão em meu ombro, obrigando-me a erguer o rosto para a encarar melhor, devido sua altura somada ao salto fino. – Eu confio em e confio no que vivemos, tivemos filhos lindos e eu sou grata por tudo o que temos juntos. Sou grata a você por ter me dado o espaço, eu e ele tínhamos que ser... E você está certa, o que tiver de ser será.
Sorri de volta, sentindo meu corpo se acalmar, não entendendo minha própria reação à suas palavras. Silenciosamente a vi sair pela porta e ainda sem ter controle do meu corpo, inerte ao caldeirão de pensamentos fui até o banheiro, ligando o chuveiro e entrando embaixo da água imediatamente, ainda de roupa. O relógio em meu pulso marcava 04h47 da manhã, a partir daquele momento eu tinha uma hora e treze minutos para estar no aeroporto internacional de Kiev, ou perderia meu voo para o Brasil. E eu precisava me livrar de muita coisa para isso, deixar em Kiev o que começou em Madrid anos atrás.

A minha dúvida era evidente, mas não tanto quanto minha pressa quando saí no saguão do hotel. Por mais que fosse cinco e meia da manhã, o saguão estava cheio. Eu sabia que parte deles eram da comissão técnica do , reconheceria a maioria dos rostos ali, além de ouvir no elevador comentários sobre o aeroporto de Kiev estar fechado por conta de um problema interno. O que atrasou muitos voos. No meio dos rostos conhecidos da comissão técnica, encontrei alguns jogadores, o que significava que o time estava ali, logo, não tinha partido ainda.
E isso só se confirmou quando o vi sair do elevador do outro lado, vindo na direção que eu estava, ao seu lado tinha dois jogadores e quando ele me viu, parada no meio daquele monte de gente, pareceu congelar no lugar. Mesmo que estivesse chegando mais perto.
Eu não estava disposta a fazer um discurso no meio daquela gente, nem mesmo se estivéssemos sozinhos. Estava disposta a deixar ali em Kiev o que havia começado em Madrid, seis anos antes. Não me importava com falta ou excesso de palavras, a mensagem que ficaria era o que valeria.
– Problemas com o voo também? – ele me perguntou, parando em minha frente.
– Sim. – sorri com os lábios fechados.
– Pra onde sua lei de Newton vai te levar agora? – me questionou cruzando os braços, sua expressão era suave.
– Brasil, vou ver minha família. – pego em meu pulso a pulseira, estendendo na palma de minha mão para ele. – Pra você.
– Tá meio atrasada para devolver, não acha? – ele ergueu uma sobrancelha.
– Antes tarde do que nunca. – dou uma piscadinha.
– Essa não é uma lei de algum físico, é? – disse com humor.
– Só pega ela, . – insisto. – Já venci meu el clássico anos atrás. Talvez você possa dar a outra pessoa.
– Ah, não seria o mesmo. Mas eu vou pegar.
As pontas de seus dedos compridos tocaram minha pele e eu sorri, vendo-o a colocar.
– Então é isso . Se cuida. – coloco as mãos nos bolsos do meu casaco.
– Por mais seis anos?
– Por mais quantos anos você viver. – toco em seu ombro e quando dou o primeiro passo, ouço-o dizer:
– Cuidado com quantas vezes você usa esse conselho de Newton, ele é péssimo. Nem tudo merece ficar para trás, tem coisas que você pode levar adiante.
Suspirei, dando um beijo em sua bochecha antes de seguir, sem olhar para trás.

O fim?
A minha mala estava tão pesada que se alguém pegasse ela diria que eu estava carregando um corpo em óbito dentro dela. Na guarita do prédio, Diego, o zelador, deu um sorriso enorme me cumprimentando. Sorri de volta esperando o elevador. Não demorou muito e eu já estava abrindo a porta do meu apartamento. Levei um susto com a quantia de cartas na porta.
Coloquei minhas coisas no sofá e a mala no meio da sala e voltei para a porta, me abaixando e pegando todos os envelopes. Fechei e tranquei, indo até as janelas da sala, passando envelope por envelope. Desviei a atenção para abrir um dos vidros e voltei para me sentar no sofá, tirando o sapato antes, do lado de fora do tapete, voltando a passar os envelopes.
Conta. Foi paga.
Conta. Também paguei.
Conta. Está em débito automático.
Convite para fotografar. Já foi, era aniversário de debutante.
Oferta de trabalho em Madrid. Obrigada, estou muito bem na Kick’em.
Conta. Outra em débito automático.
Carta com remetente de .
Respirei fundo, tomando fôlego para decidir se abriria ou não.
Abri o envelope e me dei por vencida à falta de ar quando me deparei com um convite de casamento. Pilar Rubio e convidam seus amigos para celebrar o enlace em matrimônio no dia quinze de junho de dois mil e dezoito, em Sevilha, Espanha.
Exatamente uma semana atrás, enquanto eu estava no meu exílio da vida, principalmente tecnológica, na Indonésia – último destino da minha viagem de férias de seis meses. Soltei o envelope ao meu lado, percebendo que o mesmo caiu no chão e olhei todos os detalhes do convite, me sentindo patética com aquele ato. O que eles esperavam de mim? O que eu esperava de mim com aquilo?
Me levantei do sofá, sentindo meu coração desacelerando. No segundo passo, senti algo embaixo do meu pé. Xinguei baixinho, me abaixando para ver o que estava lá. Dentro do envelope que viera o convite ainda tinha um saquinho. Algo dentro de mim dizia o que estava lá dentro e esse mesmo algo se recusava a abrir.
Me sentei no sofá de novo, segurando a pulseira em minha mão, olhando para o horizonte da minha janela. Era isso, não tinha mais o que dizer além do "e se".
Então, logo, e se eu tivesse deixado meu coração falar? O que eu teria ganho ao invés de uma pulseira de cavalos dentro de um envelope colado no convite de casamento de ?




FIM



Nota da autora: Olá!
Primeiramente, obrigada por ler e, se possível, não esqueça de comentar. É muito bom saber o que você achou da história.
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