Finalizada em: Ago/2021

1 step forward, 3 steps back

Liguei para o seu telefone hoje
Só para te perguntar como você estava
Tudo que eu fiz foi falar normalmente
De alguma forma, eu ainda consegui te irritar”


atravessou a rua molhada com cuidado em direção à entrada abarrotada do Carrousel du Louvre.
O segurança atrás das faixas devia ter pelo menos 2 metros de altura, mas não precisou se abaixar tanto para os 1,95 do garoto que se aproximou, puxando o crachá da fita no pescoço e recebendo um olhar demorado do funcionário até que ele retirasse a corda e desse um passo para o lado.
Ele estava atrasado. Saber disso não melhorava muita coisa; Rey provavelmente o mataria com seus gritos estridentes, o que o fez pensar que não adiantava muito ter desligado o celular para fugir de suas milhares mensagens de voz que já deviam estar entulhando a caixa de entrada. Ele só adiaria o inevitável.
A música eletrônica de pré-show já estava nas alturas, mesmo por trás das várias camadas de parede do backstage. Ele com certeza deve ter se esquecido de cumprimentar algumas pessoas, mas seus pés rápidos pela urgência não o deixavam perder muito tempo; ele podia jurar que já era capaz de ouvir a voz da mulher mesmo com dois corredores de distância.
Uma trena voou acima de sua cabeça assim que curvou na grande cabine administrativa, e revirou os olhos quando viu a empresária de meia-idade, com cabelos enxugados para trás e trajada de um vestido tubinho vermelho terrível – mas que parecia estar na mais alta tendência – rosnar furiosa para os ares.
— Perdão, senhora Ridley — disse uma garota que se debruçava em frente à mulher, que parecia mais raivosa do que nunca — Eu tentei consertar, eu juro…
— Eu já disse pra não me chamar de senhora! — ela gritou, cerrando os punhos ao lado do corpo e então erguendo o dedo indicador enquanto se preparava para soltar mais uma série de berros quando seus olhos pegaram o garoto parado no batente da porta — Finalmente, , seu infeliz! Onde estava esse tempo todo?
Ele respirou fundo e se aproximou das duas, arqueando as sobrancelhas para a mais velha e virando-se para a garota amedrontada ao lado dela.
— Pode ir, Sharon. Eu continuo daqui.
A garota levantou o pescoço imediatamente, desejando abrir um sorriso de gratidão, porém o olhar fulminante da mulher zangada não a deixou ceder mais do que um aceno de cabeça e apressar os pés para fora.
— Será que dá pra você poupar pelo menos as pessoas que trazem o seu café? — ele balançou a cabeça, vendo-a revirar os olhos.
— Quantos cafés errados você acha que ela me trouxe só hoje? — Rey respondeu, jogando os cabelos para um lado do ombro, caminhando até a fila de penteadeiras abarrotadas de maquiagens — Ah, não precisa responder, você não estava aqui pra ver por si mesmo! E aliás, onde você se meteu? Tem noção do caos que esse evento está se tornando?
— Quando o Paris Fashion Week não foi um caos? — ele estreitou os olhos, mas a mulher continuou em silêncio furioso — Ano novo, vaca velha… — murmurou.
— Eu ouvi isso, garoto! — Rey trincou os dentes, abrindo uma bolsa grande de couro e puxando um batom — Já se esqueceu que somos parentes?
— Desculpa, às vezes me esqueço de cumprir o papel de sobrinho amoroso — ele deu um sorriso falso e se desfez da mochila dos ombros, puxando uma agenda encouraçada de dentro dela — O que está faltando? A equipe de gerenciamento não contratou um bom bufê?
Ela virou-se para ele enquanto juntava os lábios da retocada no batom vermelho. Moveu os olhos de cima a baixo do garoto alto e magro, com seus cabelos loiros e olhos claros, com uma beleza estonteante escondida sob casacos de couro e óculos de aro redondos. A mulher abriu um sorriso cheio de malícia.
— Não. — Ele disse, e então abriu a agenda e passou algumas folhas.
— Argh! Fala sério, garoto, você é mesmo um Brosnan? — ela abriu os braços em indignação — Uma vez! Por que não desfila em uma passarela da sua querida tia uma única vez? Isso pode ser uma grande chance pra você.
— Eu quero subir em um palco seu, mas não é pra desfilar — ele arqueou as sobrancelhas, como se dissesse algo óbvio.
Ela repuxou os lábios e o olhou com revolta, virando-se novamente para o espelho.
— Você e essa bandinha… — murmurou, ajeitando a franja que cobria a testa — Acha que vão fazer sucesso tipo os Beatles ou coisa assim? Te ofereço uma proposta de sucesso bem aqui na sua frente e você recusa.
— Podemos fazer sucesso tocando no desfile também, titia. Até usando suas roupas. Já pensou nisso? — ele destilou a ironia enquanto mantinha a atenção nas datas marcadas e sublinhadas no papel — O mundo da moda não é bem a minha praia.
— Mas você está sempre por aqui, não está?
— Meu pai fez uma oferta irrecusável sobre estar aqui ou quebrar minhas guitarras, então acho que não tive muita escolha. — Ele colocou a agenda de volta, caminhando até a outra penteadeira vazia agora com um bloco de notas, anotando palavras rapidamente sem piscar enquanto encarava as araras espalhadas pela sala. Pelo menos três pessoas entraram e saíram quase no mesmo minuto, os rostos lívidos de ânsia pelo nervosismo — O seu suborno como patrocinadora da banda também ajudou muito.
— Meu irmão sabe que você é um duo de talento e beleza desperdiçados — ela suspirou, agora com os olhos grudados em um pequeno espelho de mão enquanto esfumaçava algum tipo de pó no rosto — Sem contar que é mais competente do que toda a equipe de organização.
— Não deixar que você entorne uma caneca de café na minha cabeça quando está surtando não me classifica exatamente como competente — ele disse enquanto não descansava a mão. Rey o encarou pelo canto do olho, vendo o rapaz concentrado e ao mesmo tempo ainda atento aos sons ao redor. Dizer que não era competente o tornava ainda mais competente, e ela riu. Ele era bem diligente quando se tratava de seus sonhos malucos.
O ringtone alto de um telefone assustou a mulher por um momento até que vasculhasse ao redor em busca de seu celular. apenas deu uma pausa minúscula até se lembrar do aparelho desligado dentro da mochila e voltou ao que estava fazendo.
— O que é? — ela atendeu em seu tom rude natural, ainda encarando seu reflexo exageradamente prepotente no espelho.
De repente, o pó compacto escapou de suas mãos em fúria, e uma veia estourando na têmpora pareceu adiantar problemas sérios.
— O que você disse? — ela gritou. virou-se no susto — Como assim sou informada desse tipo de coisa agora? Vocês perderam a noção de vez?! É a Dior, caramba! Bando de incompetentes, é meu nome que está em jogo, seus desgraçados de merd...
caminhou até a mulher, arrancando o telefone de sua mão e apertando no botão de desligar.
— Se acalma ou vão buscar sua vassoura pra você ir embora o mais rápido possível.
— Você precisa ir! — ela respondeu, não dando atenção às provocações do sobrinho. Seu tom de voz tinha abaixado, mesmo que a fisionomia demonstrasse pura raiva e desespero, o rosto tão vermelho quando sua roupa — Parece que já faz meia hora que os adornos dos figurinos estão despencando. Despencando, ! O desfile começa em menos de uma hora! Alguém está querendo me arruinar... — ele jurou que ela teria um colapso nervoso.
O rapaz piscou os olhos várias vezes enquanto ela discava números aleatórios no telefone e se agitava pela sala. O garoto olhou para o relógio acima da penteadeira.
— Droga… — trincou os dentes e não esperou mais. Simplesmente girou o corpo e correu até o lugar da catástrofe.
O lugar em questão era o camarim em blocos dos modelos, o lugar mais lotado e barulhento dos bastidores de um desfile de moda – naquela ocasião, um camarim lotado de pessoas que dividiam o espaço afogadas em sons de secadores, ordens de figurinistas e acessórios retirados e colocados do lugar da grande coleção primavera/verão da Dior. A concentração de pânico e pílulas calmantes era assustadora, e qualquer mísera atitude errada poderia desencadear um belo ataque de nervos. Era um ambiente que ainda não tinha se acostumado por completo, mas sabia lidar de forma mais branda do que Rey.
Ele foi reconhecido imediatamente ao pisar no aposento, recebendo vários relatos ao mesmo tempo de produtores desesperados e maquiadoras esbarrando em seus ombros ao se apressarem em retocar o que foi perdido por lágrimas. sentiu que iria ficar louco; como Rey conseguia trazer o caos a todos os eventos que participava? Era insanidade demais.
Ou talvez porque – provavelmente, com certeza era isso – eles conseguiam lidar melhor com o garoto que fazia bico de assistente do que com a megera, o que acarretava em adiar o comunicado e tentar resolver as coisas por si mesmos.
Depois de garantir que tudo seria resolvido, tratou logo de correr até o set vizinho, explicar a situação com urgência e reiterar que era um caso de vida ou morte. Ligações foram feitas, gritos foram dados e paciências chegaram ao limite até que uma dupla de homem e mulher entraram sorrateiros no camarim abarrotado, fazendo o possível para consertar ou, se necessário, trocar o adorno do zero, o que deixou um tanto aliviado por Rey ter pensado nos reservas, mesmo que não fosse a opção mais viável de ser usada. Se existisse uma única cor que não casasse entre si nos mínimos detalhes, o desfile seria arruinado.
Com esforço, as coisas começaram a caminhar bem. Um funcionário da produção geral do evento havia corrido a plenos pulmões para avisar que Rey, com seu charme incondicional, tinha conseguido adiar o início da passarela em mais trinta minutos. apenas assentiu e começou a fazer o trabalho basal que sempre fazia antes das performances: conferir se todos os modelos estavam presentes e com o figurino nos tons certos do conceito para, então, ajustá-los na ordem de entrada, conferindo suas posições com a ajuda de Maryl, a segunda na hierarquia da Dior que já era familiarizada com o garoto.
Ao verificar se as roupas e os adornos estavam corretos – naquela coleção em especial tratava-se de asas, leques gigantes ou outras coisas muito grandes nos ombros das garotas e faixas com chapéus imensos para os garotos –, ele começou a riscar o que estava pronto, pois era isso que mais fazia: tomar notas. De Suzanna à Annabel, ele se certificou de cada uma delas até parar em um número errado. 11 não era o número final da relação que segurava em mãos, mesmo que a quantidade de garotas presentes na sala fosse. Ele chegou a contar de novo, mas o resultado continuava o mesmo.
? — ele pensou alto, buscando o rosto do número 12 que sabia que jamais vira. Nenhum semblante diferente apareceu em meio à confusão de pré-desfile, e já faltavam vinte minutos — Belfield?
Ninguém pareceu responder, e as conversas misturadas no ambiente também não ajudaram com que sua voz tivesse destaque. Ele bufou e se aproximou da primeira garota que passou ao seu lado, uma loira de cabelos longos e mergulhados em spray, brilhando da cabeça aos pés.
— Com licença, Belfield? — perguntou ele, em um tom urgente.
— Quem? — ela juntou as sobrancelhas — A garota de Annecy?
Ele não sabia quem sua tia havia contratado de freelancer daquela vez para o evento, mas assentiu do mesmo jeito.
— Sei lá, acho que a vi entrando naquele canto ali antes de toda essa balbúrdia começar — a garota respondeu sem olhá-lo e voltou-se para deixar que o maquiador a colocasse ainda mais brilho.
suspirou e olhou para a direção apontada. Era a área dos closets, que se parecia com uma junção de tipos de almoxarifados minúsculos onde se guardava o plano B. Ele andou rápido até lá, torcendo para que encontrasse a garota perdida rapidamente, antes que também tivesse que pedir isso emprestado.
Ao passar pelo batente, ele andou pelo pequeno corredor envolto em tapeçaria negra e pesada, visualizando a porta final entre aberta, ouvindo o som antes de chegar ao destino.
— Por que está dizendo essas coisas? — a voz veio alta de dentro da sala, acompanhada de um tom trêmulo — Eu só te liguei pra perguntar como você estava. Por que está tão irritado?
se aproximou devagar da entrada, apoiando um dos braços no limiar até enxergar uma garota de pé, usando sandálias brilhantes e um conjunto de lingerie branca exibida através de um vestido longo de tecido fino e transparente até seus pés, carregando o adorno em sua cabeça com maestria – uma pequena e delicada tiara cintilante que contornava sua testa e o topo da cabeça. Porém, o levantar e descer de seus ombros indicavam que sua maquiagem já era. A voz saiu embargada quando falou novamente.
— Não é nada disso que você está dizendo… — ela balançou a cabeça, destrambelhando os cachos que caíam nas costas — Eu nunca disse isso. Eu falei que teria que trabalhar, você disse que entendia…
olhou para os lados, vendo que o lugar estava vazio a não ser por ela e sua choradeira. Alguma coisa na forma como a garota controlava a voz e focava em não parecer estar a um ataque de choro fez o rapaz parar por alguns instantes e não querer interromper imediatamente.
Mesmo que o tempo estivesse correndo.
Um grunhido depois, seguido de um possível desligamento da chamada que a fez repetir o nome “Steve” por pelo menos cinco vezes pareceu ser o encerramento do que quer que fosse a discussão. Ela apertou o celular com força e ficou imóvel na mesma posição, descrente com o teor das palavras e não sabe por quanto tempo permaneceria assim se não fosse o barulho não intencional de um garoto muito alto esbarrando em uma arara na entrada da porta enquanto tentava se aproximar com cuidado.
Ela virou para trás imediatamente, confirmando o primeiro pensamento de : sua maquiagem já era.
— Desculpa, eu... — ele disse rapidamente — Belfield?
Ela não respondeu. Observou o garoto de cima abaixo buscando qualquer referência de já tê-lo visto antes, mas não aconteceu. Ele pigarreou antes de dar mais um passo à frente.
— Não queria interromper sua conversa, mas preciso verificar seu figurino… Por favor — ele estava cauteloso. O rosto da garota ainda estava estático e ela ainda parecia que choraria a qualquer momento.
No entanto, ela apenas assentiu levemente com a cabeça e passou um dos dedos abaixo dos olhos, trincando os dentes ao ver o resíduo preto da maquiagem que saiu por debaixo das unhas. “É ”, disse ela com voz distante. engoliu em seco e se aproximou devagar, lembrando-se das notas perfeitamente tomadas na agenda sobre a relação de Nome x Figurino x Conceito e se atentou na tiara brilhante que contornava a testa da garota. Ele a retirou delicadamente, tendo o cuidado de não interferir demais em seu cabelo já pronto e verificou cada pedaço exposto do acessório que poderia conter algum ou vários defeitos como os adornos anteriores.
— Pode virar de costas, por favor? — ele pediu educadamente, olhando-a de relance. Se os relatos que ouviu do lado de fora se contradiziam com suas anotações, algo naquele vestido estava arruinado ou prestes a isso. Ela obedeceu, ainda em silêncio, com os olhos baixos. Apoiou as duas mãos no móvel desgastado de madeira escura onde o plano B da seção de apetrechos ficava, mesmo que quase nunca fossem usados. checou as costas da garota com precisão, não se demorando e nem reparando em nada – como sempre fazia. Mesmo que, com em questão, isso estava se tornando um pouco difícil.
Não tinha nada a ver com a superficialidade de achá-la bonita. era de uma proporção estonteante, mas as outras lá fora também eram. Aquele tipo de beleza montada para surpreender os olhos famintos abaixo da passarela era algo indiferente para o garoto. Não, não era por isso que ele se viu revezando o olhar entre a marcação de pontos em uma parte do tecido especificamente no quadril e entre o rosto vermelho e inexpressivo que não se mexia.
— Pode parar de me encarar — ele se assustou ao ouvir a voz, sentindo a ponta do alfinete raspar na curva de seus dedos — Eu não vou fugir.
Ele piscou os olhos até notar que ela falava com ele. não virou a cabeça, apenas fungou uma vez e passou o peso de uma perna para outra.
— Essa é uma ótima notícia — respondeu, tentando passar um ar cômico — Se não, acho que eu teria que dar um jeito de entrar em algum desses vestidos.
Ela balançou a cabeça, deixando o garoto aliviado ao ver que pelo menos era capaz de esboçar alguma reação.
— Você é o sobrinho da Rey? — perguntou depois de mais alguns minutos de silêncio.
limpou a garganta.
— Eu pareço com ela? — ele estava seriamente preocupado com a questão. soltou uma risada seca.
— Definitivamente não.
— Ah, que alívio.
A barriga dela se contraiu em uma risada mais presente, mas ele ainda não podia ver seu rosto muito bem. Ele arrancou um dos grampos pontudos da tiara, juntando-a com os alfinetes no ponto separado, resultando em uma modificação sutil.
— Nunca te vi por aqui — ele soltou de repente, encarando o brilho do círculo prateado no quadril dela.
Ela hesitou, trocando o peso das pernas novamente.
— É, acho que perdi algumas oportunidades — ela balançou a cabeça discretamente — Por isso não podia perder essa.
Ele sentiu uma certa tensão na frase e permaneceu em silêncio, finalizando o trabalho mais rápido ao se tocar repentinamente do tempo que já devia ter se passado.
— Pois então espero vê-la mais vezes — disse , se afastando para que ela se virasse para ele de novo. Ela fez isso lentamente, erguendo os olhos para ele pela primeira vez, percebendo o quanto ele era extremamente alto, mas sem nenhuma pose agressiva ou autoritária. foi pego pelo olhar dela por alguns instantes, até que começasse a recolocar a tiara de volta, com a mesma delicadeza com a qual havia tirado. Ele se aproximou o bastante para que ela notasse o quanto ele era bonito.
Ele passou um dos dedos de leve no cabelo impecável e abriu um sorriso complacente.
— ‘Tá na hora de aproveitar a sua oportunidade.
Após menear brevemente com a cabeça, ele fitou aqueles olhos por mais um instante até começar a caminhar para fora, pensando nos últimos minutos que tinha para mobilizar os maquiadores e os figurinistas para deixarem a garota ainda mais perfeita. Um sentimento estranho o tomou, uma espécie de consciência futurística que indicava que com certeza a veria de novo. Mas tratou logo de afastar tal pensamento.
Ele olhou para trás para chamá-la, e jurou ter visto um sorriso aberto de relance.

Você me deixou fodida da cabeça, garoto
Nunca duvidei tanto de mim
Tipo, eu sou bonita, eu sou divertida, garoto?
Eu odeio que te dou poder sobre esse tipo de coisa”


Já era a quinta vez.
Ela não pretendia contar, mas era difícil não fazê-lo quando todos os términos eram recheados de choro e sentimentos gritantes de culpa. As palavras dele cravaram-se de forma tão abrupta em seu peito que era preciso tempo e espaço para que ela deixasse de se sentir uma falha completa. Porque era assim que se sentia: chata, irritante, pegajosa. A pessoa que sempre estraga tudo.
Mesmo que odiasse que Steve tinha todo esse poder sobre ela.
Ele não dava notícias há um tempo. Após tentar ligar mais uma vez, ela se viu impossibilitada de continuar e precisava seguir com a vida, com o trabalho – pelo menos naquele dia. A ligação da secretária de Rey no dia anterior a deixou preocupada por alguns instantes, mas ela leu os elogios do desfile da Dior junto com todos. Não podia ser tão grave mas, se fosse, só seria um elemento a mais em sua escala de culpa. Parecia que tudo era sua culpa.
Ela começou a pensar que nisso ele poderia estar certo. De que ela não fosse boa o suficiente para aquele trabalho.
Ao sair do táxi, ela atravessou a porta giratória do prédio espelhado e caminhou até a recepção. Trocou algumas poucas palavras com uma das recepcionistas e recebeu as orientações até a sala grande do terceiro andar. Ela agradeceu, tentando visualizar alguma expressão incomum que a adiantasse o assunto da conversa que teria, mas nada veio. , então, apenas meneou educadamente e seguiu para o elevador.
Enquanto isso, na mesma sala de destino da garota, Rey descansava os ombros na cadeira presidencial confortável e espaçosa, apertando a ponta de uma caneta de forma insistente enquanto observava a reação embasbacada do garoto parado à sua frente.
— Isso é brincadeira? — ele questionou, erguendo o pedaço retangular do papel da reciclagem — Esse não foi o nosso combinado.
— Nós tínhamos um combinado? — ela encarou a posição da caneta atravessada em sua palma.
Sempre tivemos um combinado, é isso que pessoas sem contrato formal de trabalho fazem. Você entende o significado de manter uma palavra? — bufando, devolveu o papel à mesa de vidro fosco.
— Você fala como se eu tivesse deixado de te pagar — respondeu ela, estreitando os olhos.
— Não cumprir 100% do acordo chega muito perto disso, agora se não se importa… — ele inclinou a cabeça para o cheque.
Rey revirou os olhos, puxando o papel para si enquanto não desgrudava os olhos da feição desafiadora do garoto. Ele causava-lhe um sentimento sério de frustração.
— Sei como você pode ganhar bem mais do que isso… — ela começou, alisando as pontas amassadas do papel.
— A resposta continua sendo não.
Ela trincou os dentes e abriu a gaveta debaixo da mesa com força, puxando um outro bloco dos mesmos papéis e deslizando a caneta furiosamente sobre os valores corretos. Então, puxou um deles e os estendeu para , que destilou um sorriso de escárnio enquanto puxava o mesmo.
— Muito obrigado, titia — ele lhe deu uma piscadela — Foi um prazer salvar a sua vida mais uma vez.
— Sinto que você vai me abandonar algum dia pela primeira concorrência que te oferecer o dobro — ela estalou a língua, cruzando os braços — Você e sua ganância...
— Ah, eles já falaram comigo… — respondeu , avaliando o papel com muito cuidado e buscando automaticamente qualquer tentativa de enganação.
— Como é? — ela arfou.
— Relaxa, eles não são tão insistentes quanto você quando eu digo que não vou desfilar — ele deu de ombros, dobrando o papel e guardando-o no bolso esquerdo — Vou indo nessa.
Ela abriu a boca para dizer mais alguma coisa, mas foi mais rápido. Caminhou até a porta rapidamente e virou para seguir em frente, mas um conjunto de ombros e braços bateu em seu peito antes que continuasse.
Um gemido de surpresa escapou de sua garganta, até que a pessoa à frente levantasse a cabeça vagamente até poder ser vista.
— Me desculpa… ? — ele perguntou, reconhecendo o cabelo jogado para trás em ondas e o rosto agora livre de todo o brilho de antes.
Ela o encarou por um minuto inteiro antes que se recordasse de vez.
— Ah… — ela abriu um sorriso tímido — É você.
— É — ele disse rapidamente — Brosnan. Não me apresentei direito naquele dia. Como você está?
Ele se sentiu destrambelhado de repente. o encarou com certa confusão, mas parecia tão surpresa quanto ele com o recente interesse do garoto em puxar um papo. Ele tampouco entendia isso. Alguma coisa naquela garota, que agora estava vestida com roupas devidamente normais e não muito chamativas, o fazia querer parar e olhar um pouco mais. Só um pouco mais.
Mesmo que ela não entendesse exatamente isso.
— Eu estou bem, muito bem — ela respondeu depois de um tempo, desconcertada — Recebi uma ligação pra me encontrar com a Rey, então acredito que preciso… — ela apontou para a porta aberta atrás de , que seguiu seus dedos e assentiu em concordância.
— Ah, claro, claro… — ele abriu mais um sorriso contido de canto — Acho que posso te tranquilizar e dizer que ela está de bom humor hoje. Enfim, foi bom te ver.
— Obrigada… Até mais. — ela retribuiu o sorriso da melhor forma que conseguiu e seguiu para entrar.
viu a porta se fechando e ficou parado como um tolo até se tocar da veracidade da informação de antes. Uma ligação para se encontrar com Rey. Ele se aprumou instantaneamente e encostou-se ao lado da mesma entrada, esperando escutar qualquer ruído do cômodo adentro e interferir caso a tia tivesse qualquer tendência em surtar.
A preocupação era prudente, porém não se concretizou. A conversa com foi mais tranquila do que ela mesma esperava. Rey havia sido gentil e solícita ao elogiar seu trabalho no desfile e pareceu fazer a mesma pergunta de , porém um tanto mais sutil: como ela nunca havia cruzado com a garota antes?
Ela agradeceu, não dando muitos detalhes sobre a questão que era intrinsecamente conturbada e aceitou de bom grado o cheque de pagamento, assustando-se por um instante pelos zeros escritos que jamais pensou que um dia receberia. Rey gostou da reação, assim como sempre gostava quando avistava um novo potencial que só ela tinha acesso. soltou uma risada seca por apenas visualizar mentalmente a expressão da mulher. Previsível e controladora.
Ele se perdeu em alguma lembrança distante da infância, quando rejeitou sucessivamente as investidas de sua tia em torná-lo algum astro do basquete, ou tecendo planos para o seu futuro nas passarelas assim que tivesse idade o suficiente para parecer mais velho do que era, e também – principalmente isso – de quanto dinheiro iria ganhar. Besteira. era gentil a ponto de afirmar que não se importava com nada dessas coisas, mesmo tendo vindo de uma família abastada, e era alvo de piadinhas secretas dos amigos de banda, mas ações eram mais do que suficientes e auto explicativas quando se tratava de Brosnan. Ele não sabia ser nada além de honesto consigo mesmo e com o mundo.
O barulho da porta dissipou os pensamentos e ele ajeitou a postura novamente, vendo a garota sair com um resquício de sorriso no rosto e pegá-lo em flagrante.
? — ela notou seu rosto desconcertado e avulso, como se não acreditasse que ainda estivesse ali — O que ainda faz aqui?
— Ah, eu… — ele começou, tentando colocar a cabeça para funcionar e pensar em uma explicação, mas nada vinha — Acho que precaução. Rey de bom humor não significa necessariamente uma Rey do bem, se é que você me entende.
piscou os olhos algumas vezes antes de rir, olhando para trás rapidamente antes de começar a caminhar para o elevador, seguida pelo garoto que acompanhou sua risada e que se sentia aliviado por ter dado qualquer explicação convincente.
— Pode ficar tranquilo, sua tia me deu um belo motivo de comemoração hoje — ela deu um sorriso de canto singelo e apertou o botão para chamar o elevador.
— Nem ela seria contra todos os fatos, você mandou muito bem no desfile. Tenho certeza que ela te considera um perfeito achado.
— Jura? — perguntou, em voz baixa. A palavra achado pareceu recheada de uma importância e atenção que ela não conseguia pensar que merecia, assim como a tentativa de conversa que o rapaz simpático tentava manter com ela.
O elevador deu um apito antes de abrir as portas.
— É sério! — ele respondeu com certo tom de empolgação enquanto os dois entravam — Acho que eu estava totalmente certo, vou realmente te ver mais vezes por aqui.
Ela o encarou por um instante e sentiu a bochecha corar, mas tão logo voltou ao normal – aquilo era um absurdo.
— É… E o que você faz aqui? — ela limpou a garganta, tentando tirar o foco da conversa de si mesma.
— Na verdade, acho que vim pelo mesmo motivo que você — ele tirou a ponta do mesmo papel de reciclagem do envelope que guardava o cheque idêntico ao dela — Claro, tirando a parte dos elogios e dos olhares de expectativa dela. Meu trabalho aqui se assemelha muito com um freelancer faz-tudo.
Ela riu, e as portas se abriram. A risada dela era gostosa de se ouvir.
— Você também se daria bem na passarela — ela disse, e logo depois limpou a garganta — Foi o que eu ouvi, pelo menos.
deixou que um sorriso torto escapasse.
— Foi a própria Rey ou um pouco das outras?
— Uma mistura de todas elas — deu de ombros, se sentindo menos constrangida, ou menos fofoqueira — Me vejo na obrigação de concordar.
— Ah, isso não vai mesmo rolar — ele balançou a cabeça enquanto se aproximavam lentamente da entrada do prédio — Mas ainda estou em negociações de subir naquele palco, só que com uma guitarra
— Você é músico? — seus olhos se abriram um pouco mais, repentinamente interessada.
— É, eu tenho uma banda. A gente arrisca uns acordes de punk rock, mas eu juro que somos bons.
riu, tentando não parecer tão surpresa quanto realmente estava. ser músico era um fato interessante; tocar guitarra em uma banda de punk rock era intrigante. Uma dessas informações onde ela tentava encaixar a pessoa no cenário em que contava.
Mas o braço longo do garoto estendeu-se para fora enquanto segurava a porta giratória para que ela saísse para o tempo repentinamente quente de Paris, e o vento a ajudou a clarear as ideias.
— É… Acho que já vou — disse ela — Foi muito interessante ouvir mais sobre as suas habilidades que não sejam apaziguar o caos. Espero ouvir o seu som qualquer dia desses.
O garoto sorriu satisfeito. Um formigamento estranho no estômago passeou em suas entranhas, mas ele o ignorou.
— Claro, vou esperar por isso. Você está indo pra casa?
Ela assentiu em concordância.
— Vou pegar um táxi logo...
— Meu carro está estacionado bem ali. Se você quiser… — ele começou, e sentiu o sangue esquentar nas bochechas, o que o fez torcer para que ela não percebesse ou, se o contrário, que culpasse o próprio sol por aquilo — Quer dizer, tem uma cafeteria na frente dele, na verdade…
Ele parou de novo, e desviou os olhos depressa. O olhar de sobre ela a estava deixando extremamente desconfortável; daquele jeito que ela se sentia quando um cara demonstrava interesse. Como se ela estivesse prestes a entrar em mais um jogo. Como se ele apenas olhasse a passarela, e que fora da passarela era apenas Belfield, e Belfield não era tão bonita sem toda aquela maquiagem e brilho, muito menos divertida ou alguém para se passar horas conversando.
Steve sempre insinuava essas coisas.
— Acho que o táxi é o suficiente — ela deu um sorriso fino, como quem encerra o assunto. era legal e não era nada parecido com os outros babacas com os quais ela estava acostumada a lidar, mas no fundo era difícil acreditar que um cara como aqueles (legal demais) estivesse disposto a perder seu tempo com ela — Obrigada pelo convite. Foi bom te ver, . Até mais.
? — ele chamou quando as costas dela se viraram. Ela apenas ergueu um olhar acima do ombro — Você tem namorado?
Ele parecia relutante na pergunta, mas era sincero. Tudo em exalava sinceridade, e uma sinceridade acompanhada de gentileza.
Era a passarela. Só podia ser.
— Mais ou menos — respondeu ela, e então apertou o passo para se retirar.
Ela não tinha mais jeito ou paciência para lidar com interesses repentinos. Todo o seu interesse e amor estavam focados em Steve, e todo kamikaze que a relação a causava. Por mais que a machucasse às vezes.
Por mais que a machucasse sempre.

"Porque é sempre um passo para frente e três para trás
Eu sou o amor da sua vida até te deixar com raiva
É sempre um passo para frente e três para trás
Você me ama, me quer, me odeia, garoto? Eu não entendo
Não, eu não entendo”


Não demorou para que fosse pega pelo mesmo vendaval chamado Steve Dunne.
O trabalho era algo importante para ela, um sonho aos poucos sendo realizado. Ela já havia perdido as contas de quantas vezes tinha dito isso pra ele, porém, mesmo assim, quando entrou pela porta do apartamento naquele dia, seu celular estava lotado de mensagens e ligações perdidas, como se fossem o acúmulo do tempo sem comunicação. Mas não eram. Ele estava incomunicável antes, e estava apenas aparecendo no momento mais oportuno.
Mesmo assim, era inevitável. O nome de Steve piscando no visor parecia um ímã emocionante – ela corria para atendê-lo, mesmo fazendo uma vaga ideia do que estava propensa a escutar.
A tentativa de retorno de mensagens e ligações foi falha. Ele tinha voltado a desaparecer, mas as mensagens deixadas eram um aviso claro: estou com saudades.
Onde você está?
Por que não atende?
Caramba,
Ela suspirou e nem tirou os sapatos. Voltou a pegar a bolsa e saiu para fora novamente, deixando seus pés a guiarem pelo caminho que queria seguir desde muito cedo.
Em alguns minutos, ela saiu do segundo táxi do dia bem em frente ao prédio que tanto se controlou para não pisar enquanto ele não lhe desse nenhuma resposta. Subindo os andares com o coração na mão, bateu na porta do final do corredor, esperando a mesma se abrir com ansiedade.
Steve atendeu sem olhar pelo olho mágico. Sua expressão ao ver a garota era nula.
— Você ligou pra mim? — ela perguntou, tentando manter o tom normal de voz.
— Liguei — ele respondeu depois de um tempo, apoiando uma das mãos no batente — Você não atendeu.
Ela engoliu em seco.
— Desculpa, eu estava no trab…
— Eu sei. Relaxa, não era nada importante — ele revirou os olhos.
não sabia mais como avançar. Qualquer palavra dita de forma errada poderia levar a um acesso de fúria. Ela precisava pensar com calma e devagar, um passo para frente e três para trás.
— Você quer entrar? — ele perguntou na frente antes que ela dissesse qualquer outra coisa. A pergunta a tomou de surpresa repentina, mas assentiu da mesma forma. Ele deu espaço para que ela entrasse na área da cozinha e sentiu o cheiro forte de massa de tomate borbulhando no fogão. Steve fechou a porta atrás de si e andou até o fogo aceso, remexendo no líquido vermelho. — Quer experimentar?
Ela largou a bolsa no cabideiro ao lado da porta e andou até ele, deixando que o garoto pingasse um pouco do molho na palma de suas mãos e levou o líquido à boca. Um pequeno sorriso pintou seus lábios, demonstrando a aprovação da comida.
— ‘Tá uma delícia, Steve.
— Que bom. Eu estava mesmo fazendo pra você — ele respondeu, concentrando-se em remexer o molho — Quer dizer, se você tivesse me atendido, você saberia.
decidiu ignorar qualquer resquício amargo que a voz dele poderia conter e apenas anuiu levemente com a cabeça, concordando. O nervosismo com o possível motivo da conversa com Rey não a deixou carregar o telefone por aí, e agora ela realmente pensava que poderia ter feito um esforço. Ele sempre a fazia questionar as decisões que havia tomado em prol de seu bem-estar, ainda mais quando não estava ligado a elas.
— Steve, me desculpa, eu…
— Não quero ouvir isso, — ele desligou o fogo, virando-se pra ela — Você diz que quer que se acertar comigo, mas quando vou tentar conversar, você simplesmente desaparece. Ainda mais por causa desse bico… — ele estalou a língua, colocando uma das mãos na cintura — Achei que quisesse que ficássemos juntos, mas pelo visto não é o que parece.
— Eu quero! — ela o interrompeu com ansiedade, como se sua demonstração tardia do contrário o faria mudar de ideia — Steve, eu quero ficar com você. Me desculpa, eu não deveria ter deixado o celular em casa, eu estava muito nervosa, eu…
Ele pegou o rosto dela entre suas mãos, encarando-a fixamente nos olhos com superioridade disfarçada. Aquela reação da garota era exatamente o que ele queria, o que desejava: desespero pela sua presença. Ansiedade pelo seu afeto. Tais coisas poderiam ser consideradas bem irritantes em alguns dias, mas para o que ele queria no momento era perfeito. Nesta noite, era perfeita para ele.
— ‘Tá tudo bem, — ele roçou seu nariz no dela, fazendo-a fechar os olhos — Você está aqui agora. É o que importa.
Ela abriu um sorriso fino e desornado, mas que escondia as maiores verdades de seu coração.
— Senti sua falta, Steve — sussurrou, erguendo-se para seus lábios — Senti muito…
Ele a beijou antes que continuasse, direcionando os braços para sua cintura, assim como apertava os lábios gradativamente em um beijo apressado. se sentiu inteira de novo, alimentando todas as suas expectativas de mais um recomeço feliz naquele ato fervoroso e cheio de desejo. Seus pés foram conduzidos para trás até que passassem pela porta do quarto, onde Steve nem se incomodou em fechá-la enquanto começavam a bagunçar os lençóis.
No dia seguinte, ela abriu os olhos com um brilho de anseio enquanto encarava o céu azul e perfeito lá fora. Tão perfeito quanto a noite que tivera com Steve.
Ele ainda dormia quando ela se levantou e seguiu para a cozinha, ainda usando a camisa dele por cima da roupa íntima. Ela mal havia terminado de colocar os ovos e o bacon para estalarem quando ele apareceu, coçando os olhos pelo despertar induzido pela luz do sol que entrava pela janela do quarto, caminhando direto para o banheiro sem um bom dia.
Quando voltou, ele observou os pratos sendo colocados à mesa por uma sorridente.
— Bom dia! — ela correu para lhe dar um selinho — O café está quase pronto. Ele demorou um pouco por causa do mau contato da máquina, acho que você vai precisar de um…
— Você não tinha que trabalhar hoje de manhã? — ele perguntou abruptamente, com a voz cansada. Ela se virou, mas Steve não olhou para ela.
— Não, eu ainda não tenho nenhum trabalho novo — ela respondeu em voz baixa, puxando a tomada da máquina de café.
— Ah, é claro… — murmurou ele, passando uma das mãos pelo cabelo. decidiu ignorar o veneno em sua voz novamente — Não achei que você ficaria tanto tempo hoje de manhã. Tenho um compromisso importante agora, então acho que não vou conseguir tomar café.
Ela o encarou novamente, baixando a xícara com metade do líquido.
— Compromisso? — perguntou cautelosa — Que compromisso?
— Um compromisso. Não tem nenhuma importância — ele balançou a cabeça — Pode deixar as coisas aí e ir pra casa. Podemos fazer isso outro dia.
Ele se virou e começou a caminhar novamente para o banheiro.
— Mas eu achei que… — ela começou e ele parou — Não sei. Achei que passaríamos o dia juntos hoje.
— Achou? Por que? — ele juntou as sobrancelhas, como se olhasse para a pessoa que deixava os jornais em seu carpete de entrada pela manhã — , querida, sei que precisamos conversar melhor sobre as coisas, e estando vestidos pelo menos, mas eu ainda estou tentando aquele cargo, entende? A firma de advocacia com certeza vai me promover se eu não mostrar corpo mole e é isso que vou mostrar para eles. Que eu posso fazer isso. É um emprego de verdade, sabe? — ele arqueou uma sobrancelha, em indireta descarada. baixou os olhos — Não posso perder tempo fazendo nada hoje.
Ela se sentiu anestesiada por alguns instantes até concordar com a cabeça e caminhar de volta para o quarto. Os olhos queimavam enquanto se trocava, tentando se convencer bruscamente de que ele dizia a verdade, e que ela estava atrapalhando tudo, como de costume. Atrapalhando o progresso de sua carreira por querer um dia inteiro para ela. Como eu posso ser tão egoísta…
Ao sair para fora, ela o encontrou ajeitando uma gravata bagunçada em frente ao pequeno espelho da sala. Ela apertou os punhos em nervosismo, pensando bem em suas próximas palavras.
— O que você acha da próxima sexta-feira? — perguntou, vendo o rosto dele através do espelho.
— O que tem a sexta-feira?
— A gente podia fazer alguma coisa. Sair pra jantar, quem sabe. Também é o dia que faz 2 anos que nós…
— Ah, melhor não contar muito com isso — ele suspirou, agora ajeitando o relógio de pulso — Vou estar ocupado. Pode deixar que eu te ligo da próxima vez. Agora é melhor você ir.
Ela paralisou novamente, tentando encaixar as palavras dele dentro de sua cabeça, mas elas não batiam com a realidade que ela propunha. Como ele ligaria da próxima vez? Aquilo não foi uma reconciliação?
Ela engoliu em seco, virando-se lentamente para a porta, mas parou novamente.
— Quando é a próxima vez? — perguntou em disparada. Quando ele se virou para ela, um gelo atravessou toda a sua espinha.
— Quando puder, . Quando eu estiver menos atolado, você entende o que é estar realmente ocupado? — ele gesticulou com as mãos na cabeça, com tom desprezível na voz — Sei que você acha que encher um dia inteiro de trocas de roupas e maquiagem para atravessar uma passarela cheia de gente que nem te olha direito é uma ocupação, mas já discutimos sobre isso. Você tem um bico que paga bem e pode se dar ao luxo de ficar alguns dias sem trabalhar, mas eu não ‘tô nessa, entendeu? — ele revirou os olhos e ela sentiu a queimação novamente.
— Eu sei, Steve, mas…
— Não é hora pra isso, eu preciso ir — ele passou por ela, procurando por seus sapatos — E você também.
Um bolo se formou em sua garganta, e não conseguiu dizer mais coisa alguma. Não havia mais motivos para ficar ali. Ela deu uma última olhada no garoto que alisava o paletó antes de apressar o passo e sair porta afora.

"E talvez de alguma forma masoquista
Eu meio que acho tudo isso emocionante
Tipo, qual amante eu vou ter hoje?
Você vai me acompanhar até a porta ou me mandar para casa chorando?”


“Sua chamada está sendo encaminhada para a caixa postal…”
suspirou e desistiu. Por ora. A maquiagem já estava quase pronta, os sapatos estavam separados e a roupa tinha sido escolhida com base nas exigências amigáveis de Alicia por SMS. Ao todo, o resultado não seria nada menos do que incrível. Mesmo com o fato de que sairia de casa sem o ingrediente principal: o sorriso.
Aquela festa não tinha sido ideia dela, pra começo de conversa. Alicia parecia estar levando muito a sério o relacionamento com uma garota que conheceu na universidade, mesmo ela sendo uma cópia muito bem feita da Paris Hilton – incluindo a parte do dinheiro –, o que era totalmente o oposto de sua amiga baixinha e metaleira. A festa de aniversário da sósia de Hilton iria acontecer na mansão localizada na área arbórea e luxuosa à beira do Sena, com promessas de muita vodka cara e uma banda de arrebentar.
Quase pronta, ela pensou em largar o celular em casa. Era o que Alicia diria, era o que sua razão aconselhava, mas razão não tinha nada a ver com o que sentia por Steve. A ideia de que ele pudesse ligar em qualquer momento da noite, seja para uma reconciliação, ou qualquer motivo para conversar, a deixava ansiosa para responder imediatamente. Por fim, meteu o celular na bolsa sem pensar muito e saiu de casa.
Lotação era pouco para o que realmente era a aglomeração daquela festa. O gramado da frente estava tomado por vestidos brilhantes, blazers exorbitantes e bebidas que se embolavam nas mãos bêbadas e jorravam no chão. já podia ver a balbúrdia começando e não era nem meia noite ainda. Isso adiantava que as coisas iam ser animadas – ou desastrosas.
Ela tentava se comunicar com Alicia aos gritos, o que era a única opção viável com a música eletrônica que tremia as paredes de concreto do hall de entrada, vindas do jardim dos fundos. deixou ser arrastada pela amiga até a piscina, onde os ombros se batiam e deslizavam entre si, e ela não fazia ideia de como os garçons estavam tendo sucesso em servir bebidas em bandejas, mas imaginou que quem faz tal trabalho acumulava experiência com aquele tipo de coisa com o tempo.
— Ela deve estar por aqui em algum lugar! — gritou Alicia, puxando uma taça de champagne de uma das bandejas aleatórias que o rapaz erguia por cima das cabeças dançantes.
— Ela é a aniversariante, já pensou que deve estar assistindo a confusão de algum lugar de cima? Tipo aquele cara, Jay Gatsby.
— Então eu sou a sua Daisy — ela sorriu e bebeu um grande gole da bebida, que não sabia mais diferenciar.
A garota revirou os olhos e andou mais alguns metros com a amiga no meio da multidão. Um enorme palco se estendia há alguns metros da piscina, onde alguns instrumentos estavam sendo delicadamente colocados por rapazes que não usavam camisas sociais ou casacos da Valentino como os outros. De qualquer forma, achou difícil ficar encarando com a quantidade de cotovelos que batiam em si. O barulho ao redor era um problema para caso seu telefone tocasse – e se odiou por estar pensando em uma coisa dessas na hora. Virou outro copo da bebida avulsa.
Finalmente, a aniversariante e peguete de Alicia surgiu de algum lugar e abraçou a garota com fervor, cumprimentando com simpatia e felicidade alcoolizada. Ela estava um espetáculo de linda, e seu vestido era mais brilhante do que todos os outros.
! Estou muito feliz que você veio! Eu te vi no desfile da Dior, você arrasou! — ela gritou em meio às conversas altas e agradeceu, sinceramente contente com o elogio — Vamos um pouco mais pra frente, passei um roteiro inteiro pra banda e quero muito ver se eles vão tocar as músicas que coloquei nele.
Ela fez uma careta e pegou nas mãos de Alicia, puxando-a pela multidão. agarrou nas mãos da amiga e seguiu adiante, vendo o grande grupo começar a fazer o mesmo à medida que os acordes do baixo e a passagem de som começavam a se sobressair. A garota se viu olhando ao redor pela última vez, sem sucesso, lembrando-se do convite que fizera a Steve alguns dias atrás, e que o relembrou hoje de novo. Ela revirou os olhos e puxou mais uma taça.
Tinha muita gente. O ambiente externo já começava a ficar quente pela massa humana aglomerada, e o som dos pratos da bateria para o início da apresentação já começava a agitar a galera. estava focada em algum ponto da grama verde e visível a seus pés, desviando os olhos de Alicia e Hilton se beijando disfarçadamente quando a voz que ecoou do microfone foi tão alta quanto familiar.
— Boa noite, juventude do Sena! — ele disse e os gritos em resposta foram altos e ávidos. levantou os olhos para o palco e sentiu o corpo gelar — Aqui quem fala são os Fous de Montmartre e esperamos que vocês ainda tenham muito fogo nos pés pra queimar nesse gramado! Todo mundo pronto? Em 1,2,3…
Um impacto brutal na bateria fez a turma vibrar em euforia e uma spotlight gigante virou-se para baixo e focou no palco, deixando o vocalista nítido e clareando também a memória de . Agora ela tinha certeza. Aquele era Brosnan.
E, depois de uma música inteira onde ela o encarou paralisada, ela teve certeza de que ele também a reconheceu.
Puta merda.
se deteve apenas em deixar um largo sorriso escapar e apertar os acordes com mais afinco enquanto aumentava a voz em um cover de I Wanna Be Sedated, do Ramones. achou melhor beber mais um pouco, mesmo que isso fugisse de todas as regras que havia estabelecido para si mesma no começo da noite. Ficar bêbada não a faria ouvir o telefone tocar, e também poderia levá-la ao erro imenso de deixar os pés andarem por conta própria até o apartamento na Les Halles.
Não, ela tinha que se conter.
Alicia pareceu ter percebido que a amiga havia ficado um pouco mais calada e repetia o mesmo balançar robótico do corpo. A música era agitada, os caras eram melhores do que Hilton esperava e a multidão compartilhava da mesma opinião. Excluindo o fato do vocalista – no caso, – ser um tremendo gato, agora sem os óculos de grau e as roupas pretas de couro, eles eram realmente aptos a atrair a galera e comandar uma festa inteira como aquela.
não soube dizer quando eles acabaram e o DJ voltou a tocar de novo. Ela não sabia se era uma pausa ou se era para valer, também não sabia quanto tinha bebido àquela altura, ela só pensava desesperadamente em tomar uma água. Gritou para Alicia e a namorada o que faria e, logo em seguida, se enfiou na massa de pessoas em busca de qualquer coisa potável e quem sabe um petisco que fizesse sua cabeça parar de girar. A mesa retangular enorme e disposta ao lado da piscina foi uma bela visão, e ela correu até a bacia de metal e gelo onde conseguiu uma garrafa de água gelada. Seu rosto estava quente pelo álcool, mas o calor de ficar imprensada como uma lata de sardinha também ajudava. Ela deu um grande gole e sentiu o corpo estremecer com a temperatura da água, e logo procurou algo que pudesse mastigar, mas a visão turva parecia transformar todos os pratos em um só.
Um toque gélido e úmido em seu ombro a fez pular de susto e se virar para um que afastava a garrafa de água dela, sorrindo tanto quanto no palco.
— Você me assustou — ela disse, levando uma das mãos ao peito.
— Você também — ele deu de ombros, abrindo a garrafa — Nunca imaginei vê-la por aqui. Seria algum sinal maluco do destino que não estou sabendo interpretar?
— Não sai por aí acreditando nessas coisas — ela revirou os olhos e riu. Não tinha como se manter séria diante de — Vim acompanhar uma amiga, ela é bem íntima da aniversariante.
— Sério? Você diz íntimas de beijos na boca e esse tipo de coisa? — ele ergueu uma sobrancelha e abriu a boca para responder, mas fechou-a logo em seguida — Bem que eu imaginei que Ana estava muito contente em me dar o roteiro. Acho que foi uma forma dela se declarar pela minha boca.
estreitou os olhos, arregalando-os logo em seguida ao se lembrar da seleção de músicas e do que suas letras tratavam.
— Não brinca! — ela levou uma das mãos à boca enquanto assentiu — Isso é incrível. Ainda bem que deixei elas sozinhas…
— É sempre bom deixar que as histórias de amor se resolvam por conta própria — ele deu de ombros, olhando rapidamente para a população animada — Minha querida vizinha parece uma amostra grátis da Paris Hilton, mas garanto que vai cuidar muito bem da sua amiga.
— Sua vizinha? — arregalou os olhos de novo, mas tratou de fechá-los logo. É claro. Como não percebeu antes? Bonito daquele jeito e sobrinho de Rey, como não poderia vir de um berço de ouro? — Ah, entendi… — ela baixou os olhos, de repente sentindo o estômago revirar. Uma constatação de que já estava há tempo demais conversando com ele a atingiu rapidamente.
juntou as sobrancelhas, percebendo a mudança na expressão da garota, mas sem dizer muito mais. Ele buscava coisas para falar, coisas a comentar, qualquer assunto que pudesse deixá-la mais confortável para que não fosse embora. Para que não sumisse como da última vez.
— Você… — ele começou.
— Então essa é sua banda? — ela o cortou, erguendo os olhos rapidamente.
— Ah, sim! Somos os Fous de Montmartre. É com esses caras que eu gasto a maioria das minhas noites, no melhor sentido da palavra.
Ela riu e bebeu mais um gole da água.
— São muito bons. Vocês têm um grande potencial.
— Acha que temos potencial o suficiente para tocar em um de seus desfiles? — ele ergueu uma sobrancelha com ar cômico.
— Os desfiles não são meus — ela riu novamente — Mas se fossem, vocês seriam a cereja do bolo de toda a passarela. Levariam o público à loucura.
— Do jeito que você entrou, dava pra enganar muito bem quanto à autoria da produção. Era digno de quem controlava a galeria inteira... — ele disse de repente, sem o menor filtro. O sorriso permaneceu em seu rosto enquanto o dela foi diminuindo aos poucos, ao mesmo tempo em que sentiu o rosto pegar fogo. notou a fisionomia corada, e só então percebeu o disparate de palavras que o deixavam sem pedir permissão.
Não foi sua intenção deixá-la envergonhada, mas nunca foi o mestre de controlar a própria língua, mesmo quando queria elogiar alguém. Era seu maior rótulo de personalidade: honesto. Até demais.
— Ah, eu… — ela começou, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha. Ela quis desesperadamente sair dali, mesmo que seus instintos a dissessem para ficar exatamente onde estava. Aquele cara não deveria causar aquelas coisas nela. Era ridículo.
— Você quer dançar? — ele disse na frente, juntando o restante de coragem antes que esta também escapasse dele. Ele não estava bêbado e muito menos chapado, e a certeza do que estava fazendo ganhava força a todo momento, mesmo que não soubesse se era a coisa certa a ser feita — Quer dizer, para ser uma distração enquanto sua amiga e Ana se resolvem em como vão oficializar seja lá o que elas têm. E não te vejo com mais ninguém… — ele desviou os olhos para as costas dela, como se literalmente procurasse uma pessoa que pudesse brotar de trás dela a qualquer momento. Ela soltou um pequeno sorriso triste ao se lembrar do que havia respondido na frente da agência naquele dia: “mais ou menos”.
Como se namorava mais ou menos com alguém? não quis perguntar, mas sabia que não existia resposta lógica para tal coisa. Não quando se estava apaixonada.
Ela apertou a bolsa contra o corpo, sentindo o celular no mesmo lugar, quieto e silencioso, sem qualquer vibração ou barulho mínimo que esperava escutar naquela noite. Por um momento, aceitou que ele não viria. Nem Steve, nem as mensagens ou a ligação. Ele deveria estar fazendo seus demais compromissos que com certeza eram mais importantes do que ela. Que foram mais importantes desde o início. O pensamento rápido a deixou com o peito queimando instantaneamente. Ela suspirou e concordou com a cabeça para .
— Vamos dançar.
Ela pegou na mão dele e o guiou delicadamente até o centro da pista de dança, onde a massa de pessoas voltava a se concentrar, junto com o calor dos corpos, mas não se importou. Viu o garoto alto se posicionar na frente dela, e então não demorou muito para que a garota começasse a realmente curtir a festa.
tinha certeza absoluta de que não se divertia assim há muito tempo. Nem mesmo quando Alicia a arrastava para os pubs da Rue Cremieux no sábado à noite, ou quando seu pai a levava para jantar em bares de jazz que adorava, ela não se entregava como fazia naquele momento com os movimentos engraçados e divertidos de , e os passos de dança frenéticos e antigos que provavelmente deveriam deixá-los envergonhados, mas obteve o resultado completamente reverso. ria tanto que não conseguia completá-los, enquanto os fazia com o objetivo de ver aquele mesmo sorriso de novo. Era o efeito de ação e reação mais perfeito de todos. Ela não sentia vontade de ir embora.
Aquele tipo de diversão era impensável com Steve. Nem quando se conheceram naquele bar à beira do Moulin Rouge, onde ele havia se aproximado oferecendo-lhe uma bebida e a fitou nos olhos com tanto desejo e carisma que a pegou de jeito quase que instantaneamente. Ele era um homem magnético; sentia os efeitos até hoje, mesmo que com certeza não os estava sentindo no momento, ali naquela dança esquisita com .
Os acordes de La Vie En Rose começaram a soar devagar e os corpos a se juntar na pista. e demoraram a perceber, já que ainda riam pelo último passo do garoto que incluía tentar colocar um pé atrás da cabeça, mas a estrofe perto do refrão os fizeram parar e encarar o clima ao redor. engoliu em seco, enquanto baixava os olhos rapidamente, pensando no que fazer. Sem pressa, ele pegou em seu pulso, puxando-a para junto dele, depositando uma mão em suas costas. Ela não soube como agir imediatamente; fixou seus olhos no garoto e viu o pedido de permissão, que foi doado com um sorriso quando ela passou os braços por sua nuca, aproximando-se enquanto olhava para cima – ela não se cansava de perceber como ele era extremamente alto.
— Meus braços podem doer nesta posição — ela disse depois de um tempo, fazendo ele rir e repuxar os lábios.
— Desculpa — ele disse, encenando uma expressão abatida — Posso dar um jeito nisso.
Ela cerrou os olhos e de repente teve o corpo levantado até que seus pés fossem para cima dos dele, o que a ergueu por míseros centímetros, mas agora se encontrava perfeitamente na frente de seu nariz. A explosão de risadas com o gesto a atingiu em cheio, e a dança foi guiada por ele de forma lenta e quase cinematográfica – era isso que Alicia a diria depois, assim como os amigos de banda de , que observavam tudo da mesa de bebidas logo atrás.
O complemento de seus corpos juntos era de uma dimensão quase perfeita, o que fez lutar para que não tomasse nenhuma atitude burra e que com certeza não era de seu feitio. Mas agora, encarando de frente e recebendo seu olhar na mesma proporção, algo dentro dele não se segurava, que lutava para sair, guiados pelo cheiro dela bem perto de si, assim como a boca avermelhada naturalmente que o deixavam com um bolo no cérebro. Ele se via tentado a pelo menos dizer algo.
— Você é linda — as palavras saíram de sua boca em um sussurro, mas a voz de Louis Armstrong não foi o bastante para que não escutasse — Digo, você é única. E é muito talentosa, mesmo. Não menti quando disse isso da primeira vez, e muito menos agora.
Ela não disse nada por alguns minutos. O sorriso de canto pareceu um agradecimento, mas a risada de escárnio não. Ela baixou os olhos e desejou pedir para que ele não dissesse aquelas coisas. Que não a iludisse daquela maneira. Ela tinha ouvido bastante que não era tão bonita assim, e que as passarelas provavelmente não fossem seu destino, mesmo que amasse tudo isso, mas também amava a pessoa que dissera aquelas verdades. Ouvir o contrário de outra que mal a conhecia não tornava os fatos significativos. E ela preferia que ele parasse antes que se tornassem.
Mesmo assim, ele sorriu ao ver que ela não fugiu ou coisa parecida. Havia algo diferente em , e ele não conseguiria ir embora sem saber o que era.
— Me desculpa, preciso perguntar — ele riu com o nervosismo, ainda guiando a garota pela pista de dança — Aquele papo de antes do seu namorado…
— Acho que ele não é meu namorado — ela respondeu rápido, suspirando logo em seguida. Seu aperto nos ombros de se afrouxou. Ele engoliu em seco.
— Era com ele que você estava falando no telefone naquele dia?
Ela concordou com a cabeça, agora não mais sorrindo. Não havia argumentos contra seu comportamento naquele dia. podia sentir a relação conturbada apenas por aqueles olhos agora; ele podia ver o mal encarnado que Steve destilava na vida da garota sem nem mesmo conhecê-lo.
avaliou a expressão que fazia ao olhar para ela naquele momento e soltou uma risada. Um teor amargo sem precedentes surgiu na sua voz quando disse:
— O que foi? Quer me fazer o convite? — ela disse, aproximando-se de seu nariz em tom de zombaria — Depende, Brosnan. Você vai me acompanhar até a porta ou me mandar pra casa chorando?
O resquício de qualquer ânimo de desapareceu. Ele parou de se mexer no meio da pista, fitando com as sobrancelhas juntas. A garota notou a reação de imediato, afastando-se lentamente enquanto ele não protestou. O sorriso debochado nos lábios dela também havia sumido, assumindo a postura defensiva e nula de antes.
, por fim, soltou uma risada sarcástica a tempo de quebrar o clima estranho.
— Você não pode estar falando sério — disse ele.
Ela não respondeu. Também não sorriu de volta. A seriedade estava presente, assim como o motivo por trás das palavras: sua falta de confiança em si mesma a levava a desconfiar de quaisquer palavras ou intenções de terceiros.
— Acho que preciso ir… — ela disse depois de um tempo, começando a dar as costas para sair da pista de dança.
— Ei, espera — ele chegou a tempo de pegar em seu braço, virando-a para si — Eu não esperava nada disso. Eu não faria… — ele parou, umedecendo os lábios e tentando encontrar as palavras certas sem deixar seu tom indignado falar tão alto. Talvez não estivesse dando tão certo assim — Eu nunca faria isso.
— Está tudo bem, — respondeu, soltando-se devagar — Me desculpa dizer isso — mas ela não parecia arrependida. E nem pretendia demonstrar qualquer coisa que não sentisse — Mas preciso mesmo ir pra casa.
Ela vasculhou o celular na bolsa enquanto saía do meio da pista. O frio na espinha por não ver nenhuma mensagem ou ligação passou rápido; ela não queria pensar nisso agora. Começou a digitar a mensagem para Alicia dizendo que estava indo mais cedo, quando ouviu se aproximando novamente.
— chamou ele, se pondo à frente dela — Me deixa te dar uma carona.
Ela abriu a boca para negar, mas foi mais rápido:
— Por favor — disse ele. — Você bebeu e táxis a essa hora não são muito confiáveis. Palavra de conterrâneo.
Ele deixou escapar um sorriso fraco enquanto ela retribuía com um aceno de cabeça. Não adiantava tentar argumentar contra os fatos: ela precisava de uma carona e jamais separaria Alicia de, agora ela sabia, Ana por causa de suas crises existenciais de traumas de coração partido. Ela apenas deixou guiá-la até o pátio de fora e se permitiu entrar no banco do carona de seu Jeep Renegade.
O caminho até o apartamento foi silencioso, com o único som vindo da voz de Joey Ramone no som de com Baby, I Love You. Mais cedo, a mesma música havia sido performada na voz do garoto ao volante, e de repente ela se sentiu envolvida com a letra, que trouxe a paz suficiente para calar sua mente perturbada e retirar toda a necessidade de precisar pensar bem nos próximos passos. não seria um cara que se irritaria com qualquer palavra sua. Ele não merecia palavras bruscas vindas dela.
Em algum momento da avenida, ela se deixou espichar um olhar para ele, se deixando admirar novamente como ele era bonito e também muito gentil. Um aperto no peito a fez se tocar de que talvez não sabia lidar bem com esse tipo de tratamento. Era óbvio que ele queria beijá-la, mas tal desejo não o tornava sufocante ou difícil de se ter uma conversa. Ele esperava oportunidades para conhecê-la melhor – mas isso era questionável. Tudo para era questionável; por que um cara como ele queria saber mais sobre ela? Era difícil de compreender.
Mas, de repente, ela não queria mais mentir para si mesma. Ela também queria beijá-lo. Ou talvez até mais do que isso. Não era como se estivesse traindo Steve; ele havia desaparecido completamente e isso a deixava eufórica de alguma maneira a descarregar tudo em uma noite inteira com . Ele estacionou o carro em frente ao prédio devagar, olhando para ela logo em seguida.
— Tá entregue — disse ele, sorrindo minimamente. — Foi muito bom te encontrar hoje.
— Também gostei muito de te ver — ela desatou o cinto de segurança — Não imaginei que seria antes de um próximo caos de desfiles.
— Ah, pode acreditar que eles vão acontecer de novo — ele riu — E tenho certeza que você vai estar lá.
Ela mordeu o lábio inferior, desviando os olhos para a entrada.
— Então eu vou…
— Quer subir? — perguntou ela de repente, vendo ficar estático no mesmo lugar — Alicia me deu um vinho rosé como comemoração do desfile. Ainda não abri.
sentiu o peito formigar. Não é que não quisesse dizer sim – era o que mais queria. Mas ele sabia ler o movimento corporal das pessoas, e os de diziam claramente que ela não estava em total consciência do momento. Que ela estava magoada, mesmo que fizesse de tudo para esconder isso. E que se arrependeria amargamente depois.
— Eu… — ele começou, apertando o volante com mais força — Eu não vou fazer isso, . Não hoje.
Ele estava disposto a receber seu olhar recheado de mágoa. Tudo bem, ele poderia se explicar depois. apenas anuiu lentamente, sentindo uma pontada aguda da rejeição, mas tentando afogá-la a todo custo.
— Tudo bem — respondeu em um fio de voz, se sentindo-se mais do que idiota — A gente se vê por aí. Boa noite.
Ela apenas abriu a porta e saiu sem olhar para trás, deixando um angustiado com a cabeça enterrada no painel.

“Não, é para frente e para trás, eu disse algo errado?
É para frente e para trás, repassando tudo que eu disse
É para frente e para trás, eu fiz algo errado?
É para frente e para trás, talvez tudo isso seja sua culpa, na verdade”


Brosnan era transparente.
Não houve um dia sequer em que estivesse fora do normal que passou batido por seus colegas de banda. Os erros contínuos em seguir a partitura, a falta de concentração nos discursos iniciais de Pepe e seus olhos aéreos eram o suficiente para denunciar que algo estava errado. Mesmo que ninguém tenha achado um bom momento para dizer isso.
Por fim, no meio de London Calling, o ringtone alto do celular soou três oitavas mais alto do canto do estúdio, fazendo com que o garoto parasse a guitarra e voz abruptamente e esticasse os ouvidos na direção do som, saindo em disparada ao notar que vinha do seu.
— Fala sério — suspirou Mace, mas recebeu um toque sutil de Pepe, que inclinou a cabeça para o garoto que agora levava o telefone ao ouvido com pressa.
— Alô? — disse ele.
? — disse do outro lado da linha. Ele sentiu os músculos retesarem — É .
— Oi, — ele disse em um fio de voz, e fingiu não ouvir as meias zombarias dos colegas ao lado — Pelo visto recebeu meu presente.
— Sim. Você é maluco — ela soltou uma risada, a mesma da agência, a mesma que ele ansiava ouvir de novo — Não precisava ter feito isso.
Ele pode ouvir o ruído do plástico sendo retirado na cesta de café da manhã em algum lugar do outro lado. A ideia foi repentina, assim como colocar seu número em um cartão, e a probabilidade de sumir e nunca mais entrar em contato era imensa, mas no momento ele só conseguia sentir alívio.
— Eu fiquei preocupado, não consigo me segurar em ver garotas bonitas com ressaca — ele estalou a língua e arrancou mais uma risada dela.
O silêncio perdurou por alguns instantes. O coração de batia rápido. Ele tinha tantas coisas a dizer, mas não achava prudente nenhuma delas.
, me desculpa — quando falou, a voz era séria e direta — Eu não devia ter dito aquelas coisas ontem… Não devia ter agido daquele jeito também.
Ele suspirou, olhando de soslaio para os lados e se certificando que os outros colegas estavam devidamente distraídos em qualquer coisa no celular.
— ‘Tá tudo bem, — respondeu ele verdadeiramente — Mesmo. Só espero que você esteja melhor.
Ela quis dizer algo, mas não conseguiu. Imaginou perfeitamente que havia percebido que algo funcionava diferente dentro dela, algo errado, e ser pega em flagrante daquela forma só a fez se sentir ainda mais patética com suas ações. Ainda mais com ele, que parecia ser nada menos do que sincero o tempo todo.
— Eu estou melhor, sim. Graças a você — uma risada contida escapou de sua garganta e ela mordeu os lábios, reunindo coragem o suficiente — Você…
— Sim? — ele respondeu rápido demais, fechando os olhos com força logo depois pelo destrambelhar de suas atitudes.
— Você quer almoçar? — perguntou em voz baixa, como se ainda estivesse pensando melhor no convite, mas se deixou fazê-lo mesmo assim — Quer dizer, não é um café e nem nada…
— Aceito! — ele arfou, piscando os olhos algumas vezes — Digo, sim. Podemos almoçar. Com certeza.
Ela riu baixo ao notar a animação dele, o que a contagiou imediatamente. a colocava para cima; ela estava disposta a dar uma chance de perpetuar aquela sensação.
— Tudo bem então. Onde você acha melhor? Nem sempre morei em Paris, sabe…
— Conheço um lugar ótimo. Vou te passar o endereço, mas posso te buscar se quiser.
— Não precisa, eu te encontro lá — ela disse como um ponto final. imaginou que ela queria ir devagar, sem transformar aquilo em algo mais na primeira oportunidade. Ele apenas assentiu e concordou.
— Até mais tarde, .
Ele desligou com um sorriso no rosto.
sentia o ânimo do desconhecido que pensou estar perdido há muito tempo.
Depois de algumas horas, ela se aprontava em frente ao espelho largo do quarto, olhando a cama infestada de roupas até que se decidisse pelo vestido solto e as mechas presas atrás da cabeça, sentindo-se leve e confortável sem se importar em usar ou não muita maquiagem. Ela sentia que podia ser assim com : despojada. Nada além do que ela mesma.
A garota encarava o endereço nas mensagens e se preparava para sair quando a campainha da frente tocou. Ela sabia que Alicia não havia esquecido nada e que não descumpriria o trato de ir buscá-la, então as demais opções ficaram no limbo. Quando andou até o batente e abriu a porta, deparou-se com o homem de gravata frouxa e paletó desabotoado, emanando o cheiro característico de menta e tabaco.
Steve carregava um ramalhete de orquídeas junto com uma embalagem de papelão com a logo do restaurante favorito de .
— Posso entrar? — perguntou ele.
Ela engoliu em seco. O cheiro dele a desnorteou por completo, assim como seu sorriso de canto. Magnético. As memórias ativadas em seu cérebro a deixaram sem reação imediata. Até quando ele causaria aquele tipo de coisa nela?
Sendo tomada por esses sentimentos, ela afastou-se da porta para que ele entrasse.
— Está de saída? — o rapaz vasculhou o apartamento até se virar para ela — Você tá muito bonita.
— O que você quer, Steve? — perguntou , disposta a se armar contra suas investidas. estava esperando, ela precisava se lembrar disso.
— Achei que podíamos almoçar — ele deu de ombros, colocando a embalagem na pequena mesa da cozinha conjugada com a sala — Trouxe aquela comida indiana que você ama. Curry, acho que é isso. Posso até comer com você.
— Não posso agora — a garota respondeu rápido, tentando driblar qualquer convite que parecesse irrecusável — Você acertou, estou de saída. Então se pudermos…
Ele soltou uma risada seca, caminhando até ela e então lhe estendendo as flores. Eram lindas e, novamente, as favoritas dela. Ele guardava todas aquelas informações secretamente? Dizia esquecê-las de propósito? Qual era o problema dele?
— Por que não podemos ficar um pouco juntos? Aposto que não tem nada melhor pra fazer agora — disse ele, com sua voz doce e cortês.
Ela quebrou a hipnose das flores.
— Eu tenho algo pra fazer agora, Steve. Tenho um compromisso. E não é como se eu fosse adiá-lo para ficar com uma pessoa que não quer estar comigo.
— Como você diz uma coisa dessas,
— Não. Não vem com isso de novo. Você não respondeu nenhuma mensagem ou ligação nas últimas semanas, e daí aparece agora como se nada tivesse acontecido. Não é assim que as coisas deveriam funcionar, Steve..
— Você diz como se eu fosse um monstro por querer trabalhar para crescer um pouco mais…
— Eu não disse isso. — ela trincou os dentes, sentindo a culpa querer alcançá-la de novo.
— Mas é o que está pensando, não é? Está pensando que eu sou filho da mãe egoísta quando na verdade eu posso estar almejando um futuro nosso. Porque eu sei que tudo pode ser melhor pra nós dois quando eu conseguir aquele cargo. Já parou pra pensar nisso, ? Que a egoísta aqui pode ser você?
Ela sentiu as palavras como um soco no estômago, um tapa de realidade. A veia na têmpora do garoto já começava a inchar; ela havia conseguido deixá-lo com raiva mais uma vez, e a culpa a atacou com tudo. Mas não podia ser assim. Não devia ser assim. Ela precisava lutar contra aquilo pelo menos uma vez.
— Para de distorcer tudo que eu digo… — pontuou, com a voz trêmula. Ele meteu as mãos nos bolsos e riu com zombaria mais uma vez, pensando em suas próximas frases cortantes que a deixariam sem chances de rebater.
— Não estou distorcendo nada, só estou dizendo os fatos. Isso não quer dizer que te quero longe de mim ou algo parecido. ‘Tô só tentando fazer você melhorar — ele suspirou, partindo para a próxima artimanha: virar o amor dela contra si. O desejo que nutria por ele, que a fazia perder a noção de tempo e espaço. Ele flutuou um dos dedos por sua bochecha, sabendo que a pele dela formigaria e queimaria na mesma proporção — Quero que a gente se acerte, . Que as coisas fiquem claras e que você entenda como tudo deve funcionar pra dar certo. Prometo que tudo vai se encaminhar — ele aproximou seu nariz no dela, o que a fez fechar os olhos — Você me ama, ?
Ela os abriu instantaneamente, afastando-se de imediato. não pensava mais nas horas, nos compromissos de depois, muito menos em esperando em alguma parte da cidade. Ela só via Steve e aquele olhar odiosamente atraente, a postura avantajada que a deixava desejando aqueles braços em volta de si e a língua que entoava palavras doces, porém maléficas. Essa era a verdade que precisava vir à tona, que afogou por tanto tempo: egoísta. Ela precisava, uma vez, ser realmente a egoísta da jogada.
— Sim, eu te amo — sussurrou ela, mantendo o tom de voz firme — Mas não posso levar isso adiante. Não mais.
Ele juntou as sobrancelhas, como se não tivesse escutado direito.
— O que disse? — Steve cerrou os olhos, aproximando-se dela — Acho que não entendi muito bem.
— Disse que estou colocando um ponto final nisso, Steve. De uma vez por todas.
— E como você vai fazer isso exatamente? — ele riu com incredulidade — Parando de me ligar? Saindo com outras pessoas? Se concentrando no seu bico? Pelo amor de deus, não acha que já tentou fazer tudo isso antes e ainda estamos aqui?
— Não importa! Não posso mais ficar nesse ciclo vicioso, nessa busca por uma atenção e amor que eu sei que mereço e que jamais vou tê-los com você. E realmente não me importa como você chame isso, Steve Dunne! Só preciso que você saia da minha casa agora.
Ele trincou o maxilar, olhando a atitude firme da garota com raiva. Um ponto firme e quente em seu peito o avisava que o jogo tinha virado; que não era a mesma da semana passada e que algo havia acontecido em sua ausência, o que o deixava ainda mais irritado pela mudança brusca. Steve não suportava mudanças bruscas.
, o que você…
— Por favor, Steve. Não vamos mais fazer isso.
Ele se aproximou rapidamente dela, chegando perto de seu rosto o bastante para que a deixasse sem reação, sem ter para onde ir. Foi fugaz e veloz; ela não soube o que fazer. Seu coração parecia inchar como um balão no peito.
— Quanto tempo será dessa vez? 1 mês, 2 meses? — ele murmurou, mas ela podia sentir o veneno novamente em seus lábios — Quanto tempo acha que vai conseguir ficar longe de mim?
— Steve…
Ele a beijou bruscamente.
Ela usou uma força sobre humana para afastá-lo. Seu corpo inteiro ardia em chamas, assim como seus olhos. Ela podia sentir o nariz ficar irritado, adiantando uma crise de choro. Ela o odiava e o amava mais do que nunca naquele momento.
— Para! Para agora mesmo! — o grito não dado por todo aquele tempo finalmente havia achado a brecha para sair — Eu não aguento mais isso. Não vou mais continuar assim! Não vou me deixar levar pra mais uma noite de êxtase com você pra não te ver no café da manhã. Pra te ver sumindo de novo do nada e se irritando quando eu pergunto onde você se meteu. Eu só sou sua namorada quando é pra ser exposta aos seus colegas do escritório, que respeitam o meu trabalho mais do que você! Não quero mais me sentir usada, ou diminuída, ou totalmente culpada por pedir um pouco mais de afeto. Não, eu não quero mais isso. Acabou, Steve. E falo sério.
Ele a encarou de cima a baixo, com os lábios entreabertos e a postura totalmente imóvel. segurava os soluços, mesmo que uma lágrima traidora tenha despencado, mas nem isso importava mais. O sorriso sacana do homem não veio, muito menos seu olhar desprezível. Ele estava apenas abismado demais para ser o Steve Dunne de sempre.
— Você… — ele começou e parou, bufando — Você não está dizendo as coisas certas…
— Eu estou dizendo exatamente o que tem que ser dito, Steve! Disse o que eu sinto, o que já é o bastante. Não vou mais pisar em ovos pra abrir a boca perto de você, não vou atribuir culpa a mim mesma quando na verdade a culpa é toda sua!
Ela parou e respirou fundo, escondendo as mãos trêmulas ao lado do corpo, odiando o teor perverso de sua voz ao dizer que a culpa era dele, mas as palavras saíram e não voltariam mais atrás. Ela não queria que voltassem nunca mais. Permitir-se ser egoísta para afastar alguém que a fazia tão bem e tão mal ao mesmo tempo poderia ser considerado uma atitude amor próprio. Pelo menos uma vez, uma única vez.
Ele tinha ódio salpicado nos olhos. A vontade de gritar tomava cada célula de seu corpo. A vontade de sacudi-la era maior ainda. Como ela podia se ver no direito de falar assim com ele? De ditar as regras? Ela não ditava coisa alguma. Steve se encontrava tão atônito que não conseguia emitir um argumento sequer.

— Sai daqui, Steve! — ela pediu mais uma vez, dando vários passos para trás — Por favor.
Ele mordeu o lábio inferior com força, sabendo que se exaltar naquele momento só o faria perder a razão, mesmo que não se importasse com isso nas outras vezes – quando tinha certeza que ela abaixaria a cabeça para qualquer coisa que dissesse. estava irritantemente segura agora. Ele a odiava em cada pedaço do corpo no momento.
— Acha que ele vai aguentar por muito tempo? — disse ele, com toda a repulsa que conseguiu reunir na voz — Acha que por ser bonita vai manter alguém apaixonado por você? Já disse que o caminho não é bem por aí, querida. Tenho certeza que vai entender bem rápido e voltar a discar o meu número.
Ele insinuou uma última risada podre de chacota e saiu, batendo a porta da frente.
permitiu o livramento de um grunhido preso na garganta, junto com as outras lágrimas. Ela se sentia humilhada, devastada, vazia de todos os sentimentos bons que pudessem existir. Steve havia destroçado seu coração várias vezes, mas aquela havia fechado o ciclo arruinado com chave de ouro. Ela deslizou pela parede e abraçou os joelhos, tremendo da cabeça aos pés com o puro nervosismo enquanto tentava digerir as últimas frases dele, decidindo não esquecê-las de imediato ou ignorá-las como sempre fazia. Era hora de encarar as palavras grotescas de uma vez por todas, assim como era hora de encarar a realidade que tanto fugiu até hoje: Steve Dunne não a merecia. E toda dor que a causou também não o deixavam ser digno de merecer algum dia, não importava se fosse acometido pelo arrependimento logo depois.
Ela não sabe por quanto tempo ficou ali parada, aos prantos, se libertando de um terrível peso nas costas que a prendia ao mesmo lugar, que drenou oportunidades e sonhos, que tirou sua melhor visão de si mesma. Ela não via nada ao redor, apenas as palavras de Steve, que iam se esvaindo cada vez mais com o passar dos minutos. Ela não sabe por quanto tempo… Até que se lembrou.
.
Ela levantou num jato, correndo até o celular largado no sofá retrátil e conferiu as horas, soltando um gemido sufocado de horror.
Duas horas haviam se passado desde o combinado e as notificações mostravam pelo menos três chamadas perdidas.
Ela fungou, sentindo uma exaustão mental tão grande que pensou em nunca mais olhar para de novo depois daquele bolo terrível. Pensou por vários instantes que ela não era boa para ninguém no momento, e que iria decepcioná-lo da mesma forma que Steve fez com ela por tanto tempo. Que ela só seria capaz de reproduzir o que lhe foi causado. Que não merecia, não merecia, não merecia…
Mas fechar seu coração também era deixar que Steve vencesse. Era dá-lo o gosto profundo da vitória de conseguir marcar sua alma a ferro com todo vai-e-vem tóxico que projetou sobre ela.
Por fim, ela se levantou e secou as lágrimas, andando até o quarto para retocar a maquiagem.
Enquanto isso, em alguma parte da Paris capitalista, encarava o pôr-do-sol da sacada veneziana com o olhar opaco de quem só olha, mas não enxerga. A cama no meio do quarto, que o deixava como espectador de camarote do espetáculo, estava tomada pelo seu corpo jogado de qualquer jeito enquanto ele fazia o possível para não olhar o celular logo aos seus pés. Ele achou melhor realocá-lo para bem longe de seus dedos, onde não pudesse cometer nenhum ato impulsivo, como ligar mais uma vez ou mandar mensagens, mas estava difícil. Ele sentiu que precisaria de correntes de ferro para mantê-lo preso onde estava e não dirigir até o apartamento dela.
não havia dado notícias. Ele não teve escolha a não ser se levantar e sair do restaurante, que já o avisava sobre o fim do expediente.
Ele sentiu que enlouqueceria enquanto pensava no que poderia ter acontecido.
Quando o telefone tocou depois de mais uma suspirada, ele sentiu pés e mãos se moverem por conta própria até o aparelho. Sem nenhuma disposição para olhar o visor, ele apenas atendeu imediatamente, com o coração batendo em disparada.
?
— Mace Jackson — respondeu a voz masculina do outro lado, fazendo revirar os olhos e despencar novamente na cama — Liguei pra perguntar sobre as mudanças da partitura, mas pelo visto você não esperava por isso.
— Tudo bem, cara — respondeu cabisbaixo. Transparente, como sempre — O que tá pegando?
— Eu que te pergunto. é a garota da pista de dança? Achei que iam almoçar juntos hoje. Deu ruim?
— Não sei dizer — respondeu ele, fechando um punho na testa — Ela meio que não apareceu.
— Jura? — Mace estalou a língua, murmurando um palavrão em voz baixa — Que merda. Aconteceu alguma coisa?
— Também não sei dizer — ele riu engasgado — Sei que tem algum motivo, mas não saber qual é ele me deixa um pouco ansioso. E angustiado também, mas ela não precisa saber disso.
— Entendo você, Brosnan. Acho que sei do que precisa agora — Mace disse e o som de um prato metálico retumbante no fundo soou ávido nos ouvidos de — Extravasar.
Ele riu, sabendo que o convite era sincero e, não podia negar, necessário naquele momento. Distrair a mente era a solução dos problemas atuais. Às vezes ele precisava deixar que algumas coisas se resolvessem sozinhas.
— Tudo bem. Garagem do Pepe?
— Já estamos aqui — respondeu o amigo, desligando logo em seguida.
bufou e se levantou antes que desistisse.
Ao descer pelas escadas depois de alguns minutos, ele passou pelo hall de entrada enquanto ajeitava a guitarra nas costas e ainda procurava seu conjunto de palhetas devidamente nos bolsos quando abriu a porta da frente.
Ele não a viu de imediato até que colocasse um pé para o lado de fora e encontrasse outro par parado a centímetros do seu. parecia agitada, mesmo estando imóvel, e seu peito subia e descia em uma respiração pesada.
precisou piscar os olhos algumas vezes para acreditar no que estava vendo.
? — perguntou ele, confuso.
— Oi — disse ela, limpando a garganta logo em seguida — , eu… Eu não queria, de novo, agir de forma irresponsável com você. Nunca quis. Sei que boas intenções não mudam absolutamente nada, mas espero que você leve isso em consideração. Um pouco, pelo menos.
Ela engolia em seco, sem conseguir encará-lo diretamente. não sabia o que diria quando chegasse ali; só sabia que precisava dizer.
— Você está bem? — ele perguntou, ligeiramente apressado — Aconteceu alguma coisa? Eu tentei te ligar, mas você não atendeu e daí fiquei criando teorias sobre algo ter acontecido com você. Essas coisas fogem do meu controle às vezes — ele riu envergonhado, atraindo o olhar dela — Espero que não tenha sido nada a ver com missões secretas ou caras de outras bandas. Acredite, isso iria me ferir.
Ele abriu o sorriso engraçado. Ela o olhou, surpresa, como se o rapaz à sua frente não fosse de verdade. Brosnan não podia ser real.
— Não, não é isso… — ela cruzou os braços, baixando os olhos por um instante — Liguei para Alicia, que ligou para Ana, até que eu parasse aqui e te dissesse que sinto muito. Mesmo. Tive problemas inesperados antes de sair de casa. Não consegui te atender.
Ela disse de maneira dura e diminuiu o sorriso. Era palpável a conexão que sentia com aqueles olhos. era tão transparente para ele quanto ele era para os outros.
— Mas você está aqui agora — ele trocou o peso de uma perna para outra — Então quer dizer que ele não conseguiu.
Ela o fitou por um longo momento, umedecendo os lábios até assentir lentamente com a cabeça. O sentimento de apoio e acolhimento a preencheu, e ela soube na mesma hora de que poderia estar finalmente tomando as rédeas da situação.
— Não, ele não conseguiu — ela deixou um sorriso pequeno escapar, e recebeu outro dele — E não vai fazer com que eu me acomode e não queira consertar as coisas. Então, talvez, Brosnan, ainda aceita dividir uma refeição comigo?
Ele mordeu os lábios, enxergando aventura e prazer na expressão dela. Em todos os sentidos da palavra.
— A hora do almoço já passou há um tempo — ele repuxou um dos olhos, em tom cômico. Ela riu com o gesto.
— Acho que podemos tomar um café até a hora do jantar. Claro, se você…
— Claro que aceito, — respondeu ele, com a voz repentinamente abafada e com a demonstração clara de sua vontade. Ela sentiu a ansiedade da expectativa dentro de si. De se deixar levar em uma estrada do desconhecido que era Brosnan.
assentiu e começou a caminhar para o gramado da frente quando se lembrou da guitarra escorada nos ombros e grunhiu ao se lembrar dos amigos.
— É, então… — ele riu sem graça, dando um tapinha no instrumento atrás de si — Acha que podemos passar em um lugar antes?
apenas sorriu e concordou com ânimo.
Ele fechou a porta e pegou discretamente em sua mão antes de entrar no carro.


FIM.



N/A FIXA 📌: Obrigada por ter lido :)


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