Finalizada em: 30/05/2022

Capítulo único

Sete.

Nïra não entendia muito bem de onde vinham tantas pessoas, nem porque a mulher esguia e enrugada que a acompanhava por todo lado falava com ela tão diferentemente de como falava com essas pessoas. Sabia apenas que não era grande fã da tutora e que escapar dos seus olhos de coruja era difícil, mas seu tamanho era uma arma secreta no meio da multidão de funcionários do palácio.
Segurando a barra do vestido bordado à mão com uma infinidade de fios de ouro e prata, a menina corria para os jardins. Os cachos modelados tão tediosamente após cada banho refletiam o laranja do final da tarde; à sombra, entretanto, todo vestígio de cor desaparecia, dando lugar ao branco característico das crianças hada.
A menina respirou fundo, recuperando o fôlego, e se sentou num banco de mármore esculpido com cenas da Grande Batalha. Naquele painel em particular era retratada a dominação dos navin pelo gigante Melthenor, pouco antes da sua salvação pelo povo hada.
Nïra revirou os olhos. Não que não acreditasse na história antiga dos povos de Tergos - na verdade, estava na fase de acreditar em qualquer coisa interessante e curiosa que a contassem -, mas já estava cansada de ouvir a corujona recitar as passagens para ela todos os dias. Conhecia a história comum de trás para frente, o que era impressionante para apenas sete anos de idade, embora esperado da Pérola da Alvorada.
- Vai ter que ser mais rápida da próxima vez. - Uma vozinha vinda de trás dos arbustos tirou a princesa de sua frustração acadêmica e colocou um sorriso no rosto da menina.
- Gris! Não vi você aí.
- Eu me misturo bem com as plantas. - O garotinho se levantou e sacodiu as folhas da roupa. Estava sujo e amassado, mas feliz em encontrar a amiga. - Você é que é fácil de ver, com esse cabelo que parece um relâmpago.
A princesa rolou os olhos mais uma vez. Não era a primeira vez que ouvia a comparação, mesmo que dessa vez Gris não tivesse feito nenhum comentário maldoso do tipo "você é o raio mais lento que eu já vi".
- Ele não vai ficar assim para sempre - retorquiu, passando os dedos pelos cachos desmanchados durante a fuga.
- Também não vai ficar muito mais discreto depois do seu batizado.
Nïra reprimiu a vontade de discutir. Sabia que Gris estava apenas provocando e não daria a ele o gosto de irritá-la.
- Por que você estava escondido?
- Diferente da vossa alteza, eu não posso andar à toa pelo castelo.
- Pois deveria. Seus pais são as pessoas mais importantes daqui.
Gris arqueou uma sobrancelha, questionando os estudos que a princesa recebia sobre a hierarquia e castas de Tergos.
- Como os jardineiros podem ser mais importantes do que o próprio rei?
- É muito simples. Tão simples que me espanta você não saber - retrucou a menina, cruzando os braços e encarando o garoto com a petulância graciosa que só ela tinha. - São eles que fazem o castelo tão bonito e se ele não fosse bonito, ninguém acreditaria que é importante.
O pequeno riu. Olhou em volta e, sacando do bolso uma tesourinha pouco afiada roubada do avental do pai, cortou um buquezinho de hortênsias e entregou à menina.
- Flores são bonitas. Elas são importantes, também?
- A senhora Anaerim me contou que as flores são usadas para fazer remédios e que só o perfume delas já é suficiente para ajudar os doentes a se curarem. É claro que elas são importantes.
Gris estalou a língua e continuou olhando ao redor.
- Aquele pássaro. - Apontou para um galho alto de uma árvore velha. Repousava lá um pássaro de penas vermelhas escuras e opacas que contrastavam com o círculo amarelo reluzente no topo da cabeça. Seu canto era tão belo que fora declarado propriedade real e os últimos da espécie só podiam ser encontrados nos jardins do palácio. Era conhecido pelo povo como menestrel-de-coroa-dourada, embora, para maior parte dos tergoranos, não passasse de uma lenda.
- O que tem ele?
- Não sei. - O garoto deu de ombros. - Gosto dele, mas parece meio inútil.
Nïra bufou, menos irritada do que demonstrava estar, mas começando a perder a paciência para os questionamentos do amigo.
- Ninguém gosta de estar perto do feio, Gris. Você prefere estar aqui ou nas fronteiras das terras abandonadas? - provocou, sem perceber o quanto a comparação poderia machucar o garoto. - Tudo o que é bonito é importante.
- É por isso que você é princesa?
A menina prendeu o ar. Quis brigar, mas teve que fazer o esforço de controlar o sangue nas bochechas quando viu que Gris não esboçava nenhum sinal de zombaria.
- Acho que não - respondeu baixinho, abaixando os olhos para os próprios sapatos brancos. - Se fosse assim, você seria prín...
- Princesa Maenïra! - O grito engasgado ressoou pelo jardim, assustando as crianças. Não foi preciso muito tempo para que Anaerim estivesse ao encalço da dupla, parecendo mais esticada do que o normal com os cabelos avermelhados espatifados pelo ar. - Sua alteza, procurei pela senhorita por todos os lados. Já conversamos sobre andar sozinha pelo palácio e sobre falar com os navin, não conversamos?
Nïra olhou para Gris, desconfortável com o tom que a tutora usava para se referir a ele. O garoto, por outro lado, encarava a mulher por baixo dos cílios sem fazer grande esforço de olhá-la direito, cansado de ouvir a mesma ladainha desde que nasceu. Parecia ter envelhecido uns bons cinco anos apenas pela mudança de postura, embora ele e a princesa não tivessem mais do que alguns meses de diferença de idade.
- Princesa, estou falando com a senhorita. Precisamos repetir nossas aulas de etiqueta básica, também?
- Me desculpe, senhora. Por não responder e por andar sozinha. - Nïra respondeu fazendo uma pequena reverência com a cabeça.
Anaerim endireitou as costas, se recompondo da corrida. Olhou para as crianças e se demorou um pouco mais no garoto. As narinas infladas e os lábios comprimidos da mulher eram resposta ao contraste entre eles: a princesa, imaculada, parecia uma escultura esculpida em carrara; o plebeu esfarrapado, de olhos e cabelos tão escuros quanto a noite sem estrelas, manchava a paisagem perfeitamente branca e dourada do jardim. Nem os pequenos detalhes nas cores do espectro destoavam como ele.
Eles eram de mundos diferentes, quase opostos, separados pelo longo muro de pedras na divisa entre as planícies feudais e os vilarejos navin. A baixada era bela, farta, abençoada pelos deuses. O outro lado, as terras altas nos arredores do reino, podia apenas imaginar o que seria viver em meio a todo aquele luxo e pompa, saúde, saneamento, comida, segurança...
- Você não devia estar aqui - ralhou a tutora, fechando os dedos nos ombros da princesa até ficar com os nós esbranquiçados. Ignorou os resmungos da menina, mais preocupada em manter contato visual com o garoto. - Seu tipo nunca soube respeitar a ordem das coisas. Nunca soube o seu lugar.
Gris tirou uma correntinha do bolso e a esticou o mais alto que pode, bem de baixo do nariz da mulher. Pendurado no cordão dourado estava um pingente em formato de nuvem e dele pendiam pequenos diamantes presos em fios finos de prata intercalados com os cristais coloridos que compunham o desenho de um arco-íris.
- Meu colar! - A princesa exclamou. Agarrou a corrente com as mãos e colocou-a no pescoço, respirando fundo para não deixar as lágrimas caírem. Tomaria uma bela bronca da tutora se chorasse por algo tão sem importância, mas tinha ficado verdadeiramente triste quando deu falta do seu colar favorito.
- Essa joia desapareceu de dentro do quarto da princesa há duas semanas. Como é que foi parar nas suas mãos, navin?
O garoto deu de ombros.
- Meu pai achou na estrada, ontem, e esqueceu em casa. Eu vim trazer para ele, mas encontrei a Nïra antes.
- Princesa Maenïra! É assim que o seu povo deve se referir a ela - vociferou a tutora, abaixando a voz conforme se aproximava do rosto do pequeno. - E se fosse por mim, você nunca mais o faria.
Um farfalhar na copa da árvore foi a única coisa que se ouviu quando o menestrel-de-coroa-dourada levantou voo. Gris olhava de Anaerim para a princesa e franziu as sobrancelhas quando a viu se encolher sob as ameaças da ruiva. Era isso, então.
Com uma reverência baixa, quase tocando os próprios pés, o garoto se enfiou entre os arbustos novamente e desapareceu no labirinto verde que emoldurava o jardim.
- Vamos, princesa. - Os olhos de coruja da mulher percorreram toda a área visível até se dar por satisfeita. Vitoriosa, ela agarrou o braço da menina e saiu em direção ao palácio. - Você está imunda, vai precisar de um banho caprichado antes do jantar.


Doze.

Havia muito tempo desde que o palácio vira tanta movimentação. Milhares de serviçais e fornecedores de toda sorte faziam o lugar parecer a feira livre das terras abandonadas com o único intuito de deixá-lo, ao final do dia, tão diferente da feira quanto fosse possível. Carroças, barris e caixas circulavam pelo perímetro exaustivamente extenso levando os móveis e provisões para o jantar cerimonial que aconteceria à noite, com a presença de representantes das principais famílias hada, convidados de honra do rei e da rainha.
A equipe de cozinha se desdobrava em muitas para retirar a prataria do almoço e dar continuação nos preparativos do banquete enquanto os camareiros tratavam de arrumar o salão principal como se ele nunca tivesse sido usado antes. Pares extra de mãos eram usados nas atividades e ainda mais viriam para o dia seguinte, quando os governantes abririam as portas do palácio para todo o povo hada assistir ao batizado da princesa Maenïra.
Os andares superiores acomodavam alfaiates, costureiras, ourives, aias e camareiros responsáveis por preparar a jovem para a cerimônia, e Anaerim nunca esteve tão atarefada. Nïra, por outro lado, nunca esteve tão entediada. Trancada no quarto das roupas aguardando os ajustes em seus vestidos ficarem prontos para a última prova, ela se perguntava onde sua dama de companhia estaria, certa de que seria num lugar mais interessante.
Da janela via o jardim oeste, uma das poucas áreas que não sofreriam nenhuma alteração para o evento. No centro do desenho formado pelos caminhos e canteiros, entre as flores brancas da árvore plantada por ancestrais de quem ela sequer conseguia lembrar o nome, o ninho de menestréis-de-coroa-dourada era a maior fonte de entretenimento da princesa, muito embora os três pássaros estivessem tirando um cochilo.
Nïra repousou o rosto nas mãos e sentiu as pálpebras pesando. O sol suave que entrava no quarto criava uma atmosfera confortável difícil de resistir e tampouco ela tinha vontade de fazê-lo. Quase inconsciente, não ouviu a porta do quarto se abrir, notando que tinha companhia quando uma mão lhe tocou o ombro.
- Hyvett, onde você est- GRIS?
A garota se levantou num pulo, olhando em volta como um gato caçando uma mosca. O que ele estava fazendo ali? Onde estava Hyvett, a dama que não estava acompanhando a princesa e evitando que esse tipo de coisa acontecesse?
- Lição número um: nunca abaixe a sua guarda, vossa alteza.
Gris fez uma reverência exagerada, abafando uma risada, e rodeou a cadeira intrincada onde a menina estava. Nïra respirou fundo. Por mais acostumada que estivesse a ser chamada por títulos e alcunhas, sentia o estômago se retorcer quando os ouvia na voz do amigo.
- Por que eu deveria, dentro de um quarto cercado por guardas, no meu próprio palácio?
- Porque eu estou aqui - retorquiu o garoto, subindo o tom ao final, numa pergunta implícita.
- Eu te conheço desde que nenhum de nós dois andava direito, Gris. Confio em você. - Nïra ofereceu um sorriso acolhedor ao intruso ao mesmo tempo que sentiu seu cabelo cair sobre os ombros.
- Mas não devia confiar nos seus guardas. Se eu entrei, qualquer um pode entrar - explicou, balançando entre os dedos a presilha dourada que segurava as madeixas reais há alguns segundos. - Além disso, eu sou um péssimo ladrão, mas é muito fácil tomar coisas de você. Lembra daquela boneca de pano que você arrastava pelo jardim inteiro?
A princesa continuou respirando fundo por mais algumas vezes. Não gostava dessa história e torcia para nunca mais revisitá-la, embora, é claro, Gris tivesse outros planos.
- Aquilo foi uma fatalidade. Eu fui pega desprevenida e...
- Você me deu a boneca assim que eu te ofereci uma margarida despetalada, Nïra. Suas aulas de autodefesa foram tão úteis quanto as minhas de etiqueta.
- Você nunca fez uma aula de etiqueta, Gris.
- Foi o que eu disse. Agora, onde estão os petiscos?
Nïra afundou o rosto nas mãos, se sentindo estúpida por ter sido tapeada com tanta facilidade. Jamais admitiria em voz alta, mas Gris estava certo e ela precisava de reforço nos treinamentos com urgência antes de entrar na Academia de Taemora na próxima primavera.
O pensamento fez descer um arrepio pelas costas da princesa. Ir para a Academia era tão empolgante quanto assustador e ela sabia que havia muita expectativa sobre si. Conhecia as lendas de Tergos e até não era péssima alquimista, mas não conseguiria colocar uma flecha num arco mesmo que sua vida dependesse disso. Também não era muito atlética e, como Gris havia acabado de provar, a vida no palácio não fez dela a mais esperta das crianças hada.
- O -ê -oi, Pinsesa? - perguntou o garoto com a boca cheia de petit fours roubados da mesa posta especialmente para a monarca.
- Santo Örue - murmurou ela, desacreditada. - Eu te dou aulas de etiqueta se você me ensinar a lutar.
Gris encarou a mão estendida da menina, esquecendo de mastigar por um minuto. Tomou um gole do suco de framboesa servido junto com os petit fours e riu.
- O que eu faria com aulas de etiqueta? De onde eu venho, isso só serviria para zombarem de mim.
- Talvez, se você se comportasse melhor, pudesse morar aqui no castelo.
O garoto ficou em silêncio. Franziu as sobrancelhas e balançou a cabeça antes de colocar a taça e a presilha dourada de volta sobre a mesa.
- Eu não sei que espécie de livros você estuda aqui, Nïra, mas provavelmente aprenderia mais saindo do seu paraíso murado e não diria uma idiotice dessa.
- Não é comum ter navin morando aqui, eu sei, mas tenho certeza de que se eu conversasse com meu pai, ele deixaria você e a sua família se mudarem para cá. Seria melhor do que morar nas terras altas, não acha?
- Não é comum? Quantos navin você já viu dentro do reino sem que estivessem servido um hada, Nïra? - A doçura na voz da princesa era quase desconcertante para Gris. Com os punhos cerrados, ele repetiu mentalmente que ela não era culpada por nada disso e tentou conter o impulso de responder como queria. - Tergora não é conhecida como as "terras altas" por aqui, não é? Aquelas são as terras abandonadas, o outro lado da grande divisa de pedra que nos mantém longe das cidades coloridas dos hada. Nós não somos bem-vindos.
Havia algo na voz de Gris que Nïra não reconhecia, mas que a fez sentar-se novamente na cadeira de madeira entalhada sob a janela. A visão do jardim agora era um pouco menos agradável e o calor do sol já não era mais tão convidativo. Ela não entendia por que ele tinha se ofendido com a proposta e, muito menos, por que alguém recusaria um convite para morar no palácio - ou em qualquer lugar desse lado da divisa, na verdade. E que diferença fazia como as terras abandonadas eram conhecidas dentro do reino?
- Princesa, você já está pronta?
Hyvett abriu a porta sem nenhum tipo de floreio, imaginando que Nïra já estivesse completamente vestida a essa altura. A menina ainda tinha muito o que aprender sobre a função que estava assumindo como dama de companhia, mas a princesa gostava da presença da amiga mesmo assim. Gris aproveitou o descuido da serviçal e saiu, sendo notado por Hyvett pela primeira vez.
- Eu devo chamar os guardas, princesa? Ah, meus deuses, eu devo. É claro que devo. Guar...
- Não, Hyvett. - Nïra rapidamente calou a aia de olhos esbugalhados e respiração desritmada. - Está tudo bem, ele é meu amigo.


Dezesseis.

Os sinos soaram alto na torre, o que significava que Nïra estava muito mais atrasada do que tinha imaginado. Os longos cabelos lilases voavam com o vento enquanto ela disparava pelo corredor externo do castelo não tão grande quanto o palácio onde morava, mas o suficiente para fazê-la queimar as canelas tentando chegar ao campo de treinamento antes do professor. Hyvett ria ao seu lado, acompanhando o ritmo da princesa.
- Quero ver você rir quando nós levarmos bronca do mestre Priscco de novo.
- Relaxa, Nïra. Nós sempre podemos dizer que estávamos fazendo um aquecimento antes dos treinos.
Maenïra fitou a amiga, imaginando de onde vinha aquela postura relaxada. Queria retrucar dizendo que essa era a pior desculpa que elas podiam arranjar, mas não tinha fôlego para falar nada naquele momento. Hyvett, por outro lado, ria, tagarelava e saltitava sem derramar uma gota de suor durante toda a maratona não planejada da dupla. Vir de uma das maiores famílias guerreiras de Tergos parecia ter suas vantagens, afinal.
- Olha aqueles trogloditas, por exemplo. Acha que eles têm um argumento melhor que o nosso? - A menina apontou em direção ao pequeno aglomerado de estudantes que produzia um barulho exagerado para o horário no pátio, perto da entrada do salão central da academia, de onde elas ainda teriam que correr mais alguns minutos até às salas de aula e depois atravessá-las para chegar ao campo.
- Espera. - Nïra diminuiu o passo fazendo Hyvett parar, também. Franziu as sobrancelhas, tentando enxergar direito sob o sol da manhã. - Aquele ali não é o Ruenn?
Comandando o grupo, os cabelos ainda brancos do garoto chamavam a atenção. Ele gritava com alguém caído no meio da roda formada pelos seus amigos e parecia ter saído de uma briga acirrada.
- Mais um motivo para nós irmos direto para o campo e ignorar esses orangotangos selvagens - reclamou a aia, caminhando até a princesa com os ombros jogados para a frente e os pés se arrastando no chão. Hyvett era a pessoa mais doce que Nïra conhecia e o desgosto que sentia por Ruenn não combinava com ela.
- Para com isso. Ele é nosso amigo.
- Seu amigo. O garoto só fala comigo porque eu estou sempre com você e você é meio surda, às vezes.
- Ei! - Nïra se virou para a amiga que deu de ombros, sustentando o que tinha acabado de dizer. Não era nada além da verdade, afinal de contas.
Ignorou o que teria sido desacato à coroa se as duas não fossem amigas há anos e saiu em direção ao grupo, deixando uma Hyvett indignada para trás.
- Ruenn - chamou, abrindo espaço entre os outros meninos. Era um grupo variado, com estudantes de diversos anos e níveis. - O que está acontecendo aqui? Me deixem passar.
Ruenn sacudiu as mãos e um corredor até ele se formou para Maenïra passar, mas quanto mais se aproximava, mais incrédula a princesa ficava com o estado do amigo, sempre bem asseado. As roupas estavam amassadas e fora do lugar, o cabelo bagunçado e a respiração ofegante. Só não estava pior que o garoto jogado no chão, cheio de manchas arroxeadas pelos braços e sabe-se lá por onde mais. Ele não usava o uniforme da academia e a cabeleira escura indicava o motivo.
- Você devia entrar no castelo, princesa, a segurança desse lugar não é das melhores. Qualquer vagabundo consegue passar pelos guardas, hoje em dia - Ruenn resmungou e empurrou o garoto com o pé. Nïra sentiu o estômago se revirar.
Gemendo de dor, o navin se encolheu e a princesa percebeu que não passava de uma criança. O menino abraçava uma sacola de tecido rasgada e tentava manter o semblante forte, mas o movimento dos ombros denunciava o choro. Espalhados pelo chão em volta dele estavam vários pedaços dos pães e bolos que eram servidos no grande salão da academia.
- Oi - cumprimentou, sorrindo, abaixada ao lado do pequeno ladrão. - Eu sou a Nïra. Quem é você?
O garoto se remexeu ao ouvir o nome, mas continuou calado.
A princesa levantou a cabeça buscando por Hyvett e desistiu quando não encontrou os cabelos esverdeados da aia em lugar algum. Ruenn a encarava confuso e seus seguidores cochichavam entre si, trocando olhares que ela não sabia interpretar. Nïra precisou respirar fundo e se lembrar de todas as lições de diplomacia que a senhorita Anaerim já tinha ensinado para não começar a gritar com, nas palavras bem colocadas de Hyvett, os orangotangos selvagens. Esticou a mão para tocar o ombro do navin, mas recolheu-a rapidamente quando o menino se esquivou, assustado.
- Você está com fome? É por isso que estava pegando comida da academia? - Ele acenou com a cabeça e ela sorriu. - Eu posso te levar para comer se você quiser. Tudo o que quiser, você pode pegar. O que acha?
O par de olhos escuros encontraram os lilases da princesa esperançosos. Com um pouquinho de atenção, ela poderia ouvir o estômago do menino se agitando com a ideia.
- Você está louca, Nïra? - Ruenn se intrometeu, a voz elevada fazendo o garoto se encolher de novo. - Um navin rouba nossa escola e você quer dar um prêmio a ele? É sério?
- Ruenn, é só uma criança. Ele está com fome e machucado. É meu dever como princesa de Tergos cuidar dele.
- Você é boa, Nïra, talvez boa demais para entender esses vermes - continuou o rapaz, andando em direção à princesa com passos e voz firmes. Era difícil sustentar o peso de seu olhar e Nïra não se envergonhava em fracassar na tarefa. - Seu dever é cuidar do reino, nos proteger de gente como ele. As terras abandonadas não são problema nosso.
- É, Nïra. É assim que eles começam. - Spinar, um aluno troncudo e bruto do último ano reforçou, dando apoio a Ruenn. - Hoje ele rouba pão e bolo, amanhã as joias das ferrarias e depois a laia toda começa a se espalhar como ratos pelo reino. Eles merecem uma lição.
A princesa ficou em silêncio. O medo que o povo hada tinha de uma nova rebelião das terras altas era fundamentado e pensar que haviam usado uma criança esfomeada para se infiltrar na academia quando todos no reino e fora dele sabiam que a princesa tinha um bom coração a enchia de raiva, mas ela não seria tapeada por um navin mais uma vez.
Virou-se para o ladrãozinho abrindo o sorriso duro que fora ensaiado desde a época das suas mais antigas lembranças. Esqueceu-se de piscar por alguns instantes, concentrada em decidir as palavras certas para dizer e não estragar aquele momento tão delicado. O menino podia, de fato, ser apenas um pobre coitado buscando comida, mas se tinha uma coisa de que Nïra se orgulhava era de seu vasto conhecimento das histórias e lendas de seu povo. Ela sabia muito bem o que aconteceria com sua família se não impedisse o passado de acontecer de novo.
- Qual seu nome, criança? Como você chegou até aqui?
- E-eu n...
O garoto tremia tanto quanto a princesa, embora ela fizesse um trabalho melhor em esconder. Maenïra respirou fundo e abriu mais o sorriso.
- Vamos, qual seu nome? Diga, você pode confiar em mim.
- F... - o garoto engasgou. - Fr...
- Freno!
Outra voz forte chamou de fora do pequeno círculo formado pelos amigos de Ruenn. Como num bando de suricatos curiosos, todas as cabeças se viraram na mesma direção, mas só a de Nïra entendeu o que estava acontecendo.
- Gris, o que você está fazendo aqui?
Passando direto pela princesa, o rapaz correu até o garoto e o colocou nas costas. O menino gemeu de dor e o rosto de Gris se endureceu.
- Eu te disse para não entrar aqui. O que eu vou dizer para a mãe, agora?
- Que merda é essa? Quem deixou esses animais entrarem? - Ruenn esbravejava procurando os guardas que deviam estar ocupando o pátio nesse momento. - Quem você acha que é para entrar aqui?
Gris sentiu o impacto das mãos do hada nas costas de Freno e tropeçou nos pés para manter o equilíbrio. O pátio espaçoso revestido de pedras brancas pareceu ficar menor e mais escuro conforme o rapaz engolia o próprio orgulho e se mantinha quieto. Não estava nem aí para si e para a sua segurança, mas Freno era outra história. Com um tranco, ajeitou o menino nas costas e seguiu de volta por onde veio, tentando sair dali antes que algum soldado realmente decidisse aparecer.
- Gris, espera. O que está acontecendo? - Nïra correu até o amigo, ofegante e desajeitada. Esperou que ele esclarecesse a situação, mas o rapaz continuou em silêncio. Algo nos olhos castanhos parecia denso, diferente de todas as vezes que ela se perdeu neles sem perceber. - Eu não gosto disso. Por que você não está falando comigo?
- Eu já falei várias vezes, princesa, mas você nunca escuta. - Nïra nunca tinha ouvido aquele tom antes e esperou nunca mais ouvir. A voz saiu baixa, áspera e capaz de fazê-la se sentir pequena como um camundongo. Estava fraca e exposta com o coração apertado pela amizade que se quebrava. - Nós não pertencemos ao mesmo lugar.
Deixando a princesa e uma grande confusão para trás, os garotos desapareceram pelos corredores da academia. A essa altura, Nïra já estava acostumada a ver Gris partir.


Vinte e seis.

-Pelotão quatro, ala oeste. Pelotão cinco e arqueiros, ala norte.
Os soldados se moviam em passos espelhados pelo centro do reino, escoltando a população para os abrigos subterrâneos dos palácios. Rachaduras e infiltrações eram problemas com os quais eles não tinham tempo de se preocupar, e a reza dos que não podiam lutar mantinha as estruturas intactas sobre as cabeças de fios coloridos.
Tergos estava irreconhecível. As ruas alegres e movimentadas agora estavam escuras, cheias de hada uniformizados e prontos para o combate. A academia de Taemora havia se transformado num quartel improvisado e a ala esquerda do palácio real foi preparada para receber os feridos que chegariam em breve.
Maenïra observava o jardim pela última vez, agarrada à lança que tinha aprendido a manejar nas aulas de luta corporal do Mestre Priscco, sem saber quando poderia apreciar aquela paisagem novamente. Se fechasse os olhos, conseguiria ouvir as hordas navin se acumulando do outro lado do muro que estava prestes a ceder. Era questão de horas para que tudo que ela conhecia ruísse aos seus pés.
- Nïra, você está pronta? - Hyvett entrou no quarto procurando a princesa e líder do seu esquadrão. Vestia o uniforme verde dos médicos e mesmo numa situação como aquelas, tinha os cabelos presos com delicadeza e requinte no topo da cabeça. Em outro momento, Nïra teria feito algum comentário sarcástico sobre a amiga não precisar de nem um décimo do esforço que a princesa fazia para estar linda o tempo todo.
- Acho que não estaria mesmo que tivesse me preparado para isso desde que eu nasci - lamentou a princesa.
- Você vai se sair bem, eu prometo. - A aia sorriu apertando de leve os ombros da amiga. Esse era o grande poder de Hyvett: era impossível não se sentir bem perto dela.
Nïra suspirou, ainda sem crer totalmente nas palavras da dama de companhia.
- Eu só queria que Ruenn estivesse aqui.
Hyvett revirou os olhos fazendo pouco esforço para disfarçar, mas Nïra ignorou. Ruenn estava desaparecido havia seis anos, mais ou menos quando os rumores de um levante dos navin começaram a surgir. Ele era o capitão ideal, a escolha perfeita para liderar o esquadrão de alta classe numa batalha, mas não estava lá para guiá-los. Nïra tinha altas expectativas a cumprir assumindo o posto do rapaz.

- Spinar, como está a situação? - questionou a princesa assim que ela e a aia chegaram ao acampamento nos portões da estrada principal do reino.
- O muro não vai aguentar muito tempo, general, e nós já montamos as barricadas. - Spinar olhou em volta, diminuiu a voz e deixou o rosto se contorcer por um segundo. - Eles são muitos, Nïra. Nossos exércitos são bons, mas não vai ser uma luta fácil.
- Posicione os pelotões, então, capitão. Se nós pudermos ganhar tempo para Tergos, nossa missão aqui estará cumprida.
Com um aceno, Spinar se retirou e começou a gritar ordens para os soldados. Logo o som dos gritos foi substituído pelo das armaduras em movimento e então pelo ruído da chuva fraca batendo no metal. No quase silêncio que dominava a estrada, o estrondo do primeiro impacto do aríete navin nos portões foi alto e claro.
A princesa girou a lança entre os dedos e esperou que algum deus se apiedasse dela e enviasse ajuda. Quando o grande arco-íris esculpido acima do portão estalou e ganhou uma rachadura nas bases, ela perdeu o resto de esperança que tinha. Estavam por conta própria, sozinhos para lidar com as consequências de uma situação criada no início dos tempos.
Mais um estrondo, e os pregos começaram a se soltar da madeira.
Mais um estrondo, e as pedras do muro se descolaram umas das outras.
Mais um estrondo, e o portão foi ao chão.
Navin de todas as idades e regiões das terras altas se amontoavam na estrada empunhando ferramentas, pedaços de madeira, tochas e o que mais pudessem usar como armas. O contraste do poderio militar dos dois lados do muro era patético, mas algo em cada par de olhos castanhos amedrontava os soldados hada, uma firmeza que gritava tão alto quanto os trovões que surgiam no céu.
O medo dos hada se espalhava pelo ar como uma doença, ganhando força e volume nas ameaças provocativas, quase animalescas, dos navin. Eram um só, um grande mar revolto de ressentimento e dor acumulados ao longo dos séculos, pronto para quebrar em cima do reino. Tergos sabia que esse dia chegaria e nada fez para impedir.
- Esquadrões vermelho e violeta, em posição - gritou o capitão. Soldados de cabelos, olhos e uniformes vermelhos se deslocaram, formando uma barreira sólida entre os invasores e os tergorianos enquanto os feiticeiros violeta se posicionavam à distância. A movimentação incitou os guerreiros do outro lado do muro e as armas foram levantadas pelos dois exércitos. - Verdes, para as tendas e se preparem. Todos vocês, aguardem meu comando!
Nïra era a única violeta no front. Mesmo responsável por comandar sua divisão, era a general e precisava estar onde seus soldados precisassem mais. Naquele momento, vendo os navin começando a se aproximar, ouvindo o tempo correr mais devagar do que o normal nos últimos instantes antes do caos absoluto, era ali onde ela devia estar, de frente para o inimigo.
Os guerreiros das terras altas estavam mais próximos e com mais sede de confronto a cada segundo. A general fechou os olhos e esperou o choque, mas foi surpreendida com um grito vindo de trás do exército navin.
- Parem! Não foi para isso que nós viemos aqui.
Resignação e frustração estampavam as faces invasoras, mas nenhum deles se atreveu a desobedecer. Os guerreiros se afastaram e a princesa sentiu um arrepio descer pela espinha ao imaginar o que estaria vindo em direção ao seu povo.
Spinar foi o primeiro a quebrar todas as regras táticas conhecidas quando correu à frente dos batalhões tentando conseguir mais um vislumbre do comandante inimigo. Sua maça despencou das mãos e mesmo a chuva não era suficiente para forçar as pálpebras do capitão a se fecharem. Pequenas nuvens de vapor saíam da boca entreaberta conforme o peito subia e descia com velocidade e se Nïra estivesse alguns passos mais longe do amigo, não teria conseguido escutá-lo sussurrar.
- Ruenn...
O comandante finalmente alcançou as linhas de frente. Vestia uma armadura intrincada de mítrio e diamantes e empunhava uma longa espada perolada, furta-cor à luz do sol como os olhos do homem. Os fios imaculadamente brancos caíam sobre seu rosto, mas Nïra reconheceria aqueles traços mesmo cega na escuridão.
- Não, Spinar - sussurrou de volta, sua expressão espelhando a do capitão. - Não é o Ruenn.
Com um sorriso quase imperceptível, o comandante fez uma profunda reverência e encarou a princesa.
- Oi, vossa alteza.



Fim



Nota da autora: Espero que você tenha gostado :) Essa fic seguiu rumos MUITO diferentes do que eu imaginava pra ela quando escolhi a música, mas acho que tomou o caminho certo! Me conta o que você achou e as suas teorias sobre o que vai rolar com a Nïra e o Gris daqui pra frente ;)




Caixinha de comentários: Oi! O Disqus está um pouco instável ultimamente e, às vezes, a caixinha de comentários pode não aparecer. Então, caso você queira deixar a autora feliz com um comentário, é só clicar AQUI



comments powered by Disqus