Finalizada em: 03/04/2021

Capítulo único

— Hoje eu estou RICA, América!
Uma família com ares de conservadora encarou as mulheres com olhares desaprovadores. ria do grito da amiga, que balançava os braços no ar.
— Fica quieta, Val! Quem está rica, aqui, sou eu.
— Ah, sim, perdão. — Valerie se recompôs e fez uma reverência à amiga — Quem está rica é a senhora, CEO da porra toda. Minha sugar mommy.
— Valerie, cala a boca! Tem gente olhando. — tentava fazer a amiga ficar quieta, mas ela própria não conseguia conter o riso.
— Que olhem — Val jogou os cabelos para trás dos ombros, fazendo pose —, você está me bancando, mesmo.
— Pelo amor de Deus, Valerie, eu paguei seu ingresso de cinco dólares num festival de quatro de julho.
— E nós só estamos aqui para comemorar que você é a dona e proprietária de absolutamente tudo!
— Eu desisto de você!
Aproveitando o bom humor, as amigas pararam numa barraquinha de doces. Com uma maçã do amor para cada, voltaram a caminhar pelo parque de diversões itinerante montado exclusivamente para a celebração da independência dos Estados Unidos. Comemoravam, também, um contrato importante que havia assinado naquele dia para desenhar em colaboração com outros estilistas para um projeto da designer Stella McCartney.
A noite daquele feriado era quente e estaria estrelada, não fossem as luzes coloridas do parque. Na área de alimentação, próxima ao lago, famílias, grupos de amigos e casais apaixonados se reuniam, sorridentes, e compartilhavam comida e carinho. Algumas crianças tentavam dar pedaços de pão aos gansos adormecidos, sem muito sucesso, e eram consoladas pelos pais quando os animais acordavam grasnando alto. Todo o clima leve e alegre que preenchia o lugar podia ser inspirador para a maioria das pessoas, mas para , era só frustrante.
— Me explica direito — Val parou a colher de sorvete a caminho da boca, sentada na cadeira de metal na mesinha em frente à sorveteria. A comemoração favorita das amigas envolvia comida, muita comida — por que diabos você está com essa cara em um dia como hoje, garota?
soltou o ar todo de uma vez, grunhindo e largando o peso do corpo no encosto da cadeira.
— Olha em volta, Val. — A estilista olhou para os lados, com um olhar tristonho que Valeria sabia conter uma dose extra de drama. — Agora me diz: quantos aos eu tenho?
— Está doida, garota?
— Responde logo.
Valerie revirou os olhos e suspirou.
— Você nasceu há vinte e nove anos, sua pirada.
— Trinta, Valerie, trinta! E desses trinta, vinte e cinco deles eu passei como? Sozinha, Valerie.
Val encarava com uma das sobrancelhas arqueada, os lábios levemente franzidos e piscando. Piscando muito. A estilista, por outro lado, tinha os olhos estalados e respirava rapidamente.
— Você sabe que tem que tirar uns quinze anos dessa conta, porque você era criança, não sabe?
— Tudo bem, mas os outros dez foram uma farofa só!
, eu não acredito que você está preocupada com isso logo hoje.
se encolheu, envergonhada. Sabia que estava falando um bando de asneiras, mas o que podia fazer? A cada ano que se passava, a sensação de que ficaria sozinha para o resto da vida ficava mais forte.
— Eu sei, está bem? Eu sei. Mas olha isso... — Mais uma vez, observou os casais alegres passeando de mãos dadas. — Eu amo o conceito da mulher forte, independente e suficiente, e eu sou essa mulher. Caramba, eu vou desenhar para a Stella McCartney! Mas é errado querer alguém para caminhar lado a lado comigo?
Valerie colocou a colher de volta no pote de sorvete e pegou as mãos da amiga. Conhecia há tempo suficiente para saber que ela estava realmente chateada com a solteirice e os relacionamentos parcos e desastrosos que havia tido no passado. Desde que sua irmã descobriu que estava grávida mais uma vez, soltava comentários em tom de brincadeira sobre ficar, literalmente, “para titia”, e parecia que agora a designer chegara ao seu limite. Procurando as palavras certas para animar , Valerie notou uma barraquinha que podia, ao menos, render boas risadas.
— Sabe o que eu acho que você devia fazer? — Perguntou, empolgada, e recebeu um “hm?” abafado em resposta. — Você devia olhar o seu futuro!
— O que?
— Vem!

chegou à tenda roxa arrastada por Valerie. O lugar era decorado com objetos dourados e esotéricos, repleto de toda a sorte de amuletos e ferramentas para revelar o oculto e iluminado apenas por pequenas velas e luzes escondidas em algum lugar para dar a sensação de misticismo. Uma fumaça fina forrava o chão e o perfume dos incensos era até agradável.
Venham até aqui. — Uma voz chamou, por trás das cortinas que guardavam a segunda sala da instalação.
Acanhadas, mas envolvidas pela curiosidade e magia, entraram no coração da tenda da vidente.
— Não tenham medo, Madame Yekaterina não morde, a menos que peçam. Vocês podem me chamar de Madame Katya. — A mulher de sotaque sorte sorriu, convidando a dupla a se sentar nas almofadas fofas. A grande bola de crista iluminada ocupava a maior parte do espaço da mesa que separava as consulentes da consultora, com uma fumaça azulada dançando dentro da esfera. — Vamos ver o que o oráculo nos diz.
— Nós não devíamos fazer uma pergunta, primeiro?
— Shhhh! — A vidente ralhou, fazendo as amigas se calarem. — O oráculo sabe de tudo. Sabe até de coisas que vocês não sabem.
Acho que é esse o propósito de consultar uma vidente, não é? — Valerie sussurrou para , que tentou segurar a risada antes de receber mais uma bronca da russa.
— Oh, minha querida — Madame Katya exclamou depois de analisar a bola de cristal por alguns segundos —, eu sinto muito. Não parece que você vai conseguir aquela promoção no trabalho tão cedo, mas eu tenho uma simpatia que pode resolver isso rapidinho, por apenas vinte pratas.
Com uma expressão condescendente, observou Valerie como quem lamentava uma nota ruim na escola.
— Olha, , ela é boa. Sendo professora particular, eu realmente devo estar bem longe de conseguir uma promoção na empresa.
Madame Katya tentou manter a pose, mas estava claramente irritada por ter sido desmascarada. Inspirou profundamente e virou-se para , abrindo um sorriso convincente.
— Então você queria fazer perguntas ao plano místico? Conte-me, menina, para qual questão seu coração deseja uma resposta?
abriu a boca algumas vezes, tentando formular uma pergunta que não soasse clichê como “quando vou encontrar minha alma gêmea?”. Também não queria parecer uma menininha apaixonada por filmes de princesa procurando o príncipe encantado montado num cavalo branco ( morria de medo de cavalos), ou, pior ainda, parecer uma solteirona desesperada (solteirona, ok; desesperada, não!). Para sua desesperança, era exatamente nessa última categoria que ela acreditava se encaixar.
— Ela queria saber sobre a situação da vida amorosa dela, que está meio capenga ultimamente, entende? — Valerie respondeu, ganhando um olhar duro de e um sorriso de compreensão da vidente.
— Ah, o amor. Espere um minuto, eu tenho algo melhor que a bola para aquietar sua alma a respeito desse assunto.
Madame Katya sumiu por trás das cortinas, balançando o volumoso vestido vermelho e roxo adornado com bordados, correntes e moedas douradas. A dupla se entreolhou, tentando entender o que diabo estava acontecendo.
— Já que ela volta com uma poção do amor para você, por uma pequena bagatela de cento e cinqu—
— Aqui está, meninas. — A vidente reapareceu, segurando uma pequena caixinha entre as mãos. Sentou-se à mesa e, com delicadeza, revelou as setenta e duas cartas pintadas à mão.
— Ih, ela é cartomante, também.
— Val, se acontecer alguma coisa, saiba que é culpa sua.

— Acalmem-se, meninas, o tarot é só um espelho. Tudo o que ele faz é mostrar o que já está gravado na sua linha energética. Agora venha cá e tire três cartas. — Acenou com a mão, pedindo para se aproximar da mesa. — A primeira dirá sobre o seu passado. A segunda, sobre o presente, e a terceira revelará seu futuro.
Uma a uma, a estilista escolheu entre o belo baralho. A primeira carta mostrava uma mulher sábia, em vestes religiosas, sentada em um trono entre dois pilares e segurando um livro sobre o colo.
— A Sacerdotisa. Você já teve a oportunidade de viver esse grande amor, não é, minha querida?
sentiu todo o sangue fugir de seu rosto. Que irônico relembrar aquela história no dia em que celebrava sua maior conquista profissional.
— Eu... Eu terminei um relacionamento para aceitar um estágio em Milão, no dia em que ele me pediu em noivado.
— Uma grande oportunidade! É uma decisão complicada de se tomar. A segunda carta vai revelar se você fez a escolha certa. — A cartomante desvirou a carta do meio, ilustrada com uma única taça de ouro no centro. Madame Katya sorriu e percebeu que apertava a mão de Valerie, nervosa. — Parece que sim.
Valerie suspirou aliviada quando afrouxou os dedos em torno dos seus. A estilista encarou Katya, ávida pelo restante da interpretação.
— Ás de Copas é a sua carta do presente. É uma carta que representa importante ligação afetiva. Você teve ou terá alguma experiência profissional com forte envolvimento emocional, e conhecerá alguém, em breve.
Virando a terceira carta, viram quatro caibros de madeira formando um pergolado coberto por flores. Ao fundo, um belo castelo e embaixo do pergolado, uma ciranda animada. Era possível ver até um gatinho presente na cena.
— O Quatro de Paus. — Madame Katya juntou as mãos, batendo palmas audivelmente. Tinha um sorriso ainda mais largo nos lábios. — Preste atenção os sinais, menina, e aquiete seu coração. Aquele noivado não era para acontecer, e seu futuro mostra que você tomou as decisões certas no passado. Continue tomando-as no presente.
— Ceeeerto... Bom, acho que temos a sua resposta, não é? Muito obrigada, Madame. Vem, .
Valerie puxou para fora da tenda, vendo que a cartomante já alcançava um frasquinho em formato de coração com uma etiqueta de preço presa a ele. A vidente riu, sozinha, colocando o frasco de volta e embaralhando as cartas antes de guardá-las novamente na caixinha de madeira entalhada. Pegou a bola de cristal e recolocou-a sobre a mesa, passando as mãos na esfera iluminada.
— Fique atenta, menina. Você conseguirá o que quer mais cedo do que imagina.

— Meu Deus, não acredito que a gente perdeu tempo com isso. — Val riu debochada, totalmente descrente das previsões da vidente.
— Sei não, Val. As cartas pareciam saber da minha vida.
— Você está impressionada, . É o trabalho dela. Provavelmente pegou alguma dica nas nossas conversas e falou umas coisas bonitas para te convencer. — Valerie virou-se para a amiga, enquanto passavam pela última parede de cortinas da tenda. Andando de costas, esbarrou num rapaz que entrava na tenda.
— Me desculpe! — O rapaz pediu, encabulado.
— Tudo bem, não foi nada. Aproveite a consulta, viu? A Madame Yekaterina é excelente. Tenho certeza de que ela vai dizer que muito em breve você vai recuperar as cordas vocais.
— Mas, as minhas cordas vocais estão perfeitamente normais. — Refutou, confuso.
— Exatamente! — Val exclamou, divertida, e lançou um “joia” para o rapaz com uma das mãos. Sem entender nada, ele entrou na tenda, deixando as amigas para trás.
— Val, isso foi cruel!
— Fala sério, . Se fosse, você não estaria rindo.
Mordendo os cantos dos lábios, tentando manter-se séria, encarou a amiga nos olhos, mas não aguentou.
— Ridícula! — Gargalhou, voltando a andar a esmo pelo parque. — Sendo verdade ou não, me deixou com vontade de ir na roda gigante.
Valerie colocou as duas mãos na cintura e encarou a amiga, com uma expressão confusa.
— O que uma coisa tem a ver com a outra, ?
— Ah, sei lá. Acho que o clima de romance. — deu de ombros. — De qualquer jeito, já são quase 23h, e eu quero ver a queima dos fogos lá de cima.
— Tudo bem, mas a gente vai comer alguma coisa antes.
— A gente não tomou sorvete, tipo, quinze minutos atrás?
— Justamente. Já tem tanto tempo que parece que eu estou em jejum intermitente. Olha ali, tem uma banquinha de cachorro-quente.
desistiu de argumentar e seguiu a amiga. Não recusaria um pedacinho de comida, também.

Lá estavam as duas, mais uma vez sentadas à mesa de um trailer de comida. O trailer em questão era alaranjado, tinha um toldo vermelho e branco e toda a parte da frente do carro fora pintada para parecer um daschund. Os atendentes usavam bonés com orelhas caídas e o cardápio tinha desenhos de ossinhos para sinalizar os sabores de lanches disponíveis ali. e Valerie tomavam goles do refrigerante enquanto esperavam seus pedidos ficarem prontos.
— E aí? Já viu o amor da sua vida em algum lugar? — Val brincou, arrancando uma risada e um dedo do meio da parte de . — Ué? Não entendi o motivo da agressividade. Eu até estava pensando em me dar uma promoção, sabe?
— Larga de ser besta, Valerie! Menos sobre a promoção, acho que você merece. Ganhou o prêmio de funcionária do mês quantas vezes, já?
— Todas! — Respondeu orgulhosa. — A parede da minha sala parece a do Siri Cascudo, forrada de fotos do Bob Esponja.
— Claramente, o melhor exemplo que uma mulher adulta, madura e séria, com suas três décadas de vida, poderia dar.
— Admite logo que é o seu desenho favorito, também, vai.
— Nunca neguei. — respondeu, séria. Aquele era um assunto de suma importância, afinal.
Um garçom se aproximou com os pedidos e as mulheres agradeceram. Valerie observou o garoto por alguns instantes, enquanto enchia o lanche de condimentos e tentava dar a primeira mordida sem derrubar todo o recheio para fora do pão. Acabou pegando um guardanapo e rezando pelo melhor — o cachorro-quente era bem maior que a sua boca.
— Falando sério agora, — Val retomou o assunto —, tem vários caras interessantes aqui. — A estilista olhou para a amiga, inquisidora. Val deu de ombros. — O garçom, por exemplo. Novinho, bonitinho, no ponto exato para aprender algumas coisas sobre a vida com uma mulher experiente.
— Valerie!
— Mas é verdade. — Levantou as mãos, se defendendo. — Bom, se ele for maior de idade, né? De toda forma, tem outros homens por aqui. O tal que estava entrando na tenda da cartomante era bem gato.
desviou o olhar e voltou a analisar o cachorro-quente, buscando o melhor ângulo para a próxima mordida.
— É? Nem reparei.
Valerie gargalhou. A estilista era péssima mentindo.
— Reparou, sim, e reparou muito bem! , o cara estava de smoking num festival de quatro de julho, não tinha como não reparar. Ele obviamente não bate bem, mas era gato, e estava olhando para você.
revirou os olhos, jogando o guardanapo amassado na amiga.
— Você é doida, e eu estou a um passo de te botar numa camisa de força. Agora termina logo de comer que eu quero ir para a fila da roda gigante a tempo de assistir os fogos.
— Não adianta tentar fugir da conversa, não, senhorita . — Val respondeu, dando uma mordida no lanche. — Vofê tamém assou e-e bonhito.
fechou os olhos com força, franzindo o nariz, com nojo, mas achando graça.
— Ah, Valerie, come direito.

A roda gigante ficava na entrada do parque. As luzes coloridas que enfeitavam os carrinhos refletiam no lago, criando uma paisagem bonita de observar. Os gansos finalmente dormiam em paz, assim como as crianças que, antes, tentavam alimentá-los, e os pais aproveitavam o sossego para colocar os assuntos em dia. A lua brilhava sorridente no céu, iluminando parcialmente o parque itinerante, especialmente a cobertura metálica do carrinho de pipoca perto do grande portão onde se lia numa faixa “Sejam bem-vindos à Independência”.
A fila para a atração estava curta o suficiente para que a dupla pudesse embarcar no próximo turno, e logo se animou. Era tradição da sua família assistir os fogos de quatro de julho do lugar mais alto que eles pudessem encontrar: o alto de um morro na fazenda dos avós do interior, a cobertura do prédio da biblioteca municipal quando o padrinho de era o prefeito (as vantagens de se morar em uma cidade não muito grande e nem muito pequena), o telhado da casa antes da casa na árvore ser construída, e até mesmo a torre do farol na praia. não estava com a família nessa noite, mas cumpriria a tradição com a irmã que a vida lhe deu, no topo dos 30 metros de altura da roda gigante.
— Apesar daquele surto esotérico, até que foi um passeio bastante agradável. Obrigada por vir comigo, Val. — A estilista agradeceu, sincera. Valerie, por outro lado, parecia interessadíssima no que estava acontecendo atrás da amiga, e fosse o que fosse, tinha a ver com o que ela estava vendo no celular. — Val? Valerie?
— Oi! — Val levantou os olhos de súbito, como se só agora tivesse ouvido a amiga chamar. — , acho que você vai ter que ir sozinha na roda gigante. Ben acabou de me mandar uma mensagem dizendo que está no estacionamento, mas não consegue entrar e me pediu para encontrar ele lá. Acho que ele está sem dinheiro trocado para o ingresso, eu não entendi bem.
— Ah, Ben está aqui? Ele não tinha ido para uma viagem da empresa, ou algo assim?
— Tinha, sim, mas voltou mais cedo. Parece que passar a Independência preso numa viagem de trabalho é antipatriótico ou coisa assim. — Val continuava olhando para o celular, inquieta, e observando de relance por cima dos ombros de . — Ah, olha ele ali no portão. Boa sorte, amiga, saiba que eu te amo, viu? Não esquece da vidente. Beijo, tchau.
— Espera, o... que?
Valerie saiu apressada da fila, e gastou alguns segundos procurando o noivo da amiga perto da entrada. Sem encontrá-lo, procurou Val de novo, e encontrou a amiga estendendo as mãos num pedido fajuto de desculpas, sorrindo malandra. Antes que a designer pudesse gritar por Valerie, um rapaz de smoking preto entrou na fila logo atrás dela.
Droga, Valerie.
Discretamente — ou, pelo menos, ela esperava que fosse discretamente —, tentou observar o rapaz com um pouco mais de atenção. Ele usava os cabelos castanhos presos no topo da cabeça, e a pele cor de cobre fazia brilhar os olhos dourados. Talvez estivesse mesmo impressionada com a leitura da cartomante, mas, somados os ombros largos e as costas fortes, o rapaz parecia um verdadeiro deus antigo (ela usaria um amuleto com a imagem dele estampada, sem problema nenhum). A única coisa que não encaixava bem na cena era a camiseta babylook, certamente menor do que deveria, estampada com ursinhos e a frase “Vem brincar comigo?” por baixo do smoking.
tentou se conter, mas o impulso de fazer um comentário foi mais forte do que ela.
— Gostei do modelito. — A mulher brincou, e o rapaz riu, mostrando a camisa branca que carregava nas mãos.
— Não foi a minha primeira escolha para hoje, mas era a única que a barraca da pescaria tinha. A minha sobrinha provavelmente vestiria melhor, admito.
— Ah, não é como se alguma coisa pudesse ficar ruim em voc— percebeu o que estava dizendo quando já era tarde demais. Piscou os olhos com força, querendo enfiar uma sacola na cabeça e tentando fingir que simplesmente não estava mais ali.
— Você também se veste muito bem. — O rapaz devolveu, curvando suavemente o canto esquerdo dos lábios para cima.
— Ossos do ofício, eu acho. — Rapidamente, a moça se animou de novo. Era assim que sabia que estava na profissão certa: falar sobre moda tornava qualquer situação agradável. — Eu sou estilista.
— Sério?! Caramba, que legal. Meu irmão é modelo, será que vocês já trabalharam juntos?
— Acho que eu me lembraria de um rosto assim. — E lá estava hipnotizada pelos olhos do rapaz outra vez. — Digo, do nome dele. Eu me lembraria do nome dele. Qual é o nome dele?
— Dan. Dan . — O deus encarnado respondeu, lisonjeado e achando graça do jeito da mulher. Estendeu a mão para ela, se apresentando: — E eu sou .
. , mas pode me chamar de . Posso perguntar por que você está de smoking num festival de quatro de julho?
— Ah. — coçou a nuca, rindo meio desajeitado. — Eu acabei de ser padrinho de casamento de um amigo da faculdade, o último amigo solteiro. Eu não sabia se ficava feliz ou deprimido, aí vim para cá.
A estilista levantou as sobrancelhas, se divertindo com a conversa, apesar de tudo.
— Como alguém fica deprimido com um casamento? Casamentos são pura celebração e alegria, e... — arregalou os olhos, atingida por uma realização súbita. — Ah, meu Deus, você era apaixonado pelo seu amigo?! Eu sinto muitíssi–
, levemente exasperado pela confusão legítima da mulher, começou a chacoalhar as mãos, em negação, tentando explicar o que queria dizer.
— Não, não. Não é isso. Bom, poderia ser, é claro. O Elijah é um cara legal, bonitão, mas eu estou feliz por ele ter se casado.
— Ah, certo... — não sabia bem como conduzir a conversa. Seria muita intromissão perguntar a um estranho se ele estava, afinal, feliz ou deprimido com o casamento do amigo? Ela estava curiosíssima, não podia negar, mas aquele, definitivamente, não era assunto dela. — E por que você estaria deprimido, então?
Droga, linguaruda!
levou as mãos à boca, constrangida, e arrancou uma risada do rapaz de cabelos presos.
— Tudo bem, pode perguntar. É um motivo bem bobo, para falar a verdade — desviou o olhar, mordiscando o lábio inferior —, mas acho que minha terapeuta ficaria feliz por eu estar falando a respeito disso com alguém que eu nunca vi na vida.
— Eu quase escolhi psicologia ao invés de moda, se te serve de consolo.
— Isso quer dizer que tudo que eu disser aqui fica protegido pela confidencialidade paciente x terapeuta?
— Então, como eu disse: eu quase escolhi.
gargalhou. O pouco tempo que passaram juntos já havia sido suficiente para mostrar que a mulher tinha uma certa dificuldade em manter a língua atrás dos dentes.
Sem perceber, já tinham avançado alguns metros na fila e estavam próximos da área de embarque. O funcionário do parque terminou de afivelar os cintos e trancar a porta de um carrinho e a roda girou mais um pouco, fazendo o último compartimento vazio estacionar na plataforma. O garoto de boné vermelho, branco e azul sinalizou que eles embarcassem, e assim que se certificou de que tudo estava no lugar, acionou um botão no painel de comando, a música recomeçou, e a roda voltou a girar. O relógio marcava 23h50.
— Não é nada sério, na verdade. — continuou, depois de algum tempo de silêncio. Estavam a 12 metros do chão. — É só que... Eu sou o último, agora, sabe? Meus irmãos e amigos todos estão casados ou prestes a se casar, alguns até têm filhos, já. Eu não me importava muito, antes, mas com 32 anos, acho que bateu uma certa solidão.
respirou fundo, adorando a ironia da coincidência.
— Acho que eu te entendo. Minha irmã está grávida pela segunda vez, e eu estou feliz por ela, mas também estou me sentindo meio atrasada. Estudei no exterior, estou cursando a segunda faculdade, moro sozinha há quase 8 anos e meu trabalho vai bem. E ainda assim, sempre tem esse buraquinho, um vazio no peito que parece que não some nunca.
— É exatamente como eu me sinto. — disse, meio soprado. — Eu sou o filho mais velho, e tem alguns anos que minha mãe me cobra os netos. Fiquei tão feliz quando meu irmão apareceu com a notícia de que seria pai... Tirou um peso dos meus ombros, mas alguma coisa fazia eu me sentir culpado. Fracassado, talvez.
olhou pela janela, observando o lago e os casais que andavam por ali nos pedalinhos em formato de cisnes. Estavam a 20 metros do chão e o relógio marcava 23h56
— Foi por isso que você consultou a Madame Katya?
pareceu confuso por um instante, mas riu ao entender de quem a moça estava falando.
— Pois é, foi. Realmente, a Madame Yekaterina era muito boa. — Explicou, balançando a cabeça para os lados. — Olhou na bola de cristal assim que eu entrei na tenda, e disse que o meu futuro era caótico. Logo em seguida, derrubou uma xícara de chá preto na minha camisa e, bom, você já viu o caos fashion que isso gerou.
gargalhou, e esticou a camisa amassada, mostrando a grande mancha no centro. 24 metros.
— Ela ofereceu ver sua sorte nas borras do chá, pelo menos?
— Que nada! Ela perguntou o que eu queria saber, e trouxe um baralho de tarot para responder, dizendo que ele ia revelar meu passado, presente e futuro.
A estilista engoliu em seco.
— Ah, é? E as cartas também mostraram que o seu futuro era caótico.
O rapaz negou com a cabeça mais uma vez.
— Por sorte, não. — olhou para a moça com calma. Agora, reparando bem, notou que os olhos dela eram escuros como olhos de boneca, grandes e arredondados como os de um cervo. Eram agradáveis de assistir, e transparentes como o cristal do oráculo da vidente. se sentia bem observando os olhos de , que, por sua vez, estava encantada com a luminosidade dos orbes de ouro do rapaz, dois citrinos esféricos engastados naquele rosto esculpido à mão. — Sabe, no fim das contas, acho que ela até pode ter acertado uma coisa ou outra.
A roda gigante parou de se mover, e o relógio no pulso da estilista apitou baixinho. Estavam a 30 metros do chão, e os fogos começavam a estourar numa chuva colorida que brilhava contra o preto azulado do céu da noite. diria a Valerie, anos mais tarde, que tinha uma resposta para a pergunta que a amiga fez mais cedo, naquela noite: conheceu o amor da sua vida no alto da roda gigante, à meia noite do dia cinco de julho.



Fim!



Nota da autora:Oiê.
Ufa, parecia que esse Ficstape não ia sair, mas saiu.
Queria fazer um agradecimento especial à Caleonis, que me ajudou com o plot, e à Lumiya e à Gabriella, pela leitura sensível e conselhos para a descrição física do personagem principal (que é lindíssimo, por sinal, gente. Já viram aquela foto da capa?). Vocês podem clicar nos nomes para encontrar as fanfics delas. Super recomendo!
A quem leu até aqui, meu muito obrigada. Espero que tenham gostado ♥
Vocês podem encontrar todas as minhas redes e página de autora, com link para outras fanfics minhas, logo aqui embaixo.



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