Prólogo
Em seus braços eu deveria passar a eternidade em aconchego, mas ao invés disso, eles viraram berço para a minha agonia.
Nós dois sabíamos do risco.
Nós dois sabíamos que eu deveria ter voltado há muito tempo.
Nós dois sabíamos que era por causa dele que eu fiquei.
A dor me cegava, mas eu conseguia sentir seu rosto próximo ao meu e enquanto eu urrava, ouvia ele chorar.
— Vai ficar tudo bem, vai ficar — ele segurou meu tronco junto ao dele e sussurrou em meu ouvido o quanto me amava — O que eu faço? Mãe, o que eu faço?
— Você sabe o que precisa fazer. Ela precisa voltar para casa.
Nós dois sabíamos do risco.
Nós dois sabíamos que eu deveria ter voltado há muito tempo.
Nós dois sabíamos que era por causa dele que eu fiquei.
A dor me cegava, mas eu conseguia sentir seu rosto próximo ao meu e enquanto eu urrava, ouvia ele chorar.
— Vai ficar tudo bem, vai ficar — ele segurou meu tronco junto ao dele e sussurrou em meu ouvido o quanto me amava — O que eu faço? Mãe, o que eu faço?
— Você sabe o que precisa fazer. Ela precisa voltar para casa.
Um: Travessia
São Paulo, 15 de novembro de 2012
O cheiro do meu aniversário já estava por toda parte. Era um cheiro engraçado porque mesmo sem morar no litoral eu sentia a maresia misturada ao cheiro de chuva em dia quente junto com a leveza do cheiro de jasmim na primavera. Por mais que eu compartilhasse essa sensação, as pessoas ao meu redor diziam que era coisa da minha cabeça, mas em todos os anos eu tinha a certeza de que quando outubro terminasse, eu sentiria o cheiro invadindo os cômodos aos poucos e a minha animação crescia na mesma medida.
Naquele feriadão meus pais fizeram o possível para que eu me divertisse mesmo que meus amigos estivessem viajando. Filha única, eles faziam o possível para me mimar durante o mês de novembro inteiro. Mesmo que o meu desejo de adolescente fosse passar um tempo sozinha com meus livros trancada dentro do quarto, eles organizaram uma maratona de filmes e séries que duraria o final de semana inteiro. Aproveitei a ida deles ao hipermercado para terminar a leitura de Harry Potter e o Cálice de Fogo, porque apesar de ser fã de carteirinha do universo mágico, eu havia começado os livros há pouco tempo.
“Conforme dissera Hagrid, o que tiver de ser, será... e ele teria que enfrentar o que fosse quando viesse”.
Enfim, acabou. Fechei o livro e encarei meu reflexo no espelho pensando o quanto a história havia amadurecido no quarto ano e o tanto que aquela primeira morte havia mexido comigo. A morte do Cedrico era definitivamente uma das coisas das quais o meu eu literário nunca conseguiria se recuperar.
Em pouco tempo meus pais voltariam com as compras de mercado, então levantei-me e decidi organizar a lista de filmes do primeiro dia do feriadão: A Ilha da Garganta Cortada, Piratas do Caribe e a Maldição do Pérola Negra, Stardust: O Mistério da Estrela e a Princesa Prometida.
Novembro é o meu mês e tudo o que eu faço durante esses trinta dias diz respeito a mim, sendo assim, as maratonas de Crepúsculo, Harry Potter e filmes de pirataria são obrigatórias durante esse período. Desta vez, a pirataria viria na frente. Desde que eu me conheço por gente eu acredito que fui uma pirata em outra vida e meus pais alimentaram essa crença durante anos fazendo com que eu tivesse uma infância repleta de imaginação, praia e muitas fantasias de pirata no dia das bruxas. Maratonar esses filmes era honrar o meu eu de seis anos que amava personificar a maior pirata de todos os tempos, Morgan Adams, interpretada pela Geena Davis em A Ilha da Garganta Cortada, também conhecido como meu filme favorito.
Assim que meus pais chegaram com as compras, fui ajudá-los e, enquanto arrumava espaço nos armários da cozinha, adiantei a lista dos filmes daquela quinta-feira chuvosa.
— Os mesmos filmes de pirata de sempre? Novidade! — minha mãe debocha risonha enquanto dobrava as sacolinhas de mercado — Achei que fossemos maratonar Harry Potter hoje.
— É que eu acabei de terminar o quarto livro, tô de ressaca.
— Filha, quanto aos filmes de hoje... olha só o que eu achei no mercado — meu pai disse finalmente colocando a última sacola de compras para dentro do apartamento e fechando a porta, ele vasculhou dentro da sacola plástica e retirou um DVD, daqueles de capinha bem fina, e me entregou — Esse filme é uma relíquia!
Pela qualidade da foto na capa eu já sabia que o filme era antigo. Na imagem, havia um casal sentado à beira mar em uma pedra; o homem usava roupas antigas, assim como a mulher ao seu lado. Os dois sorriam com os rostos em perfil, olhando para algo além do limite da capa. O céu azul claro ao fundo contribuía para uma bela composição de praia e sol, e em uma caligrafia do tipo cursiva, lia-se no topo: 'Em Algum Lugar do Passado', estrelado por Christopher Reeve e Jane Seymour.
— Ah, pai... Eu não gosto desses filmes antigos.
— Ah, dá uma chance — e nesse momento eu considerei assistir apenas para agradá-lo — É um romance, eu tenho certeza de que você vai gostar. A história é muito interessante.
— Eu amo esse filme — minha mãe disse preparando a panela para a pipoca — Você também não queria assistir “Labirinto”, lembra? No fim das contas, você amou o David Bowie — minha mãe mencionou e eu me dei por vencida.
— Tá bem, então a gente vai assistir esse, mas logo depois nós vamos entrar na onda da pirataria!
***
Uma hora e quarenta e três minutos depois eu chorava como uma condenada. Ainda que o final do filme sugira que o Richard tenha se reencontrado com a Elise em algum lugar post-mortem eu ainda sei que ele teve que viver o presente e o restante da sua vida sem ela e aquilo doía tanto, eu detestava filmes assim. Agora, os créditos subiam lentamente na tela e uma das músicas mais lindas que eu já ouvira na vida e que fez parte da trilha sonora do início ao fim começou a tocar, lágrimas ainda mais gordas despencaram dos meus olhos.
— Meu Deus, pai! Esse filme acabou comigo — falei chorosa enquanto eles riam — Essa com certeza será a música que vai tocar no meu casamento!
— Eu sabia que você ia gostar — meu pai se levantou para retirar o DVD e logo vi o menu de a Ilha da Garganta Cortada brilhar no televisor.
Agora assistíamos ao meu filme preferido, mas eu não conseguia prestar atenção. Não imaginei que Somewhere in Time (título original de Em Algum Lugar do Passado) mexeria tanto comigo e agora eu não conseguia pensar em outra coisa que não fosse sugestão e auto-hipnose. Antes mesmo de chegarmos à metade do filme, meus pais se renderam, cansados, e foram dormir. Agitada e com os pensamentos a milhão, busquei o notebook no quarto e comecei a pesquisar mais sobre a teoria de viagem no tempo por trás do filme. Descobri que a história tinha sido baseada no livro de mesmo título escrito por Richard Matheson e de cara achei estranho o protagonista ter o mesmo nome que o autor. Qual a chance desse cara ter viajado e se hospedado naquele hotel? Aposto que ele escreveu o livro para se livrar da ideia do amor platônico e impossível que ele teve por uma fotografia.
A Geena Davis chamou a minha atenção na televisão e não pude deixar de pensar o quão interessante seria poder me locomover no tempo, imaginei poder ver a pirataria acontecendo de verdade e em alguns minutos eu já tinha imaginado como que eu poderia transformar o meu quarto para tornar essa viagem no tempo possível, assim como o Richard Collier, protagonista de Somewhere in Time fez durante a trama. Mas essa ideia não durou muito depois que eu percebi o quanto poderia ser terrível se realmente fosse possível viver como um pirata, fora que foi uma época horrível para se ter nascido mulher. Decidi finalmente voltar para a maratona, mas assim que fechei a tela do notebook vi os milhares de adesivos da Lufa-Lufa que cobriam a parte de cima da tela.
Foi então que me veio uma ideia.
Abri o notebook de novo e digitei no Google “Troca de realidade + auto-hipnose” e, para a minha surpresa, alguns links pipocaram na tela. O primeiro deles em nada tinha a ver com o que eu estava procurando, era um vídeo institucional sobre programação neurolinguística e os cinco passos para que você alcançasse a realidade desejada. Passei reto.
Embora os slides com fundo de galáxia e a pergunta “VOCÊ ESTÁ PRONTO PARA ENTRAR EM UM UNIVERSO DE EXTREMO PODER?” escrita em letras grandes e garrafais exagerem um pouco a mensagem, o segundo link também mostrava sinais claros de conteúdo de autoajuda e não era bem isso que eu estava buscando, para ser sincera, eu nem sabia o que procurar.
Até que eu finalmente achei algo que talvez fosse me servir, o link era:
BLOG ELIT ORNARE
Astéria – Ritual da bússola interior
04 de dezembro de 2011 — O objetivo desse ritual é ajudar shifters que nunca tenham ido para sua realidade desejada através de um planejamento de três dias junto à Deusa...
Ao clicar, fui redirecionada para a página de um blog de bruxaria que mostrava um passo a passo de um ritual que me parecia algum tipo de exercício para viagem astral, mas ainda assim achei que a leitura valia à pena.
Astéria, conheça a deusa que vai te ajudar a transformar a realidade
Publicado em 04 de dezembro de 2011 por Meera
Bem-vindos ao nosso blog de bruxaria, onde exploramos mitos, deidades e práticas mágicas!
Com a aproximação das Geminídeas, uma das chuvas de meteoros mais intensas, com pico em torno de 13-14 de dezembro e visível no Brasil, decidimos nos aprofundar na história e nos mistérios de Astéria, a deusa das Estrelas e da Noite, e propor um ritual para aqueles que pretendem mudar a própria realidade e se curar através da viagem astral.
Quem é Astéria?
Astéria, cujo nome significa “estrela” em grego antigo, é uma deusa da mitologia grega associada às estrelas e à noite. Filha dos titãs Céos (ou Ceos) e Febe, Astéria pertence a uma linhagem divina profundamente conectada aos céus e à sabedoria. Ela é irmã de Leto, a mãe dos deuses gêmeos Apolo e Ártemis.
Os Domínios de Astéria
Astéria é amplamente reconhecida como a personificação das estrelas cadentes e das profecias noturnas. Sua presença é sentida em noites claras, quando estrelas brilham intensamente no céu. Como deusa das estrelas, ela guia os navegantes e os viajantes noturnos, oferecendo-lhes direção e esperança nas horas mais escuras.
O Mito de Astéria
Astéria é famosa por sua resistência contra as investidas de Zeus, que desejava possuí-la. Para escapar de seu assédio, ela transformou-se em uma codorna e se lançou ao mar Egeu. Nesta forma, ela se metamorfoseou na ilha de Ortígia, que mais tarde foi renomeada como Delos, um local sagrado que se tornou o berço de seus sobrinhos divinos, Apolo e Ártemis.
Astéria e a Bruxaria
Na prática da bruxaria, Astéria é invocada por aqueles que buscam orientação nas artes divinatórias, sonhos e viagens astrais. Ela é uma patrona das bruxas que trabalham com a astrologia, a interpretação dos sonhos e a magia noturna. Rituais sob o céu estrelado, especialmente durante chuvas de meteoros, são realizados em sua honra, buscando sua bênção e sabedoria.
A equipe do blog Elit Ornare preparou um ritual simples para honra da deusa Astéria e transmutação da realidade através da viagem astral. Vamos lá? Viajantes, atentem-se aos cinco aspectos principais que serão elaborados mais detalhadamente nas próximas linhas: Roteiro (opcional); auto-hipnose; sugestão mental; eliminação de anacronismos; fé completa no divino;
Passo a passo a seguir para preparação do ritual: ...
Impressionantemente o site trazia o passo a passo de como fazer o ritual que tinha duração de três dias, o primeiro dia era inteiramente reservado para meditação. Horas e mais horas de meditação! Quem em 2012 conseguia esvaziar a mente por tanto tempo assim?
...
Esperamos que esta exploração da deusa Astéria tenha iluminado sua jornada espiritual. Continue nos acompanhando para descobrir mais sobre outras deidades e práticas mágicas!
Abençoados sejam, e que as estrelas guiem seu caminho!
Equipe do Blog Elit Ornare
Ainda que eu tenha achado muito improvável que eu tenha êxito em fazer qualquer coisa que exigisse muito controle mental, aquele ritual parecia bem completo e promissor. Se não me levasse a lugar nenhum, pelo menos eu teria feito uma jornada espiritual pra lá de interessante para contar às minhas amigas. Anotei tudo que era necessário ser feito em cada um dos passos e assim que eu terminei de ler o post, fechei o computador rindo de mim mesma. Que ideia maluca... o que viria a seguir? Biokinesis no YouTube para trocar a cor dos meus olhos? Desliguei a televisão, levei o balde de pipoca de volta para a cozinha, fui ao banheiro e escovei os dentes com calma enquanto eu ainda pensava no que eu tinha lido. Deitei-me na cama, mas o sono não vinha. Busquei o celular e coloquei a primeira lista de reprodução que apareceu para mim no YouTube: “Close your eyes and dream of them | a playlist |”.
***
Naquela noite eu tive sonhos estranhos.
Sonhei que eu estava fugindo, correndo em vestes transparentes, a luz da lua iluminava a praia à minha frente. Eu estava ofegante e morrendo de medo, olhava para trás e não via nada que pudesse ameaçar minha segurança, mas ainda assim, quando ouvia o barulho dos trovões, eu podia sentir meu corpo todo tremer. Não demorou muito para que eu me jogasse contra as ondas porque pensei que poderia nadar para longe e não percebi quando nadei incansavelmente para dentro de um buraco escuro.
De repente eu estava deitada em um piso frio e aos poucos percebi que minhas roupas estavam pesadas, completamente molhadas. Sem conseguir me mover e com uma crescente sensação de pressão no peito, olhei ao redor e percebi que apesar de desconhecido, aquele ambiente era também familiar. No alto, as velas estavam apagadas, mas ainda flutuavam pelo salão. O teto trovejava enquanto uma chuva torrencial despencava, mas sem que qualquer parte do salão ficasse molhado.
Eu estava sozinha, mas eu ouvia uma voz masculina cantarolar baixinho a melodia que eu tanto gostei em Somewhere in Time, aquela que havia se tornado a minha melodia.
Acordei no meio da noite ofegante e com uma única imagem na cabeça: uma mulher linda e delicada, de cabelos castanhos com cachos longos e muito definidos que brilhavam como uma coroa de estrelas, o nariz era fino e arrebitado, sua pele pálida parecia iluminada por uma luz sobrenatural ao mesmo tempo em que as bochechas e os lábios carnudos eram muito rosados. Nada me tirava da cabeça de que aquela era a deusa Astéria.
***
Quando acordei no dia seguinte, disse aos meus pais que ainda estava cansada da noite anterior e que gostaria de ficar na cama o dia inteiro. Aproveitaram a oportunidade para sair e fazer algum programa diferente como casal, algo que eu não dava a menor importância. Tudo o que conseguia pensar naquele momento era em como começar o maldito roteiro para o ritual. Eu estava decidida. Aquilo não podia ser só um sonho, decidi interpretar toda aquela alucinação como um sinal.
Pesquisei no blog de ontem, mas não encontrei nada muito específico para o que eu pretendia fazer, então decidi que faria esse roteiro sozinha. Eu finalmente iria para Hogwarts.
Imagino que inicialmente eu deva escrever algumas condições de permanência e segurança em um universo mágico, então anotei tudo o que consegui pensar no alto de uma folha de caderno e em seguida, dei início àquilo que eu gostaria que fosse verdade: a minha existência lá.
Gostaria de manter meu nome, mas imagino que o nome do meio e o sobrenome tenham que ser diferentes, mais adequados. Quanto a identidade dos meus pais e todo o resto eu vou deixar a imaginação me levar. Sendo assim, comecei a escrever um roteiro básico:
Freya Lefebvre, 16 anos.
Filha única de Ricardo Matos Lefebvre e Elise Loureiro Lefebvre, ambos trouxas.
Casa em Castelobruxo: Lupisga (aquilo que eu pensava ser o equivalente da Lufa-Lufa na minha imaginação).
Casa em Hogwarts: Lufa-Lufa.
Ano pretendido: 1994, o ano do Torneio Tribruxo.
Missão: Salvar o Cedrico.
Passei a tarde inteira estudando e preparando a narrativa para que não existissem furos de roteiro. Pelo que eu entendia, em teoria, aquela realidade já existia e eu só precisava me inserir dentro dela. Coisa besta, coisa fácil, coisa possível. Eu tentava controlar a vozinha insistente no fundo da minha cabeça que me dizia o quanto tudo aquilo era improvável e de que eu estava sendo extremamente infantil (e ingênua) tentando fazer com que aquilo acontecesse. Mas o que eu tinha a perder, não é? O máximo que poderia acontecer era um momento relaxante na minha cama. Só.
O blog Elit Ornare dizia que para realização daquele ritual eram necessários três dias de preparação, mas eu sentia que havia me preparado a vida inteira para Hogwarts, eu só nunca soube como chegar lá. A minha ansiedade fazia com que o meu coração batesse descompassado e as minhas mãos suarem frio. Passei horas em meditação e entrando em um estado de concentração e fé enquanto seguia o passo a passo e honrava a deusa Astéria da forma que eu achava que era a certa. Assim que o dia começou a escurecer, eu sorri para o quarto já pronto. Todos os anacronismos estavam fora de vista, por sorte, os meus móveis eram garimpados em antiquários o que fazia com que meu quarto mantivesse uma estética clássica dos romances do século XIX, era certamente o quarto de uma adolescente leitora de Jane Austen. À tarde, fiz questão de pendurar as flâmulas da Lufa-Lufa em uma das paredes do quarto e ainda agora, quando me deitei com as luzes apagadas, me cobri com as vestes escuras e douradas de uma verdadeira lufana.
Antes de finalmente fechar os olhos, procurei no bolso das vestes pela varinha que eu mesma havia confeccionado há tantos anos. Estava lá, devidamente segura. Era a hora.
Voltei ao estado de concentração e procurei me manter imóvel enquanto seguia as instruções que eu já havia decorado.
Depois de algumas horas em estado de meditação, decidi que era a hora da última etapa, o estágio de visualização, e comecei com pouco. Pensei no salgueiro e desenhei cada uma de suas folhas em minha imaginação, cada rasgo no tronco, cada galho grosso e fino. Pedi para que a deusa guiasse meus passos durante a escuridão da noite, desejei que ela pegasse em minha mão e flutuasse comigo pelo universo infinito e por todas as possibilidades de tempo e espaço, pedi acreditando que tudo aquilo daria certo. Senti o cheiro fresco de uma manhã de setembro, pude ouvir o canto dos pássaros. Em minha imaginação, vi hipogrifos voando no céu enquanto os galhos do salgueiro lutador chacoalhavam as folhas que começavam a escurecer no início do outono. Abri os olhos.
E vi apenas o escuro do meu quarto.
***
São Paulo, 25 de novembro de 2012
Hoje eu completava dezesseis anos, mas mal conseguia reconhecer meu reflexo no espelho.
Há dias eu não dormia, as aulas no ensino médio finalmente haviam terminado para sempre e ainda não tínhamos o resultado dos vestibulares. Minha vida havia se tornado um limbo até janeiro de 2013 e o tempo ocioso tinha se tornado o meu pior inimigo. Eu estava obcecada pela ideia do shifiting e a cada dia que passava eu ficava cada vez mais frustrada por não conseguir resultado nenhum.
Procurando mais afundo nos sites e blogs disponíveis na internet, descobri um fórum com os chamados “Psiconautas” e vinha gastando horas do dia atrás de dicas e relatos dos tentantes nesses últimos dez dias. Eu estava sendo consumida muito rapidamente pela ideia de viver em uma realidade alternativa.
A comemoração do meu aniversário foi rápida e muito simples, decidi reunir os amigos e familiares em uma pizzaria tradicional da capital e precisei fingir estar disposta e presente durante todo o evento, mas eu só queria poder voltar para a escuridão do meu quarto. Até os presentes que eu havia ganhado estavam me torturando. Ganhei um cachecol grosso e comprido tricotado pela minha melhor amiga, ela foi cuidadosa o suficiente para fazê-lo com as cores da Lufa-Lufa; da minha prima, ganhei marcadores de livro magnéticos com o brasão da casa de Hogwarts; finalmente, dos meus pais, ganhei uma camiseta com o rosto do Robert Pattinson estampado nas costas e os dizeres “Diggory, campeão” preenchia o contorno de um pequeno coração branco do lado esquerdo do peito. Assoprei as dezesseis velas e fiz o pedido. Desejei, mais uma vez, estar lá.
Assim que pisei em casa, tomei banho e escovei os dentes ensaiando o meu roteiro pela milésima vez. Em vinte minutos eu já estava trancada em meu quarto, vestida com o uniforme completo de Hogwarts, o cachecol da Lufa-Lufa no pescoço e a varinha firme na mão direita. Comecei todo o processo do início, nem que eu passasse a madrugada inteira meditando e em estado de concentração plena, dessa vez eu vou. Eu quero muito ir.
Não demorou muito para que eu pegasse no sono.
O cheiro do meu aniversário já estava por toda parte. Era um cheiro engraçado porque mesmo sem morar no litoral eu sentia a maresia misturada ao cheiro de chuva em dia quente junto com a leveza do cheiro de jasmim na primavera. Por mais que eu compartilhasse essa sensação, as pessoas ao meu redor diziam que era coisa da minha cabeça, mas em todos os anos eu tinha a certeza de que quando outubro terminasse, eu sentiria o cheiro invadindo os cômodos aos poucos e a minha animação crescia na mesma medida.
Naquele feriadão meus pais fizeram o possível para que eu me divertisse mesmo que meus amigos estivessem viajando. Filha única, eles faziam o possível para me mimar durante o mês de novembro inteiro. Mesmo que o meu desejo de adolescente fosse passar um tempo sozinha com meus livros trancada dentro do quarto, eles organizaram uma maratona de filmes e séries que duraria o final de semana inteiro. Aproveitei a ida deles ao hipermercado para terminar a leitura de Harry Potter e o Cálice de Fogo, porque apesar de ser fã de carteirinha do universo mágico, eu havia começado os livros há pouco tempo.
“Conforme dissera Hagrid, o que tiver de ser, será... e ele teria que enfrentar o que fosse quando viesse”.
Enfim, acabou. Fechei o livro e encarei meu reflexo no espelho pensando o quanto a história havia amadurecido no quarto ano e o tanto que aquela primeira morte havia mexido comigo. A morte do Cedrico era definitivamente uma das coisas das quais o meu eu literário nunca conseguiria se recuperar.
Em pouco tempo meus pais voltariam com as compras de mercado, então levantei-me e decidi organizar a lista de filmes do primeiro dia do feriadão: A Ilha da Garganta Cortada, Piratas do Caribe e a Maldição do Pérola Negra, Stardust: O Mistério da Estrela e a Princesa Prometida.
Novembro é o meu mês e tudo o que eu faço durante esses trinta dias diz respeito a mim, sendo assim, as maratonas de Crepúsculo, Harry Potter e filmes de pirataria são obrigatórias durante esse período. Desta vez, a pirataria viria na frente. Desde que eu me conheço por gente eu acredito que fui uma pirata em outra vida e meus pais alimentaram essa crença durante anos fazendo com que eu tivesse uma infância repleta de imaginação, praia e muitas fantasias de pirata no dia das bruxas. Maratonar esses filmes era honrar o meu eu de seis anos que amava personificar a maior pirata de todos os tempos, Morgan Adams, interpretada pela Geena Davis em A Ilha da Garganta Cortada, também conhecido como meu filme favorito.
Assim que meus pais chegaram com as compras, fui ajudá-los e, enquanto arrumava espaço nos armários da cozinha, adiantei a lista dos filmes daquela quinta-feira chuvosa.
— Os mesmos filmes de pirata de sempre? Novidade! — minha mãe debocha risonha enquanto dobrava as sacolinhas de mercado — Achei que fossemos maratonar Harry Potter hoje.
— É que eu acabei de terminar o quarto livro, tô de ressaca.
— Filha, quanto aos filmes de hoje... olha só o que eu achei no mercado — meu pai disse finalmente colocando a última sacola de compras para dentro do apartamento e fechando a porta, ele vasculhou dentro da sacola plástica e retirou um DVD, daqueles de capinha bem fina, e me entregou — Esse filme é uma relíquia!
Pela qualidade da foto na capa eu já sabia que o filme era antigo. Na imagem, havia um casal sentado à beira mar em uma pedra; o homem usava roupas antigas, assim como a mulher ao seu lado. Os dois sorriam com os rostos em perfil, olhando para algo além do limite da capa. O céu azul claro ao fundo contribuía para uma bela composição de praia e sol, e em uma caligrafia do tipo cursiva, lia-se no topo: 'Em Algum Lugar do Passado', estrelado por Christopher Reeve e Jane Seymour.
— Ah, pai... Eu não gosto desses filmes antigos.
— Ah, dá uma chance — e nesse momento eu considerei assistir apenas para agradá-lo — É um romance, eu tenho certeza de que você vai gostar. A história é muito interessante.
— Eu amo esse filme — minha mãe disse preparando a panela para a pipoca — Você também não queria assistir “Labirinto”, lembra? No fim das contas, você amou o David Bowie — minha mãe mencionou e eu me dei por vencida.
— Tá bem, então a gente vai assistir esse, mas logo depois nós vamos entrar na onda da pirataria!
Uma hora e quarenta e três minutos depois eu chorava como uma condenada. Ainda que o final do filme sugira que o Richard tenha se reencontrado com a Elise em algum lugar post-mortem eu ainda sei que ele teve que viver o presente e o restante da sua vida sem ela e aquilo doía tanto, eu detestava filmes assim. Agora, os créditos subiam lentamente na tela e uma das músicas mais lindas que eu já ouvira na vida e que fez parte da trilha sonora do início ao fim começou a tocar, lágrimas ainda mais gordas despencaram dos meus olhos.
— Meu Deus, pai! Esse filme acabou comigo — falei chorosa enquanto eles riam — Essa com certeza será a música que vai tocar no meu casamento!
— Eu sabia que você ia gostar — meu pai se levantou para retirar o DVD e logo vi o menu de a Ilha da Garganta Cortada brilhar no televisor.
Agora assistíamos ao meu filme preferido, mas eu não conseguia prestar atenção. Não imaginei que Somewhere in Time (título original de Em Algum Lugar do Passado) mexeria tanto comigo e agora eu não conseguia pensar em outra coisa que não fosse sugestão e auto-hipnose. Antes mesmo de chegarmos à metade do filme, meus pais se renderam, cansados, e foram dormir. Agitada e com os pensamentos a milhão, busquei o notebook no quarto e comecei a pesquisar mais sobre a teoria de viagem no tempo por trás do filme. Descobri que a história tinha sido baseada no livro de mesmo título escrito por Richard Matheson e de cara achei estranho o protagonista ter o mesmo nome que o autor. Qual a chance desse cara ter viajado e se hospedado naquele hotel? Aposto que ele escreveu o livro para se livrar da ideia do amor platônico e impossível que ele teve por uma fotografia.
A Geena Davis chamou a minha atenção na televisão e não pude deixar de pensar o quão interessante seria poder me locomover no tempo, imaginei poder ver a pirataria acontecendo de verdade e em alguns minutos eu já tinha imaginado como que eu poderia transformar o meu quarto para tornar essa viagem no tempo possível, assim como o Richard Collier, protagonista de Somewhere in Time fez durante a trama. Mas essa ideia não durou muito depois que eu percebi o quanto poderia ser terrível se realmente fosse possível viver como um pirata, fora que foi uma época horrível para se ter nascido mulher. Decidi finalmente voltar para a maratona, mas assim que fechei a tela do notebook vi os milhares de adesivos da Lufa-Lufa que cobriam a parte de cima da tela.
Foi então que me veio uma ideia.
Abri o notebook de novo e digitei no Google “Troca de realidade + auto-hipnose” e, para a minha surpresa, alguns links pipocaram na tela. O primeiro deles em nada tinha a ver com o que eu estava procurando, era um vídeo institucional sobre programação neurolinguística e os cinco passos para que você alcançasse a realidade desejada. Passei reto.
Embora os slides com fundo de galáxia e a pergunta “VOCÊ ESTÁ PRONTO PARA ENTRAR EM UM UNIVERSO DE EXTREMO PODER?” escrita em letras grandes e garrafais exagerem um pouco a mensagem, o segundo link também mostrava sinais claros de conteúdo de autoajuda e não era bem isso que eu estava buscando, para ser sincera, eu nem sabia o que procurar.
Até que eu finalmente achei algo que talvez fosse me servir, o link era:
BLOG ELIT ORNARE
Astéria – Ritual da bússola interior
04 de dezembro de 2011 — O objetivo desse ritual é ajudar shifters que nunca tenham ido para sua realidade desejada através de um planejamento de três dias junto à Deusa...
Ao clicar, fui redirecionada para a página de um blog de bruxaria que mostrava um passo a passo de um ritual que me parecia algum tipo de exercício para viagem astral, mas ainda assim achei que a leitura valia à pena.
Astéria, conheça a deusa que vai te ajudar a transformar a realidade
Publicado em 04 de dezembro de 2011 por Meera
Bem-vindos ao nosso blog de bruxaria, onde exploramos mitos, deidades e práticas mágicas!
Com a aproximação das Geminídeas, uma das chuvas de meteoros mais intensas, com pico em torno de 13-14 de dezembro e visível no Brasil, decidimos nos aprofundar na história e nos mistérios de Astéria, a deusa das Estrelas e da Noite, e propor um ritual para aqueles que pretendem mudar a própria realidade e se curar através da viagem astral.
Quem é Astéria?
Astéria, cujo nome significa “estrela” em grego antigo, é uma deusa da mitologia grega associada às estrelas e à noite. Filha dos titãs Céos (ou Ceos) e Febe, Astéria pertence a uma linhagem divina profundamente conectada aos céus e à sabedoria. Ela é irmã de Leto, a mãe dos deuses gêmeos Apolo e Ártemis.
Os Domínios de Astéria
Astéria é amplamente reconhecida como a personificação das estrelas cadentes e das profecias noturnas. Sua presença é sentida em noites claras, quando estrelas brilham intensamente no céu. Como deusa das estrelas, ela guia os navegantes e os viajantes noturnos, oferecendo-lhes direção e esperança nas horas mais escuras.
O Mito de Astéria
Astéria é famosa por sua resistência contra as investidas de Zeus, que desejava possuí-la. Para escapar de seu assédio, ela transformou-se em uma codorna e se lançou ao mar Egeu. Nesta forma, ela se metamorfoseou na ilha de Ortígia, que mais tarde foi renomeada como Delos, um local sagrado que se tornou o berço de seus sobrinhos divinos, Apolo e Ártemis.
Astéria e a Bruxaria
Na prática da bruxaria, Astéria é invocada por aqueles que buscam orientação nas artes divinatórias, sonhos e viagens astrais. Ela é uma patrona das bruxas que trabalham com a astrologia, a interpretação dos sonhos e a magia noturna. Rituais sob o céu estrelado, especialmente durante chuvas de meteoros, são realizados em sua honra, buscando sua bênção e sabedoria.
A equipe do blog Elit Ornare preparou um ritual simples para honra da deusa Astéria e transmutação da realidade através da viagem astral. Vamos lá? Viajantes, atentem-se aos cinco aspectos principais que serão elaborados mais detalhadamente nas próximas linhas: Roteiro (opcional); auto-hipnose; sugestão mental; eliminação de anacronismos; fé completa no divino;
Passo a passo a seguir para preparação do ritual: ...
Impressionantemente o site trazia o passo a passo de como fazer o ritual que tinha duração de três dias, o primeiro dia era inteiramente reservado para meditação. Horas e mais horas de meditação! Quem em 2012 conseguia esvaziar a mente por tanto tempo assim?
Esperamos que esta exploração da deusa Astéria tenha iluminado sua jornada espiritual. Continue nos acompanhando para descobrir mais sobre outras deidades e práticas mágicas!
Abençoados sejam, e que as estrelas guiem seu caminho!
Equipe do Blog Elit Ornare
Ainda que eu tenha achado muito improvável que eu tenha êxito em fazer qualquer coisa que exigisse muito controle mental, aquele ritual parecia bem completo e promissor. Se não me levasse a lugar nenhum, pelo menos eu teria feito uma jornada espiritual pra lá de interessante para contar às minhas amigas. Anotei tudo que era necessário ser feito em cada um dos passos e assim que eu terminei de ler o post, fechei o computador rindo de mim mesma. Que ideia maluca... o que viria a seguir? Biokinesis no YouTube para trocar a cor dos meus olhos? Desliguei a televisão, levei o balde de pipoca de volta para a cozinha, fui ao banheiro e escovei os dentes com calma enquanto eu ainda pensava no que eu tinha lido. Deitei-me na cama, mas o sono não vinha. Busquei o celular e coloquei a primeira lista de reprodução que apareceu para mim no YouTube: “Close your eyes and dream of them | a playlist |”.
Naquela noite eu tive sonhos estranhos.
Sonhei que eu estava fugindo, correndo em vestes transparentes, a luz da lua iluminava a praia à minha frente. Eu estava ofegante e morrendo de medo, olhava para trás e não via nada que pudesse ameaçar minha segurança, mas ainda assim, quando ouvia o barulho dos trovões, eu podia sentir meu corpo todo tremer. Não demorou muito para que eu me jogasse contra as ondas porque pensei que poderia nadar para longe e não percebi quando nadei incansavelmente para dentro de um buraco escuro.
De repente eu estava deitada em um piso frio e aos poucos percebi que minhas roupas estavam pesadas, completamente molhadas. Sem conseguir me mover e com uma crescente sensação de pressão no peito, olhei ao redor e percebi que apesar de desconhecido, aquele ambiente era também familiar. No alto, as velas estavam apagadas, mas ainda flutuavam pelo salão. O teto trovejava enquanto uma chuva torrencial despencava, mas sem que qualquer parte do salão ficasse molhado.
Eu estava sozinha, mas eu ouvia uma voz masculina cantarolar baixinho a melodia que eu tanto gostei em Somewhere in Time, aquela que havia se tornado a minha melodia.
Acordei no meio da noite ofegante e com uma única imagem na cabeça: uma mulher linda e delicada, de cabelos castanhos com cachos longos e muito definidos que brilhavam como uma coroa de estrelas, o nariz era fino e arrebitado, sua pele pálida parecia iluminada por uma luz sobrenatural ao mesmo tempo em que as bochechas e os lábios carnudos eram muito rosados. Nada me tirava da cabeça de que aquela era a deusa Astéria.
Quando acordei no dia seguinte, disse aos meus pais que ainda estava cansada da noite anterior e que gostaria de ficar na cama o dia inteiro. Aproveitaram a oportunidade para sair e fazer algum programa diferente como casal, algo que eu não dava a menor importância. Tudo o que conseguia pensar naquele momento era em como começar o maldito roteiro para o ritual. Eu estava decidida. Aquilo não podia ser só um sonho, decidi interpretar toda aquela alucinação como um sinal.
Pesquisei no blog de ontem, mas não encontrei nada muito específico para o que eu pretendia fazer, então decidi que faria esse roteiro sozinha. Eu finalmente iria para Hogwarts.
Imagino que inicialmente eu deva escrever algumas condições de permanência e segurança em um universo mágico, então anotei tudo o que consegui pensar no alto de uma folha de caderno e em seguida, dei início àquilo que eu gostaria que fosse verdade: a minha existência lá.
Gostaria de manter meu nome, mas imagino que o nome do meio e o sobrenome tenham que ser diferentes, mais adequados. Quanto a identidade dos meus pais e todo o resto eu vou deixar a imaginação me levar. Sendo assim, comecei a escrever um roteiro básico:
Freya Lefebvre, 16 anos.
Filha única de Ricardo Matos Lefebvre e Elise Loureiro Lefebvre, ambos trouxas.
Casa em Castelobruxo: Lupisga (aquilo que eu pensava ser o equivalente da Lufa-Lufa na minha imaginação).
Casa em Hogwarts: Lufa-Lufa.
Ano pretendido: 1994, o ano do Torneio Tribruxo.
Missão: Salvar o Cedrico.
Passei a tarde inteira estudando e preparando a narrativa para que não existissem furos de roteiro. Pelo que eu entendia, em teoria, aquela realidade já existia e eu só precisava me inserir dentro dela. Coisa besta, coisa fácil, coisa possível. Eu tentava controlar a vozinha insistente no fundo da minha cabeça que me dizia o quanto tudo aquilo era improvável e de que eu estava sendo extremamente infantil (e ingênua) tentando fazer com que aquilo acontecesse. Mas o que eu tinha a perder, não é? O máximo que poderia acontecer era um momento relaxante na minha cama. Só.
O blog Elit Ornare dizia que para realização daquele ritual eram necessários três dias de preparação, mas eu sentia que havia me preparado a vida inteira para Hogwarts, eu só nunca soube como chegar lá. A minha ansiedade fazia com que o meu coração batesse descompassado e as minhas mãos suarem frio. Passei horas em meditação e entrando em um estado de concentração e fé enquanto seguia o passo a passo e honrava a deusa Astéria da forma que eu achava que era a certa. Assim que o dia começou a escurecer, eu sorri para o quarto já pronto. Todos os anacronismos estavam fora de vista, por sorte, os meus móveis eram garimpados em antiquários o que fazia com que meu quarto mantivesse uma estética clássica dos romances do século XIX, era certamente o quarto de uma adolescente leitora de Jane Austen. À tarde, fiz questão de pendurar as flâmulas da Lufa-Lufa em uma das paredes do quarto e ainda agora, quando me deitei com as luzes apagadas, me cobri com as vestes escuras e douradas de uma verdadeira lufana.
Antes de finalmente fechar os olhos, procurei no bolso das vestes pela varinha que eu mesma havia confeccionado há tantos anos. Estava lá, devidamente segura. Era a hora.
Voltei ao estado de concentração e procurei me manter imóvel enquanto seguia as instruções que eu já havia decorado.
Depois de algumas horas em estado de meditação, decidi que era a hora da última etapa, o estágio de visualização, e comecei com pouco. Pensei no salgueiro e desenhei cada uma de suas folhas em minha imaginação, cada rasgo no tronco, cada galho grosso e fino. Pedi para que a deusa guiasse meus passos durante a escuridão da noite, desejei que ela pegasse em minha mão e flutuasse comigo pelo universo infinito e por todas as possibilidades de tempo e espaço, pedi acreditando que tudo aquilo daria certo. Senti o cheiro fresco de uma manhã de setembro, pude ouvir o canto dos pássaros. Em minha imaginação, vi hipogrifos voando no céu enquanto os galhos do salgueiro lutador chacoalhavam as folhas que começavam a escurecer no início do outono. Abri os olhos.
E vi apenas o escuro do meu quarto.
São Paulo, 25 de novembro de 2012
Hoje eu completava dezesseis anos, mas mal conseguia reconhecer meu reflexo no espelho.
Há dias eu não dormia, as aulas no ensino médio finalmente haviam terminado para sempre e ainda não tínhamos o resultado dos vestibulares. Minha vida havia se tornado um limbo até janeiro de 2013 e o tempo ocioso tinha se tornado o meu pior inimigo. Eu estava obcecada pela ideia do shifiting e a cada dia que passava eu ficava cada vez mais frustrada por não conseguir resultado nenhum.
Procurando mais afundo nos sites e blogs disponíveis na internet, descobri um fórum com os chamados “Psiconautas” e vinha gastando horas do dia atrás de dicas e relatos dos tentantes nesses últimos dez dias. Eu estava sendo consumida muito rapidamente pela ideia de viver em uma realidade alternativa.
A comemoração do meu aniversário foi rápida e muito simples, decidi reunir os amigos e familiares em uma pizzaria tradicional da capital e precisei fingir estar disposta e presente durante todo o evento, mas eu só queria poder voltar para a escuridão do meu quarto. Até os presentes que eu havia ganhado estavam me torturando. Ganhei um cachecol grosso e comprido tricotado pela minha melhor amiga, ela foi cuidadosa o suficiente para fazê-lo com as cores da Lufa-Lufa; da minha prima, ganhei marcadores de livro magnéticos com o brasão da casa de Hogwarts; finalmente, dos meus pais, ganhei uma camiseta com o rosto do Robert Pattinson estampado nas costas e os dizeres “Diggory, campeão” preenchia o contorno de um pequeno coração branco do lado esquerdo do peito. Assoprei as dezesseis velas e fiz o pedido. Desejei, mais uma vez, estar lá.
Assim que pisei em casa, tomei banho e escovei os dentes ensaiando o meu roteiro pela milésima vez. Em vinte minutos eu já estava trancada em meu quarto, vestida com o uniforme completo de Hogwarts, o cachecol da Lufa-Lufa no pescoço e a varinha firme na mão direita. Comecei todo o processo do início, nem que eu passasse a madrugada inteira meditando e em estado de concentração plena, dessa vez eu vou. Eu quero muito ir.
Não demorou muito para que eu pegasse no sono.
Dois: Nasci, mas agora aqui
Ao despertar, pensei que fosse morrer.
Quando percebi que estava submersa, eu fiquei desesperada. Àquela altura meus pulmões já queimavam e respirar era urgente. Em pânico e sem entender o que estava acontecendo, mexi as pernas e os braços e percebi que as extremidades do meu corpo estavam dormentes devido a baixa temperatura da água. A falta de luz natural dificultava saber qual direção eu deveria seguir e a água turva transformava a visão das coisas ao meu redor. Meus braços se moviam de maneira descoordenada e quanto mais eu nadava, mas eu sentia a pressão da água em minha cabeça fazendo com que ela doesse. Por instinto e completamente desorientada, respirei, e uma grande quantidade de água invadiu meu peito. Eu não sabia onde era a superfície. Arregalei os olhos de susto quando involuntariamente respirei de novo, agora, a resistência da água começava a tornar qualquer movimento mais difícil, meus braços estavam pesados e minhas pernas já não se mexiam.
Meu corpo estava desistindo e tudo havia ficado escuro.
Quando recobrei a consciência, eu estava flutuando. O céu acima de mim ainda estava claro, mas os sinais de que a noite estava chegando já eram perceptíveis. Minha respiração era tão forte que eu sentia o meu peito expandir ao máximo da capacidade para receber todo o ar do mundo. Em pânico e ainda tentando entender o que havia acontecido, eu tentava manter a calma, com medo de me afogar novamente. Antes eu sentia a dormência apenas nas extremidades do corpo, agora, meus membros ainda não me respondiam e ainda que estivessem submersos, eu percebia o tremor percorrendo meus músculos fatigados e me desesperei com medo do frio intenso. Ao erguer a cabeça, um grito de pavor escapou pelos meus lábios quando vi a paisagem ao meu redor. Lá na outra extremidade do lago, à esquerda, uma enorme construção se erguia ao longe e ela era cheia de torres e torrinhas.
Em movimentos coordenados comecei a me dirigir às pressas para a margem mais próxima. Ali o lago já não era mais tão profundo e assim que deu pé tentei andar, mas a resistência da água me fez tropeçar e eu caí com as mãos espalmadas nos seixos, alguns deles eram afiados e acabaram rasgando e machucando minhas mãos.
Arrastei-me para fora da água até alcançar a grama seca, exausta, sentei-me com as pernas estendidas à frente e tentei assimilar, ainda em estado de choque, tudo o que havia se passado há poucos minutos. Era um sonho, só pode ser. As palmas de minhas mãos ardiam e, assustada, a água e o sangue que saíam dos pequenos cortes e escorriam pelos meus braços só confirmavam, ainda mais, que aquilo tudo era bem real.
Eu ainda ofegava. Apertava os olhos e os abria esperando poder voltar ao meu quarto, mas tudo o que eu sentia era cada vez mais o frio congelando meus ossos e fazendo meus dentes se chocarem. Ao encarar a água escura do lago se transformar em pequenas ondas próximas à margem levantei-me num pulo e me afastei o máximo que pude, em choque e aliviada que nada tivesse me acontecido enquanto eu estive lá dentro. Meus olhos estavam arregalados de pavor, eu não sabia dizer como eu ainda estava viva e me chocava saber que por um momento eu havia desistido de lutar. Mas eu não saberia dizer como cheguei à superfície e, pior, como eu estava bem.
Enquanto caminhava pelo terreno irregular a fim de me esquentar e procurar por ajuda, eu forçava a minha memória para tentar lembrar o que aconteceu, mas eu só recordava estar deitada em minha cama sentindo o cheiro de vela tomar conta do ambiente. De repente acordei aqui, no fundo do lago, O lago, com ó maiúsculo.
Finalmente eu havia encontrado uma pequena estrada. Eu estava longe do castelo, percebia agora. Apesar de conseguir vê-lo ao fundo, ainda havia uma caminhada um tanto quanto longa pela frente e eu desejava conseguir chegar aos portões antes que o frio piorasse e a noite caísse de vez. Tudo era muito impressionante, a amplitude do céu, a grama e as folhas das árvores tingidas pelo outono, o tom azulado que o castelo tinha ao anoitecer, o som distante dos animais na floresta. Era bom demais pra ser verdade.
Quando os postes de luz ao longo da estrada se acenderam, ainda que eu estivesse me sentindo como um viajante em terra estrangeira, eu sabia que por enquanto estava tudo bem. Um dos postes estava repleto de placas. As duas primeiras indicavam a mesma direção que eu seguia; nelas, liam-se respectivamente em letras góticas “Lower Hogsfield” e “Hogwarts”.
Eu consegui, eu consegui mesmo.
Não demorou muito para o vilarejo de Lower Hogsfield aparecer. Uma fumaça branca saía pela chaminé de cada uma das cabanas feitas de pedra e fui atraída pelo barulho de vozes e o crepitar de uma fogueira. Eu não via a hora de poder me esquentar e não hesitei em atravessar os muros e ir em direção ao fogo.
— Por Merlim! O que aconteceu com você?
A urgência de esquentar meu corpo era tão grande que eu mal percebi as pessoas falando comigo. Minhas roupas estavam tão pesadas e encharcadas que sequer descolavam do meu corpo.
— Ignis Anifeiliaid!
Eu podia jurar que uma coruja feita de fogo voava ao meu redor e usava as asas para projetar um vento quente sobre mim. Sem conseguir dizer nada e com a boca aberta, acompanhei aquele animal por alguns minutos, até que finalmente minhas roupas, cabelo e corpo secaram e ele se desfez em um milhão de faíscas. Percebi que as pessoas foram se juntando próximas à fogueira enquanto me olhavam e comentavam curiosas entre si.
— Você está bem? Precisa de ajuda? — a mulher que estava mais próxima a mim perguntou, os olhos maternais pareciam preocupados.
— E-eu, eu não sei — minha voz saiu em um sussurro e senti a garganta doer, devia ser o resquício do afogamento.
— Você viu quando ela chegou? Toda molhada...
— Nunca vi ninguém tão pálido em toda minha vida.
— A boca dela estava roxa!
— Você é estudante de Hogwarts? — a mulher me perguntou docemente e eu tentei desviar a atenção dos cochichos, reparei que ela usava uma combinação de roupas e cores que eu nunca vi na vida.
— S-sim, quer di-dizer, não — pare de gaguejar, — Sim, eu sou. Eu caí no lago, obrigada por secar minhas roupas, foi muito gentil.
— Santo Merlim! Você estava voando? — um homem perguntou, também parecendo preocupado e eu assenti aproveitando a suposição e elaborando uma história plausível na minha cabeça, ele puxou o relógio de bolso e perguntou em seguida: — Você não veio de trem? Vejo aqui que os alunos devem ter acabado de desembarcar na estação de Hogsmeade.
— Eu perdi o trem.
— Minha Deusa! Deve ter sido uma viagem e tanto, venha, vamos levá-la até a escola — a mulher me puxou até uma carroceria de madeira — Senhor Murasva, por gentileza, gostaria de nos acompanhar? Sabe que não gosto de andar sozinha por essas terras à noite.
— Onde está sua vassoura, senhorita...?
— Lefebvre, Lefebvre — respondi o homem tentando ganhar um pouco mais de tempo para elaborar a mentira — Ela caiu comigo dentro do lago, não a encontrei.
— Uma pena...
O caminho até Hogwarts foi silencioso. Deonro Murasva conduzia o cavalo enquanto a mulher, que descobri se chamar Myssa Onai, se juntou a mim na carroceria. Ela era uma bruxa de um pouco mais de quarenta anos de idade. Seus olhos eram esverdeados, a pele oliva brilhava de suor, seus cabelos cacheados estavam presos com um lenço branco e em seus lábios permaneceu um sorriso maternal até que chegássemos aos portões de Hogwarts. Para minha surpresa, chegamos no mesmo instante que os demais alunos, que vinham aos montes em carruagens que se moviam sozinhas. Uma das carruagens parou antes de cruzar os portões, Myssa Onai saltou da carroceria e me puxou junto com ela.
— Ora, veja só, estes testrálios sabem que você deve ser conduzida até a escola, são seres muito espertos mesmo.
— Onde estão? — perguntei curiosa enquanto olhava cada parte da estrutura de metal, mas as carruagens realmente se moviam sozinhas.
— Espero que você nunca possa vê-los, querida. — Myssa sorriu antes de abrir a porta da carruagem para que eu entrasse — Tenha um bom ano e tome mais cuidado nas próximas vezes em que resolver se aventurar.
Quando a porta da carruagem se fechou e o sacolejar do caminho de pedras começou, percebi que eu não estava sozinha.
Curiosos, um conjunto de alunos me observavam com os olhos arregalados e me senti intimidada assim que percebi o tom de voz na pergunta:
— Quem é você?!
— Oi — senti minhas bochechas queimarem quando minha voz saiu baixa e esganiçada — Me chamo .
— Você é de qual casa? — o garoto sentado do outro lado da carruagem perguntou reparando que eu não usava o uniforme, seu cabelo era loiro amarelado e os olhos eram azuis assim como a gravata em seu pescoço.
— Sou aluna nova, transferida — como se fosse possível, vi a curiosidade aumentar nos cinco pares de olhos que me encaravam — Ainda não fui selecionada para nenhuma casa.
O sangue congelou em minhas veias. As coisas estavam acontecendo tão rapidamente que eu nem sequer tive tempo para planejar a minha chegada. No roteiro, eu lembro de colocar que a minha casa seria a Lufa-Lufa para que ficasse mais fácil de me aproximar do Cedrico, mas eu não pensei que precisasse passar pela seleção das casas. Na verdade, eu nem planejei isso.
Mais uma vez o pânico começava a tomar conta dos meus pensamentos e eu desejava que nada fosse muito difícil quando chegássemos à escola.
— E de onde você veio? — não sabia dizer se era o interrogatório ou o balançar estrondoso da carruagem que estava me deixando enjoada.
— Castelobruxo, no Brasil — essa parte era fácil, sinto que eu poderia inventar qualquer informação e não faria a menor diferença para eles. Castelobruxo parecia um lugar muito distante daquela realidade.
— Que demais, minha mãe estudou lá! — a garota ruiva e de cabelos emaranhados ao meu lado quase gritou de emoção e eu senti meu plano indo por água abaixo — Mas ela morreu quando eu era pequena.
— Minha nossa, sinto muito — falei sem deixar o meu alívio transparecer na voz, mas eu realmente fiquei comovida por ela ser órfã.
— Tudo bem, já faz tempo — ela sorriu e estendeu a mão direita — Wendy Houston, aqui somos todos corvinos. Da Corvinal, sabe?
— Você vai cursar qual ano? — um outro garoto me perguntou, esse tinha os cabelos castanhos e apesar de todos estarem curiosos, percebi que um par de olhos já não me encarava mais. A garota de cabelos longos e pretos à minha frente agora encarava a vidraça da carruagem parecendo um tanto quanto retraída e triste.
— Quinto ano — respondi, ainda prestando atenção na garota.
— Nunca vi ninguém maior de onze anos sendo selecionado para alguma casa, vai ser engraçado — um garoto de cabelos longos, sentado ao lado de Wendy comentou e os outros rapazes riram.
De repente fiquei nervosa e senti que uma crise de ansiedade finalmente estava encontrando caminho em meus pensamentos. Eles continuaram comentando uma série de coisas e eu só conseguia pensar na atenção que eu não desejava receber, uma estranha usando o chapéu seletor aos dezesseis anos de idade. Senti que estava afogando novamente quando uma mão segurou a minha.
— Respire — a garota à minha frente sorria solidária e só então percebi os traços asiáticos em seu rosto — Tenho certeza de que não farão a sua seleção na frente de todos, essa cerimônia é só para primeiranistas.
— Mas seria engraçado!
— Cale a boca, Miguel! Ela está nervosa!
— Meu nome é Cho, a Wendy já se apresentou, mas esses babacas são Miguel Corner, Terêncio Boot e Antônio Goldstein — ela apresentou cada um dos garotos e eu quase abri a boca em choque
— Espero que tenha se acalmado, porque nós chegamos.
Assim que desci da carruagem junto às garotas, senti mais do que meia dúzia de pares me olhando. Provavelmente porque todos estavam trajados com os uniformes escolares exceto eu e automaticamente já me senti uma estranha no ninho. As pessoas cochichavam e davam risinhos, um grupo me encarava sem nenhum pudor. Era o primeiro dia do Ensino Médio de novo, que pesadelo.
Ainda não conseguia acreditar que eu estava ao lado de Cho Chang.
Cortei a atenção e os burburinhos para encarar o castelo que se impunha majestoso à minha frente. Atravessei o pátio de pedras com Cho e Wendy até a grande porta de madeira, elas disseram que me levariam ao Professor Flitwick, diretor da Corvinal para que eu fosse orientada. Segui os passos delas tentando não me distrair com o interior do castelo, eram tantas informações que eu mal podia assimilar que aquilo realmente estava acontecendo e, se ainda fosse um sonho, eu desejava nunca mais acordar. Assim que entramos demos de cara com duas grandes escadarias, uma de cada lado do saguão. Na parede à nossa frente, um grande brasão de Hogwarts em ferro fundido estava pendurado entre duas piras acesas e ornamentadas por quatro pequenos bustos de javalis alados. Cho percebeu que eu estava distraída e agarrou meu braço para continuarmos o caminho. Subimos uma das escadarias, e ambas levavam para o mesmo patamar superior, atravessamos mais uma porta de madeira e chegamos ao salão de recepção. Quase tive um treco quando vi as ampulhetas das casas à minha esquerda, elas eram mesmo enormes, tinham o dobro do meu tamanho. À direita, um grande corredor iluminado por piras e lustres, decorado com estátuas e quadros, levava à grande escadaria.
Atravessamos mais um portal em ogiva e agora estávamos na antessala do Salão Principal, podia vê-lo se estender através das portas abertas à nossa frente e senti meu coração batendo mais rápido. Uma figura pequena trajando vestes verde oliva estava de pé sobre um pedestal e conduzia os alunos para dentro do grande salão, ao nosso redor, os estudantes atravessavam o limiar e se distribuíam entre as quatro grandes mesas.
— Olá, Professor Flitwick — Cho me puxou para perto do homem e me apresentou — Esta é Lefebvre, é uma quintanista transferida de Castelobruxo.
— Ora, que prazer conhecê-la, senhorita Lefebvre! Em que posso lhe ser útil? — o homenzinho disse esbanjando simpatia e eu não pude deixar de sorrir.
— Eu gostaria de saber se devo me juntar aos primeiranistas para a cerimônia de seleção das casas — falei receosa e o professor apertou os olhos por trás dos óculos.
— Ah, não, não se preocupe. Já estamos sabendo da sua chegada! Falarei com o Professor Dumbledore a esse respeito — ele respondeu enquanto procurava a varinha nas vestes, quando achou, apontou-a para mim — Permuto vestis!
Não somente eu, mas todos os alunos que estavam por perto viram minhas roupas se transformarem diante dos próprios olhos. Era como se o tecido antigo se desintegrasse e se refizesse em um material de qualidade muito superior. Meias finas e pretas subiram até minha cintura; uma saia lisa da mesma cor foi ajustada ao meu corpo, deixando boa parte das minhas pernas à mostra. Se não fossem pelas meias, estaria morrendo de vergonha por ter pernas tão compridas e, finalmente, uma camisa de manga longa branca completava o conjunto por baixo de um robe preto.
— Para que a senhorita não se sinta deslocada durante o jantar — o professor piscou um dos olhos e se dirigiu às meninas — Senhoritas Chang e Houston, por gentileza, façam companhia à senhorita Lefebvre na mesa da Corvinal e depois levem-na para a saleta à direita do salão, cuidaremos da sua seleção após o jantar. Agora andem, estão atrapalhando o fluxo dos alunos!
Quando finalmente entramos no Salão Principal senti meus olhos marejados. Ele era ainda mais bonito do que eu imaginava. Uma porção de velas acesas realmente flutuavam por todo o ambiente, o teto acima das nossas cabeças simulava mesmo a noite linda que fazia do lado de fora do castelo. Na parede ao fundo do salão, atrás da enorme mesa de professores, quatro majestosos vitrais se erguiam com as cores, os brasões e os animais símbolo de cada uma das casas. Junto à mesa dos professores, também sobre um palanque de madeira, havia um atril dourado com a forma de uma coruja e imaginei que era ali que os diretores e diretoras de Hogwarts se dirigiam aos alunos há tantos anos. Dispostas pelo salão, as quatro grandes mesas dos estudantes estavam organizadas na mesma ordem dos vitrais. Da esquerda para a direita, eram: Sonserina, Corvinal, Grifinória e Lufa-Lufa.
Sentei-me ao lado de Wendy, Cho contornou a mesa para se sentar à nossa frente, virada de costas para as mesas da Grifinória e Lufa-Lufa. Agora o salão começava a encher e percebi que a mesa dos professores também. Tentava reconhecê-los, mas não sabia dizer quem era quem, pois, embora suas aparências fossem muito próximas à idealização que eu já conhecia em outra realidade, era engraçado perceber que, pessoalmente, eles eram diferentes. Cho era um ótimo exemplo, ela era completamente diferente da referência que eu tinha, mas ainda era muito bonita. Espero que Cedrico ainda não a tenha notado, do contrário, eu teria que me esforçar muito para chamar sua atenção.
Ansiosa para saber como ele seria, comecei a procurar na mesa da Lufa-Lufa. Tudo o que eu sabia até então era que ele era um jovem atraente, alto e de cabelos castanhos claros, mas seria difícil achá-lo assim, eu já sabia que tinha que esquecer a referência do Robert Pattinson. Enquanto vasculhava a mesa por inteiro, cruzei o olhar com um grifinório e estremeci quando percebi quem era. Por trás dos óculos redondos havia olhos muito claros, mesmo à distância, eram assustadoramente verdes. Na sua testa, descendo pela lateral da cabeça, brilhava uma cicatriz prateada. Não como eu imaginara, não como a referência. Aquela cicatriz era realmente impressionante. Pegava a testa inteira dele, atravessava uma das sobrancelhas e quase chegava à pálpebra de seu olho direito, era mesmo como um raio no meio de uma tempestade.
— Cho, você mal se sentou e Harry já está olhando para cá! — Wendy comentou soltando risinhos e olhou pra mim, provocativa — Cho e Harry Potter tem um relacionamento mal resolvido, .
— Shiu, Wendy, não diga bobagens — uma garota alta, negra e de tranças longas se sentou ao lado de Cho e a abraçou de lado — Finalmente encontrei vocês, vou matar o Corner por roubar o meu lugar na carruagem! Quem é essa? — perguntou olhando diretamente para mim.
— Mari, essa é a , ela veio transferida de outra escola. , essa é Marieta Edgecombe — Cho nos apresentou, agora ela parecia um pouco mais cabisbaixa depois do comentário de Wendy.
— Aluna transferida? — perguntou Marieta e eu assenti — Bom, boa sorte! Ainda bem que você decidiu vir esse ano, teria sido caótico se adaptar no ano passado.
— Ah é? Por quê? — perguntei tentando fazer com que o assunto continuasse fluindo, mas sem realmente prestar muita atenção, afinal, a mesa dos lufanos era muito mais interessante.
Muitos garotos altos, alguns bonitos, infelizmente nenhum com os cabelos castanhos claros.
— Bem, o Torneio Tribruxo atrapalhou bastante o andamento das aulas, acho que teria sido muito ruim pra você dar conta dos estudos... Se bem que esse ano nós temos os N.O.M.s, mas imagino que você devia ter alguma coisa semelhante a isso na sua outra escola, aliás, de onde você veio? — Marieta tagarelava sem parar e o meu cérebro já tinha parado de processar naquela primeira informação. Como assim Torneio Tribruxo ano passado?
— Desculpe, o que você disse sobre o torneio?
— Você não esteve aqui o ano passado com a Beauxbatons? — não consegui responder ainda tentando processar o que aquela garota tinha acabado de falar — Achei que você fosse francesa por causa do sobrenome.
— E-eu sou, quer dizer, meu pai é... a minha mãe é brasileira. Você disse que o Torneio Tribruxo foi no ano passado?
— Sim, foi um horror! — Wendy disse e Cho levou as mãos ao rosto, apoiando os cotovelos sobre a superfície da mesa — Quase não tivemos aulas, a escola estava entupida de gente e, bom, o final foi bem trágico — Wendy apontou para Cho que ainda estava com o rosto coberto e precisei fazer leitura labial para entender as próximas palavras: — O namorado dela morreu.
Neste momento, as portas do Salão Principal foram novamente abertas e uma longa fila de garotos assustados entrou, aquela à frente deles deveria ser a Professora McGonagall, que vinha trazendo o banquinho em que repousava o velho chapéu de bruxo, cheio de remendos e cerzidos, com um largo rasgo na copa esfiapada. Aos poucos as vozes no Salão Principal foram cessando e enquanto os calouros se enfileiravam diante das mesas dos professores e de frente para os demais estudantes, eu pensava a merda toda em que eu havia me metido. Como assim ele estava morto? Eu não errei o ano, eu tenho certeza de ter colocado 1994 no roteiro. Por que não deu certo?
Eu havia viajado para uma realidade em que o Cedrico já não existia. Estar aqui já não fazia mais sentido.
E o pior de tudo: Se Cedrico estava mesmo morto, Voldemort estava de volta.
Agora a Professora McGonagall colocava cuidadosamente o banquinho diante dos pequenos estudantes. A escola inteira aguardava, prendendo a respiração. Eu, por outro lado, agora pensava que todo aquele trabalho havia sido em vão. Eu sentia que meu coração estava se despedaçando em milhões de pequenos cacos. Finalmente, o rasgo junto à copa do Chapéu Seletor escancarou-se como uma boca, e então ele começou a cantoria.
(...)
Mas antes que a escolha eu venha a fazer,
Ouça mais uma história que eu tenho a dizer.
As terras são longínquas, mas a outra parte aqui está.
Tudo se encaixará em seu devido lugar.
Entre milhões de átomos dispersos pelo ar,
As pontas dos fios finalmente hão de se encontrar.
A conexão fará tudo se reerguer,
E seu lugar em Hogwarts há de obter.
(...)
— Por Merlim, ninguém aguenta mais! — Cho revirava os olhos enquanto o chapéu entoava a canção.
— Esse ano tá longo — Marieta murmurou.
(...)
Eu divido vocês entre as casas
Pois esta é a minha razão de ser
Mas este ano farei mais do que escolher
Ouçam atentamente a minha canção:
Embora condenado a separá-los
Preocupa-me o erro de sempre assim agir
Preciso cumprir a obrigação, sei
Preciso quarteá-los a cada ano
Mas questiono se selecionar
Não poderá trazer o fim que receio.
Ah, conheço os perigos, os sinais
Mostra-nos a história que tudo lembra,
Pois nossa Hogwarts corre perigo
Que vem de inimigos externos, mortais
E precisamos nos unir em seu seio
Ou ruiremos de dentro para fora
Avisei a todos, preveni a todos...
Daremos agora início à seleção.
O Chapéu voltou a se calar e houve alguns aplausos, muitas pessoas murmuravam e cochichavam por todo o Salão. Foi quando percebi o que todos estavam comentando e me levantei de repente, eu pretendia ir embora imediatamente. Todos ao redor me olharam, curiosos, só voltei a me sentar quando percebi o olhar mortal que a Professora McGonagall lançava a mim por trás dos óculos.
— Que cançãozinha estranha — Antônio comentou ao lado de Wendy.
— Nunca tinha ouvido o Chapéu Seletor dando conselhos — comentou a garota de cabelos ruivos — Parecia até uma profecia.
— Acham que é um aviso sobre Você-Sabe-Quem? — sussurrou Cho, para que somente nós ouvíssemos.
A menção daquele apelido me deu calafrios e meus olhos automaticamente se voltaram ao grifinório que nos observava há alguns minutos. Ele parecia tenso, cochichando com os amigos.
— Se for, aquela parte sobre conexão e lugar em Hogwarts é bem estranha, não acham?
— Potter é um mentiroso, vocês deviam parar de acreditar em qualquer coisa que esse lunático diz — Terêncio comentou ao lado de Marieta e voltamos a ficar em silêncio depois de mais um dos olhares mortais que a Professora lançou a nós.
Eu não sabia o que fazer a partir daqui. Baixei a cabeça e discretamente deixei algumas lágrimas rolarem pelas bochechas, quem eu vim salvar já não podia mais ser salvo. Quem eu vim impedir, já começava a ascensão. Aterrorizada com a realidade da minha situação, decidi que por hora estava tudo bem e que eu não precisava me desesperar. Isso não ia durar muito. Pela manhã, eu tenho certeza de que eu vou acordar no escuro do meu quarto e enquanto isso não acontecia, eu poderia aproveitar aquele sonho o máximo que eu pudesse.
A seleção das casas se arrastou por alguns minutos e quando terminou, deu espaço para que Dumbledore se posicionasse ao atril e se dirigisse aos alunos.
— Aos nossos recém-chegados – sua voz ressoou por todos os cantos do salão, ele mantinha os braços abertos e um enorme sorriso nos lábios — Sejam bem-vindos! Aos nossos antigos alunos: um bom regresso! Há um momento para discursos, mas ainda não é este: atacar!
Houve uma explosão de aplausos enquanto Dumbledore se sentava elegantemente e observei aquele senhor atirar as longas barbas por cima do ombro para mantê-las longe do prato. A comida surgiu mesmo do nada e tentei disfarçar o choque com toda a magia que acontecia ao meu redor. Percebi que estava com muita fome e servi meu prato com batatas de todos os tipos: assada, cozida, frita e amassada. Aproveitei para pegar um bom pedaço de torta de abóbora com um pouco de cenoura, ervilha e costeletas de porco.
— Caramba, parece até que você atravessou o lago negro a nado — Antônio falou quando me viu encher o cálice com suco de abóbora.
Surpresa com aquele comentário vi que os meus novos amigos observavam o tamanho do meu prato em choque, dei um sorriso sem graça e comecei a comer enquanto prestava atenção nas conversas. Houve uma movimentação na mesa dos professores e vi quando o Professor Flitwick se aproximou de Dumbledore e cochichou algo no ouvido dele, seus olhos por trás dos oclinhos meia-lua rapidamente recaíram sobre mim e eu não tive coragem de continuar encarando.
As mesas estavam animadas, apesar da comida, o burburinho era grande. Atrás de mim, na mesa da Sonserina, um grupo de garotos davam risadas tão altas que chegava a ser irritante. Enquanto ouvia Terêncio falar sobre os passeios que fez em família durante as férias, observei uma grande quantidade de cabeças ruivas na mesa da Grifinória e imaginei que aqueles deviam ser os Weasleys. Passei o restante do jantar evitando olhar para a mesa da
Lufa-Lufa e agora eu percebia o luto e a ausência de Cedrico. Quando os alunos terminaram de comer, Dumbledore se levantou novamente e toda a atenção se voltou ao diretor.
— Bem, agora que estamos todos digerindo mais um magnífico banquete, peço alguns minutos de sua atenção para os habituais avisos de início de trimestre – percebi agora que a maioria dos professores olhavam curiosos para mim — Os alunos do primeiro ano precisam saber que o acesso à floresta em nossa propriedade é proibido aos estudantes... e a esta altura alguns dos nossos antigos estudantes já devem ter aprendido isso também. O Sr. Filch, o zelador, me pediu, segundo ele pela quadricentésima sexagésima segunda vez, para lembrar a todos que não é permitido praticar magia nos corredores durante os intervalos das aulas, nem fazer outras tantas coisas, que podem ser lidas na extensa lista afixada à porta da sala dele — não sei o porquê, mas comecei a achar tudo aquilo muito engraçado e precisei ter muito autocontrole para não gargalhar, era inacreditável que eu estava ouvindo aquele discurso todo pessoalmente, ele continuou:
— Houve duas mudanças em nosso corpo docente este ano. Temos o grande prazer de dar as boas-vindas à Professora Grubbly-Plank, que retomará a direção das aulas de Trato das Criaturas Mágicas...
— Ainda bem! Finalmente vamos ter um professor decente — Miguel comentou e Wendy lhe deu um tapinha no braço — Nada contra o Hagrid, mas todos sabemos que ele não é um bom professor.
— ... Estamos também encantados em apresentar a Professora Umbridge, nossa nova responsável pela Defesa Contra as Artes das Trevas.
— Ô carguinho pra ser amaldiçoado, o que vocês acham que vai acontecer com ela até o final do ano? — Marieta comentou e os colegas riram enquanto aplaudimos pouco entusiasmados as novas professoras de Hogwarts.
— Os testes para entrar para os times de quadribol das casas serão realizados... — Dumbledore foi interrompido pela nova professora que se levantou e se colocou ao lado dele no atril. Ela não pareceu se abalar com o olhar indagador que ele lançava e quando ela pigarreou ficou bastante claro que pretendia falar. Dumbledore cedeu o espaço e elegantemente se sentou, atento ao que aquela mulher começava a dizer. Já o corpo docente parecia bem surpreso com a audácia da nova professora. Muitos estudantes seguravam os risos, incrédulos. Era óbvio que essa mulher não conhecia os hábitos de Hogwarts.
— Obrigada, diretor, — disse a professora e no mesmo instante senti um arrepio percorrer meu corpo da cabeça aos pés — pelas bondosas palavras de boas-vindas.
A voz aguda e infantil fez com que o jantar que eu havia acabado de comer se revirasse em meu estômago. Por algum motivo eu sabia que aquilo não era boa coisa e tentei buscar lembranças nos filmes e nos livros, mas não conseguia me lembrar de nada para além de O Cálice de Fogo e aquilo me assustou. Tudo naquela mulher parecia odioso, desde a voz tola ao casaquinho peludo cor-de-rosa.
— Bem, devo dizer que é um prazer voltar a Hogwarts! E ver rostinhos tão felizes voltados para mim! — Ninguém no Salão Principal parecia estar sorrindo — Estou muito ansiosa para conhecer todos vocês, e tenho certeza de que seremos bons amigos!
Pude ver as cabeças se mexendo em todo o salão, os estudantes estavam segurando os risos. Cho arregalou os olhos para as amigas e Wendy soltou um comentário ácido sobre a roupa da professora.
— O ministro da Magia sempre considerou a educação dos jovens bruxos de vital... — agora a fala era mais séria, Umbridge havia mudado a postura e tornou-se mais monótona. Tão monótona que sem perceber parei de prestar atenção àquilo que ela estava dizendo para observar o crepitar das velas que flutuavam sobre nossas cabeças — ... Vamos caminhar para a frente, então, para uma nova era de abertura, eficiência e responsabilidade, visando a preservar o que deve ser preservado, aperfeiçoando o que precisa ser aperfeiçoado e cortando, sempre que encontrarmos, práticas que devem ser proibidas.
— Discursinho estranho... — Wendy comentou enquanto a professora voltava a se sentar e, puxados por Dumbledore, o salão inteiro a aplaudiu — “o progresso pelo progresso não deve ser estimulado” que tipo de fala é essa? Essa mulher parece muito conservadora.
— Eu só queria poder ter aulas de DCAT com alguém que não fosse doido ou um lobisomem — Marieta lamentou e os colegas riram.
— Muito obrigado, Professora Umbridge, foi um discurso muito esclarecedor, agora, como eu ia dizendo, os testes de quadribol serão realizados...
— Ufa, esse ano tem quadribol! — comentou Wendy lançando as mãos para cima em louvação.
— Não vejo a hora de poder voltar a jogar! — Cho comentou parecendo pela primeira vez verdadeiramente feliz desde que nos encontramos na carruagem — Você joga quadribol, ? Posso te chamar assim?
— Claro que pode! — fui pega de surpresa e fiquei um pouco sem graça — Eu... bom, não sou tão boa assim usando uma vassoura.
— Ah, que pena... Tenho certeza de que o Davies vai querer um novo batedor para essa temporada depois do vexame que o Edwards nos fez passar no ano retrasado.
Antes que Dumbledore tivesse dispensado os alunos, senti uma presença atrás de mim e ao julgar pelo olhar dos colegas ao meu redor, senti que eu deveria me virar. A Professora McGonagall era muito mais alta do que parecia, ela me encarava séria e apesar do estardalhaço que os alunos faziam ao sair do Salão Principal, pude ouvir perfeitamente quando ela disse:
— Senhorita Lefebvre, me acompanhe, por favor.
— Tchau, ! Espero poder rever você no salão comunal da Corvinal, mas, senão, nos vemos por aí — Wendy sorriu e todos os outros na mesa acenaram quando me levantei e segui a bruxa até a saleta.
Quando a porta se fechou atrás de mim, percebi que apesar de um pouco apertada, lá já estavam alguns dos professores que vi na mesa do corpo docente durante o jantar e sentado em uma das três poltronas de couro estava o diretor Dumbledore.
Ao lado da lareira acesa estavam o Professor Flitwick e uma outra senhora de aparência simpática e redonda; no canto direito da sala, de pé ao lado de uma estante, estava um homem em vestes negras que contrastavam com seu rosto pálido e fino, ele carregava uma expressão de poucos amigos. A Professora McGonagall me indicou uma das poltronas, de frente para Dumbledore e ao me sentar, vi que o Chapéu Seletor estava sobre uma mesinha redonda ao nosso lado, imóvel.
— Muito bem. Fez uma boa viagem, senhorita Lefebvre? — não sei dizer se era a ansiedade me sabotando ou se ele realmente havia dado ênfase à palavra “viagem”. Decididamente, essa sim seria a hora de começar a contar mentiras.
— F-fiz, senhor — pigarreei tentando adicionar mais firmeza na voz — Imagino que o senhor tenha recebido minha carta.
— Ah, eu recebi, sim — ele sorriu, agora parecendo mais curioso do que antes e, enquanto ele falava, todos prestavam muita atenção em mim — Freya Lefebvre, seus pais são Ricardo Matos Lefebvre e Elise Loureiro Lefebvre. Você nasceu em 25 de novembro de 1979 no Brasil, começou a frequentar a Castelobruxo aos onze anos... Poderia me lembrar o que aconteceu para que você fosse transferida para Hogwarts?
— Meus pais estão se divorciando e, durante esse processo, minha mãe trocou de emprego e foi aceita em uma multinacional em Londres. Meu pai voltou a morar perto dos meus avós, na França, e eu precisei escolher entre Hogwarts e Beauxbatons — falei muito rápido, quase sem respirar.
— Certo... Pomona, esta é a aluna que eu tinha comentado com você, o pedido de transferência dela chegou há três semanas junto com uma impressionante carta de recomendação da professora de Herbologia em Castelobruxo.
— É um prazer conhecê-la, senhorita Lefebvre! Estou ansiosa para nossas aulas — a bruxa simpática disse sorrindo largamente ao lado do Professor Flitwick.
— Bem, está na hora de fazermos a seleção para a sua nova casa, imagino que em Castelobruxo exista um sistema parecido com este — imediatamente a Professora McGonagall pegou o chapéu e o colocou em minha cabeça — Como você deve imaginar, cada um dos professores aqui presentes são diretores das casas de Hogwarts. Você será sorteada para Sonserina, Corvinal, Grifinória ou Lufa-Lufa. Os cinco bruxos me encaravam o tempo todo em expectativa, foi então que finalmente senti o chapéu se mexer e pela vigésima vez naquele curto espaço de tempo, tive medo. Muito medo, mas eu sabia que acabaria indo para a Lufa-Lufa.
— Ora, uma mentirosa — o chapéu falou tão baixinho que torci para que somente eu o tenha escutado — LOUREIRO MATOS — ele pareceu gritar o meu nome verdadeiro em minha mente — Sabe que toda a sua existência me faz pensar em todos os grandes feitos que você poderá realizar! Não me lembro de ter encontrado alguém que veio de tão longe como você... a ousadia para a transgressão corre em suas veias, posso sentir — respirei fundo e encarei a todos na sala, mas eles não pareciam escutar aquilo que o chapéu me dizia — Apesar disso você é extremamente habilidosa e inteligente, posso ver isso em você, a Sonserina a ajudaria a alcançar todos os seus maiores sonhos — ele continuou examinando, se mexendo, murmurando — Sua coragem a torna diferente dos demais e sua bondade também a faz especial. Me diga, Grifinória ou Corvinal? — ele sussurra a última parte e arregalo os olhos. Sem menções à Lufa-Lufa?
Passaram-se alguns segundos em que o tempo pareceu ter parado e soltei uma exclamação de puro choque quando o chapéu finalmente gritou e sua voz ecoou pelas paredes da saleta:
— Que seja então: GRIFINÓRIA.
Enquanto os professores me congratulavam, vi a diretora da Grifinória, Professora McGonagall, dando instruções a um dos quadros da parede. Depois de se apresentarem e me desejarem um bom ano em Hogwarts, os professores Flitwick, Sprout e Snape saíram da saleta me deixando apenas com Dumbledore e Minerva.
— Senhorita Lefebvre, é uma honra tê-la conosco na Grifinória — a professora se sentou junto a nós na poltrona que restava — Como diretora, é meu dever informá-la sobre as expectativas da casa. É essencial que os alunos mantenham um bom desempenho acadêmico e estejam dispostos a ajudar os colegas com dificuldades. Além disso, os grifinórios devem comportar-se de maneira que honre a reputação da casa, tanto dentro quanto fora de Hogwarts. Alguma pergunta?
— Não, professora.
— Bem, quanto às regras gerais da escola, é essencial o respeito aos professores, funcionários e colegas de turma. Você deverá cumprir os horários estabelecidos para as aulas, confraternizações e refeições — percebi que o olhar da bruxa se dirigia à porta da saleta com frequência — Quebrar as regras resulta na redução de pontos da casa, prejudicando a posição da Grifinória na competição pela Taça das Casas. Você deve saber, minha jovem, que eu não gosto de perder.
— Você verá, senhorita Lefebvre, que não há ninguém melhor do que Minerva para conduzir os alunos ao sucesso — Dumbledore piscou um dos olhos e, sorrindo, retirou das vestes uma caixinha listrada — Você aceita um feijãozinho de todos os sabores?
— Não, obrigada — sorri sem graça enquanto ele abria a embalagem e levava um doce à boca, caramba, eu só queria poder ficar sozinha — Posso me retirar agora? — no mesmo instante ouvimos alguém bater na porta da saleta e a professora prontamente se levantou para abri-la.
— Ah! Bem na hora. Entre, por favor, Srta. Granger — a Professora abriu espaço para que uma garota de cabelos abundantes entrasse, seu olhar rapidamente recaiu sobre mim e eu ofeguei sem conseguir acreditar — Gostaria de apresentá-la à nova adição da casa Grifinória, Srta. Lefebvre, quintanista transferida de Castelobruxo, , esta é Hermione Granger, uma das melhores alunas de Hogwarts e monitora-chefe da Grifinória.
— Prazer em conhecê-la — a garota sorriu e eu retribui, seus dentes eram bastante alinhados e brancos, percebi que os dois da frente eram um pouco maiores que os demais.
— Srta. Granger, poderia fazer o favor de mostrar para a Srta. Lefebvre o caminho até os aposentos da Grifinória? — Dumbledore pediu se levantando e ajeitando a barba longa à frente das vestes — Tenho alguns ajustes de início de semestre que gostaria de discutir com a Professora Minerva.
— É claro, vamos? — a garota sorriu simpática e eu rapidamente me levantei.
— Ah! Um momento, Srta. Lefebvre, antes que eu me esqueça — Dumbledore fez um rápido aceno de varinha e mágicamente o brasão e as cores da Grifinória agora faziam parte do meu novo uniforme escolar — Assim está melhor. Desejo a você um bom início de ano.
— A nós todos — falei sorrindo e, pela primeira vez desde que cheguei ali, fiquei feliz.
Quando percebi que estava submersa, eu fiquei desesperada. Àquela altura meus pulmões já queimavam e respirar era urgente. Em pânico e sem entender o que estava acontecendo, mexi as pernas e os braços e percebi que as extremidades do meu corpo estavam dormentes devido a baixa temperatura da água. A falta de luz natural dificultava saber qual direção eu deveria seguir e a água turva transformava a visão das coisas ao meu redor. Meus braços se moviam de maneira descoordenada e quanto mais eu nadava, mas eu sentia a pressão da água em minha cabeça fazendo com que ela doesse. Por instinto e completamente desorientada, respirei, e uma grande quantidade de água invadiu meu peito. Eu não sabia onde era a superfície. Arregalei os olhos de susto quando involuntariamente respirei de novo, agora, a resistência da água começava a tornar qualquer movimento mais difícil, meus braços estavam pesados e minhas pernas já não se mexiam.
Meu corpo estava desistindo e tudo havia ficado escuro.
Quando recobrei a consciência, eu estava flutuando. O céu acima de mim ainda estava claro, mas os sinais de que a noite estava chegando já eram perceptíveis. Minha respiração era tão forte que eu sentia o meu peito expandir ao máximo da capacidade para receber todo o ar do mundo. Em pânico e ainda tentando entender o que havia acontecido, eu tentava manter a calma, com medo de me afogar novamente. Antes eu sentia a dormência apenas nas extremidades do corpo, agora, meus membros ainda não me respondiam e ainda que estivessem submersos, eu percebia o tremor percorrendo meus músculos fatigados e me desesperei com medo do frio intenso. Ao erguer a cabeça, um grito de pavor escapou pelos meus lábios quando vi a paisagem ao meu redor. Lá na outra extremidade do lago, à esquerda, uma enorme construção se erguia ao longe e ela era cheia de torres e torrinhas.
Em movimentos coordenados comecei a me dirigir às pressas para a margem mais próxima. Ali o lago já não era mais tão profundo e assim que deu pé tentei andar, mas a resistência da água me fez tropeçar e eu caí com as mãos espalmadas nos seixos, alguns deles eram afiados e acabaram rasgando e machucando minhas mãos.
Arrastei-me para fora da água até alcançar a grama seca, exausta, sentei-me com as pernas estendidas à frente e tentei assimilar, ainda em estado de choque, tudo o que havia se passado há poucos minutos. Era um sonho, só pode ser. As palmas de minhas mãos ardiam e, assustada, a água e o sangue que saíam dos pequenos cortes e escorriam pelos meus braços só confirmavam, ainda mais, que aquilo tudo era bem real.
Eu ainda ofegava. Apertava os olhos e os abria esperando poder voltar ao meu quarto, mas tudo o que eu sentia era cada vez mais o frio congelando meus ossos e fazendo meus dentes se chocarem. Ao encarar a água escura do lago se transformar em pequenas ondas próximas à margem levantei-me num pulo e me afastei o máximo que pude, em choque e aliviada que nada tivesse me acontecido enquanto eu estive lá dentro. Meus olhos estavam arregalados de pavor, eu não sabia dizer como eu ainda estava viva e me chocava saber que por um momento eu havia desistido de lutar. Mas eu não saberia dizer como cheguei à superfície e, pior, como eu estava bem.
Enquanto caminhava pelo terreno irregular a fim de me esquentar e procurar por ajuda, eu forçava a minha memória para tentar lembrar o que aconteceu, mas eu só recordava estar deitada em minha cama sentindo o cheiro de vela tomar conta do ambiente. De repente acordei aqui, no fundo do lago, O lago, com ó maiúsculo.
Finalmente eu havia encontrado uma pequena estrada. Eu estava longe do castelo, percebia agora. Apesar de conseguir vê-lo ao fundo, ainda havia uma caminhada um tanto quanto longa pela frente e eu desejava conseguir chegar aos portões antes que o frio piorasse e a noite caísse de vez. Tudo era muito impressionante, a amplitude do céu, a grama e as folhas das árvores tingidas pelo outono, o tom azulado que o castelo tinha ao anoitecer, o som distante dos animais na floresta. Era bom demais pra ser verdade.
Quando os postes de luz ao longo da estrada se acenderam, ainda que eu estivesse me sentindo como um viajante em terra estrangeira, eu sabia que por enquanto estava tudo bem. Um dos postes estava repleto de placas. As duas primeiras indicavam a mesma direção que eu seguia; nelas, liam-se respectivamente em letras góticas “Lower Hogsfield” e “Hogwarts”.
Eu consegui, eu consegui mesmo.
Não demorou muito para o vilarejo de Lower Hogsfield aparecer. Uma fumaça branca saía pela chaminé de cada uma das cabanas feitas de pedra e fui atraída pelo barulho de vozes e o crepitar de uma fogueira. Eu não via a hora de poder me esquentar e não hesitei em atravessar os muros e ir em direção ao fogo.
— Por Merlim! O que aconteceu com você?
A urgência de esquentar meu corpo era tão grande que eu mal percebi as pessoas falando comigo. Minhas roupas estavam tão pesadas e encharcadas que sequer descolavam do meu corpo.
— Ignis Anifeiliaid!
Eu podia jurar que uma coruja feita de fogo voava ao meu redor e usava as asas para projetar um vento quente sobre mim. Sem conseguir dizer nada e com a boca aberta, acompanhei aquele animal por alguns minutos, até que finalmente minhas roupas, cabelo e corpo secaram e ele se desfez em um milhão de faíscas. Percebi que as pessoas foram se juntando próximas à fogueira enquanto me olhavam e comentavam curiosas entre si.
— Você está bem? Precisa de ajuda? — a mulher que estava mais próxima a mim perguntou, os olhos maternais pareciam preocupados.
— E-eu, eu não sei — minha voz saiu em um sussurro e senti a garganta doer, devia ser o resquício do afogamento.
— Você viu quando ela chegou? Toda molhada...
— Nunca vi ninguém tão pálido em toda minha vida.
— A boca dela estava roxa!
— Você é estudante de Hogwarts? — a mulher me perguntou docemente e eu tentei desviar a atenção dos cochichos, reparei que ela usava uma combinação de roupas e cores que eu nunca vi na vida.
— S-sim, quer di-dizer, não — pare de gaguejar, — Sim, eu sou. Eu caí no lago, obrigada por secar minhas roupas, foi muito gentil.
— Santo Merlim! Você estava voando? — um homem perguntou, também parecendo preocupado e eu assenti aproveitando a suposição e elaborando uma história plausível na minha cabeça, ele puxou o relógio de bolso e perguntou em seguida: — Você não veio de trem? Vejo aqui que os alunos devem ter acabado de desembarcar na estação de Hogsmeade.
— Eu perdi o trem.
— Minha Deusa! Deve ter sido uma viagem e tanto, venha, vamos levá-la até a escola — a mulher me puxou até uma carroceria de madeira — Senhor Murasva, por gentileza, gostaria de nos acompanhar? Sabe que não gosto de andar sozinha por essas terras à noite.
— Onde está sua vassoura, senhorita...?
— Lefebvre, Lefebvre — respondi o homem tentando ganhar um pouco mais de tempo para elaborar a mentira — Ela caiu comigo dentro do lago, não a encontrei.
— Uma pena...
O caminho até Hogwarts foi silencioso. Deonro Murasva conduzia o cavalo enquanto a mulher, que descobri se chamar Myssa Onai, se juntou a mim na carroceria. Ela era uma bruxa de um pouco mais de quarenta anos de idade. Seus olhos eram esverdeados, a pele oliva brilhava de suor, seus cabelos cacheados estavam presos com um lenço branco e em seus lábios permaneceu um sorriso maternal até que chegássemos aos portões de Hogwarts. Para minha surpresa, chegamos no mesmo instante que os demais alunos, que vinham aos montes em carruagens que se moviam sozinhas. Uma das carruagens parou antes de cruzar os portões, Myssa Onai saltou da carroceria e me puxou junto com ela.
— Ora, veja só, estes testrálios sabem que você deve ser conduzida até a escola, são seres muito espertos mesmo.
— Onde estão? — perguntei curiosa enquanto olhava cada parte da estrutura de metal, mas as carruagens realmente se moviam sozinhas.
— Espero que você nunca possa vê-los, querida. — Myssa sorriu antes de abrir a porta da carruagem para que eu entrasse — Tenha um bom ano e tome mais cuidado nas próximas vezes em que resolver se aventurar.
Quando a porta da carruagem se fechou e o sacolejar do caminho de pedras começou, percebi que eu não estava sozinha.
Curiosos, um conjunto de alunos me observavam com os olhos arregalados e me senti intimidada assim que percebi o tom de voz na pergunta:
— Quem é você?!
— Oi — senti minhas bochechas queimarem quando minha voz saiu baixa e esganiçada — Me chamo .
— Você é de qual casa? — o garoto sentado do outro lado da carruagem perguntou reparando que eu não usava o uniforme, seu cabelo era loiro amarelado e os olhos eram azuis assim como a gravata em seu pescoço.
— Sou aluna nova, transferida — como se fosse possível, vi a curiosidade aumentar nos cinco pares de olhos que me encaravam — Ainda não fui selecionada para nenhuma casa.
O sangue congelou em minhas veias. As coisas estavam acontecendo tão rapidamente que eu nem sequer tive tempo para planejar a minha chegada. No roteiro, eu lembro de colocar que a minha casa seria a Lufa-Lufa para que ficasse mais fácil de me aproximar do Cedrico, mas eu não pensei que precisasse passar pela seleção das casas. Na verdade, eu nem planejei isso.
Mais uma vez o pânico começava a tomar conta dos meus pensamentos e eu desejava que nada fosse muito difícil quando chegássemos à escola.
— E de onde você veio? — não sabia dizer se era o interrogatório ou o balançar estrondoso da carruagem que estava me deixando enjoada.
— Castelobruxo, no Brasil — essa parte era fácil, sinto que eu poderia inventar qualquer informação e não faria a menor diferença para eles. Castelobruxo parecia um lugar muito distante daquela realidade.
— Que demais, minha mãe estudou lá! — a garota ruiva e de cabelos emaranhados ao meu lado quase gritou de emoção e eu senti meu plano indo por água abaixo — Mas ela morreu quando eu era pequena.
— Minha nossa, sinto muito — falei sem deixar o meu alívio transparecer na voz, mas eu realmente fiquei comovida por ela ser órfã.
— Tudo bem, já faz tempo — ela sorriu e estendeu a mão direita — Wendy Houston, aqui somos todos corvinos. Da Corvinal, sabe?
— Você vai cursar qual ano? — um outro garoto me perguntou, esse tinha os cabelos castanhos e apesar de todos estarem curiosos, percebi que um par de olhos já não me encarava mais. A garota de cabelos longos e pretos à minha frente agora encarava a vidraça da carruagem parecendo um tanto quanto retraída e triste.
— Quinto ano — respondi, ainda prestando atenção na garota.
— Nunca vi ninguém maior de onze anos sendo selecionado para alguma casa, vai ser engraçado — um garoto de cabelos longos, sentado ao lado de Wendy comentou e os outros rapazes riram.
De repente fiquei nervosa e senti que uma crise de ansiedade finalmente estava encontrando caminho em meus pensamentos. Eles continuaram comentando uma série de coisas e eu só conseguia pensar na atenção que eu não desejava receber, uma estranha usando o chapéu seletor aos dezesseis anos de idade. Senti que estava afogando novamente quando uma mão segurou a minha.
— Respire — a garota à minha frente sorria solidária e só então percebi os traços asiáticos em seu rosto — Tenho certeza de que não farão a sua seleção na frente de todos, essa cerimônia é só para primeiranistas.
— Mas seria engraçado!
— Cale a boca, Miguel! Ela está nervosa!
— Meu nome é Cho, a Wendy já se apresentou, mas esses babacas são Miguel Corner, Terêncio Boot e Antônio Goldstein — ela apresentou cada um dos garotos e eu quase abri a boca em choque
— Espero que tenha se acalmado, porque nós chegamos.
Assim que desci da carruagem junto às garotas, senti mais do que meia dúzia de pares me olhando. Provavelmente porque todos estavam trajados com os uniformes escolares exceto eu e automaticamente já me senti uma estranha no ninho. As pessoas cochichavam e davam risinhos, um grupo me encarava sem nenhum pudor. Era o primeiro dia do Ensino Médio de novo, que pesadelo.
Ainda não conseguia acreditar que eu estava ao lado de Cho Chang.
Cortei a atenção e os burburinhos para encarar o castelo que se impunha majestoso à minha frente. Atravessei o pátio de pedras com Cho e Wendy até a grande porta de madeira, elas disseram que me levariam ao Professor Flitwick, diretor da Corvinal para que eu fosse orientada. Segui os passos delas tentando não me distrair com o interior do castelo, eram tantas informações que eu mal podia assimilar que aquilo realmente estava acontecendo e, se ainda fosse um sonho, eu desejava nunca mais acordar. Assim que entramos demos de cara com duas grandes escadarias, uma de cada lado do saguão. Na parede à nossa frente, um grande brasão de Hogwarts em ferro fundido estava pendurado entre duas piras acesas e ornamentadas por quatro pequenos bustos de javalis alados. Cho percebeu que eu estava distraída e agarrou meu braço para continuarmos o caminho. Subimos uma das escadarias, e ambas levavam para o mesmo patamar superior, atravessamos mais uma porta de madeira e chegamos ao salão de recepção. Quase tive um treco quando vi as ampulhetas das casas à minha esquerda, elas eram mesmo enormes, tinham o dobro do meu tamanho. À direita, um grande corredor iluminado por piras e lustres, decorado com estátuas e quadros, levava à grande escadaria.
Atravessamos mais um portal em ogiva e agora estávamos na antessala do Salão Principal, podia vê-lo se estender através das portas abertas à nossa frente e senti meu coração batendo mais rápido. Uma figura pequena trajando vestes verde oliva estava de pé sobre um pedestal e conduzia os alunos para dentro do grande salão, ao nosso redor, os estudantes atravessavam o limiar e se distribuíam entre as quatro grandes mesas.
— Olá, Professor Flitwick — Cho me puxou para perto do homem e me apresentou — Esta é Lefebvre, é uma quintanista transferida de Castelobruxo.
— Ora, que prazer conhecê-la, senhorita Lefebvre! Em que posso lhe ser útil? — o homenzinho disse esbanjando simpatia e eu não pude deixar de sorrir.
— Eu gostaria de saber se devo me juntar aos primeiranistas para a cerimônia de seleção das casas — falei receosa e o professor apertou os olhos por trás dos óculos.
— Ah, não, não se preocupe. Já estamos sabendo da sua chegada! Falarei com o Professor Dumbledore a esse respeito — ele respondeu enquanto procurava a varinha nas vestes, quando achou, apontou-a para mim — Permuto vestis!
Não somente eu, mas todos os alunos que estavam por perto viram minhas roupas se transformarem diante dos próprios olhos. Era como se o tecido antigo se desintegrasse e se refizesse em um material de qualidade muito superior. Meias finas e pretas subiram até minha cintura; uma saia lisa da mesma cor foi ajustada ao meu corpo, deixando boa parte das minhas pernas à mostra. Se não fossem pelas meias, estaria morrendo de vergonha por ter pernas tão compridas e, finalmente, uma camisa de manga longa branca completava o conjunto por baixo de um robe preto.
— Para que a senhorita não se sinta deslocada durante o jantar — o professor piscou um dos olhos e se dirigiu às meninas — Senhoritas Chang e Houston, por gentileza, façam companhia à senhorita Lefebvre na mesa da Corvinal e depois levem-na para a saleta à direita do salão, cuidaremos da sua seleção após o jantar. Agora andem, estão atrapalhando o fluxo dos alunos!
Quando finalmente entramos no Salão Principal senti meus olhos marejados. Ele era ainda mais bonito do que eu imaginava. Uma porção de velas acesas realmente flutuavam por todo o ambiente, o teto acima das nossas cabeças simulava mesmo a noite linda que fazia do lado de fora do castelo. Na parede ao fundo do salão, atrás da enorme mesa de professores, quatro majestosos vitrais se erguiam com as cores, os brasões e os animais símbolo de cada uma das casas. Junto à mesa dos professores, também sobre um palanque de madeira, havia um atril dourado com a forma de uma coruja e imaginei que era ali que os diretores e diretoras de Hogwarts se dirigiam aos alunos há tantos anos. Dispostas pelo salão, as quatro grandes mesas dos estudantes estavam organizadas na mesma ordem dos vitrais. Da esquerda para a direita, eram: Sonserina, Corvinal, Grifinória e Lufa-Lufa.
Sentei-me ao lado de Wendy, Cho contornou a mesa para se sentar à nossa frente, virada de costas para as mesas da Grifinória e Lufa-Lufa. Agora o salão começava a encher e percebi que a mesa dos professores também. Tentava reconhecê-los, mas não sabia dizer quem era quem, pois, embora suas aparências fossem muito próximas à idealização que eu já conhecia em outra realidade, era engraçado perceber que, pessoalmente, eles eram diferentes. Cho era um ótimo exemplo, ela era completamente diferente da referência que eu tinha, mas ainda era muito bonita. Espero que Cedrico ainda não a tenha notado, do contrário, eu teria que me esforçar muito para chamar sua atenção.
Ansiosa para saber como ele seria, comecei a procurar na mesa da Lufa-Lufa. Tudo o que eu sabia até então era que ele era um jovem atraente, alto e de cabelos castanhos claros, mas seria difícil achá-lo assim, eu já sabia que tinha que esquecer a referência do Robert Pattinson. Enquanto vasculhava a mesa por inteiro, cruzei o olhar com um grifinório e estremeci quando percebi quem era. Por trás dos óculos redondos havia olhos muito claros, mesmo à distância, eram assustadoramente verdes. Na sua testa, descendo pela lateral da cabeça, brilhava uma cicatriz prateada. Não como eu imaginara, não como a referência. Aquela cicatriz era realmente impressionante. Pegava a testa inteira dele, atravessava uma das sobrancelhas e quase chegava à pálpebra de seu olho direito, era mesmo como um raio no meio de uma tempestade.
— Cho, você mal se sentou e Harry já está olhando para cá! — Wendy comentou soltando risinhos e olhou pra mim, provocativa — Cho e Harry Potter tem um relacionamento mal resolvido, .
— Shiu, Wendy, não diga bobagens — uma garota alta, negra e de tranças longas se sentou ao lado de Cho e a abraçou de lado — Finalmente encontrei vocês, vou matar o Corner por roubar o meu lugar na carruagem! Quem é essa? — perguntou olhando diretamente para mim.
— Mari, essa é a , ela veio transferida de outra escola. , essa é Marieta Edgecombe — Cho nos apresentou, agora ela parecia um pouco mais cabisbaixa depois do comentário de Wendy.
— Aluna transferida? — perguntou Marieta e eu assenti — Bom, boa sorte! Ainda bem que você decidiu vir esse ano, teria sido caótico se adaptar no ano passado.
— Ah é? Por quê? — perguntei tentando fazer com que o assunto continuasse fluindo, mas sem realmente prestar muita atenção, afinal, a mesa dos lufanos era muito mais interessante.
Muitos garotos altos, alguns bonitos, infelizmente nenhum com os cabelos castanhos claros.
— Bem, o Torneio Tribruxo atrapalhou bastante o andamento das aulas, acho que teria sido muito ruim pra você dar conta dos estudos... Se bem que esse ano nós temos os N.O.M.s, mas imagino que você devia ter alguma coisa semelhante a isso na sua outra escola, aliás, de onde você veio? — Marieta tagarelava sem parar e o meu cérebro já tinha parado de processar naquela primeira informação. Como assim Torneio Tribruxo ano passado?
— Desculpe, o que você disse sobre o torneio?
— Você não esteve aqui o ano passado com a Beauxbatons? — não consegui responder ainda tentando processar o que aquela garota tinha acabado de falar — Achei que você fosse francesa por causa do sobrenome.
— E-eu sou, quer dizer, meu pai é... a minha mãe é brasileira. Você disse que o Torneio Tribruxo foi no ano passado?
— Sim, foi um horror! — Wendy disse e Cho levou as mãos ao rosto, apoiando os cotovelos sobre a superfície da mesa — Quase não tivemos aulas, a escola estava entupida de gente e, bom, o final foi bem trágico — Wendy apontou para Cho que ainda estava com o rosto coberto e precisei fazer leitura labial para entender as próximas palavras: — O namorado dela morreu.
Neste momento, as portas do Salão Principal foram novamente abertas e uma longa fila de garotos assustados entrou, aquela à frente deles deveria ser a Professora McGonagall, que vinha trazendo o banquinho em que repousava o velho chapéu de bruxo, cheio de remendos e cerzidos, com um largo rasgo na copa esfiapada. Aos poucos as vozes no Salão Principal foram cessando e enquanto os calouros se enfileiravam diante das mesas dos professores e de frente para os demais estudantes, eu pensava a merda toda em que eu havia me metido. Como assim ele estava morto? Eu não errei o ano, eu tenho certeza de ter colocado 1994 no roteiro. Por que não deu certo?
Eu havia viajado para uma realidade em que o Cedrico já não existia. Estar aqui já não fazia mais sentido.
E o pior de tudo: Se Cedrico estava mesmo morto, Voldemort estava de volta.
Agora a Professora McGonagall colocava cuidadosamente o banquinho diante dos pequenos estudantes. A escola inteira aguardava, prendendo a respiração. Eu, por outro lado, agora pensava que todo aquele trabalho havia sido em vão. Eu sentia que meu coração estava se despedaçando em milhões de pequenos cacos. Finalmente, o rasgo junto à copa do Chapéu Seletor escancarou-se como uma boca, e então ele começou a cantoria.
(...)
Mas antes que a escolha eu venha a fazer,
Ouça mais uma história que eu tenho a dizer.
As terras são longínquas, mas a outra parte aqui está.
Tudo se encaixará em seu devido lugar.
Entre milhões de átomos dispersos pelo ar,
As pontas dos fios finalmente hão de se encontrar.
A conexão fará tudo se reerguer,
E seu lugar em Hogwarts há de obter.
(...)
— Por Merlim, ninguém aguenta mais! — Cho revirava os olhos enquanto o chapéu entoava a canção.
— Esse ano tá longo — Marieta murmurou.
(...)
Eu divido vocês entre as casas
Pois esta é a minha razão de ser
Mas este ano farei mais do que escolher
Ouçam atentamente a minha canção:
Embora condenado a separá-los
Preocupa-me o erro de sempre assim agir
Preciso cumprir a obrigação, sei
Preciso quarteá-los a cada ano
Mas questiono se selecionar
Não poderá trazer o fim que receio.
Ah, conheço os perigos, os sinais
Mostra-nos a história que tudo lembra,
Pois nossa Hogwarts corre perigo
Que vem de inimigos externos, mortais
E precisamos nos unir em seu seio
Ou ruiremos de dentro para fora
Avisei a todos, preveni a todos...
Daremos agora início à seleção.
O Chapéu voltou a se calar e houve alguns aplausos, muitas pessoas murmuravam e cochichavam por todo o Salão. Foi quando percebi o que todos estavam comentando e me levantei de repente, eu pretendia ir embora imediatamente. Todos ao redor me olharam, curiosos, só voltei a me sentar quando percebi o olhar mortal que a Professora McGonagall lançava a mim por trás dos óculos.
— Que cançãozinha estranha — Antônio comentou ao lado de Wendy.
— Nunca tinha ouvido o Chapéu Seletor dando conselhos — comentou a garota de cabelos ruivos — Parecia até uma profecia.
— Acham que é um aviso sobre Você-Sabe-Quem? — sussurrou Cho, para que somente nós ouvíssemos.
A menção daquele apelido me deu calafrios e meus olhos automaticamente se voltaram ao grifinório que nos observava há alguns minutos. Ele parecia tenso, cochichando com os amigos.
— Se for, aquela parte sobre conexão e lugar em Hogwarts é bem estranha, não acham?
— Potter é um mentiroso, vocês deviam parar de acreditar em qualquer coisa que esse lunático diz — Terêncio comentou ao lado de Marieta e voltamos a ficar em silêncio depois de mais um dos olhares mortais que a Professora lançou a nós.
Eu não sabia o que fazer a partir daqui. Baixei a cabeça e discretamente deixei algumas lágrimas rolarem pelas bochechas, quem eu vim salvar já não podia mais ser salvo. Quem eu vim impedir, já começava a ascensão. Aterrorizada com a realidade da minha situação, decidi que por hora estava tudo bem e que eu não precisava me desesperar. Isso não ia durar muito. Pela manhã, eu tenho certeza de que eu vou acordar no escuro do meu quarto e enquanto isso não acontecia, eu poderia aproveitar aquele sonho o máximo que eu pudesse.
A seleção das casas se arrastou por alguns minutos e quando terminou, deu espaço para que Dumbledore se posicionasse ao atril e se dirigisse aos alunos.
— Aos nossos recém-chegados – sua voz ressoou por todos os cantos do salão, ele mantinha os braços abertos e um enorme sorriso nos lábios — Sejam bem-vindos! Aos nossos antigos alunos: um bom regresso! Há um momento para discursos, mas ainda não é este: atacar!
Houve uma explosão de aplausos enquanto Dumbledore se sentava elegantemente e observei aquele senhor atirar as longas barbas por cima do ombro para mantê-las longe do prato. A comida surgiu mesmo do nada e tentei disfarçar o choque com toda a magia que acontecia ao meu redor. Percebi que estava com muita fome e servi meu prato com batatas de todos os tipos: assada, cozida, frita e amassada. Aproveitei para pegar um bom pedaço de torta de abóbora com um pouco de cenoura, ervilha e costeletas de porco.
— Caramba, parece até que você atravessou o lago negro a nado — Antônio falou quando me viu encher o cálice com suco de abóbora.
Surpresa com aquele comentário vi que os meus novos amigos observavam o tamanho do meu prato em choque, dei um sorriso sem graça e comecei a comer enquanto prestava atenção nas conversas. Houve uma movimentação na mesa dos professores e vi quando o Professor Flitwick se aproximou de Dumbledore e cochichou algo no ouvido dele, seus olhos por trás dos oclinhos meia-lua rapidamente recaíram sobre mim e eu não tive coragem de continuar encarando.
As mesas estavam animadas, apesar da comida, o burburinho era grande. Atrás de mim, na mesa da Sonserina, um grupo de garotos davam risadas tão altas que chegava a ser irritante. Enquanto ouvia Terêncio falar sobre os passeios que fez em família durante as férias, observei uma grande quantidade de cabeças ruivas na mesa da Grifinória e imaginei que aqueles deviam ser os Weasleys. Passei o restante do jantar evitando olhar para a mesa da
Lufa-Lufa e agora eu percebia o luto e a ausência de Cedrico. Quando os alunos terminaram de comer, Dumbledore se levantou novamente e toda a atenção se voltou ao diretor.
— Bem, agora que estamos todos digerindo mais um magnífico banquete, peço alguns minutos de sua atenção para os habituais avisos de início de trimestre – percebi agora que a maioria dos professores olhavam curiosos para mim — Os alunos do primeiro ano precisam saber que o acesso à floresta em nossa propriedade é proibido aos estudantes... e a esta altura alguns dos nossos antigos estudantes já devem ter aprendido isso também. O Sr. Filch, o zelador, me pediu, segundo ele pela quadricentésima sexagésima segunda vez, para lembrar a todos que não é permitido praticar magia nos corredores durante os intervalos das aulas, nem fazer outras tantas coisas, que podem ser lidas na extensa lista afixada à porta da sala dele — não sei o porquê, mas comecei a achar tudo aquilo muito engraçado e precisei ter muito autocontrole para não gargalhar, era inacreditável que eu estava ouvindo aquele discurso todo pessoalmente, ele continuou:
— Houve duas mudanças em nosso corpo docente este ano. Temos o grande prazer de dar as boas-vindas à Professora Grubbly-Plank, que retomará a direção das aulas de Trato das Criaturas Mágicas...
— Ainda bem! Finalmente vamos ter um professor decente — Miguel comentou e Wendy lhe deu um tapinha no braço — Nada contra o Hagrid, mas todos sabemos que ele não é um bom professor.
— ... Estamos também encantados em apresentar a Professora Umbridge, nossa nova responsável pela Defesa Contra as Artes das Trevas.
— Ô carguinho pra ser amaldiçoado, o que vocês acham que vai acontecer com ela até o final do ano? — Marieta comentou e os colegas riram enquanto aplaudimos pouco entusiasmados as novas professoras de Hogwarts.
— Os testes para entrar para os times de quadribol das casas serão realizados... — Dumbledore foi interrompido pela nova professora que se levantou e se colocou ao lado dele no atril. Ela não pareceu se abalar com o olhar indagador que ele lançava e quando ela pigarreou ficou bastante claro que pretendia falar. Dumbledore cedeu o espaço e elegantemente se sentou, atento ao que aquela mulher começava a dizer. Já o corpo docente parecia bem surpreso com a audácia da nova professora. Muitos estudantes seguravam os risos, incrédulos. Era óbvio que essa mulher não conhecia os hábitos de Hogwarts.
— Obrigada, diretor, — disse a professora e no mesmo instante senti um arrepio percorrer meu corpo da cabeça aos pés — pelas bondosas palavras de boas-vindas.
A voz aguda e infantil fez com que o jantar que eu havia acabado de comer se revirasse em meu estômago. Por algum motivo eu sabia que aquilo não era boa coisa e tentei buscar lembranças nos filmes e nos livros, mas não conseguia me lembrar de nada para além de O Cálice de Fogo e aquilo me assustou. Tudo naquela mulher parecia odioso, desde a voz tola ao casaquinho peludo cor-de-rosa.
— Bem, devo dizer que é um prazer voltar a Hogwarts! E ver rostinhos tão felizes voltados para mim! — Ninguém no Salão Principal parecia estar sorrindo — Estou muito ansiosa para conhecer todos vocês, e tenho certeza de que seremos bons amigos!
Pude ver as cabeças se mexendo em todo o salão, os estudantes estavam segurando os risos. Cho arregalou os olhos para as amigas e Wendy soltou um comentário ácido sobre a roupa da professora.
— O ministro da Magia sempre considerou a educação dos jovens bruxos de vital... — agora a fala era mais séria, Umbridge havia mudado a postura e tornou-se mais monótona. Tão monótona que sem perceber parei de prestar atenção àquilo que ela estava dizendo para observar o crepitar das velas que flutuavam sobre nossas cabeças — ... Vamos caminhar para a frente, então, para uma nova era de abertura, eficiência e responsabilidade, visando a preservar o que deve ser preservado, aperfeiçoando o que precisa ser aperfeiçoado e cortando, sempre que encontrarmos, práticas que devem ser proibidas.
— Discursinho estranho... — Wendy comentou enquanto a professora voltava a se sentar e, puxados por Dumbledore, o salão inteiro a aplaudiu — “o progresso pelo progresso não deve ser estimulado” que tipo de fala é essa? Essa mulher parece muito conservadora.
— Eu só queria poder ter aulas de DCAT com alguém que não fosse doido ou um lobisomem — Marieta lamentou e os colegas riram.
— Muito obrigado, Professora Umbridge, foi um discurso muito esclarecedor, agora, como eu ia dizendo, os testes de quadribol serão realizados...
— Ufa, esse ano tem quadribol! — comentou Wendy lançando as mãos para cima em louvação.
— Não vejo a hora de poder voltar a jogar! — Cho comentou parecendo pela primeira vez verdadeiramente feliz desde que nos encontramos na carruagem — Você joga quadribol, ? Posso te chamar assim?
— Claro que pode! — fui pega de surpresa e fiquei um pouco sem graça — Eu... bom, não sou tão boa assim usando uma vassoura.
— Ah, que pena... Tenho certeza de que o Davies vai querer um novo batedor para essa temporada depois do vexame que o Edwards nos fez passar no ano retrasado.
Antes que Dumbledore tivesse dispensado os alunos, senti uma presença atrás de mim e ao julgar pelo olhar dos colegas ao meu redor, senti que eu deveria me virar. A Professora McGonagall era muito mais alta do que parecia, ela me encarava séria e apesar do estardalhaço que os alunos faziam ao sair do Salão Principal, pude ouvir perfeitamente quando ela disse:
— Senhorita Lefebvre, me acompanhe, por favor.
— Tchau, ! Espero poder rever você no salão comunal da Corvinal, mas, senão, nos vemos por aí — Wendy sorriu e todos os outros na mesa acenaram quando me levantei e segui a bruxa até a saleta.
Quando a porta se fechou atrás de mim, percebi que apesar de um pouco apertada, lá já estavam alguns dos professores que vi na mesa do corpo docente durante o jantar e sentado em uma das três poltronas de couro estava o diretor Dumbledore.
Ao lado da lareira acesa estavam o Professor Flitwick e uma outra senhora de aparência simpática e redonda; no canto direito da sala, de pé ao lado de uma estante, estava um homem em vestes negras que contrastavam com seu rosto pálido e fino, ele carregava uma expressão de poucos amigos. A Professora McGonagall me indicou uma das poltronas, de frente para Dumbledore e ao me sentar, vi que o Chapéu Seletor estava sobre uma mesinha redonda ao nosso lado, imóvel.
— Muito bem. Fez uma boa viagem, senhorita Lefebvre? — não sei dizer se era a ansiedade me sabotando ou se ele realmente havia dado ênfase à palavra “viagem”. Decididamente, essa sim seria a hora de começar a contar mentiras.
— F-fiz, senhor — pigarreei tentando adicionar mais firmeza na voz — Imagino que o senhor tenha recebido minha carta.
— Ah, eu recebi, sim — ele sorriu, agora parecendo mais curioso do que antes e, enquanto ele falava, todos prestavam muita atenção em mim — Freya Lefebvre, seus pais são Ricardo Matos Lefebvre e Elise Loureiro Lefebvre. Você nasceu em 25 de novembro de 1979 no Brasil, começou a frequentar a Castelobruxo aos onze anos... Poderia me lembrar o que aconteceu para que você fosse transferida para Hogwarts?
— Meus pais estão se divorciando e, durante esse processo, minha mãe trocou de emprego e foi aceita em uma multinacional em Londres. Meu pai voltou a morar perto dos meus avós, na França, e eu precisei escolher entre Hogwarts e Beauxbatons — falei muito rápido, quase sem respirar.
— Certo... Pomona, esta é a aluna que eu tinha comentado com você, o pedido de transferência dela chegou há três semanas junto com uma impressionante carta de recomendação da professora de Herbologia em Castelobruxo.
— É um prazer conhecê-la, senhorita Lefebvre! Estou ansiosa para nossas aulas — a bruxa simpática disse sorrindo largamente ao lado do Professor Flitwick.
— Bem, está na hora de fazermos a seleção para a sua nova casa, imagino que em Castelobruxo exista um sistema parecido com este — imediatamente a Professora McGonagall pegou o chapéu e o colocou em minha cabeça — Como você deve imaginar, cada um dos professores aqui presentes são diretores das casas de Hogwarts. Você será sorteada para Sonserina, Corvinal, Grifinória ou Lufa-Lufa. Os cinco bruxos me encaravam o tempo todo em expectativa, foi então que finalmente senti o chapéu se mexer e pela vigésima vez naquele curto espaço de tempo, tive medo. Muito medo, mas eu sabia que acabaria indo para a Lufa-Lufa.
— Ora, uma mentirosa — o chapéu falou tão baixinho que torci para que somente eu o tenha escutado — LOUREIRO MATOS — ele pareceu gritar o meu nome verdadeiro em minha mente — Sabe que toda a sua existência me faz pensar em todos os grandes feitos que você poderá realizar! Não me lembro de ter encontrado alguém que veio de tão longe como você... a ousadia para a transgressão corre em suas veias, posso sentir — respirei fundo e encarei a todos na sala, mas eles não pareciam escutar aquilo que o chapéu me dizia — Apesar disso você é extremamente habilidosa e inteligente, posso ver isso em você, a Sonserina a ajudaria a alcançar todos os seus maiores sonhos — ele continuou examinando, se mexendo, murmurando — Sua coragem a torna diferente dos demais e sua bondade também a faz especial. Me diga, Grifinória ou Corvinal? — ele sussurra a última parte e arregalo os olhos. Sem menções à Lufa-Lufa?
Passaram-se alguns segundos em que o tempo pareceu ter parado e soltei uma exclamação de puro choque quando o chapéu finalmente gritou e sua voz ecoou pelas paredes da saleta:
— Que seja então: GRIFINÓRIA.
Enquanto os professores me congratulavam, vi a diretora da Grifinória, Professora McGonagall, dando instruções a um dos quadros da parede. Depois de se apresentarem e me desejarem um bom ano em Hogwarts, os professores Flitwick, Sprout e Snape saíram da saleta me deixando apenas com Dumbledore e Minerva.
— Senhorita Lefebvre, é uma honra tê-la conosco na Grifinória — a professora se sentou junto a nós na poltrona que restava — Como diretora, é meu dever informá-la sobre as expectativas da casa. É essencial que os alunos mantenham um bom desempenho acadêmico e estejam dispostos a ajudar os colegas com dificuldades. Além disso, os grifinórios devem comportar-se de maneira que honre a reputação da casa, tanto dentro quanto fora de Hogwarts. Alguma pergunta?
— Não, professora.
— Bem, quanto às regras gerais da escola, é essencial o respeito aos professores, funcionários e colegas de turma. Você deverá cumprir os horários estabelecidos para as aulas, confraternizações e refeições — percebi que o olhar da bruxa se dirigia à porta da saleta com frequência — Quebrar as regras resulta na redução de pontos da casa, prejudicando a posição da Grifinória na competição pela Taça das Casas. Você deve saber, minha jovem, que eu não gosto de perder.
— Você verá, senhorita Lefebvre, que não há ninguém melhor do que Minerva para conduzir os alunos ao sucesso — Dumbledore piscou um dos olhos e, sorrindo, retirou das vestes uma caixinha listrada — Você aceita um feijãozinho de todos os sabores?
— Não, obrigada — sorri sem graça enquanto ele abria a embalagem e levava um doce à boca, caramba, eu só queria poder ficar sozinha — Posso me retirar agora? — no mesmo instante ouvimos alguém bater na porta da saleta e a professora prontamente se levantou para abri-la.
— Ah! Bem na hora. Entre, por favor, Srta. Granger — a Professora abriu espaço para que uma garota de cabelos abundantes entrasse, seu olhar rapidamente recaiu sobre mim e eu ofeguei sem conseguir acreditar — Gostaria de apresentá-la à nova adição da casa Grifinória, Srta. Lefebvre, quintanista transferida de Castelobruxo, , esta é Hermione Granger, uma das melhores alunas de Hogwarts e monitora-chefe da Grifinória.
— Prazer em conhecê-la — a garota sorriu e eu retribui, seus dentes eram bastante alinhados e brancos, percebi que os dois da frente eram um pouco maiores que os demais.
— Srta. Granger, poderia fazer o favor de mostrar para a Srta. Lefebvre o caminho até os aposentos da Grifinória? — Dumbledore pediu se levantando e ajeitando a barba longa à frente das vestes — Tenho alguns ajustes de início de semestre que gostaria de discutir com a Professora Minerva.
— É claro, vamos? — a garota sorriu simpática e eu rapidamente me levantei.
— Ah! Um momento, Srta. Lefebvre, antes que eu me esqueça — Dumbledore fez um rápido aceno de varinha e mágicamente o brasão e as cores da Grifinória agora faziam parte do meu novo uniforme escolar — Assim está melhor. Desejo a você um bom início de ano.
— A nós todos — falei sorrindo e, pela primeira vez desde que cheguei ali, fiquei feliz.