Precisei contar até cinco quando senti o peso de algo nada macio contra minha cabeça, pré julgando as crianças bagunceiras que vieram o voo inteiro — que eu devo ressaltar o tempo exato de duração de 15 horas — tagarelando e inquietas demais para deixar qualquer outra pessoa descansar. Levei um certo tempo para abrir meus olhos e, quando o fiz, pronta para procurar a mãe das duas pestinhas de olhos redondos e adoráveis, me surpreendi com o pedido de desculpas baixo e rouco de um rapaz alto, pálido e com uma máscara preta no rosto, seguindo a paleta de cores de todo o seu look de, provavelmente, milhões, haja visto que ali tinha muita Prada.
Me ajeitei no assento, só então notando minha situação deplorável, e pisquei algumas vezes ao ajeitar minha mente no aqui e agora, que ainda estava divagando no meu sonho com outro apocalipse zumbi. Minha terapeuta havia me alertado sobre as consequências que a causa me traria. A causa: mudar drasticamente de um país para outro; sair do ocidente para o oriente em questões de dias — algo sobre trauma e etc, o que eu não daria atenção imediata. Respirei fundo e me sentei menos largada, agradecendo ao divino e celeste do universo que não me permitiu ter dormido depois de vencer o cansaço a ponto de babar.
Seria mais ridículo ter minha máscara encharcada de baba, acordando atrasada, depois de aterrissar.
E será que alguém iria me acordar avisando que tínhamos chegado em Seul?
Olhando ao redor, enchi meu coração dessa esperança, porque o lado que antes estava lotado, agora tinha somente eu e o tal rapaz pálido em cima de “mim”.
— Eu… Erm… Pode me dar isso, por gentileza? — pediu, depois de alguns segundos esperando por minha resposta ao seu pedido de desculpas. O que não veio porque todo meu sistema ainda estava se iniciando, como um software velho e sem atualização.
Olhei para onde seu dedo esguio apontava e visualizei algo brilhante. Era um relógio.
— Ah, aí está o despertador… Que conveniente a ironia — brinquei, em um som audível quase que só pra mim. Mas nem tanto. A risada nasalada dele ecoou atrás de mim, quando me curvei, quase me sufocando por esquecer de tirar o cinto.
— Talvez, se você tirar o cinto, consegue pegar…
Não entendi o que ele falou e acho que foi pelo uso da máscara. O encarei, confusa, e ele apontava, hesitando se deveria se aproximar ou não, optando pelo contato ao se inclinar e apertar o botão onde liberava o fecho do cinto de segurança.
— Isso… — disse ao retornar o corpo reto e eu pude notar seu jeito sem graça ao ter forçado um contato com uma estranha.
— Ah, bem lembrado — franzi o nariz, fingindo uma certa casualidade para varrer o clima estranho, como se já não fosse o suficiente o restante. — Obrigada. Agora. Eu. Vou… Aqui, salvo! — disse pausadamente ao retornar a tentativa de pegar o relógio no chão. Senti em minha mão o peso daquilo que tinha caído em minha cabeça e tentei não me concentrar muito na dúvida de como diabos isso tinha acontecido. Ele era alto, mas não um prédio de quinze andares para ser o suficiente que seu acessório me acertasse daquele jeito. Estava andando com o braço na cabeça por um acaso?
— Desculpa novamente — ele pediu, ao receber o objeto em mãos. No mesmo instante eu me levantei, não diminuindo em muito nossa diferença na altura. Ergui meu rosto para encarar seus olhos, sendo a única coisa que eu podia ver no espaço entre o que a máscara e o boné cobriam.
— Tudo bem. Você me despertou, de qualquer forma. A não ser que eu saia com um hematoma e um problema craniano, sua consciência pode ficar tranquila — usei do meu humor, tentando novamente não ser enferrujada e robotizada. Acidentes aconteciam.
— Sua pele não tem nenhum arranhão, então eu posso continuar minha vida.
— Pois bem… — sorri simples, me virando para pegar minha bolsa no espaço reservado para isso e olhando em meu relógio inteligente; diferente do analógico dele da Rolex, eu não tinha um peso em meu braço, pronto para acordar pessoas em um voo. — Espero que tenha uma vida muito desperta e brilhante, senhor…
— .
Ele foi simples em apenas me oferecer seu sobrenome, porém extremamente certo de que era só aquilo que me daria. Não que eu fizesse questão de ter mais do que isso, meu foco no momento era outro. Como não me atrasar para meu trabalho, que, por sorte, me aguardava ainda naquela manhã. Eu tinha destino direto de Incheon para algum bairro chique de Seul, do qual eu não fazia a menor ideia do nome.
— Muito bem, foi um prazer, senhor — continuei com o sorriso contido, mesmo que ele não pudesse ver. — Agora eu… — olhei novamente as horas, já odiando o fato de ter apenas 120 minutos para chegar ao prédio da Vogue Korea. Atrasos ou chegar em cima da hora não faziam muito do meu feitio. — Preciso ir. Primeiro dia de trabalho em uma firma nova, sabe como é… Preciso surpreender meu chefe.
— Ah, claro. Desculpe. — Outro pedido de desculpa que eu não dei muita atenção por se fazer desnecessário. Dei um passo à frente e me virei para o compartimento alto de bagagens. Alto demais, claro.
Tentei, não consegui. Mirei meu olhar na direção das aeromoças ou comissárias de bordo, o que para mim nunca haveria entendimento da diferença ou se tinha uma, mas elas estavam ocupadas demais com um cara também de máscara, alto, porém de roupas menos… sombrias. Algo me deu o sentido de que poderia ser a companhia de , mas isso não era importante e eu voltei a tentar pegar minha bagagem de mão.
Senti algo envolver minhas costas, um calor humano, e me mantive no lugar, com os braços erguidos na minha tentativa falha.
— Aqui está — disse contra meu ouvido quando liberou o compartimento, tirando minha pequena mala laranja e tirando-a de lá de dentro para mim.
— Gratidão infinita! — respondi arrastado, puxando a alça dela. — Agora posso ir.
— E se encontrar com seu chefe. — Ele assentiu, colocando as mãos nos bolsos. — Espero que dê tudo certo e… me desculpa. Eu realmente estava sem controle disso aqui — chacoalhou o relógio no ar.
— Confesso que não quero nem perguntar o tipo de “controle” que se deve ter em um acessório desses — ri, sendo acompanhada. — Mas eu tenho mesmo essa coisa com horário, então fica para uma próxima. — Novamente usei o tom casual e olhei de volta para a minha cabine, verificando que estava tudo comigo e nada sendo esquecido.
— Mais uma vez me desculpe. E seja bem-vinda em Seul…
Notei que ele queria um nome, mas fiz o mesmo que ele tinha feito e só lhe ofereci o que eu queria. Ou seja, no meu caso, não ofereci nada. Sei bem como essas coisas funcionam na dramaturgia: um encontro casual que pode gerar um negócio platônico, avassalador, e me tirar toda a esperança. Não é como se eu tivesse alguma, claro, essa coisa de amor, paixão, flerte, etceteras, eu deixava para as atrizes de Hollywood e adjacências viverem nas telonas.
A física podia calcular muita coisa e ter diversas teorias, Einstein mesmo poderia debater o quanto quisesse sobre a sua relação de tempo e espaço, e Shakespeare poderia ser tamanha referência, mas eu jamais abriria mão do meu ponto de vista. Se o ceticismo existia, era porque ele era útil de alguma forma.
— Se você pedir desculpa de novo, eu vou solicitar esse Rolex como o pagamento pelos danos morais e físicos — apontei, tornando minha feição séria. Ele olhou para o acessório no punho e em seguida para mim, parecendo ofendido.
— Então encerramos por aqui.
— Sequer começamos! — brinquei, esperando que a minha língua solta não o fizesse entender errado.
O maior problema de crescer em uma família sem muito filtro, com uma cultura de exageros, era que isso podia sair um pouco de controle em público. Eu estava na Coreia do Sul, um país conhecido por seu conservadorismo, com o clichê de quase nenhum contato físico e todo o “quê” da seriedade e respeito de uns com os outros, mas, mesmo assim, não conseguia me conter em piadas que só meu cérebro compreendia, esperando que a outra parte não me encarasse como uma desmiolada desrespeitosa. E eu não estava falando com uma pessoa que conhecia há muito tempo, tinha que me conter.
Mas como? Se normalmente eu já era língua solta, agora, nervosa por todo o cenário atual da minha vida, com certeza seria pior. Não tinha problemas com sorte e afins, mas o nervosismo tendia a me deixar com alguns neurônios soltos. E, também pudera, eu estava no país para uma jornada maluca de trabalho para uma revista conhecida por sua excelência — o que exigia mais —; o peso de ser uma jornalista da Vogue estava em meus ombros como uma bigorna sem vaselina e apoio.
apenas me encarou com um riso nasalado de uma sílaba só e assentiu por fim. Quando ia dizer algo a mais, o rapaz que distraía as moças o chamou.
Eu pude descobrir seu nome.
— , qual é? Temos horário, cara!
Ele encarou o provável amigo e voltou a me olhar, parecendo desconcertado pela entrega da sua identidade.
— Adeus — apressei minha despedida. — Não se preocupe, Seul é enorme o suficiente para eu te parar na rua, . — Dizer seu nome soou da mesma forma como se eu estivesse falando, sei lá, “Jay”, por parecer familiar.
Com apenas um riso, outra vez nasalado, ele fechou os olhos brevemente, enfim se afastando e com um aceno de cabeça em despedida.
— É uma amiga? Você levou quinze horas para notar que é uma amiga? Que isso? — Ouvi seu amigo reclamar em um coreano acelerado e disso, pelo menos, me senti mais aliviada, percebendo que todos os meus anos de estudo renderam alguma coisa útil.
De fome eu não iria morrer em Seul.

Lonely was the song I sang
'Til the day you came
— John Meyer

Em minha frente tinha um painel com algumas coisas estranhas. Levei um tempo para entender que poderia ser o rascunho de todo o apanhado que foi feito de estampas, costuras e os frufrus da moda que iriam compor a próxima coleção extra de inverno recém anunciada para a produção da Prada, como uma linha limitada. E só compreendi porque a estagiária que havia sido designada a me acompanhar me deu uma luz, quase sendo um tipo de sol com raios flamejantes de tanta iluminação, porém eu logo a cortei de seu monólogo, não deixando que me explicasse o porquê de tamanha breguice.
Era completamente cafona e sem nexo aquele tanto de estampas misturadas e eu desejei que fosse mesmo somente o rascunho, que a decisão final estivesse longe daqueles corações e o animal print; com o xadrez ainda dava para lidar, mas nem tanto, claro. Até porque o que tinha ali na minha frente expressava tudo e nada ao mesmo tempo, indo completamente distante da essência marcante de uma marca tão importante para a moda e expressiva como a Prada.
Entretanto, contudo, todavia e outrens, talvez eu não devesse opinar tanto sobre isso e com tamanha profundidade.
Sendo bem esclarecido: a moda nunca foi meu forte. Eu tinha entrado nessa pela Vogue totalmente de paraquedas, pega no corredor do prédio de surpresa porque Makyla não poderia ir, já que estava grávida e não queria entrar em trabalho de parto durante a estadia em Seul — eu bem sabia que ela não queria era perder os cookies de Natal da sua avó e usou a gravidez como desculpa, a pequena Sofi estava prevista para nascer no final de fevereiro. Eles podiam ter pegado alguém da filial coreana, também, mas o lançamento da coleção da Prada em parceria com a revista e assinada pelo famoso e já embaixador da marca há um tempo — inclusive, precisava fixar o nome do cara ou teria problemas — seria mundial, então cá estava eu, cumprindo um papel que não era para ser meu e eu nem queria.
Então, analisar aquela mistura de estampas bregas e cores com vida demais, para mim tinha uma certa dificuldade. Competência eu possuía ou não teria entrado para trabalhar na editora, só precisava me concentrar em ser imparcial, pois não estava ali para montar um dossiê e concluir com uma análise da minha opinião. Eu só precisava tomar notas e relatar todo o processo de criação, até mesmo citar o que pudesse fazer com que o público de fãs do dito cujo se apaixonassem mais por ele (um aviso explícito de Makyla, inclusive). Mas, ainda assim, eu estava com meu bloquinho cheio de anotações sobre o que eu e meu ponto de vista estavam achando daquilo tudo. Precisaria manter isso longe de qualquer mão que não fosse a minha, aliás. Opinar para mim era oito ou oitenta, com gosto ou sem gosto.
E eu definitivamente não gostava daquelas misturas todas. Muita vida, pouca explicação, e até a vírgula que sei sobre isso, a moda é uma forma de expressão. Naquele painel tinha uma confusão de informações e nada expresso. Ou, talvez, ele estivesse se expressando mesmo de forma confusa, às vezes os artistas podem ser cheios de dinheiro, bens materiais e pessoas ao redor, mas por dentro ter algo completamente diferente.
Senti uma presença um pouco mais atrás de mim e virei meu rosto rapidamente, logo visualizando a feição de um cara alto e pálido, assim como todos os outros que tinham cruzado meu dia até agora. Ele sorriu simples, sem mostrar os dentes, mas com as suas covinhas fundas já batendo o martelo como seu maior traço de atração e marca. Nuyah tinha me dito que o fotógrafo que nos acompanharia durante os próximos três meses logo me alcançaria, então meu cérebro logo computou que só podia ser ele ao meu lado, haja visto que todo mundo parecia ter uma aversão a mim naquele lugar desde que eu cheguei.
— Gostou? — ele perguntou diretamente. Minha feição, porém, respondeu sozinha. O mal de ser uma pessoa expressiva, claro. — Qual o problema?
— Animal print e corações? — arqueei a sobrancelha, olhando para a frente.
— Não gosta de estampas?
— Esse não é o problema. — Olhei novamente para todos os pontos daquele painel, como se não tivesse feito isso suficientemente para ficar na minha mente, igual uma imagem de terror.
— E o problema é… — ele insistiu.
— Tem muita informação nisso aqui — gesticulei. — O xadrez até que é algo passível de uso, mas o resto? Se a moda é um meio de expressar-se, como essa pessoa espera fazer isso com êxito, se não consegue ao menos decidir o que quer expressar? Amor com esses corações? Algo mais futurista com essas geometrias? Posso não entender de moda, mas consigo compreender quando alguém tem confusão demais dentro de si que não consegue enxergar o curso das coisas — tomei um fôlego, continuando a olhar para frente e cruzando os braços atrás do corpo, segurando firme meu bloquinho. — Espero que seja mesmo apenas o rascunho.
— Uau — soprou. — Você não entende de moda? — perguntou.
— Não foi para isso que me formei em jornalismo — dei de ombros. — Mas é o que paga meu salário.
— Deu para entender. — Ele deu um passo adiante, parando exatamente ao meu lado agora. — A moda é o meio mais livre que tem para expressar até o que é inexpressivo — iniciou pacientemente, com um tom sereno. Seria incrível trabalhar com uma pessoa paciente e que até agora não tinha me forçado a vencer meu medo em falar coreano. — Talvez o idealizador dessa coleção não tenha mesmo o controle de tudo o que tem dentro de si e por isso esse é o resultado.
Virei meu rosto para ele, encarando seu perfil. Ele mantinha os braços atrás do corpo assim como eu, com as mãos entrelaçadas, e sua respiração parecia totalmente normal.
Então notei que seus olhos pareciam familiares demais — entrando em pânico por não querer ser aquela pessoa que diria que é pela característica asiática dos olhos puxados fazer com que todos fossem iguais.
— Desculpe… Nos conhecemos de algum lugar? — perguntei, porque até mesmo a voz dele pareceu bater em alguma lembrança recente.
Entretanto, eu soube da forma mais errada possível que o universo poderia escolher para me testar logo no meu primeiro dia em Seul.
— ! Te achei!
Vindo até nós tinha um cara com exatamente as mesmas vestes do mesmo que gritou aquele nome mais cedo dentro do avião. Agora não usava máscara, sequer um boné. Seu cabelo de grande volume balançava conforme caminhava em nossa direção, em um loiro muito bem hidratado, nada compatível com a provável vermelhidão das minhas bochechas.
Em estalo racional, olhei no meu caderno, tendo o nome grifado e perfeitamente escrito em letras garrafais ali para que eu tentasse me lembrar.
A coleção era da Prada, assinada por e com cobertura total da Vogue.
Merda!
— Eu preciso ir embora — o amigo disse, ignorando minha presença ali não por muito tempo. Seu olhar recaiu sobre mim e ele me olhou dos pés à cabeça. — Não brinca! Caraca… — disse, incrédulo. Assim como ele, eu não tinha trocado a roupa de mais cedo.
É, eu também estava incrédula e, se tivesse como, cavaria um buraco para enfiar minha cabeça.
— Tudo bem, te vejo mais tarde — respondeu, sereno, sem mudar a voz.
— Parabéns de novo pela coleção, vai ficar incrível. Até mais tarde. — Cumprimentos feitos e ele me encarou novamente. — Tchau, moça, bem vinda à Seul.
Era tão estampado em meu rosto que eu não tinha nenhum histórico com a cidade?
Apenas sorri sutilmente e acenei. Ao virar-se para mim, me encarava, impassível. Me preparei sem preparo algum.
— Olha, não é como se estivesse tudo ruim… Eu só… Moda realmente não me apetece e como o trabalho é apenas relatar o processo, sem opinião alguma, eu vim. Sem escolhas, inclusive, Makyla vai ter o bebê, então é meio complicado-
— Ainda bem que não vou precisar lidar com a sua crítica na primeira coleção lançada com meu nome. — Ele levou a mão até o peito, parecendo aliviado. Mas tinha um resquício de humor em seu rosto ao me cortar do meu provável monólogo sem sentido. Murchei os ombros.
— Me desculpa — franzi o nariz, me encolhendo dentro de mim.
— A mesa virou, agora é você quem vai me pagar algo por danos morais — mirou diretamente a minha bolsa em meu ombro. A tomei com cuidado em minhas mãos, quase deixando o caderninho e lápis caírem. — Estou brincando.
— Ainda bem. Nem todo mundo ganha essas preciosidades de marca por ser garoto propaganda. A minha Gucci foi conquistada com muito suor.
— Achei que diria que foi conquistada com muito coração partido.
Levei um tempo para compreender seu comentário e logo soltei a bolsa. Suspirei, olhando para o painel novamente. Eu e minha boca grande.
— Então… — iniciei, tentando quebrar o clima de desconforto da minha parte. — Que coincidência, sim?
— Deu tudo certo com seu chefe?
— Felizmente, com ele foi tudo bem. Não precisei abrir muito da minha boca.
— Que sorte. Já podemos saber que você pode não entender de moda, mas de opiniões…
Senti isso me atravessar.
— Me desculpa. Eu quebrei seu coração? — fiz uma careta, mordendo o lábio inferior automaticamente.
levou a mão em cima do lado esquerdo de seu peito, assentindo levemente.
— Saindo daqui vou ligar diretamente para o estilista que desenhou tudo e pedir para trocarmos toda a coleção.
— Não é rascunho, então? — apontei o painel e ele negou. Minha careta saiu automática. — É, ainda bem que não vamos lidar com opiniões aqui.
A risada dele saiu fraca e eu decidi que, para me redimir, deveria tirá-lo da desvantagem, dar meu nome.
— Blewer. Blewer — estendi a mão, esquecendo de onde estava, mas fui surpreendida pelo aperto educado dele. — Acho que eu deveria ter feito isso formalmente, não é? — recolhi meu braço. — Blewer, jornalista da Vogue.
— Muito prazer, senhorita Blewer. Sou . — Seus olhos se espremeram pelo sorriso e as covinhas saltaram em minha visão outra vez. — Eu diria todas as minhas profissões, mas você não tem todo esse tempo…
Encarei sua feição, com uma vozinha no fundo do meu consciente dizendo que "sim, temos muito tempo". Porém, ignorei, assim como a sensação quente do toque de sua mão na minha, que pareceu eximir qualquer frio na barriga que eu estava tendo desde o momento em que entrei naquele prédio no início da manhã, depois de quinze horas exatas de um voo repleto de crianças em clima de férias — talvez poderia estar milionária, se eu recebesse por cada vez que ouvi os berros sobre papai Noel.
Os olhos de me encararam durante o curto período dentro do silêncio em que nos instalamos e eu tentei buscar em minha mente de onde os conhecia, porque aquelas pálpebras eram muito familiares para além do curto encontro no avião. O sorriso não, mas a forma que seus olhos se espremeram quando os dentes apareceram, traçando a briga por espaço com as covinhas fundas, trouxe uma sensação de reconhecimento para meu estômago. Algo parecido àquele frio da ansiedade quando a gente está em um lugar novo e encontra um velho conhecido. Era como se a aura dele não fosse nova para mim.
Mas ele era famoso, certo? Deveria ser por isso.
Me preparei para cortar o silêncio de segundos após a risadinha baixa que dei por seu comentário, antes de entrar na camada profunda de análise, mas fomos cortados logo quando entreabri a boca. Ao seu lado, o responsável pelo projeto surgiu, sorridente, como eu bem me recordava.
— ! — Jake exclamou, animado, abrindo os braços para me envolver e me senti envergonhada demais com o contato excessivo. — Como é bom te ver! Sabe que eu adoro Makkie, mas ter você conosco é muito mais… tranquilo.
Me afastei, arrumando minha roupa e colocando o bloquinho e lápis dentro da bolsa finalmente. nos encarava um pouco alheio.
— Vocês se conhecem? — perguntou, apontando.
— Sim, é filha de um dos fotógrafos mais renomados de toda a moda deste mundo — Jake explicou, parando ao lado dele e com as mãos nos bolsos. Senti meu peito esvaziar-se totalmente.
Cresci com o olhar sórdido sobre mim quando ouvia esse tipo de referência a quem eram meus pais: o pai fotógrafo mais condecorado, agora aposentado; a mãe ex-estilista da Victoria’s Secrets. Isso sempre me esmagava, porque eu era biologicamente filha de pessoas com importância, com nome, mas que, para mim, não tinham toda aquela intensidade.
me olhou como todos, com o olhar de quem determinava a opinião sobre o nepotismo e eu me encolhi dentro de mim mesma, querendo sair o mais breve possível dali. A história que Jake contava era apenas como uma chamada sensacionalista, não tinha a verdade. Apenas sorri amarelo para ele.
— Você teve sorte de ser ela a te acompanhar, Makyla é muito boa no que faz, mas tem um problema em segurar a língua dentro da boca — Jake continuou. — A é a pessoa certa para acompanhar e produzir essa crítica.
Meu cenho se uniu sozinho, automaticamente agindo conforme meu cérebro computou o que foi dito por ele. Senti me encarando e tentei reajustar minha postura, ficando menos passível de interpretações, engolindo o seco repentino em minha garganta.
Só poderia ser uma pegadinha.
Até a parte de acompanhar eu me lembrava bem de ter sido citada durante a reunião que tive com Makyla e nosso chefe, Joffrey Barkley, a respeito da minha rotina em Seul. Visitar ateliê, fazer uma entrevista com o fulano da marca, o estilista, alguns dos diversos envolvidos em todo aquele projeto e fazer um apanhado do que, como e quando foi que tudo rolou; era sobre isso desde o início. Sem crítica, sem precisar colar em como um carrapato e etc. Nada disso, tanto que Makyla me cedeu sua vaga sem pestanejar e eu sabia muito bem o quão prazeroso era para ela criticar as coisas por aí — vivia fazendo isso comigo todos os dias, inclusive.
Portanto, com certeza isso deveria ser uma pegadinha ou Jake estava desatualizado sobre todo o trabalho. Eu não havia produzido nada até agora além de matérias genéricas sobre tendências e revisado uma coisa ou outra dos estagiários. Não era alguém renomada o suficiente para estar nessa posição, sequer estudei para isso em questão.
Se tinha uma coisa que eu não era nesse cenário, isto era a “pessoa certa”, assim como foi citado. Muito pelo contrário.
— Desculpe? — perguntou educadamente, tomando a atenção e sorriso contagiante de Jake. — Crítica? — franziu o cenho também.
A feição alegre de Jake se desfez e ele olhou de mim para um pouco confuso. Tentei manter a neutralidade. Não seria tão profissional assim da minha parte eu agir como se não soubesse do trabalho que estava ali para fazer (por mais que eu não soubesse, de fato).
— Você não sabia? — ele perguntou e negou com a cabeça.
— Ninguém mencionou que haveria uma crítica em cima da coleção.
— Entendo… Isso é… Parte do pacote todo, entende? — não expressou nenhuma reação e Jake mirou o olhar para o chão, tomando um breve fôlego, colocando a mão no ombro de , de forma menos informal. — Mas não se preocupe. Como disse: é a melhor pessoa para isso — sorriu amarelo, olhando para mim de volta. — Makyla é quem não prende a língua dentro da boca e critica até a direção do vento. Não é?
Ele estava perguntando para mim e de alguma forma meu cérebro se manteve na reação séria e sem muita emoção de , querendo ler o que os olhos dele diziam, mas não conseguindo encontrar palavras de maneira alguma. Como páginas em branco.
, porém, piscou em uma sequência rápida e eu vi suas bochechas serem contraídas, com um sorriso sendo inibido. Ele estava, muito provavelmente, se controlando para não rir. Já tínhamos tido a experiência antes de Jake chegar e ele sabia muito bem que a minha língua era tão solta quanto a ventania do inverno que se aproximava.
Abri e fechei a boca, sem saber o que dizer, e agradeci aos céus quando alguém chamou por Jake.
— Tenho que ir. Compromissos… — desviou o olhar para a direção de sua assessora e se aproximou de mim. — Nos vemos por aí. Seja bem vinda à Seul, querida.
Ele apenas acenou com a cabeça para , nos deixando a sós. Quando sumiu pelo meio das pessoas, nos encaramos em um silêncio tortuoso até que fosse o primeiro a rir. Uma risada fraca, mas ele riu. E também deu um passo à frente, voltando as mãos para os bolsos de sua calça.
— Então… — limpou a garganta. — Não me livrei da sua opinião, não é mesmo?
Mordi o lábio inferior com força, olhando do quadro ao lado de volta para ele. Se tivesse uma boa audição, poderia ouvir o meu grito histérico ecoando dentro do meu crânio e quase partindo todos os meus neurônios.
— Para um rascunho até que não está tão ruim assim… — disse, virando o rosto de volta para o quadro.
riu.
Mas desta vez foi diferente, ele riu de verdade. Riu como se eu fosse o próprio Kevin Hart contando alguma piada envolvendo a sua baixa estatura. E isso atraiu a atenção de todas as pessoas espalhadas por ali.
— Você tinha que ver a sua cara de espanto agora… — suavizou a própria feição, me fazendo encará-lo novamente. — Isso não tem muito a ver com a coleção, sequer comigo… É um quadro qualquer — apontou o selo no rodapé, bem miúdo, com a assinatura. Forcei a vista, me aproximando com o corpo inclinado e li. — A minha coleção está bem guardada a sete chaves.
Senti minha respiração se normalizar sozinha, mas também tive, ao mesmo tempo, uma vontade absurda de pegar a taça de formato estranho em cima da bandeja carregada por um garçom que passou ao nosso lado e jogar nele o líquido transparente com a azeitona afundada.
Pelo menos para isso uma azeitona deveria servir.
— O senso de humor é uma das suas profissões? — perguntei, desarmando minha vontade e pegando o pequeno copo da segunda bandeja que passou logo em sequência, descobrindo ser de uísque assim que beberiquei.
— Não, acho que está mais para um traço de personalidade. — Ele fez o mesmo, pois também pegou o copo. — Vou deixar para você descobrir quando começar as suas anotações.
No momento que abri a boca para responder alguma coisa impensada, alguém apareceu para chamá-lo.
— Precisamos ir ou vamos nos atrasar para o seu ensaio. — Uma moça com um crachá e uma camiseta preta escrito “staff”, composta com um jeans lavado e um all star, foi direta para ele.
— Mas nós estamos a cinco minutos da SM. Não tem como atrasar… — olhou em seu relógio e retrucou como um garoto mimado. A moça apenas tirou o copo de sua mão e ajustou sua roupa, eu claramente me vi em uma posição um pouco constrangida ao começar a olhar para todos os lados e evitar aquela cena. Muito me parecia com uma namorada bem grudenta.
Só que namoradas coreanas bem grudentas tem aquela coisa toda de falar fino e chamar de “oppa”, não tem?
Que seja!, isso não é assunto meu, seja namorada ou não.
— O tempo está horrível lá fora e o trânsito tal qual o de sempre em horário de pico. Precisamos ir. — A firmeza dela o fez respirar fundo e eu me perguntei brevemente, e de novo no mesmo ponto, como seria namorar a pessoa que é responsável por sua agenda.
Devia ter algo no uísque que eu mal tomei e já comecei a entrar em um buraco tal qual Alice.
— Tudo bem, nuna. Você é quem sabe das coisas — ele sorriu, gentil, e me encarou, com as covinhas tão profundas quanto a queda para o País das Maravilhas, ainda que estivesse com os lábios fechados. E a fulana continuou encarando-o firmemente, até parecer me notar e olhar para mim. — Posso ao menos me despedir das pessoas?
— Você é a estrela aqui e precisa estar no carro em menos de dois minutos.
Ele repetiu o ato de olhar para ela e me encarar de novo.
Apenas ergui minha mão e acenei.
— Nos vemos por aí, multiprofissional — sorri educadamente.
— Foi um prazer, senhorita Blewer. E seja bem vinda à Seul. — abriu os lábios para o sorriso cheio de dentes perfeitos e brancos, refletindo aquela mesma baboseira que eu já tinha notado sobre sua aura, e então se virou, seguindo a tal “nuna” mandona.
Na minha mente cética e racional, não tinha a menor chance daquela mulher, menor do que os meus 1,64cm de altura não fosse, no mínimo, uma pessoa apaixonada por ele. Aquele carinho, toque e voz ativa só se via em pessoas em um nível alto de intimidade. Ou eu estava louca e não tinha nada a ver.
Só sei que, de repente, imaginar que o mesmo cara que me despertou no avião e agora tinha estado em minha frente, cheio de sorrisos, não estivesse disponível para quebrar o meu ceticismo fosse a forma mais segura de me puxar daquela queda modo “Alice”.
Eu não tinha saído do meu país para viver uma loucura romântica de Natal na Coreia do Sul. Com certeza, não.

You had a bad day
The camera don't lie
— Daniel Powter

— Então... Como foi seu primeiro dia? — mamãe disse melodicamente ao abrir a porta, assim que coloquei minha mão no ponto da campainha.
Pelo menos, o cheiro que vinha de dentro me dava alguma esperança de algo. Trazer Andrea para Seul pareceu ter sido uma ideia genial, por fim, agora eu tinha, provavelmente, uma refeição e um colo para chorar pelo desastre do dia. Ela tinha decidido chegar uma semana mais cedo, sendo solícita em encontrar um lugar para ficarmos, exigindo que alugássemos um apartamento ao invés de eu ficar em um hotel pelos quase dois meses seguintes.
Isso tinha muito a ver com o fato dela adorar o Natal, o período de festas de final de ano, então achava que as pessoas não deveriam ficar sozinhas nessa época e, muito menos, distante de algo que parecesse como um lar. E, segundo suas próprias palavras, “um hotel não tem nada de aconchegante como um lar quentinho e confortável”, então decidiu que tomaria conta dessa parte.
O sorriso dela murchou logo que captou a minha derrota em meus ombros caídos e a provável cara de choro que eu estampava. Sequer consegui perceber o lugar que ela tinha arrumado mais à nossa cara ou lhe dar tempo de se empolgar com minha chegada segura, embora eu a tivesse avisado por telefone mais cedo do meu desembarque e pedido que recebesse minha bagagem, por ser necessário que eu estivesse no trabalho ainda naquela manhã.
— Tome seu banho primeiro, vou arrumar a mesa para nosso jantar enquanto isso... Fiz um caldo cremoso de ervilha com bacon, como você gosta! — anunciou de forma compreensiva, me dando espaço para passar.
Assenti simples e passei para dentro, ignorando nossa nova regra de despir os pés logo na porta — ela tinha me encaminhado uma cartilha de como as coisas funcionariam bem quando estivéssemos na Coreia e, com uma semana lá, por ela eu já poderia dizer que tinha noção de bastante coisa; não do todo, claro. Me arrastei para dentro, seguindo meu rumo quarto adentro e só saindo quando, depois de muito custo, estava de banho tomado e vestindo meu pijama grosso com as pantufas do mesmo conjunto. Minha mala toda havia sido desfeita por ela e arrumada no guarda-roupas de acordo com o jeito que Andrea sabia me agradar: por cor e estação, e como estaríamos saindo do outono para o inverno, não tinha muito o que diferenciar.
Caminhei me arrastando, revivendo cada segundo daquele dia memorável, praguejando por cada gota fria da chuva que tomei e, principalmente, pela minha capacidade de quase entrar para as estatísticas de pessoas perdidas por aí. Se não fosse meu sexto sentido, talvez eu jamais tivesse chegado ao apartamento.
Mamãe me esperava já à mesa, tentando soar o mais receptiva possível, como sempre, mas talvez nem isso pudesse ser suficiente para tirar o peso da bigorna em minha consciência.
E era apenas o primeiro dia.
— Foi tão ruim assim? — ela perguntou, farta do meu silêncio e corpo mole. Drama não era muito meu feitio, mas naquela ocasião, a tpm também não poderia ser de muita ajuda para amenizar qualquer coisa.
Depois de terminar de me servir e receber pelas mãos dela a cestinha de pães fatiados, ergui o olhar e encontrei os seus bem abertos, em expectativas.
— Por que a senhora não me fez um pouco menos linguaruda? — suspirei. — Pense, o cenário perfeito para um primeiro dia.
Já me conhecendo o suficiente, Andrea se encostou na cadeira, molhando seu pão na sopa, e disse:
— Se eu acertar, você lava a louça. Acabou mencionando aquele caso de traição de Jake?
— Não. — Usei meus cotovelos apoiados na mesa para colocar o rosto entre as mãos e fiz uma careta. — Era um coquetel e tinha um painel gigante, com o que eu pensei ser dos prováveis esboços do que o artista queria para a coleção...
— Hum... Animal print? — ela me cortou, apontando com o uso da colher.
— De todos os estilos mais bregas possíveis — suspirei. — Mas você lava a louça, errou na primeira. — Endireitei meu corpo na cadeira.
— Eu já ia lavar de qualquer forma — Andrea deu de ombros, continuando a comer, agora sem me olhar, mas ainda curiosa. — E qual foi a gafe?
— Falei mal do que estava vendo. Fiz praticamente uma tese para um cara que parou do meu lado e conversou comigo amigavelmente e... Ele é aquele tipo de pessoa que consegue te colocar dentro da conversa, de fato, sem se esquivar, e demonstra interesse em te ouvir — resmunguei, fechando os olhos de forma dramática.
— Falou mal da coleção para o artista criador dela... Que belo começo para uma carreira jornalística no meio da moda, ! — Diferente do que se espera, Andrea riu, gargalhou, até soltou o talher na mesa. — Céus, você devia ter ficado com os esportes mesmo... Mas, como sempre, preferiu ouvir seu pai. Nem sempre ir pelo dinheiro é a melhor opção... — Senti a amargura em sua voz, mas ignorei essa parte.
— A questão é: no fim, aquilo não era a coleção dele e só um quadro qualquer.
— Menos mal. Sim?
— Em partes. Descobri que vai ter crítica em cima da coleção e-
— Eles te pediram para escrever? — Andrea me cortou, agora com os olhos arregalados e totalmente surpresa. — Mas você nunca… …
— Eu sei. Eu sei. Vou esperar o horário certo pelo fuso e ligar para Makyla. Não era esse o combinado. Mas, por ora, o pior não é isso — tornei a me comportar dramaticamente, choramingando com o rosto apoiado nas mãos. — Depois disso, o dia todo seguiu errado. Com certeza paguei hoje mesmo pelo meu fiasco... Meu sapato descolou a sola, tive que usar cola de artesanato e sujou toda a minha roupa. Voltando para casa, não consegui nenhum motorista, porque sou... como é mesmo? Sou americana demais. Ninguém soube me explicar direito o caminho para a estação de metrô e meu celular descarregou. Para completar? Perdi minha bolsa e tomei chuva. Só soube chegar até aqui porque pelo menos o meu sexto sentido não falhou e eu anotei em um papel o enderço e coloquei na capinha do celular.
Mamãe ia dizer algo confortante, mas a campainha tocou primeiro.
— Deixa que eu vou. Coma a panela toda se quiser, eu faço algo para mim. — Levantou-se, passando por mim e deixando um beijo em minha testa.
Suspirei mais leve após o desabafo e me concentrei em pegar as primeiras colheradas da sopa, revivendo em minha mente o que tinha acontecido, até que, em meus ouvidos, uma voz um pouco familiar se fez presente com um inglês polido. E o que minha mãe dizia me deixou mais alarmada ainda.
— Entre... Estávamos começando a jantar agora... Céus, você está está ensopado... Não posso deixar que vá embora nesse temporal depois de ter vindo até aqui só para isso... , olha só! Esse rapaz gentil encontrou sua bolsa!
Me virei com a boca cheia do caldo, segurando a tigela, por estar bebendo direto dela, e talvez isso tenha sido a pior das escolhas feitas. Em frente à porta, que era fechada por minha mãe, estava ele: , molhado da cabeça aos pés, com um sorriso tímido e que ainda assim mostrava suas covinhas, e, movendo meus olhos para a sua mão direita, caída à lateral de seu corpo, pude ver minha pequena e preciosa bolsa da Gucci, tão falsa quanto minha sorte daquele primeiro dia em Seul.
Certamente não foi uma boa decisão encarar aquilo tudo de boca cheia. O líquido grosso desceu tão apertado e quente em minha goela que eu senti que poderia desmaiar sem o mínimo de ar. De nada ajudava o composto daquela figura: calça jeans preta, bem justa, um coturno preto totalmente imponente, sendo o match perfeito para a camiseta branca, com a jaqueta de couro preta por cima.
Só tinha um porém: a camiseta era tão fina, que eu jurava estar vendo até mesmo as linhas que formavam a definição de seus músculos.
— Desculpe... Acho que isso te pertence. — estendeu o objeto para cima e eu me virei rapidamente para a mesa, devolvendo a tigela em cima dela e me levantando. Ele me olhou de cima a baixo sem nenhuma discrição, e eu senti minhas bochechas corarem. Meu pijama de cetim com estampa de bola de futebol era bem peculiar. E eu não usava sutiã.
Senti o efeito do quente ter queimado meu esôfago, ficando sem resposta. Por sorte, eu tinha minha mãe comigo.
— É muito gentil da sua parte trazer até aqui… — Andreia estava entre nós dois, parada ao lado, e me encarava com nervosismo. — nunca foi tão desligada assim, deve ser o jet leg… Não é, querida? — entoou forte.
Limpei a garganta, assentindo roboticamente.
— É! — disse quase em um grito. — É, é sim… — e suavizei em seguida, tomando a bolsa de sua mão. — Eu… Como… — olhei do acessório para ele, sem encontrar uma resposta concisa para a minha dúvida. — Como você encontrou?
— Estava no ponto de ônibus pouco à frente do prédio. Nuyah forneceu seu endereço e… Agora estou aqui — justificou junto da resposta, me sanando a outra dúvida que viria em seguida. — Pode conferir se está tudo aí… Eu tomei a liberdade e chequei brevemente, o passaporte está aí.
Tomei um susto, me lembrando do meu caderno de anotações.
Não era um caderno só para anotar coisas relevantes de uma matéria. Era como um mundo das minhas criações.
Abri rapidamente a bolsa e me senti aliviada ao vê-lo ali, espremido com o passaporte e a pequena carteira.
— Não sei como te agradecer — ergui o rosto em sua direção, olhando-o ainda sem jeito. — Eu a devo ter deixado para trás quando tentei pegar alguns táxis.
— Tente os aplicativos, eles são mais eficazes nessa época do ano — me aconselhou e eu assenti.
Íamos entrar em um silêncio daqueles constrangedores, mas Andrea foi mais rápida, dizendo, empolgada:
— Como é que você disse que se chama mesmo?
olhou para ela de uma forma menos intensa e, parecendo mais à vontade, respondeu:
— .
Minha mente deu uma volta de 360 graus, seguida de uma cambalhota torta e um giro quase mortal. Porém, teve algo dentro de mim que se acendeu como uma constelação formada no universo e vista à céu limpo, gritando que eu deveria conter minha língua e expressões, e seguir aquela trilha maluca.
Respondi a mim mesma de forma automática: talvez o fosse seu nome verdadeiro. O que faria bastante sentido.
E também acrescentei à nota mental de que deveria pesquisar sobre ele, sua vida, seus trabalhos, fazer a lição de casa. Por mais que pudesse soar difícil, por eu querer implantar a ignorância como uma opção para “avaliar” a vida de alguém, assim como descobri que teria de fazer, saber algo além de seu nome era importante. Talvez sua idade e ideologias, porém nada muito profundo que pudesse alcançar seu tipo sanguíneo — o que eu sabia ser possível encontrar em algum site formado por fãs.
— Ah, sim, . Sente-se com a gente para o jantar. Espero que goste de caldo de ervilhas. — A voz de Andrea me fez voltar a funcionar e eu deixei a respiração normalizar. — Está uma delícia! Até a senhora do apartamento ao lado elogiou o cheiro…
— Não, não. Não precisa se incomodar, eu só vim entregar a bolsa e já vou indo.
— Que isso! — ela o cortou, gesticulando com a mão em um movimento no ar. — Sente-se com a gente, vai ser um prazer. É o mínimo que você merece por ora…
Andrea tinha sido uma mulher muito esbelta, elegante e dona de uma postura super rígida nos tapetes vermelhos, assinando grandes coleções, principalmente pela Victoria’s Secret. Mas, atualmente, minha mãe mais parecia com uma velha fofoqueira que faz doces e especiarias maravilhosas e distribui pela vizinhança do que com a imponência passada. E às vezes eu só a deixava ser, sem cortá-la, até porque não tinha muitas opções.
Igual ao momento em que ela simplesmente empurrou , ou , pelos ombros em minha direção, guiando-o para se sentar em uma das outras três cadeiras à mesa quadrada.
— Eu vou pegar o seu bowl para se servir — disse, olhando-o de forma incisiva para que se sentasse. Me virei de volta para minha cadeira e dei de ombros para ele.
— Se você não sentar e comer pelo menos um pouco, Andrea não vai te deixar sair por aquela porta — apontei e me sentei, pendurando a alça da bolsa na guarda da cadeira.
se sentou. Ele parecia um pouco rígido e eu não estava tão diferente, porém, em uma breve reflexão, me lembrei de que estava em meu próprio território e que ele era a visita (inesperada, mas ainda assim uma visita — que, reforço, deveria ter avisado em outra circunstância), portanto eu precisava demonstrar, além da gratidão, um pouco de educação. Limpei a garganta sutilmente e enquanto mexia a colher em meu caldo, agora morno, perguntei:
— Isso é mais um traço de personalidade?
Ele me encarou sem entender, formando um vinco no cenho.
Entrei em uma bolha, reparando que aquilo iria mais longe do que eu gostaria, ao reparar que Andrea havia sumido e estava quieta. Até demais.
— A boa ação. Você veio de longe, embaixo de chuva — apontei com o indicador de uma maneira leve e ele se olhou. — E eu sou uma estranha.
— Eu dou valor ao esforço. A sua Gucci custou muito do seu suor — foi a vez dele apontar, arqueando as sobrancelhas. Era incrível como exatamente tudo o que ele fazia com os músculos do rosto, independente da intensidade, trazia como consequência assertiva as suas covinhas.
Ri fraco e desviei o olhar para minha tigela de sopa.
— E fique tranquila. Eu apenas reconheci a bolsa, não precisei abrir. É difícil encontrar coleções passadas por aquele lado de Seocho. — Vi seu rosto travar e as bochechas corarem com a minha reação. — Não estou julgando! — Se embolou, fechando os olhos e gesticulando exasperado.
— Fique tranquilo, não estou no meu horário de trabalho, não vou escrever nenhuma anotação maléfica sobre isso. Embora pareça bem interessante… — torci os lábios, fingindo pensar.
— Então talvez seja melhor eu comer esse caldo.
— Ou não. É o meu favorito — sussurrei, como se fosse um segredo. — E eu tô de tpm — completei.
encostou na cadeira, como se estivesse esquivando-se.
Neste momento, Andrea surgiu. Empolgada e com um tecido preto em mãos.
— Ainda bem que trouxe comigo alguns camisões do Paul e… — dizia. — Aqui está, querido. Acho que serve pra você tirar essa aí e não pegar um resfriado.
Ele se desconcertou ao meu lado ao vê-la com uma camiseta em frente ao corpo.
— Ela prefere roupas largas para o pilates — expliquei para ele, tornando a me alimentar e tentando me sentir mais tranquila, com costume.
— Não, não… — negou com as mãos, um pouco assustado. — Está tudo bem.
— Se você não levantar daí e trocar essa camiseta agora mesmo, eu não deixo você namorar minha filha! — Andrea bateu o pé e eu outra vez me afoguei com o caldo. Felizmente agora ele não estava fervendo.
— Mãe! — berrei, me levantando rapidamente. Ela se assustou, se assustou, até eu me assustei. Tomei a camiseta de suas mãos e virei para ele, praticamente jogando em cima do seu corpo. — Tem um banheiro logo ali, é melhor você se vestir para não pegar uma gripe mesmo e… Ir. Não é ético-
— Entendo. — logo se levantou, não me deixando finalizar.
Ele foi rápido. Eu continuei assustada naquela velocidade das coisas e senti um beliscão em meu antebraço.
— Ai!
— É assim que trata a visita? — Andrea me repreendeu. — Por isso você continua solteira, !
— Ele não é visita. E nem mesmo uma opção, Andrea! — Puxei meu braço, olhando-a com os olhos semicerrados. — é alguém do trabalho, só isso.
Me virei para pegar a bolsa e a tigela com a colher, não dizendo mais nada e indo direto para o quarto. Só queria comer meu caldo em paz e curtir o meu stress da tpm ouvindo qualquer letra melodramática do John Meyer.

It’s just the way it is
Maybe it’s never gonna change
— Christina Aguilera, Demi Lovato

— Isso deve bastar, obrigada.
Tomei das mãos de Nuyah o milkshake de chocolate, levando o canudo diretamente aos meus lábios e sugando sem demora alguma, não me importando com o quão frio estava o líquido grosso que corria pela minha garganta, “congelando” meu cérebro. Eu só precisava de algo muito, mas muito, doce para aliviar o meu problema daquela indigna situação de tensão pré menstrual, que, inclusive, tinha me tirado uma deliciosa noite de sono depois de um dia catastrófico terminado em uma grandíssima confusão pela visita inesperada de . E eu tentei, se tem uma coisa que eu tentei, esta foi dormir; meu maior desejo era que tudo não tivesse passado de um pesadelo ou alucinação causada pela tortura do jet leg.
Só que não foi bem assim. Eu ainda estava cansada da viagem, tudo acontecia de forma bem real e agora estava em uma sala de reuniões, esperando o chefe coreano chegar para repassarmos exatamente o que seria feito e me cobrado a partir de então. Nuyah e o fotógrafo, de nome Yungho, estavam comigo e ela parecia ser extremamente solícita em garantir pelo menos o mínimo do meu humor.
Tanto ela quanto Yungho pararam de me olhar estranho quando viram a chegada do senhor Choi, pois a sala era toda fechada de vidro transparente. Os dois logo se levantaram e eu me vi na obrigação de fazer o mesmo, embora meu corpo todo clamasse por ficar pelo menos parado, já que não podia deitar largada em uma cama o dia todo. Apenas não segui o cumprimento formal de se curvar, já tendo sido dito que, para mim, isso não seria exigido — o que eu agradeci àquele momento, pois, se eu me inclinasse para frente, não seria nem mesmo necessário uma brisa para me fazer tombar.
— Bom dia, senhores. — Choi se colocou à ponta da mesa, abrindo seu paletó para se sentar, e apontou para que fizéssemos o mesmo.
— Bom dia, senhor Choi. Não precisa se preocupar comigo, podemos seguir a reunião em coreano mesmo. — Me sentei, dizendo educadamente na língua nativa do país, pela feição estranha de Nuyah e Yungho. — Estou bem familiarizada com o idioma.
— Ah, sim, lembro de ter sido um dos motivos de terem te enviado… — ele assentiu, puxando a pasta em sua frente e a abrindo. — Bem, em coreano, então — sorriu de forma polida para mim.
Eu assenti e fiz o mesmo, deixando meu copo de milkshake pela metade e abrindo a pasta.
— Ontem não tivemos tempo para muita coisa, senhorita Blewer, foi um encontro rápido para nos conhecermos. Peço desculpas por isso…
— Não precisa. Eu entendo completamente — fui sincera, olhando-o.
— Mas fiquei sabendo que sua presença no coquetel de ontem foi bem proveitosa. É importante estarmos bem representados sempre. — Senti o incômodo no estômago quando a lembrança do dia anterior sucedeu a fala dele. Choi apoiou os braços na superfície e me encarava enquanto continuava: — O ideal para essa campanha inédita da Prada é promover igualdade e cessar o ódio em cima do oriente, que aumentou principalmente depois da pandemia. A parceria com a Vogue foi fornecida por questões amigáveis entre as duas empresas que já duram alguns anos. Porém, ainda não podemos deixar de sobrepor em cima disso a crítica.
— Pensei que o projeto fosse apenas o acompanhamento, uma cobertura comercial. — Não desviei o olhar, me mantive firme na minha postura, por mais tortuoso que fosse estar querendo ir embora e me esconder do mundo.
— Na verdade, essa foi a ideia inicial — apontou a pasta e eu olhei para o papel preso, folheando a página. — No contrato feito entre as duas partes não diz nada sobre isso, porém.
— Então estaremos produzindo como um bônus… — constatei, voltando a encará-lo.
— Sim. Não existe a menor hipótese de uma revista como a nossa não emitir uma opinião em cima de uma coleção, principalmente quando esta será da Prada e envolve todo um contexto enorme por trás disso.
— Mas, então, por que dar isso a mim? Qual o meu local de fala em um assunto diplomático como este? Por que, se vamos criticar uma coleção a este nível, inédita e importante para um lado e uma mensagem, não deveria ser uma mulher ocidental, sem experiência e distante da realidade abordada a fazer isso? Tenho certeza que aqui existe críticos para isso.
Choi fechou a pasta e se encostou no encosto da cadeira, apoiando o cotovelo no tampo de vidro da mesa. Olhou para os outros dois e de volta para mim, com um singelo sorriso sarcástico nos lábios.
— Justamente por você não ser a pessoa mais indicada nós queremos que faça. É tudo inédito, senhorita Blewer, até mesmo para você — apontou para mim. — Não estamos falando de uma subcoleção, edição especial, limitada, etc. É algo grande e diferente, novo…
Não consegui segurar a maré de pensamentos críticos com a postura do que estava sendo imposto para mim e soprei o riso nasalado em uma única sílaba, tomando meu milkshake de forma rebelde.
O que eu estava entendendo nestas entrelinhas com certeza iria me revirar o estômago.
— Estamos falando de um experimento, então — disse, sentindo minha feição se tornar mais rígida.
— Essa é a sua observação — ele devolveu.
— Não — fechei os olhos brevemente, me organizando. — Pela forma como está me apresentando isso, eu consigo entender o que estamos experimentando. A Vogue está há anos no mercado, possui grandes nomes críticos para exercer justamente essa função. Não estou aqui há tanto tempo para ser concedida a mim esta função. Acompanhar e relatar é o que eu tenho feito, mas criticar? — Fiz uma pausa, esperando que ele me cortasse ou dissesse algo, até mesmo reagisse de forma ofendida e alguma maneira para eu ver que estava errada. — Vocês querem sabotar a coleção…
Saiu quase como um sussurro à minha interpretação final.
— Vai depender da sua opinião. O sucesso dela pode até ser grande entre aqueles que gostam de e têm dinheiro para adquirir as peças. Afinal, estamos falando da Prada, marca de luxo — Choi foi taxativo e eu comecei a me sentir zonza. — Mas, fora da bolha… Isso depende do que nós dissermos. E — virou a própria pasta aberta para mim, apontando uma cláusula qualquer —, se o comercial não atingir, no mínimo, 75% do sucesso esperado, este é o valor que teremos de ressarcimento. Incluindo você.
— Isso é… — suspirei, me sentindo derrotada.
— Você pode recusar e voltar para casa sem emprego. É a sua escolha. Ou continuar usando as folhas do seu bloquinho e aproveitar que temos passe livre para acessar a agenda do artista. O tempo corre, senhorita Blewer, e esses números aqui também expressam uma aposentadoria antecipada.
Não tive tempo de refutar, de xingar ou de explodir em cima dele. O homem simplesmente se levantou e saiu, me deixando para trás com os dois chaveiros que me foram disponibilizados e uma bigorna do tamanho de um Titanic em cima dos ombros.
Eu tinha sido tirada de Nova York para ser usada em uma cartada suja em nome de dinheiro, ganância e um nome imponente feito a custo da derrota não orgânica dos outros. Isso era, para ser simples, de uma tremenda arrogância e estava me revirando o estômago, a ponto de eu sentir o milkshake querer fazer o caminho de volta.
Fazia sentido o motivo de Makyla não ter ido. Eles queriam um nome que pudesse ser excluído posteriormente, porque a lógica mais clara seria: a crítica abusiva leva ao fracasso fora da bolha, o ressarcimento é feito, posteriormente é emitido um pedido de desculpas porque a pessoa, no caso eu, que emitiu a opinião crítica não tinha experiência, usando a desculpa de dar voz e espaço à pessoas novas, criando um politicamente correto falso, em uma narrativa em que, no final, eu e somente eu seria a culpada e incopetente — porque o poder da bolha faria com que uma mera mortal como eu se tornasse a culpada.
Uma tática nojenta, claro.
Só não vomitei ali mesmo ou surtei, porque o celular de Nuyah apitou em notificação, praticamente gritando no ambiente silencioso que ficou a sala.
Ergui meu rosto e sabia que não estava tão simpática, quase parecendo um ser necessitado de exorcismo.
— É… — tremulou em sua voz. — Eu… Eu… — limpou a garganta. — Estou em contato com a equipe dele e me avisaram que já estão no prédio da SM, onde ele faz os ensaios do grupo e tal…
Assenti, mordendo o lábio inferior e deitando a testa com força no vidro.
— Senhorita Blewer, eu… eu também não sabia disso — Nuyah disse docemente. — Está pensando em desistir?
Enchi meus pulmões até ficar pesado para respirar e soltei o ar, erguendo o rosto e tirando os fios caídos do cabelo. Encarei ela e Yungho, os dois me olhavam com cuidado e olhos perdidos. Sabia que ele também era novo como ela e me senti muito responsável pelo trabalho deles, como se naqueles olhares estivesse um pedido nada silencioso de “por favor”.
Porém, não iria se tratar somente deles. Eu tenho o meu orgulho. Tenho a minha própria personalidade. E no meu contrato não tinha nada dizendo do que eu deveria falar. A ideia sórdida de me subjugarem poderia cair por terra.
— Jamais. Eu vou perder meu emprego, mas não por desistir — emiti um sorriso simples, de lábios fechados. — E não vai ser a minha aposentadoria que virá mais cedo. Vamos, temos muito trabalho a fazer.
Me levantei, colocando a pasta embaixo do braço e pegando meu milkshake para terminá-lo.
— Vocês sabem de alguma loja no meio do caminho que eu possa comprar doces? — perguntei, assim que alcancei a porta.

🗼

O calendário de moda foi criado em 1957 por um cara chamado Charles-Frédérick Worth. Segundo o que conta na história, este é o pioneiro da alta-costura e nesta época vendia roupas prontas. Com a alta demanda, Charles pensou que deveria organizar seus produtos de alguma forma e fazer isto por estações do ano, colocando modelos para apresentar suas produções.
Quase cem anos depois, em 1943, a primeira semana de moda no mundo aconteceu, e foi chamada de Press Week, mas isso não acabou sendo uma criação dele e sim de uma jornalista chamada Eleanor Lambert, com o objetivo de apresentar as coleções para quem não podia viajar até Paris depois da Segunda Guerra Mundial. O sucesso foi tão grande, que conseguimos notar na atualidade com inúmeras semanas de moda acontecendo ao redor do mundo: Milão, Paris, Nova York, São Paulo, capitais e mais capitais recebendo o grande e luxuoso evento com holofotes não só em roupas, expressões e costuras de alta-linha, mas também no dinheiro.
Essa ideia também foi abraçada pelo capitalismo e, eventualmente, devido ao grande sucesso, se tornou plural e o calendário de moda se tornou mais flexível. A não ser pela tão popular e respeitada Semana de Alta-Costura. Além das semanas de moda, as principais grifes ao redor do mundo possuem seus desfiles independentes e, em alguns dos casos, coleções extras podem surgir. Com o passar dos anos, a globalização tornou o capitalismo progressivo e o mundo foi engolido pelo desejo e ambição do “querer mais”, e este mais é o dinheiro.
Enquanto eu lia outra vez o mesmo artigo que tanto li durante o período de faculdade, minha mente divagava na irônia do meu presente. Por anos vivi à sombra da história dos meus pais, que não ficaram comigo porque queriam viver o mundo.
Andrea era estilista, ela amava desenhar e criar. Isso tomava muito do seu tempo longe de casa, longe de mim, então a decisão mais rápida e que teve sentido para ela foi de partir, viver seu sonho e sua vida que tinham apenas começado. Enquanto meu pai continuava fotografando por aí. Os dois eram motoristas assíduos da máquina capitalista que move o mundo, enquanto eu estava aos cuidados dos meus avós paternos. Agora, próxima demais dos meus 30 anos, eu era a passageira de uma máquina capitalista. Uma bem parecida com a qual foi responsável por tirar meus pais de mim — ou fazer com que eles escolhessem-na, claro.
Ouvi o suspiro de Nuyah se encontrar com o meu e ergui o olhar para ela, notando a melodia diferente que o dela entoou, enquanto olhava para a vista que tínhamos do lado de fora, parecendo uma criança maravilhada.
— Você vê isso todos os dias e ainda suspira da mesma forma? — Yungho, ao lado do motorista, disse lá na frente.
Bloqueei a tela do iPad, percebendo que seria um pouco melhor prestar atenção à conversa do que ler artigos que iriam apenas encher meu cérebro de mais palavras que não se fixariam, simplesmente por não serem o meu assunto favorito ou algo perto disso.
— Eu gosto de lembrar que o meu cadeado está lá — Nuyah continuou virada para a janela, apoiada à porta.
— Cadeado? — perguntei de forma automática pela minha curiosidade.
— Céus. — Ouvi o resmungo de Yungho. — Você é mesmo uma jornalista?
— Yungho! — A repreensão veio de Nuyah. Ela me encarou com as bochechas coradas e eu sequer reagi. — Desculpe pelos modos dele… — Ela se esticou, o alcançando e lhe dando um tapa no ombro. — Peça desculpas!
— Está tudo bem! — intervi, puxando o punho dela para baixo e a encarando. Nuyah se acalmou. — Eu sou uma jornalista. Mas meus planos não eram nada parecidos com o meu presente.
— E o que foi que deu errado para te trazer até aqui? — ela perguntou.
— Pais ricos.
Olhei para a frente, observando a postura intocável de Yungho.
Senti meus ombros murcharem e desbloqueei a tela do iPad em meu colo, voltando para o artigo. Certamente, eu não era a chefe dele, então a sós não precisaria ser bondoso e educado por vontade própria.
— A Torre foi construída em 1969, em cima da montanha Namsan. Por isso o nome: Torre N. — Olhei para Nuyah e ela estava me olhando com os olhos brilhantes e o sorriso simpático no rosto. — Lá tem diversos pontos de visita, incluindo um museu de ursos e o teleférico que te proporciona vista para a cidade toda.
— Legal — assenti.
— É um ponto turístico, mas ao mesmo tempo um lugar com espaço propício para os românticos.
— Por isso eu me mantenho longe — Yungho reclamou de seu lugar, em seu coreano de sotaque forte.
— Não é não. É porque você deixou crescer uma crosta de gelo no lugar disso aí que chama de coração — Nuyah retrucou, cruzando os braços, mas não mantendo sua carranca por muito tempo. Logo se direcionou a mim com o mesmo brilho no olhar. — Por mais que a vista de lá de cima seja incrível e os ursos, fofinhos, a melhor parte da torre é… — suspirou, unindo as mãos à frente do corpo. Notei que atrás dela já não tínhamos mais a mesma vista e agora eram apenas prédios e carros. — O terraço.
— E o que tem nele, além de uma altura imensurável? — instiguei, notando o quão interessada sobre o assunto ela parecia ser. Não podemos julgar as pessoas que são diferentes de nós por acreditarem em coisas opostas, se ela não era cética como eu, tudo bem, então. Bloqueei a tela novamente e mudei meu comportamento, percebendo que até Yungho se surpreendeu comigo prestando atenção no que ela tinha a dizer, no momento que me virei de lado.
— O amor. A tradição de prender um cadeado às barras de ferro da torre e colocar uma mensagem se popularizou por conta de um reality show chamado “Ee Got Married”.
— E o que fazem com a chave? — perguntei.
— Vai para a ONG que cuida de jovens que moram na rua. Tem todo um cenário altruísta, ao mesmo tempo que romântico. Sim?
— Mas e se o amor acabar? Como fazer para encontrar a chave? — franzi meu cenho.
Nuyah levou um tempo travada, me olhando como se eu fosse um alien dizendo ser dono da Terra ou que o céu é vermelho.
— Não tem como acabar. Se é amor, não acaba. O amor é tão robusto e ALGUMA COISA quanto aquela torre. — Ela respondeu depois de alguns segundos, sendo seguida de uma risada irônica de Yungho. Olhou para a direção dele brevemente, dando uma “joelhada” em seu banco. — O amor é insubstituível, senhorita Blewer, e, se duvida disso, é porque ainda não encontrou a sua Torre N.
— Você não sabe, senhorita Han. E se eu estou falando isso justamente por saber que é possível acabar? — arqueei minha sobrancelha, desafiando-a.
— A senhorita mal sabe sobre moda, como saberá do amor?
— O que uma coisa tem a ver com a outra? — Forcei mais a minha feição confusa.
— Se não sabe sobre o próprio trabalho, como vai saber de algo natural da vida? — Nuyah deu de ombros, se ajeitando no banco e olhando para fora outra vez, passando a me ignorar como se eu tivesse lhe ofendido.
Talvez eu devesse ter ficado com os meus artigos mesmo.
Ou devesse tentar voltar no tempo e fazer a recém formada recusar a influência de seu pai e ir trabalhar para a ESPN como sempre sonhou.
Agora eu teria que lidar com meu orgulho de uma adolescente de 15 anos por ser colocada à prova e aguentar até o fim da minha decisão de ficar.

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— Chegamos — Yungho anunciou, soando aliviado. — Mais um pouco nesse carro e eu sairia direto para comprar um cadeado — brincou quando abriu a porta, saindo.
Eu desci em silêncio enquanto ele e Nuyah discutiam do outro lado do carro, e agradeci apenas com um aceno positivo de cabeça ao motorista que me ajudou abrindo a porta para que eu descesse sem derrubar minhas coisas. Não é como se eu fosse precisar de tudo o que estava em meus braços, mas eu gostava de ter um outro aparelho tecnológico além do celular e uma garrafa de água própria — desde que fui ao Brasil e peguei trauma do preço de uma garrafa de 600ml na praia.
Olhei em volta no estacionamento subterrâneo e me surpreendi com a quantidade de carros de luxo que tinham ali. Parecia muito com a garagem de um jogador de futebol atuando na Europa.
— Senhorita, Blewer? — Ouvi meu nome ser chamado e uma sonoridade sem o sotaque puxado e me virei, vendo uma moça vestida totalmente de uniforme social e um rabo de cavalo alinhado, toda sorridente e educada à minha espera. — Sou Sarang. Yoon Sarang.
— Ahn, sim. — A cumprimentei de volta. Automaticamente fiz a reverência e acabei deixando passar, sorrindo para ela, um tanto desconcertada por sua mão que foi estendida. Equilibrei a garrafa de água junto com o braço para segurar em conjunto do iPad e apertei sua mão. — Muito prazer.
— Seja bem vinda à SM. Eu vou ser a responsável por acompanhar sua visita.
— Ah, perfeito. — Me vi sem muito o que desenvolver e olhei para trás, vendo os outros dois lá do outro lado ainda na mesma implicância. Suspirei e encarei o motorista, um senhor simpático. — Temo dizer que o cadeado vai continuar lá, mas eventualmente irá mudar a dupla — comentei e ele assentiu. Assoviei aos dois, tendo atenção. — Vão ficar aí o dia todo?
Imediatamente eles se afastaram e ajeitaram as próprias posturas.
— Estamos prontos — sorri para a senhorita Yoon.
— Por aqui. — Ela apontou a direção da porta de vidro e eu me despedi do senhor ao nosso lado com um sorriso.
Havíamos parado exatamente no desembarque naquele subterrâneo, então a segui, sabendo que os dois já estavam logo atrás durante o caminho até os elevadores, onde tinha uma mesa com três credenciais.
— Esse é o dia mais próspero de todo meu ano como estagiária! — Nuyah vibrou ao ver um sendo direcionado a ela e logo o pregou em seu blazer. Eu e Yungho seguimos a sequência.
— Nós vamos direto à sala de ensaios, hoje eles estão com o dia fechado somente para o ensaio por conta da próxima turnê — Sarang explicou, apertando o botão do elevador. — Acho que será um pouco entediante para você, senhorita Blewer.
— Ah, mas não tem nada de tedioso ver-
Encarei Nuyah com um olhar carregado, pedindo que ela ficasse quieta apenas com isso. E funcionou, ela agarrou a própria cintura e olhou para o chão. Eu me senti um pouco culpada, ela era realmente um doce de pessoa e seus olhos brilhavam tanto que passavam um conforto absoluto de alguém confiante. Mas o bom senso deveria ser um dos principais modos e talvez eu pudesse mesmo ensinar um pouco a ela, aproveitando seu potencial.
— A partir de amanhã, a agenda deles deve começar a melhorar, principalmente a de — Yoon continuou, ignorando o momento de Nuyah e o meu olhar. Nós entramos no elevador e ela se manteve como guia, ficando à frente. — Com a coleção, os trabalhos de modelo e as outras inúmeras tarefas pelo lançamento, ele ganhou dois dias de folga.
— Mais um dia tedioso, então. — Todas nós encaramos Yungho com o mesmo julgamento. — O que foi? Vocês não leem? é conhecido por ser pacato demais. Em um dia de folga ele deve se prender em um quarto, usando um pijama da Prada, com uma meia da Prada, enquanto assiste aos desfiles antigos da Prada.
Sarang riu, abaixando a cabeça de forma tímida. Eu e Nuyah trocamos olhares.
— Bem, eu acho que você vai ter que descobrir isso por si — disse para mim, olhando-me docemente. — Mas eu devo alertar que pontualidade é algo do qual ele preza muito.
Não entendi muito bem o que ela quis dizer, as portas se abriram no mesmo instante que fez um barulho e eu me assustei com o leve tremor que senti ao pisar para fora do elevador, seguindo-a.
— Diz-se que já foram registrados tremores desse prédio. No andar que eles ensaiam. — Senti o hálito quente de Nuyah em meu ouvido quando ela disse, sussurrando, enquanto andávamos o curto caminho para a única porta de dois lados que tinha naquele andar.
— Infelizmente, como se trata de um lançamento ainda a ser feito, não podemos permitir o uso de câmeras nesta sala. Não foi autorizado — Yoon disse ao parar diante da porta.
— Ah, ótimo. Estou dispensado, então? — Yunho não parecia nada triste por isso, então eu decidi ser aquele tipo de chefe chata, haja visto que nesta situação a responsável pelos dois era eu.
— A senhorita Yoon pode encontrar alguém que assista a sua visita ao prédio. Faça um portfólio do lugar que frequenta, descubra salas… Seja criativo e eu te deixo ir para casa mais cedo — sorri de lábios fechados para ele. Yoon concordou.
— Me espere no terceiro andar — ela orientou e ele murchou os ombros, virando-se para retornar o caminho.
— Nuyah, vá com ele. O mesmo serve para você. — Me direcionei a outra.
— Mas senhorita Blewer… — fez um bico manhoso e eu mantive minha postura. — Tá bom.
— Podemos? — Sarang me perguntou assim que virei o rosto para frente e eu apenas assenti.
Ela abriu a porta e o que eu vi trouxe sentido e verdade para o que Nuyah tinha dito sobre os tremores.
Não consegui contar de forma imediata, mas tinha mais do que apenas o naquela sala, no centro, no caso, dançando. Aliás, eu só consegui enxergá-lo durante os movimentos coordenados e sincronizados porque ele estava no centro assim que me coloquei para dentro do ambiente. Sua feição séria se manteve reta e concentrada no próprio reflexo sendo transmitido pelo espelho em sua frente, nada muito diferente do restante. No todo, os passos eram muito bem elaborados e efetuados com força, determinação e muito profissionalismo.
Yoon não disse nada, apenas me guiou até uma cadeira seguindo a parede lateral esquerda à porta e eu me sentei, vendo-os por trás. Além de mim, sentados ao chão, havia algumas pessoas, homens e mulheres, não somando mais de dez. Ela logo se despediu, dizendo que já voltava, e eu entendi que iria guiar os outros dois, então apenas me ajeitei, colocando a garrafa de água no chão e a bolsa, o tempo todo no ombro, em cima do colo para apoiar o iPad, que eu desbloqueei para passar o tempo.
Sempre gostei de desenhar antes de ocasiões que fossem me demandar uma certa cobrança; em épocas de provas na escola eu tinha diversos desenhos sem sentido espalhados pelo quarto, referentes às matérias e os temas estudados, o que se estendeu para a faculdade e depois o trabalho. No meu primeiro ano na Vogue, Makyla me chamava de estranha, mas depois ela logo entendeu ser o meu modo de assimilar o que está em andamento, assim como ela tem a mania — que consiste em reler a própria crítica seis vezes, metade de cima para baixo, a outra de baixo para cima, enquanto pinta as unhas dos pés de vermelho (talvez fosse por isso que ela tivesse negado ir para Seul, em um outro cenário hipotético em que eu não soubesse a verdade, porque ela não poderia reler e pintar as unhas, a barriga de grávida não permitiria).
Seguindo essa mesma rotina, abri meu aplicativo de desenho e segurei decentemente na caneta do próprio aparelho. Meus rascunhos geralmente começavam com pontos, porém, desta vez, começou com uma forma geométrica e eu alternei meu olhar para a frente e para a tela, prestando atenção em um de cada vez. Até me ver sem espaços no que deveria ser um desenho torto do que tinha ali naquela sala: uma boyband ensaiando; entretanto, só tinha um membro desenhado.
— Qual a diferença entre o caderno e o iPad? — Ouvi a voz grossa e familiar ecoar e ergui o rosto. estava em minha frente, usando uma toalha para secar seu rosto e pescoço. — Devo me preocupar com isso?
— Para alguém tão sereno quanto dizem por aí, você se preocupa muito na questão de precisar se preocupar — devolvi, bloqueando a tela do aparelho de forma instintiva.
— Talvez eu tenha julgado mal e ir até sua casa não foi uma boa ideia. Estou levemente preocupado. — Ele forçou um riso, trazendo para o protagonismo suas covinhas. Respirei fundo, desejando que este assunto fosse esquecido para sempre.
— Vamos apenas fingir que isso nunca aconteceu, tudo bem?
— Do que estamos falando mesmo?
— Muito bem — sorri, satisfeita, e me inclinei levemente, a fim de pegar a garrafa, quase tendo um acidente com meu iPad caindo no chão, se não fosse o bom reflexo dele em estender a mão e segurar, o que foi feito por mim também, resultando em nós dois segurando a mão um do outro.
— Cuidado — disse, outra vez eu ergui o rosto para olhá-lo. Estávamos próximos. E, sim, as covinhas eram sensíveis demais a qualquer mínima movimentação facial dele. E profundas.
— Você dá valor demais ao suor alheio — comentei, voltando o corpo para trás. — Deve ser porque sabe bem como é derramar o próprio — apontei para seu corpo.
se analisou e levou a toalha para um braço e o outro.
— Sim, quer testar uma forma diferente de suar? — indicou, logo parecendo limpar a garganta em nervosismo, pois deu pomo denunciou isso. — Digo-
— Eu entendi — impedi que ele criasse uma situação vergonhosa para nós dois. — E agradeço o convite, mas hoje eu vou apenas observar. Aproveitar que seu dia está tedioso para descansar o que não descansei na noite passada.
— Ah, sim. Seu trabalho é tão fácil e simples. Observar, anotar, criticar…
— Você esqueceu de mencionar que eu posso fazer tudo isso daqui, sentada em uma cadeira confortável. — Abri meus lábios com o sorriso e ele riu.
— Gosto do seu senso de humor, Blewer. É bom ter ele se vamos passar bastante tempo juntos. Mas meu dia não está nada tedioso… — fez um bico, virando o corpo para o lado e as mão na cintura, observei com ele os seus outros membros descansando durante a pausa. — Não me parece.
— Experimenta trocar de lugar comigo — arqueei as sobrancelhas em um ritmo médio.
— Eu tentei. — entortou o bico e murchou os ombros, colocando a toalha no ombro. — Preciso voltar. Mas saiba que amanhã o dia será diferente. Tente dormir essa noite. — Piscou para mim e me deu as costas, como se estivesse tentando aguçar minha curiosidade.
O que ele conseguiu com êxito.

I always say what I’m feeling
I was born without a zip on my mouth
— Woman Like Me

— Que cara é essa? — Yungho me olhou de cima a baixo, tentando enxergar pelas lentes escuras do meu óculos. Mesmo que tentasse, ele não iria conseguir, estávamos no subterrâneo do prédio, no estacionamento, estava escuro demais para isso. — Por favor, não me diga que transitar na SM ontem te transformou em Miranda Presley…
— Se vai reclamar comigo, pelo menos faça da forma correta: é Priestly — corrigi seu erro, jogando contra seu peito a maleta que tinha meu laptop. Olhei em meu relógio, impaciente. — Que demora é essa? Não era para esse motorista já estar aqui?
— Sim e ele já foi embora. Você que está atrasada. — Yungho me devolveu a maleta, me julgando com escárnio em seu olhar.
— Como assim estou atrasada? — reclamei, pegando meu celular dentro da bolsa em meu ombro, indo na conversa com Sarang. — E você, está esperando quem?
— Meu namorado. Ele mandou mensagem dizendo que está preso no trânsito, porque aqui é caminho para o estádio Sang-am.
Olhei para ele, tirando minha atenção da conversa que eu relia.
— E o que tem de interessante hoje? — perguntei, esperançosa.
— Jogo. Brasil contra a Coreia do Sul. — Agora ele me julgava com o olhar, deve ser porque meu sorriso se alargou sozinho. — Sério, você está me assustando com esse óculos preto. À noite. Ainda mais com esse sorriso psicopata que me deu agora.
Suspirei, voltando para a conversa.
Depois de alguns segundos do mesmo julgamento de Yungho, eu levei o óculos ao topo da cabeça, revelando meus olhos inchados.
— Credo! Volta como estava. Prefiro ter medo da sua forma sombria do que a zumbi. — Ele mesmo voltou o óculos e eu desisti de qualquer comentário simplesmente pelo cansaço, arrumei meu cabelo e tentei de novo ler o que queria.
Foi nesse momento que uma mensagem nova de Sarang subiu.
“Perdão pelo atraso, mas ele já está chegando”.
Não entendi e voltei ao início, lendo a troca de mensagens.
— Droga! — reclamei, assim que reli e entendi certo agora.
— O que foi? Não tem como ir embora? — Yungho tentou espiar a tela do meu celular e eu franzi o cenho para ele.
— Espera, vocês não sabiam? — perguntei, sentindo as engrenagens do meu cérebro rodando lentamente. Murchei os ombros.
— Sobre o quê? Eu não sei ler mente, senhorita Blewer.
— Você e Nuyah podem ir para casa nesta sexta-feira e eu tenho que ir ficar de babá da mina de ouro dessa revista — bufei, guardando o celular.
— Ah… Que missão difícil passar um tempo com , não é mesmo?
— É tediante ver as pessoas fazendo alguma coisa enquanto você só tem que ficar ali… vendo. Acredite.
— Bem, então eu te desejo sorte, porque acho que sua carona chegou… — Ele apontou para a frente e eu vi uma Mercedes-Benz cinza vindo até o ponto de embarque e desembarque da garagem. Era muito diferente do que eu esperava, já que os motoristas usavam carros mais parecidos com vans em formato normal ou mini.
— E lá vamos nós, passar a noite memorizando coreografias…
— Já sei que você pode substituir qualquer um se for preciso… — Yungho riu, mas quando virei meu rosto para ele, parou e cobriu a boca, curvando-se brevemente para mim. — Tenha um bom final de semana, senhorita Blewer.
Deixei ele para trás e esperei que o motorista ou alguém que fosse saísse e abrisse a porta, conforme era o protocolo de sempre. Mas isso não aconteceu, então eu tomei a iniciativa, indo para a porta de trás.
— Até diria que seria interessante ser seu motorista de hoje, mas quero te propor vir aqui na frente. — A voz de me assustou e eu olhei para frente, parando a intenção de entrar no carro. Ergui o rosto para encará-lo, assustada. — Boa noite, senhorita Blewer.
— Só pode ser brincadeira. — Ouvi a voz de Yungho atrás de mim e respirei fundo, já totalmente impaciente.
— Deve ser a primeira vez que concordo com você — respondi a ele, colocando minhas coisas no banco e fechando a porta. — Sem uma palavra sobre isso. Bom final de semana.
Respirei fundo e então abri a porta da frente, entrando e logo a fechando, totalmente de forma robotizada, até mesmo ao colocar o cinto. aguardava, me encarando.
— Pronto, podemos — disse, tentando soar simpática o suficiente, completo oposto do meu humor do dia.
— Olha, eu entendo que é complicado de se acostumar com uma troca de fuso tão diferente assim… Mas eu tenho certeza que agora são sete da noite e… O sol já se foi.
Demorei um tempo até tirar os óculos.
— Melhor assim? — perguntei sem qualquer simpatia, desistindo dela. — Porque Yungho preferiu a minha versão sombria do que a… como ele mesmo disse, “zumbi”.
— Uau. Se eu não estivesse tão empolgado, iria sugerir te levar para sua casa e ficar de prontidão para não te tirarem de lá até que dormisse — ele riu, fazendo uma careta e enfim dando a partida.
— Eu adoraria. Mas aparentemente tem um cara que resolveu fazer alguma coisa em sua folga e eu tenho que ficar de babá dele.
— Poxa vida, essa pessoa não tem senso algum sobre a vida. — Senti seu tom sarcástico e o encarei, séria. tinha parado o carro na saída e, esperando a deixa para que pegasse a rua, aproveitou para me encarar. — Me desculpa. Posso te deixar na sua casa e você não precisa ir hoje.
— Não, tudo bem. Quanto mais rápido isso acontecer, mais rápido eu posso ir embora — dei de ombros.
— Tem certeza?
— Tenho.
Desta vez, foi quem deu de ombros, agora conseguindo pegar a rua e seguindo o fluxo.
Foi então meu momento de aproveitar, porque ficamos em silêncio. E essa seria a primeira vez, desde que saí de casa de manhã, que eu tinha um tempo de paz. Me senti até um pouco mais aliviada, porque embora estivesse, estranhamente, a sós com em seu carro, isso poderia ser bem positivo. Ele era calmo, eu tinha percebido isso da sua pessoa desde o primeiro momento e fui me adaptando à sua personalidade; estar com ele era muito diferente de estar na companhia de Yungho e Nuyah, com os dois discutindo o tempo todo — e, a partir de agora, sem julgamentos da minha parte — e o barulho que era o andar do qual fiquei.
E ainda estava no meu primeiro dia efetivo naquele prédio. O dia anterior tinha sido tortuoso, porque estar de tpm dentro de uma sala com música alta e um bando de homem dançando, causando barulho e tremores pelo impacto da dança de modo geral, não combinava.
— Fala para mim, você está confortável nessa roupa?
Olhei para em um virar de cabeça lento, me arrependendo de julgá-lo como um ponto de paz momentâneo. Estávamos parecendo o que os alternativos iriam boquejar como "Yin e Yang”, pelo equilíbrio — ele animado, descansado, e eu o outro extremo, quase acabada.
— No estado biológico que estou, qualquer coisa que eu vestir vai ser o total oposto de confortável. A não ser por um pijama de flanela. E, de preferência, deitada na minha cama — suspirei, esperançosa, vislumbrando a ideia na minha mente.
— Na sua cama…
— Em Nova York — esclareci seu incentivo. Ele assentiu de forma ritmada.
— Eu vou perguntar pela última vez, então. Você tem certeza? — Me encarou, insistente, com os olhos bem abertos, parecendo conseguir olhar por dentro de mim e eu me desconcertei por um instante.
— Já disse, quanto mais rápido eu passar por isso, mais rápido posso ir embora — resmunguei, cruzando os braços e olhando para a frente.
— Tudo bem, então. Seguimos.
— Não vai falar para onde estamos indo? — questionei, relutando, mas encarando seu perfil.
— É meu dia de folga. E vou complicar um pouco a sua vida.
— Ah, ótimo. Como se já não tivesse feito o suficiente.
Ele apenas riu e eu não respondi, me contendo em minha busca pelo silêncio. O medo de soltar o mínimo de barulho possível que pudesse fazer ele pensar que eu queria continuar conversando me impediu sequer de me mover. Ou, talvez, fosse o cansaço mesmo.
Cansaço somado aos hormônios do período menstrual.
Logo eu faria 30 anos e ainda não tinha conseguido me acostumar comigo mesma ao se tratar do meu próprio corpo e ritmo hormonal pré, durante e pós essa fase ridiculamente direcionada apenas à mulher. E embora eu defendesse o critério que homem algum aguentaria metade de um dia trabalhando com cólica, dor de cabeça e um fluxo contínuo liquoso escorrendo por sua parte íntima, ainda não deixava de achar completamente injustos viver essa humilhação.
Para mim, a pior parte era a forma como eu passava a me sentir durante esse período, saindo de uma pessoa confiante, séria, sem muita fofura e simpatia gratuita para uma mulher dócil, carente e polida, mas também boba, empolgada, falante e muito sociável. Quase que de um doberman para uma mistura de golden retriever com husky siberiano.
Não teria dia melhor — alô, ironia? — para decidir inovar em sua persuasão para me convencer de escrever coisas boas a seu respeito, mas eu também não poderia fazer nada. Até porque, sangrando minha alma para fora ou não, eu tinha contas a pagar e precisava trabalhar. E realmente me parecia melhor pensar que, se eu o acompanhasse mais intensamente agora, logo poderia estar livre para ir embora e terminar de casa. Afinal, não tinha uma regra sobre eu ser obrigada a ficar na Coreia do Sul até que a coleção fosse lançada e nem uma carência para eu poder ir embora.
E, por incrível que pudesse parecer, ele tinha aquela coisa da paz exalante que me deixava menos cansada ao seu lado. Não seria tortuoso, enfim, mas ainda assim eu estava cansada.
Quando vi a volta do estádio a frente, me ajeitei no banco, impedindo um resmungo. Realmente não seria o ideal entrar lá vestida com uma roupa toda social, com direito a scarpin e cabelo escovado — se é que a ideia dele fosse assistir o jogo.
— Não se preocupe, eu tenho a solução para o seu problema — sorriu, simpático, como vinha sendo, ao notar minha inquietação. — Você está realmente muito cansada, pensei que estivesse dormindo de olhos abertos.
Eu até poderia estar, de qualquer forma não saberia.
Apenas dei de ombros, acompanhando o trajeto com o olhar. Ele dirigiu até uma parte mais reservada, fechada com faixas e placas de “área restrita”, até parar em uma vaga com seu nome escrito. Uma vaga reservada bem diante do portão de entrada também restrito. Permaneci em silêncio, sem saber se deveria falar ou fazer alguma coisa, e segui seus movimentos, saindo do carro. Ao bater a porta, segurando apenas o meu celular em uma das mãos, o vi abrindo o porta-malas, demorando pouco a apertar o botão próprio para o fechamento automático. , agora vestido com uma jaqueta de couro e usando um boné com a aba curvada o suficiente para fazer sombra em seu rosto, veio até mim com uma sacola preta sem estampa, mas fechada e com um requinte de grife, e estendeu em minha direção.
— Pronto, agora você pode parecer menos com a Miranda Priestly e mais com uma pessoa comum. — O sorriso de lábios fechados perdeu espaço para as covinhas e eu não soube muito bem para onde olhar, só senti meu cenho se franzir sozinho. — O que foi? Fiz algo que não devia?
Soltei os braços às laterais do corpo, olhando em volta e garantindo minha segurança. Não tinha saído de Nova York para ser flagrada com o galã coreano e ter minha identidade arruinada; já tinha sido muito difícil me proteger do holofote negativo de ser a filha esquecida de um casal tão importante no ramo da moda e bla bla blá. Nessa visualização rápida, eu pude ver que tinha, ao menos, quatro seguranças, e do carro que parava do outro lado do de , saía a mesma mulher que eu tinha visto mandar nele no dia do meu fiasco.
Ela era séria demais e mesmo que fosse mais baixa que eu, me deixava um pouco amedrontada. E ainda me passava a imagem de ser uma pessoa com muita intimidade, porque ninguém olhava um colega de trabalho da forma como ela fazia, tão… profunda.
— Não. Esse é o problema — senti minha voz sair mecanizada e o vinco em meu cenho não se desfez quando eu estendi o braço para pegar a alça da sacola.
— Então eu te surpreendi?
Parei de encará-lo, respirando fundo para não jogar a embalagem contra sua empolgação invejável.
— Andou pesquisando sobre mim, foi? — perguntei ao abrir a sacola e olhar para dentro, vendo uma troca de roupas e um tênis. — Isso é trapacear.
— Chamo de posição tática. Enquanto você estava em um ataque avançado, eu segurei para contra-atacar no segundo tempo e aproveitar seu cansaço. Deu certo.
Supus que que eu provavelmente não fosse entender sua explicação, pelo seu senso de humor e a forma de explicar, como se eu fosse uma criança. O olhei séria e aceitei meu destino, dizendo:
— Diria que estamos em partida ainda. Não cante vitória antes do tempo — arqueei a sobrancelha. — Vamos, eu preciso me trocar primeiro.

🗼

Me senti um pouco preocupada ao vestir o jeans e ele servir certinho, ficando extremamente confortável e tendo um dos meus cortes favoritos: reto e largo, tal qual sacos de batatas, como diz Andrea. Não tinha a menor chance de terem acertado meu tamanho apenas por olhar, eu acho, e dentro daquela sacola tinha até uma jaqueta college para combinar com o estilo mais esporte da noite, ainda que a camiseta fosse uma branca lisa. As cores de tudo se misturavam em tons de verde, amarelo e azul, exceto pelo tênis e meias serem brancos.
Quando saí da cabine do banheiro, que foi fechado para eu me trocar e tinha dois brutamontes na porta, fiquei me encarando no espelho de forma embasbacada. Valeria muito tomar um banho para vestir aquele conjunto todo, mas eu me esforcei para não fazer isso ali mesmo na pia. Então simplesmente fiz o que pude para me sentir ao menos renovada e mais agraciada, dando valor à preocupação — que, se não fosse de , tinha, de alguma forma, surgido de alguém — quanto ao meu conforto para assistir a um jogo de futebol em um estádio.
E eu estava tão boba com a roupa e o cenário, que mal me dei conta do meu cansaço ter me feito de trouxa, me impedindo de saber que hoje teria jogo, que a seleção brasileira estava no mesmo solo que eu, e, no momento, talvez o mais importante, a mulher baixinha e invocada com estava atrás de mim, de braços cruzados e me encarando com seus olhos semicerrados.
— Que bom que eu acertei. Foi difícil imaginar, mas, pelas fotos do seu instagram, eu supus que gostasse dessa lavagem e modelo wide do jeans — ela tagarelou, vindo até mim, e, sem cerimônias, me virou pelo cós da calça, me forçando a ficar de frente para si. Me analisou e eu fiquei, estranhamente, ansiosa pela sua aprovação. — Perfeito. O tênis está bom?
— Sim — respondi pateticamente, ainda boba.
— Certo, agora vista isso aqui. — Passou por cima da minha cabeça um colar, com uma credencial. — E não perca por nada neste mundo — assenti como uma cobra hipnotizada. — Cadê as suas roupas?
— Na sacola. Ali dentro — continuei do mesmo jeito. Me cobraria mais tarde por ter me deixado ser intimidada por uma baixinha de olhos estreitos. Mas não tinha o que fazer, ela era mandona até respirando.
Ela me deu as costas e foi até a cabine, pegando a sacola e checando dentro. Apontou gestualmente para a porta, sem sorrir, sem suspirar, sem nada. Simplesmente apontou e eu esperou que eu fosse, e eu fui, colocando meu celular no bolso da frente do jeans de forma esquecida. Ao abrir, vi que, mais à frente, na lanchonete, estava de costas, reconhecendo-o por sua nuca exposta e logo ligando a imagem de seu boné também.
Entre os dois seguranças, a vi entregando a sacola para alguém.
— Você vai me falar seu nome? — perguntei, tomando sua atenção.
— Hwagi. — Finalmente vi um sorriso seu, mas foi rápido. Ela logo voltou a cerrar o olhar e surgiu, empolgado, tal qual uma criança com duas bebidas.
— Está pronta, senhorita Blewer? — me perguntou, entregando a latinha de soda.
— Mudaria alguma coisa se eu dissesse que não?
— Agora não mais.
Respirei fundo, abrindo a latinha dramaticamente. Era muita empolgação e felicidade para alguém que estava passando por cólica, a chegada da enxaqueca e o cansaço.
— Então me chame de , o “senhorita Blewer” faz eu me sentir uma velha.

🗼

Uma coisa que sempre me atraiu em esportes é que eles não são tão simples e superficiais como muita gente pensa que é. Pelo contrário. O atletismo exige muito da mente humana. O corpo precisa acompanhar e fazer isso acontecer, seja usando força ou o mínimo movimento de uma mão, demanda muito. Depois de todo jogo, um jogador de futebol precisa se recuperar, fazer um treino de regeneração da sua energia física e isso também já trabalha o psíquico. Então, partidas de futebol, que geralmente duram mais do que os 90 minutos de base, são além da superficialidade.
O simples fato de jogar em um campo que não seja de seu estádio pode alterar o rumo das coisas. Em uma partida importante como finais de campeonatos, por exemplo, isso influencia e muito. Tudo se liga, tudo tem fundamento e tudo faz parte do processo. E a principal chave, em campo, claro, é a tática.
É necessário que o time tenha um treinador para encontrar a melhor posição, o melhor método de jogo a ser usado contra o adversário, e isso é muito variável. Nesse passo, exige muito da pessoa responsável para que ela pense e consiga sobressair o outro. E, ainda assim, o futebol é imprevisível, você pode ter a melhor tática, o melhor time, o maior número de vitórias, mas até que o apito final ecoe, nada é garantido — a não ser pelas grandes goleadas com vantagens expressivas.
No fim, é interessante, quando você passa a enxergar o esporte além do que ele apresenta superficialmente. Não só o futebol, mas todas as outras categorias possuem o mesmo sentimento, você nunca vai saber de fato o que esperar quando é dada a largada. Não tem como garantir que o seu piloto de F1 vai ser o vencedor do GP porque ele largou em primeiro, às vezes em uma única curva ele consegue perder posição e vantagem; também não tem como garantir que vencer dois sets leve o seu time a vencer um mundial de vôlei, as coisas podem mudar em um único saque ou por um bloqueio milimetricamente errado. E deve ser por isso que o esporte movimenta milhões de pessoas, com muito calor, com muita paixão, porque é uma representação da emoção de viver o inesperado.
— Se eu soubesse que um sorvete e futebol iria resolver, teria feito isso antes. — Ouvi a voz de e me desconcentrei da partida, sentindo o desespero de um escanteio curto. — Mas estou preocupado, você sorriu e ficou de cara séria mais do que pude contar…
— É essa escolha do Tite… — revirei os olhos, mordendo a casquinha do sorvete.
estava sentado ao meu lado, usando seu boné e uma máscara, com Hwagi logo atrás de nós dois e os seguranças espalhados à nossa volta. Tudo pela segurança e privacidade dele. E, por mais que tivesse traços bem marcantes, eu duvidava que alguém conseguiria reconhecê-lo, mesmo que seus olhos estivessem tão nítidos assim.
— Tite? — inclinou a cabeça para o lado e eu estendei o resto da casquinha para a sacolinha de lixo que um dos seguranças estava mantendo.
— Sim, técnico do Brasil — assenti, limpando a mão e me virando para frente. — Está vendo aquela linha de quatro? É a defesa. Eles se dispersam, consegue notar? Em um momento, o número quatro está aqui no meio do campo… Deixando apenas um zagueiro lá atrás, para cobrir. — prestava atenção no meu dedo, conforme apontava. — Só que há riscos. O time da Coreia começou a aproveitar a falta de cobertura da defesa, porque o lateral direito brasileiro não está conseguindo retornar quando eles perdem a posse de bola. Então, em um contra-ataque, o Brasil fica vulnerável. Principalmente se a bola continuar chegando limpa para o Son, porque o zagueiro número três não está na melhor fase e condição física. Isso acontece porque, no primeiro tempo — recolhi a mão e virei o rosto para encará-lo, visualizando seu perfil —, enquanto o Brasil foi com uma marcação e ataque avançado, a Coreia apenas defendeu. Tite precisa fazer troca de jogadores agora, porque alguns que estão em campo já estão cansados.
Ele ficou em silêncio por um certo tempo, não muito, mas parecia precisar dessa pausa para pensar ou assimilar algo. Virei novamente para a frente, sentindo um suspiro sair de mim sem muito controle, como uma reclamação por eu não ter continuado a encarar seu perfil enquanto se manteve concentrado no que eu dizia. Como uma forma de desvencilhar de uma possível briga interna por algo que eu sequer tinha noção do que estava se tratando essa “revolta”, me curvei para a caixinha térmica aos meus pés, pegando outro sorvete, desta vez um que estava dentro de um pote, sendo da Ben & Jerry’s. Chocolate belga com amêndoas, nozes e até chocolate branco.
Muito doce para o meu gosto.
Muito bom, inclusive.
— Você não entende de moda. Mas entende de formação tática. É alguma pegadinha? — Não demorou e ele disse, no instante que eu voltei meu corpo para cima, abrindo o pote.
— Eu gostaria que fosse — respondi simples, de forma vaga, olhando para o conteúdo que me aguardava para ir diretamente ao meu estômago, cuidando de toda a tristeza causada pelos hormônios descontrolados. Mesmo no frio, não tinha como sorvete não ser a grande solução para o meu problema (só perdia para a minha cama, claro). Notei que ele ficou me encarando, prestando atenção nos meus movimentos, e franzi o cenho automaticamente ao me virar para ele, já com a primeira colherada dentro da boca. — O quê? — questionei, mantendo o plástico contra a minha língua e os lábios fechados.
— É só isso? “Gostaria que fosse”, sem nenhum desenvolvimento? — franziu a testa, parecendo decepcionado.
Ele estava esperando que eu fosse uma obra de Nicholas Sparks para compartilhar as tragédias da minha vida?
Ri fraco com o pensamento e retornei a atenção ao meu sorvete. O jogo, embora eu amasse futebol, estava em segundo plano.
— E você espera o quê? Que eu me abra com você? — continuei rindo, achando isso interessante. Ele continuou me encarando e eu vi que estava mesmo falando sério. Fiquei sentada parcialmente de lado, buscando qualquer resquício de que estava brincando. — Ah, não… Sério? — ri mais ainda. Uma gargalhada generosa.
— Para, você está atraindo atenção. — Algo em mim disse que por baixo da máscara ele estava fazendo um bico de frustração.
— Problema seu. Foi ideia sua escolher esses lugares bem aqui — dei de ombros, fingindo casualidade por me sentir naturalmente à vontade. Não deixando de continuar a saborear meu sorvete.
— …
Olhei para ele de soslaio e cessei o riso, contrariada.
— Tá. Tudo bem.
, porém, insistiu em outro tom:
— …
— O quê? — murchei os ombros, olhando para ele.
— Por que você gostaria que fosse?
— Está perguntando demais, você é o sujeito da entrevista, da matéria… Não eu.
não parecia convencido com o fim do assunto imposto por mim. Continuou a me encarar com seu olhar incisivo, a única coisa visível em seu rosto coberto por tanto preto — pela máscara e a sombra do boné também da mesma cor. Tentei me manter afastada de sua insistência silenciosa, porém, se tornou impossível, tinha algo nos olhos dele que estavam me desvendando em silêncio. E isso trouxe para mim uma enxurrada de lembranças, uma onda de coisas que mantive escondidas até de mim mesma por um indeterminado período de tempo. Acho que eu sequer me lembrava de ter acessado tais memórias em toda minha vida.
O interessante foi não sentir a absurda vontade de olhar para essa enxurrada, mas, sim, o momento e com quem. era um recém chegado em minha vida com tempo determinado — não tão exato — para sair dela. Além de ser um sujeito do trabalho, do qual eu deveria ter apenas uma relação profissional.
Pode ser que, de alguma forma, o fato de ele ser alguém de fora do meu círculo, sua aura brilhava daquela forma diferente para mim. De um jeito muito confortável.
— Meus pais têm nome na moda. Mas isso não me traz um bom sentimento. Talvez seja porque foi justamente a moda e esse negócio todo do glamour que os fez não me escolherem… É história para outra hora. — As palavras começaram a sair sem que eu pudesse notar a tempo. — Enfim, eu apenas não me conectei — dei de ombros, ainda focada em comer, como se a conversa fosse totalmente casual. Notei que ele iria perguntar algo, somente pelo som da sua respiração. Continuei, agora olhando-o: — Eu fui pelo que meu pai me ofereceu, porque mesmo que eu já fosse uma adulta “formada”, aceitar o trabalho em um lugar que ele é respeitado, parecia fazer nós dois nos aproximarmos. Então simplesmente aceitei.
Retornei ao meu foco antigo, olhando para o pote e levando outra colherada bem cheia para a boca. Senti seu olhar em minha direção, mas tentei não dar vazão ao pensamento preocupado sobre ter falado demais a respeito da minha vida. Mais tarde, quando eu estivesse em casa, deitada na minha cama, em algum momento isso iria me perturbar e bem provavelmente iria me manter acordada a madrugada inteira.
— O resultado esperado aconteceu? — depois de alguns segundos, me perguntou, em um tom sereno e interessado.
— Você diz eu e ele nos aproximarmos? — ele assentiu. Automaticamente dei de ombros, voltando a um tom humorado, esperando que ele entendesse que era o fim do tópico. — Eu tenho um bom salário, sim — brinquei. — Alguns privilégios também. O que deve valer para aturar Makyla e algumas coisas que sou submetida a fazer…
Felizmente, compreendeu.
— Tipo estar aqui, assistindo a uma partida amistosa entre Brasil e Coreia do Sul.
— E tomando sorvete em um dia nem tão frio, mas nem um pouco calor, com um garoto de uma boyband. — Virei o rosto para ele, com as sobrancelhas arqueadas.
— É outono, dá um desconto. E você falou tanto sobre a sua tpm, que eu achei de bom tom. É doce, não é? — Pela forma como seus olhos se fecharam, algo em mim alertou que ele estava tentando conter um sorriso, formando um leve bico em seus lábios, com as covinhas se afundando.
— Sim. Muito doce, por sinal.
Outra vez ficamos em silêncio e também não por muito tempo. se esticou para pegar uma garrafinha de água e, depois de abri-la e entornar um longo gole, disse:
— Quando eu decidi me tornar um idol, pensei muito sobre isso, essa questão da conexão.
— E? — incentivei, embora eu não estivesse tão interessada em conversar. Toda a animação estava começando a se esvair, comer demais tinha seu efeito em andamento.
— Eu sou quem sou agora, sim?
— Meus parabéns. Você conseguiu o que poucas pessoas conseguem: fazerem o que gostam. — Virei meu rosto para ele e sorri. ainda não tinha subido sua máscara de volta e eu senti meu olhar perdido, vidrado em sua face.
— Isso não deixa de ser menos tortuoso do que o seu caso ou o de outros em situações diversas. Tenho que viver as consequências da minha escolha e elas, muitas vezes, me fazem repensar se me sentir conectado com o que faço é suficiente.
— Qual era a sua outra opção? — Continuei o encarando, ansiosa por uma resposta.
— Não sei… Alguma coisa que pudesse me permitir ter uma família.
— Deve ser difícil viver longe… — Desviei o olhar, imaginando que dar corda a isso o deixaria triste, afinal eu sabia bem como era um porre ficar longe da família. — Eu sinto falta da minha mãe também. A avó, no caso, ela quem me criou… Argh, parents issues, sabe? — ri, me sentindo ainda mais à vontade.
— Sim. É. Em algum momento a gente se acostuma. — voltou a cobrir seu rosto, deixando a voz sair novamente abafada. — Mas eu tô falando da minha própria família, com filhos e uma esposa.
— Ah… Entendi. — Meu tom foi suficiente para encerrar o assunto. Claro, ele com certeza teria esse traço paternal, como não imaginei? — Enfim, obrigada por compartilhar sobre isso. Não vou anotar, mas vou me lembrar.
— Não se preocupe. Já disse isso abertamente, sobre os filhos… Deve ter inúmeras fanfics por aí sobre esse assunto.
— Já leu alguma?
— Ainda não pude.
— “ não pode ler fanfics por não ser conteúdo oficial”, o que acha? — fiz uma voz sensacionalista e ele riu.
— Acho que você acabou de estragar um clima bom de uma boa conversa madura.
— É o meu senso de humor. Achei que deveria trazê-lo aos encontros com você.
Em uma breve olhada para seu rosto, vi seus olhos quase fechados, e meu coração se acelerou com a imagem ilustrativa do sorriso que ele deveria estar estampando embaixo do feltro descartável. Um leve pânico se instalou em mim pela confusão da forma como eu reagi internamente, principalmente pelo fato de já ter carimbado em minha mente seus traços e trejeitos. Uma coisa paranoica.
Rapidamente olhei para a frente, exatamente quando um contra ataque do Brasil estava a todo vapor, se aproximando mais da grande área coreana, bem em nossa frente. Empolgada, deixei o sorvete de lado e me levantei, sendo seguida por . Não demorou e o atacante conseguiu colocar a bola para dentro do gol, correndo para comemorar, assim como todo o estádio. A comemoração em massa foi tão grande, seguindo uma espécie de efeito manada, que eu me dei conta somente quando estava abraçada a , pulando igual a uma bocó.
— Espera, é gol do… Foi gol do Brasil! — constatei, me afastando dele.
— Sim! — respondeu ainda muito empolgado.
— E por que está todo mundo comemorando?
— Porque é um jogo amistoso. E é o Brasil! — Seu tom saiu com obviedade.
Voltei a pegar meu sorvete, olhando ao redor e rindo, eu realmente estava me divertindo com toda aquela loucura.
E já tinha pelo menos uma observação feita de para colocar em minha crítica: seu senso de diversão tinha faces muito simples, bem naturais. Isso era incrível para alguém tão cercado de glamour e agenda maluca.

When you gimme those ocean eyes
I'm scared
— Billie Ellish

Conseguir descansar no final de semana foi fundamental para que eu estivesse em pé às seis da manhã na segunda-feira e me arrumasse com mais animação. Quem tinha me visto quando cheguei em Seul não diria que era a mesma pessoa esperando no embarque da garagem poucas horas mais tarde, segurando um café de máquina.
Estava renovada e, de uma forma surpreendente, empolgada para o dia. Quando cheguei ao prédio, Nuyah já me esperava com o roteiro do dia: a própria SM cuidou do nosso transporte, por isso já estávamos a postos, para onde iríamos? Eu não fazia a menor ideia, mas depois da surpresa de na sexta-feira, eu estava com as minhas expectativas a mil.
— Sério mesmo que vamos precisar gravar tudo? — Yungho, porém, parecia estar desgostoso. Ele estava mais reclamão do que nos dias anteriores. Virei para ele, vendo que estava com a lente da Gopro bem perto do rosto, segurando-a pelo cabo de aço.
— Você poderia ficar quieto hoje, não é? — Nuyah, por outro lado, estava super feliz. — Seu veneno de desânimo pode acabar com um dia que começou lindo.
— Lindo? Está chovendo, você já viu o tempo lá fora? — ele devolveu, virando a câmera para ela.
— Isso está ligado? — perguntei, entrando no meio antes que uma discussão se iniciasse e os dois estragassem meu dia. Ele me olhou, negando com a cabeça e eu levantei as sobrancelhas.
Foi suficiente para que os dois ficassem quietos por ora, até que fosse visto, ao longe do subterrâneo, um farol forte. Automaticamente meu coração deu um pulo, em um lapso da memória recente. A razão de eu estar animada não tinha nada a ver com o descanso e eu me senti desconcertada ao constatar isso. Enquanto os dois murmuravam atrás de mim, eu estava me remoendo em confusão por assumir internamente que ter estado com ele foi a parte principal para o meu estado de espírito atual.
Quando o carro parou em nossa frente, eu voltei à realidade, notando que era uma van alta, nada intimista e pessoal como o carro que dirigia. E isso me decepcionou, principalmente quando a porta foi aberta, correndo para o lado na mesma velocidade que eu coração começou a bater forte, parando abruptamente ao ver que ele não estava ali. Quem saiu, porém, foi Sarang, vestida com suas roupas sempre milimetricamente ajustadas ao seu biotipo e um sorriso acolhedor nos lábios, estampando quase todo seu rosto.
— Você tinha que ver a sua cara… — Yungho riu em meu ouvido. Ignorei, ajustando minha postura ao erguer meus ombros novamente.
— Senhorita Yoon! — a cumprimentei, sorrindo junto, mas não tanto. — Um prazer vê-la — estendi meu braço formalmente, segurando a alça da minha maleta com a outra mão de forma firme, mas tão firme, que por um momento imaginei o pescoço de Yungho ali (no sentido figurado, estava apenas remetendo minha energia negativa para outra coisa).
— Digo o mesmo, senhorita Blewer. — Ela apertou minha mão sutilmente e também fez a comum reverência simples, mirando o olhar para os dois atrás de mim, acenando positivo para eles em cumprimento. — Estão prontos? — se voltou para mim.
— Sim, estamos — respondi simples e ela deu um passo para o lado, indicando o veículo.
Yungho quis sair na frente, mas eu o parei, estendendo meu braço com a maleta e fazendo-a bater contra seu corpo. Ele tomou de minhas mãos, entendendo que era para segurar, e eu me adiantei a entrar primeiro na van, em seguida Nuyah se sentou ao meu lado e eu a encarei séria, indicando que fosse para o banco do fundo. Sem muitas reclamações, ela foi e logo teve a companhia do outro ao seu lado. Sarang entrou e se sentou no banco da mesma fileira que a minha, porém separado por conta do espaço para passagem para que fosse atrás.
Logo estávamos saindo da garagem, debaixo de uma chuva torrencial. O outono caminhava para se despedir e o verão já tinha passado há bastante tempo, mas o clima do país ainda contribuía para que as chuvas fortes continuassem a cair sobre nós, trazendo mais frio e mais ventanias. Se eu não estivesse bem disposta, com certeza teria arrumado qualquer desculpa para simplesmente não sair de casa, mas, além da disposição, tinha também a curiosidade.
Assistir ao jogo com me permitiu ver o lado mais pessoal dele e cheguei a concluir que não tinha tanta diferença assim do qual pude ver no coquetel e depois, efetivamente trabalhando, em seu ensaio. Ele tinha o senso de humor para qualquer face, a mesma fala serena e o comportamento físico tranquilo, como se não tivesse com o quê exatamente se preocupar e lidar. Porém, o fora do trabalho era (seu verdadeiro “eu” ou outra persona que ele tinha criado). Era um cara animado, com riso frouxo e curiosidades. E o era muito divertido — não é como se a sua persona famosa fosse um porre, mas tinha sim um tom diferente, com mais liberdade.
E isso despertou em mim uma vontade de observá-lo mais, porque algum sexto sentido maluco estava me dizendo que, por mais contra a minha vontade que fosse, eu conseguiria produzir uma boa crítica sendo ética.
— Foi um alívio que não tenha saído nenhuma foto sua com no jogo. — Ouvi a voz de Sarang, me tirando do meu próprio mundo, e virei o rosto para ela. — Geralmente recebemos ameaças de portais dizendo que possuem material para vazar… Mas desta vez não tivemos nenhum problema. Nem mesmo com sasaengs.
— Sasaengs? O que é isso? — franzi o cenho ao não encontrar o termo no meu vocabulário coreano. Ouvi o bufar de Nuyah.
— São pessoas que se denominam fãs, mas não têm o mínimo de bom senso, perseguindo idols e invadindo a privacidade deles de todo e qualquer jeito.
— Entendi — assenti, puxando o bloquinho da minha bolsa colocada no colo, e anotei com minha grafia. — Vocês recebem ameaças? Como isso funciona?
— As ameaças são em grande parte dos portais de comunicação. Vender a imagem negativa de um idol gera muito dinheiro para todos, mas não tanto quanto negociar a não postagem. — Sarang suspirou, deixando claro que isso era algo que lhe causava exaustão. — Já com as sasaengs é diferente, elas postam. Tem de todo tipo, as que guardam para si, as que vendem e quem posta sem qualquer hesitação.
— E o que seria negativo para um idol? — Guardei o bloco e a caneta, virando o corpo parcialmente de lado, demonstrando o interesse no assunto. — Por que seria negativo ser visto comigo?
— Porque poderiam achar que vocês têm alguma coisa — Nuyah respondeu por Sarang, em um tom irritado. — E um idol pode perder a popularidade se tiver a imagem vinculada com qualquer relacionamento.
Teria “chamado” a atenção dela por se intrometer deste jeito se não estivesse chocada com a informação. Era tudo muito novo, diferente; esse mundo de kpop e suas vias de regras tinha mais detalhes do que planos táticos no futebol.
Olhei dela para Sarang, que assentiu, confirmando a informação.
— Temos que tomar muito cuidado com o que todos eles fazem. Qualquer coisa da vida pessoal deles que se torne pública pode virar um problema — Sarang continuou me explicando. — Você nunca vai ver nada por aí sobre a família, relacionamentos, coisas que eles fazem fora do trabalho no dia a dia de forma geral… Além de ser uma forma de preservar, também serve como uma contenção de caos.
— Entendi… — mordisquei a bochecha internamente e respirei fundo.
Não continuei o assunto, fiquei quieta com meus pensamentos, voltando a me sentar de forma reta e agora olhando para fora, para a rua sendo banhada por tanta água e para os carros andando em uma velocidade mais cautelosa, por conta da aquaplanagem. Ri fraco, porque minha mente logo divagou em uma analogia.
Idols, como , viviam uma constante aquaplanagem.
A aquaplanagem é o deslizamento sobre a água.
Na direção, isso acontece quando a água cria uma camada entre o pneu e o asfalto, fazendo com que não tenha contato direto, perdendo o atrito. Um veículo em alta velocidade pode derrapar e perder o controle. Para isso não acontecer, é necessário que a condução seja mais cautelosa, especialistas indicam que a velocidade seja 30% reduzida. É como andar expressamente controlado para não cometer deslizes insólitos.
Então, certamente, era isso o que e seus colegas de profissão viviam: todos os dias, a todo momento, correndo risco de aquaplanar.
O que, para mim, acabou por explicar por que, quando ele teve um momento livre e seguro, esteve tão empolgado. Viver sem o controle da própria vida deve ser um porre. Controlar-se já é horrível, inclusive.
Ao entrarmos em outra garagem subterrânea, respirei fundo e me ajeitei em minha postura. Logo paramos no desembarque.
— Chegamos. Hoje ele estará o dia todo aqui no ateliê. — Sarang tirou o próprio cinto e, segurando o celular em mãos, já se preparou para sair.
— Achei que a coleção fosse ser restrita… — Yungho cochichou para Nuyah e eu repeti o processo de Sarang, logo me levantando para também descer atrás dela.
— E seria. Mas pediu para que a senhorita Blewer tivesse acesso.
Ri fraco, para dentro, já logo imaginando o motivo dele para tal pedido.
Seguimos os passos dela para dentro do prédio, sendo cercados por seguranças. Reconheci que não estávamos no prédio da SM. Sarang deu nossos nomes e depois de as identificações serem feitas, recebemos os crachás de acesso.
Voltamos a segui-la e, quando o elevador encheu com dois seguranças e nós duas, Yungho e Nuyah automaticamente se direcionaram ao outro. Sozinhas, Sarang se virou para mim com menos formalidade.
— Você é diferente, senhorita Blewer — disse diretamente. — é um dos nossos idols mais… como posso dizer? — fez uma pausa. — Ele é um dos mais seguros quanto às próprias decisões. Então, por favor, tenha consciência do que está fazendo.
— Desculpe? — limpei a garganta, realmente soando confusa.
Não obtive minha resposta, porém, as portas se abriram e ela reajustou a própria postura, saindo na minha frente. Fiquei parada por alguns segundos, tentando compreender o tom um tanto maternal dela ao falar dele daquela forma, sem entender de verdade qual era o recado. Olhei para os dois seguranças atrás de mim, esperando em completo silêncio, e então saí, seguindo-a pelo corredor.
Só tinha uma porta no corredor e ela era bem grande. Sarang abriu e me deu passagem, os outros dois já estavam junto de nós. Assim que entrei me surpreendi. O ambiente era amplo e aberto, tinha uma enorme mesa no centro de toda a sala, iluminada com apenas um lustre retangular preso ao teto por um cabo. Em cima dessa superfície tinha algumas cartolinas estendidas, conforme fui dando passos adiante conseguia visualizar melhor os traços desenhados nelas. À volta da mesa, estava cheio de máquinas, cabideiros, tecidos e pessoas, muitas pessoas, falando, andando de um lado para o outro e comunicando-se entre si em um ritmo de produção muito rápido. Quando finalizei os passos e parei à ponta da mesa, vi um papel aberto, com o croqui do que parecia ser um casaco. Não contive meu ímpeto de tocar na folha.
— Você usaria isso no verão?
Levei um susto e recolhi a mão, olhando para o lado e visualizando o sorriso aberto de .
— Talvez no calor da Antártida — respondi a sua pergunta e ele fez uma careta, deixando as covinhas, como de costume, profundas demais.
— É um lugar inabitável.
— Pois bem — dei de ombros e ele riu fraco, negando com um chacoalhar fraco de cabeça.
— ! — Ouvimos a voz de Sarang e ela logo se colocou entre nós dois. — Eu vou precisar dar uma saída, vocês irão almoçar aqui ou querer sair? — ela dizia, olhando para o celular, o que não parecia nada fora do comum, porque a todo tempo estava digitando algo.
Ele me encarou, mas não esperou eu tomar uma decisão.
— Vamos comer aqui. Anchella me pediu para não sair hoje… — colocou as mãos nos bolsos, olhando para o chão e Sarang ergueu o rosto para ele, bufando suavemente.
— Espero que seja a única e última vez que você mude tudo. Miuccia em pessoa me ligou perguntando o que foi que deu em você… Em um domingo, às seis da manhã! — Vi um lapso de descontrole na fala dela. — Então, por favor, não entre em caos. Não temos tempo para conciliar tudo com a agenda do grupo…
— Pode deixar, nuna… — respondeu, erguendo o rosto novamente. Ele parecia uma criança levando uma bronca.
— Você sabe que não falo isso para o seu mal… — Sarang tocou o ombro dele e lhe lançou uma piscadela de forma carinhosa. — Só não quero você se desgastando. Não precisa agradar a ninguém, lembre-se disso.
Virei o rosto para a mesa, me sentindo um pouco desconcertada e em sobra ali. Pelo o que pude notar, o posicionamento de Sarang estava sendo mais como um desabafo de preocupação, de quem não conseguiria aguentar algumas horas até ter um tempo mais privado com para dizer tudo aquilo — e muito mais.
De certa forma, também senti que ela deveria estar querendo que eu escutasse sua “bronca” para não ser uma tirana com ele, da forma como muitos críticos sempre são vistos. Mas eu não sou uma crítica, caí nisso tudo de repente e sem paraquedas.
— Eu sei, nuna. — O “nuna” dele saiu arrastado e eu não me virei para ver as reações de nem um, nem outro. — Agora vai, eu também tenho coisas a fazer.
— Volto em alguns instantes e coleto o menu do almoço para todos. — Foi a última coisa que ouvi de Sarang.
— Me desculpa te fazer ouvir isso… — se inclinou para entrar no meu campo de visão e eu assenti, voltando a olhar para ele durante a conversa. — Sarang está comigo desde que eu comecei a treinar para entrar no grupo e… Ela sabe mais da minha vida do que eu mesmo.
— É, faz sentido— soprei com a memória do elevador. — Ela e Hwagi são bem prestativas.
— Hwagi? — Ele fez uma careta, abrindo os lábios com os dentes travados.
— Qual o problema com ela?
— Sargentona — riu. — Mas ela precisa ser assim, tomar conta do membro mais hiperativo exige muito. Hwagi fica comigo só quando Sarang não pode. O que é raro, porque se Sarang não pode, eu não saio de casa.
— Entendo. Ela é seu porto seguro.
moveu a cabeça de um lado para outro, pensativo.
— Nunca pensei por essa ótica. Então, sim, ela é.
Sorri com as sobrancelhas arqueadas e não me prolonguei, entrando no silêncio desconcertante. Observei o lugar, encontrando Nuyah e Yungho distraídos com alguma coisa no meio das pessoas trabalhando. Então ele puxou a conversa outra vez.
— Você parece bem descansada.
— Nem fale… — murchei os ombros, olhando para a mesa e encontrando, em foco, mais croquis. — Me tranquei no quarto e só sai hoje de manhã. Consegui dormir direito, foi renovador.
— Isso é importante.
Olhando em um design de camisa, me lembrei de Andrea, pelo modelo que ela sempre julgava confortável de se vestir, e retornei à memória a noite de sexta, quando ela me fez contar tudo sobre a minha noite por sua curiosidade. E eu acabei mencionando que estava com , não disse que ao final do meu expediente estendi as coisas para uma partida de futebol. Na verdade, acabei me embolando e agora minha mãe achava que era um amigo do trabalho, sem ter a menor ideia de quem ele realmente era.
— Andrea perguntou sobre você — comentei, virando o rosto para ele. — Ela acha que deve retribuir o seu grande favor daquele dia. E pedir desculpas pela minha péssima educação.
Ele franziu o cenho, demorando a responder.
— Ah… Vou pedir para Sarang incluir um jantar na agenda. Ela só precisa me convidar.
— Para isso você precisa aparecer, eu não sou pombo correio. E ela não sabe que… Bem, você é você — gesticulei.
— — respondeu em um suspiro e eu assenti. — Ela sabe quem eu sou.
Maneei a cabeça de um lado para o outro, confusa e inerte na informação.
— E quem é você? — perguntei de forma automática.
— Não acho que isso faça parte do roteiro da sua matéria, senhorita Blewer.
Não dissemos mais nada, fiquei encarando-o e sendo encarada, sem qualquer palavra ou pontapé para mais uma conversa. Era uma troca de olhares como uma prisão, mas completamente oposta do sentido negativo. Ele conseguiu causar uma pane no meu “sistema” e eu só soube apreciar o silêncio barulhento da minha própria mente, gritando que no meio disso tinha um bom e saudável flerte.

🗼

— Sim, eu tenho problema de coordenação motora. Agora pode parar de rir? — bufei, irritada, deixando o par de cheot-garak (famosos palitinhos) de lado, completamente derrotada.
— Você está desistindo muito rápido, senhorita Blewer — ele riu fraco, deixando os dele em cima do papel e vindo até mim. Estávamos sentados no chão, dentro da única sala de reuniões que tinha dentro daquele ateliê, e usando a mesinha pequena e baixa para almoçar.
— O que você vai fazer? — estranhei, vendo-o mais de perto.
— Te ensinar. A não ser que você queira comer com a mão porque aqui não tem talher.
Trocamos olhares, ele esperando e eu cética da situação. Estava tentando comer meu bowl de bibimbap, que foi o mais próximo que consegui degustar e gostar da comida nativa, mas não conseguia sucesso porque não tinha a menor chance de acertar o “pinçar” com os palitinhos. Tudo o que eu pegava acabava escorregando.
Murchei os ombros ao sentir meu estômago roncar por estar vazio e revirei os olhos.
— Tá bom, vamos lá, professor, me ensine.
— Com licença. — se colocou atrás de mim, com as pernas dobradas e não tão colado, passando o braço por cima do meu em um abraço não tão íntimo e pegou em minha mão. — Pega o cheot-garak — disse em meu ouvido e eu o fiz. — Você coloca o de baixo entre o anelar e o polegar, ele deve ficar firme e ser sustentado… Enquanto o outro você movimenta com o dedo médio e o indicador…
Conforme me explicava, ajudava os meus dedos com os seus. Tendo ele ali pareceu super fácil e prático, consegui até segurar por bastante tempo o pedaço de repolho tirado da tigela de kimchi. Mas, quando ele soltou, eu não levei por muito longe, deixando cair em meu colo e manchando minha calça branca.
Tombei a cabeça para trás sentindo um choque. Acabei batendo a nuca no ombro dele.
— Desculpa! — virei o corpo rapidamente, ficando com o rosto a centímetros de distância do dele. Estava tão perto que podia sentir sua respiração.
, lentamente, se desvencilhou de mim e riu fraco, franzindo o nariz.
— Vou pedir para Sarang tentar encontrar talheres — disse, voltando para o próprio lugar.
No exato momento que estava se ajeitando para pegar o celular, a porta foi aberta e eu me senti aliviada de ele já estar em seu lugar, do outro lado, ao invés de tão perto como antes. Em minha mente não tinha como saber exatamente quem teria a capacidade de ser ou não uma sasaeng e tudo o que eu menos queria era complicar a vida dele por qualquer mal-entendido.
Na porta, Sarang colocou metade do corpo para dentro.
— Anchella chegou e… temos aquela coisa pronta. — O sorriso dela estava radiante e empolgado, mas sumiu quando viu que minha comida mal tinha sido tocada e que eu estava com a calça suja. — Talvez eu devesse encontrar talheres para você, não é?
— Por favor, nuna, ela precisa. — se levantou. — É o que estou pensando? — perguntou para ela em expectativa e recebeu um aceno positivo de cabeça. virou o rosto para mim e estendeu a mão. — Vem, quero te mostrar uma coisa. Enquanto isso, Sarang encontra seus talheres.
Olhei dele para Sarang, notando o olhar dela sobre mim, e optei por me levantar sozinha. O que ela tinha me dito no elevador ainda estava embrulhado em meu cérebro, sem qualquer explicação concisa para aquilo; depois teve, também, a conversa com ele diante da mesa, em minha frente, e sua postura protetora me deixou realmente alarmada de algo que eu estava querendo ignorar — o que também eu não estava acreditando muito, até porque, de tudo e todos, seria o último cara no mundo do qual eu poderia desenvolver algum interesse obsoleto.
, empolgado demais, não notou meu jeito sem graça e foi em frente.
Quando seu corpo saiu completamente da minha frente à porta, eu pude ver que tudo do lado de fora estava diferente e me senti um pouco perdida. Não quis acreditar que estávamos ali dentro há mais de alguns minutos, sendo suficiente para que tudo estivesse mais organizado e as pessoas menos preocupadas. Yungho e Nuyah estavam em algum lugar coletando materiais que julgassem necessário, como imagens e relatos, porque, o que eu descobri pouco depois de ter chegado, era que tinha decidido mudar toda a coleção de uma hora para a outra no final de semana — por isso a movimentação toda àquela manhã — e isso, no meu senso profissional, poderia render um grande movimento para fosse lá o que eu iria escrever.
A mesa que estava abarrotada de papéis quando cheguei estava vazia agora, tendo apenas uma peça isolada estendida em cima de sua superfície. Conforme fui caminhando até ela, seguindo os passos dele, me senti como se estivesse em um corredor comprido e silencioso. O ambiente todo estava em completo silêncio, sem qualquer ruído, e até mesmo as máquinas de costura haviam sido desligadas. A atenção toda era em cima daquele pedaço de pano costurado e o que diria sobre ele.
Algo dentro de mim se acendeu em curiosidade, compartilhando do mesmo sentimento de expectativa dos outros. Minha fome estava em algum último plano, porque de repente o que eu queria mesmo saber e falar acerca era a forma como consegui me senti inserida demais naquela atmosfera, sendo suficiente para não sentir as horas passarem enquanto passei a manhã toda analisando o trabalho feito, observando tudo, a todos e, principalmente, ele, depois me perdendo em minutos dentro de uma sala. E eu sequer havia conseguido comer.
Estava passando rápido e eu não saberia dizer em qual momento me aprofundei ao ponto de também estar ansiosa pelo momento.
Assim que ele se aproximou em definitivo, parei meus passos, ficando a poucos centímetros de distância e parada logo atrás de . Suas mãos foram delicadas ao pegar a peça e analisá-la em silêncio, então se virou para mim. Agora, a atenção toda era em nós dois.
Fiquei em silêncio, vendo-o segurar o blazer na distância entre nós. Demorei um tempo para me concentrar e voltar à minha postura. Reparei pelo canto de olho que os olhares sobre mim eram intensos e apreensivos, só me dando conta da realidade. Pisquei algumas vezes, esperando que ele dissesse alguma coisa, mas nada saiu de sua boca.
— Você está me deixando constrangida… — sussurrei. — Eu não entendo de moda, lembra? — Toquei a peça, fingindo uma conversa e encenando uma análise.
— Lembro. — não respondeu muito baixo, porém, e eu o encarei firme. — Mas ainda assim quero a sua opinião.
Olhei em volta, me vendo encurralada.
— Diferente do que disseram nos bastidores, eu não troquei tudo e fiz Anchella redesenhar todos os croquis porque me senti estrela demais — ele iniciou, voltando a olhar para a peça. — Não queria que enxergassem como “sem rumo” algo do qual eu escolhi para dar vida.
Engoli a seco, fechando os olhos com força por alguns segundos, me lembrando que alguma coisa parecida tinha sido dita por minha boca há alguns dias, sem filtro algum, sem noção nenhuma, inclusive.
— … — tentei dizer, mas ele apenas me olhou, sereno.
— Então, obrigado, senhorita Blewer. — Seu sorriso se formou de forma sutil em um pedido genuíno.
— A primeira opção não teria tanta identidade assim. — Anchella, que não havia sido apresentada a mim ainda, parou ao meu lado, com as mãos juntas à frente do corpo. — Mas achou que deveríamos recomeçar e… ele mesmo finalizou os traços do croqui. — Uma pasta foi aberta por uma outra pessoa do lado dela e eu visualizei brevemente o “antes” e “depois” lado a lado.
Olhei para o blazer e tentei soltar meus filtros para olhar a peça da mesma forma como fiz a primeira vez que estivemos juntos e eu despejei em cima dele toda a baboseira sobre não entender o quadro.
Antes, o blazer teria traços mais sérios e fechados. Uma coisa que apresentaria algo parecido com a imponência e superioridade, do qual você olharia em um manequim e pensaria “não, talvez eu não tenha estrutura para usar uma peça dessa” e sequer cogitaria experimentar em um dia de verão. Já o depois, o que estava em minha frente, carregava um corte tão singular, que até mesmo os meus olhos sem experiência alguma com costura e moda de alta linha conseguiam compreender a expressão que aquilo estava passando.
Em minha frente, eu tinha uma mistura da imponência com o íntimo.
estava me apresentando através de uma única peça de roupa. Não precisava de estampas, de uma escolha única de desenho, fosse corações ou geometria. Apenas os traços diziam muito.
— Isso aqui é muito bonito… — disse, por fim, tocando o tecido e tendo outra surpresa: a vontade de vestir que o toque gerou em mim.
— Coloca. — Ele me olhou sério e eu não consegui pensar ou recusar. Quando dei por mim, estava tendo sua ajuda para vestir.
— Parece confortável, como se eu estivesse… sendo acolhida, sabe? E o tecido é tão… fresco — olhei, admirada, para , genuinamente sentindo o que estava dizendo.
Ele se aproximou de mim pela frente, ajustando a gola, e eu me mantive reta, olhando na direção de seu pescoço pela nossa diferença de altura. Seu perfume, suave, porém marcante, me fez entrar em uma órbita diferente. Apenas voltei ao normal quando ele se afastou e disse:
— Então passamos no teste. A ideia é passar conforto para um blazer que vai ser apresentado em uma coleção de primavera/verão.
— Acho que alguém em um país tropical pode usar isso aqui no calor sem se preocupar de derreter e se mudar para a Antártida — ri fraco, mas parecendo um riso nervoso pelo meu desconcerto.
— Pode levar esse. Pode ficar com ele.
De repente, eu apenas assenti e me senti grata, sem nem pensar.

Well, I know a kiss won't make it right
And there's no future left in sight
— Joesef

O barulho das portas do elevador se abrindo fez com que eu retomasse minha atenção para a realidade, tentando me segurar para não cair em cima dos meus próprios pés. A semana estava chegando ao fim novamente e desta vez meu cansaço não tinha nada relacionado às noites mal dormidas e alteração de fuso horário, desta vez era sobre trabalho mesmo.
Depois do dia que passei no ateliê, não consegui mais sair do prédio da revista, sendo obrigada a trabalhar com o que tinha, no caso. Aproveitei para terminar algumas coisas que eu deveria ter finalizado antes de viajar, haja visto que nada do que eu de fato precisava escrever quis começar a sair. teve os dias muito corridos e ficou ocupado demais com assuntos privados do grupo que fazia parte, então eu não podia acompanhá-lo. E, estranhamente, senti que meu tempo se passou com muita lentidão e tediosamente vazio.
Era mais uma sexta-feira e eu estava indo para casa comer alguma coisa que Andrea preparou com muito gosto enquanto ela contava sobre como tem se dado bem com as vizinhas, e que seu método do pilates mais uma vez a ajudou socializar. Sem mencionar uma ou outra fofoca sobre as mesmas fulanas.
Saí do cubículo olhando em meu celular e não notei que alguém estava logo à saída para o desembarque e embarque ali na garagem, acabando por esbarrar em um corpo mais alto.
— Opa… Me desculpa! — fui me desculpando às pressas e, quando ergui meu rosto, dei um passo para trás, me assustando. — Você?
— Eu — sorriu de forma graciosa, apontando a si mesmo.
— Achei que estivesse fora de Seul — franzi o cenho, arrumando a alça da bolsa em meu ombro. — Não sabia que estava por aqui hoje.
— Foi uma passada rápida assim que cheguei de viagem… Apenas a política da boa vizinhança — ele deu de ombros, olhando no próprio relógio em seguida. — Um pouco tarde para ir embora, não acha?
— Preciso suar bastante para conseguir mais algumas destas aqui — alisei a alça da minha boa e velha amiga bolsa falsificada da Gucci. — Você também… Deve estar cansado, viajar e ainda precisar ficar aqui até essa hora…
— Pois é — suspirou. — Na verdade, eu bem poderia estar em casa agora. Só que estou há algum tempo aqui, pensando o que fazer.
— A respeito de quê?
— Desmarcaram comigo — ele coçou a nuca, parecendo desajeitado. — E o lugar que fiz reservas para o jantar cobra uma taxa por cancelamento em cima da hora.
Fiz uma careta de escárnio e ele apenas concordou em silêncio. Às vezes, ou na maioria delas, os casos estranhos do luxo de gente rica realmente me pegavam de jeito com esse tipo de coisa sem muita noção. Multa por cancelamento de reserva? O restaurante deveria ter, no mínimo, cinco estrelas — se isso fosse um motivo plausível.
Preferi me abster e dei o meu melhor para não dizer qualquer baboseira comandada pelo meu sono. Bocejando, demonstrei meu “interesse”:
— Ah, que triste… Mas você ainda pode ir. Nem sempre a melhor companhia é a do outro.
— Também acho. Mas lá não é um ambiente para se aproveitar sozinho.
— Entendo. Talvez não seja o seu dia de sorte, então.
Continuei casualmente olhando para o meu celular, atualizando a conversa com o motorista para ter alguma atualização sobre a chegada dele. Era mais comum do que poderia parecer ou pudesse ser normal, senhor Lim estava sempre me ignorando pelo aplicativo de mensagens e nunca estava ali para me levar embora no horário certo (do qual eu estava tendo o costume de avisar, nos últimos dias, com até duas horas de antecedência, para dar tempo). Ele era simpático demais, entretanto, talvez seja por isso que eu tenha me tornado uma molenga e não acreditado ser justo chamar sua atenção sobre isso.
Notei que continuava inquieto, como se quisesse e tivesse muito a falar e precisasse de alguém para ouvir, então tentei ser o menos mal-educada possível e ergui o olhar para ele, com as sobrancelhas erguidas.
— Não mesmo, isso nunca aconteceu comigo antes. E eu nunca desmarquei com ninguém em cima da hora também. — A forma como ele falava fazia com que seus lábios formassem um bico manhoso e, se ele não estivesse falando em inglês, tenho certeza que no coreano seria pior (para mim).
— Para tudo existe uma primeira vez, meu caro. — Olhei para o celular de novo e me mantive de frente para o “caminho” que o carro do senhor Lim deveria fazer.
Não passou muito, mas um silêncio tortuoso começou. Eu sentia que ele estava me observando e isso me deu algum comichão sem sentido, fazendo meu estômago mandar qualquer correio nada elegante para minha mente, que começou a trabalhar em covinhas, Vogue, Prada e a tal da Torre N pelo ponto de vista de Nuyah.
— Você não vai para casa? — perguntei e eu vi, de soslaio, que ele estava encarando meu perfil com as mãos na cintura.
— Estou pensando o que fazer. Nenhum dos meus amigos de fora está disponível. — Ouvi seu suspiro.
— Você está em uma boyband com mais de vinte pessoas e não tem ninguém disponível? — Virei com rapidez, completamente embasbacada com a informação. Ele apenas comprimiu os lábios e assentiu. Em resposta rápida, corporal, eu voltei a ficar com o corpo para a frente, visualizando qualquer coisa que não fosse os dois buracos nas bochechas dele. — Então você vai ter que pagar a multa.
— Não. Me recuso.
negou como uma criança quando não quer comer o que não gosta. E novamente ele ficou me encarando de forma fixa, esperando algo de mim, enquanto eu só queria enfiar um megafone pelo aplicativo e gritar para o motorista minha necessidade humana de ir embora do trabalho depois de um dia tão cheio e uma semana tão cansativa.
Continuei atualizando a conversa e nada.
Olhei de soslaio, lá estava o olhar de cachorro caído da mudança. 2 minutos passados e continuava me olhando da mesma forma.
— Por que está me olhando? — perguntei sem encará-lo.
— O que você está esperando?
— Meu motorista. Ele está preso no engarrafamento não sei de onde — menti.
— E o que você vai fazer agora à noite? É quinta-feira.
— Comer e dormir, eu espero.
Pelo silêncio dele, virei o rosto lentamente. E lá se ia mais um correio deselegante do meu estômago para a mente.
sorria para mim como a mesma criança que nega comer o que não quer, mas que em seguida recebe algo suculento. Seu olhar era tão brilhante, de alguém que tinha tido uma ideia de gênio, que eu conseguia ouvir seus pensamentos. E eles me deixaram surda, com medo e nervosa. Porque inteiramente eu também era barulhenta, seria bem provável que ele conseguisse me ouvir (se quisesse).
— Não. Não. Não pense nisso — neguei usando a mão.
— Já pensei — ele abriu o sorriso e uniu as mãos à frente do peito. — Por favor! Vai ser divertido.
— Divertido é a minha cabeça na guilhotina com a Sarang puxando a corda depois — respondi em exaspero. — Não. A resposta é não.
franziu o cenho de forma confusa, mas eu não expliquei. Seria bom que ele não tivesse entendido mesmo.
— Senhorita Blewer, por favor! Você só precisa comer. E você vai adorar. É um restaurante italiano. É uma forma de você agregar conhecimento sobre mim para a sua matéria — ele insistiu.
— Não, eu já não estou mais no meu horário de trabalho — tentei continuar negando, mas a cada fala em bico de , ficava impossível manter a negativa.
— Por favor… Eu pago. — Agora as pálpebras piscavam rapidamente.
— Está querendo me comprar?
— Eu faço tudo por uma companhia essa noite.
— É mais fácil você pagar a multa do restaurante — ri nasalado, ficando de lado para ele novamente.
— Pagar por algo que não consumi? Jamais. Dou valor ao meu dinheiro ganho com suor do meu trabalho. Olha isso! — De repente, o celular dele estava em minha frente. — Você vai recusar?
Parecia que tudo estava contribuindo para a vitória de .
Eu estava com fome. O menu era bonito, as fotos começaram a me dar uma vontade absurda. A mensagem do senhor Lim, recebida no mesmo instante, era taxativa: o carro quebrou, você precisa de um táxi.
— Valha-me! — respirei fundo, erguendo as mãos para cima. — ‘Tá legal, você venceu! Mas a conta é sua e depois me chama um táxi para ir embora. E — ergui o indicador para ele — eu não estou no meu horário de trabalho, não precisa causar boa impressão.
Ele gargalhou, abrindo o braço e indicando a sua direita, para onde o carro estava, dizendo de forma casual:
— Depois eu te levo para casa.

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— Você podia ao menos ter me avisado sobre o dress code. Estou me sentindo deslocada… — reclamei assim que desci do carro, quando a porta foi aberta por . Ele franziu o cenho para mim, me olhando estranho.
— Olha só, que sotaque rápido é esse…
Desta vez foi eu quem reagiu com estranheza, demorando a me dar conta de que tinha disparado minha fala sem vírgulas em coreano, quando, normalmente, conversávamos apenas em inglês. Dei de ombros, fingindo casualidade.
— Eu trabalho rodeada de coreanos. Até você melhoraria o seu idioma se estivesse naquele prédio.
riu soprado e se virou, ficando de lado e me oferecendo o braço. Hesitei, mas no fim entrelacei o meu ao seu, aceitando de forma curiosa o contato, para iniciarmos nossa caminhada em direção ao hall de entrada do restaurante. Mesmo com os braços entrelaçados, não estávamos tão colados, eu parecia um robô sem óleo nas engrenagens a cada passo que dava. Assim que pisei para dentro, uma moça loira e muito bonita sorriu para mim. Me sentindo retraída e nervosa com todo o meu corpo, acabei me soltando de , voltando a respirar com mais tranquilidade.
Era um ambiente muito elegante, com luzes baixas e um ar tão misterioso quanto limpo. Cada lustre delicado, cada mesa bem milimetricamente posicionada, cada vidro do chão ao teto para formar as divisórias entrava como parte de detalhes indispensáveis. Um típico restaurante com fila de espera para reservas, em que você gasta uma boa grana para comer algo saboroso, mas que no final não tampa um espaço tão grande no estômago. Eu já tinha tido experiências com restaurantes assim em Nova York, tanto é que nunca voltei em nenhum, já que sempre precisaria de um bom e tradicional hot dog americano no final da noite para suprir o vazio existencial da fome.
A única parede coberta era a de frente com a porta, exibindo certificados. Conforme nos aproximamos da bancada pequena em que a moça estava, pude ver melhor o quadro que mais chamava a atenção. Nele tinha uma mensagem de crítica positiva, assinado por uma chefe de cozinha muito mais do que renomada, Hélène Darroze. A mulher é simplesmente a dona de seis estrelas Michelin, com três restaurantes: um em Londres e os outros dois divididos em Paris e Provença.
No fim, até fazia certo sentido a multa de cancelamento de reserva. Mas me pergunto, também, quanto tempo havia esperado por essa noite e quem foi a pessoa tão especial que precisou cancelar. Deveria ter um bom motivo, no mínimo ao menos plausível.
— … .
A voz de me captou a atenção quando ele mencionou o seu sobrenome e o tal nome que eu acreditava ser o seu real. Virei o rosto para ele, vendo seu perfil ao meu lado, totalmente à vontade e carregando um leve sorriso simpático pela educação.
— Certo. Mesa para dois, perto da cascata. — Ela olhou na tela do iPad e clicou em algo, olhando para mim em seguida, seu sorriso, porém, era enorme. Após alguns segundos, olhou para ele e assentiu. — Sua mesa já está pronta, senhor . Me acompanhem, por favor.
Em silêncio, aceitei o cavalheirismo de em me deixar ir à frente e comecei a segui-la. Com relação ao hall, passamos pela entrada à direita, com um salão enorme e com todas as mesas — que realmente não eram tantas, para ser bem honesta — em uso. Não observei muito, mas cruzamos esse primeiro local até passar para um corredor não tão extenso, sendo levados para uma parte que mais parecia com um outro mundo. A parede que fazia a divisão do primeiro para o segundo dava uma visão falsa de ser de vidro, mas era espelhada, porque atrás dela tinha um salão mais intimista e com um bar. Mas isso não marcava a característica principal.
Pude entender a solicitação de assim que a moça parou e virou o corpo, apontando para a mesa pequena e suficiente para dois, colada ao vidro do fundo. Do lado de fora tinha uma cascata de pedra, com água corrente e iluminada no mesmo tipo de luz que todo o interior do restaurante. Minha reação foi se dividindo, mas eu fiquei parada por um tempo como uma estátua, até notar que ele havia puxado a cadeira para mim.
De fato, já no princípio, tinha como entender a espera.
De fato, já tinha estado ali antes.
De fato, ele trouxe alguém realmente especial. Como um clichê dos filmes que vendem homens perfeitos, românticos e ricos, donos de Torres N, ou então A, B, C — o abecedário completo.
Igual tudo o que eu abominava em nome do ceticismo.
Me sentei e ele deu a volta, sentando-se de frente para mim. Agradeci, claro, mas a boca estava tão seca que foi quase impossível ouvir. Eram muitos detalhes e, acima de tudo, a atmosfera era o principal, responsável, inclusive, por me fazer demorar a notar que todo o atendimento estava sendo feito em inglês.
— A bebida de entrada permanece a mesma de sempre? — a moça perguntou e eu olhei, confusa, para , tentando prestar mais atenção e parecer menos bocó.
— Não — ele respondeu a ela e se direcionou a mim. — O que você quer beber? Vinho? Eles têm uma safra francesa da década de 70 aqui que é muito boa. — Demorei a responder e fiquei olhando-o. — Mas, se você quiser um suco ou algo diferente…
— Pode ser vinho! — cortei sua fala, preocupada, soando um pouco exasperada. — Digo, eu aceito o vinho. É você quem vai dirigir mesmo.
Ele assentiu, sorrindo sereno, e se virou para ela, que já anotava algo em seu eletroeletrônico.
— O de sempre.
Silenciosamente, a moça saiu.
Então chegou o momento constrangedor da cena do filme clichê: o silêncio e eu entrando em um modo desconcertado. Tinha algo crescendo em meu estômago a cada segundo que encarava e estava começando a me consumir de uma forma arbitrária.
Ela mal saiu e um rapaz bem vestido como garçom se aproximou com uma garrafa de vinho e duas taças. Não tive tempo de me consertar e encarar o momento. O que gerou, por fim, a minha inconveniência motivada pelo nervosismo da incredulidade — afinal, eu me recusava a estar caindo no conto do qual sempre refutei, ainda mais por ele, “objeto” do meu trabalho.
— Se você vem sempre aqui, não deveria receber multa por desmarcar reservas — disse ao levantar a taça, girando e atuando no drama de movimentar o líquido dentro do vidro por alguma razão especial (da qual eu não tinha conhecimento nenhum).
franziu o cenho para mim, apenas virando um pouco do seu líquido, sem as frescuras que eu esperava que fossem feitas.
— Não entendi — respondeu.
— Me pareceu que você é um cliente VIP. Geralmente esse tipo de pessoa fica em ambientes mais reservados e intimistas assim. — Dei uma breve olhada em volta, finalmente bebericando o vinho. De maneira surpreendente, era realmente muito bom, uma excelente safra.
— Ah… — ele assentiu. — Eu gosto desse lugar. De dia é ainda mais lindo.
— E qual é a história? — Coloquei a taça em cima da mesa, finalmente encarando-o. Ele me pareceu não ter entendido, então completei: — Do restaurante. Por que você gosta daqui?
— Não tem uma história.
— Claro que tem. Sempre tem — franzi o cenho, cruzando os braços em cima da mesa e me inclinando para frente. — Olhando para você, esse lugar e o tratamento simpático da moça, posso dizer que você vem aqui sempre que pode. Pede o mesmo vinho, a mesma opção do cardápio e o chefe responsável vem ao final do seu jantar ou almoço garantir que estava do seu gosto e da sua companhia, que também já é conhecida.
— E como você tem tanta certeza que é uma mulher? — ele refutou com uma feição que trazia ironia, como se quisesse me colocar em uma saia justa. Ri nasalado, me encostando no encosto da cadeira e mirando a cascada separada de mim pela camada grossa do vidro sem película.
— Seja quem for, sou grata. Só esse vinho já valeu a pena ter aceitado o seu convite chorão de pagar meu jantar.
Ouvi a risada nasalada de e fiquei quieta, dando por encerrado o assunto. Pelo menos da minha parte. E muito a contragosto.
Tinha essa parte ridícula em mim, um tanto maluca e incerta, querendo me alertar que eu deveria aproveitar o máximo que pudesse da companhia de . Que deveria conhecê-lo mais, me deixar à vontade, guiada pelo fluxo natural dos nossos momentos juntos, porque era gostoso e havia essa atmosfera serena emanada dele que me fazia sentir como nunca antes. Em algum lugar em meu ser, o alerta já vinha de forma visionária, mas eu queria continuar ignorando e confiando na outra parte racional, que não ligava para isso e só queria continuar o trabalho designado para ser feito em Seul, me livrando o mais rápido possível.
Em algum momento, minha mente divagou até a vontade de puxar assunto, perguntar a ele coisas sobre sua coleção, querer saber seu ponto de vista de idealizador, mas sem inserir nenhuma vírgula profissional em cima disso. Eu só queria ouvi-lo falar sobre seu trabalho, porque ver, do ponto de vista de jornalista, estava sendo incrível. Para ser — pateticamente — honesta, eu gostaria de ouvir Jeon falando sobre as coisas que o estava conquistando.
Soltei um suspiro longo, pesado, e decidi me ignorar por algum tempo. Ao virar o rosto para , ele estava lendo o menu, concentrado, como se aquilo em sua frente estivesse escrito com letras miúdas ou em um idioma desconhecido. Parei de respirar por um tempo, prestando atenção em seus traços e, por estar despida do meu controle, fui sentindo meu peito subir e descer rapidamente, acompanhando a falta de ar, gerando o desespero em meus pulmões. Mas um desespero nem um pouco maior que o meu interno por notar o quão adorável e viciante era observá-lo, e como isso vinha se tornando um costume insubstituível para minha rotina.
Quando ele notou que estava sendo observado por mim, foi tarde demais para a minha infelicidade, porque não consegui desviar ou disfarçar de qualquer modo. Fui salva pelo garçom voltando à nossa mesa, pronto para recolher nossos pedidos.
— Você gosta de risoto? O chefe que está aqui hoje faz um muito gostoso de camarão com alho poró. É a sugestão de hoje.
Ele disse de forma casual, cortando minha vergonha por ter sido pega observando-o. Apenas assenti, tomando a taça em meus dedos e bebendo um longo (nem tão longo assim, devido a quantia de líquido) gole do vinho. sorriu e fez o pedido para o rapaz que esperava, lhe dando o cardápio para ser levado. Em sequência, não demorando muito, eu voltei a encarar o vidro, mas notei que agora eu era observada.
Me virei para ele novamente.
— O que foi? — perguntei ao vê-lo apoiado na mesa, me olhando sem piscar.
— Você é uma pessoa de poucas faces, sabia? — riu nasalado, de forma curta, antes de desenvolver, mas sem deixar de passar a língua pelos lábios e ajeitar a postura, mantendo um braço sobre a superfície e o outro no encosto da cadeira. Uma posição perfeitamente fora da elegância e etiqueta das pessoas engomadas do lugar e que o deixava extremamente charmoso (para não dizer outra coisa).
Senti a afirmação em um canto de mim, em uma forma nem um pouco delicada, e apenas arqueei a sobrancelha, umedecendo os lábios antes de responder.
— Sim, sabia. Já ouvi muito sobre isso.
— O que você ouviu? — se manteve na mesma merda de posição e a roupa que ele usava, social com um blazer preto, estava me dando alucinações. Ou o vinho era de uma safra muito boa, suficiente para tirar alguém do estado sóbrio com menos de 200ml. Mas isso não seria uma boa justificativa, as covinhas dele já eram coisas corriqueiras, elas estavam ali para fazer cair sobre terra qualquer desculpa esfarrapada.
Dei de ombros, mantendo minha força interior e virando o resto do vinho (algumas gotas). De forma sutil, uma pessoa que ainda não tinha nos atendido já estava a postos para completar minha taça novamente.
— As pessoas estão sempre prontas para dissertarem sobre mim. Mas nenhuma delas jamais acertou — disse simples. — Você pode tentar, se quiser.
— Tenho medo — riu nasalado, algo repetitivo. — Você tem algo muito importante para mim em suas mãos.
Ergui os braços, mencionando rendição.
— Estou fora do trabalho. Não posso usar nada contra você. Está vendo meu bloquinho aqui? — Ele negou e eu fiz um gesto de mão, como quem dizia “vá em frente”.
tirou o braço do encosto da cadeira e alcançou sua taça, ele bebeu boa parte do vinho e então voltou para a mesma posição. Era possível notar o reflexo de um sorriso em seus lábios, mesmo que não desenhado de forma efetiva. As covinhas, a forma como seu rosto se iluminava por elas, denunciava isso e me trouxe uma sensação de friagem no estômago, tal qual a ansiedade por algo que a gente espera que aconteça.
E eu esperava que ele fosse sorrir. Mesmo que ouvir sua voz também fosse algo bom.
Claro que, neste momento, esse era o meu eu despido da racionalidade, porque até mesmo a forma como ele puxou o ar para os pulmões, assim como alguém que se prepara para algo importante, somente para falar, também levou um trampolim para dentro de mim. As coisas vinham como uma enxurrada a cada detalhe que essa “eu” se permitia observar.
— Você é muito curiosa com tudo — iniciou e eu calei até mesmo meus pensamentos internos para ouvir cada palavra que ele estava passando a proferir. — Mesmo que não pergunte, existem outras formas das quais você usa para questionar. Seja com seus olhos, seus lábios, sua forma de observar… ou um simples movimento corporal. Só que existe esse outro lado seu, o contrário. Se fosse para te definir, seria como uma moeda. Dois lados e de faces opostas. Como dois extremos.
Tomei sua pausa com um vazio no pensamento e não disse nada, até porque ele não demorou a continuar.
— Então, você é do tipo de pessoa que não tem meios. Você possui um começo e um fim, . E eu acho isso instigante demais, porque, por mais que eu saiba que com você eu vou ter um lado ou outro, fico ansiando por mais. É incrível como você pode fazer qualquer pessoa acreditar em reticências quando oferece apenas pontos finais. E eu me pergunto, desde quando te ouvi falar com tanta convicção sobre algo que não entende, como é que tiveram a coragem de te fazer ter tanta apatia pela essência da vida.
Engoli a seco, sentindo suas palavras me acertarem em meu mais profundo do fundo, de um lugar muito desconhecido. Até então eu me sentia um barco no meio do oceano, flutuando e pendendo de um lado para o outro com o que poderia parecer uma tempestade ou somente a braveza do mar aberto. Mas, agora, era como se uma âncora tivesse sido lançada e eu estava tão inerte, atracada ali, que sequer notei como ingeri a segunda taça do vinho pela sede que me foi tomando por inteira a cada palavra que ele dizia.
Quando, novamente, o mesmo rapaz se aproximou para completar minha taça, negou que fosse feito o mesmo para ele e aproveitou para pedir uma água. Eu permanecia travada, tentando me recuperar, só sabia que estava viva porque conseguia ouvir meu próprio coração batendo e sua voz justificando ao rapaz o motivo dele não beber mais vinho por conta da direção.
Outra vez sozinhos, achei por decência que deveria tentar mostrar estar presente ali por inteira, mesmo que pudesse ser impossível.
— Ensaiou quanto tempo para dizer tudo isso? — perguntei em tom humorado, notando minha voz baixa em tom nervoso e envergonhado. Me sentia despida, vulnerável, exposta. Mas não pareceu errado e pesado porque estava diante de .
— Talvez o caminho todo até aqui…
— Vai me fazer pensar que isso tudo foi uma armadilha para me trazer nesse restaurante… Que faz parte do seu esquema corrupto para me comprar — estreitei o olhar. — Ainda não acredito que passou o dia inteiro fazendo a boa vizinhança no prédio da revista hoje. E colocar “” para a reserva… Uma mesa em local intimista… Você é bem meticuloso, senhor Jeon.
sorriu, ajeitando o corpo e entrelaçando as mãos, com os cotovelos apoiados na mesa. Levou o queixo em cima dos nós de seus dedos, parecendo uma criança arteira com o sorriso de pontas baixas.
— Está vendo só? Você confia ou desconfia. Faz isso o tempo todo — riu. — Meu pai faz as reservas, sempre. Nós jantamos ou almoçamos juntos aqui quando posso. No almoço, nos sentamos no primeiro salão, porque a vista do penhasco para Seul ao fundo é muito linda durante o dia. No jantar… bem — olhou brevemente para o vidro ao seu lado —, você pode concluir sozinha.
— Então você continua sendo o para ele…
— Sim. Para minha mãe também. Eu continuo sendo o mesmo, ainda que mais rico e famoso. Ou que tenha sempre uma nova essência a ser descoberta no ritmo usual e nada linear da vida… — Novamente ele umedeceu os lábios, agora parecendo ser uma forma de segurar algo que queria dizer. Foi em vão, porém. — Dá para continuar sendo quem é, mesmo que entre o começo e o fim, o sim e o não, haja um meio, um talvez… Sabia?
Não sei o que me deixou mais aliviada: saber que seu pai seria sua companhia ou a chegada dos nossos pratos. De qualquer forma, ser interrompido pelo chefe que veio junto me deu uma certa folga para pensar e concluir que, dentre todas as minhas convicções, eu jamais acreditaria que um dia gostaria de continuar fora da minha camada de autoproteção como estava naquele momento.
Do jeito que ele falava sobre mim, me olhava e estava se inserindo dentro da minha bolha, sozinho, sem qualquer grande esforço, parecia confortável demais. Mesmo que fosse novo. Ao invés de assustador, parecia libertador e trazia uma fração a mais de vida.

🗼
O restaurante ficava em uma colina em um distrito, ou sei lá como era chamado, ao redor de Seul, portanto, o retorno foi demorado. Pegamos um trânsito para entrar na cidade, mas eu estava tão cansada e com sono, que mal conversamos. também parecia exausto e relaxado demais, e eu sabia que isso era por conta de seu trabalho excessivo dos últimos dias. Em breve, ele iria embarcar para uma turnê de final de ano na América e os ensaios para os shows, que seriam seguidos uns dos outros, em festivais e da própria turnê, estavam sendo desgastantes. Além de tudo isso, ele precisava conciliar a coleção, trabalhos de modelos, a produção de um álbum para o próximo ano, e mil e uma outras tarefas.
Era admirável, porém, ainda que fosse preocupante o excesso. Eu mesma sabia que não conseguiria ser uma multitarefa como ele, minha paciência e desvio de atenção não permitiram tamanha destreza e dedicação para fazer tudo ao mesmo tempo. O que me fez sentir uma certa preocupação, porque eu já tinha um material bom o suficiente para iniciar a tal da crítica, começando pela introdução dela, mas não conseguia. Minha desculpa era de que só seria possível quando eu juntasse mais material e fosse focar somente na escrita, finalizando com a parte prática.
Meu medo gritava de que isso pudesse ser uma grande mentira.
Quando parou em frente ao meu endereço, eu acordei da minha inércia, tirando o cinto e bocejando automaticamente. Minha vista já tinha como imagem a cama arrumada e o meu pijama.
— Muito obrigada — disse, virando o rosto para ele e com a voz rouca, eu estava mesmo quase dormindo com a cabeça apoiada no vidro. O tanto de vinho que eu tomei dava sua graça. — Eu poderia sorrir para você, mas meu corpo parou de corresponder ao meu comando há algumas horas já.
Senti que tentei tatear na porta o local para abri-la, falhando. Vi o sorriso divertido de e ele se inclinou por cima de mim, abrindo.
— Se cuida. Tome bastante água e bom descanso — falou, voltando ao normal em seu banco.
Sem pensar, começando a me sentir um pouco zonza, eu simplesmente me inclinei até ele, abraçando-o. Seu corpo ficou duro embaixo do meu, mas ignorei isso. Em minha mente só tinha o desespero e necessidade em demonstrar minha gratidão pela noite incrível e divertida que tivemos, porque depois de todo o papo que me gerou caos, me rendeu muitas risadas.
— Obrigada por cuidar de mim. — falei sem qualquer filtro e saber exatamente como direcionar as palavras, soltando da forma como estavam em minha mente. Não demorei a me afastar, continuando: — Vou falar para Andrea que você encheu o meu… — olhei para minha barriga, tentando encontrar a palavra em coreano e completando em inglês mesmo, misturando tudo sem notar que daria outro sentido. — …bucho. E que me deixou aqui na porta de casa… Para ela, você é o também.
gargalhou de uma forma adorável, tirando seu cinto.
— Espera aí, acho que você precisa de ajuda.
Ele saiu do carro e eu empurrei a porta, me sentindo mais zonza a cada segundo e sem qualquer noção. O tal corte do antes e após álcool tinha sido feito.
me ajudou a descer e ir até a porta do prédio.
— Cadê a sua chave, senhorita Blewer? — perguntou, me segurando pelo cotovelo.
Ergui o rosto para ele, com a feição franzida. Pensei uma coisa e falei outra:
— Talvez esteja na minha bolsa, não sei. — Tentei focar minha vista e abrir a bolsa, mas não consegui. Então, ouvi o barulho da porta sendo destravada e a voz de Andrea ao fundo. olhava para cima e também falava algo.
Tentei erguer a cabeça como ele, inclinando para trás, mas piorou minha vertigem e eu fiquei igual uma bocó, alucinada pela ponta do seu nariz. Levei o indicador até o local, finalmente dizendo o que tinha pensado antes:
— O que aconteceu com “”? — perguntei em tom decepcionado.
— Ela bebeu vinho demais… — ele respondeu, empurrando a porta.
— Não! — retruquei alto. — Tô falando da sua . — novamente bati na pontinha de seu nariz, travando meus pés no chão.
— Minha ? Que papo é esse?
— Você estava até agora me chamando de , por que de repente eu sou a “senhorita Blewer” outra vez? — resmunguei, fazendo-o desistir de me levar para dentro. — E por que só a Andrea pode te chamar de ? Eu não vou entrar enquanto você não falar — cruzei os braços, quase perdendo o equilíbrio, e pouco me importando com o eco no corredor.
— Vamos fazer assim, então, quando estivermos juntos como hoje, seremos apenas e . Funciona para você?
Afirmei em um resmungo emburrado.
— Quando estivermos trabalhando, “senhorita Blewer” e “”. — Agora, até minha voz estava embolada, igual minha mente alcoolizada, tanto que seu nome quase não saiu assim como o meu sobrenome.
Talvez eu devesse ter ficado parada dentro do carro e dormido na mesma posição para não passar por tudo isso.
— Perfeito para mim — ele sorriu. — Agora vamos, está frio aqui fora.
— Não. — neguei sua ajuda. — Eu consigo sozinha, é melhor você ir embora. Vai que surge alguma sarang e dê tudo errado? — sussurrei a última parte, entrando no meio fio da porta aberta.
Outra vez ele riu.
— ‘Tá bom, eu vou ficar olhando daqui, tudo bem? — Sua mão foi para a minha cintura e eu concordei com um aceno rápido de cabeça.
— Okay — disse baixo. — Obrigada por hoje. Você… — suspirei. — Você acertou quando falou aquelas coisas sobre mim… Qualquer dia te deixo saber a causa e circunstância. Só me lembra disso.
Ele confirmou com um aceno positivo e eu lhe dei as costas.
Dei os primeiros passos, usando as paredes para me apoiar, quando cheguei perto dos elevadores, virei para trás, vendo-o ali ainda, parado. Em minha frente, de uma forma estranha, tinha Andrea, iluminada pela luz branca do cubículo. Ela deu um passo em frente, me ajudando a entrar ali, acenando para ele antes de se colocar ao meu lado para me dar apoio.
— Se você me perguntar qualquer coisa sobre isso a partir de amanhã, eu vou negar até a morte — bocejei, dizendo para ela conforme apoiei minha cabeça em seu ombro. — Igual eu sempre neguei a existência do Papai Noel.
— Você sempre foi uma pessoa de dois extremos, . Acho que conhecer o meio desse caminho está te assustando, mas… se permitir vai valer muito mais a pena, você vai ver.
Não respondi porque meu cérebro não trabalhou em nada. Aos poucos eu estava desligando igual uma máquina sem bateria.

Love only knows broken ends
That's what you said
— Lauv

Em minha frente, no período de toda a tarde de uma segunda-feira chuvosa, tinha um vidro transparente — claro que até chegar a ele ainda existiam mais coisas, mas no momento era apenas isso que parecia me separar de —, formando uma espécie de aquário com ele lá dentro, gravando no estúdio. Eu não podia ouvir, porque eu estava do lado de fora e não seria adequado, visto que ele estava trabalhando em um material novo. Hoje estaríamos o dia todo acompanhando o trabalho dele com a música e, por mais que eu tenha tentado me esquivar desde a manhã ao receber o itinerário, eu não poderia ter oportunidade melhor para conseguir colocar minha mente em ordem.
O medo não tem muito a ver com o ceticismo. Muitas pessoas confundem os dois, mas são duas coisas bem diferentes e, talvez, a linha tênue entre ambos faça com que a interpretação seja sempre equivocada.
Se formos procurar o significado universal de um para outro, veremos que, literalmente, um se trata de receios e ansiedades, enquanto o outro é sobre acreditar. Então como poderiam estar coligados?
Isso eu nunca entendi.
Geralmente escuto que ser cética e ter essa aversão por romances e a coisa comercial em cima disso é apenas meu medo falando mais alto. Mas é a mais pura balela humana. Você não obter uma certeza sobre algo não tem absolutamente nada a ver com temer a isto. A gente teme o que acreditamos existir, como a escuridão, por exemplo; crianças, em sua maioria, sentem medo do escuro porque a ausência da luz está ali, presente, é uma compreensão real.
Só que a vida não é nem um pouco linear. E, por mais que as duas coisas não se encaixem, sejam pertencentes a extremos, sempre pode existir uma terceira via. Um muro para ficar em cima ou um buraco a ser cavado. Era nisso que eu estava me apegando, no que eu fiquei pensando e revirando em minha cabeça o final de semana inteiro depois de ter jantado com . Ou melhor, com . Sequer vi as horas passarem desde então, estava apenas vivendo na inércia do meu próprio ser se descobrindo em algo novo, algo completamente distante do medo e diferente do ceticismo.
Era uma coisa específica e que ficou muito mais clara para mim ao passar a tarde inteira apenas acompanhando seu processo de gravação atrás de um vidro. Sendo assim, observando apenas seus detalhes tão barulhentos, mesmo que no silêncio da sala de espera, não tinha mais como eu virar em volta. Até a minha dignidade eu havia perdido em algum momento depois de tomar o tanto de vinho que tomei, nem Andrea conseguia me respeitar mais.
E o que me restava fazer eu não sabia, sequer estava tão ciente do que aconteceria. Apenas olhar para ele poderia ser o suficiente, mas a linha tênue das vias me perturbavam.
— Oi.
Ergui o rosto, seguindo o corpo esguio, e não consegui evitar o sorriso. estava em minha frente com as mãos dentro dos bolsos de seu moletom, totalmente à vontade, ainda que estivesse com a feição de extrema exaustão. Não tinha noção de quanto tempo já havia se passado desde que cheguei e sentei naquele mesmo lugar, com a vista direta para ele, parando de observá-lo quando achei por bem e direcionei toda a minha energia para as anotações.
— Oi — respondi, fechando meu bloquinho.
— Terminou aí?
— Acho que sim — suspirei, olhando para o objeto de anotações. — E você? Chega por hoje?
— Sim, posso ir embora — ele sorriu aliviado. Olhou para os lados, garantindo que não estávamos sendo observados, e disse: — Você pode dizer que vai pegar um táxi para ir à Torre N e sair pela recepção sul, te pego na rua ao lado. Até já.
não me deu muitas opções, na verdade, não me deu nenhuma. Ele simplesmente fez a comum reverência, saindo naturalmente e se despedindo dos demais, fazendo o caminho contrário de Nuyah e Yungho. A estagiária parou em minha frente, se espreguiçando.
— Podemos ir, senhorita Blewer? — perguntou.
— Senhor Lim já está nos aguardando. — Yungho bocejou.
Olhei para os dois, levando um certo tempo para raciocinar minha escolha. Em seguida, encarei o caminho que havia feito, já tendo desaparecido pela porta da sala em que estávamos, uma espécie de espera para alguns estúdios que tinham naquele andar. Ri sozinha, enfiando o bloquinho dentro da bolsa e a afirmando em meu ombro com sua alça ao me levantar da poltrona.
— Eu vou pegar um táxi e dar uma volta. Voltem para o prédio e deixem os materiais lá. Até amanhã.
Não esperei por qualquer pergunta ou comentário deles, segui adiante, saindo da sala e seguindo as instruções nas placas, indo para o elevador que daria na tal da saída sul.
Senti como se estivesse correndo de algo ou fugindo. Talvez eu estivesse, mas pude entender bem o tom furtivo que ele quis colocar no seu aviso e em algum lugar dentro de mim uma luz se acendeu, emitindo a baboseira melosa de que “ele estaria esperando por mim”, “ queria esperar por mim”. Pode ser que eu tenha dado mais razão a isso do que uma vontade realista de encontrá-lo e deixá-lo escolher para aonde iríamos seguir, não me importaria de refletir isso agora, ficaria para a da madrugada, a que estará em sua cama, olhando para o teto e sem enxergar nada pelo breu do escuro.
Essa , inclusive, tinha uma maneira muito mais fácil para ignorar tudo isso e seguir adiante. Então seria responsabilidade dela, a de agora apenas seguiria fosse lá qual instinto estava seguindo ao entrar no elevador e se ansiar pela chegada ao térreo — chegada esta que demorou.
Durante o sábado e o domingo eu fiquei pensando em coisas que poderia dizer a e impor um distanciamento, solicitar que a partir de agora eu tivesse espaço e pudesse ficar sozinha para produzir, mas, não sei dizer exatamente, teve essa necessidade de continuar. Parecia que ainda tinha algo incompleto demais para que eu pudesse produzir qualquer meia dúzia de palavras, para ser o mínimo, e eu só não daria a cara a bater para qualquer interpretação. Segui o rumo, em resumo.
Minhas mãos estavam trêmulas quando passei pela catraca, quase derrubando o cartão de acesso que recebi como visitante. Entreguei de qualquer jeito para a recepcionista e saí pela porta giratória, então me lembrando do casaco que larguei em algum lugar porque o vento estava muito frio e forte. Contudo, receber a ventania em mim assim que pisei para fora foi como bater o martelo na minha decisão de ir ao encontro dele.
Bem dizendo: a decisão de deixar a vida me levar.
Respirei fundo e olhei para cima, vendo o céu estrelado da noite. Segurei firme em minha alça e caminhei um pouco sem saber para onde ir, apenas confiando nas direções. Se eu seguisse para a esquerda, sairia na avenida, para a direita tinha uma rua lateral e menos fluxo. Fui em direção à calmaria e sorri pelo acerto quando vi o carro de parado e ele do lado de fora, escorado no capô e com os braços cruzados.
— Senhorita Blewer… — me cumprimentou quando eu estava mais perto.
Parei meus passos e olhei para trás e para os lados.
— Ué…
— Que foi? — ele se preocupou.
— Nada, estou procurando a senhorita Blewer — comprimi os lábios para não sorrir com o meu próprio senso de humor. Algo totalmente novo, diga-se de passagem.
demorou, mas abriu um enorme sorriso.
— Então você lembra…
— Achou que eu estava tão bêbada a ponto de me esquecer de tudo? — arqueei a sobrancelha, cruzando os braços e parada a alguns centímetros distante dele.
— Achei — franziu o nariz, em uma careta. — Mas que bom que você se lembra.
— Não é todo dia que se perde a dignidade, é bom lembrar — dei de ombros. — O que você tem para mim hoje?
Ele me olhou de cima a baixo, levando um tempo para responder, o suficiente para que minha mente desse um looping quase infinito, sendo o mecanismo em meu estômago o responsável pela rota maluca dos pensamentos. Rodava tudo, mas eu não estava raciocinando nada.
Uma chave imaginária havia sido girada em mim e quase do dia para a noite as coisas estavam diferentes, consegui observar por novas perspectivas.
Ou melhor, uma nova perspectiva: .
— O quê da culinária coreana você já experimentou sem ser o bibimbap? — perguntou de uma forma séria.
— Minha destreza com os — fiz aspas com os dedos. — “palitinhos” coreanos não me permitiu sair do menu americano.
— Você vem para Seul e continua comendo fast-food? — Fez um som de negativa, negando com a cabeça também. se afastou do capô e gesticulou para o lado do carro que eu deveria seguir. — Vamos, . Hoje você vai experimentar algo diferente.
— Por favor — ergui a mão direita —, sem vinho desta vez… — franzi o nariz, manhosa.
— Sem vinho desta vez.
Segui o caminho para o lado do acompanhante e chequei meu reflexo na lataria iluminada pelas luzes dos postes antes de entrar. Quando me acomodei no banco, já estava falando com o sistema de bordo, dando a direção para que o GPS o guiasse. Assim que deu certo, a música — que antes já deveria estar alta — voltou ao seu volume normal, surpreendentemente me trazendo para uma atmosfera mais serena com a voz cantando. Um pouco familiar, porém.
Não consegui repelir o riso abafado e nasal, assim como o tapa que dei na mão de quando ele esticou os dedos para o botão em seu volante, a fim de mudar a música. Ele virou o rosto para mim, ainda não tendo dado a partida no veículo.
— Você gosta de Lauv? — perguntou, curioso.
— Não. Mas pode deixar essa música — dei de ombros.
Em silêncio, ele assentiu e voltou a se concentrar em sua direção, saindo dali. Apoiei a cabeça no vidro, ouvindo o final da música, com um curto espaço entre a próxima e me entregando para ouvi-la e entrar na mesma sintonia. Eu não conhecia a discografia dele, do Lauv, sequer já tinha ouvido falar, mas pareceu ser tão a “cara” do momento, da companhia, que eu não conseguiria trocar para qualquer coisa tocando na rádio local ou pelo silêncio durante todo o caminho, ainda mais com o GPS sinalizando quarenta minutos até o destino definido por .
As ruas de Seul já estavam um pouco mais familiares para mim, com aquele arzinho de um bom lugar para se estar, embora eu pouco tivesse aproveitado delas em si. Entretanto, em algum lugar da minha memória fotográfica, era possível passear pelo trânsito com uma sensação de pertencimento, de quem já passou pela via, de quem já viu bastante. Mesmo que eu estivesse com a rotina resumida a ficar em prédios e me locomovendo por minivan, havia conseguido me oferecer muito com um pouco.
Primeiro foi o jogo, algo inusitado demais até mesmo para o mínimo que eu conhecia dele. Não foi um caminho rápido, passamos por várias ruas, várias pessoas, fachadas incríveis de lugares que eu adoraria visitar. Sendo igual para o jantar na sexta-feira, e por mais que eu tenha voltado alterada para casa, na minha mente tinha todos os flashes das luzes, dos locais que já eram enfeitados para o Natal, e toda a beleza que a noite na capital coreana possuía.
Estava, adoravelmente, começando a me sentir bem e acolhida. E isso me fazia pensar que eu sentiria falta quando tivesse que ir embora.
Instintivamente, ao pensar sobre isso, virei o rosto para . Ele dirigia e cantarolava baixinho, então minha audição curiosa quis prestar mais atenção, não só na voz dele, já um pouco conhecida e apreciada, mas também no que ele estava cantando.
“Nós não precisamos de uma cidade chique ou garrafas que nem conseguimos pronunciar… Qualquer lugar, querida, é como Paris na chuva quando estou com você…”
De acordo com cada palavra, acompanhava batucando o volante, também movendo a cabeça no ritmo da melodia. Olhando-o pelo perfil, eu consegui sentir que tinha entrado em uma camada diferente da própria realidade, ele estava distante. Do jeito que estava tão levado e tocado pela música, parecia que estava passando aquela letra para si mesmo, como quando existe uma memória que possa ser gatilhada por outra coisa. Como se ele tivesse a quem dedicar aquela letra toda, que era toda sobre não existir lugar ou hora, mas sim a pessoa.
Legal que ele tinha uma pessoa.
Assustador que eu quisesse ser a pessoa de alguém só o olhando, acompanhando-o, deixando-o participar do meu círculo, não sendo só o contrário.
Limpei meus pensamentos, varrendo para o mais longe possível, quando consegui ver a ponta da famosa torre de Seul ao fundo, exuberante em cima de uma montanha e mais iluminada do que todos os postes da cidade tinham de luz. Era realmente muito bonita, não tinha como negar. Conforme foi diminuindo a velocidade, entrando em uma rua bem mais estreita e com poucos carros, eu entendi que tínhamos chegado ao destino escolhido por ele, e, antes que eu perguntasse, sua voz ecoou:
— É muito bom que você esteja com tênis hoje. Vai ser bom para a caminhada — virou o rosto para a direção dos meus pés e eu olhei em seu rosto, encontrando a animação.
— Não duvide da minha capacidade de fazer maratona em cima de salto agulha — ri, já colocando minha bolsa em meus pés e usando o elástico que estava no bolso do blazer para prender o cabelo.
— Qualquer dia eu te pego desprevenida, então.
— Você já teve sua chance, . Mas tinha tênis em seu porta-malas, eu me lembro. — Não reparei sobre a forma como o chamei, tampouco ele demonstrou qualquer reação, aliviando meu peito da ansiedade.
— Verdade. Isso foi coisa da Sarang. — Ele deu um tapinha no volante, freando e direcionando o carro para encaixá-lo de ré. Achei gracioso a forma como ignorou completamente a imagem sendo transmitida no painel, colocando um braço no encosto do meu banco e virando em menos de noventa graus o corpo para poder enxergar a traseira, enquanto usava apenas uma mão para manobrar. Eu também fazia isso quando dirigia.
Não consegui não soltar um riso, observando-o.
, depois de encaixar o carro entre outros dois, permaneceu na mesma posição, olhando estranho para mim. Considerando uma matemática básica, estávamos bem perto, eu consegui sentir sua respiração.
Nada foi dito, não em palavras. Ficamos nos olhando. Em silêncio.
Na verdade, em um silêncio externo, porque dentro de mim eu descobria o que era aquela novidade toda em meu estômago. Ou melhor, supus que fossem as malditas borboletas.
Droga.

🗼
Eu não queria fazer barulho, mas estava a ponto de berrar. Seguia pela subida, do que parecia ser uma caminhada sem fim, em direção ao ponto máximo do tal Namsan Park. O uso de máscara no rosto também complicava a respiração, mas mesmo que eu não precisasse usar por ser uma mera pessoa anônima, não queria correr o risco; em breve iríamos ter o meu nome circulando uma crítica sobre ele e sua coleção inédita em uma das revistas mais populares do mundo, não podia arriscar.
A questão com o barulho, porém, se tratava de chamar atenção. O parque não estava com um movimento tão cheio e, segundo o meu concierge da nova era, isso se dava por, em algum lugar de Seul (que ele disse e eu não entendi), estar tendo alguma festa e exibição especial para as boas vindas do Natal. Mas, ainda assim, o pouco de gente que encontramos pelo caminho poderia ser o suficiente para tornar infeliz o momento, caso não fôssemos discretos.
Contudo, eu choraria a qualquer momento para parar em qualquer pedra por aquele caminho, a fome estava me gritando e, mesmo sem saber o sabor, eu olhava as sacolas em sua mão com muito desejo.
— Você pretende me levar embora rolando esse caminho abaixo depois? — brinquei, parando entre um lance da escada e outro, tirando minha máscara para baixo, a fim de respirar. Aproveitei o drama e curvei meu corpo, apoiando as mãos nos joelhos.
Ele olhou de um lado para o outro, virando para mim, e por ter se sentido seguro, voltou.
— Pensei que seu tênis fosse confortável — disse, parando em minha frente. Endireitei o corpo, vendo apenas seus olhos entre o pequeníssimo vão entre o que a máscara não cobria e a sombra do boné não atingia.
— Olha só para você… Parece até um adolescente saudável… Ninguém te falou que eu tenho trinta anos no corpo de uma velha senhora asmática? — reclamei, voltando a abaixar a cabeça e flexionar os joelho, me apoiando neles.
— Poxa… Me perdoe. — Ele emitiu um barulho de quem raspa a garganta, algo bem típico no dialeto coreano. — Achei tínhamos a mesma idade…
— Mesma idade? Você tem quantos anos, garoto?
— Vinte e cinco para você.
Ergui o rosto novamente, incrédula.
— O que foi? — perguntou, arqueando as sobrancelhas.
Balancei a cabeça, rindo sozinha.
Além de tudo, eu era mais velha que ele.
— Falta muito? — mudei o assunto, me recuperando.
— Mais ou menos. Vamos sair desse acesso comum aqui…
— Entendi. Vai me levar para o mesmo ponto que leva as turistas que conhece — estreitei o olhar. — Mas já aviso logo, estou com os pés doendo.
me analisou por inteira antes de ajustar o boné em sua cabeça e se virar de costas para mim.
— Sobe.
— O quê? — não entendi, mas senti meu coração acelerar.
Ele virou um pouco de seu rosto.
— Sobe nas minhas costas — foi direto, me dando posição para o fazer. — E, se pensar demais, eu vou continuar a andar e comer tudo isso sozinho.
Impedi o sorriso de habitar meu rosto e apenas retornei a máscara para sua função real, novamente com o rosto quase todo coberto. Com a respiração regular outra vez, tomei o impulso e subi em suas costas, segurando firme em seus ombros.
— Se você me derrubar, eu assassino a sua coleção — ameacei em seu ouvido, me equilibrando da melhor forma possível para não causar nossa queda. riu, segurando firme em minhas pernas, por trás dos joelhos, ainda que estivesse segurando as sacolas com nossas bebidas e o tal cachorro quente coreano.
Voltamos à subida e eu tomei a liberdade e privilégio de apenas observar meu entorno todo verde com luzinhas de Natal já sendo aplicadas. O ar, aliás, parecia algo muito natural, sendo o grande protagonista de tudo, porque era incrível existir um lugar tão preservado e aconchegante assim sendo no meio de uma megalópole. Não tinha como não me sentir bem.
Com o passar do tempo, na subida silenciosa, fiquei compenetrada em detalhes outra vez. me oferecia coisas demais em tão pouco e eu com certeza não acreditaria que alguém que mal disse seu próprio nome na situação do avião um dia pudesse estar me carregando em suas costas por livre e espontânea vontade. Tampouco levaria a sério se me dissessem, lá atrás, que eu estaria deixando meu inconsciente permitir o meu estado de torpor ao estar com ele.
Não teria a menor chance de virar a chave, pelo contrário, ela estaria quebrada e sem qualquer contato para chaveiro.
Ri sozinha, respirando fundo e inspirando o aroma gostoso do perfume dele, tão forte e presente em sua nuca, em um encontro perfeito com o cheiro do cabelo. Era agradável ao olfato, marcante para a memória — das quais eu estava coletando desde o primeiro instante, mesmo que em alguma camada bem profunda do meu consciente.
Outra vez, voltei ao plano real ouvindo seu cantarolar.
Era a mesma música, um trecho diferente. E não seria a segunda vez, quando estávamos esperando o Tokkebi ficar pronto, ele também arriscou alguns trechos fora de ordem.
“Mmm… Mmm… Mmm…”, uma pequena pausa. “‘Cause feelings are hard to find.”
— Você gosta mesmo dessa música… — soprei melódico, porém baixinho.
— Oi? — virou um pouco de seu rosto, forçando-se a me ouvir melhor.
— Já é a terceira vez que você canta ela… Como se chegasse em sua mente como uma memória.
Suas bochechas coraram, ele soltou um típico riso nervoso de uma sílaba só e voltou a olhar para frente. Eu insisti:
— Qual é a história?
Com o pouco ângulo que eu tinha por cima de seu ombro direito, arqueando minha cabeça, vi seus olhos quase totalmente espremidos e julguei que ele estava com os lábios fechados em linha reta. Ele tinha esse costume, pude notar.
— Não tem história. Não fui eu quem escreveu. — Sua fala foi meio sem graça, medindo o próprio tom, e eu senti seu corpo um tanto rígido.
— Então o que ela te faz pensar? Ou melhor, do que te faz lembrar quando escuta? — tentei outra vez.
Levou um certo tempo, mas ele respondeu.
— Ah… Não sei… Talvez eu… Acho que ouvir ela me faz projetar uma história em minha mente. Algo que eu queira viver, entende? — Outra vez seu rosto se virou um pouco e me olhou de soslaio. Afastei minha cabeça e foi no mesmo instante que parou, ao lado de um arbusto bem cheio.
— Não. Não entendo — franzi o nariz, soprando uma sílaba nasalada, descendo e batendo em minha roupa. — Ainda mais quando, no meio da letra, ele diz que sabe que dói estar com seja lá quem for o sujeito da história.
apontou para uma entrada quase imperceptível no meio do arbusto e eu dei espaço para que ele fosse primeiro, não demorando ou refutando minha insegurança. Ele sumiu entre o verde e eu tomei um fôlego para segui-lo, me surpreendendo com a vista que encontrei.
— Uau… — sussurrei ao parar do seu lado.
Não era alto. Mas estávamos em uma colina e olhando para trás dava para ver um tanto distante a tal Torre N.
— Lembra o que falamos sobre eu querer uma família? — se sentou no gramado, deixando o espaço exato para que eu me sentasse ao seu lado. Assim o fiz.
A vista que eu tinha diante dos meus olhos era dona de uma paz absurda. Conseguia ver bem a cidade, ainda que não completa, mas o suficiente para me surpreender com tamanha calmaria que escondia o caos de uma cidade grande e movimentada.
— Às vezes eu projeto isso em letras — ele tornou a falar, tirando o seu casaco para estender ao chão, em seguida abrindo as sacolas para colocar nossas coisas em cima do tecido. — Sejam elas minhas ou dos outros quando há conexão.
— E qual é a sua projeção nesta em específico? — olhei para ele, vendo-o concentrado em abrir as embalagens.
Ele sorriu envergonhado.
— Você vai achar patético…
— E você acha que eu tenho alguma moral depois de sexta-feira? — ri, trazendo um humor para ele. — Qual é… — toquei a ponta do seu nariz, usando isso como uma forma de quebrar o clima estranho. — Para ficarmos quites pelo menos?
me encarou, pegando um dos palitinhos com o tal cachorro quente. Tokkebi nada mais era do que uma salsicha empanada e espetada num palito grande.
Ele ficou me olhando e eu tirei uma mordida, mastigando com cuidado e calma. Levou um tempinho para o meu paladar emitir alguma opinião e quando isso ocorreu, não evitei o franzir no cenho, mordendo um pedaço maior e erguendo meu polegar.
— Sentimentos são difíceis de encontrar. — Mantive meus olhos nele, vendo-o abrir o copo de suco quando citou uma das frases ditas na música. — E eu concordo com ele. Então eu fico pensando como seria poder encontrar alguém, conquistar essa pessoa e partir para todo o resto. Mas aí vem a parte que “o amor só conhece finais infelizes”.
— É nessa parte que você vai lembrar de mim — pisquei para ele com um sorriso sarcástico e franziu o cenho.
— Enfim. É só uma música. Não tem história — deu de ombros.
— Não achei que você fosse tão intenso assim. — Olhei para a frente, continuando a me deliciar com a salsicha espetada.
— Isso te assusta?
— Para ser honesta, sim — suspirei, sem voltar a encará-lo e qualquer dúvida. Apenas me expressei, não controlando, não querendo ter controle dos meus pensamentos. Era um efeito dele. — Mas eu tô descobrindo que gosto — pousei as mãos em meu colo, com o corpo relaxado. — Ouvir você falando assim até pode encher um mundo de esperanças. Você seria um ótimo protagonista para algo do Nicholas Sparks.
— Por que você nega tanto? Eu já imaginava que você era esse tipo de pessoa. Cética demais. Cega demais. Pessoas curiosas geralmente têm dificuldade em acreditar, por isso elas querem sempre provas da verdade, querem sempre saber de tudo.
Sua sinceridade me deixou um pouco espantada e eu precisei de um tempo, sentindo em algum lugar o meu consciente se retrair, mas lutei o máximo possível para não retroceder. Terminei de mastigar e, ainda olhando para frente, me expus:
— Não sei. Talvez eu possa não ter mesmo nascido para essa coisa toda…
— Ou não teve experiências reais até agora — rebateu como se já estivesse esperando por essa minha resposta.
— Não acho que essa seja a conclusão.
— E qual seria? — ele retrucou e eu percebi sua movimentação corporal para se virar para mim. — , quando foi que você se envolveu com pessoas reais? Com pessoas de fora do trabalho em uma categoria que você não gosta? Com alguém que não seja a Andrea?
Engoli a seco ao concluir que não tinha resposta para suas perguntas.
— Você tem algum contato aqui em Seul? — insistiu a me tirar do meu silêncio.
— Não conta. Estou aqui a trabalho — estreitei o olhar e respondi em um tom raso.
— Planejou ficar mais de um mês em um país sem aproveitar? Em um final de ano? — riu nasalado, em tom de descrença.
— Andrea veio junto — dei de ombros.
— Não conta. Ela é sua mãe.
— Dado ao histórico, é até simbólico.
permaneceu em silêncio. Ele não poderia me contradizer se não sabia da história, e sobre isso eu ainda não iria contá-lo. Um passo de cada vez, uma descoberta por hora, tudo ao mesmo tempo não levaria a nada.
— … Você não pode contestar algo se não teve experiências. Como vai dizer que não gosta de morango se nunca comeu um?
Virei o rosto para ele. Apenas isso. De repente estava tudo tão barulhento, como se toda a movimentação da cidade no horizonte estivesse sendo replicada em meus ouvidos.
— Vou fingir que você não está fazendo esse tipo de comparação. — Me estiquei para pegar a sacola vazia e enfiar o palito limpo dentro dela. — Você está comparando uma queda livre com comida. O máximo que pode acontecer se eu mastigar algo que não gosto é uma careta e ânsia. Em uma queda livre, morte.
— Sentimentos não são como uma torre.
— Eles são tão fora do chão quanto o topo de uma. Cair nele é como subir na Torre N e pular lá de cima sem paraquedas.
Ficamos nos encarando, ele com os olhos bem abertos e eu convicta da minha argumentação. Mesmo sem querer, para mim o papo não tão longo foi o mesmo que regredir vinte das dez casas que eu havia percorrido. A nossa troca de olhares parecia um embate, como se ele quisesse colocar algo orgânico em minha mente e eu estivesse com todas as minhas fronteiras fechadas e muito bem protegidas.
Aos poucos, a minha guarda foi abaixando, mas, quando tentei abrir a boca para dizer qualquer coisa, foi tarde demais. Algo chamou a atenção dele e tirou sua atenção de mim. Rapidamente, já se levantava e juntava seu casaco do chão com uma mão.
— Acho melhor a gente ir, senhorita Tenho Medo de Altura, não estamos mais sozinhos. — Me estendeu a outra mão vazia, sorrindo. Eu pensei e tive tempo de repensar, em vão, porque já sabia que mesmo sem entender absolutamente nada, não teria a menor chance de querer ficar para trás.
— São sarangs? — perguntei, tendo sua ajuda para levantar e juntar a sacola com o suco intocável e o lixo que fizemos dos palitos de salsicha.
— Deixa a Sarang saber que você está confundindo sasaengs com ela… — ele riu e me corrigiu, tomando minha mão outra vez, e eu não puxei, me mantive firme e ainda apertei mais, transpassando para esse toque a minha segurança.

You make me
Feel like I'm livin' a teenage dream
— Katy Perry

— Olha, eu entendo do que diz respeito ao mercado financeiro… Mas me surpreende você, jornalista, não ter feito o mínimo de pesquisa sobre ele antes de se meter nessa, !
Revirei os olhos para o comentário de Annie, minha melhor amiga, e olhei em seguida para Delilah, no quadro em que estava a sua tela durante a chamada de vídeo. Certamente ela teria um comentário.
— Ela está há tempos tentando enfiar esse emprego na ladeira… — Delilah estava crochetando alguma coisa nova para a sua decoração e, pela primeira vez, ela olhou para a câmera, por cima de seus óculos. — Não acha mais digno você pedir demissão e mandar seu pai para a merda? Nem Annie teria aguentado tanto tempo, !
Respirei fundo, murchando os ombros. Por mais que eu estivesse levando uma espécie de bronca das minhas duas amigas, cada uma com o seu jeito, ter aproveitado o resto da noite para falar com elas após sair mais cedo do trabalho estava sendo, de certa forma, revigorante.
Contei algumas coisas sobre como a rotina estava sendo já na terceira semana de trabalho e, claro, não deixei de lado a baboseira sem tamanho da estratégia da Vogue com a crítica no trabalho de — não me esquecendo de choramingar o fato de eu ainda não ter sequer começado um rascunho. Porém, eu escondi as experiências e aproximação com ele, isso eu não iria contar nem mesmo para minha sombra. Talvez quando eu soubesse exatamente o que isso significava.
— Esquece, deixa isso para lá — Delilah bufou, voltando seu olhar para o crochê ao ver que eu não iria responder. Sabendo da minha vida toda, ela não era nem um pouco complacente com a minha aceitação de trabalhar em um lugar escolhido por meu pai; Delilah e Annie sabiam muito bem da minha paixão por futebol e o desejo que eu tinha de cobrir o esporte, tanto é que, quando aceitei a proposta e fui trabalhar na Vogue, elas (lê-se Delilah, principalmente) ficaram furiosas.
Não tinha muito o que ser feito e eu reconheço o meu vacilo.
— Vamos voltar a falar sobre coreanos — Annie, notando que o tom da outra era fortemente um ato de repreensão a mim, com muito carinho e amor (eu disse: do seu jeito), sugeriu alterar o assunto. Dentre nós três, Annie sempre tinha o jeito suave e mais tranquilo, apaziguador. — A Netflix me indicou um drama coreano chamado “O Rei Eterno” e eu acho que ficarei eternamente solteira depois disso… — ela suspirou, virando seu chá.
— Mesmo sem o drama você ficaria solteira para o resto da vida — comentei, tirando os olhos da tela para folhear minhas anotações. — Seu garoto Backstreet já está fora de alcance.
— Ei! — Annie protestou. — Ele tem um sutiã meu, tenho certeza que ainda está na gaveta dele.
— Com certeza. — Abandonei as anotações, não conseguindo focar, e voltei a olhar para a tela, vendo Annie focada do outro lado, digitando rapidamente. Delilah continuava a olhar para baixo. — Não me diga que levou trabalho para casa hoje de novo?
— Não. Estava fazendo o seu. — Logo, na conversa, apareceu uma segunda tela, sendo a dela compartilhada. — Olha aqui, Delilah! Olha só quem é o tal do multitarefa que ela está seguindo para cima e para baixo!
Não demorou e Delilah ergueu o rosto, abandonando o crochê e chegando com o rosto mais perto, ajustando a armação dos óculos.
— Sua dissimulada! E vem com essa cara de cachorro caído da mudança! — ralhou comigo.
— Agora eu entendo porque você chegou tarde outro dia! — Annie tinha um sorriso malicioso. — A Coreia está rendendo! Só homem lindo! Os dramas não mentem…
— Você assistiu um só até agora, Annie…
— O quê? — Delilah franziu o cenho, dizendo por cima de mim.
— Não ficou sabendo? — o sorriso malicioso de Annie se aumentou. Eu fui ignorada. — Andrea comentou com mamãe que a chegou tarde e bêbada esses dias, porque tinha saído com um cara que trabalha com ela na filial coreana — ela contou, continuando a sua pesquisa sobre . Agora, podendo ver pela tela compartilhada, ela tinha e amigos surgindo.
— Andrea é uma fofoqueira.
— Deve ser por isso que surgiu o assunto em casa sobre casamento de novo. — Outra vez Delilah voltou para o seu crochê. — Fico pensando o que não deve surgir nesse grupo de pilates delas…
— Enquanto a gente fala sobre marca boa de crochê, melhor lugar para comprar bolsa falsa da Gucci e suculentas, elas estão vivendo de piadas às nossas custas — dei de ombros e estreitei o olhar com a pesquisa de Annie que continuava.
Ela estava em uma matéria sobre amigos de e dava zoom no rosto em um dos citados.
— Conheço esse aqui! — disse alto, empolgada com a sua descoberta. — Ele está em um drama que eu comecei a assistir ontem! O nome dele é difícil de falar… — ela estava com o rosto bem perto, tentando perceber os detalhes, se bem a conhecia. — Acho que vou pegar o primeiro voo amanhã e partir para Seul…
— Nem pense! — Delilah se pronunciou rápido demais. — Eu ‘tô investindo na minha casa nova. Se você for, eu tenho que ir só para segurar sua mão… Não invente moda!
— Mas… Nós estamos de férias da firma… Amiga… O bônus de final de ano dá certinho…
Antes que eu pudesse me intrometer, ouvi a voz animada e alta demais de Andrea do lado de fora do quarto.
— ? Que surpresa boa!
Dei um pulo na cama, ficando petrificada ao ouvir o nome. O tom contente dela só não me irritou porque eu fiquei mais chocada com o que ouvi do que outra coisa. Que diabos ele estaria fazendo na porta de casa àquela hora de terça-feira? E sem aviso prévio.
— Eu já estava de saída, mas vou chamá-la para você. Espera aí!
O anúncio da minha mãe fez com que eu me desesperasse, mal tive tempo: enquanto as outras duas continuavam a discussão, ela logo abriu a porta.
— Querida? Você tem visita… — sorriu abertamente. — Acho melhor se despedir das meninas, é o .
Olhei para a tela e elas estavam em silêncio, me olhando com julgamento.
— Eu já volto.
Me levantei da cama, parando em frente da sorridente Andrea.
— O que ele está fazendo aqui? — murmurei em tom nervoso, vendo, por cima dos ombros dela, parado perto do sofá e com as mãos nos bolsos.
— E eu vou saber? — Andrea arqueou as sobrancelhas, me olhando por inteira. — Vai receber ele assim? De pijama?
— Ele não me avisou que viria, não tenho culpa — suspirei, passando por ela.
Levei um susto com a forma que meu corpo se moveu rápido e a fala dela ficou em minha cabeça, fazendo com que eu soltasse o cabelo e ajustasse o que quer que fosse da minha roupa durante o curto caminho da porta do meu quarto até ele.
Ao me aproximar, em definitivo, ele estava de costas para a minha direção de chegada. Inflei o peito de ar e soltei, tomando coragem para raspar a garganta, chamando-o. Estava, basicamente, nervosa e não de um jeito comum por receber uma visita inesperada, tinha algo diferente. Um nervoso por ser especificamente ele.
E eu odiava essa história de não identificar direito o que tudo isso, esse bolo, essa forma de corresponder à sua presença significava.
— Não sabe mandar mensagem? — Uni as mãos atrás do corpo ao notar que não parava de tremer.
se virou para mim, sorrindo de lábios fechados, mas com as covinhas ali — firmes e fortes, como sempre, como deveria ser.
— Não tenho o seu número… Você não me passou.
— Para alguém que tinha uma sacola com roupas e um tênis do meu tamanho exato, não ter o meu número de telefone é estranho — rebati.
Antes que ele fosse responder, seus olhos seguiram algo atrás de mim e eu me virei, vendo a saída de Andrea.
— Venha mais vezes, querido — ela disse, sorridente, para ele. — E você, seja educada e gentil com a visita — me olhou séria, fechando a porta.
— Talvez você devesse se mudar para cá e eu sair — comentei e ele riu.
— Vamos conversar sobre isso outra hora. Eu vim aqui para te buscar.
— Oi? Me buscar? — fiquei genuinamente confusa, não evitando a expressão facial de desgosto. — Para o quê exatamente? É quase dez da noite, !
— Eu sei. Melhor horário para sair em paz. E eu sei que você vai ficar trabalhando de casa pelos próximos dois dias, então vai ser ótimo, dá para sair.
Agora seu sorriso era presunçoso e mesmo de lábios fechados ocupava todo o rosto, espremendo o espaço das covinhas profundas.
— Você está investigando a minha vida? — levei as mãos na cintura, tentando soar imponente, mesmo que eu estivesse usando um pijama de flanela de frio, descalça, o rosto sem nada e o cabelo sem pentear.
— Eu não, mas a Sarang sim. Ela é perigosa — ele brincou e eu forcei meu olhar entediado. — Estou falando sério, vim te buscar para sairmos. Vou te levar para conhecer pessoas, gente legal e divertida. É um lugar super tranquilo.
— Não. Eu não quero sair — neguei. — E você tem que parar com isso!
— Isso o quê?
— Isso! — gesticulei, exasperada. — Achar que eu sou seu chaveiro para ir aonde você quer! Nós ainda temos um laço profissional.
— Ah… — ficou um tempo com a boca aberta, demorando a fechar e comprimir os lábios antes de voltar as mãos para os bolsos e assentir. — Me desculpe. Pensei que você gostaria de sair… Fazer alguma coisa… Desculpa, senhorita Blewer… É melhor eu ir…
Ele passou por mim, me deixando no lugar igual uma mosca atordoada.
E agora se sentindo culpada pela grosseria.
Céus, ! Você precisa se decidir.
— Espera… — me virei rápido, chamando sua atenção. Pelo espaço ser pequeno, já estava com a porta aberta. Ele me olhou com expectativa. — Eu vou me trocar. Mas não me apresse…
— Entendido — ele abriu um sorriso, empolgado.
— E pode parar de sorrir! — soei histérica, caminhando para o meu quarto.
Mas o pedido foi genuíno, até mesmo pelo meu próprio bem.
— Está bem frio lá fora, hein! — pude ouvir antes de fechar a porta.
Depois de um tempo com os olhos fechados e um exercício de respiração, abri as pálpebras e vi em cima da cama a feição de esperança de Annie e a de julgamento malicioso de Delilah, pelo computador estar com a tela virada para essa direção. Tinha me esquecido delas
— Vou precisar desligar — disse, chegando perto e ajoelhando ao lado da cama.
— Você vai ter que desligar, é diferente — Delilah sorriu, ladina.
— E quando voltar vai contar para nós essa história de estar saindo com o cara que você vai criticar para o mundo inteiro ler! — Annie arregalou os olhos e eu varri o olhar pela janela compartilhada com sua pesquisa, lendo o pequeno trecho biográfico em que mencionava o nome verdadeiro de .
— Isso, continue assim que você irá conseguir a demissão! — o sorriso de Delilah acompanhou seu polegar para cima. — E eu só não enfio minha agulha de crochê no seu nariz por ter me tirado da cama às seis da manhã para conversar no meu primeiro dia de férias e agora me deixar por um macho, porque eu ‘tô do outro lado do planeta.
— Ela está longe. Mas o motivo não é esse. — Annie tomou sua caneca de chá em mãos, se ajeitando em sua cadeira. — Estamos felizes que você não vai passar dos trinta igual a nós: solteira. Vai lá e quebra a profecia, dongsaeng!
— Dongsengue? Que isso?
— É como chamam as mais novas aqui, seja irmã, amiga… — expliquei a dúvida de Delilah. — Você está colocando muita fé em mim, Annie… E assistindo muito dorama!
— Não é em você, é nele — as duas disseram juntas, rindo em seguida e fazendo um tipo de high five. — Sua mãe contou o resumo… E, coitada, . Ela merece saber que o rapaz é quem é — Annie continuou.
— Eu vou desligar antes que desista de vocês. Tchau!
Não esperei pela despedida e fechei o laptop, me levantando rápido e encarando meu reflexo no espelho do guarda-roupas enorme. Não tinha nada que pudesse resolver minha situação, mas lá dentro, bem no fundo, tinha uma faísca de boa vontade para fazer funcionar.
Eu queria me arrumar e sair com , mesmo que eu não soubesse para qual lugar iríamos. Acho que isso se tratava de confiança.
E eu confiava nele.

🗼
— Chegamos — disse assim que desligou o carro e se virou para mim, eu virei o rosto para o lado da janela, vendo o prédio de tijolos iguais aos tão comuns em Nova York. — Esse prédio tem um único apartamento em uso, o da cobertura. Compramos quando vimos que não daria para ficar saindo por aí pelos riscos com a nossa imagem. Principalmente durante a pandemia.
— Compramos? — olhei para ele, tirando meu cinto.
— Sim, eu e os meninos.
— Ah, entendi. Seus amigos.
— Isso. Vamos? — Assenti para a pergunta dele e saiu primeiro.
Precisei respirar fundo e reverberar meu próprio silêncio interno, criado a base de muito custo, para não fugir do que estava se passando. Mesmo que eu não fosse conseguir fugir das sensações que ficavam quando ele ia embora, do coração acelerado e o correio deselegante indo e voltando para e da minha cabeça, a ideia de não estar com ele parecia ser aliviante o suficiente.
Abri a porta e desci, passando a alça transversal da minha bolsa pelo corpo e afivelando mais o cinto do sobretudo. Fechei o carro e fui até ele no porta-malas.
— Quer ajuda? — me coloquei à disposição, vendo-o pegar a caixa com bebidas.
— Só fecha o porta-malas para mim naquele botão e aciona o alarme do carro, por favor?
— Claro! — Fiz a primeira parte quando ele tirou a caixa e a automaticamente o porta-malas se fechou. — Cadê a chave?
ficou com a feição impassível e comprimiu os lábios, como quando alguém quer rir em um momento inapropriado.
— … — chamei melodicamente.
— Está aqui. — E ele se virou de costas para mim, sendo possível ver o chaveiro para fora do seu bolso traseiro.
— Você só pode estar brincando… — passei a língua pelos lábios, murchando os ombros e rindo. — Sério?
deu de ombros e eu desisti de ligar demais para o fato de que teria de tirar a chave dali.
Eu estava na calçada, à beira da guia, e ele no meio fio, em minha frente, consequentemente assim estávamos da mesma altura. Puxei a chave pelo chaveiro de uma chapinha de aço talhada com “97” e acionei o alarme, agora estava ao meu lado na calçada e eu coloquei a chave no bolso de sua jaqueta. Acompanhei seus passos até a porta e entendi o seu aceno de cabeça que deveria abrir, então entrando em sua frente pelo corredor de luzes automáticas.
Ao entrarmos no elevador, supus que deveria apertar o único número, por ser a cobertura o nosso destino. O silêncio não me incomodava, eu estava bem à vontade, inclusive um pouco mais animada. Mas logo se pronunciou, quando a porta abriu e nós descemos no hall, eu o acompanhando por trás agora.
— A hora que quiser ir, só falar. Não se preocupe.
— Obrigada — agradeci e foi nesse mesmo instante que a porta se abriu, tendo um cara alto e de sorriso pontudo em nossa frente.
— Eu não acredito no que estou vendo! — ele disse alto, abrindo mais a madeira, com isso pude ver mais a parte interna do ambiente.
— Não começa com o drama, — revirou os olhos, estendendo a caixa para ele, que agora tinha nome: . — Toma, faça jus aos seus treinos. Isso está pesado, exagerou dessa vez.
pegou sem muito reclamar, mas ficou me olhando, e levou cerca de trinta segundos para entender. O que foi peculiar e engraçado, embora tenha parecido que ele me esqueceu ali — na verdade parecia mais nervosismo da parte dele, no sentido em que eu me sentisse bem.
— Ah! Essa é a . esse é o , um dos meus amigos — então ele fez as apresentações. fez um movimento com a cabeça, como se mencionasse a reverência, e eu sorri.
— Olá — foi o máximo que consegui, acenando. E, quando fomos entrar, outro surgiu ao lado de , passando o braço em volta do pescoço dele, sendo logo acompanhado por mais um, que veio direto para cima de .
— Eu não acredito! me deve dez dólares! — esse segundo, sem nome ainda, disse, puxando-o para uma chave de braço e tirando sua touca para bagunçar seu cabelo. — Quem é vivo sempre aparece!
— Você pode ter modos, por gentileza? — o que estava pendurado em disse, serenamente. — Vai espantar a moça, !
parou, soltando , mas não por muito tempo, logo o puxou pelos ombros e selou um beijo demorado e estalado em sua bochecha. limpou, com nojo, e se virou para mim, reclamando no maior estilo coreano, completamente bagunçado. Não pude evitar e dei o único passo que nos separava, agindo por impulso, para arrumar seu cabelo.
— Esse sem noção é … — ele disse, meio sem graça. Por estarmos perto, consegui sentir o seu hálito com um cheiro refrescante, lembrando do chiclete que ele tinha mascado enquanto me esperava na sala de casa. — E aquele ali é …
Me afastei depois de ajeitar também a gola de seu casaco e, quando vi os olhares dos três naquela entrada, senti minhas bochechas arderem e então tive o momento de refletir o que tinha feito na frente de seus amigos. E não só eu, me olhava e ficou quieto, acabou sobrando para .
— Ela é a . Tentem se comportar, por favor. — Ele se virou, caminhando para dentro.
— Seja bem-vinda, — sorriu e mesmo que fosse acolhedor, eu me senti um pouco intimidada com sua postura não só física, mas também no jeito de falar. — Podemos te chamar assim?
me olhava com a sobrancelha erguida, em uma espécie de análise, e eu criei uma película para poder ignorá-lo, mesmo que tenha se colocado mais perto de mim.
— Podem sim. É mais fácil. E se vocês se sentirem confortáveis, claro — dei de ombros.
— Então, vamos entrar — gesticulou para mim e eu fui em sua frente, olhando para ele a fim de garantir que estava me seguindo.
Quando entramos, foi como se eu estivesse vendo Annie em minha frente e sua tela compartilhada, porque logo ali, no que parecia ser a sala, estava o rapaz que ela me apontou do drama que estava assistindo. Segundo o Google, o nome dele era e ele era lindo demais pessoalmente, assim como na foto que vi sendo mostrada por ela. Além dele havia outros. E apenas homens.
Esse primeiro ambiente era enorme, tinha uma televisão gigante, um sofá em formato de ‘C’ com mesinha no meio, puffs e poltronas bem colocados junto com o espaço do que formava a sala. A divisão para a cozinha tinha apenas uma bancada e o corredor que levava para os outros cômodos era à lateral da porta. Também tinha um terraço, sendo possível sair para ele pela enorme porta de vidro. De lá de fora, mais dois entraram e eles riam de alguma coisa, cada um com uma garrafa de cerveja na mão.
De repente, os olhares e atenção total foram direcionados a mim e , e ele estava exatamente ao meu lado, eu podia até sentir nossas mãos se resvalando.
— Não é possível, … Eu só bebi dois goles disso aqui… Não posso estar vendo coisas já! — um dos que vieram do lado de fora disse.
— E não é que ele resolveu vir mesmo… ‘tá devendo 100 dólares para — , supus, respondeu.
Ao meu lado, suspirou pesado.
— Não era dez? — perguntou, olhando para , que passou pela gente e foi até onde estava. tinha sumido para a cozinha.
— Não, nós apostamos sem o que eu daria 100 a ele se você viesse, porque só ele estava confiante. — saiu da cozinha, vindo até nós e oferecendo uma cerveja para cada um. — Mas, ao que parece pela caixa que você trouxe e o “ exagerou” — pegou as duas porque eu fiquei perdida e, nesse momento, olhou para trás, recebendo caretas de e o que estava com ele —, é que já sabia que você vinha e quis enriquecer a conta do .
— Altruísta como sempre, chefe! — ergueu sua garrafa em um cumprimento.
Olhei para de soslaio, captando seu olhar em mim.
— Bom — ele me deu uma garrafa e disse de modo geral —, essa é a . , estes são os meus amigos. ‘Tá faltando três, mas você ainda vai ter chance de conhecê-los.
— Todos idols com agendas apertadas, mas que sempre dão um jeito de ver os amigos. — ergueu sua garrafa, ainda sentado no sofá.
— Bons modos, por favor — repreendeu. — É um prazer conhecer você, . Ouvimos bastante o seu nome.
— Ah! Então você é a famosa Blewer — o que estava do lado de que eu ainda não sabia o nome, disse alto, caminhando até nós. — Você pode me chamar de . É um privilégio só seu… — ele sorriu para mim ao sussurrar a última parte e eu fiquei um pouco surpresa com o tamanho e intensidade, porque era uma característica muito única dele. O sorriso era enorme e lindo. Além de dar uma visão de ele ser uma pessoa muito simpática. Inclusive, foi o único que me estendeu a mão para cumprimento.
Demorei, mas estiquei meu braço depois de trocar a garrafa de mão.
— E você pode me chamar de . Mas não é um privilégio só seu, eu só não tenho apelidos mesmo… — respondi com humor, arrancando uma risada fraca dele.
— Gostei dela! Tem senso de humor… — olhou para , assentindo, e em seguida o abraçando rapidamente. Não consegui prestar atenção ou entender o que ele disse no ouvido dele, tornei o olhar para os outros cantos e reparei que todo mundo já estava se ocupando com alguma coisa. estava, agora, com na cozinha, ditando algumas coisas para ele.
Todo grupo sempre tem o seu “cabeça” e com certeza ele deveria ser encarregado desse título. O que me fez pensar sobre eu, Annie e Delilah não termos isso, sendo o mesmo neurônio dividido pelas três.
Finalizando o abraço, ficamos só eu e no mesmo espaço e ele se virou para mim, sorridente e prestativo. Ele tirou a garrafa ainda fechada da minha mão e colocou em uma mesinha que tinha ali do lado, à lateral da porta.
— Deixa eu guardar o seu casaco e a bolsa. O ar quente está ligado, já já você começa a passar calor… — disse.
— Cuidado com a minha Gucci — fiz uma feição séria, passando a alça pela cabeça e tirando-a. Peguei apenas meu celular.
— Sim, senhora… — ele respondeu, indo para atrás de mim quando lhe dei a bolsa e me ajudou a tirar o sobretudo. Ajeitei as mangas da minha gola alta e olhei minha saia, vendo se não estava muito erguida, embora eu estivesse com uma meia grossa por baixo do tecido xadrez. — Se quiser tirar a bota e deixar aqui, fique à vontade. tem mania de limpeza, esse chão é limpinho…
— E, se você não tirar, ele vai ficar enchendo a sua cabeça com isso… — surgiu do nosso lado, dizendo baixo.
Eu me assustei, claro. Ainda mais pela loucura de estar algumas pouquíssimas horas antes vendo uma foto dele no Google pela pesquisa de Annie e agora tê-lo ali em minha frente, em carne e osso — e altura, porque ele era realmente alto (aliás, todos ali eram; eu estava me sentindo o João Pé de Feijão no meio de gigantes).
Sorri com humor e fiquei perdida, mas logo usando o ombro de como apoio para erguer minha perna o suficiente para abrir o zíper da bota de cano médio, repetindo isso na outra. Juntei o calçado com os demais ali no canto próprio da porta e já me sentia menor que antes.
— Vou colocar suas coisas ali no armário e já venho. — me devolveu a garrafa e teve sua atenção tomada por .
— Preciso falar com você. — Seu olhar era sincero e em seguida caiu em cima de mim. — Pode emprestá-lo um pouco?
— Claro! — respondi rápido demais. — Pode levar.
— Deu para ver que ela gosta da sua companhia, ! — berrou, fosse lá de onde ele estava.
Mas ficou hesitante.
— Não pode ser depois?
— Pode… — moveu os ombros casualmente.
— Não, não pode — eu interferi. — Não sou uma princesa indefesa, pode ir lá dar atenção ao seu amigo. Vou me enturmar com o , ele parece ter coisas boas para falar ao seu respeito… — o empurrei pelos ombros.
— Ainda bem que seu bloquinho está comigo…
apenas me agradeceu com o olhar e um sorriso simples, seguindo com pelo corredor. Quando os dois sumiram, fui surpreendida por um me oferecendo petiscos.
— Obrigada… — neguei com a mão ao agradecer. — Não abri nem a minha cerveja ainda.
— Quer ajuda?
— Não, não… Eu acho que prefiro não beber, na verdade — estendi a garrafa para ele e ele pegou.
— Entendo… Se quiser algo não alcoólico, pode falar que nós pedimos ou alguém sai para comprar. Isso era tarefa para a namorada do , mas parece que ela não quis vir…
— E não vem nunca mais. — surgiu, se pendurando em e petiscando a bandeja. — Ponto para mim, vou voltar a ter companhia para o time dos solteiros.
— Só você é solteiro? — perguntei rápido demais, seguindo o fluxo do meu pensamento preocupado. olhou feio para ele. Porém, não foi o suficiente para que prendesse a língua dentro da boca.
— tem um não namoro com uma fulana aí super gente boa, mas ela não está na Coreia. é solteiro, mas ele tem os contatos fixos, então não sai como eu.
— Ninguém além do tem coragem de te acompanhar… — resmungou, revirando os olhos.
pareceu nem se importar, ele continuou:
— , esse bonitão aqui, está namorando. Mas ela é americana igual você e está visitando a família. ‘tá noivo e os outros que não vieram também namoram. Só o que está desencalhando ago- AI! — ele parou de falar ao levar uma cotovelada de e eu mirei meu olhar para o sofá, achando extremamente atrativo.
— , fique à vontade. Já estamos terminando a comida e aí vamos todos sentar para comer e… Você tem alergia a alguma coisa? Está se dando bem com a culinária daqui? — realmente era atencioso e bom em mudar de assunto, mas eu ainda fiquei curiosa com a parte do .
— Com a culinária, sim. Mas não com os palitinhos — fiz uma careta de vergonha.
— Fica tranquila, seu coreano é ótimo. Ninguém vai ligar para isso. — me deu um “joia”, soltando de . — Fique à vontade, eu vou lá buscar os dois fofoqueiros.
“Não, volta aqui! Termina a sua fofoca”.

🗼

— Então você é a jornalista que vai acabar com a vida de bom moço do ?
Virei a cabeça para o lado, assustada, e vi a figura alta de se sentando no espaço à minha direita. De repente, o resto estava com ele e voltava com dois copos, parecendo totalmente à vontade. Notei que ele não usava mais a jaqueta e estava somente com a camiseta de mangas e gola compridas. Ele ocupou o lugar à minha esquerda, me dando o copo.
Por mais lento que meu cérebro tenha vislumbrado toda a cena, a resposta saiu rápida.
— Sim e não — franzi o nariz, cheirando a bebida antes de virar um gole. — Sou a jornalista, mas não pretendo acabar com a vida de ninguém.
— Poxa — resmungou e eu apenas contei até mil para não o encarar e sentir aquela quentura em minhas bochechas —, só porque eu queria um contrato com a Prada…
riu nasalado, passando seu braço em cima do encosto do sofá, por trás da minha cabeça.
— Você acha que, se a vida de qualquer um de nós aqui for exposta, não vamos todos juntos? — ele perguntou. Desta vez, riu.
— Itaewon deixa boas lembranças. — Ergueu seu copo, brindando sozinho no ar e tomando logo em seguida.
— Itaewon? — perguntei, olhando dele para , completamente confusa.
— Logo nos primeiros meses de pandemia, alguns de nós resolveu furar a quarentena e ir para o bairro badalado de Itaewon.
— E, por azar, escolheu sair de casa justamente quando não podia. — gargalhou, completando a informação dada por .
— Não foi bem assim. — virou o rosto para mim, estávamos muito perto. — Eu não tenho tempo para ficar indo de lá para cá, de cá para lá. Eles sabem disso, consegue ser pior que eu com a agenda descontrolada! Não tenho culpa de ter tido o tempo justamente na quarentena.
— Isso não tem nada a ver! — protestou. — Você não sai de casa porque não quer, teve férias e não quis ir para Jeju. Teve dias de folga e não quis ir para Tóquio. Nem mesmo para Busan, que é logo ali do lado.
— Até o , que está no grupo dos artistas de Grammy, consegue sair mais com a gente do que você. — Ouvi a voz grossa de ao meu outro lado e olhei para ele brevemente, ao virar o rosto me senti um pouco incomodada.
estava encurralado. E isso estava sendo repetitivo desde que chegamos. Quanto mais tocavam nesse assunto, mais ele parecia se fechar e se retrair em culpa.
— Certo — expeli com uma pausa logo em seguida, tendo atenção momentânea, enquanto pensava no que dizer —, isso aqui está parecendo uma sabatina. Vocês estão com os respectivos corações partidos porque querem atenção. Talvez eu devesse deixá-los a sós.
Fiz menção de me levantar, mas colocou sua mão em meu joelho, espalmando-a ali, e me segurou no lugar. Eu queria que ela tivesse continuado no encosto, atrás do meu pescoço, porque no lugar em que ela foi se meter carregava um certo perigo.
Olhei para ele, porém, entendendo seu pedido silencioso e a forma que agiu em reflexo, por desespero.
— Vai mesmo me deixar sozinho para apanhar? — forçou uma feição triste, sendo dramático.
— Boa tentativa. Mas, sim, eu vou deixar. Preciso ir ao banheiro.
Com muita força de vontade, tirei sua mão de mim e deixei o copo em cima da mesinha à frente, me levantando em seguida e saindo dali. Só me senti menos sufocada quando entrei no pequeno metro quadrado, mas não por muito tempo, porque, ao ver meu reflexo no espelho, quis quebrar o vidro em milhões de pedacinhos.
Tinha a porcaria de um sorriso bobo surgindo em consequência da lembrança do toque dele em minha perna, por cima da grossa camada do jeans e meia calça que eu usava.
De qualquer forma, eu não poderia demorar muito tempo ali. Apenas lavei meu rosto, sequei e voltei, recebendo os olhares assim que abri a porta, no início do corredor e com vista ampla para a sala.
— O que você acha disso, : furar a quarentena? — perguntou sem muito esperar.
— Ainda nesse assunto? — ri fraco. — Sinto muito, mas não sou terapeuta, não posso fazer a mediação desse papo, galera.
— Mas pode dar a sua opinião. Você é uma jornalista, todo jornalista sempre tem algo a dizer de alguma coisa.
Encarei da mesma forma que encarei meu próprio reflexo dentro daquele banheiro: como se pudesse fazê-lo sumir. O que fez ele se encolher em cima do banco em que ainda estava sentado à bancada de separação dos ambientes.
Vendo que todo mundo continuaria naquela, pelos olhares em expectativas, desisti de relutar.
— Certo, você tem uma agenda corrida e tudo bem. Todo mundo na vida adulta lida com alguma coisa — iniciei. — Mas visitar família, amigos e as pessoas, no geral, que te fazem bem, não é como uma obrigação, porém serve como um lembrete de que se importa com elas. A questão é, durante a pandemia existiu a quarentena por um motivo e você só realmente viu opção de sair quando não podia fazer isso? — saiu tudo sem freio e eu olhava para diretamente, como se só estivéssemos nós dois ali.
— ‘Tá vendo? É disso o que eu ‘tô falando! — jogou uma almofada nele, mas isso não rompeu nossa troca de olhares ou aumentou a conversa, estava tudo em silêncio.
— Me parece mais com alguém que não tem opções do que simplesmente desligada — ele me respondeu. — E que só teve a chance de sair durante a quarentena porque reduziu o trabalho.
— Na verdade, acho que tem muito mais a ver com um traço da sua personalidade do que com as suas inúmeras profissões. Ou tudo junto, misturado com a sensação de liberdade — dei de ombros. — O interesse no proibido porque ele é atrativo.
— Como pular de uma torre? — passou a língua pelos lábios, mas eu continuei mirando seus olhos, sem reparar à nossa volta.
— Aí já não é o interesse no proibido. É falta de noção.
Nenhum de nós dois retrucou mais alguma coisa, era até possível ouvir o barulho de mastigando alguma coisa que deu a ele a fim de melhorar seu estado embriagado. E não iríamos sair do silêncio se não fosse por ele justamente parar de mastigar e levantar correndo, aos tropeços, para o banheiro.
— Eu vou fazê-lo limpar, se vomitar! — se levantou rápido, indo atrás.
e se levantaram em seguida, carregando junto, com alguma desculpa qualquer para acompanhá-los.
— Você pode pegar a minha bolsa e meu sobretudo, por favor? Quero ir embora — pedi em um tom sereno. se levantou rapidamente do sofá.
— Eu te levo.
— Não! — devolvi rápido demais. — Eles claramente estão carentes da sua companhia. Eu já tenho tomado tempo demais da sua rotina nas últimas semanas… Posso ir de táxi para casa.
— Tudo bem, então.
Em silêncio, seguiu para o corredor, indo buscar minhas coisas. Eu logo tratei de vestir minhas botas, me esforçando para ter algum equilíbrio. A verdade era que eu também estava um pouco fora da minha sã consciência e precisava me jogar na cama, encarar o teto e pensar, remoer pensamentos.
Realmente me senti incomodada como serviu de saco de pancadas dos amigos durante a noite, por conta da ausência dele, mas eu não podia me envolver diretamente só porque meu instinto de proteção pedia. Isso era algo deles, a saudade, o carinho e tudo o que envolvia o assunto deveria ser resolvido entre eles. No mais, eu comi, bebi e dei boas risadas das histórias de , e . A noite, no fim, além de ter servido para cobrar , foi também para aliviar como estava mal pelo seu término recente (no dia anterior).
Terminei de vestir meus calçados e surgiu vestido com sua jaqueta e as minhas coisas.
— O táxi chega em cinco minutos. Já pedi — disse, me ajudando a vestir o sobretudo e depois a passar a bolsa em meu corpo.
— Todo mundo sumiu… Diga que dei tchau a eles. — Olhei para o corredor.
— Eu falo. Mas vou descer com você.
Sem refutar, acompanhei. abriu a porta e nós logo entramos no elevador, rapidamente descendo para o térreo. O segui pelo corredor e saímos, ficando na calçada da rua extremamente vazia.
— … Tem certeza que vai embora sozinha? — ele ficou de frente comigo, extremamente perto.
— Sim — sorri para confortá-lo, mas continuei com seriedade: — Você não precisa se preocupar mais em me impressionar ou convencer. Relaxa.
deu um passo para trás, com a feição séria e chateada, e só então eu notei o quão infeliz fui no meu comentário seco, sem ter colocado a dose de humor necessária para que ele pudesse compreender que era uma brincadeira, algo que eu achei que já tivéssemos criado internamente, somente entre nós.
— Eu não estou tentando te convencer de nada! — iniciou, mas a voz não saiu alta, sequer mudou, a única coisa foi sua feição chateada. Eu o acusei, mesmo sem querer, igual seus amigos fizeram a noite toda. — Apenas faço a minha parte, porque eu realmente ‘tô nessa, senhorita Blewer. É uma coisa muito importante para mim, você tem ideia do tamanho daquilo? Do que estamos fazendo? Tem ideia do quão importante é? Você está confundindo as coisas. O profissional não está aqui. O meu único esforço é para te deixar ver quem eu sou de verdade, mas não tem mais nada a ver com a coleção. Me pareceu oportuno continuar te dando o melhor de mim para você não ficar sozinha em uma cidade que não conhece ninguém…
— . Você não precisa me chamar de-
— Eu sei que pode parecer que estou te bajulando — ele me cortou, continuando seu desabafo. — Mas eu não estou. Não por interesse em trapacear e te comprar. Na verdade, ‘tô abrindo a porta para você me conhecer de verdade, porque é o mesmo que eu desejo com você. Então pode me dar o mínimo de crédito por me esforçar e acreditar que isso é genuíno?
Ele terminou ofegante, mas parecendo bem mais leve. Entendi que em suas palavras saíram o cansaço e compreendi, por fim, o efeito delas em mim. O feito dele, na verdade.
O passo que deu para trás, eu dei para frente, ficando novamente bem perto. Segurei as abas de sua jaqueta e ele baixou mais o rosto para nossos olhares se encontrarem.
— Eu vou te beijar porque agora não tenho nenhuma resposta boa o suficiente. E eu não estou bêbada a ponto de não entender. Então, quando eu chegar em casa, vou pensar sobre tudo isso e organizar a minha cabeça, porque você, “” … Você me revirou por inteira em menos de um mês.
— O tempo não quer dizer nada — ele disse com o rosto mais perto. — Mas eu esperei muito dele para o que você disse que vai fazer…
— Não vai precisar esperar por mais.
Puxei as mãos, colando meu corpo ao seu instantaneamente com os lábios.
A minha boca contra a de emitiu um choque elétrico por todo meu corpo.
Acendeu vagalumes no estômago.
Deu asas para as borboletas.
Reformou a entrega do correio, agora era somente elegante.
Fez coisas inimagináveis. Contudo, não prosseguimos, ouvi o barulho do carro e nos separei, tendo a visão mais adorável que eu jamais poderia ter em minha vida: com as bochechas coradas (e ainda bem que o poste de luz era forte, me permitindo ver com nitidez).
— Minha carona chegou — disse baixo, soltando sua jaqueta.
— Fica mais um pouco, eu te levo… — pediu, fazendo um bico de manha.
— Preciso ir e encarar meu teto por um tempo — fiz uma careta. — Mas a gente ainda vai se ver… E eu espero que não em uma rua.
Ele riu, envergonhado, e se virou, sendo o suficiente para abrir a porta do carro.
— Eu te ligo.
— Você não tem meu número… — estranhei, entrando.
— Dou meu jeito — ele riu e bateu a porta, eu abaixei o vidro. — Tchau, .
— Tchau, . Obrigada por hoje, outra vez.

Who are you?
You make me dizzy
— EXO

O sorriso dele não era apenas lindo, trazia um certo efeito calmante por sua serenidade e se tornava impossível não olhar, admirar e querer tocar. E isso se estendia para suas covinhas, tão chamativas quanto um imã em atração do metal. Além dos olhos, claro; ele era dono de um par de iríses que me transportavam para outra atmosfera sem ao menos me mover, a sensação se equiparava ao ser levada por uma esteira rolante, mas, neste caso, sem parada — pelo menos enquanto estava em sua presença.
E tudo isso ficava como uma mancha de vinho em uma camiseta branca, porém, na minha mente, estampando meu teto, lugar para o qual eu mirava meu olhar sob a luz dos postes de iluminação da rua e a lua, pela janela estar fechada apenas com vidro e as cortinas presas. Funcionava como uma forma de me esconder dos meus próprios pensamentos, meu bicho papão particular, sem gastar energia de casa. Não vinha funcionando muito bem, entretanto.
No relógio do meu celular já estava marcando quase quatro da manhã.
Sentei na cama, respirando fundo pela exaustão. Meu reflexo no espelho do guarda-roupas em minha frente gritava para mim o que eu não estava querendo aceitar por bem. E eu já estava começando a perder a paciência comigo mesma; não podia ser possível que agora batia o arrependimento de o ter beijado, assim como quase me afundei no solo de um deserto pela vergonha de ter ficado bêbada e vulnerável em sua presença. A verdade era que eu queria acreditar nessa história de romance clichê, só que eu estava com medo.
Confissão feita. Contudo, não aceita.
Ceticismo e medo não deveriam se ligar. E o meu maior problema estava sendo ver as minhas convicções caírem por terra em reflexo a um par de covinhas e olhos espremidos pelo sorriso dono de uma quilometragem maior que o próprio rosto. A cada minuto que eu me lembrava de algum detalhe, alguma coisa única sobre ele, meu coração acelerava e nada parecia errado, principalmente o fato de eu estar diante da minha maior fraqueza: entrar em dúvida sobre o que acredito.
Sentir os lábios dele contra os meus, aliás, passou a tomar o meu principal foco de crença.
Agora eu acreditava em e sua existência, e isso soava como um divisor de águas muito taxativo. Tão assustador quanto.
— Droga… — passei as mãos no rosto e as guiei para o cabelo, tentando ajeitar o caos.
Não teria jeito, eu precisava me distrair de alguma forma.
Peguei meu celular e abri o grupo de conversa com as meninas, logo digitando:
“O que eu faço?” — Esperei que de alguma forma elas entendessem.
Sem muita demora, Annie logo surgiu:
“Espero que não seja uma pergunta daquelas que você faz quando perde a chave de casa.”
“Sei crochetar, fazer pulseiras de miçangas, cozinhar, administrar o dinheiro dos outros, dançar, cantar, dirigir para fuga se for preciso… Mas ainda não faço ideia de como ler a mente dos outros, desculpe” — Essa foi Delilah.
Logo, o telefone tocava por uma chamada de vídeo feita pelo grupo. Annie, claro.
— Credo! — Delilah disse, franzindo o rosto ao conectar as imagens.
— Parece que você não dorme tem cinco dias… Está precisando de beterraba. — Annie logo desapareceu da imagem, ao que parecia, ela estava no mercado.
— Você envelheceu cinco anos em menos de doze horas? Nos falamos há pouco tempo e já está em fase de decomposição…
— Eu sei que estou péssima, tenho espelho em casa — reclamei ao fim do comentário de Delilah. Ela, por sua vez, estava dirigindo. Me joguei contra o colchão, pressionando os olhos antes de dizer: — Acho que eu odeio a Coreia.
— Simples, pega um voo e volta para casa. — Delilah olhava para o trânsito, ouvindo uma música extremamente animada, contrária ao meu estado de espírito.
O rosto de Annie voltou para a tela, ela pegou o celular do suporte que deveria estar e disse toda sorridente:
— Você precisa assistir um drama coreano! Isso vai te ajudar… Nem eu e nem Delilah podemos cumprir com esse papel, não temos como sustentar uma teoria boa sobre essa parte.
— É por isso que nos damos bem. Temos uma pessoa que odeia homens, uma traumatizada e-
— Uma aprendiz que é igual criança — Delilah me cortou. — Você acha que entende de amor, , mas não sabe como é gostar de alguém porque não se permite. Você é como aquelas crianças que dizem não gostar de brócolis quando só experimentaram o legume de uma única forma.
— Devo concordar com ela… E a forma que você provou o brócolis até hoje não serve como parâmetro. — Annie sumiu outra vez, mas pudemos continuar a ouvir sua voz: — Você teria recusado esse trabalho e voltado para casa logo quando soube da trama toda que estão montando. Mas você quis ficar e não só porque seu senso de justiça está falando mais alto.
— Isso não tem nada a ver com minha ética profissional! — rebati.
— Não mesmo! Você ficou porque não quis deixar para trás algo que te chamou a atenção. — Delilah olhou para a tela. Ela parecia ter estacionado o carro e agora ia segurar o celular. — Nós te conhecemos. Te criamos! Você odeia criar laços e não se envolve no que não é de seu interesse.
— E não é sobre dinheiro. Se fosse, você já tinha, no mínimo, uns dez rascunhos, levando em consideração tudo o que já fez com ele.
Fiquei em silêncio, remoendo essa minha contradição.
— Acho que… — olhei para as duas. — Acho que não consegui escrever nada ainda porque não é sobre isso que estou interessada… Eu nem gosto desse trabalho… — bufei, irritada, me sentando outra vez.
— Vamos, … Fale em voz alta… Não precisa ter medo. Você mesmo diz que medo de ceticismo não tem nada a ver — Annie sorria cheia de empolgação para mim e Delilah me olhava com seu típico e sereno rosto de julgamento por cima dos óculos. — Eu tenho uma coisa para te contar, mas só vou fazer isso quando você for verdadeira consigo mesma, porque para isso… para essa coisa que tenho para você, é necessário estar pronta para sair do papel em que está.
— Adoro quando você aguça o lado fofoqueiro… — Delilah foi sarcástica.
— E faço isso para você me ajudar a arrancar as coisas da nossa caçula mais metódica que existe. Não tem nada mais motivador que uma Delilah Muller curiosa por uma fofoca.
— Vocês duas não tem o mínimo de respeito por mim. — Minha feição se fechou e eu já começava a me sentir irritada. — O que vocês querem ouvir? Que eu estou envolvida com ele? Que não consigo parar de pensar nele? Que a companhia dele me faz bem? Que estou descontrolada e não sei mais quem eu sou porque ele me faz repensar as coisas que passei a acreditar por trinta anos da minha vida?
— Não. Um simples “fodeu, galera” já teria resolvido — Delilah deu de ombros. — Está na sua cara de bocó ao falar sobre Seul e como tem gostado de estar aí a forma como o tal do te fez colapsar.
— Igual uma adolescente descobrindo o primeiro amor… Isso me lembra um dorama que eu vi hoje cedo… — Annie cantarolou. — Sabia que ele também já atuou em um? Se chama "Dear M.", você deveria assistir… Tem de graça no Viki, mas eu te empresto minha senha, os anúncios são chatos.
— Sem drama, desembucha logo o que você tinha para mim — cobrei, sabendo que não adiantaria me lamentar pelo que já havia dito.
Fazendo uma encenação de suspense, Annie voltou o celular para o suporte no carrinho do supermercado e puxou sua bolsa de alça transversal para frente, tirando um papel de dentro.
— Passei na sua casa pegar as correspondências e tirar o pó. Tinha isso embaixo da sua porta. — Era um envelope com o timbrado da ESPN. — Achei estranho… Pensei que viria por e-mail a resposta.
— O que está escrito? — dei um pulo, saindo da cama e indo para perto da janela. — Abre!
Ela fez o que eu pedi, parecendo demorar séculos. Mas, antes de ler em voz alta, leu apenas para si.
— Você tem certeza que não chegou nada no seu e-mail? — Seus olhos se arregalaram e eu neguei. — Verifica o SPAM depois… Porque eles simplesmente mandaram a dois dias atrás um pedido de resposta sua para o processo seletivo da emissora. Você passou para a última fase, !
— Espera, é aquele em que a vaga te mandaria para a Europa? — Delilah perguntou, sorridente.
Mesmo petrificada, com o coração a mil, eu assenti.
Em sincronia, nos olhamos por alguns segundinhos antes de gritar histericamente. Annie no corredor do mercado, Delilah em seu carro (e pelas vestes, eu diria que estava no estacionamento da academia de dança) e eu no meu quarto iluminado por pouca luz, mas muito cheio de mudanças.
De qualquer forma, o medo que estava me aterrorizando agora tinha dado espaço para uma euforia; entretanto, algo me chamou a atenção: eu queria contar para , pular a parte que estava acordada porque ele tinha alugado uma mansão em minha mente e ir direto ao ponto final. Ainda existia uma chance de eu também conseguir escolher fazer o que gosto.
Enquanto Delilah e Annie tagarelavam, eu abri meu Instagram e logo busquei por ele. Cega pela emoção, decidida pela felicidade. Fui direto para a opção de mensagem, sendo ingênua e acreditando que ele conseguiria me enxergar lá.
“Espero poder te ver amanhã, tenho algo para te contar” — escrevi e não pensei muito antes de enviar, foi automático e tão decidido. Sequer senti que o arrependimento viria.

🗼
— Pensei que estava vendo coisas!
Ergui o olhar e vi Nuyah se sentando em minha frente, do outro lado da mesa, com a sua bandeja do almoço. Logo Yungho também chegou, mas ele veio por trás de mim.
— Já assisti esse. Eles se beijam e no outro dia ela é uma cretina! Fiquei com muito dó… — comentou, ajeitando-se na cadeira ao meu lado.
Em cima da mesa, no pequeno suporte, estava meu celular e eu assistia ao tal drama que Annie me infernizou a cabeça para ver. Era bem diferente do que eu estava acostumada assistir, mas estava me prendendo a atenção já pelo segundo dia consecutivo. Talvez fosse porque era por ali que eu via , haja visto que depois da terça-feira nós não nos vimos e sequer nos falamos. Ele tinha sumido.
E, claro, fiquei frustrada com o que Yungho me contou e não só por ser sobre uma parte que ainda não tinha chegado, mas tinha um comichão pelo “eles se beijam”. Fiquei parada no lugar como uma estátua, lenta entre os dois.
— O que você está assistindo? — Nuyah se esticou por cima da mesa, virando meu celular ao ângulo que ela conseguisse enxergar. Raspou a garganta, carregando seu sotaque coreano. — Aish! — reclamou. — Eu odeio o que ela faz com o Min Ho depois do beijo! Ele não merece isso. Na verdade, ele não merece nada do que passa nessa história! — depois de descontar sua frustração sem vírgulas, Nuyah deixou seus palitinhos de lado e me olhou, curiosa. — Mas por que você está assistindo isso?
Então eu “acordei”. Dentre todas as respostas que eu poderia dar, não consegui fluir nenhuma. Apenas puxei o celular e bloqueei, levando-o para o bolso do meu blazer, focando em minha comida.
— Não tinha nada o que fazer e isso surgiu como recomendação — disse. Não era mentira, entretanto, até porque eu voltei para o prédio naquele mesmo dia, depois do tempo “trabalhando” de casa, e como havia sumido e sua equipe emitiu um comunicado de que não iríamos acompanhá-lo mais pelos próximos dias, eu realmente me vi sem ter muito o que fazer. Afinal, agora eu só tinha como tarefa cobrir a vida e coleção dele.
Notei que os dois trocaram olhares curiosos e Yungho apenas deu de ombros, iniciando sua alimentação. Nuyah, porém, pareceu inquieta e em seu rosto um sorriso atentado surgiu.
— Senhorita Blewer… — chamou, baixo, como quem conta um segredo. — A senhorita parece bem tranquila com tudo… Pretende entregar o que eles querem?
Soltei o ar de forma pesada, deixando o meu talher na bandeja.
— Já tem algo escrito, senhorita Blewer? — Yungho perguntou enquanto mastigava.
— Sim, tenho — menti, apoiando os cotovelos na mesa e entrelaçando meus dedos entre si
— Que ótimo! — Nuyah bateu palmas histéricas. — Tenho certeza de que será ótimo, independentemente do que a senhorita escolher fazer…
— Só vai ser péssimo para ele se ela for pela linha que a chefia espera... — o tom de Yungho foi pesado e ele arrastou um “raspar”de garganta. Olhamos para ele, esperando que desenvolvesse.
— Ele não é qualquer um, Yungho! Mesmo que a senhorita Blewer tenha coisas negativas a dizer sobre a coleção, continuará sendo um dos idols mais queridos na Coreia do Sul!
— Sim, mas a questão não é essa… — ele revirou os olhos, enchendo a boca novamente.
Nuyah me encarou, confusa, e eu, entediada e um pouco irritada pela intromissão no meu almoço, perguntei:
— E qual seria a questão?
— Você acha que a agenda dele foi alterada da noite para o dia por que estão ensaiando “demais”? — Yungho fez aspas com os dedos, me olhando com escárnio. Eu ouvi Nuyah arrastar alguma sílaba, chamando-o de “idiota” em coreano e pedindo que não fizesse o que ele iria fazer: tirar o celular do bolso e procurar algo para me mostrar. — Aqui — me deu a tela iluminada para ver —, está em todos os grupos de informações clandestinas que nunca são vazadas pela mídia sobre os idols.
Estreitei o olhar e vi a colagem feita com fotos minhas e de juntos. Só não tinha do dia em que fomos no Namsan Park, que nos escondemos em uma colina próximo da montanha da torre. Do dia que ele me levou para conhecer seus amigos havia somente uma foto dele abrindo a porta do táxi para mim. Felizmente, não sei, não era possível ver meu rosto nitidamente em nenhuma das fotos.
— Só você tem essa bolsa da Gucci da coleção passada. — Yungho tomou o celular da minha mão. — Ainda bem que você já tem material suficiente para escrever… Porque eles claramente estão impedindo vocês dois de se verem.
Não respondi nada, respirei fundo e juntei minhas coisas.
— Com licença — levantei, segurando a bandeja e me direcionando para o lixo.
Fiz tudo cegamente, sentindo um embrulho no meu estômago e uma vontade absurda de vomitar. Assim que coloquei a bandeja em cima da superfície própria para descarte, peguei meu celular que tinha sido jogado de qualquer forma dentro da bolsa e fui direto na mensagem que mandei para ele no Instagram. Em minha cabeça maluca, deveria apagar (ele sequer veria, não é mesmo?), mas o embrulho piorou quando eu vi que estava marcado como mensagem lida.
Continuei minha caminhada, saindo do local de refeição coletivo e passando para o saguão de entrada dos funcionários. A porta giratória parecia muito distante e o caminho confuso, extremamente bagunçado. Quando consegui passar para o lado de fora, senti a brisa gelada do frio que já começava a ficar mais forte na capital coreana me abraçar e ajudar a aliviar a ânsia, o pânico que ia me encontrando. Passei a encarar o céu, segurando a alça da minha bolsa com certa força.
Como pude ser tão insanamente inocente e não impedir a queda livre?
Como Yungho disse: eu já tinha material suficiente para produzir e então poderia ir embora. Ou eu podia ouvir o que Delilah achava e desistir logo.
Na verdade, por ora, minha mente estava confusa demais e só conseguia ligar para o fato de ele ter visualizado minha mensagem e não respondido.

Is it cool that I said all that?
Is it chill that you're in my head?
— Taylor Swift

A previsão do tempo sempre pregou peças comigo. Mas não era nada pior do que a forma como meus colegas de trabalho na filial coreana. Inúmeros funcionários, vários setores, diversas pessoas passando ao meu lado o dia todo e ninguém, absolutamente ninguém, pôde simplesmente me dar um toque: "Ei, , você deveria olhar a previsão do tempo, assim vai entender porque ‘tá todo mundo indo embora cedo e com pressa". Porque foi exatamente isso que aconteceu; passei o dia na minha sala, tentando iniciar pelo menos uma simples frase que prestasse, e, quando saí, não tinha ninguém e o tempo não parecia a ponto de me ilhar na parada de ônibus.
Estava presa, em pé no banco e ensopada, porque a chuva caía de lado por causa do vento, e eu só não tinha congelado ainda porque o estado líquido do tempo não deixaria. O celular com certeza estava descarregado. Não me restava nada a não ser esperar com fé. Quando saí para a garagem, o elevador não desceu, o sistema de segurança do próprio prédio não permitia por conta dos riscos de alagamentos que poderiam ser causados pela tempestade. Portanto, seria quase impossível que o senhor Lim estivesse me esperando (ele já fazia isso em dias comuns), então resolvi que deveria tentar chegar no metrô ou qualquer coisa parecida.
Não bastou muito tempo após eu pisar para fora do prédio para que a chuva caísse sem qualquer piedade. E o resultado era eu esperar fosse lá o que deveria esperar, até porque a rua estava vazia, deserta, e o prédio um pouco longe para eu voltar. Para completar o cenário perfeito de desastre: o celular estava sem bateria.
Suspirei pesado, apertando mais os braços em volta da minha própria cintura e me dando o luxo de rir fraco. Um barulho de carro, porém, me chamou a atenção e eu olhei para a direção do fluxo da rua, vendo um par de faróis familiares.
Não, eu me recusava a acreditar.
— Só pode ser piada… — olhei para o céu, rindo, amarga, logo quando o veículo parou em minha frente, fazendo parecer que o motorista estava tendo cuidado para não espalhar para o ar a água empoçada. Quando ouvi meu nome ser gritado no meio do som forte da chuva caindo, voltei a olhar para o carro e vi o rosto preocupado dele, a janela da porta do acompanhante estava aberta agora.
— Vem logo! — me chamou com o cenho franzido, de forma autoritária.
Apertei mais forte os braços cruzados.
— Não — neguei, desviando o olhar.
— , você vai ficar doente se não sair dessa chuva! E não vai passar nada por aqui, a cidade está com vários pontos de alagamentos.
— Não tem problema — dei de ombros. — Eu espero a chuva parar e volto para o prédio.
— Dá para ser menos teimosa? Me deixa ajudar você… Vai ficar doente. Está frio e a temperatura continua caindo!
— Já disse que não tem problema.
Voltei a encarar o teto da parada de ônibus, com meu corpo todo ardendo em fúria. Dentre tudo e todos, achei que o cenário mais caótico não teria como ficar pior, mas tinha. Eu não ia entrar naquele carro, apenas se fosse arrastada. Não sou uma pessoa qualquer que pode simplesmente ser colocada para escanteio por prevenção de riscos e depois agir normalmente, como se nada tivesse acontecido.
Não teria a menor chance de eu entrar por livre e espontânea vontade no carro de . E, se ele continuasse ali parado, eu com certeza sairia andando embaixo da chuva — para ser mais clichê do que o impossível.
Senti meus braços serem puxados, descruzando-os, e olhei assustada para baixo. Lá estava ele, agora coberto por várias gotas de água, usando apenas um cachecol, sua camiseta de mangas compridas e me oferecendo o seu sobretudo. Mesmo que a máscara cobrisse seu rosto, eu saberia dizer que sua feição carregava uma certa tensão.
— O que está fazendo? — franzi o cenho, me mantendo parada no mesmo lugar.
— Tentando não te deixar morrer de hipotermia — ele respondeu em tom nervoso, passando a peça em volta dos meus ombros, se esticando todo para me alcançar em cima do banco. — Ainda bem que resolvi escutar meu sexto sentido…
Me mantive em silêncio, apenas olhando-o incrédula e ainda com a mesma sensação da fúria querendo me consumir por inteira. Acompanhei todo o seu movimento com somente meu olhar se movendo em reflexo. Os olhos dele estavam opacos e sérios.
Foi quando ele tirou o próprio cachecol e se aproximou mais para colocar em mim que eu implodi.
— Qual o seu problema, hein? — desci do banco, fazendo a água respingar pelo impacto dos meus pés no chão. não se afastou, ele teve o cuidado de se preparar para me segurar caso eu me desequilibrasse. A adrenalina me fez ficar firme e não tremular de estar tão perto dele de tal forma. — O que você pensa que eu sou? Uma distração temporária? Um passatempo para você depositar a sua energia?
— Do que você está falando? — Seu olhar se estreitou.
Isso deve ter feito a pele do seu rosto se repuxar e atenuar as covinhas. Merda!
— De você! — rebati, histérica, por mais essa observação. — Do seu sumiço! — olhei em seus olhos, sentindo os meus se arregalarem. — Você sumiu e agora surge do nada, no meio da chuva, como se isso fosse a porcaria de um drama coreano e eu precisasse da sua ajuda!
— E não precisa? — arqueou uma sobrancelha, sendo rápido em sua resposta.
Meu peito se encheu de ar sozinho e eu não tive resposta, muito por estar tão próxima dele e furiosa ao mesmo tempo. Mandá-lo ir à merda seria mais fácil se não estivesse nessa posição.
— Ok. — Ele tirou a máscara, me deixando ouvi-lo melhor, e isso me apertou o peito porque minha memória vagou diretamente em Yungho e seu celular de tela brilhante na minha frente, com aquele monte de fotos. — Eu não sumi. Eu tive problemas. — Então ele sabia. Entretanto, não foi tão fácil amaciar o meu interior, ainda mais quando ele completou: — Não consegui te avisar porque não te localizei, me desculpe.
— Como não? — Minha voz saiu esganiçada. — Você visualizou minha mensagem no Instagram!
— O quê?
Analisei sua feição empalidecida pela surpresa e incredulidade, parecia que eu tinha lhe contado algo absurdo.
Relaxei meus ombros um pouco e diminui o volume da voz:
— Te mandei uma mensagem… — torci os lábios, lembrar do que enviei fez eu me sentir patética.
— Não foi eu — ele respondeu sem sequer piscar. respirou fundo, me deixando surpresa com a sua falta de equilíbrio ao ouvir o que lhe contei. Sua reação corporal, inclusive, estava tensa. — Eu não tenho controle total das minhas redes sociais. Do Instagram, no caso. Não sou o único que acessa…
— Ah, você é vigiado até nisso. Entendo — soltei em um sopro, achando ironia onde não tinha.
Ele voltou a manter sua postura e colocou as mãos em meus ombros, a chuva tinha voltado a cair de lado e estava nos molhando mais. O teto parecia que ia ceder porque estava gotejando mais forte e meus pés já estavam tão ensopados quanto o resto do meu corpo.
— … Vamos sair daqui — pediu em tom de desistência. — Está frio e você não para de pingar água. Sua boca está ficando roxa…
Olhei em seu rosto e respirei fundo, voltando a acalmar meus nervos somente por sentir a serenidade dele. Como água apagando um incêndio.
Em silêncio, me afastei e dei a volta em seu corpo, eu mesma abri a porta e entrei no carro. Ele tinha deixado o motor ligado, então logo que entrei já fechei a janela para parar de molhar o que já estava alagado. Pouco segundos depois, entrou.
O carro estava quente e confortável como eu bem me lembrava. Tocava uma música que eu não conhecia, mas na voz familiar do mesmo cantor da outra vez, quando ficou cantarolando depois. Permaneci quieta, entretanto, vendo-o colocar meu endereço em seu GPS. Ao ser calculada a rota, a tela se acendeu em um vermelho tão vivo, que parecia um filme de terror. Não tinha caminho, não tinha como ir para casa. Estava tudo interditado.
me olhou no mesmo instante que veio o pop up de aviso para que ele fosse para casa — na verdade, era um conselho, sendo, inclusive, ditado pela inteligência artificial do computador de bordo. E eu pressionei os olhos fechados, desacreditada.
— Minha casa é perto…
— O que você está fazendo aqui? — perguntei, inclinando a cabeça para trás e ainda de olhos fechados. — O que você está fazendo?
— Eu imaginei que o senhor Lim fosse te ignorar. Ele já faz isso normalmente — sua resposta saiu baixa. — E aí algo ficou martelando na minha mente de que eu deveria ao menos passar por aqui no caminho para casa.
Assenti, aceitando sua justificativa.
Virei o rosto para o lado, me sentindo pesada e exausta. No fundo, bem no fundo mesmo, estava grata por alguém ter aparecido, e mais fundo ainda essa gratidão cintilava por ser ele.
iniciou o caminho e eu parei de prestar atenção na rua, deixando que apenas os meus pensamentos dominassem a minha coordenação. Pensamentos estes que se moviam flutuantes ao som da voz dele, cantarolando a melodia calma e serena igual a ele, me levando a lembrar de que já havia passado pouco mais de uma semana que eu só tinha visto seu rosto na tela do meu celular, enquanto quase devorei o tal do drama em que atuou.
Não cheguei até o fim. Yungho tinha razão, a fulana, par dele, foi uma cretina.
Minho, seu personagem, era doce e tinha um passado trágico — me fazendo sentir uma leve identificação. Assim como ele, eu também tive uma tragédia que marcou a minha história, não envolvia morte, mas foi algo que contribuiu para eu ser quem era. No mais, o ponto específico da história é que Minho teve o azar de se apaixonar pela melhor amiga e até o episódio que eu consegui assistir, acreditei na teoria de ela não o merecer e todo seu incurável romance.
Parei de assistir quando eles se beijam pela primeira vez, mas não foi porque fiquei com ciúmes ou inveja. Era um papel, um personagem. Foi porque eu me identifiquei mais com ela no pós. Eu também não merecia e seu incurável romance. Piorou quando eu fui ler os comentários e vi que muita gente correlacionava as personalidades tanto dele quanto a do próprio personagem. Minha sanidade não me permitiu continuar.
E se é que ainda me restava algum pingo.
Sem notar que fiquei um bom tempo remoendo isso, foi como se eu tivesse entrado em uma nova dimensão logo que ele entrou com o carro em uma garagem subterrânea. Não me dispus a dizer nada, tirei meu próprio cinto, movi minhas próprias pernas e, quando ele parou na vaga, desci, esperando para ser guiada. Não trocamos nenhuma palavra no caminho para o elevador e enquanto subimos, ia à frente e, ao abrir sua porta, se virou para mim com o olhar tênue e deu o espaço para eu passar primeiro, ficando parado no batente.
— Pode entrar com eles… — disse, quando eu me preparei para tirar os calçados. — Vou te levar direto ao banheiro. Você precisa de um banho quente.
Assenti e entrei. A luz de todo o apartamento foi acendida no mesmo momento que coloquei os pés para dentro e tive meu momento para me deslumbrar. Era um ambiente de conceito aberto, do lado esquerdo à porta tinha a cozinha com uma ilha enorme e a parede toda fechada em balcão e armários, de um design bem moderno; a frente havia um declínio com dois degraus, em formato oval, separando a sala, e entrando mais, ainda na parte de cima, entre a cozinha e a sala tinha a área de jantar com uma mesa de mármore branco quadrada e cadeiras. Era tudo branco e preto, inox e prata.
— Eu moro sozinho, então… — ele limpou a garganta, já mais próximo de mim. — É um apartamento pequeno para solteiro. O banheiro com chuveiro fica no meu quarto.
Virei um pouco do rosto e ele sorriu simples, de lábios fechados, esticando o braço para me direcionar ao lado direito da entrada, onde tinha uma passagem aberta.
Esperei um pouco e vi que ele queria que eu fosse na frente, então segui. Era um corredor bem curto, para a esquerda uma porta pequena, que deveria ser o lavabo, e para a direita, alguns passos mais distantes, a porta maior. O quarto. Estava aberto, porém, e eu segui para o cômodo, entrando lentamente.
Não tinha nada fora do lugar e a vista era perfeita.
Toda a lateral do quarto era fechada em vidro, do teto ao chão, sendo possível ver muito mais do que uma simples janela mostraria. E a cama de casal ficava excepcionalmente com toda a visão facilmente alcançada, sendo colocada com a cabeceira encostada na parede que, do outro lado, formava o corredor de fora. O quarto era enorme, não tinha nada além do móvel para dormir, mesinhas de cabeceira e uma televisão em um tripé, toda a decoração da casa de era minimalista e seguia a mesma paleta de cor.
Na parede lateral da porta, tinha a entrada para o que eu pensei ser um closet. passou à minha frente desta vez e me guiou para lá, devagar. Tinha duas entradas, tendo uma parede como divisória. Indo para frente seria possível ir direto ao banheiro.
— Não tem segredo para ligar o chuveiro — ele tomou minha atenção, parado ao meu lado na porta. — Vou separar alguma roupa para você. Pode deixar a sua aqui no closet, eu a coloco para lavar e secar.
— Tudo bem — respondi simples e entrei pela primeira passagem, descobrindo que a parede era somente para não ficar uma coisa só, porque na outra ponta tinha o vão para entrar para a porta do banheiro.
— Quando você entrar no banheiro, eu volto. Pode usar as toalhas que tem lá, estão limpas.
Confirmei com a cabeça e ele fechou a porta. O ar saiu sozinho de forma longa e eu me direcionei ao puff retangular que ficava no centro, começando a me despir. Não negaria o banho, eu precisava demais.

🗼
— Olha só o que temos aqui… — cantarolei ao passear pela sala e ver uma vitrola. — Funciona? — Virei para a direção de onde estava, do outro lado do ambiente. Ele estava de costas para mim enquanto fazia alguma coisa no cooktop.
— Se estiver falando da minha relíquia, funciona sim. Você vai ver que tem uma estante cheia logo aí ao lado.
Apenas sua voz se direcionou a mim e eu continuei encarando suas costas de forma boba, prestando atenção na movimentação que seu corpo tinha conforme ele mexia a colher dentro da panela. Eram movimentos sutis e talvez eu só estivesse usando esse detalhe como uma desculpa porque tive aquele chamado esquisito pela exibição de sua nuca. O banho tinha levado embora todas as minhas armas, fechando com chave de ouro quando encontrei, no puff dentro do closet, uma camiseta branca e um short bem curto, daqueles modelos de cueca, separados para eu vestir.
Roupas dele, certamente.
Também tinha uma taça de vinho me esperando.
Balancei a cabeça, acordando e voltando à realidade.
Me virei para o móvel que ele disse. Era acoplado ao que tinha a vitrola em cima, mas a parte com os discos ficava do outro lado da TV pregada à parede. Deixei minha taça em cima da superfície e fui ver sua coleção. Eram inúmeros artistas, mas o que mais me chamou a atenção foi um vinil dos The Temptations. Contive minha curiosidade de criança e apenas passei o indicador por todos, sem tirar nenhum do lugar, meu instinto de perfeição não me permitiria bagunçar a organização impecável.
— Vamos ver o que você estava ouvindo… — cantarolei outra vez, voltando para a vitrola e colocando-a para tocar.
“The sight of you leaves me weak”, na voz de Frankie Valli rompeu o ambiente em um volume não tão baixo. Automaticamente eu me virei para trás, levando um susto ao ver que me encarava lá do longe em que estava.
Entre nossa distância de extremos, passou a existir uma dúvida muito pertinente em minha mente, tirando meus neurônios de suas devidas funcionalidades.
— Então você é o último dos românticos como dizem por aí — expeli sem qualquer hesitação, quase dizendo para dentro, porém.
O que eu temia inconscientemente aconteceu, pegou sua taça e caminhou até mim, me deixando em um vazio ansioso pelo silêncio que me ofereceu. E eu me peguei refletindo como sentia vontade de apertar sua bochecha, seus ombros, lábios e até mesmo a nuca para que alguma palavra saísse antes do seu planejamento real. Ele era muito tático na questão informacional e não se importava em deixar o outro esperando, e mesmo que pudesse soar arrogante, eu enxergava de outra forma, de uma maneira mais levada pela autenticidade.
Entretanto, era até gostoso ficar na expectativa pelas suas respostas e ações. No final, eu sempre me surpreenderia de forma positiva e ganhava a melhor versão que podia, inflando meu ego e algum lugar desconhecido dentro do meu caráter e personalidade — ou não tivesse nada a ver com os dois também, fosse em ponto novo, específico e de provável posse exclusiva dele. Afinal, o que eu ganhava em nossos momentos juntos desde o incidente no avião não tinha nada parecido com o qual era esperado pela perspectiva dos outros.
— Isso não foi uma pergunta — ele disse assim que parou em minha frente. Acompanhei todo seu trajeto, mas não consegui prestar atenção, nem mesmo ver quando havia pegado minha taça.
— Não, mas você pode negar se for mentira — dei de ombros, pegando o vidro de sua mão.
— As coisas que dizem por aí são criadas por pessoas que não me conhecem. Você pode dizer melhor do que elas. Eu sou o último dos românticos? — devolveu com uma classe surreal, me pegando de surpresa. Esperei pelo seu senso de humor e recebi uma inversão.
Ele tinha aprendido algo sobre mim e tirava vantagem disso o quanto queria: a minha língua nunca ficava presa dentro da boca.
— Vamos analisar… Você resgata mulheres teimosas e as leva para sua casa. Uma cobertura com decoração 90% minimalista, se não fosse pela estante alta de vinis e a outra de livros. Cozinha macarrão da forma italiana enquanto usa uma camiseta preta de mangas compridas e gola alta, numa calça de linho bege, e elas tomam banho para vestir sua roupa, com seu cheiro. E depois tem o líder do The Four Seasons travado na vitrola… Por que esse trecho em específico, se não for para impressionar?
Disparei enquanto observava ao redor, gesticulava com a taça e, ao fim, virei o líquido restante.
riu. Ele gargalhou tranquilo em minha frente e depois de eu terminar o vinho, pegou a taça da minha mão e colocou de volta à superfície atrás de mim, quase me cobrindo por inteira com seu corpo. Ao retornar, estávamos mais perto.
— Só faltou uma coisa nessa sua listagem — disse com a feição impassível e eu fiz uma careta, esperando que completasse.
Não foi uma surpresa porque aquele mesmo canto desconhecido dentro de mim esperava por isso como um bom traidor atrás das trincheiras. Seus lábios carnudos contra os meus levaram um choque para todo o meu corpo, fazendo minhas pernas tremerem e eu cambalear para trás, sendo amparada apenas por sua mão na minha cintura e a outra em minha nuca.
Mais tarde, eu me odiaria por ficar igual um poste, tentando me auto consolar de que, ao menos, minha boca se mexeu e a língua não decepcionou. Ainda assim, iria me torturar por ter ficado tão surpresa com algo que eu parecia querer há muito tempo.
Maldita sensação de antecipação que me fazia crer conhecer muito antes do agora.
— Você estaria totalmente certa se não fosse pelo plural. Eu nunca trouxe outras pessoas aqui que não sejam amigos e família — ele falou pausadamente, conforme foi se afastando dos meus lábios, e eu relutei em abrir os olhos, me sentindo aliviada pela sensação de ainda estar embaixo do seu toque.
— E quem me garante que isso não é mais um bônus para me impressionar? — respondi no mesmo tom de voz, encarando seus olhos. Tomei coragem e levei a palma da mão direita até seu ombro.
passou a língua pelos lábios e eu vi seu peito se encher e logo em seguida murchar ao soltar o ar, no mesmo instante que suavizou a forma como me segurava, causando um pânico em mim.
— Blewer, a senhorita é mesmo muito difícil — respondeu, soando nervoso.
— E só por isso você já vai desistir? Logo agora que eu ‘tô aqui, ?
Ele me olhou sem piscar, hesitando pela primeira vez desde que havíamos nos intrometido um no caminho do outro. Mas eu me senti muito mais aliviada quando ele voltou a me beijar, deixando a intensidade tomar conta sozinha.
Logo, eu estava pulando em seu colo e entrelaçando as pernas em seu tronco, sem dúvidas, sem receios, sem sequer recuar. Pelo contrário. Nem vinho, nem macarrão, muito menos a música teriam a minha atenção naquele momento. Eu estava disposta a outra coisa e a única vista que eu queria ter era dos prédios de Seul às costas dele.

🗼
Demorei a soltar a respiração com normalidade. Não era porque eu estava deitada de bruços, mas porque eu não queria acordá-lo. dormia tão sereno, que, depois da noite que tivemos, não teria coragem de tirá-lo do seu sono calmo, ainda mais parecendo estar tão profundamente cansado. Ele não se mexia, não movia um músculo sequer e eu não conseguia tirar meus olhos de cima dele.
Mas a fome falou mais alto.
Levantei com cuidado e, me recordando de como começamos, segui pelo corredor, pegando as peças de roupas que deixamos pelo meio do caminho. Depois de vestida com a mesma troca que estava à noite, voltei para o quarto e fucei no banheiro alguma escova de dentes novas, tendo êxito em encontrar uma na embalagem. Lavei o rosto, devolvi minha dignidade matinal e, antes de ir para a cozinha, procurei pelo controle que fechava as persianas, também não deixando de cobri-lo melhor com o edredom que estava no chão.
Tudo o que fiz foi movido à base dos flashes que rodavam minha mente. E a cada memória, minha pele se eriçava com a lembrança da sensação dos toques recebidos. Claro, sem deixar de fora o beijo que eu jamais havia provado em outra boca. Se encaixava perfeitamente.
Estava sorrindo sozinha, despejando meus ovos em um recipiente, quando meus olhos recaíram em uma coisa próximo à mesa de jantar. Era uma árvore de Natal montada pela metade e ao lado dela tinha uma caixa. Deixei de lado o meu prato, movida pela minha curiosidade, e peguei minha caneca com chá, indo até o objeto de decoração. Em cima da caixa tinha um papel amassado, olhei para trás, garantindo que estava sozinha, e li.
“Me desculpe por não ter ido ao jantar, filho. Te mandei essa decoração nova para a sua árvore. É para usar!”
Me agachei e abri a caixa, vendo inúmeros enfeites novos. Ri sozinha, agora me lembrando da minha avó, quem me criou. Ela tinha a tradição de montar a decoração de Natal em todo dia 1 de dezembro; juntávamos nós duas e vovô para decorar toda a casa, incluindo a parte de fora, que ficava abarrotada de ursos, renas e um gigante Papai Noel para armazenar os presentes de doação.
Mal notei o que fiz, mas fiz. Abandonei meu café da manhã e, quando me dei conta, tinha uma árvore de Natal completa em minha frente. Se fosse intromissão demais, me desculparia depois.
Não antes de eu comer, claro.
Voltei para a cozinha, refazendo meus ovos, panquecas e o chá.
— Blewer gosta de Natal? — ouvi a voz de e virei o rosto, vendo-o se aproximar com o rosto amassado e o cabelo bagunçado (muito mais do que eu tinha deixado). Senti meu estômago corresponder, vibrando.
— Não gosto de coisas inacabadas — respondi, virando a panqueca na panela, ele parou do outro lado.
— Ah, claro. Você não gosta de datas comemorativas. Prevísivel.
Desliguei o fogo e sorri para ele.
— Você está errado. Eu gosto do Natal.
— Então o mundo não está perdido! — ele levou a mão ao peito de forma dramática. — É seguro eu dar a volta e te beijar?
Soprei um riso, fazendo um breve silêncio também dramático.
— Depende — entortei o bico nos lábios, vendo-o tensionar o corpo. — Já escovou os dentes?
riu, vindo até mim sem muita demora. Passei para o lado, me encostando na ilha e ele ficou em minha frente.
— Ainda está tudo interditado. Acho que você não tem para onde ir — disse em um volume neutro, se colocando mais perto de mim.
— Parece que você vai ter que me abrigar por mais tempo, então. — Passei a língua pelos lábios em reflexo do meu olfato rápido, que captou o cheiro de perfume e banho em . Me vi em desvantagem.
Ele sorriu, ladino, terminando a distância e me beijando calmamente. Passei os braços para cima de cada um de seus ombros, seguindo o ritmo imposto a mim, até suas mãos se apertarem em minha cintura e me colocarem com força em cima da superfície gelada. O ar faltou e eu me afastei, lembrando da minha irresponsabilidade.
— Preciso avisar minha mãe. Você pode me emprestar seu carregador? — tentei dizer, ainda que ele tenha continuado os beijos pelo meu pescoço.
— Empresto sim. Mas só vou te devolver para ela mais tarde. É minha folga, eu mereço escolher.
— Você já tem escolhido muito por mim — reclamei. — Dessa vez, eu escolho por você. Eu fico.

🗼
Deixei o celular de volta na mesinha em frente ao sofá e puxei o cobertor para que pudesse se sentar comigo. Cobri a nós dois, em seguida pegando a caneca quente de sua mão.
— Sua mãe respondeu? — ele me perguntou, soprando o líquido quente. — Tudo certo na editora?
— Sim para as duas perguntas. Disseram que hoje foi tudo suspenso… E, bem, ela me disse que estava esperando as vinte e quatro horas para me dar como desaparecida — dei de ombros. — Te falei que Andrea não é comum.
Ele assentiu, desistindo de beber o chocolate quente e se esticando para colocar a caneca na mesinha. Ao retornar o corpo no modo ereto, puxou uma almofada e a colocou em seu colo, usando-a para se apoiar com os cotovelos.
— Por que “Andrea”? — me questionou e eu finalizei o gole antes de pensar sobre responder.
Notei que a pergunta de foi feita de forma sincera e eu não hesitei em responder, ele me fazia sentir bem a ponto de compartilhar sobre essa questão da minha vida que muita gente vivia me perguntando: o motivo de eu chamar Andrea mais pelo nome do que como “mãe”.
— Fui criada pelos meus avós maternos. Até um certo ponto em que mamãe Rose, minha avó, no caso, faleceu. Ficamos eu e vovô, mas ele não aguentou, então minha mãe retornou e eu, por ser menor de idade, não tive outra escolha a não ser por morar com ela — expliquei, um pouco nostálgica pelas lembranças.
— Eu… Sinto muito por eles.
— Não precisa. Isso já faz tanto tempo, de qualquer forma — dei de ombros.
— Mas a sua relação com Andrea… Ela…
— No geral, é boa — respondi. — Eu tinha quinze anos quando ela precisou assumir minha tutela. Passou tempo suficiente para eu poder perdoá-la pelas escolhas que fez.
— E o seu pai? — Pela pausa, ele logo ergueu a mão em desculpa: — Não precisa responder, se não quiser. Embora eu saiba que não preciso ressaltar isso para você…
— Tudo bem. O meu pai também fez as escolhas dele, a pequena e única diferença é que ele surgia de vez em quando e custeou a minha criação, pelo menos nisso ele ajudou meus avós. Mas ele cresceu uma família na Inglaterra, então nossa relação se tornou distante fisicamente e próxima apenas por cifrões.
— Agora tudo faz sentido — ele assentiu, se livrando da almofada e pegando sua caneca outra vez.
— O que faz sentido?
— Você. Agora você faz mais sentido para mim — sorriu, ladino. — Eu devia ter apostado nessa… Problemas com os pais.
— Todo mundo passa por isso em algum momento da vida. A história de pais e filhos é um pouco repetitiva, sempre vai ter algum problema. — Me virei, encostando-me no encosto do sofá e esticando as pernas.
— Então é por isso que você não acredita em amor.
— Eu nunca disse isso.
— Não em voz alta — ele rebateu rapidamente. — Você acha que só existem finais infelizes, mas é porque só enxerga o negativo.
— Vai me dizer que devemos sempre olhar para o outro lado da enxurrada?
— Claro! — o sorriso dele se alargou. — Na vida nós não podemos ser sempre felizes, estarmos sempre satisfeitos. Tudo precisa de um equilíbrio. Em tudo existe o outro lado da moeda.
— Isso é papo de quem nunca sofreu por gostar de alguém.
— E você já sofreu? — Outra vez ele foi rápido. Não respondi, permaneci parada por um tempo. — Não entendo, se você nunca teve a sua experiência, como pode ter tanta certeza sobre algo?
— Porque eu vi. Como você espera que eu acredite no contrário, tendo problemas parentais?
— Mas isso todo mundo tem. Você mesma acabou de me dizer. — se aproximou mais de mim, puxando o cobertor. Ele pareceu inquieto. — Não pode ser possível que isso seja o suficiente para te esconder das experiências da vida…
— Eu cresci assim — forcei um tom vago para encerrar.
— Isso significa que não pode mudar? — insistiu.
Torci os lábios, com uma vontade absurda de sorrir. Me posicionei outra vez de frente para ele, ajoelhada no sofá. me acompanhou com o olhar e eu avancei em sua direção, segurando em seu rosto com as duas mãos, forçando-o a inclinar a cabeça para trás, a fim de olhar em meus olhos.
— Não posso garantir nada sobre mudança. Mas você deve saber que ainda estou aqui e isso significa muito. — Fiz um carinho com o polegar em sua bochecha. — A critério de informação, para completar a sua coleção de clichês, geralmente sou aquela que vai embora pela manhã. Haja chuva ou sol.
Ele umedeceu os lábios e segurou em minha cintura, por dentro da camiseta larga.
— Vou deixar para pensar sobre a queda quando tiver que ir embora da Torre N.
— Torre N? — franziu o cenho, apertando os dedos em minha pele, por reflexo.
— Sim. Você é minha Torre N.

So lock the door
And throw out the key
Can't fight this no more
— Justin Bieber, Ariana Grande

— Isso é tudo.
Senhor Choi disse, fechando sua pasta, e eu senti meus ombros relaxarem pela primeira vez desde que ele havia convocado a reunião emergencial no retorno após dois dias sem trabalho devido às fortes chuvas que geraram alguns desastres naturais em algumas regiões da cidade. Fiquei com medo do que ele diria na reunião com os principais cargos de chefia, até porque a minha convocação foi uma total surpresa, mas tudo ocorreu bem e, no geral, ele só queria relatar os procedimentos seguintes por conta do caos que tinha gerado na cidade, incluindo os colaboradores da pirâmide naquela filial. Foi algo surpreendente, ver que ele estava se importando com o todo.
Além disso, o assunto também percorreu em coisas de base, como a virada do mês. Estávamos no dia dois de dezembro, a menos de trinta dias para finalizar o ano, então era mais do que necessário, nas palavras dele, “muito foco e proatividade”. Em resumo, o encontro foi uma forma de encorajamento e pedir que isso fosse refletido aos funcionários dos respectivos quadros de liderança ali presentes.
E eu fiquei somente como enfeite. Poderia até ter vestido uma luz piscante para entrar no clima natalino em que o senhor Choi estava. Inclusive, notei que ele não era uma pessoa ruim, afinal, estava cumprindo ordens quando me passou todo o planejamento para o meu trabalho na Coreia e o que esperavam de mim. Tinha um ótimo senso de humor e parecia ter certa humanidade também, até comentou sobre a confraternização, ressaltando que era livre e poderíamos trazer acompanhantes — namorados, filhos, irmãos, etc —, só bastava avisar antes para a organização.
Tive que prender um riso, claro, porque eu bem pensei em levar . O que não teria o menor sentido e não seria recomendado.
— Senhorita Blewer. — O ouvi chamar meu nome quando me levantei e estava pronta para sair, já olhando em meu relógio, empolgada por saber que estaria me esperando na garagem, como combinamos para aquela noite. Olhei para Choi, notando que todo mundo já tinha ido.
— Sim? — Reparei que ele trazia uma pasta embaixo do braço e desviei o olhar, olhando para seu rosto simpático.
— Estive planejando fazer isso de outra forma, mas como terei que viajar, gostaria de te entregar isso pessoalmente — estendeu para mim e eu tomei em minhas mãos, um pouco receosa. — Sei que você não tem muita experiência com críticas, mas consigo notar um potencial de longe. É uma proposta — assenti, lendo valores e funções no papel — e eu espero muito que você aceite. Vou te dar o tempo que precisar para pensar, não precisa responder agora.
Não consegui responder com palavras, apenas acenando positivamente com a cabeça, enquanto tomava um banho de água fria.
Choi sorriu uma última vez para mim e se despediu formalmente, me dando as costas para ir embora dali. Fiquei sozinha em uma sala enorme, fechada apenas com o meu espanto por ler, em letras impressas, com a assinatura dele embaixo, propondo que eu entrasse para a equipe do editorial sobre assuntos exteriores. O salário pareceu ser ótimo, haja visto o poder de compra em Wones; e não só isso, eles me ajudariam com moradia por seis meses, um tempo hábil para eu me estabelecer e conseguir um lugar próprio, também oferecendo motorista em tempo integral — se fosse o senhor Lim, talvez seria necessária uma alteração —, para o caso de eu não querer dirigir, dentre outras regalias como: alimentação e privilégios específicos para roupas, sapatos, salões, etc.
Tentador.
Talvez eu pensasse sobre isso. Mas não neste momento, porque meu celular começou a vibrar e eu vi a mensagem de . “Estou aqui, cadê você?” e um emoji chorão.
Ri, vendo a tela; desde que começamos a conversa por mensagem, não paramos mais. Se tinha um excelente senso de humor e carisma pessoalmente, agora, com meu número em sua agenda e uma intimidade a mais, as coisas estavam entrando em um maior fluxo de rotina. Eu acordava e tinha mensagem dele, eu ia dormir e ele se despedia. Isso estava me gerando um certo costume.
Olhei para a pasta assim que bloqueei a tela e senti a dúvida me preencher por inteira. Sempre quis ser a profissional que receberia convites, propostas escandalosas, assim, desse mesmo jeito. E na minha visão eu escolheria ser bem-sucedida usando isso como o motivo em si, mas agora, olhando para o presente, uma razão pela qual eu estava em dúvida — porque não, eu não iria aceitar isso até ter uma resposta sobre a minha chance na ESPN. A razão tinha nome e estava me esperando para sairmos.
Me desliguei disso, saindo com pressa para o elevador. Essa coisa toda de ficar refletindo e entrando em dimensões distantes para remoer pensamentos estava me tirando muito o foco da praticidade, me tornando a pessoa que eu nunca fui: racional.
Logo que cheguei ao local de embarque e desembarque, vi o carro dele parado um pouco distante, provavelmente para não atrapalhar o fluxo ali. Nuyah e Yungho riam de alguma coisa e eu não lhes dei atenção quando falaram comigo, caminhei apressada para o veículo, abrindo a porta e entrando rapidamente.
— Oi! — disse, sorridente, me virando para ele. apenas ergueu a mão para mim, com uma feição séria. Fiquei confusa, mas logo vi que estava em alguma ligação. Fiquei quieta para não atrapalhar mais.
— Sim… Não… — as respostas se repetiam assim, até ele se esticar e passar a mão no rosto. — Vou usar meu plano B, fique tranquila. Te vejo amanhã, nuna.
Esperei um pouco e virei o rosto para ele, me surpreendendo porque foi no mesmo momento que também virou para mim. Mas, diferente do meu estado animado, parecia péssimo e cansado.
— Tudo o que você descansou nos últimos dois dias foram por água abaixo… — ri fraco e ele relaxou no banco, fechando os olhos.
— Acho que nunca trabalhei tanto em minha vida como nos ontem e hoje. Adiantaram nossa ida para os Estados Unidos e vamos embarcar antes do Natal. — arrastou uma sílaba em manha.
— Antes do Natal? — repeti, surpresa e um pouco decepcionada. — O quão antes?
— Não sei ainda, mas surgiu um festival. Fomos convidados para cobrir um outro grupo que precisou cancelar — deu de ombros. — É uma pequena turnê de cinco dias. Começa na Flórida e termina na Califórnia.
— Uau! Isso é incrível.
inclinou a cabeça para trás, enchendo o peito de ar e soltando lentamente, ele fechou os olhos fechados e os lábios relaxaram, assim como todo seu corpo. Era visível seu cansaço. Mas, dentre tudo, eu conseguia reparar em todos os seus trejeitos a luta para manter-se firme, ainda que a rotina não fosse tão pesada quanto o que se revirava em sua mente.
Tinha alguma coisa errada com ele. Estava palpável.
Não me contive e estiquei o braço esquerdo, levando minha mão para sua nuca, a fim de fazer carinho.
— Você está bem? — perguntei, olhando-o com atenção. — E nem pense em mentir para mim. — Ele abriu apenas uma das pálpebras. — Eu vou saber se estiver mentindo.
Tornou a fechar os dois olhos.
— Estou bem. Mas estou cansado — bocejou.
— Quer ir para a sua casa? Eu posso pegar um táxi tranquilamente e ir embora. Você precisa descansar… — afaguei sua nuca com meus dedos, aproveitando por mim mesma a sensação.
— Não! — ele abriu os olhos rapidamente, se endireitando. — Não tenho esse privilégio. Entre o descanso e você, eu prefiro ficar com você.
Senti minhas bochechas arderem e meu corpo vibrar com o que foi dito e precisei me controlar para não retrair ou implodir na minha própria bolha.
— Já sei, então. Ao invés de fazermos algo agitado, porque não assistimos um filme… na cama. Não no cinema — sugeri, ainda com a mão no mesmo lugar, sem querer tirar.
sorriu, estreitando o olhar.
— Tenho o lugar perfeito para isso. — Sua mão foi rapidamente para o painel, selecionando a agenda. Me afastei a contragosto quando ele deu a partida e o contato de surgiu na tela.
— Espero que tenha um bom motivo para ter me tirado do meu-
— Oi, ! — intervi, com medo dele dizer alguma coisa que o colocasse em saia justa. riu.
— Viva-voz… Ótimo — ele resmungou. — Olá, senhorita Blewer.
— É nuna para você! — falou firme para ele e do outro lado respirou fundo.
— O que você quer? Liga para o , ele tem energia o suficiente para você amolar.
— Queria saber se você já trocou a TV da cobertura. — Olhei o perfil empolgado de , concentrado em dirigir e ao mesmo tempo com o rastro de um sorriso malicioso nos lábios.
— Troquei ontem. Sozinho, devo ressaltar — trouxe em tom de desabafo. — Na hora de assistir todo mundo quer, não é mesmo?
— Eu estava trabalhando, dá um desconto.
— Como sempre… — suspirou e me olhou revirando os olhos. — Só não deixa tudo uma bagunça, por favor.
— Pode deixar.
A chamada foi encerrada e o sorriso nos lábios de estava enorme. Ele deixou a sua mão direita escorregar do volante e cair em minha perna e eu coloquei a minha esquerda em cima, movendo o polegar inconscientemente em carinho.
— Você está sorrindo como uma criança arteira… — encarei seu perfil, vendo-o umedecer e morder os lábios.
— Nós compramos uma televisão com efeito de cinema para a cobertura e tinha ficado responsável por trocar…
— Ah… Tudo isso por uma televisão — ri fraco. — Entendi.
Ele virou a mão em minha perna, ficando com a palma para cima e entrelaçando nossos dedos, levando até seus lábios.
— Não. Tudo isso porque vou poder ver um filme com você em um lugar tranquilo.
Minha mente calculou exatamente a rota que eu menos queria que fosse calculada naquele instante, sendo totalmente traiçoeira. Meu sorriso se tornou um pouco falso, embora tenha saído instantaneamente em reflexo da forma como ele tinha dito e beijado os nós em nossos dedos. Poderia ter colocado em imagens algo mais explícito, a antecipação por como eu esperava que aquela noite terminasse — mesmo que fosse apenas dormindo dado ao cansaço dele que estava nítido demais —, ou então memórias de ter dormido com ele em sua casa, momentos que passamos juntos, qualquer coisa como exemplo. Mas a escolhida foi um terror.
Continuei sorrindo para ele, para que não acabasse com sua empolgação, mas em minha cabeça só vinha o momento exato em que Yungho me mostrava seu celular com imagens clandestinas de nós dois juntos. Ele poderia achar que a cobertura tinha sido um espaço seguro e íntimo conquistado com seus amigos, e até poderia, se não fosse pela minha visita, quem sabe o respeito com eles terminava quando alguma mulher ou outra pessoa diferente surgia?
Era preferível pensar que sim.
Até mesmo porque estava certo e eu tinha mesmo o traço de ser feita de dois extremos. Contudo, ele só não tinha notado ainda que havia instigado o meio, que agora eu estava me tornando teimosa demais para ter apenas o sim ou não e que o talvez vinha rondando meu estado de espírito. Portanto, eu preferiria ficar no meio do muro nisso e, sabendo que não seria um segredo tão tranquilo quanto ele achava que era, deixar a minha teimosia me levar.
Me levar como a vida, sem me importar com a rota; nem mesmo se o final fosse infeliz, como eu sempre esperei.

As wonderful as this all seems
This is beyond our means
— HONNE

— Vai sair de novo com ele? — Andrea me perguntou, surgindo no batente da porta, de braços cruzados. — Não acha que está criando raízes demais?
— Não — respondi, olhando-a pelo reflexo do espelho. Ela continuou me encarando e eu terminei de passar o pó compacto, selando a camada de base que tinha aplicado antes. Ao me virar, fiquei escorada na pia. — Na verdade, eu acho que é muito pelo contrário. Ele está me mostrando uma coisa sobre mim que eu levei 30 anos para entender.
— Sobre isso não posso negar. Você parece melhor desde que começaram a sair. Nunca pensei que você fosse dormir fora de casa…
— É porque eu nunca tive alguém que me fizesse não querer voltar para casa. — dei de ombros, ouvindo meu celular receber uma notificação. Olhei rapidamente em cima da pia. Li o “vamos?” dele e não contive um sorriso. — chegou.
— ? — Andrea repetiu, confusa.
Fiz uma careta ao encará-la, pegando minha necessaire na pia.
— ? Não é esse o nome do rapaz que você… — ela moveu a cabeça de um lado para o outro, parecendo uma máquina processando informações. Quando pareceu ter encaixado tudo, arregalou os olhos para mim. — Christie Blewer!
— Não me chame de Christie, eu tirei esse nome — revirei os olhos para ela, passando e indo até o quarto.
Certamente, fui seguida.
— … Volta aqui e me explica direito! — Logo ela estava em minha porta e eu juntando minha bagunça espalhada pela e mesinha de cabeceira.
— Explicar o quê? Não tem o que explicar. É isso aí…
— Mas vocês estão trabalhando juntos! — Andrea disse, histérica.
— Não mais. Ao que parece, não vou poder ter acesso à coleção, o que eu consegui agora vai ter que ser o suficiente…
Estava terminando de colocar tudo no lugar e Andrea ficou em silêncio, parecendo aceitar ou simplesmente não ter argumentos. Quando finalmente peguei minha bolsa em cima da cama, ela “fechou” a porta com seu corpo, me impedindo de passar.
— … Minha filha… — disse melódica, com um vinco em seu cenho. — As meninas do pilates dizem coisas horríveis sobre o que acontece com quem se mete na vida desses idols… Eles não podem namorar… Eles… E você tem seus planos para a Europa! Ou tinha… — sussurrou, perdida nos próprios pensamentos. — Eu vi a pasta…
— Do que você está falando? — questionei, ficando séria.
Andrea saiu e eu a segui, ela abriu uma gaveta do armário e me mostrou uma pasta. Engoli em seco e inflei o pulmão de ar.
Não havia contado a ninguém sobre a proposta do senhor Choi.
— É por causa dele que você aceitou isso aqui? E a ESPN? E o seu sonho? Vai escolher as coisas com base nos outros de novo? — despejou em mim e eu avancei em sua direção, tomando a pasta de sua mão.
— Você não tem o menor direito de falar essas coisas para mim. E se eu escolher ficar, vai ser uma escolha minha. Pare de se intrometer, pare de achar que tem algum direito nas minhas escolhas!
Andrea deu um passo para trás, movendo a cabeça positivamente. Ela se escorou na pia, olhando para outro lugar que não fosse a mim. Senti meu peito apertar, alguns anos atrás eu tinha prometido que nunca mais despejaria tanta culpa em cima dela, porque mais do que dez anos já podiam ser suficientes para fazer com que algumas feridas se curassem, ao menos cicatrizarem.
— Você pode me odiar para o resto da vida, mas eu nunca vou conseguir me impedir de te não deixar cometer erros só porque acredita que a aprovação do seu pai-
— Cala a boca! — esbravejei de forma desrespeitosa e levei um tempo para respirar. — Eu não tomei minha decisão ainda. E mesmo que eu escolha ficar, ir ou até mesmo o raio que me parta! A escolha será minha! Você não tem o menor direito de julgar os outros, porque, não sei se você se recorda, mas as suas escolhas também nunca foram tão sábias assim.
Ela não disse nada, novamente assentiu em um ritmo leve.
No meu peito, porém, veio uma leveza diferente. Algo como uma libertação.
— Bem, eu vou indo. Não me espere acordada — disse, correndo em direção à porta. Quando coloquei a mão na maçaneta, a ouvi chamar, virei apenas o rosto.
— Um grande amor só será grandioso quando ele te permitir ser livre.
— Acho que é um pouco tarde para a gente tentar falar sobre amor, Andrea. Mas obrigada mesmo assim — respondi com um meio sorriso, saindo.
Por sorte, o elevador estava no andar, bastou que eu entrasse e apertasse o botão do térreo. Pela minha impaciência e vontade imediata, acabou por demorar, mas mesmo assim eu não me permiti ficar remoendo a discussão com Andrea, sempre fiz isso e em todas as vezes eu voltava atrás, preocupada com a minha própria culpa. Desta, porém, eu não me esforçaria, mesmo que viesse a estar errada.
Em algum momento na minha vida seria necessário que eu me sentisse culpada por algo real, por não ter feito, por ter pecado, desrespeitado, me permitido.
Fiquei tão cega que, quando entrei no carro, assustei pela forma fria e bruta.
— Que isso? Você está pálida demais… — ele me olhou por inteira, parando o olhar em cima do meu colo. — O que é isso? É algum exame? Fala alguma coisa!
Minha respiração começou a descompassar e eu senti uma vontade absurda de chorar e gritar. Tinha se tornado uma espécie de rotina, sempre a mesma merda de situação, não só com a minha mãe, mas todo mundo me cobrando as escolhas, me cobrando eu ter optado por verde e não rosa, por eu escrever com a direita e não a esquerda. Por eu escolher sozinha ou por levar a opinião dos outros em conta, e tudo isso porque um dia eu errei em escolher trabalhar com o que não conheço e não gosto porque acabei escolhendo por influência do meu pai.
E é simplesmente um porre você ter todo o seu futuro espelhado em um erro, não apenas por consequência — o que é totalmente normal —, mas pelo olhar dos outros. Como se um único passo pudesse definir toda a sua história. A vida não funciona tão linear assim. Ela é um porre, porque um dia chove e no outro faz sol. É igual a merda de um temporal com o Sol, ardendo em cima de nossas cabeças, e no meio aquela coisa brega de arco-íris e seu pote de ouro.
Simplesmente um porre do início ao fim. E está tudo bem, ao mesmo tempo que não está. Então não é desnecessário ter problemas ao cometer erros e fazer escolhas.
Sei que o bolo em minha garganta se desfez quando eu gritei, com o corpo curvado para frente, tirando o berro do mais fundo que minha garganta tinha. continuou assustado ao meu lado.
— Certo. Você parece estar precisando de algo ameno — respirou fundo, em uma pausa. Eu ainda não conseguia dizer nada. — Já sei para qual lugar te levar. Espero que goste de algodão doce colorido.
Olhei para seu perfil, vendo-o entrar em uma redoma própria, provavelmente porque queria se proteger de mim e o meu descontrole ridículo. E foi olhando-o assim, tão perto como nos últimos trinta dias, que eu notei o quão distante éramos.

🗼
— Que lugar é esse? — Tirei meu cinto assim que estacionou o carro dentro de uma garagem desconhecida.
— Você vai ver — ele mal me respondeu e já ia descendo.
A porta foi fechada e eu fiquei encarando meu próprio colo, vendo a pasta refletindo a luz do poste que tinha do lado de fora. Conseguia escutar novamente a discussão que tive com Andrea e isso ia perdendo o sentido a cada vez que era rebobinada em minha cabeça. A história de não sentir culpa até podia ser verdade, mas ainda assim existia um lado em mim que não consegui vivenciar conflitos e muito menos deixá-los durar por muito tempo.
O fato é que eu consigo ver, a cada dia que tem passado, que eu não sei viver. Eu não sei se existe uma fórmula dentro dessa maluquice sem receita, mas com certeza não saber o mínimo ou se ver sempre perdido é o último dos recursos. Conhecer e deixá-lo me levar como uma maré que avança sem muito alarde foi importante e necessário; a parte em mim que ele acentuou talvez seja a minha melhor versão.
— Estou começando a ficar com medo dessa pasta… — ouvi sua voz, notando que fazia um tempinho que ele estava com a porta aberta. — Quer conversar sobre isso?
Respirei fundo e neguei com a cabeça, deixando-a caída no chão. Me virei para fora e saí, tentando sorrir verdadeiramente para ele.
— Vamos logo comer algodão doce colorido — disse, passando por ele sem qualquer direção.
Logo, estava ao meu lado e pegava em minha mão, fazendo um leve e suave carinho com o polegar no dorso dela. Ele tinha adotado esse costume, não sei se era apenas comigo, mas todas as vezes em que pegava em minha mão, ficava assim. E eu apenas apreciava em silêncio.
A garagem em que estávamos estava embaixo de um prédio de aparência antiga, no que eu pude reparar ser um bairro também não muito novo e com quase nenhum movimento. Paramos diante do elevador e esperamos por pouco tempo até entrarmos e sem muita demora descer no terceiro, e último, andar. Em minha frente, assim que as portas se abriram, tinha um aglomerado de crianças que correram em nossa direção, fazendo com que tivesse que soltar da minha mão quando foi envolto por elas, agarradas em sua cintura.
Tomei um susto tão parecido com o de filmes de terror e meu corpo se enrijeceu no lugar.
Enquanto ele deu atenção, cumprimentando um a um, ainda dentro do elevador, eu reparei onde estávamos. Era um ambiente aberto, como um salão para festas, e tinha uma faixa enorme atrás de uma mesa cheia de comidas; nela estava escrito “Lar do Algodão Doce” em coreano, com o mesmo em inglês logo abaixo. Ao terminar minha varredura rápida com o olhar, senti uma mão em meu ombro e olhei para o lado, vendo-o sorrir para mim e indicar que deveríamos sair do cubículo, claro que, tudo isso ao som da histeria das crianças ao vê-lo.
— Crianças, quero que conheçam uma pessoa especial… — Já para fora, ele se agachou outra vez e tomou todos em silêncio. — Essa é a . , essas são as crianças do tio Jae — misturou o final com coreano e inglês, arrancando sorrisos dos pequenos, e eu recebi uma breve encarada feia de uma das mocinhas ali.
Certamente ele teria uma fã maior.
— Olá, crianças do tio Jae — ergui a mão em aceno e recebi um coral de intensidade mista, alguns empolgados, outros nem tanto. Também, pudera, ele era a celebridade, não eu.
— Olá, …
esticou o pescoço, vendo a menina que tinha me olhado feio, mais distante naquela roda, e falou com ela. Agora, as demais já começavam a se dispersar.
— Jihyo? — ele chamou. — Eu não recebo um abraço?
Ela olhou de mim para ele, dele para mim, hesitante, e saiu correndo para perto do lugar onde tinham brinquedos, agarrada em seu ursinho.
Então uma mulher chegou por trás de nós.
— Ela está sentimental hoje — ela disse e se levantou. — Você não veio nos últimos dias e agora surge com uma pessoa especial… — brincou, me olhando simpática em seguida. — Muito prazer…
— Blewer. Blewer — estendi minha mão.
— Ah, sim, seja bem vinda, senhorita Blewer. Eu sou Im Chae-Won. — arqueou as sobrancelhas, me olhando surpresa. — Tem um coreano muito bom. É daqui mesmo?
— Não, não — respondi quase que com pressa. — Fiz cursos quando era mais nova, sempre gostei de aprender idiomas… Minha profissão exige isso.
— Jornalista?
Ri fraco, assentindo e olhando para em seguida, por ficar sem o que dizer.
— Eu vou falar com a Jihyo… Você se importa? — perguntou e eu neguei. — Chae, ficou tudo muito lindo. Já nos falamos — sorriu para a mulher e nos deixou, sorrindo para mim por fim.
Observei seu caminho até a pequena Jihyo e fiquei observando-o chegar com cuidado, não demorando muito a ganhar a atenção dela e um sorriso empolgado, sendo seguido do abraço apertado.
— Essas crianças adoram ele. Mas ninguém é mais apegada do que ela… — olhei de volta para Chae-Won, vendo seu perfil.
— Me desculpa… pouco me falou sobre… — Mentira, ele não disse nada. — Aqui é…
— Uma casa de auxílio a famílias carentes. O Lar de Algodão Doce foi fundado pelos há quase três anos. — Ela me indicou a direção das mesas que tinham com cadeiras e seguimos. — vem aqui sempre que pode, mas quem administra e cuida são os pais dele. — Nos sentamos e ela continuou: — Ele faz visitas regulares, traz presentes, brinca, ensina, dá atenção… A Jihyo está aqui conosco desde quando abrimos, foi nossa primeira admissão para a casa e, infelizmente ou felizmente, está aqui até então…
— Desculpe, não compreendi — franzi o cenho, confusa.
— Atendemos crianças de famílias em situações precárias e também abandonadas.
Desviei o olhar de volta para a direção dele com Jihyo, agora ele estava sentado no chão, movendo uma boneca para fazê-la rir.
— Jihyo não foi adotada até hoje. Muitas pessoas não querem crianças grandes, preferem os bebês — Chae-Won finalizou e eu permaneci vidrada na imagem que tinha em minha frente.
— Dá para ver que vocês fazem um bom trabalho… — disse, tentando não soar tão baixo. Olhei para os outros, vendo os grupos espalhados, se divertindo e aos risos.
— Tentamos.
— Vocês estão fazendo uma festa de Natal? — voltei a encará-la. — Me desculpe, não vim preparada…
— Não se preocupe. O Papai Noel daqui a pouco já sobe. sempre faz as compras dos presentes deles… Esse ano demorou dias de tantas coisas que ele comprou.
Assenti, voltando a olhá-lo como um chamado magnético.
Jihyo sorria, algumas crianças iam até eles, ele estava se doando. E em meu estômago o mar revirando-se que estava tão impossível de controlar, já não estava tão incômodo. Na verdade, parecia ter sumido de vez, mas somente porque eu pude chegar a uma conclusão.
E sem culpa.
É incrível como a gente nunca pensa que tem o suficiente até ver o teto do outro e entender que o suficiente é uma utopia.
— ? — Ouvi uma voz fina e baixinha me chamar, olhei para baixo, vendo um menino de óculos e sorriso tímido com a mão estendida para mim.
— Oi?
— Nós vamos brincar de dança da cadeira, você pode ser a minha dupla? — Olhei para Chae-Won, assustada com o convite. — É que a Joo-ah escolheu o Byoungchan… — ele entortou os lábios, um pouco triste.
me encarava de longe, já em pé com Jihyu segurando em sua mão e, sem eu ter percebido, o ambiente tinha se enchido de mais três adultos.
— Eu… Claro… — sorri para ele. — Mas preciso saber seu nome.
— Eu sou o Ian. Tenho seis anos. — Ian sorriu para mim, mostrando os dentes e quase com os olhos fechados. Aceitei sua mão, deixando minha bolsa na cadeira e fui arrastada até o centro, onde agora já tinham algumas cadeiras montadas.
E lá estava ele, de volta ao meu lado.
— Acho que eu deveria ter comentado sobre o que era o algodão doce… — riu baixinho. Tivemos nosso tempo enquanto as crianças ajudavam a organizar as cadeiras.
— Não. Não devia — respondi genuinamente.
— Me desculpa…
— Pelo o quê?
— É nossa última noite juntos antes de eu viajar e te trouxe aqui… — ele fez uma careta.
“Última noite”, essa era a distância que eu sentia. Era disso que minha perspectiva falava a cada momento que o encarava, querendo aproveitar o máximo que pudesse de sua companhia. Porque, na realidade, eu sabia desde o momento — incerto — em que aceitei ser levada por essa onda, que não seria mais do que uma queda livre sem terra firme.
Não se tratava de apenas uma viagem, isso passava desse limite. Era sobre rotina, caminhos. Era sobre eu ter a chance de escolher, mas não precisar enxergar um papel dentro de uma pasta com tanto terror e nem ler um e-mail de próxima fase com tanta euforia. Era sobre eu entender o que me caberia, onde eu poderia pertencer sem qualquer distância. E podia ser a forma como dizia meu nome, ou como me tocava, mas a conexão, o que me fez entrar em sua jornada de me levar sem contestar em um barquinho em alto mar foi a necessidade inconsciente que eu tinha de sair da minha própria prisão.
O medo e ceticismo haviam me tirado o melhor das perspectivas e ele tinha me devolvido isso, mesmo que não fosse para ficar. Mesmo que fôssemos tão distantes.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, agradecer ou algo parecido, Ian já me puxava e ele era puxado por Jihyo. A brincadeira iria começar e, mesmo que eu nunca tivesse tido tanto jeito com crianças ou gostasse de brincar, conscientemente segui o ritmo sem qualquer objeção. Pelo contrário.

— Essas ruas estão cheias demais! — esbravejei, levando a colher do meu sorvete até os lábios e com o vinco formado no cenho.
— Não me importo com isso — Delilah retrucou, olhando fixamente para frente, segui sua direção. — Que pedaço de caminho paradisíaco é aquele? — completou com um assovio.
— Quer o contato dele? Porque eu tenho a leve nem tão leve impressão de que ele está querendo o mesmo… — a incentivei, olhando em volta. — Falando nisso, cadê a Annie? — dei um giro, exatamente no mesmo instante que ela saía da livraria aos risos com um rapaz logo atrás de si.
O medi de cima a baixo, tendo uma impressão muito familiar de sua feição. Com isso, algo se acendeu em minha mente e eu tornei a olhar para o outro lado da rua, para o rapaz alto que Delilah tanto estava babando em cima e que agora atravessava para a nossa direção. Tudo muito rápido, tudo muito descontrolado. Quando ele estava bem diante de nós, trocando fala com o amigo em coreano, meu coração disparou.
O fulano de Delilah era o amigo de , o mesmo do avião e que esteve presente no primeiro coquetel em que eu participei — aquele mesmo em que eu falei mal de um painel, achando que era a coleção.
E, claro, com isso, algo se intensificou dentro de mim, ainda mais quando ouvi meu nome ser chamado.
— Senhorita Blewer.
Virei para o lado e vi saindo da livraria também. Ele estava acompanhado de uma moça mais baixa e com o rosto coberto, assim como ele, pela máscara, além do boné. Ela segurava no braço dele, parecendo um pouco perdida.
— Senhor — respondi, normalizando minha respiração.
— Nunca pensei que poderia te encontrar em uma conveniência em Milão. — riu, franzindo o nariz, e eu já sabia e podia ver em minha frente a imagem de seu rosto franzido com as covinhas apertadas pelas rugas da pele.
— Nunca pensei que poderia te reencontrar — ri fraco e meu olhar recaiu na mulher ao seu lado. Ele pareceu se desconcertar, mas logo olhou para ela também.
— Essa é a Hwagi, se lembra dela? — apresentou.
Claro que eu lembrava da sargentona.
— Ah, sim — sorri para ela. — Gostando de Milão?
Ela apenas assentiu, parecendo se encolher mais ao lado dele, e eu quase fiquei petrificada, sentindo que os outros quatro estavam apenas olhando e, claro, em silêncio. Mas a porta da livraria foi aberta e eu sorri automaticamente, recebendo Federico e seu beijo em minha bochecha e um abraço de lado, com seu braço em minhas costas.
— Acho que já podemos ir, Andrea não vai comprar mais nada — ele riu, dizendo em seu italiano rápido.
O momento de silêncio mais constrangedor. Porém, eu prossegui.
— Ah, querido — sorri, tirando-o da distração —, esse é — apontei e ele se direcionou para o outro. — , esse é Federico, meu namorado. Federico, esse é o e Hwagi…
— Minha namorada — ele completou para mim, olhando em meus olhos.
Notei, de soslaio, quando desviei o olhar, a feição de Annie de surpresa (porque estava entendendo somente agora o que acontecia) e a de Delilah, de quem queria rir, mas que estava perdida demais na beleza do amigo de .
— Então você é o famoso . — Federico estendeu a mão para ele, já mudando para o inglês e exibindo um sorriso simpático. — Muito prazer.
demorou um tempo, mas aceitou o cumprimento.
— Muito prazer.
Para Hwagi foi apenas um aceno positivo de cabeça, do qual ela respondeu da mesma forma.
E novamente o silêncio, mas Federico e sua boca sem trava, logo sugeriu:
— Estão passeando também? Soube que vai ter um desfile da Prada na rua de cima amanhã… — olhou para o céu. — Isso aqui já já vai ficar abaixo de chuva, não gostariam de se juntar a nós no jantar?
Annie e Delilah entraram no meio.
— Boa ideia! Estou faminta, Federico! — Delilah o puxou pelo punho e Annie se colocou ao lado de Hwagi.
— Vamos! Vocês vão amar a macarronada que a mãe do Federico faz. — Ela puxou a mulher e os outros dois amigos pela calçada, deixando apenas eu e ali.
Não teve nada de sutil, nada de singelo. Foi escancarado mesmo.
Eu ri fraco, os vendo descer, e sorri, agraciada com o olhar compreensivo de Federico, que ele me deu antes de entrar no estabelecimento logo após a segunda porta depois da livraria.
— Eu posso fingir uma dor de barriga se você quiser — comentou.
— Acho que a sua namorada fará isso sem precisar de qualquer pedido… — brinquei. — O que houve com a sargento Hwagi?
— Talvez ela não estivesse esperando te encontrar… Nosso relacionamento é recente — ele deu de ombros.
Assenti, jogando o copo do sorvete na lixeira ao lado.
— … — fui chamada em um tom ameno. Arqueei as sobrancelhas para ele. — Fico feliz que esteja bem. Mas eu te esperei. Lá na primeira fileira, onde seu nome estava gravado.
— Me desculpe. Ainda estou em queda livre com meu paraquedas, então não aterrissei a tempo.
Ele sorriu. Eu soube pelos olhos quase se fechando e não disse mais nada.
Não acho que tenha sido necessário, inclusive.
— Vem, vamos comer. Você vai adorar a massa italiana da minha sogra — movimentei a cabeça para a direção do restaurante. — Andrea está lá, você ainda deve um jantar a ela.
Ele levou um tempo, mas acenou para que eu fosse em frente.
Caminhei tranquilamente, sentindo meu peito se ampliar novamente em leveza e livre de culpa ou qualquer outro provável peso. Ao abrir a porta, vi que já estavam arrumando as mesas para sentarmos todos juntos. Andrea não se conteve e veio correndo até , atacando-o em um abraço, além do escândalo. E eu fui até Federico, me sentando ao lado dele à mesa.
Hwagi estava do outro lado e o vinho já começava a ser servido pelo garçom. Olhei para ela, vendo sua feição, agora livre da máscara, e sorri abertamente.
— Agora você vai provar o que a Itália tem de melhor e não tô falando do vinho — ri, estendendo a taça para brindar com ela. — Essa é uma safra francesa da década de 70.
— foi direto na fonte comprar para que meus pais pudessem colocar aqui — Federico completou. — É uma das melhores que já tomei em toda a minha vida de sommelier.

Fechei o laptop e respirei fundo, passando as mãos no rosto. Fechar os olhos brevemente me permitiu que eu pudesse acalmar meu coração e aceitar minha decisão. Não tinha mais volta, não tinha o que fazer. Já havia feito. Me levantei e peguei minha bolsa, olhando em volta a cada passo que dei até a porta. O sentimento de gratidão e satisfação me preenchiam com tamanha sincronia, diagnosticando a despedida que emergia. E, ainda que do lado de fora caísse muita neve, o dia parecia lindo demais para completar em um combo máximo.
Abri a porta e lá estavam os dois: Nuyah e Yungho, surpreendentemente os dois estavam com a feição de choro.
— Não acredito que você vai fazer isso! — ela foi a primeira a dizer.
— Fazer o quê? Ir embora? — perguntei com humor.
— Abandonar a gente! — Yungho retrucou. — Era para você ficar e continuar sendo a melhor chefe que já tivemos. Tínhamos tudo planejado!
Fechei a porta atrás de mim e sorri fraco, reparando os olhares alheios para a nossa direção.
— Primeiro, eu nunca fui a chefe de vocês — iniciei. — E, segundo e mais importante, eu nunca vim para ficar.
— Mas o senhor Chois propôs!
Olhei para Nuyah, sem saber o que fazer com suas lágrimas e sua reação histérica. Murchei os ombros e encarei Yungho, que também estava, aparentemente, histérico, porém dentro de si. Ajustei a alça da bolsa em meu corpo e toquei no ombro de cada um, olhando-os com carinho.
— Trabalhem, tenham uma boa vida e venham me visitar na Itália — pisquei para os dois e os soltei, passando pelo meio, sem olhar para trás.
Acenei para uma pessoa e outra no caminho até o elevador e entrei sozinha nele, acenando para os dois antes das portas se fecharem. Quando desci na recepção, parei na bancada para devolver meu crachá de acesso e assinar minha saída permanente. Fui surpreendida pelo estagiário da gráfica, parando ao meu lado, ofegante.
— Senhorita Blewer! Me desculpe a demora… Me pediram para entregar isso aqui para a matéria da coleção — ele disse, me estendendo um envelope.
— Matéria da coleção? — repeti, soltando um riso nasalado de nervoso. — Mas eu não sou mais responsável por ela há alguns dias.
Ele pareceu receber um ponto de interrogação em sua face.
— Bem… Recebi uma ordem expressa de que tinha que deixar em suas mãos essas imagens… — estendeu novamente o envelope.
Olhei para a recepcionista e para ele, contando os segundos do meu pensamento perdido.
— Pronto, senhorita Blewer, sua saída foi registrada. Obrigada — ela disse, finalizando sua parte. O outro me encarava incisivo.
— Certo, eu vou pegar. Mas… Não vai mais ter matéria — expliquei para ele. — Não pelas minhas mãos…
— Obrigado, senhorita Blewer. Faça uma boa viagem — ele se despediu rapidamente e saiu.
Girei o corpo para a direção da porta, sentindo o celular vibrar com a mensagem de Andrea. Tirei do bolso do sobretudo e li o texto, dizendo que estava me esperando com o táxi do lado de fora da saída principal, a qual eu estava.
Não demorou e eu já abria a porta do carro, entrando ao seu lado.
— Pronto? — ela me perguntou.
— Pronto — sorri, convencida, sentindo os ombros relaxarem.
Coloquei o envelope entre nós duas e afivelei o cinto, tendo o táxi em rota para o aeroporto.
— O que é isso? — Andrea perguntou para o papel pardo e eu dei de ombros.
— Um estagiário me entregou, são imagens que iriam para a matéria. Ele foi insistente, então apenas peguei.
Ela emitiu um som nasalado, pegando o envelope e o abrindo para tirar o conteúdo de dentro. Eram inúmeras fotos da coleção e dos ambientes em que Yungho e Nuyah transitaram enquanto estávamos acompanhando o processo. Mas a última que Andrea puxou era diferente.
Era eu e , quando ele me deu uma peça no pequeno ateliê e vestiu em mim.
Andrea me estendeu a foto e eu peguei de sua mão, virando a parte de trás por instinto, já pensando que teria sido o autor de tal surpresa, mas me surpreendi com a caligrafia de Yungho e sua mensagem “Feliz Natal, espero que goste do presente. Volte sempre, Miranda Priestly”.
Olhei de volta para a foto, tendo uma enxurrada de memórias me atingindo. Às vésperas do Natal, a pouco de pegar um avião para a Itália, a fim de fazer meu teste pessoalmente na ESPN local, e eu estava repensando uma coisa muito importante por causa daquela imagem. e eu não tínhamos nos despedido. Eu não tinha contado para ele que desisti de criticá-lo. Sequer tinha insistido em fazer qualquer coisa depois da noite que nos divertimos com as crianças e ele foi embora.
Após um beijo e um “boa noite” na frente de casa, eu nem mesmo agradeci por qualquer coisa. Fiquei tão submersa em minha própria descoberta que não fui capaz de olhar em seus olhos e fazer o mínimo. Agora ele estava do outro lado do planeta e eu tinha uma sacola no porta-malas do táxi com uma caixa de presente que jamais conseguiria entregar a ele a partir do momento que entrasse no avião.
— Você pegou a caixa vermelha que estava em cima da cama? — perguntei, apressada, para Andrea.
— Sim. Acho que deve estar aqui, o outro carro já foi para o aeroporto com as malas.
Puxei meu celular rapidamente do bolso, procurando pela conversa com Sarang.
— Dá a volta, por favor — pedi alto ao motorista, enquanto ligava para ela. — Moço, para o carro! — E ele parou. — Por favor… atende… por favor… — resmunguei até escutar a voz dela do outro lado.
— Senhorita Blewer?
— Graças a Deus! — relaxei. — Sarang, eu preciso muito do endereço do ! Eu preciso chegar até a casa dele e deixar algo agora. É apenas deixar! — disparei.
Ela demorou um tempo que teve o mesmo reflexo de um século.
— Vou te mandar a localização e deixar sua entrada liberada. Estou aqui agora. Vai demorar muito? — disse, serena.
— Não! Já estou no caminho. Obrigada! — Mal me contive e já desliguei, esperando, ansiosa, por sua mensagem.
De tão cega que fiquei, de tão ansiosa que me tornei, ditei o caminho para o motorista sem nem saber como peguei tanta noção do trânsito da capital coreana. Apenas pulei para fora do carro com pressa, ignorando o olhar de Andrea e berrando para que ele abrisse o porta-malas. A caixa vermelha dentro de uma sacola brilhou aos meus olhos e eu a peguei, correndo para entrar o mais rápido que pudesse.
Eu não podia perder o voo e também não poderia ir embora sem deixar para ele o conteúdo.
Minha entrada foi liberada sem demora e eu logo estava subindo, também sem qualquer lentidão. Quando me dei conta, estava diante de Sarang na porta, entrando rápido.
— Está tudo bem? — ela perguntou, vindo atrás de mim. Coloquei a caixa em cima do balcão da ilha da cozinha e a abri.
— Está sim! Só estou com pressa. — Tirei o pequeno paraquedista em pelúcia de dentro e arrumei o paraquedas. Abri minha bolsa e tirei de dentro a caneta, anotando no melhor que podia as palavras “Prada” e “Vogue” no paraquedas.
Voltei tudo para a caixa e peguei o guardanapo de papel, escrevendo: “Obrigada pela queda. Agora eu sou livre.”
Depois de colocar embaixo da árvore de Natal dele, me virei para Sarang. Ela me olhava genuinamente e parecia pronta para ir embora também. Mas tinha uma caixinha em sua mão.
— Eu tenho certeza de que deve ter um bom motivo por trás disso, mas ele, no meio de toda a correria, me implorou para encontrar isso aqui para enviar no seu endereço. Como notei que você não tinha contado sobre a saída e a crítica… guardei comigo.
Peguei o que me foi estendido e abri, rindo pela surpresa. A miniatura da Torre N dentro de um globo de neve estava perfeitamente colocada ali dentro.

Nota da autora: Olá, muito obrigada por ter lido! Espero que tenha gostado. Você pode acompanhar a autora no instagram.com/mhobiautora.

Nota da beta: Que história maravilhosa! Fiquei encantada com a trajetória dos personagens, principalmente com esse final surpreendente e sincero ❤️
Parabéns pela fic, eu amei!

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.

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