Capítulo 1
O nome dela é Tereza Ortega e em sua mão esquerda há um diamante um pouco menor do que uma bola de golfe e tão grande quanto pode pagar a conta bancária de um astro do rock milionário.
Um anel de noivado.
Se Dominic Wilde não estivesse sóbrio nos últimos quatro meses, null diria que essa foi uma daquelas coisas malucas que celebridades entediadas fazem para passar o tempo.
Mas não, o baterista havia acabado de sair da reabilitação e estava limpo.
Aquilo era sério.
Dominic Wilde. Noivo. Puta merda.
E as novidades não pararam por aí.
— Você está me expulsando do apartamento?
— Não, null, o Dom está apenas pedindo, educadamente, que você lhe conceda um tempo para que ele possa se reestabilizar no apartamento dele. — A tal Tereza falou, mas mesmo com seu delicioso timbre de apresentadora de programa de auditório, as coisas não soaram mais agradáveis aos ouvidos de null.
Tereza Ortega. Não era difícil entender porque o baterista estava caidinho por ela: lábios carnudos, traços do rosto de uma candidata a miss e curvas voluptuosas que, por respeito ao amigo, null null fez um grande esforço para não dedicar mais que cinco segundos de contato visual.
— Então de repente eu virei a má influência e causador de todos os problemas do Dom e preciso ser enxotado como um cachorro velho. Por quê? Se fui um dos que mais deu força para o cara se internar. — Disse null.
A mulher deu um olhar significativo para as garrafas de Jack Daniels vazias em cima do balcão da cozinha. As pobrezinhas devem ter ficado envergonhadas. Tereza deduziu que, de tão bêbado que null estava, o guitarrista provavelmente acabara com metade delas sozinho antes da festa começar.
— Digamos que é porque seu "estilo de vida" não combina com o momento atual do Dom.
— Eu só preciso esfriar a cabeça, null. — Dominic apertou os dedos numa das almofadas, ele quase não abriu a boca desde que chegara ali. Ao que parece, Tereza virara sua porta voz. Ou então deixar o parceiro falar pelo outro era só um sintoma idiota que a paixão faz com as pessoas. — E você sabe tanto quanto eu, que... a Tereza tem razão.
Sim, ele sabia. Domic Wilde nunca esteve tão bem desde... Desde sempre. Antes de se enfiar na reabilitação, o rapaz tinha olheiras fundas, perdera uns bons quilos e desmaiava nos locais mais inconvenientes: festas, elevadores, em cima do palco. Num breve resumo: qualquer superfície plana.
Era mesma necessária uma intervenção profissional.
E agora, olhem só para ele: o homem poderia ser o próximo embaixador da Men's health.
Tereza Ortega operou um milagre ali.
— É. Mas isso não significa que precise se casar com a mulher. Se você gosta dela, Dom, tranquem-se num quarto durante alguns dias e coloquem uma placa de "não pertube" até que isso passe.
A expressão um tanto quanto serena, um tanto quanto envergonhada, no rosto de Dominic mudou para raiva pura.
— null.
— Aliás, tenho quase certeza de que é antiético. Terapeuta e paciente se envolvendo na clínica de reabilitação. Não tem um nome para isso? Síndrome de Estocolmo ou algo assim. Tereza alternava olhares entre a bagunça deixada pelos convidados que saíram às pressas, o mobiliário do apartamento para o qual sua mente já arquitetava várias ideias novas de decoração, e, claro, para null: a pecinha mais inconveniente entre ela e Dominic, no momento. Dom apoiou a mão na têmpora e suspirou. Soltou aquela almofada com uma estampa zebrada horrorosa a qual Tereza já arquitetava dar cabo para quando se mudasse para ali.
— A síndrome de Estocolmo não tem nada a ver com isso, idiota. E o que eu e a Tereza temos é real.
— Ah, sim, porque você a conhece há pouco mais de três meses e acha que isso é amor verdadeiro. — null bufou. — Balela.
— Acontece. — Tereza disse. — Com meus pais foi desse jeito.
null se virou para ela:
— Você também o ama, Tereza?
Tereza e Dominic estavam sentados daquele jeito que casais realmente apaixonados fazem: dedos da mão entrelaçados, os joelhos sinalizando o corpo um do outro enquanto trocavam olhares silenciosos acompanhados de sorrisos idiotas.
— Claro que amo. — A mulher enrolou o indicador na ponta dos cabelos. — O Dom me desperta coisas que... nunca senti antes.
null afundou o queixo no polegar e revirou os olhos antes de voltá-los desafiadores para a noiva do amigo.
— Sei. E você descobriu que ele era sua metade da laranja antes ou depois de saber dos milhões na conta bancária dele?
Tereza Ortega fez uma careta de dor como se alguém tivesse ferroado seu pé com um salto agulha, correu o olhar ofendido de null para o chão.
—Já chega! — Dom curvou as sobrancelhas enfurecido. — Não vou admitir que fale assim com ela. Nós não estamos pedindo sua aprovação, nem te consultando sobre nada, ok? Estamos te informando que você precisa arrumar outro lugar para ficar.
Um relâmpago cortou o céu e o clarão invadiu a sala, como se o tempo também fosse conivente daquele conchavo: Dominic-Tereza contra null.
Tereza Ortega acariciou a mão de Dominic, o diamante brilhando em centenas de tons diferentes refletindo sobre sua pele oliva. Sorriu para null null como se ele fosse um adolescente rebelde e mimado com o qual a terapeuta estava acostumada a lidar.
— Dom, bebê, pode deixar.
Dom, bebê? null segurou os comentários sarcásticos, curioso com o que Tereza tinha para falar.
A mulher ajeitou os cabelos, pela milésima vez desde que chegara ali, e dirigiu para null aquele olhar velado do tipo: "eu sou uma especialista em casos perdidos como você, seu merdinha. Dispute a atenção do Dominic comigo que você vai perder."
Porque além de linda e bem graduada (a mulher tinha dois pós-doutorados sobre a atuação de fármacos clínicos em dependentes químicos), Tereza também era uma estrategista.
Sabia que o noivado relâmpago com o baterista da Dark Paradise não iria ser bem visto pela sua família, católica conservadora, pela imprensa sensacionalista, a qual já podia imaginar insinuando uma suposta gravidez, ou pelos fãs malucos que certamente iriam infernizá-la assim que a notícia viesse a público; chegou a lidar ela própria com algumas adolescentes na porta da clínica que a acusaram de estar atrapalhando o processo criativo da banda. Como se álcool e drogas fossem substâncias mágicas responsáveis por liberar o lado artístico dos músicos.
Mas acima de tudo, sabia que a parte mais difícil estava ali sentada na sua frente: 1.90, olhos azuis, tronco tatuado fazendo um par e tanto com o abdômen que ele fez questão de deixar a mostra e teimoso como todo o inferno: null null, guitarrista da Dark Paradise.
O futuro ex-colega de apartamento do seu noivo.
O vínculo que unia Dominic Wilde e null null precisava ser desfeito. Tereza sabia que o loiro que não fez questão de tirar o deboche do rosto desde que ela e o Dom entraram no apartamento, era péssima influência para o baterista. Jogue o nome dele no link de notícias do google e você torcerá o nariz para metade do que ver publicado ali.
Definitivamente, null null não é o tipo de garoto que mães querem como companhia para seus filhos.
Nem mulheres para seus futuros maridos.
— Você se considera amigo do Dominic? — Tereza perguntou.
null respondeu ferino e com um olhar desafiador.
— Muito mais do que um amigo, ele é como um irmão.
— Ótimo. Porque sabe, null... — Tereza encarou o guitarrista. — amigos deveriam ficar felizes quando o colega apresenta a nova namorada. Também deveriam entender quando precisam de um tempo para ficar sóbrio, e não se aproveitam do fato da pessoa estar na reabilitação para transformar a casa dele num antro de bebidas e prostitutas.
Por um instante a dúvida e o despeito brigaram pela expressão do guitarrista. A segunda foi vencedora.
— Alto lá, estranha. Era uma festa de boas-vindas. Tinha... cerveja sem álcool para o Dom! E aquelas garotas, todas vêm de boas famílias, eram modelos e atrizes... Uma stripper no máximo.
Ou duas. Que seja.
De repente, um ruído surgido do corredor atraiu a atenção dos três.
— Ué? Cadê todo mundo? — Uma loira de cabelo despenteado pelo travesseiro e que nada usava além de uma camiseta larga e uma calcinha apareceu bocejando e meio que coçando os olhos borrados de rímel.
Mas ficou desperta de uma hora quando viu Dominic.
— AI MEU DEUS! É o baterista da Dark Paradise!
Tereza deu um olhar clínico para a garota, depois se voltou educadamente para null:
— Achei que eu e o Dom tivéssemos pedido para que todas as pessoas fossem embora.
null ergueu o rosto para a menina:
— Ei, Cindy. Onde você estava quando a Tereza surtou e expulsou todo mundo?
— Hum? Quem surtou e porquê? — A gracinha loira que parecia ter saído diretamente de uma série dos anos 90 sobre salva-vidas gostosas das praias de Los Angeles, e, cujos pais deveriam imaginar estar na casa de alguma amiga e não na cama de um roqueiro promíscuo, esticou os braços exibindo o umbigo além da gloriosa calcinha.
Depois se sentou bem ao lado de Dom cruzando as pernas bronzeadas em cima do sofá de couro.
— Ei, você não estava na reabilitação?
Se fosse há alguns meses, a única preocupação de Dominic Wilde naquele exato momento seria conferir o RG da menina para evitar um processo judicial ou escândalos de imprensa.
Mas os tempos eram outros. E o amor muda as pessoas, ah, como muda.
— Estava. — Ele empertigou-se mais para perto da noiva.
A garota gargalhou ébria e avançou alguns centímetros aproximando-se de Dom.
— Nossa, nem acredito que também estou te conhecendo! Quando eu contar para minha prima... ela tem uma parede inteira com fotos suas. Não tô brincando, não. Tipo coisa de adolescente, sabe? A garota é pirada nesse teu jeito meio Slash meio Lenny Kravtz meio Jimmy Hendrix. — Ela retirou um celular sabe-se lá de onde e deslizou a tela de bloqueio. — Ei. Posso tirar uma selfie?
Dominic sorriu educado para a câmera. E Tereza contou até dez enquanto Cindy praticamente asfixiava seu noivo com um possível implante de silicone.
Porque aqueles peitos não podiam ser de verdade.
— Espera! Espera! Agora com um beijo na bochecha pra matar minha prima Meredity de ciúmes. — Cindy segurou o rosto do baterista que rolou os olhos para Tereza, sem graça.
Risadas ecoaram no outro ponto da sala. null estava se divertindo pra valer.
— Já acabou, querida? — Tereza interviu quando achou que 30 fotos já eram mais do que suficiente para matar a tal Meredith de ciúmes, inveja, ou sabe-se lá de mais o que.
Cindy, que aparentemente não havia se dado conta de outra presença feminina até aquele instante, cerrou os olhos e fez uma carranca para a mulher.
— Quem diabos é você?
— Sou a Tereza. A que surtou e expulsou todo mundo.
null se ajeitou na poltrona e acendeu um cigarro depois de tatear os bolsos da calça a procura do isqueiro.
— Péssimas notícias para sua prima Meredith, Cindy. — Ele soltou uma baforada de fumaça. — A Tereza aí é a futura senhora Wilde.
Cindy demorou uns cinco segundos para fazer a conexão. Depois, se esticando por cima de Dom, abraçou Tereza e berrou:
— Ai meu deus. AI MEU DEUS! PARA! Vocês vão se casar? — Seu hálito era uma lufada alcoólica.
— S-Sim. — Tereza disse tão imobilizada quanto Dom pelo ataque surpresa.
— AAAI! QUE FOFOS! E UAU! Olha só o tamanho desse diamante! — Cindy empertigou-se ainda mais para alisar a pedra. Tereza teve quase certeza de que os peitos da menina, que devido a logística agora estavam no colo de Dom, também devem ter alisado outra coisa bastante preciosa para Tereza.
— Que garota de sorte você é! — Os olhinhos verdes de Cindy estavam brilhando.
— Ao que parece. — Tereza deu um sorriso amarelo.
De repente, a expressão da menina mudou de um jeito travesso.
— GENTE! — Ela gritou. — Sabe o que todos nós deveríamos fazer?
Tereza a encarou:
— Um seguro dos tímpanos?
— NÃO! Um swing! — A loirinha anunciou normalmente como se estivesse propondo uma partida de banco imobiliário. — Pode ser a despedida de solteiro de vocês! O null disse que eles fizeram isso no México uma vez!
— Ele disse é? — Tereza deslizou o indicador pela sua correntinha de ouro, irritada. Contou até quinze e encarou null.
— Eu acho a sua ideia fantástica, Cindy. — o guitarrista falou.
Tereza contou até vinte.
— null. — Dom falou entredentes.
null deu de ombros.
— Só estou dizendo.
Tereza pigarreou e colocou a mão nos ombros da garota.
— Cindy, querida, pode dar um tempinho para a gente? Estávamos conversando sério aqui.
A garota arregalou os olhos.
— Ah! Claro! Vou... preparar algo para nós bebermos!
— Sem álcool para o Dom, Cindy. — null advertiu. Oh, o bom amigo.
— Sem álcool? Pode ser... Hum... café? Eu faço um ótimo!
— O que você quiser, querida. — O sorriso de Tereza permaneceu no rosto até a garota levar seu belo traseiro para a cozinha. Depois ela encarou null:
— Essa aí era modelo ou atriz?
null null apagou o cigarro dentro de um vaso chinês que custou a Dominic alguns milhares de dólares e deu a Tereza um daqueles sorrisos que eleva arrogantemente apenas um canto da boca:
— Acho que é terapeuta.
Dom lançou um olhar ultrajado para o amigo. O constrangimento de null durou apenas uma fração de segundo. Ou menos que isso. Por um tempo ficaram em silêncio, Dom olhando para o chão, Tereza para o lustre do teto. Lustre lindo, por sinal. Apenas o som da tempestade que caia lá fora se fazia audível. Parecia o fim do mundo. Mas ninguém estava reclamando, nos últimos dias em Los Angeles fez-se um calor dos infernos.
Clima tenso realmente era o que poderia solidificar-se entre os três naquela sala.
Bem, então era isso: a parceria bem sucedida entre null null e Dominic Wilde finalmente chegava ao fim. Ok. Ok. Não sejamos tão dramáticos. A parceria continuaria em cima do palco e fora dele também. null só precisava arranjar outro lugar para morar, não era como se a partir de agora fosse um sem teto. Dinheiro não era problema, ele tinha tanto ou mais do que Dominic. Podia pagar um lugar tão bacana quanto o duplex em Beverly Hills. O homem era um dos guitarristas mais famosos do mundo, pelo amor de deus.
Dom e a terapeuta trocaram outro olhar significativo. null null já viu aquela expressão no rosto de muitas pessoas e sabia que continuaria a ver até o fim dos tempos, afinal, enquanto a raça humana pisasse sobre o planeta haveria espaço para toda essa baboseira de amor.
Mas Tereza tinha razão. Amigos ficam sim contentes quando veem o outro amigo bem.
E era o caso ali.
— Vocês estão mesmo felizes, não? — null perguntou, mas sem nenhum atrevimento na voz.
Dom apertou a mão de Tereza.
— Sim. Estamos.
Cindy reapareceu fazendo uma pequeno malabarismo com três latinhas de cerveja.
— Ih, não achei café em lugar nenhum. Só tem bebida no refrigerador de vocês. — A moça sorriu recostada no batente da porta. — É uma típica cozinha de astros do rock.
A ficha finalmente caiu dentro de null.
Não tinha a porra de um café.
O apartamento de um dependente em recuperação fora transformado em um ambiente tão hostil que era preferível que Dom pegasse suas coisas e fosse para outro lugar.
Já chega. Aquilo estava ficando estranho.
O recado já estava dado, tão claro como cristal.
— Tá legal, Dominic. Eu venho retirar minhas coisas assim que achar um lugar novo. — null disse ao mesmo tempo em que se colocou de pé. — Cindy, doçura, tem duas malas no meu quarto. Pega uma e coloca todas as garrafas de bebida que encontrar pela casa. E também os enxaguantes bucais, os alvejantes, qualquer merda que tiver álcool na composição.
Tereza arregalou os olhos, e, pela primeira vez durante aquele fim de tarde estranho, deu o que pareceu ser um sorriso para null.
— Vamos levar a festa para outro lugar. — Ele falou para Cindy quando notou que a garota ainda estava parada lhe encarando.
— Pra onde? — Ela perguntou.
— Pra casa dessa sua prima Meredith.
A garota gargalhou. Ao menos alguém estava achando toda aquela merda engraçada. Na verdade, nada no seu rosto sugeria que ela entendia alguma coisa que acontecia ali.
— Ela mora em Santa Monica, bobinho.
Cindy parou de rir ao notar que ninguém mais na sala a acompanhou:
— Tá... tudo bem?
— Só pega o que eu disse enquanto eu procuro as chaves do carro. — null falou. — E não que eu tenha algo contra suas lindas pernas, mas veste uma calça, sim?
Dominic se levantou.
— null. De forma alguma estou te mandando embora neste exato momento. Você pode ficar aqui até arrumar um lugar.
null segurou o queixo do amigo, e deu um tapinha de leve em uma das maçãs do rosto de Dom.
— Sua noiva tem razão. Eu sei que represento risco para você. Se temos que fazer isso, que seja agora... não quero ser responsável por uma eventual recaída sua.
— Mas então deixa seu carro aqui e pega um táxi, cara. Você e a garota já beberam além da conta e o tempo está péssimo.
null pegou sua jaqueta de couro que estava pendurada numa das banquetas da cozinha e a vestiu. Típico astro de rock, típico rapaz problema.
— Vejam só quem logo será eleito marido do ano! Virou mesmo o senhor responsabilidade, hum? — null deu outro tapinha no rosto do amigo, depois seu olhar desceu para o da mulher sentada no sofá. — E parabéns Tereza, você fez um trabalho e tanto.
A mulher colocou uns fios de cabelo atrás da orelha e sorriu.
— Ora, obrigada.
Não tinha sido bem um elogio. Mas que se dane.
— Só cuida bem dele, por favor.
— Vou cuidar, null. E cuide você de você também.
O guitarrista deu de ombros.
— Você pode me dar uma mãozinha, null? — Cindy ressurgiu carregando tantas garrafas quanto era possível além de uma mala lotada.
Desceram de elevador até o estacionamento, o alarme ecoou e os faróis de uma Mercedes preta deram duas piscadinhas. A boca de Cindy se abriu num "uau" logo antes dela se jogar no capo lustroso do carro ensaiando uma pose. null abriu a porta e acenou para que ela entrasse.
Fora do prédio, as gotas de chuva colidiram com quase a mesma força de pedras contra a lataria. Os faróis e os limpadores de para-brisas estavam fazendo seu melhor, mas ainda era quase impossível ver um palmo a frente além de água e mais água.
— Deus do céu. Que temporal! — Cindy esgueirou-se para alcançar a bebida no banco de trás e voltou para o assento com uma latinha de cerveja.
— Afivela o cinto.
A garota obedeceu e ofereceu para null um gole da bebida. Ele relutou por um breve instante, não importava quão inconsequente as pessoas o imaginavam, elas sempre exageravam ao seu respeito. Mas depois ponderou e sorveu uns dois goles. Não que fizesse alguma diferença depois de todas aquelas doses de Jack que tomara mais cedo. Aumentou o rádio até a música preencher o veículo abafando o ruído metálico da chuva. O velocímetro apontava apenas 40 quilômetros por hora.
De repente, notou pelo canto do espelho retrovisor o farol de uma moto que se aproximava muito rápido para cima deles.
— null! Cuidado! — Cindy tampou os olhos e deu um gritinho agudo.
Por reflexo, ele virou o volante. O carro rodou três vezes antes de parar no meio da pista. Um outro motorista desviou buzinando e o motoqueiro causador de tudo desapareceu a uma velocidade totalmente absurda. Algum entregador de fastfood. null xingou uma dúzia de palavrões dentro do carro, ninguém além dele e Cindy escutaram.
O som foi desligado e a melodia repetitiva e abafada da chuva reinou no interior do veículo. O que sobrou da latinha agora escorria pelo estofado caríssimo do banco.
As borrachas dos limpadores deslizavam furiosamente pelo vidro, por curtos segundos pode-se distinguir a imagem de um sinaleiro e a sombra de alguns prédios antes que a água escondesse tudo outra vez num círculo vicioso.
— Minha nossa... Foi por um triz. — A garota fez um sinal da cruz, seus lábios haviam perdido a cor Por sorte havia colocado o cinto.
— Foi sim. Você está...
Então, pelo que foi uma fração de segundo, null viu um borrão luminoso aproximar-se pelo vidro do carona, os olhos verdes de Cindy ainda trespassados pelo susto, confusos. E ele soube imediatamente que não havia como escapar.
A pancada e o estrondo vieram logo em seguida.
E tudo ficou escuro e silencioso de uma só vez.
Capítulo 2
null estava carregando aquela intimação há pouco mais de quatro horas.
Um cara engravatado de barba bem feita e usando sapatos de couro quem lhe entregou, pouco depois das três da tarde. Ela estava acabando de girar a chave para entrar em casa quando ele apareceu, e null soube quase que imediatamente de duas coisas: que aquele homem trabalhava para o governo, ou algo do tipo, e que a presença dele ali lhe tiraria toda a beleza e satisfação que o conceito "chegar em casa pós-jornada de trabalho" representava.
Bingo. Era um oficial de justiça. Agora, poucas horas depois, o papel já havia perdido sua lisura original e as letras timbradas quase saltavam sob a superfície rugosa da celulose amassada, como minúsculos vagões de caracteres descarrilhados.
null carimbou uma marca redonda correspondente a uma xícara de café bem em cima da assinatura do juiz da vara de família do 16º distrito de Los Angeles. Isso aconteceu enquanto ela andava em círculos pela cozinha da sua casa. O canto direito fora queimado com um isqueiro; já isso, foi um pouco antes dela entender que destruir o papel por meio da combustão poderia até ser poético como uma das letras do Led Zeppelin, sua banda favorita, mas não faria com que seus problemas também desaparecessem entre as chamas.
Além disso, ela precisaria daquela via para procurar a Defensoria Pública no próximo dia útil: uma mudança de planos de última hora. Seria sua folga e a ideia inicial era arrumar a cozinha. Limpeza pesada mesmo. Na semana anterior, Juanita havia encontrado no fundo da geladeira uma bolha mofada que outrora fora um brócolis. O pequeno cadáver da família das hortaliças estava ali há meses realizando todo seu processo de decomposição antes de ser descoberto. Era difícil conciliar tanta coisa para null com o serviço de casa, como limpar a geladeira.
null aproveitaria também que Andreas não costumava ficar em casa durante as manhãs para ir ao quarto do adolescente procurar por bitucas de cigarro. Os dois haviam tido uma longa conversa na semana anterior, depois que ela achou maconha no bolso de uma calça dele. E sério, caso algum dia precise fazer às vezes de genitora do seu irmão caçula prepare-se para escutar um "dane-se, você não é minha mãe" com muito mais eloquência e frequência do que um mero obrigado.
E ainda olhando para a intimação, null imaginou duas situações diametralmente opostas: Peter, seu ex, deixando a loja de instrumentos musicais na mão de seus funcionários mal pagos para ir a um bom escritório de advocacia da cidade. Lá, ele tomaria um prosecco italiano, cortesia dos advogados para encorajá-lo a contar tudo que poderia ser levado aos tribunais capaz de destituir sua ex mulher do pátrio poder. Depois, caminharia levemente embriagado até sua nova Mercedes sentindo-se o pai do ano. null sabia que ele havia trocado o carro porque viu de relance pela janela quando Peter buscou Juanita no último final de semana, já que ele quase não punha os pés na filial em que ela trabalhava.
Do outro lado, null, durante o dia uma das empregadas mal pagas da loja de instrumento musicais do seu ex-marido, e a noite, entregadora freelancer de uma pizzaria do subúrbio, tendo que chegar duas horas mais cedo para garantir atendimento na Defensoria Pública.
As coisas tinham dois pesos e duas medidas. E ela não se lembra de estar do lado que não fosse o doloroso e desgastante.
Um clarão de faróis surgiu, e null dobrou correndo a intimação.
— Olhem só quem está querendo ganhar um aumento. Adiantada ou nós que estamos atrasados? — A voz de Mark se fez alta mesmo sob o barulho dos três carburadores. Diferente de Paco e Ted, ele sempre aparecia bem humorado ao trabalho. Energia matinal ao contrário.
Os três chegarem ao mesmo instante à pizzaria era uma coincidência que ocorria até com bastante frequência. null tinha um palpite para essa sincronicidade: a de que eles se encontravam antes do expediente em algum tipo de clube do Bolinha para o qual nunca era convidada.
Os rapazes estacionaram no beco paralelo à rua principal, alinhando as três motos em frente à entrada dos funcionários, ao lado da Yamaha de null. Quatro baús de entrega estampados com a logo que consistia na caricatura de um senhor rechonchudo e sorridente segurando uma embalagem de pizza: a versão às avessas de Francesco Maci, o dono do estabelecimento, e que deveria existir em algum universo paralelo. Uma que seria mais generosa com o salário dos empregados e que não levantaria suspeita da vigilância sanitária.
— Estamos os quatro adiantados, Mark. Milagres acontecem. — null conferiu o relógio, logo depois de esconder a intimação na pochete. Sua cabeça doía. Em dias típicos ela costumava tirar uma breve soneca entre seus dois turnos. Em dias ruins, marcados por visitas de funcionários do governo, ela costumava substituir o cochilo por muito café.
— Ainda bem, porque minha cota de sermão esgotou semana passada depois que entreguei aquela pizza de pepperoni trocada em Bel Air. — Ted falou. Ele usava uma barbicha que o deixava a cara do Zach Galifianakis. — Poderiam ter ficado com a pizza, mas já está no gene da burguesia humilhar o proletariado sempre que tem a chance.
— Mas esse não era aquele caso dos clientes vegetarianos, Ted? — Paco deu uma piscadela para null e escondeu o sorriso por dentro da viseira antes de tirar o capacete. Ele era o tipo de cara que se encaixava perfeitamente no estereótipo latino charmoso que músicas como Spanish Eyes ajudaram a construir. Talvez seu único defeito fosse ser mais baixo. Ou talvez isso nem fosse um defeito. A verdade é que, ao fim da noite, quando Paco tinha a sorte de ser recebido por mulheres nas entregas, suas gorjetas eram quase que dobradas.
Um coach motivacional de motoboys, um simpatizante do comunismo morando no país mais capitalista do mundo, e um aspirante a substituir Johnny Depp em um possível remake de Don Juan de Marco. Se queremos falar de estereótipos seriam essas definições que null daria para Mark, Ted e Paco, respectivamente.
— Pepperoni consiste em rodelas de salame em cima de queijo, Paco. Tire a porra das rodelas! Simples! Era feriado. As entregas estavam uma loucura. Aposto que se fosse no subúrbio, não teriam reclamado, e sim comido as rodelas. Não seriam vegetarianos, para inícios de conversa.
null admirava como Ted conseguia inserir seu discurso político a praticamente todo tipo de assunto. Uma vez ele pediu demissão porque decidiu que não iria ceder sua mão de obra a um preço vil. Cinco dias depois ele pediu o emprego de volta.
— null, e aí? — Mark perguntou, cutucando a bota dela com a ponta do seu tênis. Um "cumprimento entre os calçados", já que null estava sentada na pequena escadaria em frente a entrada de serviço. — Você parece cansada. Tudo ok?
— Recebi uma má notícia esta tarde. Mas vou dar um jeito, é só baque do momento.
— Não quero parecer intrometido, mas também acabamos de ficar sabendo sobre aquele idiota do seu ex.
null ficou surpresa. Não entendeu como Mark poderia saber da intimação judicial.
— Vocês já ficaram sabendo? Mas como?
— Fomos hoje mais cedo naquele kebab famoso na Sunset Street. — Paco disse, confirmando a existência de um clube do bolinha. — Passamos na porta do Rainbow. Havia uns flyers das bandas do mês na entrada.
O cérebro de null então fez a conexão. Essa é a merda de se ter vínculos com mais de um ex: seja ele o pai da sua filha e patrão, seja ele seu mais recente ex namorado e parceiro de banda. Aquilo não era sobre Peter. Era sobre Shane e a Red Lips.
Digamos que os homens que passavam pelo caminho de null tinham a vocação para fazerem estragos em áreas diferentes da sua vida.
— E duvido que esse guitarrista tenha um dedo do seu talento. — Foi Paco quem disse. Mas naquele instante, seu belo timbre e sotaque latino eram mais como unhas raspando um quadro negro nos ouvidos de null.
— Espera. Acho que estamos falando de coisas diferentes. Vocês pegaram um flyer? — null perguntou e Mark anuiu com um aceno. — Deixa eu ver.
Ele retirou o papel dobrado de dentro do bolso e lhe entregou.
Todos ficaram em silêncio. A vida seria mais fácil assim, não? Se sempre existisse no mundo flyers exemplificativos que fizessem o serviço sujo na falta de palavras durante uma conversa séria.
Sentindo uma leve vertigem, null desdobrou o papel portador de más notícias. O segundo daquele dia. As letras usavam uma fonte vermelha gritante. Cor que combinava com a sensação ácida que lhe tomou o peito.
"Uma de nossas campeãs de audiência: Red Lips apresenta-se neste sábado, no Rainbow. O guitarrista Logan se junta a banda formada por Shane, Joshua e Paul para tocarem o melhor do hard rock além de suas músicas autorais"
Assim, bem curto. Seu nome deletado do anúncio e dando lugar a um de outro cara o qual ela nunca ouvira falar. Os anos dedicados a sua banda desaparecendo diante dos seus olhos com a função poderosa do delete do teclado de algum computador.
— Eles... me tiraram da banda? Me tiraram da Red Lips e tiveram tempo de fazer este flyer horroroso, mas não tiveram a decência de me avisar?!
Esse era o exato instante em que null poderia ter licença para fumar metade de um maço de cigarros, se não tivesse largado seis anos antes, quando descobriu que estava grávida.
Mark, Ted e Paco pareceram confusos.
— Você não sabia? Não era sobre isso que estava falando? — Foi Mark quem perguntou.
null deu uma risada que nada tinha de feliz, mas puro desgosto.
— Parece que meu ex marido e meu ex namorado se uniram e tiraram o dia de hoje para tentarem me destruir. Mas não quero falar sobre o Peter agora. Neste exato instante, aquele babaca do Shane tem todo meu ódio e atenção. Um... flyer!
Ela fez uma bolinha e arremessou na caçamba do restaurante, o papel bateu em um saco preto fofo e rolou para fora, pousando em cima de uma poça de água.
— null, agora que vocês terminaram eu posso dizer. Sempre achei o Shane um idiota. Essa garota que ele está agora não vai durar, porque é assim que gente sem caráter como ele faz.
— E você está se esquecendo do principal, Ted, - Paco complementou — Em primeiro lugar, o cara tem que ser um louco para trocar uma mulher como a null por qualquer outra.
— Um grande imbecil com certeza. — Falou Mark.
null adorava aqueles rapazes que jamais admitiram, ao menos na frente dela, qualquer um dos infinitos atributos físicos que faziam de Millicent Jones quase que irmã gêmea de Jennifer Lawrence, mas numa versão bem filha da puta.
— E sobre a banda, duvido que esse guitarrista que eles arrumaram, essa tal de Logan, tenha um dedinho do seu talento. Porque retirando o dedo podre que você tem para homens, os demais dedos da sua mão são extremamente talentosos.
null sorriu por um breve momento. Era isso ou deixar uma lágrima escorrer.
— Sabe o que é engraçado? Eu não cheguei a pensar que eles fossem me tirar da banda. Dar um tempo, ok. Mas desse jeito é como se eu estivesse sendo punida pelo erro de outra pessoa.
Além do mais, null estava naquela fase cíclica posterior a términos: quando o ódio, a mágoa e o amor revezavam-se dentro do peito em uma dança desordenada. E ela tinha uma vã esperança de que resolveria as coisas com Shane durante os ensaios com a banda, achava que pudesse perdoá-lo.
Não cogitara que talvez Shane não quisesse ser perdoado. Que ele simplesmente tivesse se cansado da mãe solteira de 31 anos. null se lembrou da pele de boneca, dos cabelos longos e loiros de Millicent. E pensou em como ela própria estava descuidada. Não se lembrava da última vez que fizera exercícios ou algo mais simples como pintar as unhas. Suas olheiras constantes envelheciam-na uns quatro anos além da idade do seu RG.
Talvez os únicos encantos que faziam com que Shane a admirasse desapareciam assim que null desplugava a guitarra ao final dos shows.
— Não tem como falar isso de outra forma, null. Shane é o vocalista. Ele pode ter errado, mas ainda assim, é mais provável encontrar um novo guitarrista do que trocar o vocal. — Mark falou a dura verdade.
— Seu talento é inegável, garota. Não dou nem um mês para você achar uma nova banda que esteja procurando um guitarrista e você volte a se apresentar novamente. — Completou Ted.
— Droga. Era um bom cachê, me ajudava nas despesas da casa.
Além disso, vinha justamente nos fins de semana, dias que null não tinha que se preocupar com Juanita, que ia para a casa do pai.
— Mas... talvez eu tenha que dar um tempo da música. Só isso. — null suspirou, derrotada.
E às sete horas em ponto, a pizzaria Do Noi, uma construção deselegante localizada no subúrbio de LA, acendeu seu letreiro luminoso. A letra D piscando em um tom vermelho raivoso, como se ameaçasse morder ou cair sobre os clientes que entrassem pela porta.
O portão da entrada dos funcionários foi arrastado logo atrás de null. A voz do patrão veio na sequência, pouco antes de Mark apagar correndo o cigarro. A casa era rigorosa quanto a proibição de fumar durante o expediente. Francesco Maci, o dono, aproximadamente cinquenta anos, um terço deles passados ali na frente a caixa registradora do seu empreendimento herança de família, foi logo dizendo:
— Ted, Mark, Austin. — Ele apontou para os três entregadores como um treinador escalando o time para uma final importante. — Ajudem a colocar o lixo pra fora. null, varra a entrada. Rápido. Todos vocês. Sabem que hoje é quinta-feira e temos muito trabalho, certo?
— Certo, Francesco. E boa noite para você também. — Paco mais balbuciou do que falou. Não era mesmo sua intenção que o patrão o escutasse. Não tinha a petulância típica de Ted.
null reclamou assim que o patrão retornou para o interior do prédio:
— Será que algum dia ele vai entender que eu não tenho que varrer a porta apenas por ser mulher?
— Talvez no mesmo dia em que ele entender que fazer a gente colocar o lixo para fora ou varrer a entrada configura desvio de função. — Ted, claro, falou.
Como se tivesse se esquecido uma coisa bem importante, ou então fosse dotado de uma audição biônica capaz de detectar fuxicos dos funcionários contra a sua pessoa, Francesco voltou e falou diretamente pra null:
— Ah, null. Termine de varrer. Ajude a Lisandra a montar algumas caixas e depois venha ao meu escritório.
— Quer que eu varra depois?
— Se eu quisesse que terminasse depois eu teria dito: deixe de lado o que está fazendo e vá ao meu escritório, São três coisas em ordem: termine de varrer, ajude a Lisandra a montar as caixas e vá ao meu escritório.
— Tá bom.
null terminou de varrer e ajudou Lisandra, tarefas que, sem dúvidas, teriam sido melhor executadas se Francesco antecipasse qual seria o assunto: demissão, aumento, corte no seguro, prêmio de funcionária do mês. Tantas opções, droga. A frase "Venha ao meu escritório." dita pelo chefe tem um efeito diametralmente oposto a "Você emagreceu!" falada por um conhecido qualquer.
O escritório de Francesco não era propriamente um escritório. Era um cubículo sem graça e sem janelas que costumava fazer às vezes de uma dispensa até a vigilância sanitária exigir novas regras para o lugar como mais espaço e ventilação natural. Basicamente, retirar toda a aparência apelativa que funcionava como um convite de boas vindas para roedores.
null deu uma batidinha na porta que já estava aberta só para anunciar sua presença. Francesco foi logo falando:
— Oi. Decidimos ampliar as entregas e voltar a fazer o subúrbio da zona sul. Toda a parte do sexto distrito. Você acha que consegue, garota?
Francesco achava que null era um pouco mole por ser mulher. Na mesa dele havia uma foto sorrindo ao lado da esposa e das três filhas. Uma delas, engenheira chefe no ramo petroquímico.
— Claro, por que não conseguiria?. Mas pra que voltar a fazer essa rota, Francesco? Sabe o que acontecia quando entregávamos por lá. Já fomos recebidos várias vezes a pedradas por adolescentes.
Francesco estava no meio de uma cotação de preços de molhos de tomate. Ele queria um que tivesse um preço baixo, mas que não fosse tão aguado quanto o último que compraram. Deixou os papéis de lado e encarou sua funcionária.
— Bem, null. Sabe, ainda estamos vivendo a recessão pós-pandemia, certo? Eu já não posso me dar o luxo de escolher a dedo quais bairros a De Noi vai atender ou não.
O problema era que a pizzaria não se responsabiliza por danos ao instrumento de trabalho de motoqueiros freelancers. Uma vez null teve que pagar 15 dólares em uma lanterna quebrada por uma dessas entregas.
— Já falou com os meninos? Ou só comigo?
— Já falei com eles enquanto você estava varrendo a entrada. Entenderam. Bem, null. Eu não queria fazer as coisas desse jeito, mas a questão não é só ampliar a rota de entregas. Também vou ter que fazer cortes no pessoal.
— E está falando isso comigo porque...
— Porque eu pensei em tirar um dos entregadores. E você é a que tem mais regalias.
Ela cruzou os braços, sem acreditar. Um vinco se formando entre as sobrancelhas:
— Como eu tenho regalias, Francesco? Eu faço o trabalho igual ao de todo mundo.
— Você é a única que tem filhos. E a única que nunca pode vir aos sábados.
— Filha, no singular. Eu tenho só uma filha. E em dois anos se eu precisei me ausentar três vezes do trabalho foi muito. — Não que o Andreas as vezes não desse o trabalho equivalente, mas nessas horas de barganha com o patrão, era melhor que não o contasse. E agora não tinha mais a banda, mas as obrigações com a Juanita continuavam, complementou. — Quanto aos sábados, agora eu posso trabalhar alguns fins de semana se precisar, mas ainda preciso revezá-los.
— Tudo bem, tudo bem, null. Eu sou um cara justo. Faça as entregas, ok? Vamos ver como cada um de vocês se sai e então vamos nos falando, certo?
A forma que Francesco falava aquilo fazia parecer que ela e seus colegas estavam na disputa por um carro de luxo zerinho mais férias pagas nas Maldivas. null odiava como ele sempre terminava as suas frases com "certo" ou um "tudo bem" o que era quase como se ele obrigasse o interlocutor a concordar com ele.
Lá fora, na recepção, o telefone tocava sem parar.
— Sim, Francesco.
— Estamos conversados. E você tem certeza de que consegue, certo?
Pouco depois das oito da noite null recebeu o primeiro pedido da nova rota. Promoções do aplicativo de entrega são um verdadeiro chamariz. Ingredientes baratos com nomes criativos aludindo à Hollywood clássica: De Noi fazia assim. Por que chamar de pepperoni se posso chamar de Casablanca? Los Angeles e seu efeito nas pessoas. De alguma forma, todo mundo queria tirar proveito da marca registrada da cidade dos anjos.
O GPS sinalizou Cadence Hill, um complexo de condomínios labirínticos que poderia muito bem ser o cenário de uma distopia pós-apocalíptica. null não julgava, porque ela própria morava num desses lugares com apelo magnético para a tragédia. Um prato cheio para jornais sensacionalistas capaz de gerar notícias do tipo: alguém ferido por uma bala numa briga de gangues, ou uma criança que caiu da janela por um descuido dos pais usuários de metanfetamina.
Por sorte, o arquiteto daquele projeto deprimente resolveu marcar o alto de cada um dos edifícios com um entalhe em cor diferente. A entrega era no número 34, "o que tem as listras vermelhas" o cliente informou no ponto de referência. null estacionou num pátio escuro.
O lugar já estava surpreendentemente quieto, mesmo não sendo tão tarde. Uma voz feminina metálica surgiu alguns segundos após null tocar a campainha:
— É a pizza?
— Sim. É a pizza.
— Se importaria de subir? Eu sofro de artrose.
null descobriu que o elevador estava sem serviço e que teria que subir quatro lances de escada. Uma miscelânea de mau cheiros concorria com o aroma ardente da pizza. Cheiro de mijo, principalmente. Mas também de maconha e comida azeda, que ficavam mais ou menos perceptíveis a depender do andar.
Serviço feito, uma senhora feliz e cinco pratas de gorjeta que não existiriam caso o elevador estivesse funcionando. Obrigada, serviço de manutenção falho. Uma mão lavando a outra.
E mais seis entregas próximas. Ela tinha que correr.
Seis entregas se o baú de sua moto não tivesse sido violado e a tampa estivesse escancarada revelando um vazio aflitivo onde deveriam estar repousando as pizzas em caixas oitavadas .
— O quê?! Não!
Ela gritou e sua voz ecoou solitária no vazio do estacionamento. O delinquente fora rápido e aquela altura já devia estar longe dali.
null não tinha derramado uma lágrima sequer naquele dia. Nem quando recebeu uma intimação judicial do ex-marido reivindicando a guarda da filha, nem quando descobriu que sua banda a trocara por outro guitarrista. Mas as pizzas furtadas...
Ah, tudo aquilo já era demais.
Porque não eram simplesmente pizzas. Eram a representação do seu trabalho embrulhadas numa metáfora simbolizando o auge do seu declínio. Duvidaram da sua capacidade de ser mãe, da sua capacidade de separar a vida pessoal da dos negócios, e agora, finalizando da forma mais patética a tríade do dia, Francesco teria o motivo que precisava para demiti-la.
Ela sentou no meio fio, esgotada. Mesmo assim, inspirou forte, seu peito nocauteado pelas feridas emocionais doendo pra valer, arrumando forças para digitar a mensagem:
Francesco
visto por último hoje às 19:35
visto por último hoje às 19:35
Francesco, fui furtada assim que finalizei a primeira entrega na Cadence Hill. Levaram todos os outros seis pedidos. Avise a cozinha e os clientes. Estou voltando para a pizzaria. Chego aí o mais rápido que puder.
Ela imaginou a pele acima do colarinho da camisa de Francesco ficando toda vermelha de raiva, igual a uma das pimentas caienas que iam na pizza mexicana, ou melhor, na "Era uma vez no méxico" do cardápio da pizzaria. Não seria surpresa se Francesco arrumasse um jeito de culpá-la pelo incidente.
Seu celular tocou logo em seguida. null ficou com medo de olhar o visor, mas depois sentiu-se aliviada ao ver que não era o nome de Francesco, mas o de Mia que reluzia na tela do aparelho. Ok. Momento péssimo. Mesmo assim, null a atendeu. Notícias de artigos científicos de alguma universidade famosa compartilhados por usuários do Facebook já diziam que ouvir uma voz amiga em situações assim causava um efeito reconfortante imediato.
— null! Está sentada?
Se a voz de Mia fosse uma sobremesa, seria um creme de papaia com licor de cassis. Ela poderia arrumar trabalho fácil como locutora de rádio ou ganhar dinheiro com um canal de ASMR no Youtube se quisesse.
— Estou sim, Mia. Sentada bem na sarjeta.
null deu uma boa olhada no asfalto a sua frente. Nunca uma pergunta teve uma resposta tão literal e tão figurada ao mesmo tempo.
— Ótimo! — Disse uma Mia animada, incapaz de captar a ironia do momento — Porque você não acredita no que vou falar. Sabe o Steve?
null não acreditou mesmo. Não acreditou que estava fazendo aquilo quando tinha coisas mais importantes para resolver, tipo, sair daquele lugar hostil.
— O dentista que tirou a parte dele e cobrou só o serviço do protético das suas facetas nos dentes?
— Ah, não. O outro Steve. Moreno, olhos verdes... o que conheci no show do Guns, lembra?
— Ah sim. Lembro. Mas Mia, sem querer te cortar... eu não estou em um bom momento para bancar a conselheira amorosa agora.
Uma janela rangeu sofrida e então foi fechada com força. null olhou para cima e sua visão se perdeu no sem número de luzes acesas que ali existiam.
— Não, meu bem. Não tem nada a ver comigo. E sim com você. Steve tem um melhor amigo e... bem já adianto que não estou tentando juntá-la com ninguém. Acontece que esse cara, Travis é o nome dele, é assistente de palco de uma banda.
null era boa em fazer duas coisas ao mesmo tempo, tais como: escutar o que a amiga tinha para dizer enquanto verificava o estrago no baú da moto. A verdade é que não havia sinal de arrombamento. Imaginou aquelas mesmas crianças que outrora arremessavam pedras progredindo na carreira de infratores e se especializando em furto.
— Assistente de banda é? Parece interessante. — Mia, assim como todo mundo, já devia estar por dentro da notícia de que null era uma sem banda agora. Aplicação prática da máxima: notícias ruins correm rápido. — E eu quero mesmo saber, Mia. Mas, agora eu preciso sair daqui. Você pode me contar isso depois?
— Não! Espera! É rápido, eu juro! Eu conversei com esse Steve, que conversou com esse Travis, que... tchãn tchãn tchãran... conseguiu uma audição para você amanhã.
— Uma audição? Amanhã? Espera, Mia. Pelo visto você também já sabia que estou fora da Red Lips e agradeço a preocupação... Mas eu não posso ser avisada das coisas assim, em cima da hora.
— O quê!? Do que voce esta falando? Oh meu Deus, essa informação só deixa esse timing mais perfeito! Enfim, esqueça a Red Lips. — Mia bufou com desdém o nome da banda pela qual null teve tanto apreço. Ela e Shane demoraram quase um mês para escolher aquele nome, mas agora soava patético. — Porque essa banda que o Travis trabalha deixa a Red Lips no chinelo, null. E vai fazer você querer desmarcar qualquer compromisso amanhã para ir a essa audição.
Mia agora tinha toda a atenção da amiga.
— Sério? Qual é a banda?
— Quero que você adivinhe.
— Mia, não. Corta o jogo de adivinhação. Acabaram de arrombar o baú da minha moto e levaram todas as pizzas. Estou criando coragem para voltar ao trabalho e provavelmente ser despedida. Então diz logo qual é a banda.
Uma pequena pausa do outro lado da linha, antes de Mia prosseguir:
— Caramba. Isso é uma merda. Mas olha, se for aprovada nessa audição, a última coisa que você vai precisar fazer, null null, é entregar pizzas. Aliás, nem entregar pizzas e nem trabalhar de vendedora na loja do seu ex marido.
Aquilo sim era uma informação memorável.
— É uma banda grande?
— Ah sim. Muito.
— As maiores que conheço aqui de Los Angeles são a Wolf Rot End Sun, a Between Juices e a Cabaret Alien. Mas... não. Não acho que estão precisando de um novo guitarrista. Não ouvi nada a respeito. É alguma delas?
Mia emitiu um som com a boca similar a de uma balão perdendo o ar.
— Eu disse que era uma banda grande, null. Graaande.
— Quando você diz grande você quer dizer...
— Muito famosa, null. Não essas bandas com as quais você costuma revezar datas nos pubs para sair com um cachê de 30 dólares ao fim da noite.
null sentiu o efeito das palavras de Mia na parte do estômago que é reservado para sensações boas. Um frio na barriga, mas de um jeito bom.
— Pelo amor de Deus, Mia. Conta logo quem são.
Mia riu do outro lado da linha, divertindo-se para valer antes de entregar a informação:
— Vou dar uma dica: qual é a melhor banda de todos os tempos?
— Led Zeppelin.
— Ahn... não. Tá. Deixa eu refazer a pergunta. Qual é a melhor banda, da atualidade, cujos os integrantes são deuses sexy na faixa dos 30 anos? Tenho quase certeza de que você teria um poster deles sem camisa no seu quarto se estivéssemos nos anos 80.
null pensou por um momento.
Não, não podia ser. Era surreal demais pensar que pudessem ser eles. Quais as chances? Mesmo assim, palpites eram gratuitos. Então ela disse a banda que trazia todos os predicados que Mia elencara:
— Dark Paradise?
— Bingo.
null sentiu o peito formigar. De novo, uma sensação boa.
— Não, Mia... Você não pode estar falando sério. Está falando sério, Mia?
— Eu estou! Seríssimo! Você amou, não amou? Eu sabia que iria amar! — Ela gargalhou do outro lado da linha.
— Espera. Mas eles têm o null null e... — null fez a conexão antes que Mia precisasse dizê-la.
Há poucos meses a história de um acidente de carro envolvendo o infame guitarrista da Dark Paradise, que acabou com uma passageira seriamente machucada, tomou conta da mídia. A garota chegou a ficar em coma um bom tempo antes de ir para reabilitação. null escapou por pouco de uma acusação de homicídio culposo. No entanto, ganhou um braço quebrado e um processo por lesão corporal grave.
— Mas... null não pode tocar por causa do acidente. Caramba, Mia... Tá me dizendo que a audição é substituir null null, o null null?
— Exato. Não é um cargo definitivo. Eles precisam de alguém para substituí-lo na turnê. São alguns meses apenas, mas pensa só: tem um cachê violento e vai te ajudar a fazer seu nome. Pensa no tanto de portas que irão se abrir depois, null. E de quebra, você vai me apresentar para aqueles deuses do rock.
null sorriu.
— Obviamente.
— Ok, eu também estava pensando em mim quando te ajudei. Confesso. Afinal, quais seriam minhas chances de trocar mais do que cinco minutos de conversa com um famoso, tirando aquela vez que agarrei o Adam Lavine e ele chamou os seguranças?
— Tá, Mia. Tá bom. Calma, não vamos ficar tão animadinhas. Você está falando como se a vaga já fosse minha.
— Mas é porque eu sinto que essa vaga vai ser sua. Além de super talentosa o Sol está em Marte, null. É uma ótima fase para você.
Mia era especialista em pseudociências furadas, coisas que null não acreditava nenhum pouco: talvez por ser extremamente cética, talvez por ser de áries. Talvez por ser cética e ariana.
Um sinal de mensagem. null conferiu o nome de Francesco no visor.
— Ai droga. Eu preciso mesmo desligar. Mas antes me conta, que horas é a audição?
Era o que ela estava morrendo de vontade de saber.
— Amanhã às cinco da tarde. Vou te mandar o endereço e o contato do Travis. Não conte a ninguém. E mais importante, não se atrase. É com gente famosa que você estará lidando. E é a chance da sua vida.
Uau. Quais as chances das piores e melhores notícias chegarem ao seu conhecimento em um espaço de tempo tão curto? null duvidou que conseguiria pregar os olhos quando fosse se deitar aquela noite.
— Eu vou chegar uma hora antes. E, Mia, obrigada. — null sentiu seus olhos encherem de água. — Essa notícia salvou meu dia.
— Eu sei! E ela pode salvar muito mais! null null, nova guitarrista da Dark Paradise! Uhul!
null tinha até se esquecido da mensagem de Francesco quando desligou:
Francesco
visto por último hoje às 19:47
visto por último hoje às 19:47
Francesco, fui furtada assim que finalizei a primeira entrega na Cadence Hill. Levaram todos os outros seis pedidos. Avise a cozinha e os clientes. Estou voltando para a pizzaria. Chego aí o mais rápido que puder.
Essa corrida vai sair muito cara para você, null.
Bem, que se dane. Porque de repente perdera qualquer medo relacionado a encarar Francesco. Boas notícias funcionavam como um catalisador tão ou mais poderoso que qualquer combustível à base de petróleo.
Com um sorriso gigante no rosto e as batidas do seu coração abrindo disputa com o acelerador da moto num duelo mais do que justo, null desapareceu pelas ruas vazias, cantando um dos seus singles favoritos da Dark Paradise e calculando quantas pizzas, hipotecas atrasadas, ou um bom advogado poderia pagar com um cachê digno de um astro do rock.
Muito mais do que seis pizzas. Com certeza.
Capítulo 3
Aquele sentado na primeira cadeira batendo compulsivamente os pés... Robin tinha certeza de que já o vira antes em algum dos DVDs de trash rock alemão do Shane.
Ah, droga. Shane.
Ela não quer pensar nisso agora. Para falar a verdade, não queria pensar sobre, pelos próximos, hum... oitenta anos. Mas só para resumir, pode-se dizer que o fato envolve três protagonistas: uma cama de casal, Millicent Jones — a garçonete aspirante a atriz que trabalhava no Rainbow — e Shane, o vocalista da Red Lips e agora também ex-namorado de Robin.
Mas voltando a situação atual...
Robin estava fazendo um exercício e tanto de respiração: autocontrole, autocontrole, autocontrole... só que pela forma como suas bochechas estavam queimando era o descontrole quem estava estampado na sua cara. E seu nervosismo não tinha nada a ver com o fato de ser a única mulher ali. Mas porque não possuía nenhum terço do currículo de todos os outros guitarristas.
Ainda não acreditava que dera ouvidos a Mia. Não era um coral da escola, era a Dark Paradise, pelo amor de Deus. Os caras podiam fazer um show na Antártida que os pinguins iriam estapear-se com suas asinhas para disputar um lugar na área VIP. Onde ela estava com a cabeça em tentar uma audição dessas?
Ah, sim: a cama, Millicent, Shane.
Talvez dez anos de terapia a fizessem esquecer a posição em que flagrara os dois. Milly já havia contado que fora ginasta durante o ensino médio. Robin só não imaginava que Shane estava empenhado em verificar que a garçonete do Rainbow, que costumava adular Robin com bebidas acompanhadas de guarda chuvinhas fofos, ainda tinha flexibilidade.
Muita flexibilidade.
A porta do estúdio se abriu como um baque violento. E lá veio o candidato número vinte e nove, não muito feliz. Robin olhou para baixo. A vergonha alheia não era algo para se admirar, principalmente quando você era um dos próximos na linha do abatedouro. Disfarçou limpando os óculos de acetato, grandes demais para seu rosto. Na correria entre agredir Shane, puxar os apliques de Milly e enfiar suas coisas na mala, Robin optou por dar atenção às duas primeiras e acabou se esquecendo de dois kits novinhos de lentes de contato no apartamento de Shane. Ela costumava deixar algumas coisas lá, principalmente as que Juanita poderia classificar como uma espécie de brinquedo ou engolir achando se tratar de algum doce exótico.
Nunca iria se perdoar por isso.
— Cretino.Filho.Da.Puta! — O número vinte e nove saiu pisando duro. O mesmo que mais cedo havia se vangloriando de ter substituído o guitarrista da Dragon Frost em três shows e também ter feito parte da extinta Trolls of the Underground.
Que coisa. Eu teria apostado que a vaga era dele.
Mas o que ela estava dizendo? Eu aposto em mim, ora bolas! Em mim! Mais um pouco de otimismo, Robin, por favor!
Sol estava em Marte, lembra? Seja lá o que isso significasse.
Agora eram só ela e o moço com síndrome das pernas inquietas. E algo na forma como ele a olhou antes de entrar no estúdio fez Robin ter certeza de que o homem acreditava ser detentor de alguma vantagem pelo fato da única concorrente restante ser do sexo oposto.
Imbecil.
Ela já estava nessa há muito tempo para identificar um machista quando via um.
A porta antirruídos se fechou e ela tentou não pensar no candidato. E também não pensar na cara cética da Defensora que lhe atendeu mais cedo a respeito da intimação judicial enviada pelo pai de Juanita, ou que os juros da hipoteca atrasada estavam deixando a dívida dos países subdesenvolvidos com inveja. Que, naquele momento, ela não tinha nem o cachê da Red Lips, nem o emprego na pizzaria.
Ela já estava bolando seu currículo mental para tentar outra vaga de meio período, caso não passasse na audição. Porque sejamos francos, as chances eram essas mesmas. Mas tudo bem, na pior das hipóteses ela iria conhecer os rockeiros icônicos da Dark Paradise. Depois, de volta ao mundo real.
Precisaria de um trabalho que lhe desse flexibilidade para acompanhar Juanita quando Andreas não pudesse ficar com a sobrinha. Ah, isso foi uma das coisas que a Defensora torceu o nariz: uma criança cuidando de outra criança? Bem, Andreas tinha 17 anos e não trabalhava. Robin tinha três bocas para alimentar. O que aquela mulher que usava uma bolsa que pagava seis meses do salário de Robin esperava que ela fizesse?
Ela estava cansada de portas fechadas. Caso encontrasse uma janelinha daria um jeito de passar por ela ainda que tivesse que abdicar dos seus amados cheesecakes para diminuir a circunferência do seu quadril.
Ah, Deus... maravilhosos cheesecakes... A propósito, há quanto tempo ela estava sem comer?
E no meio de pensamentos envolvendo comida rica em gordura trans por um instante quase se esqueceu que seu nome era:
— Robin?
— Oi!
— Ei, você é ou não Robin Paganan..kos Flores? — Pela cara que o homem fez quando disse seu nome, parece que ele já o tinha o chamado algumas vezes antes que a garota voltasse da sua viagem ao mundo das sobremesas com cobertura dupla.
— Sou eu mesma. De volta do mundo da Lua, desculpe.. — Robin sorriu. Ele não sorriu de volta.
— Sou o Eddie. Trouxe sua guitarra? — O rapaz deu uma olhada para o case da velha Epiphone que certamente não valia uma ferpa dos instrumentos tocados pelos membros da Dark Paradise.
— Trouxe sim. E ah é Paganakos. Herança da parte grega da família. — Robin disse, e ele não demonstrou interesse por este e nenhum outro pormenor relacionado à sua vida. Justo. O homem andava na companhia de estrelas de rock. Quem era ela na fila do pão?
Simplesmente anotou algo em frente ao nome dela digitado junto dos outros trinta, agora riscados, e falou:
— Tá. Estão te esperando. — Ele guardou a prancheta debaixo do braço. Pela janela do corredor, Robin viu o candidato número 30 chutando a porta do próprio carro antes de abri-la. Como ela não tinha carro para chutar, desejou que o case da sua guitarra fosse bem duro, só por garantia.
— E... para o bem de todos, — Eddie batucava a caneta na palma da mão — o meu principalmente — ele deu um sorrisinho bem desesperado quando disse isso — eu espero que você consiga impressioná-lo. Caso contrário, não sei mais onde procurar um guitarrista. Em Marte talvez.
Eddie apertou o passo. Robin o seguiu. O case estava pesado e as pernas de Eddie eram compridas. Será que aquele corredor era assim tão longo ou foi sua ansiedade que o fez ficar maior? Engoliu seco:
— Quando você diz "ele", quer dizer o Brian Carter?
Eddie suspirou:
— Rá. Acredite, se fosse pelo Brian, pelo Tommy, ou pelo Dom, já teríamos resolvido esse problema há duas semanas, e você não estaria aqui agora. Nem eu, nem aqueles 30 carinhas que saíram daqui possessos antes de você. — Ele pausou diante da pesada porta de metal. Sorriu sem se preocupar em esconder uma irritação:
— Mas é o Nash. — Eddie apertou o nome do guitarrista entre os dentes como se fosse um pedaço de carne que passou do ponto e ficou borrachudo. — Ninguém é bom o suficiente para ele. O primeiro não tem ritmo. O segundo tem ritmo, mas não sabe fazer um bend decente. O terceiro se acha. o quarto quer ser um doppelgänger dele. Sim, ele usou essa palavra. E mais um monte de implicâncias. Ele parece estar fazendo hora com nossa cara.
A informação fez Robin gelar:
— Espera. O Elijah Nash também está aí dentro?
— Claro. — O rapaz respondeu como se ela fosse a maior pateta, o que de fato Robin não estava longe de ser naquele momento. — Quem achou que estivesse?
— Eu só achei que como a vaga é para substituí-lo na turnê e...
O homem lhe deu um olhar infeliz.
— E que agora ele estaria na fisioterapia ou relaxando em alguma clínica de reabilitação para celebridades problemáticas? — Eddie mesmo tratou de responder à própria pergunta. — É, nós também adoraríamos que tivesse sido assim. — O homem deu a Robin uma última olhada. — Sabe. Você poderia ter vestido algo que te fizesse parecer mais sexy para te ajudar na audição.
O sangue de Robin ferveu no mesmo instante que foi empurrada para dentro do estúdio. A porta se fechou atrás dela antes de ter certeza se o tal Eddie lhe desejou boa sorte depois da declaração babaca. Robin deve ter ficado olhando para a maçaneta por um bom tempo até escutar alguém pigarrear.
E então ela se virou e os viu.
Caramba. Ok. Aquilo precisava de ao menos cinco segundos de contemplação visual. Naquele momento, Robin não era apenas uma candidata na iminência de uma entrevista de emprego. Emprego dos sonhos, diga-se de passagem. Era uma fã diante dos ídolos cuja boa parte das músicas sempre vinham como pedidos escritos nos guardanapos dos pubs que costumava tocar com a Red Lips.
Ai Meu Deus.
— Olá... — A chance de gaguejar reduzia significativamente com o uso de apenas uma palavra. Território seguro. Mas a cara dela foi semelhante a de uma milionária viciada em sapatos no primeiro dia de liquidação de uma franquia da louboutin porque os três trocaram sorrisos antes de Brian Carter, o vocalista , dizer:
— Então... Robin. Puxa. Você... é uma garota.
Ele se deu conta do óbvio com um balançar vagaroso de queixo. Os olhos de Robin involuntariamente seguiram aquelas belas íris verdes. Será que o homem sabia que aquilo causava um efeito hipnótico? Que tola. Recomponha-se, mulher, você não tem chance. Na verdade, o mundo inteiro sabia que o vocalista era comprometido. Uma garota de algum país sul-americano. E alguém que fazia com que Brian Carter se declarasse ao vivo em um show e finalizasse o gesto com um inusitado stage diving, tinha o respeito de Robin.
Além disso, sabe aquela menina de pernas longas, corpo esguio, cabelos com o balanço perfeito e um nariz do tipo que você pede para o cirurgião plástico fazer igual? "Pois é, não sou eu. Essa é a Mia. Eu estou mais para aquele tipo que não se destaca na multidão. O patinho feio. Sem nenhuma perspectiva real de um dia virar cisne."
Mas Robin fez algo sábio para o momento e deixou seus devaneios relacionados a crises mal resolvidas de autoestima de lado para respondê-lo, confiante. Se havia algo que aprendeu quando resolveu fazer da música uma das suas paixões foi não deixar que questões de gênero pudessem interferir em quão boa ela poderia ser independente do que havia entre suas pernas:
— Até a última vez que conferi, sim. Há.. algum problema nisso?
Brian Carter gargalhou. Tommy e Dom acompanharam o gesto. Acho que Robin mereceu uma medalha de bravura por ter conseguido se manter de pé depois daqueles três sorrisos perfeitos. Que tiro triplo.
— Nenhum. Eu não tenho nada contra garotas. Pelo contrário, as adoro... — Brian deu uma piscadinha. As pernas de Robin oscilaram por um segundo. — Você tem algo contra garotas, Tommy?
— De forma alguma, Brian. Não mesmo.
Tommy Morello, o baixista da banda, correu os dedos pelo cavanhaque. Ok. Homens com barba. Quem precisava deles? Ao que parece, Robin. De preferência, deitados totalmente nus na sua cama. Ha-ha. Mas o aro dourado e grosso no seu indicador fazia com que qualquer remota possibilidade de que o homem com ascendência italiana pudesse lhe preparar uma pasta usando apenas um avental minúsculo continuasse a existir apenas na sua imaginação.
— E você, Dom? Vai dizer que tem algo contra? — Tommy perguntou.
Bela pele escura, cabelos cacheados, ar sexy e soturno: Dominic Wilde. Ele estava brincando com um piercing no canto do lábio. Seria atrevimento se Robin pedisse para tocar? Ele todo, não só aquele detalhe provocante. Parecia tão distraído. Ela sabia que o homem havia saído da reabilitação há pouco. Não devia estar sendo fácil.
Mas que venha a dura e cruel verdade. A única chance dela receber olhares interessados de astros do rock seria se estivesse confinada com eles em uma ilha deserta no meio do Atlântico. Entretanto, levando em consideração sua tendência ao azar, bem provável que sereias safadinhas surgissem na tal ilha no primeiro dia e acabassem com sua festa.
Mas uma garota podia sonhar...
E ela tinha muito material de qualidade ali.
— Não. — Wilde lhe deu um sorriso para atenuar sua típica cara de garoto mau. — Mas claro, que isso não vai contar pontos a seu favor, doçura.
— Ótimo. Porque não preciso que conte. — Robin devolveu o sorriso.
Não que quisesse abusar de uma repentina confiança, mas ela sabia que já estava sendo testada desde que entrara por aquela porta. Eles se entreolharam e Robin captou certa aprovação no olhar dos três.
— Bem, Robin. Vamos começar? Pode plugar sua guitarra, o cubo já está ligado. — Carter disse.
Ah, sim. Ela estava se perguntando onde estava Elijah Nash, o guitarrista da banda. Tão frequente nas páginas das melhores revistas de música como o deveria ser nas estatísticas sobre roqueiros baderneiros da polícia de Los Angeles. Mas Robin tinha que dar um crédito ao homem porque se não fosse seu último feito, Elijah não teria quebrado o braço esquerdo e ela não estaria ali.
Elijah não era canhoto, mas todos os arranjos e acordes eram feitos com essa mão. Então podem calcular o tamanho da merda que isso representava para um guitarrista destro. Somem ao fato da banda estar com a turnê do sexto disco marcada para daqui menos de cinco meses e a situação não era apenas um mero incoveniente, mas um sem número de contratos milionários quebrados.
E agora que a sala de espera estava vazia, e Robin tinha quase certeza de que não existia guitarristas em Marte, para desespero do tal Eddie, ela era a última esperança deles.
Quanta responsabilidade.
Um barulho de descarga vindo da portinha no canto do estúdio atraiu-lhe a atenção. Robin encarou os três rapazes tempo suficiente para perceber o olhar que trocaram entre si.
Então a porta se abriu e ela ouvi a voz antes que o homem apontasse o corpo para fora. Robin não teve dúvidas que aquele timbre grave pertencia ao responsável pelos back vocals da Dark Paradise:
— É uma merda fechar o zíper com essa porra de gesso no braço. Quer vir aqui fechar para mim, Dom? — O homem solicitou com uma risada sarcástica.
Brian e Tommy sorriram para os papéis sobre a mesa. Dominic revirou os olhos e gritou de volta:
— Controle sua boca suja, Nash. Temos damas aqui.
Alguns segundos de silêncio inquietante.
— Damas?
O homem ainda estava terminando de fechar o botão da calça quando apareceu. E aqui, Robin devia admitir, o mundo provavelmente parou e a cena que se seguiu ficou para sempre marcada na sua mente. Uma palavra: Deus.Do.Céu. Ok, são três. Mas Robin não estava contando direito. E nem respirando. Claro que ela já tinha visto Nash. Não ao vivo, mas nos pósteres, nos clipes, nas gravações de shows que assistia pelo Youtube e também nos seus sonhos mais loucos. Portanto, era incrível como Elijah Nash conseguia superar ainda mais todas as expectativas ao vivo.
Não tinha um solo de guitarra em que ele não se destacasse. Nash era uma inspiração. Vê-lo tocar era como assistir um deus executando o ato mais sublime de toda criação musical. Estava entre os cinco guitarristas mais conceituados da lista de Robin. Mas naquele momento, ela nem lembrava quem eram os outros quatro, porque no quesito aparência física, senhor...
O homem era soberano.
Seu inquisidor, que certamente acabaria com ela nos próximos minutos, tinha olhos azuis densos como um mar perigoso no qual garotas se afogariam com prazer, cabelos loiros e repicados que desciam até bem abaixo dos ombros e lábios carnudos de prostituta. Com um rosto daqueles, Elijah nem precisava de muito mais, mas ele tinha o pacote inteiro: ombros largos, músculos definidos e muita altura também. Muita coisa em excesso. Superlativos não conseguiriam cumprir bem o seu papel ali. Inventem logo outra palavra, porque o homem merecia um dialeto inteiro.
Não. Não, não mesmo. Robin já estava vacinada contra tipos assim; roqueiros. Hunf. Tudo em Nash era um indicativo para que as pessoas se afastassem. Até aquelas tatuagens colorindo sua pele pálida. Era como um daqueles anfíbios venenosos: cores chamativas indicando perigo.
Robin conseguiu voltar seu queixo para o lugar quando Nash terminou de processar a informação recebida e sua cara de surpresa evoluiu para um sorriso irônico:
— Vocês estão de sacanagem com a minha cara. Esse era o tal Robin?
Ninguém respondeu. Tommy fez um sinal para que Robin prosseguisse com a montagem da aparelhagem de som. Ela assentiu e depois não ousou levantar o olhar. Continuou encarando o chão vermelho encarpetado do estúdio do qual recendia um cheiro almiscarado de produtos de limpeza.
— Ei. Você.
Os cabos da guitarra de repente ficaram pesados na mão dela.
Robin tinha certeza de que ficara vermelha. Não se importaria caso entendessem como um sinal de nervosismo. Melhor do que pensarem que o maldito estava lhe causando sintomas involuntários no seu corpo. Hormônios estúpidos. Não é porque um cara é atraente, famoso, e poderia substituir Thor nas férias Asgardianas que os danadinhos precisavam ficar assim todos animados. Esquecem o estrago que Shane fez recentemente com a sua pessoa, e, antes disso, Peter: seus dois ex que certamente eram incipientes na arte da canalhice comparados ao guitarrista.
Claro, isso sendo extremamente otimista e pensar que ela teria um por cento de chance com o astro do rock que poderia escolher uma modelo renomada por semana. Ou por dia.
— Sim? — Respondeu, 4567 minutos depois.
Ele a encarou. Fezes de cachorro no meio da calçada teriam recebido um olhar mais afável.
— Como descobriu o teste, hum? Quem te indicou?
— Foi... o Travis.
— Meu técnico de guitarra? — Elijah pareceu surpreso. — E de onde você o conhece?
— Na verdade, quem o conhece é a minha amiga, ela mostrou alguns vídeos e o Travis achou que podia dar certo. Eles têm... colegas em comum, eu acho.
Elijah cruzou os braços e balançou a cabeça devagar.
— Travis, Travis... sempre colocando os interesses das calças à frente dos negócios da banda. — Ele pegou uns papéis sobre a mesa: o currículo de Robin. O folheou fazendo a mesma cara de um professor exigente de ensino médio.
Um professor absurdamente sexy, diga-se de passagem.
— Ok, Robin "Panakas". — Ele franziu as sobrancelhas depois de ler o nome, os olhos ainda fixos nos papéis. — Que raio de nome é esse?
— Pa-ga-na-kos. Paganakos. É grego. Mas não uso tanto esse sobrenome, pode me chamar só de Flores. Robin Flores.
— Uau. Aqui diz que você é formada em violão clássico.
Elijah ignorou o histórico do sobrenome da garota e começou pela única informação realmente relevante no currículo. Robin tinha orgulho dela e por isso sorriu confiante. Era estranho pensar no rumo que sua vida tomou. Antes era uma musicista com uma carreira promissora estudando em uma das melhores escolas dos Estados Unidos, então veio Peter e a gravidez não planejada. E agora entregava pizzas enquanto seus colegas deveriam estar se apresentando em orquestras pelo mundo.
— Sim, eu sou.
— Sabe o que eu acho de escolas de música? — A boca dele era uma linha sem expressão. — Perda de tempo. Querem ensinar como ciência algo que é puramente artístico. Dom ou você tem, ou não tem.
Claro que ele achava. Robin não contra-argumentou. Seu belo algoz continuou correndo os olhos pela folha, sussurrando: "Lixo. Lixo. Lixo." para as letrinhas digitadas ali. Até que:
— Experiência na área você colocou uma banda chamada Red Lips. De uma escola clássica para o hard rock. Grande mudança. — A testa de Elijah se enrugou e um vinco se formou entre suas sobrancelhas. — Red Lips... Eu nunca ouvi falar.
Ela atrapalhou-se um pouco para dizer:
— Bem, na verdade, nunca tocamos fora de LA. Mas estávamos indo bem. Tínhamos boas músicas autorais.
Dominic continuava com os rabiscos circulares incessantes e Robin achou que o propósito de Tommy ter colocado óculos escuros foi para disfarçar e tirar um cochilo. Estavam fazendo aquilo há mais de quatro horas, era normal que estivessem cansados. Brian levantou-se para esticar as costas e perguntou:
— Mas, Robin, então por que largar sua banda para ser guitarrista substituta? Sabe que esse contrato tem duração de apenas cinco meses, não sabe? Não tem medo de que eles coloquem outra pessoa em seu lugar?
E ela nem pensou antes de dizer:
— Porque meu ex é o vocalista da Red Lips e há quase três semanas o peguei na cama com outra.
Tommy subiu os óculos, Dom parou imediatamente os rabiscos, e acho que o sorriso de Brian foi de admiração: informação demais.
Elijah apontou o braço na direção de Robin e mesmo de longe ela enxergou praticamente uma lista telefônica de nomes femininos anotada no gesso.
— Bem, devo admitir que para uma garota, você tem colhões. — Ele arrastou uma cadeira e se sentou. — Vai lá. Manda ver. Vamos ver se você é boa mesmo.
Acreditem, por mais que você se prepare para um momento desses, nunca se está preparada o suficiente.
— O que... querem ouvir?
Nash ergueu as sobrancelhas.
— Nos diga você. Não tinha algo preparado? — Sua evidente descrença em Robin ganhou força. Deve ter repassado os 30 candidatos anteriores um a um que muito provavelmente vendaram os olhos e tocaram de cabeça para baixo apenas para impressionar.
— Tá... Certo.
Havia um pout pourri que a Red Lips costumava tocar antes do primeiro intervalo dos shows e que sempre fazia o público ir a loucura. Era uma mistura de solos de bandas famosas: Led Zepplin, Judas, Guns, Aerosmith, Skid Row, Mr. Big, Dark Paradise... Bom rock para todos os gostos. Robin fechou os olhos e por um instante tentou esquecer de que naquele momento seu público era formado por quatro dos maiores músicos da atualidade.
Deixou que as notas da guitarra falassem por ela. Foi transportada para um território seguro, no qual poderia demonstrar todas suas técnicas com precisão. Sem falsa modéstia, ela era boa. Muito boa. Ainda que a Red Lips hoje estivesse dizendo o contrário.
E ali naquele estúdio estava sua grande chance.
Como ela disse, chega de portas fechadas.
Não deve ter gastado mais do que dez minutos. Quando Robin terminou, viu três olhares de aprovação implícita: Tommy, Brian e Dom. As palmas vieram em sequência. O sorriso dela era de orelha a orelha, até encarar Nash.
Ele balançou a cabeça, sua boca estava retorcida e a expressão era de quem acabara de chupar um fruto azedo:
— Medíocre.
Robin ficou muda.
— Você toca como um robozinho. Totalmente sem paixão! — O homem bateu a mão contra o peito, no lugar onde deveria estar o coração acaso tivesse um. O desprezo emergia junto de cada palavra que saia de sua garganta. — É ISTO que essas malditas escolas de músicas fazem com as pessoas! Transformam elas nesta coisa patética que vocês acabaram de ver.
O quê?!
O cara era um babaca completo.
Dom que batia os dedos ritmadamente sobre o tampo da mesa (mania de baterista) deu um suspiro de quem há muito já perdera a paciência:
— Já chega, Nash. Já chega! Todo mundo tá de saco cheio. A garota é boa. Tão boa quanto trinta outros caras que dispensamos por mero capricho seu. Não tem mais ninguém na sala de espera. Já podíamos estar ensaiando as músicas novas da turnê, e não perdendo tempo. Meu voto é que ela fica.
— Por mim também. E não quero soar sexista, mas acho que o fato de ser uma mulher pode ajudar com a aceitação do público. — Tommy disse com uma piscadinha direcionada para Robin.
Os lábios dela escreveram um "obrigada" para os dois sem emitir som.
Robin viu a esperança crescer nos semblantes de Morello e Wilde quando ambos encararam Brian. Elijah Nash mantinha a carranca. Com um pouco mais de esforço, o olhar que ele dirigiu para o vocalista poderia tê-lo desintegrado em pedacinhos. Encantador.
Segundos de suspense. Aqueles homens eram tão bonitos que poderiam enxotá-la dali agora que Robin agradeceria com prazer.
— Que se dane, Nash. — Carter ignorou a cara feia do colega. — Quero a garota com a banda.
E ali Robin vivenciou o ápice de toda sua existência. Escutou um grito de alegria, provavelmente o dela, e achou que estava prestes a começar chorar.
— Então.. eu estou dentro!?
Três a um certo? Nash era voto vencido. Pelo menos ela estava convencida disso até que:
— Ei! Quem disse que tem votação? Isso aqui não é uma democracia, bebês. A palavra final é minha. Eu que fiz merda, eu faço a porra das músicas e o salário do substituto vai sair do meu bolso. Então calminha aí, ajudante do Batman, que quem decide aqui sou eu. — O diabo loiro falou e foi caminhando até Robin.
De longe, Nash era tão bonito quanto uma obra de arte. De perto, ele era ainda melhor do que visto de longe.
Robin teve que se inclinar para olhar dentro dos olhos dele. Cacete. Alguém a segure se ela ameaçar cair. O cara podia muito bem trabalhar alimentando girafas no zoológico.
— Conhece Wildest Warm? — o hálito dele tinha o cheiro da goma de mascar que ele apertou entre os dentes enquanto falava com ela. Menta.
— Claro. É faixa do segundo disco de vocês. Composição sua.
Ele balançou a mão dispensando o relatório completo para uma pergunta que exigia apenas sim ou não como resposta. Deu um aceno com o queixo para a guitarra de Robin.
— Improvisa um solo para ela.
Robin pensou por um breve instante.
— Não preciso improvisar. Eu sei de cor.
— Legal. Bom saber que você sabe copiar minha assinatura, mas agora quero que improvise. — Ele deu as costas e recuou alguns passos. Depois se virou. — Pode começar.
Robin demorou uns instantes. Precisou processar a informação. Então pegou a guitarra, começou a dedilhar a base. Ok. Nada mal. Fácil. Mas quando chegou na parte do solo ela travou. Nada lhe veio a mente. Tentou mais uma, duas vezes. Errou e se atrapalhou toda. No fim arranhou algo, mas nada que fosse digno de ser notado.
Clap... Clap... Clap...
As palmas espaçadas de Elijah Nash pararam tão depressa quanto começaram.
— Obrigado por nos fazer perder tempo, Robin Panaka. — Retirou um cigarro do bolso, usando a mão boa para acendê-lo. Depois soprou um baforada de fumaça que fez os olhos dela arderem.
— Quando o Travis levar um esporro por ter permitido que uma garota sem experiência brincasse de ser guitarrista profissional, espero que sua adorável amiguinha possa confortá-lo.
Sem olhar para trás, o homem caminhou em direção à saída. A porta bateu em seguida.
Então com um sorriso complacente nos lábios, cuja única intenção foi a de fornecer conforto, Tommy disse:
— Bem....Agradecemos sua presença, Robin. Temos seu número. Qualquer coisa, entramos em contato.
Continua...
Nota da autora: Quero agradecer de coração pelos comentários lindos que recebi nos últimos capítulos! 🥰
É muito gratificante já ter o prazer de ler as percepções de vocês logo no comecinho da história.
E, claro, um agradecimento especial à Ayleen — além de ser essa scripter super competente, ainda me dá a honra de compartilhar suas impressões sobre a fic. Isso significa muito pra mim! 💛
Convido vocês a acompanharem as atualizações no grupo Fics Tatá Ribeiro, e também pela planilhinha de atualizações da Ayleen, que está sempre disponível no final da página.
Um beijo enorme e até a próxima!
Com carinho,
Tatá Ribeiro.

Outras Fanfics:
🎸 Não Conte aos Paparazzi
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🎸 Não Conte aos Paparazzi
Nota da Scripter: Eu odeio (e amo) o fato do Nash ser loiro porque isso me atinge em níveis que nem consigo descrever kkkkkkkk. E O QUE FOI ISSO? Ele sendo um completo idiota me deixou com tanta raiva que, agora, vou precisar de mais pontinhos positivos dele pra compensar esse. Como sempre, amo o capítulo maravilhosamente bem escrito, o enredo envolve e a forma que você encanta com suas palavras. Obrigada, Tatá ♥
Qualquer erro no layout dessa fanfic, notifique-me somente por e-mail.
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