Última atualização: fevereiro/2023

Prefácio

Aquele era um péssimo dia para uma reunião emergencial que eu nem sabia do que se tratava. Bem à meia-noite daquele dia dez, mercúrio retrógrado havia entrado em ação. Minha ansiedade era tanta só de saber daquele ilustríssimo fato, e ela não me deixou por bastante tempo até eu conseguir dormir tarde da madrugada. Quando meu despertador tocou no horário, me permiti dormir um pouco a mais do tempo que deveria, e isso me resultou num atraso de pelo menos trinta minutos. Corri pelos corredores numa tentativa frustrada de me fazer chegar “cedo”, e suspirei quando observei através da parede de vidro que faltava bastante gente chegar.
Ufa. Dessa vez o universo deve ter me ajudado.
— Estou no escuro aqui, sobre o que exatamente é essa reunião? — perguntei ao me sentar ao lado de Patrick, meu chefe.
— Salvação do contrato mais caro que essa empresa já viu — ele cochichou, olhando para os lados, verificando se ninguém tinha ouvido.
— É um filme? — perguntei, curiosa.
— Uma cinebiografia — ele falou mais baixo que da última vez, eu não estava entendendo o porquê de todo aquele suspense. E isso só me instigou mais a perguntar.
— Nossa, parece alguém importante, então. Você sabe quem é?
— Lewis Hamilton — Patrick falou por último.
Eu estava em estado de choque, porque não conseguia entender como uma produtora mediana havia conseguido um contrato daqueles. Desde que me enfiei naquela empresa – literalmente, pois ainda sou uma mera prestadora de serviço –, não tinha esbarrado com ninguém tão famoso. E apesar de considerar Cobie Smulders muito importante na minha trajetória humana, eu sabia que seus anos de glória haviam sido quando estrelava a desapegada Robin Scherbatsky em How I Met Your Mother.
A grande mesa retangular de vidro mantinha todos reunidos, apenas aguardando a chegada do piloto. Era engraçado perceber que talvez eu estivesse menos arrumada comparado ao restante dos funcionários, porque aparentemente cada um escolheu a roupa mais elegante que tinha no guarda-roupa para esse encontro.
E eu estava literalmente menos arrumada, porque mal vestida eu nunca estava.
Algumas conversas paralelas podiam ser ouvidas, mas a maioria das pessoas estavam caladas, com feições aflitas e ansiosas, já que todos sabiam dos riscos e sentiam o peso do contrato em seus ombros. Os murmúrios cessaram pouco a pouco quando vozes do lado de fora do cubículo de vidro ficaram mais altas e, de repente, toda a sala ficou em silêncio.
— Bom dia, pessoal! Sou Lewis — o piloto nos cumprimentou, e todos responderam seu bom dia em uníssono.
Como em qualquer dia do ano, ele aparentava estar em uma passarela. Sua vestimenta era simples, porém, Lewis conseguiu torná-la impecável. Vestia uma calça jeans de lavagem clara, destruída na bainha, e uma camiseta básica da cor mostarda. Ele logo se dirigiu para a ponta da mesa, bem em frente ao telão.
O roteirista principal da empresa logo se dirigiu para a frente do telão, ajeitando o paletó ao seu corpo, como se estivesse desconfortável com o discurso genérico que estava prestes a fazer.
— A grande ideia do projeto é fazermos um passeio pela sua carreira enquanto exibimos seus principais rivais em todas as modalidades que você correu, num formato de Drive to Survive* — Richard começou explicando enquanto trocava as imagens exibidas na tela. Nela continha Lewis em alguns pódios com outros pilotos que tiveram embates fervorosos com ele durante sua carreira. — Teremos os depoimentos da sua família, contando um pouco da sua trajetória na infância e como eles lhe apoiaram todo esse tempo — ele continuou, e dessa vez, fotos do piloto em momentos fora das pistas com seus familiares eram exibidas. — Além deles, teremos as equipes McLaren e Mercedes para contar um pouco do seu envolvimento com as escuderias.
Uma grande pausa feita por Richard deixava claro que o que ele havia imaginado para o documentário fora apenas aquilo. Todas as cabeças existentes fizeram menção para observar a reação do Lewis. Uma linha fina estava presa em seus lábios, demonstrando zero sinal de aprovação ao se deparar com o que tinha acabado de assistir, além de transmitir uma intensidade no olhar que gritava crítica.
— Era isso? — o piloto perguntou para Richard num tom desdenhoso.
— Be-bem, sim — o roteirista gaguejou em claro sinal de medo pelo que viria a partir dali.
— Bem, eu estava esperando algo a mais — Hamilton pausou como se estivesse procurando as palavras certas. — Eu não quero que vocês mostrem meus rivais, afinal, o documentário não é sobre eles. Além disso, a ideia de Drive to Survive não me agrada em nada, porque toda a trama é criada para forçar uma rivalidade inexistente. Você pensou em algo mais?
A sala ficou silenciosa por alguns segundos. Todos se entreolharam porque não havia um plano B, nem mesmo um plano C. Estaríamos completamente fodidos se não houvesse nenhuma outra ideia para fazer o piloto aceitar aquele documentário. O nervosismo parecia atravessar os poros de todos, mas aquilo despertou em mim uma onda de risos que eu não consegui controlar. E vinha cada vez mais alto e forte. Todas as pessoas me olharam como se eu fosse louca, e talvez eu fosse.
— Eu falei algo engraçado? — Lewis perguntou com uma fala arrastada, confuso com a razão da minha risada.
— Me desculpe, mas não. Perdão. É só que… — falei pausadamente, tentando encontrar as palavras certas, fazendo minha mente ganhar tempo para respondê-lo.
— … Que essa ideia é patética, certo? — ele completou meu pensamento. Sua voz reverberou pelo ambiente, deixando todos tensos.
De repente, percebi a mancada que eu havia dado. Eu era a única mulher da sala. Isso significava que eu ia daqui direto para a porta da rua. Todos agora tinham seus olhares julgadores para mim, esperando uma resposta digna de alguém muito corajosa.
— É, na verdade, sim. Esse script limita toda a sua trajetória de vida em um único tópico. Entendo que mostrar as rivalidades que você teve dentro do esporte atrairia olhares curiosos, mas você vai ser resumido a isso — comecei falando; percebi que tinha atenção dele, então continuei. Aquilo estava funcionando. — Lewis, você tem um papel social gigante, dentro e fora das pistas. Seu nome é mencionado em todos os cantos, inclusive no mundo da moda. Para mim, você é um artista nato! Esse documentário tem que ser sobre você e mais ninguém.
— Qual seu nome?
Travei com aquela simples pergunta. Qual nome meu pai havia me dado, mesmo?
— respondi séria, como se alguma parte da minha postura segura ajudasse naquele momento de conflito. Hamilton continuava com uma feição de poucos amigos, aquilo não poderia ser nada bom.
— Pessoal, ficará à frente do projeto, caso contrário, não teremos documentário — Lewis determinou com o único sorriso que deu desde que entrou naquela sala.

*Drive to Survive é uma série documental produzida pela Netflix juntamente com a Fórmula 1, onde mostra os bastidores dos pilotos e da corrida durante o Campeonato Mundial de Fórmula 1.


1.

Essa minha constante busca pela beleza e profundidade das palavras finalmente teriam algum propósito. Finalmente todos, que de alguma forma viessem a cruzar os meus caminhos roteirísticos, iriam enxergar a vida pelas minhas lentes. Esse era meu principal objetivo de vida, o meu meio do céu, o ponto alto do meu mapa astral. O segundo, se houvesse, eu ainda viria a descobrir.
Todas as pessoas têm algo para comunicar ou para transmitir. E apesar de toda linha de apoio e estrutura organizacional de uma obra cinematográfica fossem importantes, eu acreditava que, de todo aquele cenário, o papel mais importante ainda era do roteirista. Não estou querendo puxar sardinha para o meu lado, estou apenas assegurando um fato. Afinal, se algo não estivesse escrito com todas as nuances, nunca estaria nas telas de forma correta.
E era por isso que eu queria fazer aquilo. Mesmo que meu rosto não brilhasse nos holofotes, minhas palavras brilhariam.
— O que você sabe de Fórmula 1? — Patrick indagou assim que fecho a porta de vidro. Eu entendia absolutamente nada, mal conseguia trocar um pneu de um carro, avalie entender sobre um esporte a motor.
— Praticamente tudo, tenho uma paixão ávida por carros! — forcei um sorriso, tinha certeza que ele acreditaria em mim. — Mas para algo desse nível, eu teria que fazer algumas pesquisas, claro — concluí, observando o homem suspirar e coçar parte sua nuca, inquieto.
— As pessoas estão enlouquecidas com o que você fez na sala, . Você tem a obrigação de escrever um puta roteiro! — ele aumentou a voz, me fazendo temer meu futuro.
— Bom, Lewis iria abandonar o projeto de qualquer jeito. A empresa deveria agradecer pelo meu atrevimento — dei a única resposta possível.
— Eu sei disso — ele passou a mão na sua careca, ajeitando os três fios de cabelo restantes.
— Não foi minha intenção causar esse burburinho todo, sabe? — menti. — Ah, na verdade, foi sim! Um projeto merda desses… Richard deveria ter vergonha de mostrar aquilo pro Lewis. Eu…

— Oi — suspirei, esperando minha demissão.
— Se você conseguir fazer esse projeto andar… — ele começou falando calmamente, enquanto eu me preenchia de esperança. — … Eu crio uma vaga de Roteirista Júnior. Não é o que você queria?
O que eu queria? Porra! Aquilo era o que eu mais almejava na vida, mesmo que numa vaga júnior.
Patrick representava muitas coisas naquela empresa, e uma delas era uma figura paterna para mim desde quando nos conhecemos. Em uma das milhares palestras que participei durante meu mestrado em roteiros, ele simpatizou comigo quando fui a única a me posicionar contrária a estruturas convencionais de roteiros, e me ofereceu um estágio no final daquele dia. Apesar de ter conquistado uma bolsa de estudos, eu também trabalhava na cafeteria da universidade para ter alguns luxos no fim do mês.
Quando olho para trás, não consigo acreditar como consegui aguentar aquilo por tanto tempo, até porque Patrick me fazia muitas exigências, mas eu sabia que tudo aquilo seria para uma honraria maior. No final do estágio, ele me ofereceu uma vaga para ser sua assistente de produção, na esperança de um dia poder ser contratada como roteirista.
— MEU DEUS! — corri em sua direção, o abraçando forte. — Você não vai se arrepender! Obrigada, obrigada, obrigada.
— Tá bom — ele se afastou, odiando aquela intimidade toda —, agora precisamos nos mobilizar para que isso saia perfeito. Já que você é familiar com a Fórmula 1, tire o resto da semana para estudar sobre o Hamilton. Você precisa estar pronta para documentar a vida dele. Entendeu? — ele terminou de falar e eu travei um pouco. Meu coração iria sair pela boca a qualquer momento.
— Perfeitamente!
— Enquanto isso, vou entrar em reunião e vejo como tudo vai seguir daqui.
Assenti e saí da sala.
Eu estava ferrada.
Eu genuinamente tinha me colocado naquela situação que, por incrível que pareça, não gostaria de sair dela. Oportunidades não caem do céu, principalmente para pessoas como eu. Só eu sabia o quanto dei um duro danado para chegar naquela cidade, enfrentar as adversidades e me colocar naquela empresa. Mas ainda tinha muitos obstáculos até chegar no meu objetivo, e se mentir sobre um assunto me levaria até ele, então era isso que eu faria. Não poderia deixar essa chance escorregar pelos meus dedos. Então eu contaria uma mentirinha ou duas.
Caminho em passos largos até minha mesa, desligo o monitor do computador, pego a bolsa e rumo para casa, desesperada para alimentar minha mente sobre o mundo automobilístico.
Durante meu trajeto, eu sempre tinha tempo para divagar sobre ideias de futuros projetos que só existiam na minha imaginação – pelo menos, por enquanto. Mas, naquele momento, o que predominava meus pensamentos era que talvez eu pudesse ligar para a única pessoa que eu tinha certeza que daria uma aula sobre aquele assunto, sem que eu precisasse implorar muito para isso. Deslizo a tela pela lista de contatos e aperto o verde. Sua voz ecoa nos meus ouvidos e eu sorrio em resposta.
— Oi, painho. Benção.
Alô, ! Minha filha, Deus te abençoe. Como você está? — ouço a voz serena dele, acalmando meus anseios como ele sempre fazia. A saudade parecia apertar mais agora do que nunca.
— Estou com saudades. Liguei para contar uma novidade. Vou finalmente ter a oportunidade de ser roteirista.
Ah, eu sabia que conseguiria! Você sempre foi muito criativa. Lembro quando fez uma peça de teatro sobre como eu e sua mãe nos conhecemos. Você nos fez ensaiar as falas que criou, tudo perfeitamente pensado — ele se lembrou com orgulho. E pelo seu tom de voz, eu tinha certeza de que estava sorrindo.
A configuração de uma família quando se é filha única resulta numa conexão mais intensa. Minha mãe sempre soube tudo sobre a minha vida. Chegava até ser bizarro o fato de eu nunca ter mentido para ela sobre qualquer coisa, principalmente na adolescência, quando mentir se torna parte da nossa personalidade. E com meu pai não era diferente, mas eu sentia que de alguma forma tínhamos um vínculo exclusivo, e ele sempre conheceu muito bem meus interesses e aspirações, talvez mais do que minha mãe.
— Eu sempre fui uma criança meio mirabolante das ideias — ri ao me lembrar de todas outras peripécias que eu inventava na infância. — Mas ainda trabalho como assistente de produção, e agora surgiu uma oportunidade de escrever esse roteiro. Se eu conseguir que nosso cliente se interesse, vou conseguir uma vaga de Roteirista Júnior.
Tenho certeza que você vai se sair muito bem, filha. E sobre o que é o filme? — perguntou com um tom suave que sempre usava quando demonstrava atenção no que eu falava.
— Na verdade, é um documentário sobre a vida do Lewis Hamilton. A trajetória da sua infância até se tornar um dos maiores pilotos da Fórmula 1.
Ele realmente é o maior de todos os tempos. Depois do Senna, óbvio! — Eu ri com sua ênfase. — Não sabia que estava interessada em roteiros de documentários.
O senhor Francisco nunca deixaria de falar do piloto favorito dele. Isso de alguma forma me transportou para a minha infância, quando, nas manhãs de domingo, eu estava enrolada num lençol junto a ele no sofá assistindo às corridas. E nunca, em hipótese alguma, ele pararia de reclamar sobre como sentia falta dos tempos do Senna.
— Eu não estava realmente procurando esse segmento, mas surgiu a oportunidade e eu agarrei, sabe? Não poderia deixar essa passar. Mas, pai, você não quer me falar sobre o esporte? Sinto que não sei muito sobre e você sempre gostou tanto, achei que poderia me ajudar nessa.
Claro que sim, com todo prazer, meu bem — ele pigarreou antes de iniciar sua aula. Ri silenciosamente, porque era algo que ele sempre fazia quando tentava me ensinar matemática. — Veja, pra que você entenda, existem várias categorias do automobilismo, mas a mais popular e mais avançada é a Fórmula um. É onde tem os melhores pilotos, que vieram de outras categorias menos famosas — ele começou explicando. Meu notebook já estava aberto em um documento para escrever todas aquelas informações básicas.
— E são quantos pilotos no total?
São vinte pilotos distribuídos em dez equipes.
— Nossa, mas tem muita gente na pista, e raramente se ouve falar em mais de dois ou três nomes.
É porque sempre tem aqueles que se destacam mais, tanto pela sua habilidade, quanto pela sua equipe.
— Faz sentido, mesmo. Mas e a equipe também entra na competição?
Sim, eles participam do campeonato de construtores. Cada vez que os pilotos pontuam, a equipe também pontua. Então, é claro que o objetivo da corrida é ganhar, mas além disso, é importante que o piloto chegue até a décima colocação para reunir pontos para sua equipe.
— Tá, deixa eu ver se entendi. Nem sempre ganhar uma corrida é importante?
Mais ou menos isso, mas todo mundo quer ganhar. Hoje em dia, a categoria é basicamente uma combinação perfeita entre habilidade do piloto, estratégia da equipe e tecnologia do carro.
— Nossa, tudo parece complexo para mim. Era melhor quando eu acreditava que eles usavam nitro como em Velozes e Furiosos.
Ouvi a gargalhada gostosa do meu pai, como ele sempre fazia quando eu citava isso no meio de uma corrida.
Eu sempre te disse que esse filme era uma mentira completa.
Apesar de saber que tudo era uma mentirada, sou fã da franquia Velozes e Furiosos. Sim, esse era um desvio da minha personalidade, mas eu não tenho vergonha de admitir. E digo mais, não existe filme maior e melhor do que o desafio em Tóquio. Eu ainda sonho em poder fazer um belo drift.
— Tá bem, agora acredito nisso. Mas, painho, como era na época do Senna?
Ah, aqueles sim eram anos de ouro! Não existia essa tecnologia toda nos carros. Era praticamente tudo sobre a habilidade dos pilotos. Hoje em dia eles têm muitos recursos eletrônicos e aerodinâmicos.
— Agora eles usam nitro, eu tenho certeza! — eu disse, ouvindo novamente a risada do meu pai.
Não querendo ser um velho ranzinza, mas no tempo do Senna havia pilotos muito bons, que competiam pau a pau com ele, sabe? Sinto que existe uma zona de conforto quando se tem o melhor carro. A competitividade não existe como antigamente, o que torna tudo muito monótono.
— Ah, pai, deve ter sido emocionante acompanhar tudo isso do começo! Você fala com tanto amor desses tempos. Qual sua lembrança mais vívida de uma corrida?
Tenho muitas, mas uma que eu nunca vou esquecer foi de quando arrastei sua mãe para assistir comigo em Interlagos em 91. Foi a primeira vez que ela me viu bêbado desde que começamos o nosso namoro.
— Não acredito! Coitada de mainha — gargalhei ao me lembrar da relação disfuncional deles.
Toda família era um pouco disfuncional, era um fato, e se a sua não for, talvez não tenha olhado com tantos detalhes ao seu redor. Como casal, Francisco e Rosa eram incrivelmente opostos, com anos de diferença um do outro, mas que funcionavam perfeitamente de alguma maneira. Confesso que não percebia muito trocas físicas de amor entre eles, mas havia outras linguagens que eles transbordavam. Existia uma cumplicidade profunda entre eles nos altos e baixos na jornada da vida, além do fato de sempre terem priorizado a mim acima de tudo. Hoje em dia, vejo como sair de casa fortaleceu mais ainda o laço entre eles, o que foi algo que eu sempre almejei para meus pais.
— Mas o que o Senna fez de tão incrível nessa corrida? — citei o piloto, porque era óbvio que era sobre ele; do contrário, ele não se lembraria.
Ele não só liderou a corrida com uma marcha a menos no câmbio, como também venceu com uma vantagem de 36 segundos sobre o segundo colocado — contou ele com aquele tom de voz de quem estava sorrindo durante toda aquela lembrança acolhedora, de quem havia realizado um sonho. Me lembrava o sentimento de quando assisti ao show de Jimmy Eat World pela primeira e única vez. — Tudo isso sob uma chuva fina que caiu no autódromo no final da corrida, o que fez o que de trás se segurasse mais. Foi simplesmente histórico!
— Obrigada por compartilhar essa história comigo — suspirei, sentindo o peso da autossabotagem chegar. — Confesso que não sei se fiz certo em falar que sabia do assunto. Me sinto um pouco perdida, sabe? Mas o senhor clareou minhas ideias, só preciso pesquisar sobre Hamilton agora.
Não comece com seus boicotes, ! Tem muito sabichão nesse mundo que basta ter confiança que tem um emprego. Olha onde você está, lembre-se do caminho que percorreu. Não se sabote! Estou ansioso para essa sua nova fase.
— Obrigada, estava precisando desse puxão de orelha.
Qualquer coisa, não hesite em me ligar, ok? Tenho que ir agora, vou buscar dona Rosa no mercado.
— Depois eu falo com mainha. Beijos, estou com saudades.
Não mais que eu… — falou cantando, como sempre fazia.
E desligou.
Tinha a sensação que minha cabeça estava prestes a explodir com a enxurrada de informações, mas finalmente tinha um norte para começar a esboçar o roteiro. A injeção de ânimo do meu pai nunca falhava em me impulsionar para frente, e agora me sinto mais inspirada como nunca.


2.

O apartamento está uma tremenda bagunça. Roupas espalhadas pelo sofá. Sapatos em cima do tapete da sala. A louça na pia desde a noite passada. E para piorar, o fogão está um nojo, porque meus dois amigos bêbados haviam feito um belo de um macarrão ao molho branco quando estavam chapados de madrugada.
Já eu, sentada há dias em frente àquele notebook, tinha os dedos nervosos voando pelo teclado e a cabeça prestes a explodir, tentando terminar aquele esboço do que futuramente seria um roteiro.
— Não, . Sério! Você tem que ir na próxima festa. A Heather sabe dar uma festa como ninguém — Brooke se direciona a mim no meio de uma conversa animada que estava tendo com Lucas.
— É, o DJ mandou bem. E aqueles petiscos? S-e-n-s-a-c-i-o-n-a-i-s! — meu amigo continua, dando muita ênfase na comida. Fico triste momentaneamente por lembrar que meu jantar tinha sido um pão integral com frango.
— E drogas, né? Porque vocês chegaram louquíssimos e não era de álcool — me pronuncio, dando a indireta sobre a bagunça da cozinha.
Conheci Brooke nas primeiras semanas morando na Califórnia, bem quando minhas únicas companhias em bares eram algumas taças de vinho e um livro, que eu colocava embaixo do braço ao sair de casa. Bem, eu saía bastante sozinha quando ainda não tinha amizades, fruto da frieza dos estadunidenses, mas em uma dessas noites solitárias, minha amiga me cutucou com seus olhos verdes e amendoados e elogiou minhas tranças recém-colocadas, e foi bem ali que ela me ganhou. Brooke tinha uma beleza absurda, com belíssimos cachos abertos e volumosos em sua tonalidade ruiva, que combinava idealmente com seu tom de pele, que era um pouco mais clara que a minha.
O Lucas veio junto como num combo, já que se conheciam desde a adolescência, além de trabalharem juntos numa agência de publicidade. Na primeira vez que nos vimos, ele não gostou de mim. Obviamente eu era totalmente culpada por isso, já que meus atrasos rotineiros fizeram ambos esperarem por mim do lado de fora de uma festa, num frio congelante de inverno. Mas, com o tempo, naquele mesmo dia eu ganhei seu coração, e alguns beijos também – essa parte é totalmente esquecível, blame it on the alcohol. O fato era que Lucas era muito bonito para não ser notado. Meu amigo tinha esse corpo musculoso que ele adorava exibir, junto com esses olhos castanhos que faziam qualquer segredo obscuro escapar.
— Totalmente irrelevante para a conversa esse detalhe. E nós falamos que vamos arrumar a cozinha — ele se pronuncia, se ligando no que eu estava dizendo.
Ótimo, não precisaria falar duas vezes e me estressar com algo além do meu roteiro.
— Anotado! — digo.
— Não, mas o que eram aqueles homens, Lucas?!
— Eu falo com tranquilidade que beijei mais mulheres do que homens ontem. Nunca tinha visto tanta gente bonita reunida.
— Vivendo seu próprio bi panic — brinco rapidamente, e eles riem.
— É, você perdeu. Você sabe que perdeu, .
Olho para cima por um momento, para respirar, mas rapidamente volto a me concentrar.
— Não importa, eu só quero terminar isso daqui, e para isso preciso de silêncio.
Lucas e Brooke rolam os olhos, mas continuam conversando.
— Ah, você deveria ter visto a cara do Jake quando a gente contou que você não ia. Ele ficou cabisbaixo a festa inteira — informa Brooke.
— Não poderia me importar menos.
— Como pode ser tão virginiana — vejo minha amiga sorrir, balançando a cabeça.
— O que posso dizer? É o meu jeitinho prático de ser.
Jake era um carinha que eu conheci uns meses atrás, mas que não sentia tanta conexão com ele como gostaria ou como ele idealizava. Lidar com isso em alguns momentos chegava a me estressar; primeiramente porque parecia que eu tinha que lidar com as expectativas de outras pessoas, além das dele. E segundo, eu estava tão focada no autocuidado que o restante das coisas pareciam fúteis e supérfluas. Eu não estava em um relacionamento justamente para não atender às expectativas alheias, mas aparentemente isso não importava, já que as pessoas já ligavam-nos um ao outro.
— Bem, só queria dizer que ele sentiu sua falta e nós também. Heather também quer te conhecer, você vai na próxima?
Suspiro, completamente frustrada. Eu só queria conseguir escrever alguma merda que tivesse significado.
— Gente, não prometo nada. Estou meio sem tempo para festas. Meu único compromisso é escrever algo decente.
Os dois continuam a fofocar animadamente, me ignorando. Olho para a tela, onde apenas duas linhas estavam escritas, e suspiro. Sabia que não conseguiria trabalhar em casa, então decido pegar meu notebook, caderno de anotações, meu mísero cérebro e partir para algum lugar onde eu teria completa e serena paz.
Me levanto da mesa, pego minha bolsa e me despeço dos dois, que não notam minha partida, ainda imersos em suas conversas sobre a festa.
Coloco meus fones e caminho pelas ruas movimentadas do meu bairro, em busca de um lugar para escrever. Depois de uns dez minutos, curtindo a brisa deliciosa daquele dia, encontro uma cafeteria aconchegante que nunca tinha notado por ali, parecia ser novidade.
Não muito tempo após eu me sentar, sinto toda a inspiração fluir novamente. As palavras choviam na minha mente e iam parar na tela, e eu finalmente parecia estar fazendo progresso. Me sentia realizada o tempo todo por ter a oportunidade de contar a história do Hamilton. Ao mesmo tempo que eu teria que exibir seu lado humano no cenário, eu deveria, também, transmitir a paixão e seu espírito competitivo. Ao passo que aquela era uma grande oportunidade, eu estava carregando comigo uma tremenda responsabilidade. Meu dever era inspirar pessoas, e eu torcia para que minha visão e trabalho pudesse honrar a história e o legado do Lewis, de forma autêntica e emocionante.
As horas passam tão rápido que não percebo quando a cafeteria está quase fechando. Uma onda de satisfação me preenche, sabendo que eu havia sido tão produtiva que eu encarava meu beat sheet finalizado. Pego minha bolsa, pago meu café e caminho de volta com o coração leve e com o sentimento de que tudo se encaixaria.
Eu iria conseguir aquela vaga.

Passo a chave na fechadura, mas ela não abre a porta. Aqueles dois distraídos devem ter deixado a chave pendurada do lado de dentro. Toquei a campainha freneticamente até que abriram.
— Vocês sempre deixam essa chave no lugar errado, não aprendem nunca — reclamo e retiro a chave da porta com força, levantando meu olhar em seguida. Tomo um susto quando não vejo ninguém que eu imaginava. — O que você está fazendo aqui? — franzo a testa em um claro sinal de confusão.
— Decidi te fazer uma surpresa, já que não apareceu ontem. Nem conseguimos sair essa semana. Estava com saudades — Jake, vulgo meu ficante, me responde. Então se inclina para um selinho, que correspondo sem vontade.
Desde quando ele tinha essa liberdade para aparecer na minha casa sem me avisar?
Jake claramente sente meu desconforto, porque logo se desculpa por essa presepada.
— Me desculpe, eu só queria surpreendê-la. Brooke abriu para mim antes de sair — ele trata de me explicar sem que eu não pronunciasse nenhuma palavra desde que o vi.
Toda a satisfação que existia no meu corpo sobre terminar meu projeto, havia sido sugada por essa “surpresa”. Eu estava irritada. Desconfortável. Além de sentir que meu espaço pessoal havia sido invadido.
— Como está seu roteiro? — ele pergunta animado, pegando minha bolsa para descansar meu ombro direito.
Eu teria que disfarçar melhor minha insatisfação, então dei um sorriso e falei para ele sobre meu dia.
— Eu consegui terminar o esboço, agora preciso preparar minha apresentação.
— Sobre quem é esse documentário? Acho que você não estaria tão preocupada se não fosse alguém importante.
— Não posso falar, mas não importa a pessoa, eu só quero muito que dê certo. Não quero fazer trinta anos sendo uma mera assistente — argumento, o que já era claro. Porque não importava o quão relevante fosse a pessoa exibida no documentário, apenas que o meu roteiro estivesse à altura de algo televisivo. — Enfim, você já jantou?
— Não, o que acha de pedir pizza? Trouxe o vinho que você gosta — ele diz a última frase me puxando para sentar em seu colo. Dou um risinho, porque ser mimada era bom.
— Gostei da ideia. Vou tomar banho enquanto você pede a pizza — me levanto rapidamente, mas ele me interrompe.
— Tudo bem. Ei, ei, você esqueceu algo — ele me puxa pelo braço, me fazendo cair em seu colo novamente. — Preciso de um incentivo antes de pedir a pizza.
Eu rio, achando engraçadinho esse jeito dele.
Sua mão para no meu rosto; Jake me analisa por um instante com sua respiração próxima da minha boca antes de tocar meus lábios suavemente. Deixo que nosso beijo se aprofunde, explorando nossa química que ainda era verde, mas muito nítida. Nos separamos e ficamos nos encarando por um tempinho. Logo sigo para o banheiro, ainda sentindo seus olhos em minhas costas.

O restante da noite não é como o começo dela. Estou mais solta, mais confortável com sua presença – devo tudo isso ao vinho. Jake passa a me contar histórias de quando morou numa república, na época da faculdade, e explica o quanto foi essencial para ele amadurecer como pessoa e aprender coisas básicas para morar sozinho no futuro. Aproveito para falar sobre minha própria experiência, já que no Brasil era muito diferente dos Estados Unidos, e ao contrário dele, não tive a oportunidade de morar sozinha, sequer mudar de país.
Jake vai embora durante a madrugada, percebendo que eu queria ficar um pouco sozinha. Antes de deixar que meu corpo hiberne, começo a refletir sobre essa noite, percebendo que talvez estivesse sendo muito inflexível com a ideia de me relacionar. Ele é um cara legal, independente financeiramente, e sempre me tratou muito bem, porém algo parecia não estar no lugar certo. Por isso, eu enxergava aquele relacionamento muito casual, sem esperar um grande despertar da minha vida amorosa. A vida era imprevisível, então eu só iria deixar fluir e aproveitar o momento com Jake da melhor maneira possível.


🏎🎬


— Bom, vamos lá — Richard se posiciona à frente de todos.
— Por que a não vai apresentar? — Lewis questiona. Meu nome tinha saído completamente errado da sua boca, mas eu jamais o corrigiria naquele momento tenso.
— Eu geralmente faço as apresentações dos projetos, mas foi ela que criou.
— Se foi ela que planejou, nada mais justo que ela apresentar — o piloto diz calmamente, mas eu sentia em seu tom de voz que ele estava com pouca paciência para Richard. O que eu não reclamo, ele era um cuzão.
— Está em suas mãos, — o roteirista fala, descontando sua raiva ao me entregar o controle do projetor com força.
Atravesso a sala sob vários olhares nas minhas costas. Rezo mentalmente até virar meu corpo para a plateia. Era aquele momento que eu garantiria se minha jornada seria de bênçãos ou de derrotas.
— Bem, como eu havia iniciado a ideia na semana passada, Hamilton é um homem que trilhou a carreira profissional, social e cultural, transformando o esporte em uma escala global. Ele veio de uma família humilde, trabalhadora, que não mediu esforços para alcançar o sonho do filho. Esse vai ser o start do nosso documentário! Sua família vai fazer parte desse primeiro ato, se tivermos seu apoio para fazer as entrevistas e se eles aceitarem, é claro — pauso um pouco para respirar. Parecia que eu estava sendo julgada num tribunal com um júri popular pronto para me jogar na cadeia dos roteiristas.
— Claro que sim, tem todo meu apoio. Pode continuar.
— No segundo ato, abordaremos o seu sucesso em um esporte onde as oportunidades não estavam a seu favor desde sua infância. Sendo o único piloto preto a correr na Fórmula 1, você ainda enfrenta adversidades, mesmo estando no topo. Lewis, você sempre precisou trabalhar mais do que todas aquelas crianças que competiam com você no Kart e todos os pilotos do grid para chegar onde está hoje. Nós sabemos o porquê disso e todas as pessoas que estiverem assistindo também precisam saber — continuo argumentando.
— Como você pretende abordar isso, de fato? — ele questiona, se mostrando interessado. Isso queria dizer que eu não estava falando asneira.
— Vão ser exibidos fotos ou vídeos de momentos em que você enfrentou essas adversidades. E, a cada momento, traremos perguntas que te farão refletir sobre como você se sentiu; como você enfrentou aquela situação e o que te fez impulsionar ou crescer a partir disso. Pode ser durante sua infância ou em sua vida adulta. Dentro ou fora da Fórmula 1. — Observo como ele estava atento a tudo que eu estava falando, então continuo: — Não posso te dar essas perguntas agora, porque perderia a essência de uma primeira resposta sem que você pense muito para respondê-las, entende? Porque a minha ideia não é que você tenha discursos prontos, mas que você me traga do coração.
— Achei fantástica essa ideia! Pode continuar, vou tentar não te atrapalhar mais — ele sorri sem mostrar os dentes, e volto a falar.
— No terceiro ato, vamos mostrar sua trajetória pela Fórmula 1. Isso vai contar com os chefes das equipes que você participou, engenheiros, mecânicos, suas duplas do grid em cada momento. E, claro, como dentro do esporte você buscou trazer mudanças positivas para as próximas gerações. — Pauso novamente para respirar, mas continuo pulando para a próxima tela. — Combinado a isso, vamos destacar seus momentos de filantropia e ativismo, mostrando que você é mais que um piloto de corrida. É um ser humano com valores e crenças profundas.
— Acho que essa é uma das partes mais importantes que eu quero mostrar. Me lembre de conversarmos sobre todos meus projetos para que você não se esqueça de nenhum, ok?
— Claro! Bom, para finalizar, também pensei em incluir seus hobbies e interesses pessoais nisso. Acredito que te aproxima dos seus fãs, te dá uma imagem mais humana. O que acha?
— Ah, isso seria maravilhoso! Eu adoro música, então poderíamos incluir cenas minhas tocando alguns instrumentos, gravando no estúdio. E minhas viagens de férias também, já que eu sempre me aventuro em um lugar diferente do globo.
— Perfeito, os fãs vão gostar de ver esse seu lado mais pessoal.
Eu havia passado dias e noites pedindo opinião do meu pai sobre o assunto, já que muitas vezes passávamos nossas manhãs de domingo grudados na TV assistindo às corridas. Era óbvio que eu não entendia absolutamente nada na época, mas sentia que era importante ter algo para compartilhar com ele quando criança. Agora, eu sentia que isso viria muito mais forte, porque eu não teria que criar laços com o mundo automobilístico por uma conexão paternal. Eu queria criar uma conexão emocional com a audiência para que eles sintam como se realmente conhecessem o homem por trás do capacete.
— Então, isso foi o que eu pensei ser ideal para apresentar sua vida para o mundo.
— Está fantástico, era isso que eu queria desde o início! Quais seriam os próximos passos?
Sorrio em resposta enquanto as vozes iam falando todas ao mesmo tempo. Olho para Patrick e ele levantou seu polegar para mim em sinal positivo. Eu consegui aquilo. Mas ainda era a parte mais fácil: consegui convencer Lewis a continuar conosco. Agora, a parte mais difícil, a que eu literalmente nunca havia feito, era o que me levaria a arrancar meus fios de cabelo.
— Na próxima semana, será iniciada a escrita do roteiro — Tomás, o diretor do projeto, respondeu. — Você disse que tinha uma biblioteca onde reunia tudo sobre sua carreira, ou estou enganado?
— Claro, faço questão que vocês recolham o que quiserem. Estarei em casa na primeira semana de dezembro, o que acham de voarem para lá?
Era bem aqui que iniciava minha nova skin: Roteirista.
Quando Hamilton saiu de cena, começamos a discutir os próximos passos para o desenvolvimento do roteiro. Estavam presentes os produtores, o diretor, os editores e outros roteiristas.
Em determinado momento, Patrick parecia determinado em querer minha evolução quando sugeriu que eu deveria trabalhar sozinha no roteiro e começou a dialogar os motivos aparentes.
— Olha, temos um prazo apertadíssimo para começarmos a filmar. Ter outros roteiristas trabalhando nisso atrasaria bastante coisa, vocês não acham?
— Eu concordo um pouco com isso. Não acho que deveríamos nos sustentar que conseguimos aprovar o projeto por Lewis e, de repente, começar a desandar tudo. Atrasando gravações. É um projeto importante para se cometer erros — Tomás levanta um ponto que deveria ser levado muito em consideração.
— Eu discordo. trabalhando sozinha vai deixar o trabalho limitado a visão dela — Richard dá a resposta que eu esperaria dele. Claramente ele odiava a ideia de não estar envolvido nesse projeto tanto quanto eu.
— Mas foi a minha visão que fez o projeto ser aprovado, não? — constato o fato e todos concordam com a cabeça. Sinto quando Richard olha para mim incrédulo com meu atrevimento.
— Você tem um ponto! — Patrick concorda comigo.
— Concordo com Richard. Acho que seria melhor trabalharmos juntos para garantir que a história seja bem desenvolvida e criativa — Adam, um roteirista bajulador dele, acrescenta.
— Dando opinião da minha parte do projeto, eu prefiro lidar com um roteirista único. A comunicação é mais direta e consigo me certificar que a história se adeque a uma visão. E durante nosso encontro com Lewis, ficou claro que conseguiu retratar tudo que ele imaginava do projeto. Então, por mim, apenas ela estaria envolvida nisso — Tomás fala tudo que eu sonhava em dizer, mas não podia.
— Eu concordo com Tomás nessa. ? — Patrick me passa a bola.
— Entendo a preocupação de vocês — aponto para os dois outros roteiristas presentes na sala. — Mas eu consigo fazer isso, tudo já está muito claro em como vou caminhar nesse roteiro. E, claro, podemos manter a comunicação aberta e colaborativa durante todo o projeto.
— Ótimo! trabalhará sozinha — Tomás conclui e eu sorrio em resposta.
— Então nós daremos os feedbacks para ela? — Richard pergunta, e eu estava rezando na minha mente que não. Odiaria ter que receber feedbacks dele.
— Não acho que tenha necessidade. Eu mesmo posso fazer isso por vocês, e Patrick também — Tomás declara, murchando Adam e Richard de uma só vez. — Tenho outros projetos que podem interessá-los, podemos falar sobre isso depois.
— Eu tenho um pedido… — pondero antes de continuar. Todos estavam esperando que eu concluísse.
— Sim?
— Se eu vou trabalhar sozinha, com uma responsabilidade enorme nas minhas costas, o mínimo que eu deveria ter é um cargo Pleno. Já sou assistente há uns bons anos na empresa, nada mais justo que eu ganhar de acordo com a minha carga de trabalho.
Richard solta uma risada debochada que ecoa nos meus nervos, além da sala inteira.
— Era só o que faltava. Você acabou de chegar, garota!
— Garota?! Do jeito que você não cansa de passar vergonha, acho que essa nomeação de infantilidade é sua!
Os olhares para nós iam de assustados para desconfortáveis. Toda aquela discussão ficaria mais acalorada, mas eu não poderia me importar menos, já que estava determinada a provar meu ponto de vista, além de não suportar mais ser menosprezada por Richard.
— Querido, eu tenho feito meu papel de assistente muito bem há muito tempo, e provei que estou mais que pronta para assumir mais responsabilidades. Se você não consegue enxergar um palmo do seu ego, isso não é problema meu.
— Ego? Que discursinho fajuto, . Você ainda é inexperiente em comparação comigo e precisa provar muito mais que isso antes de reivindicar um cargo mais alto.
Antes que eu pudesse rebater mais uma vez seus insulto, uma voz autoritária interviu:
— EI! CHEGA! Isso é um ambiente profissional, vamos nos acalmar — Tomás suspira. — Podem sair todos, apenas e Patrick permanecem aqui.
Todos levantam-se sem dizer uma palavra sequer. Não direciono meu olhar para ninguém, apenas para o copo d’água que estava parado na minha frente. Beberico um pouco, na tentativa de engolir toda raiva que estava sentindo, antes de voltar a argumentar com meus chefes.
Além de diretor, Tomás também é o dono da Golden Screen Productions, o que o deixava sob a responsabilidade de tudo que acontecia ali dentro, inclusive dos salários. Pela feição séria de Patrick, eu sabia que ele não havia aprovado minha atitude, mas eu bem sei que nem tudo ele pode fazer por mim, então eu fui diretamente à fonte. E, sinceramente, não poderia ligar menos para essa mini confusão que arranjei – a empresa jamais me mandaria embora por medo de perder esse projeto. Eu só buscava justiça e igualdade de salário. O idiota do Richard já ganhava mais que eu para escrever roteiros medíocres, imagina se eu ia ficar ganhando um salário abaixo da média tendo um trabalhão de roteirizar um documentário desse porte.
— Olha, é o meu direito de exigir que tenha o salário igual ao dos dois que saíram agora.
— Eu concordo com você, . Você só não precisava ter falado na frente deles.
— Não poderia perder a oportunidade, já que claramente ele vem me depreciando o tempo todo.
— Já percebi, e ele vai tomar uma advertência por isso. Não se preocupe. Mas vamos falar do seu salário… Qual sua pretensão?
Um sorriso brota em meu rosto, finalmente. Discutimos sobre o quanto era justo que eu ganhasse pelo meu trabalho, e em breve eu assinaria o contrato de curto prazo, apenas por um tempo. Continuaria como prestadora de serviço, mas futuramente poderia ser contratada, de fato.
— Bem, suas passagens para Mônaco vão estar no seu e-mail hoje à noite — Tomás me informa.
Finalmente me sinto aliviada, mesmo que minha preocupação agora fosse com a carga de trabalho. Estava feliz com minha luta. Ter controle total do processo criativo, e ainda tendo apoio de quem realmente importava. Iria para casa com o coração cheio de gratidão e ansiedade para fazer minhas malas o mais rápido possível.

Beat sheet: é um documento de todos os pontos principais da trama. Uma forma de entender o encadeamento das ações e situações. Ele ajuda no desenvolvimento, e principalmente, na estrutura da trama.


3.

O barulho dos meus saltos ecoa pelo corredor iluminado por pequenas luzes no chão. Enquanto caminho por aquele jardim, me pergunto o porquê daquela produção toda, se era uma comemoração minimalista de aprovação do projeto. Nem o roteiro havia sido escrito ainda – o que me deixava nervosa, já que essa tarefa era completa e unicamente minha.
Eu havia planejado chegar uma hora depois do informado no convite, mas por conta do trânsito, consegui meia hora de acréscimo. Queria apenas marcar presença, já que faltar não era uma opção. Quando entro no ambiente, muitas pessoas estão perto do palco que tinha por ali, observando um telão gigantesco que passava um trailer brega com vídeos da estrela do nosso documentário. Logo me aposso de uma taça de champanhe que o garçom me ofereceu na entrada e me mantenho no canto observando tudo.
O diretor começa a falar no microfone algumas palavras bonitas – que não tinham significado nenhum – logo após o telão se apagar, além de algumas intervenções para bajular os produtores executivos que fizeram seus investimentos milionários.
Agradecimentos, agradecimentos e gratidão.
Engulo a bebida na minha mão rapidamente para pegar outra de uma bandeja que passava na minha frente, porque sóbria eu não conseguiria passar trinta minutos nessa festa. Cato meu olhar quando o discurso é interrompido por algum funcionário que cochichava no ouvido do diretor.
— Ele está aqui entre nós — Tomás informa. Mas ele quem? — Sir Lewis Hamilton!
Eu não podia acreditar que haviam convidado esse homem para essa festa brega. Tinha certeza que ele só pisaria aqui para se manter de olho em tudo, porque não era possível que alguém tivesse vindo por espontânea vontade. Foi num vislumbre que todos os presentes direcionam seus corpos para a entrada e lá estava, atravessando a porta, Lewis Hamilton, vestido num perfeito conjunto denim num tom musgo e suas tranças envolvidas num coque. O homem estava lindo, diga-se de passagem, e tinha bastante presença, como eu bem sabia.
— Que honra você poder comparecer à nossa comemoração, Sir Lewis — o diretor pronuncia ao microfone. — Suba aqui, por favor. Temos uma surpresa para você.
Em meio a aplausos, o piloto sobe as escadas laterais rapidamente e cumprimenta Tomás, que logo lhe entrega o microfone. Mas antes que ele pudesse falar, reproduzem novamente o trailer e dessa vez eu presto melhor atenção nas cenas. Eram capturas de Hamilton em corridas emocionantes, ultrapassagens dignas de tirar o fôlego de qualquer torcedor e celebrações no pódio, mas tudo isso sob efeitos visuais exagerados e uma trilha sonora muito dramática. Não era de todo mal, mas poderiam ter realizado um trabalho melhor, principalmente sabendo que existia uma possibilidade de que iria ser exibido para Lewis. Espero, do fundo do meu coração, que ele não imagine que sua biografia vá ser tão vergonhosa quanto esse vídeo.
O piloto se posiciona de frente para a plateia, segurando o microfone perto da boca, prestes a dar um discurso.
— Eu pareço muito radical nesse vídeo! — ele começa, o que gera uma onda de risadas em todo o salão. Até eu sorrio, afinal, o cara tinha carisma. — Brincadeiras a parte, estou muito emocionado de poder compartilhar minha vida, e eu pude enxergar quanta dedicação vocês têm para contar essa história — ele continua enquanto todos ouviam com bastante atenção. — Produzir um documentário parece desafiador, mas é uma oportunidade incrível de capturar e transmitir a essência de uma jornada. Acredito que cada um de nós tem uma história poderosa a contar, e estou animado para ver como iremos juntos dar vida a essa narrativa.
Hamilton continua falando, enfatizando a importância que isso tinha para ele.
— Não tenho dúvidas que esse projeto será um sucesso, e eu prometo colaborar o máximo que puder com vocês — ele faz uma pausa, olhando para todos com um sorriso encorajador nos lábios. — Tenho total consciência de como biografias podem ultrapassar barreiras, trazer inspiração e conexão entre pessoas. E nós temos a oportunidade de contar uma história que sobressai as pistas de corrida falando sobre resiliência e superação.
Nossa, como ele podia ser tão bom em tudo que se propunha a fazer? O piloto sabia como cativar uma plateia, ser extremamente otimista e inspirar qualquer pessoa que tivesse ouvidos para escutar. Aquilo era puro ouro.
— Minha principal motivação para a realização desse documentário é ele ser mais uma porta de entrada para levantar questões importantes que vão além do meu trabalho. O esporte tem um poder transformador, socialmente falando, e eu quero incentivar essas reflexões sobre igualdade, inclusão e sustentabilidade.
De repente, o champanhe passa a ter um sabor de “vontade de vencer”. Eu estava completamente rendida àquele discurso; simplesmente tudo entrava na minha mente e coração porque, de alguma forma, não eram só palavras bonitas. Apesar de ser uma pessoa não tão crédula em discursos motivacionais, Lewis Hamilton me parecia muito convincente.
— Para não tomar mais o tempo de vocês, quero dizer que estou muito ansioso para mais esse desafio. Confio plenamente nessa equipe para criar algo maior que nós mesmos e gerar mais uma plataforma para debatermos pautas que merecem nossa atenção. Meu desejo é que a minha história, pelos seus olhos, ressoe nos corações de cada pessoa que assistir, assim como o documentário do Senna ressoou em mim — ele conclui com um sorriso sem mostrar os dentes, colocando a mão no coração ao escutar a ovação para ele.
Qualquer um com o mínimo de orgulho pelo trabalho estava se sentindo inspirado naquele momento, e acho que depois de toda essa mensagem positiva, eu definitivamente tinha a certeza que estava prestes a embarcar na jornada mais significativa e louca da minha vida.
— Sir Lewis Hamilton — digo quando já estou perto o suficiente. Abaixo meu tronco em sua direção e estico minha mão em sinal de reverência, como se de fato ele fosse uma realeza, já que todo mundo estava o bajulando pelos cantos.
— Ah, não, até você? — ele dá uma risada gostosa com minha palhaçada. Eu claramente estava bêbada para fazer algo assim.
— Não sabia que vinha pra Confra da Firma, Sir Lewis! — minha voz sai num tom bem carregado de ironia, que talvez ele nem tinha entendido.
— E por que não viria, senhorita ?
— Não sei se alguém tão ocupado como você teria a sã consciência de vir assistir um vídeo daquele no telão — aponto com a cabeça para o palco, onde resolveram passar em looping sua apresentação.
— Ah, mas eu gostei! Achei o vídeo… — ele pausa e olha para cima, resgatando alguma palavra. — Excêntrico.
— A palavra mais justa é brega, mas tá tudo bem. Fica entre a gente — troco olhares e ele ri depois de um tempo, comprovando minha teoria.
— Não é contra a lei falar mal da própria empresa?
— Estou bêbada, eu nem vou lembrar disso amanhã. E nem você — o fuzilo com os olhos.
— Minha boca é um túmulo — ele passa os dedos próximo aos lábios como se estivesse fechando um zíper. Um garçom aproxima-se da gente e oferece bebida; Lewis pega um drink sem álcool, o que me intriga. — O que vai querer? — ele me olha, esperando que eu respondesse para pegar para mim.
— Champanhe, por favor — respondo. Lewis pega uma taça e a entrega para mim logo em seguida. — Obrigada. A garrafa desse aqui deve ser mais cara que meu salário.
— Qual é sua função na empresa?
— Assistente de produção, mas agora o universo me concedeu a graça de escrever seu roteiro. Completamente sozinha! — digo a última frase quase sentindo meu coração pular da boca. — Então acho que alguma vírgula deve mudar de posição na minha conta bancária.
— Ah, você mereceu! — ele pausa no meio. — Desculpe, como fala mesmo o seu nome? Sinto que estou sempre errando.
— Ah, eu não ligo, isso acontece sempre. Mas é — pronuncio pausadamente, do jeito mais claro possível.
Lewis pronuncia lentamente meu nome, completamente equivocado, e minha honesta reação é uma risada espontânea, o achando um fofo.
— Não.
Então, falo o começo novamente, a parte que ele tinha mais dificuldade, e o espero repetir.
! — Lewis passou de uma feição confusa para sorridente quando pronunciou meu nome pela segunda vez, sacando que havia acertado. Sorri junto.
— Isso! É que em inglês, vocês sempre tentam encaixar numa palavra com pronúncia semelhante. Enfim, pode me chamar de também, acho que é mais fácil.
— É um nome bonito, qual descendência?
— Tem descendência africana. Meu pai fez questão de que eu sempre estivesse ligada a minhas raízes.
— Ah, adorei saber disso. Ele tem muito bom gosto! Mas você é brasileira, certo? Seu sotaque não me é estranho...
— Sim, como desconfiou?
— Vocês falam de um modo mais relaxado, sabe? — ele tenta explicar, prolongando algumas vogais nas palavras. Dou uma risada porque ninguém nunca havia citado isso para mim.
— Ninguém nunca reparou nisso, gostei de saber. Às vezes acho até que sou muito agitada.
— Jura? Pois eu acho que você é a pessoa mais calma que existe nessa empresa. Eu senti uma afobação fora do normal nos dias que eu fui.
— Talvez porque tenha sido a sua presença que alterou os nervos de todo mundo — respondo sendo um pouco óbvia, mesmo que todo mundo na Golden tivesse os neurônios anormais. — Mas eu estou chocada em como minha personalidade transparece para você. Meu Deus! — coloco a mão na boca, em choque. Aquela era a confirmação para comprar um outro vidrinho do meu floral Rescue Remedy*.
— Então você tem um temperamento frenético?
— Normalmente, principalmente porque eu gosto de resolver as coisas rápido. Se eu não vejo ninguém se movimentando para fazer algo, eu vou lá e faço.
— Isso responde bastante coisa — Lewis beberica sua bebida como se estivesse refletindo sobre minha personalidade. Acho intrigante e, no mínimo, excitante. — Mas eu te prometo que essa agitação não transparece para as pessoas.
— Bom saber disso! Acho que minha trajetória com a meditação está finalmente me trazendo resultados.
— Você medita? — o piloto me pergunta, e concordo com a cabeça enquanto pego outra taça com o garçom. Ele coloca seu copo vazio na bandeja e agradece. — Nossa, eu adoro! Mas sempre acabo me desconcentrando em pouco tempo.
— É um exercício diário, sabe? Requer muito esforço, desapegar de muitos sentimentos, mas eu acho que você pode estar no caminho certo. Lewis, se você consegue se concentrar numa corrida, você consegue se concentrar numa meditação.
— Mas eu tô silenciando o caos à minha volta na corrida.
— Ué, na meditação também. Mas o caos é o mundo externo, e não os carros querendo te ultrapassar — digo o óbvio que ele parecia não ter entendido antes. Então, sua expressão muda drasticamente.
— Nossa! — ele abre a boca em formato de “O” com a sobrancelha levantada, completamente em choque. — Que sacada genial…
Nossas risadas são interrompidas por uma sombra, que logo percebo que tratava-se de ninguém mais ninguém menos do que Richard, que se aproximava para cumprimentar Lewis.
— Sir Lewis Hamilton, muita satisfação, sou Richard — ele estende sua mão em cumprimento. — Acho que não se lembra de mim…
— Você é roteirista, certo? Me desculpe, são muitas pessoas.
— Que ótima memória! Sou sim, mas infelizmente não estarei à frente do seu documentário.
— Ah, é uma pena — Lewis responde com uma expressão chateada, mas eu tenho certeza que ele só está sendo irônico. Afinal, ele odiou o que Richard havia imaginado para a cinebiografia.
— Mas fará isso completamente sozinha. Acredito que já saiba… — o roteirista com síndrome narcisista claramente ia trazer isso à tona. Olho para o lado para rolar meus olhos.
— Não acredito! Não estava sabendo, meus parabéns — Lewis responde fingindo que havia acabado de descobrir. Ele direciona um sorriso para mim, e eu prontamente lhe respondo com outro. De repente, atores. — É uma honra, eu adorei as ideias dela pro projeto. Conseguiu externar tudo que eu imaginava.
— É, mas é estranho que seu primeiro roteiro seja tão independente, . Geralmente, quando se é tão jovem, passa por outros profissionais com mais experiência — Richard se direciona para mim, eu fico em choque com sua audácia. Na verdade, é uma tamanha falta de educação ser tão atirado na frente do cliente.
Abro minha boca para responder, mas sou interrompida:
— Todos temos nossas primeiras vezes, não é? Temos que começar de algum lugar. Tenho certeza que não foi escolhida à toa — Hamilton continua falando com seu tom mais baixo, mas parece mais sério, ou até mesmo com raiva. Richard logo percebe. Ele se remexe desconfortável, concordando com o piloto em seguida, mas eu não ficaria calada ouvindo aquele afronte.
— Não se preocupe, Richard, com certeza precisarei da sua vasta experiência. Qualquer coisa falo com você — digo logo depois, bebericando o champanhe para engolir as verdadeiras palavras que eu gostaria de ter dito.
— Ansioso por isso — ele responde. — Se me der licença, preciso falar com outras pessoas. Foi um prazer, Sir Hamilton — e acena com a cabeça para Lewis.
Percebo quando o piloto curva seus lábios sem muito esforço, demonstrando um total desconforto. Chegava a ser fascinante como tudo transparecia nele. Que comunicação não-verbal maravilhosa esse cara tinha!
— Essa conversa realmente existiu? Por um momento eu achei que estava em algum programa de pegadinha — ele me pergunta, incrédulo.
— Esse cara é um pé no saco, ele faz questão de ser inconveniente. Geralmente isso não me incomoda, mas ser subestimada na frente de um cliente foi osso! — confesso, demonstrando totalmente o meu descontentamento.
— Não liga, não, ! Claramente ele está com dor de cotovelo porque não ficou no projeto.
— Obrigada — sorrio sem mostrar os dentes, me sentindo totalmente constrangida depois disso. — Você não come nesses eventos? — desvio do assunto rapidamente, até porque falar mal de um funcionário para um cliente era falta de respeito.
— Geralmente eu janto antes, porque na maioria das vezes eles esquecem que existem veganos no mundo — o piloto dá de ombros.
— Não acredito, mas acho que vi no cardápio. Vamos dar uma olhada — o puxo pelo braço até a mesa de petiscos que ficava no canto do salão. Observo se existe alguma plaquinha com uma plantinha indicando que a comida era vegana, mas não vejo nada. Perto da mesa ficava a porta da cozinha, de onde estava saindo um funcionário. — Liam? — o chamo pelo nome que tinha no seu peito.
— Sim?
— Vocês têm opção vegana no cardápio? O anfitrião da festa está com fome.
— Ah, me perdoe, senhorita, vou verificar na cozinha — ele responde aflito, dando um rápido olhar para Lewis, e sai apressadamente para a porta de onde havia acabado de sair.
— Você é maluca — o piloto fala atrás de mim com uma risada baixa. — Sabe que não precisava, não é?
Viro meu corpo e fico de frente para Lewis, um sorriso lascivo estampado em seu rosto, e o observo com meus olhos levemente enevoados pela bebida. Sua postura está leve, descontraída; uma mão no bolso da calça e a outra segurava sua bebida, como se estivesse se divertindo com a situação.
— Me dê um desconto, estou entediada nessa festa, Sir. Tenho que me divertir de diversas formas.
— Então, eu estou te entediando? — o piloto pergunta, cravando seus olhos em mim. Suas sobrancelhas estão levemente levantadas, deixando seu olhar intenso e curioso.
Aquilo foi um flerte?
Passo as mãos suavemente pelo meu cabelo e jogo parte dele para trás, sorrindo sutilmente com sua pergunta. Não pude deixar de notar que, ao fazer esse simples gesto, seus olhos vasculham parte do meu corpo, mais precisamente, meu decote.
— Acho que é difícil você entediar alguém — respondo com um sorriso dançante nos lábios.
O sorriso do piloto cresce à medida em que ele se encosta casualmente contra a parede. Logo faz questão de cruzar os braços em frente ao corpo, que, por um segundo, eu desejava que estivesse descoberto para eu admirar seus músculos e observar suas milhares de tatuagens que eu sabia que existiam. Lewis passa a língua em seus lábios inferiores e permanece com os olhos grudados em mim, ponderando uma resposta que já estava na ponta de sua língua.
— Acredite, eu tenho meus momentos entediantes. Mas não posso falar o mesmo de você, já que todas as vezes que te encontro, você me mantém entretido.
Não contenho meu sorriso. Já começo a sentir o efeito da bebida me deixando menos inibida e eu claramente poderia culpá-la por tudo que sairia da minha boca a partir desse momento. Mas nem mesmo se estivesse sóbria, eu nunca, em hipótese alguma, deixaria aquele momento passar. Toda essa brincadeira tinha me deixado quente por dentro. Lewis tinha esse brilho intenso nos olhos que transcendia qualquer escolha de palavras.
Desvio o olhar por um segundo para pegar algum fôlego e dou alguns passos para chegar mais perto dele.
— Acho que você tem me dado crédito demais.
— É mesmo?
— Uhum, mas é bom saber que eu estou te surpreendendo.
O rumo daquela conversa estava indo longe demais. Mordo meu lábio inferior na tentativa de conter meu desejo explícito, quando meu pingo de consciência se revelou num piscar de olhos pela nossa proximidade. Me afasto lentamente dele e me encosto ao seu lado na parede, tendo uma visão panorâmica de todo o salão do evento.
— Bem, já que estamos nessa temática de veganismo e tudo — começo, fazendo com que o assunto tome outro rumo —, teve essa vez em que tentei fazer um bolo vegano pra um amigo… Eu queria impressioná-lo com meus dotes culinários.
Olho para o lado e percebo a curiosidade de Lewis na minha história transparecer em seus olhos, então continuo:
— Nunca havia feito um antes, então o nervosismo me fez misturar ingredientes errados ou eu deixei de colocar algo na mistura, não sei e… O bolo explodiu dentro do forno.
Lewis solta uma gargalhada sincera, incrédulo, e balança a cabeça.
— Não!
— Juro, meu forno parecia uma cena de crime — afirmo mais uma vez, rindo junto.
— E seu amigo ficou sem provar esse maravilhoso bolo?
— Claro que não, corri pra uma loja e até hoje ele acha que eu sou a melhor boleira vegana que ele conhece — dou de ombros, rindo.
— Como eu disse, pelo menos você é boa entretendo as pessoas — ele pisca, me gerando um sorriso tímido. — Posso apostar que contou uma história mirabolante de como foi fazer o bolo.
— Como adivinhou? — finjo surpresa.
Compartilhamos o momento de risada, que pareceu uma ótima forma de quebrar a tensão e o flerte, que aos poucos se tornou evidente demais para evitar. Antes de puxarmos outro assunto, nossa atenção é desviada para uma mulher que se aproxima de nós com um sorriso acolhedor nos lábios. Seu avental impecável e mangas perfeitamente enroladas gritava que ela era a chefe da cozinha.
— Boa noite, me chamo Helena Ramsay. Sou a responsável pelo menu da noite. Posso apresentar os pratos para vocês?
— Olá, sou Lewis e essa é — ele responde me apresentando. Dou um aceno com a cabeça. — Será um prazer.
Helena explica com muito cuidado e maestria todo o desenvolvimento do cardápio. Lewis a todo momento tinha uma expressão facial com um misto de expectativa e entusiasmo ao ouvir sobre os detalhes dos ingredientes frescos utilizados pela chefe.
— Tudo maravilhoso! Esse quiche de alho poró é dos deuses! — digo antes que ela conclua a apresentação. — Vou precisar pedir licença a vocês, mas Helena, obrigada pela explicação.
— É um prazer para mim — ela responde, agradecendo.
Lewis me olha como se questionasse onde eu estava indo, então indico o banheiro com a cabeça enquanto ele continua entretido no veganismo em forma de buffet.
Chego ao banheiro perfeitamente gelado por causa do ar condicionado. Algumas mulheres estão retocando seus batons no espelho, e sem trocar nenhuma palavra, me olham. Não me lembro de ter visto nenhuma delas na empresa de qualquer forma, então não faço questão de ser educada. Logo, elas me deixaram sozinha.
Observo meu rosto no espelho; nitidamente meu olhar baixo entregava que eu estava bebendo há algum tempo. Passo um pó embaixo dos olhos para dar uma revigorada, além do batom que havia saído boa parte enquanto degustava o cardápio. Retiro o frasco pequeno de perfume da bolsa e, no momento em que passo nos pontos principais, recebo uma mensagem de texto. É Jake perguntando onde eu estava. Odeio ser cobrada de alguma forma, então não respondo. Guardo o celular, passo um gloss nos lábios e volto para o salão.
Vasculho com meu olhar para onde eu iria agora, acabo encontrando Patrick super empolgado conversando com o anfitrião. Há uma mulher ao seu lado, que tenho certeza que é sua esposa, e no mesmo instante o considero sortudo por ter alguém para levar para esses eventos chatos. Apesar de gostar da companhia de Lewis durante a noite, tive uma sensação esquisita depois que Richard se intrometeu na conversa, Começo a sentir o peso da minha responsabilidade cair em meus ombros; além do mais, depois de toda a nossa conversa, ficou claro que o piloto estava colocando muita fé em mim. Não só ele, mas uma equipe inteira.
Meus olhos continuam a observar o ambiente enquanto tento engolir essa sensação desconfortável que crescia dentro de mim, porque eu tinha medo de falhar, de decepcionar as pessoas que estavam confiando em mim. Toda essa pressão me fazia sentir insegura, e naquele momento, tudo que eu sonhava era poder fugir dali e me enfiar nas minhas cobertas, onde estaria salva das expectativas alheias.
Desperto dos meus anseios quando um aceno longilíneo me chama atenção. É Patrick me convidando para a conversa. Suspiro fundo, ando até a rodinha que ele está e mantenho um sorriso no rosto, sentindo que a bebida já tomava aquele espaço no meu inconsciente para julgamentos interpessoais.
— Aí está meu prodígio — o produtor diz ao me aproximar. Nossa, como eu queria vomitar de nervoso.
— Não comece, Patrick — rolo os olhos e sorrio. — Deve ser ótimo ter um bajulador em casa — me direciono para sua esposa.
— Às vezes é exaustivo, confie em mim — ela diz. — Sou Amélia! Patrick fala bastante de você.
— Seu esposo é meu fã, mas eu já disse que ele está atrás do meu pai — comento e todos riem.
— Eu fico atrás do Patrick, então — Lewis pronuncia. Eu poderia desmaiar ali mesmo. — Apenas com a persuasão dela, acreditam que pela primeira vez eu jantei num evento?
Seus lábios se curvam num sorriso aberto, evidenciando o espaço que tinha entre seus dentes. Observo esse traço ancestral pela primeira vez. Ele já deveria saber que aquilo o deixava único, e por isso não se desfez dessa particularidade que o deixava lindo. Argh, eu o estava elogiando por tempo demais na minha mente, definitivamente estava bêbada. É o momento de ir para meu cobertor.
— Você já foi picado pelo poder de convencimento da ? É uma luta sem volta — o produtor também fala, me deixando sem graça.
— Ok, meus fãs. Tenho que decepcionar vocês com a minha partida — começo a me despedir antes que eles me fizessem perder o foco e ficar para mais um assunto interminável. Minha mente já estava confabulando demais.
— Nós vamos também, vou me despedir de outras pessoas. Nos vemos em breve, Lewis — Patrick diz, se despedindo junto com a esposa.
— Foi um prazer te conhecer, Amélia — dou um abraço caloroso nela. Os dois saem da nossa vista, nos deixando a sós. — Ok, essa é minha deixa! Preciso ir.
— Você está bem? Precisa de carona? O motorista pode te deixar em casa.
— Está tudo bem, e apesar de estar tentada a aceitar, as pessoas comentariam bastante. Então minha resposta é não.
— Você tem razão.
— Te vejo em Mônaco?
— Sim, nos vemos na próxima semana.
Me aproximo dele e deixo um beijo em sua bochecha. Respiro seu perfume e, por um momento, quero morar ali. Desvio rapidamente esse pensamento, ainda deixando brecha para uma troca de olhares. Seu toque rápido na minha cintura intensifica tudo aquilo. É perigoso e confortável. Nos afastamos sob uma tensão implícita e talvez um aperto de mão teria sido uma escolha melhor de despedida.

*Rescue Remedy é uma combinação de emergência criada por Dr. Bach. Composto de cinco essências florais: Impatiens, Star of Bethlehem, Cherry Plum, Rock Rose e Clematis, é o floral do socorro e do resgate. É utilizado para sofrimentos agudos e emergenciais físicos e emocionais, mas também pode auxiliar no alívio da ansiedade.


4.

Vou começar dando minha opinião polêmica de algo que comecei a reparar desde que pisei em Mônaco: esse lugar é feio.
Podem me crucificar à vontade, mas eu precisava falar. É simplesmente um epicentro capitalista, cheio de bilionários, com prédios feios e sem graça. Tenho a leve impressão que se me dissessem que aquilo é uma cidade fictícia montada num estúdio, eu acreditaria. O clima também não ajudava em nada; o céu estava nublado e permaneceria assim por muito tempo, já que estávamos no outono. Apesar do frio, as paisagens em tons laranjas e marrom revelavam a beleza da estação e traziam cor para o lugar.
A empresa havia informado que eu poderia vir para essa viagem sozinha, e que se eu precisasse de alguma ajuda, poderia ligar para Patrick ou para Tomás, mas eu esperava que isso não fosse preciso. Afinal, eu sentia que tinha muito para provar desde que foi resolvido que eu faria o roteiro sozinha. Ouvi muitas piadinhas vindo do Richard e aquilo não me agradava. E há algum tempo era nítido que eu era um incômodo, mas ele engoliria em seco quando meu nome aparecesse nos créditos do documentário, e não o dele.
Provavelmente, a minha hiperindependência está gritando alto agora, um perfeito resultado da criação dos meus queridos pais. No entanto, naquele momento, uma mistura de sentimentos se apoderava de mim. Por um lado, essa síndrome da mulher maravilha era excepcional para meu desenvolvimento profissional, afinal, eu detinha de toda a liberdade criativa e controle completo do desenvolvimento da obra, inclusive dominar a conversa com a estrela do documentário – que era a parte mais fascinante, para mim. Mas vendo pela outra face da moeda, o peso da responsabilidade caía sobre meus ombros, exacerbada pela minha limitada experiência que me intimidava. Era minha estreia em vários aspectos. Não houve ensaios, testes ou estágios; eu mergulhei de cabeça nisso, enfrentando o projeto de maior valor da empresa até hoje. E a grandeza disso tudo me angustiava porque cada decisão, cada pergunta, cada resposta, cada palavra trocada carregava o peso da minha inexperiência. Eu me enxergava naquelas cenas de filme em que a protagonista de repente se via nos holofotes, pronta para apresentar uma peça colegial; onde ela é simplesmente empurrada pro palco sem aviso prévio, mergulhada em sua timidez e nervosismo, completamente perdida. Então, os holofotes se acendem e trazem para a superfície toda sua vulnerabilidade.
Resumo da ópera: nada poderia dar errado.
Meu cochilo após o almoço me rendeu uma tarde completamente inútil e um atraso razoável. A minha sorte é que era fácil se locomover por aqui, e em menos de cinco minutos eu chego na casa do piloto. Nem preciso tocar a campainha, já que ao sair do elevador, estou bem na sua porta me deparando com sua figura encostada na parede à minha espera.
Oi! — Lewis me surpreende ao cumprimentar-me em português. Ele está vestido apropriadamente para alguém que está no conforto da sua casa: uma calça moletom e um casaco de manga longa, já que o tempo pedia.
Oi — respondo na minha língua nativa, sorrindo. — Alguém andou estudando, hein?
— Essa é uma das poucas palavras que eu lembro, vou precisar de algumas aulas com você — ele diz com um sorriso travesso e a sobrancelha erguida, me dando passagem para entrar.
— Podemos encaixar na minha agenda, com certeza — respondo rindo. — Só não sei se serei a melhor professora.
— Tá tudo bem, nunca fui um bom aluno — ele confessa, me fazendo rir de novo.
— Acho que estou atrasada, né? Me desculpe, dormi um pouco a mais.
— Tá tranquilo. Vem, organizei tudo na sala.
Antes de segui-lo, sinto uma lambida no meu pé. Um buldogue muito fofo me encarava pedindo carinho.
— E quem é esse gostoso? — me agacho para acariciar sua cabeça.
— Ah, esse é Roscoe. Ele ama receber atenção — Lewis diz enquanto nos observa com um sorriso. — Vamos, Buddy’s! — ele chama com um tom de voz diferente para falar com o doguinho.
O jeito que ele fala com Roscoe me arranca um sorriso sincero. Chegava a ser engraçado perceber como um cachorro poderia trazer à tona o lado mais brincalhão e afetuoso dele, como um garotinho, mesmo que estivesse em seus quarenta anos.
Roscoe logo perde o interesse em mim após isso e me deixa completamente de lado para seguir o dono, que nos conduz pelo corredor repleto de quadros. Alguns pareciam ser suas fotografias autorais de paisagens; outros eram artes que pareciam ter sido feitas por fãs da sua própria imagem em alguns momentos marcantes de sua carreira.
Dou de cara com uma sala de estar com um sofá longo que preenche praticamente todo o espaço, mas é a mesa de centro que me chama a atenção – está repleta de fotografias e alguns diários com anotações próprias, algo como se fosse inspirações que ele usava para sua vida, seu dia-a-dia.
Todas as suas memórias especiais que precisavam ser explanadas estão ali.
Coloco o notebook em cima do sofá e me ajoelho próximo à mesa enquanto examino cuidadosamente cada detalhe do material que Lewis tinha reunido.
— Você acha que vai ser suficiente? — ele pergunta, coçando a nuca e rindo de mim, pela minha feição perplexa. Eu acho que estou tendo um mini surto interno pela quantidade de informações.
— Com tão pouco material assim, acho que vai ser difícil, né?! — solto uma piada, na tentativa de aliviar a tensão do momento.
— Bom, fique à vontade. Vou preparar algo pra gente, você prefere chá ou café?
Sorrio, sentindo-me naturalmente mais relaxada, uma vez que o simples aroma dessas bebidas me causavam uma sensação reconfortante.
— Um chá seria ótimo, obrigada.
Lewis assente e me devolve o sorriso antes de ir para a cozinha preparar o chá. Dessa vez, Roscoe não o segue e fica próximo a mim, quietinho. Com minha curiosidade aguçada, percebo que ele detém de uma prateleira com alguns livros pessoais e, de alguma forma, aquilo me faria entender um pouco do que se passava na cabeça dele.
Levanto-me do chão e caminho até a prateleira. Pego um livro que parecia ser uma biografia do ator Matthew Mcconaughey, abro numa página que estava marcada com a borda da página dobrada (isso era quase um crime) e o título do capítulo é: “What’s a greenlight?”, o que também é bem sugestivo.
O piloto volta com duas xícaras de chá fumegantes e entrega uma delas para mim.
— Obrigada — agradeço com um sorriso.
Ele se senta no sofá e eu me acomodo do seu lado esquerdo. Pego a xícara entre minhas mãos, sentindo o calor se espalhar pelos meus dedos. Dou um pequeno gole, identificando um sabor forte e cítrico – definitivamente é chá preto britânico. Sinto o líquido fazer seu papel de aquecer meu corpo e tranquilizar a minha mente turbulenta.
— Eu adoro esse livro que você estava folheando. Matthew fala bastante sobre a relação dele com a família, e eu me identifiquei de diversas formas.
— Em quê, por exemplo?
— Acredito no poder da família como uma grande escola de valores, sabe? Ele traz a mãe como exemplo do porquê conseguiu se manter verdadeiro com suas raízes, e assim como ele, minhas duas mães sempre foram responsáveis por manter esse lado emocional vivo.
— Mães?
— Sim, meus pais são separados. Mas a Linda está na minha vida desde criança, então sempre esteve comigo — ele diz, se referindo à sua madrasta.
— Então seu lado competitivo veio do seu pai?
— Completamente! Ele sempre foi muito assertivo comigo. Lembro de quando eu tinha meus dez anos, preferia morar com minha mãe porque era mais fácil. Ela nunca pegava no meu pé.
— Sempre achamos isso em algum momento, né? No meu caso, eu costumava pensar que minha mãe era uma chata por sempre reclamar de algumas amizades que eu tinha. Mas todas as vezes em que quebrei a cara, a voz da minha mãe entrava em cena na minha mente…
— Eu te avisei!
— Eu te avisei!
Falamos ao mesmo tempo, nos encaramos por uns milésimos de segundos até cair na gargalhada. Me recomponho e volto a me concentrar no material à nossa frente.
— Então, o que você acha da gente fazer um passeio por essas fotos? — sugiro, apontando para uma sequência que ele havia posto na mesa. Pareciam estar em algum tipo de ordem.
Lewis coloca a xícara vazia de lado e volta sua atenção para mim. Então, desce para se sentar no chão, entre o sofá e a mesa de centro, me sugerindo a fazer o mesmo. Puxo meu notebook para meu colo, ligando-o em seguida.
— Claro, é uma ótima ideia.
Lewis começa a compartilhar as histórias por trás de cada fotografia na mesa de centro, explicando como aquele momento marcou sua trajetória. Enquanto ele falava, meus dedos voavam pelo teclado para não perder nenhum detalhe. Logo ele pega uma foto em que ainda era uma criança, vestido com um corta-vento estampado de figuras geométricas nas cores roxo e verde, e em suas mãozinhas um controle remoto.
— O que estava fazendo aí?
— Estava participando de uma competição de carros de controle remoto em um canal de TV para crianças, o Blue Peter. Meu pai me inscrevia em qualquer coisa relacionada a carros, eu devia ter uns sete ou oito anos. Eu tinha essa voz infantil de Mickey Mouse, sabe? — ele ri e eu o acompanho, imaginando uma voz fininha de criança. — Eu estava disputando no meio dos adultos, por isso estava tão concentrado.
— Você era muito fofo, seus olhos super focados.
— Era? Qual é, eu ainda sou fofo!
Um sorriso caloroso brota em meu rosto quando o piloto se mostra ofendido por ter me referido no passado. Sinto uma faísca explodir no ar quando Lewis me olha, percorrendo meu rosto com todo aquele divertimento brilhando em seus olhos que estavam ali, esperando uma resposta minha. É claro que ele ainda é fofo; mais que isso, ele conseguia ser encantador.
— E muito modesto também — respondo brincando, porém, sendo inteligente o suficiente para não negar sua fofura. — Então tudo começou com esse carrinho?
— É, eu olhava para aquele carrinho e me perdia só de imaginar estando num carro de Fórmula 1 — ele pausa um pouco, sorrindo e pensativo. — Ainda estou com essa mesma vontade dentro de mim. Parece que o sonho não morreu, sabe?
— Uhum, eu entendo. Cada vez que um sonho é alcançado, devemos sempre ampliá-lo. Pular para o próximo.
— É, disso eu entendo bem — ele suspira. — O próximo é meu oitavo título antes de me aposentar — conclui, deixando a foto de lado.
Seus ombros vacilam um pouco, como se aquele assunto ainda fosse pesado para ele. Mas como não seria, já que evidentemente existia um vazio crescente desde seu último campeonato ganho. As alterações nas regras que regiam a Fórmula 1 nos últimos anos, somadas ao desempenho insatisfatório dos carros, não trouxeram praticamente nenhuma alegria ao piloto. No máximo, algumas pole positions e vitórias aleatórias. Com tudo isso, ainda tínhamos o GP de Abu Dhabi 2021, marcado por um escândalo que lhe custou o oitavo título de maneira tão explícita quanto injusta.
Em seu olhar, eu percebia o quanto esse sonho ainda estava vivo dentro dele. O sentimento genuíno e juvenil, que oscilava entre o desejo de pilotar um carro de Fórmula 1 e o fato de ser o maior piloto da categoria. E nada daquilo o tornava esnobe, muito menos o fazia perder a vontade de lutar por mais um título. Na verdade, o tornava cada dia mais faminto para estar na pista. Nada havia mudado desde os dias em que era apenas aquele garotinho na posse de um controle remoto e um carrinho de brinquedo. O brilho flamejante em seus olhos, a paixão refletida em seu rosto; tudo ainda estava ali, intacto, alimentando seu desejo de vencer.
— Você ainda tem o carro? Podemos mostrá-lo em algum momento — sugiro, divagando sobre como seria interessante mostrar, durante as filmagens, esses souvenirs de toda sua trajetória.
— Tenho, sim.
— Ok, próxima foto.
Lewis vasculha com o olhar todas as fotos espalhadas até parar em uma que o mostrava sentado em um carrinho de kart, segurando uma criança que vestia um casaco cinza. Os dois sorriam de orelha a orelha. O carro tinha um número 1 estampado na parte da frente, e ao lado, um capacete amarelo completava a cena.
— Quem é esse? — questiono, curiosa.
— Esse é o meu irmão, Nicholas — ele para um pouco, olhando para a foto com um sorriso carinhoso no rosto. — Eu sempre fui fascinado com a ideia de ter um irmão, era algo que eu sempre pedia ao meu pai. Quando ele chegou na minha vida… eu não conseguia desgrudar dele.
A luz baixa do ambiente refletia os olhos de Lewis, que estavam brilhando enquanto falava do seu irmão.
— Ele nasceu prematuro, consequentemente, evoluiu para uma paralisia cerebral. E durante muito tempo, ele utilizou uma cadeira de rodas para se locomover, mas hoje em dia, por um milagre e muito esforço, é piloto de corrida assim como eu. Eu admiro muito sua serenidade e tudo que ele passou pra chegar aonde chegou.
Hamilton conta ainda sobre como sua família sempre contornou muito bem a situação para que ele não enxergasse todo o sacrifício feito naquela época, mas uma vez que você tem idade suficiente para tomar consciência da realidade, acaba sugando os problemas da família.
Meus olhos estão à beira de transbordar ao ouvir a história de Nicholas. Olho para cima na tentativa de evitar que elas caíssem, piscando rapidamente. Ouvir histórias inspiradoras traz para a superfície um lado que pouquíssimas pessoas têm acesso. E eu odiava esse meu lado, porque sempre fui essa fortaleza em pessoa, mas em momentos como esse, era um pouco difícil de controlar.
— Que história incrível, Lewis! — respondo com a voz um pouco falha. — Eu só consigo imaginar o quanto ele também te inspirou.
— Você nem imagina o quanto. Acho que com o tempo eu fui compreendendo que pessoas nessas condições têm uma personalidade incrivelmente forte. Todas as vezes que ele cai, ele se levanta sempre. Não importa as adversidades. Eu levo isso comigo pra sempre.
— E quando foi o início dele para ser piloto de corrida?
— A partir do momento que ele conseguiu sair da cadeira de rodas, se tornar um piloto de corrida foi o único objetivo dele.
— Cara, eu fiquei fascinada com essa história — confesso.
Eu realmente estava. Histórias como aquela me faziam refletir sobre as minhas dificuldades e como nos tornamos pequenos colocando os problemas de outras pessoas em perspectiva. Aquilo só me motivava a não desistir, não importando o quão desafiador fosse o caminho a seguir.
— Eu não deveria normalizar essas coisas. É legal contar sobre isso para nunca se perder no espaço.
— Não, jamais normalize isso. É incrível o que ele fez. E depois que se finaliza um ciclo tão sinuoso como esse, que se colocou muito esforço, falar sobre isso é importante para inspirar outras pessoas ou para refrescar nossa memória, principalmente quando nossa mente tenta nos sabotar em alguns momentos.
— Você tem toda a razão. Além disso, as pessoas que escutam as histórias, escutam uma versão muito resumida de tudo o que aconteceu, sabe?
— Muito, mas muito resumida — dou uma risada, pensando em tantos obstáculos que tive que passar que hoje viraram uma versão pocket da minha vida. — E ele corre em qual categoria?
— Hoje em dia ele corre no campeonato britânico de carros de turismo, sempre usa um carro adaptado — ele faz uma pausa, sorrindo. — Há alguns anos, a Mercedes adaptou o simulador oficial da equipe para que ele tivesse essa experiência dentro da Fórmula 1. Isso é bem raro, não é acessível pra todo mundo, mas foi incrível. O sorriso dele, poder fazer essas pequenas coisas por ele é maravilhoso.
— Lá vem você querer normalizar. Isso é tudo, menos pequeno. Isso é foda pra caralho! Você tem que me apresentar ao seu irmão, já sou fã dele.
Hamilton ri, concordando que em breve ele faria esse encontro acontecer nos bastidores. Ele coloca a foto de volta e pega outra, uma que o piloto estava sentado na lateral do seu carrinho de kart, com o mesmo macacão azul e o capacete em sua frente.
— É do mesmo dia?
— É, sim, foi quando ganhei o campeonato britânico júnior de karting. Eu tinha por volta dos dez anos — ele diz com brilho nos olhos.
— Olha seu sorriso! É claro que você tinha acabado de ganhar — comento, também sorrindo. Ele tinha esse sorriso infantil de orelha a orelha na foto, que se parecia muito com o de hoje em dia, para ser sincera.
Seus olhos encontram os meus e, por um momento, parece que a alegria que transbordava na foto havia sido transportada para nós. Lewis parecia estar se divertindo, revivendo todos aqueles momentos especiais, e eu pude sentir um pouco dessa emoção que emana dele.
— Foi um dos melhores dias da minha vida — confessa. — Eu lembro do peso que estava sentindo no dia… Sabe quando você tem que fazer dar certo? — ele pausa um pouco e eu assinto. — Houve muito esforço, de uma família inteira envolvida, embora ter sentido no começo desse que dia nada ia dar certo.
— Eu sei exatamente o que você está falando. É impossível não sentir esse peso quando você não veio de um lugar de privilégio.
— Exatamente. Meu pai e minha madrasta apostaram todo dinheiro para que eu corresse, tiveram até que re-hipotecar várias vezes a nossa casa por esse objetivo… — ele suspira, voltando a falar da corrida. — Enfim, lembro que não poderíamos gastar tanto no capacete, então meu pai me levou numa loja DIY*.
— Você escolheu a cor, então? Parece com um capacete de um certo piloto — me refiro ao capacete do Senna.
— Foi uma completa coincidência, acredita? Meu pai escolheu o amarelo porque era mais fácil me reconhecer no meio de quarenta crianças correndo na pista. Mas eu escolhi as cores destacadas, vermelho, azul e verde.
— E como era andar nesses mini carrinhos? Parece ser uma catástrofe.
— Você nunca andou? — Nego com a cabeça. — Vou ter que te levar um dia, é divertido!
— Vou cobrar!
— Mas, de fato, era uma bagunça no começo. Chegava até ser um pouco assustador, porque são muitos carros, porém, foi onde aprendi a lidar comigo sendo um piloto. Aprendi a colocar os cotovelos para fora — Lewis faz o movimento, me mostrando como sua postura deveria ser. — Foi basicamente onde desenvolvi minha forma de correr. O kart foi uma base sólida para o começo de tudo.
— O seu pai devia ficar tão nervoso te vendo nessa loucura toda.
— Nem me fale, não sei como o velho não infartou.
— E como foram as barreiras raciais nesse começo?
— Ah, boa pergunta — ele olha para cima, perdido em suas lembranças antigas, um pouco pensativo enquanto alisava o corpo de Roscoe por um instante. — Durante todo aquele tempo, éramos a única família negra dali, e nosso principal rival era contra uma criança que tinha uma família muito bem de vida, com um background próspero, sabe? — Lewis começa a explicar e eu assinto, porque se tinha alguém que sabia o que aquilo significava, era eu. Afinal, estudar num colégio particular com bolsa não tinha sido fácil, principalmente por não ter tantos amigos que se pareciam comigo. — Para você ter noção, ele tinha dois mecânicos.
— E você tinha um?
— Sim, meu pai! — Lewis sorri. — Ele fazia tudo no carro, e eu ajudava a consertar uma coisa ou outra, sabe?
— E mesmo com todas as estatísticas apontando que o outro garoto seria campeão, você ganhou?
— É isso. Foi o que deu pra fazer — ele diz convencido, o que me arrancou uma risada sincera. — Ele precisava ganhar a última corrida e eu tinha que terminar em quinto ou algo assim. Daí, a roda dele caiu.
— NÃO! — digo em um tom mais alto, surpresa com a reviravolta. — Eu chamo isso de justiça divina. Nossa, seu pai deve ter ficado tão feliz.
— Não consigo nem descrever sua felicidade. Aquele dia foi o que me trouxe à primeira lembrança de criação de um laço sincero com ele, porque nós voltamos dirigindo de volta para casa cantando juntos “We are the Champions” — Lewis parece mergulhado nas lembranças daquele dia, sorrindo ao contar.
— Deve ter sido incrível para vocês… enxergar que o investimento financeiro, o tempo e esforço gasto nisso, finalmente tinha dado frutos.
— O preço da conquista é enorme, mas a conquista em si vale a pena — Lewis diz por fim e eu concordo com a cabeça. — Ok, isso é injusto — ele comenta, me assustando. Não achei que tinha falado nada errado.
— O que é injusto? — pergunto, confusa.
— Não, não. É só que apenas você faz as perguntas, estou me sentindo um pouco exposto aqui — ele une suas mãos à frente do corpo, com um sorriso tímido. Respiro aliviada.
Fazia muito sentido esse sentimento de exposição, afinal, eu estava fazendo um interrogatório completo, nível FBI, para pegar todos os detalhes e transformá-los em uma história. Era nítido que, apesar de ter um grande número de pessoas assistindo sua vida, Hamilton não estava confortável com a posição de expor muito além do que já é escancarado para a mídia , mas era necessário por um propósito maior.
— Eu entendo. É como se você estivesse abrindo uma janela da sua vida, onde todo mundo quisesse assistir de lá — tento trazer uma palavra de conforto para que ele fique um pouco mais tranquilo com o processo. — Mas tudo bem. Me faça uma pergunta.
Lewis vira seu corpo para mim, fazendo com que Roscoe resmungasse um pouco em seu colo. Seus olhos param em mim, me deixando um pouco nervosa, porque não sabia o que ele iria perguntar.
— Me diga algo da sua infância.
Pondero o que eu falaria sobre mim. Talvez algo que lembrasse muito da sua própria história, assim ele também se sentiria incluído e próximo de mim, para quebrar um pouco esse gelo.
— Eu já fui atleta de natação.
— O quê? Não consigo acreditar.
— Pois acredite, eu já senti esse gostinho da competitividade aflorar minha pele.
— E por que você não continuou?
— Meus pais viviam no meu pé para que eu focasse nos estudos, tirar notas boas, passar de ano e fazer uma boa faculdade no futuro. A verdade é que sempre fui péssima em exatas, então era uma dificuldade enorme para mim estudar essas matérias. E muitas vezes eu faltava algum dia no colégio para competir nas regiões perto de onde eu morava.
— E isso fez com que eles te tirassem do esporte?
— Sim. No começo eu senti um pouco de falta, mas eu estava começando a me sentir desconfortável nesse ambiente. As pessoas mudam bastante por poder e competição.
— Ah, disso eu sei bem. E como é a relação com seus pais?
— Nos damos perfeitamente bem, e eu sou completamente apaixonada por eles.
— Quantos irmãos você tem?
— Nenhum, sou filha única.
— Filha única? — ele pergunta novamente, um pouco surpreso com minha confissão.
— Aham.
— Como foi crescer sozinha?
— Foi ótimo! Eu sempre lidei muito bem com isso, e nunca quis dividir atenção dos meus pais. Sou bem possessiva com eles.
— Oh, ciúmes dos pais? Imagine dos namorados…
— Nunca tive um pra saber se sou possessiva com eles — pisco para ele.
— Nem com ficante?
— Eles nunca valeram a pena meu ciúmes, Sir — respondo por fim, sentindo que Lewis tinha outra pergunta na ponta da língua, mas eu intervenho antes que a fizesse. — Agora vamos voltar para o meu interrogatório, depois você pode fazer mais uma pergunta no final da noite — volto minha atenção para as fotos.
— Aff, estava começando a me empolgar — ele diz chateado, me arrancando um riso.
Me estico por cima da mesa, indo em direção a um retrato em que ele estava todo engomadinho, de terno e gravata borboleta, segurando um troféu dourado gigante em suas mãos. Ou pelo menos tentava segurá-lo.
— Olha só pra isso, esse troféu é dois de você!
— Nem bigode eu tinha, apenas beleza desde sempre.
— Temos que parar de discutir sua beleza, é algo que não se entra em discussão — deixo escapar sem pensar.
Nós estamos próximos agora, tão próximos que seu braço esquerdo está descansando no sofá, praticamente me abraçando pelos ombros. Eu conseguia sentir o calor do seu corpo. Olho para ele e minha respiração descompassa; seus olhos brilham na penumbra me roubando toda a atenção, fala e pensamentos. Peço um sinal do universo para sair daquele transe que ele me prendera, e, bem naquele momento, Roscoe passa por cima das nossas pernas e se aconchega entre nós. Um anjo em forma de cachorro que me livra de uma enrascada.
— Ei, Buddy’s, como pode ser tão ousado?
— Os filhos sempre puxam ao pai — olho lateralmente, rindo, e ele fez um “o” surpreso com minha resposta.
— Enfim, voltando para esse momento — Lewis aponta para a foto. — Eu tinha acabado de ganhar o campeonato de kart da Fórmula Cadet e teria esse evento grandioso, cheio de requinte. Então, meu pai pegou um terno emprestado, Linda ajeitou as mangas que estavam longas demais e eu fui.
— Esses eventos parecem ser um saco.
— E são mesmo, mas era uma noite para pegar contatos também, então estávamos meio que numa missão. Eu tinha começado a acompanhar com mais frequência a Fórmula 1, e eu era simplesmente fascinado pelas cores da McLaren por ser a casa do Senna.
— Claro que era — comento do seu fanatismo pelo piloto brasileiro.
— Então, meu pai fez um livro de autógrafos e foi me guiando para pegá-los com pessoas específicas. Ron Dennis foi o primeiro. Era o chefe de equipe da McLaren, e quando apareceu em nossa vista, meu pai me guiou para falar com ele. Lembro que ele passou uns bons minutos conversando comigo, me dando conselhos, até que pedi seu autógrafo. E junto pedi que deixasse seu telefone e endereço.
— Desde sempre ousado, viu? — Lewis ri e balança a cabeça, tentando negar. — Mas ele deu?
— Sim, achei que ele não daria por um momento, até que ele escreveu e antes de se despedir de mim disse para ligá-lo em nove anos.
— Você guardou esse livro?
— Sim, tenho em algum lugar essa mesa! — ele se levanta e Roscoe se remexe, então olha para mim e encosta sua cabeça em minha coxa. Faço carinho em seu pelo curto e ele fecha os olhinhos, estava adorando. — Aqui! Só está um pouco… velho.
Pego o pequeno livro em mãos, com uma aparência amarelada e uma fina camada de poeira, o que indicava que ele não era tocado há bastante tempo. Ao abrir, um cheiro de papel velho e madeira antiga se espalha no ar. Ótimo. Aquilo me faria espirrar a noite toda, mas tudo em nome de uma história que valia a pena ser contada.
À medida que Hamilton falava, enquanto passeava pelos anos através das fotografias, sua paixão por aquelas experiências ficavam mais evidentes.
— Podemos continuar amanhã? — ele sugere. — Está na hora das minhas últimas perguntas.
— Lembro de ser apenas uma. Você é muito curioso! Mas tudo bem, preciso descansar meus punhos — deixo o notebook de lado.
— Você quer saber por que eu insisti em assistir sua visão do documentário? — Lewis questiona.
A pergunta me pega de surpresa, afinal, eu nunca tinha pensado sobre isso. Eu realmente acreditei que ele simplesmente tinha detestado o roteiro anterior, e o meu tinha surgido como um milagre bem na sua frente.
— Claro.
— Quando entrei naquela sala, você foi a primeira pessoa que me chamou a atenção.
— Por quê? — pergunto, curiosa.
— Em um ambiente com vinte pessoas reunidas, você era a única que se parecia comigo. Você era a única pessoa de cor, . Além do mais, você era a única mulher. Você reconhece o poder que você tem ao ser única num ambiente desses?
Naquele momento, me esqueço de como se respira. Aquelas palavras me deixam sem fôlego. Eu simplesmente travo, incapaz de processar o que ele está me dizendo. Eu, que me sentia tão empoderada, nunca tinha pensado em mim mesma daquela maneira, mas as palavras de Lewis vieram para lembrar que eu tinha algo que ninguém mais tinha. Algo que me diferenciava dos outros.
Ele havia me notado. Sim, eu tinha sido notada, e isso significava algo.
O piloto poderia simplesmente ter dispensado a empresa, sem pensar duas vezes, mas eu, por ser quem eu sou, havia tornado difícil demais para ele ir embora sem dar uma segunda chance. Sinto uma mistura de orgulho e humildade expandir-se em mim, reconhecendo que eu tinha algo para oferecer ao mundo, mas entendendo que precisaria usar esse poder com responsabilidade.
Não consigo raciocinar nenhuma resposta, nenhum pensamento corriqueiro. Nada. Só consigo sentir gratidão por Lewis Hamilton ter me notado e me dado a oportunidade de mostrar o meu trabalho. Aquela seria uma atitude que eu nunca mais esqueceria.
— Eu-eu — titubeio, tentando encontrar as palavras certas. — Eu não sei o que dizer, eu… Obrigada por me notar. Não consigo falar nada além disso, você conseguiu me deixar sem palavras.
— Isso realmente é algo difícil, já que todas as vezes que te encontrei, você nunca calou a boca — ele brinca, sorrindo.
Abro minha boca em surpresa com sua sinceridade, então o empurro com os ombros, fingindo estar ofendida.
— EI! Nem sou tão tagarela assim, vai.
— Não é não, relaxa. Talvez você sinta que são tantas palavras no mundo que não consegue não falar todas elas.
Ele continua brincando comigo, mantendo a leveza da conversa e me deixando mais à vontade.
— Lewis, obrigada por falar isso. É muito bom me sentir vista.
— Não foi nada, faz parte da minha missão.
— Nunca pensei que num dia comum como aquele, alguém como você me notaria.
— Bem, é no ordinário que o extraordinário acontece — ele dá de ombros com um sorriso no rosto.
— Vou roubar essa frase e usar em algum lugar um dia.
— O quê? — ele ri.
— Coisas de autora, você não entenderia.
Lewis joga as mãos para o alto, rendendo-se, já que não era seu lugar de fala. E durante toda noite, e ao longo de mais dois dias que passo em Mônaco, consigo ter mais do que um vislumbre de toda sua carreira. Eu estava mergulhando profundamente em todos os detalhes de sua vida, porém, mais ainda, eu estava sugando toda sua essência única, peculiar e autêntica, que era quase boa demais para ser verdade.
O piloto é verdadeiramente fascinante, e a cada troca eu me via mais inspirada por ele. Consigo me enxergar em diversos momentos, como se cada palavra e experiência ecoassem em minha própria jornada. O caminho para alcançar meus objetivos enquanto pessoa de cor seria pavimentado com desafios adicionais, exigindo um esforço três vezes maior para enfrentar as adversidades.
Lewis fez, faz e continuará lutando contra isso.
Então, trabalhar com ele me tornava não apenas uma colaboradora, mas uma aprendiz dedicada de suas lições de vida.

*Loja DIY: é um estabelecimento que vende materiais, ferramentas e produtos para o "faça você mesmo" (do inglês "do it yourself").


5.

Olho para a tela do celular, percebo que estou ficando sem tempo e tento correr para os portões de embarque. Esbarro em algumas pessoas no caminho, pedindo seguidas desculpas até antes mesmo de trombar nelas, e tudo isso tentando equilibrar as malas em ambas as mãos. Eu deveria ter arrumado ontem, mas minha procrastinação apenas me travou e agora ela vai me fazer perder o voo.
O anúncio de fechamento dos portões ecoa pelos alto-falantes, e é nesse momento que consigo alcançar o balcão de informação. Regulo minha respiração antes de implorar por um novo voo disponível.
— Por favor, qual próximo voo para o Nepal você tem?
— Só um instante, vou verificar para você — diz calmamente a mulher à minha frente. Minhas unhas tamborilam num ritmo frenético no balcão sob seu olhar de julgamento, o que me gera ainda mais ansiedade.
— Então...? — pergunto novamente, na pressa de escutar um milagre em forma de resposta.
— Posso te encaixar no próximo voo, dia 23.
— Mas isso é na semana que vem, você tem certeza? Nem para amanhã? — meu tom de voz alterado, quase que fino demais, demonstra meu desespero.
— Todos os voos da semana estão lotados, senhora — a mulher diz firme.
— Quem tanto quer ir para o Nepal, senhor Deus?! — respiro fundo, tentando recuperar a compostura. Reunindo toda minha energia para informar a equipe, digo, Patrick, que eu havia perdido o voo. — Obrigada, Kate! — agradeço quando leio seu nome no crachá pendurado em seu pescoço. Ela me lança um sorriso gentil, compadecendo com minha frustração.
Caminho em direção ao banco mais próximo para descansar e ligar para um anjo me salvar. Deixo minhas malas grudadas ao meu corpo, alcanço o celular que estava no meu bolso, arrasto os contatos e clico no nome de Patrick.
— Ei, ! Já está embarcando? — ele pergunta, e em sua voz transparece o quão sorridente ele está.
— Então, é sobre isso que eu queria falar com você... Eu perdi meu voo.
— Não acredito! E você conseguiu remarcar?
— Não, porque o próximo disponível é na segunda-feira. Eu não sei o que fazer, infelizmente a culpa foi toda minha...
, se eu estivesse aí, iria puxar a sua orelha.
— Eu sei, eu mereço por essa mancada.
— Vou ver o que posso fazer, daqui a pouco te dou alguma resposta — e desliga.
Passam alguns minutos e eu observo as pessoas correndo de um lado para o outro. Fico me lembrando que fui uma dessas pessoas minutos atrás, e espero, do fundo do meu coração, que elas tenham mais sorte do que eu. Fecho meus olhos e tento canalizar toda culpa e remorso que eu sentia, implorando para que tudo se resolvesse.
Logo meu celular vibra com uma mensagem de Patrick informando que eu deveria ir imediatamente para o Terminal VIP e em cerca de duas horas eu voaria para o destino final. Questiono que loucura era aquela, porque nunca que alguém iria me deixar entrar naquele lugar; afinal, pelas minhas informações, apenas celebridades e milionários usavam aquele serviço. Patrick não me responde mais, então apenas sigo o direcionamento e aceito esse presente do universo.
Ando bastante, já que o local fica bem longe do terminal dos passageiros. Mas quando chego na entrada, sou tão bem recebida por um funcionário vestido impecavelmente com um terno preto, que nem reclamo das calorias que gastei.
— Senhorita ?
— Isso! — respondo com entusiasmo enquanto entrego-lhe meu passaporte. Ele digita algo rapidamente no notebook e devolve meu documento.
— Estávamos à sua espera! Me chamo Carlos Ramírez e vou te conduzir à sua suíte, pode vir comigo — ele diz tudo isso com um sorriso simpático estampado no rosto.
Deslizo minhas malas pela recepção, mas logo um outro funcionário me para, dizendo que as levaria para o quarto. Fico surpresa com todo aquele tratamento, sinto que havia chegado ao céu antes mesmo de morrer.
Caminho junto dele, embasbacada com a beleza daquele lugar. Quando ele abre a porta para mim, meus olhos encaram uma bela versão de um mini apartamento dos sonhos; uma suíte luxuosa, com poltronas e sofás que aparentam ser mais confortáveis que todos os meus móveis juntos, além de uma cama macia com lençóis extremamente brancos que gritam alta qualidade. Aquele é o próprio refúgio espiritual dentro daquele aeroporto caótico. As paredes são todas revestidas com um rico painel de madeira escura, e o chão, de mármore polido, que refletia a iluminação suave do teto.
— Creio que a senhorita esteja cansada, então pode tirar um cochilo que em breve lhe acordo antes do voo chegar. Se desejar algum prato diferente do cardápio, pode utilizar o telefone para se comunicar comigo, ok?
— Tudo bem. Obrigada, Carlos — respondo antes de ele se retirar.
Curiosa, vasculho o banheiro e vejo que tem uma banheira de hidromassagem, chuveiro espaçoso e produtos de banho que eu nunca havia visto na vida. Estou em completo choque e não sei como a empresa vai pagar por tudo isso. Entro em outro lugar, onde há uma mesa repleta de lanches, comidas gourmetizadas e várias bebidas premium, até champanhe. Sou extremamente discreta em tudo – pego apenas um refrigerante zero e como apenas os pratos que conheço, afinal, nem estava com tanta fome assim, mas também não desperdiçaria esse momento.
Eu finalmente entendi os famosos pagarem por algo tão caro como isso. É maravilhoso não lidar com o caos do lado de fora, além do mais, não ser obrigado a trocar energia com tantas pessoas em cima de você.
Essa era a realização de uma vida plena e satisfatória.
— Não acredito que você está dormindo. Pronta para perder outro voo novamente.
Subo o tronco rapidamente da cama, num susto por ter cochilado. Não era uma pretensão, mas aparentemente caí no sono sem perceber.
Eu conhecia aquela voz que estava falando comigo.
Pisco milhões de vezes para ver se não é uma miragem. Mas não, Lewis Hamilton em carne e osso estava diante de mim, debochando do meu atraso. Meus olhos o filmam lentamente, num movimento progressivo, começando pelo seu tênis casual vermelho – definitivamente o ponto mais atrativo de todo o resto do seu traje. A calça larga e cinza, com alguns bolsos nas laterais caindo perfeitamente nos seus quadris de maneira despreocupada, o que combina com sua postura. E uma camisa branca básica, que realça seus ombros e delineia o contorno de seus braços. Conforme meus olhos sobem, não passa despercebido a curva do seu queixo preenchido pela barbicha, e seus lábios curvando-se em um sorriso suave.
Posso jurar que o tempo desacelera alguns segundos para apreciar a presença de Lewis.
— Então você é minha carona? — pergunto assim que saio de transe. Ele concorda com a cabeça mantendo o sorrisinho dançante nos lábios. — Graças a Deus, estava achando que eu teria que pagar por isso tudo no final do mês — digo, conseguindo arrancar uma risada dele.
— Alguém tinha que te salvar, não é mesmo? — Lewis responde com as mãos dentro do bolso, meio tímido. Um traço da personalidade dele que eu só percebo agora.
Levanto da cama, puxo meu celular que está ao meu lado e me espreguiço rapidamente.
— Realmente você me salvou, nem sei como te agradecer — jogo meu cabelo para um lado na tentativa de arrumá-lo, pois ele devia estar em um emaranhado de fios com frizz.
— Está tudo certo. Vamos? Já abasteceram o avião! — ele me dá passagem para a porta.
Um carro prata está à nossa espera; Lewis entra rapidamente nele enquanto um funcionário abre a porta para mim. Repito: um funcionário abre uma porta para mim. Nossa, dessa vez o universo tinha me gratificado demais, chegava até desconfiar de quais provações eu passaria nos próximos dias.
A carona mal dura dois minutos e já estamos no pé do avião. O homem ao meu lado sobe as escadas do avião agradecendo a todos que estavam ali e eu faço o mesmo, sendo muito bem recebida a cada “seja bem-vinda” que eu escuto.
O interior da cabine conseguia ser mais luxuoso que a suíte que eu estava alguns minutos atrás. Todas as poltronas são brancas, com assentos estofados em couro macio. Já havia duas camas preparadas para nós dois, mais para o fundo, e meu corpo já sentia o prazer que seria dormir nelas.
— É seu?
— Não, vendi o meu há uns bons anos. Toda essa pegada de sustentabilidade me pegou muito. Mas quando preciso, eu pego carona com algum amigo ou alugo de última hora.
— Faz sentido.
— Vamos ter duas paradas no caminho, mas não precisamos sair do avião.
— Se importa se eu dormir? É um voo longo, fico prestes a surtar quando fico muito tempo parada.
— Claro que não, provavelmente farei o mesmo. — Observo Lewis acomodar-se na cama oposta à minha. — Parece que o tempo não passa aqui dentro, sabe? Eu também não lido bem em passar muito tempo confinado na mesma posição.
Me sento na cama e procuro meu remédio para facilitar meu sono e minha máscara para dormir.
— Por isso eu sempre trago meu remedinho — respondo, exibindo o pequeno frasco com um sorriso alegre. Engulo um comprimido e coloco-o de volta na bolsa.
— Parece que você tem tudo planejado — Lewis sorri de volta, então coloca seus fones, me dando abertura para colocar minha máscara sobre meus olhos e relaxar até nosso destino.


🎬🏎️


Chegamos no aeroporto depois de muitas horas de voo – quando digo muitas, é porque eu não faço a mínima ideia de quantas, apenas que são muitas. Aparentemente, toda equipe já estava na casa de férias que Lewis teria alugado, além de alguns de seus amigos também estarem acompanhando essa aventura. As gravações já haviam começado, mas essa seria a primeira vez que eu estava participando, apenas por um tempo curto, até a finalização completa do roteiro. A verdade é que o piloto gostaria de começar tudo por um momento de lazer antes de mostrar toda sua correria durante uma temporada de Fórmula 1.
— Psiu! — ele me chama na porta de carona do carro. Viro meu corpo e vejo que ele joga algo para mim. Graças ao meu rápido reflexo, pego no ar o objeto, que identifico ser a chave.
— Quê? — olho assustada para Lewis, porque não entendo direito que ele havia me dado a chave para dirigir. — Essa conta não está batendo, você é o piloto!
— Fato curioso sobre mim: odeio dirigir fora das pistas de corrida. Gosto de admirar a vista quando não estou olhando apenas borrões através da janela.
— Ai, meu Deus, você não é daqueles que reclamam o tempo todo, é?
— Eu sou tranquilo, prometo — ele diz com as mãos justapostas.
O fato é que estou um pouco apreensiva, não tanto por sentir um quê de avaliação, afinal, eu estaria dirigindo um carro para um piloto de ponta, o que de certa forma soa como uma análise arisca. Mas eu também passaria horas naquele volante, então, em algum momento, o cansaço tomaria conta de mim.
— Tudo bem, você é o chefe de qualquer forma — digo me dando por vencida, sem trazer à tona nenhuma das minhas preocupações.
Contorno o carro com um pouco de dificuldade para subir nele e ocupar meu lugar de motorista, já que eu nunca havia dirigido um tão alto. Apesar disso, eu tinha uma leve impressão que seria divertido estar conduzindo-o pelas estradas montanhosas de Nepal. Lewis logo preenche o espaço ao meu lado, depois de ter colocado nossas malas no banco traseiro.
— Você colocou o endereço no mapa?
— Sim, eu sou um ótimo copiloto, pode confiar.
Sigo as instruções das placas para sair do aeroporto, que para nossa sorte, estavam traduzidas em inglês abaixo da língua nativa. Antes de aterrissar, o piloto havia me dado a notícia de que iríamos de carro até Pokhara, local onde ficaríamos instalados. Por um momento, tive a plena certeza de que ele estava completamente maluco com essa ideia – até porque isso seria um trecho de seis horas no mínimo –, mas eu não poderia sugerir nada, afinal, ele era o chefe.
No entanto, quando pegamos a estrada, não posso deixar de testemunhar, sob o céu ainda bem azul e limpo, cenários que variam de vales deslumbrantes para montanhas quase que monumentais. Meus olhos brilham com as cores vibrantes das vestimentas locais cada vez que passamos por uma vila pitoresca. Bem naquele momento, entendo por quê Lewis queria tanto fazer aquele trajeto terrestre.
— O que você quer ouvir? — ele pergunta com o tom de voz relaxado.
— Não sei... O que você geralmente escuta? — devolvo, curiosa, observando sua mão mexer no painel de controle.
Ele sorri de lado e dá de ombros, parece parar para pensar.
A música que preenche o ambiente mescla elementos de jazz, soul e R&B, e é acompanhada por uma voz suave e hipnotizante da vocalista. Por bastante tempo, deixo que a música ocupe o silêncio entre nós, mas a minha curiosidade fala mais alto para saber mais sobre o que Lewis Hamilton gosta de ouvir. Por nenhum motivo aparente, apenas e somente por uma pesquisa de campo.
— Quem canta?
— Sade, uma cantora britânica dos anos 80.
— Ah, a dona do hit Smooth Operator?
— A primeira e única! Mas elas se diferem muito. Paradise me transporta literalmente para um paraíso, sabe? Onde ninguém pode me estressar.
Paradise falava sobre um desejo de partilhar a vida com alguém e uma busca incansável por uma espécie de paraíso pessoal, que em partilha com a voz cativante da Sade, criava-se um senso de intimidade e romance que cativava qualquer um que prestasse o mínimo de atenção ao escutá-la.
— A voz dela é muito envolvente, como se ela criasse uma atmosfera que é difícil de resistir.
— É por isso que gosto tanto.
Lewis sorri, concordando comigo, e em poucos segundos fecha-se no seu mundo para apreciar as paisagens através da janela. Mesmo que minimamente, aquilo quebra um gelo de demasiadas horas dentro do carro.
Depois de pelo menos duas horas, e muitas perguntas bobas para matar o tempo, o cenário ao redor começa a se tornar remoto, quase inabitável. A sinalização se torna cada vez mais confusa – era como se o GPS tivesse nos mandado para lugar nenhum.
Sinto que não íamos chegar. É certo que estamos perdidos.
— Você tem certeza que está seguindo certo o mapa? Tenho a leve impressão que estamos perdidos — rio de nervoso.
— Aham — Lewis relaxa ainda mais no banco do passageiro.
Por algum motivo eu não consigo acreditar nele, e o seu jeito relaxado está começando a me irritar, mas, dessa vez, eu não daria ouvidos à minha intuição; daria ao piloto o benefício da dúvida. Continuo dirigindo, mas a estrada fica cada vez mais estreita, boa parte dela sem asfalto e com muitas curvas acentuadas. Os vilarejos ficam cada vez menos populosos, o que deixa mais evidente que em algum momento erramos o caminho.
— Éer… ?
— O quê?
— Você entrou na saída de Damauli?
— Não, entrei nesse outro nome esquisito.
— Khakauli?
— Aham.
— Eu acho que erramos a entrada.
— Me deixe ver — pego o celular de sua mão, vendo que definitivamente estamos mais distantes. — A entrada era a CINCO quilômetros atrás, Lewis. E olha aqui, a entrada indicada era essa — aponto para a palavra que começa com D.
— Mas eu achei que... — ele para, olha e gira a tela. — Nossa...
— O quê?
— Eu acho que estava lendo o mapa ao contrário.
— Você não soube ler a porra de um mapa?! — grito, mas logo me passa pela cabeça que eu tinha gritado com meu chefe. Quem em sã consciência faz isso?
— Eu achei que sabia. Não vamos ficar estressados com isso, ok? Podemos achar uma saída.
— Sem sinal nos celulares? — questiono. Lewis me lança um olhar baixo de quem se sente completamente culpado por termos nos perdido. Estou muito cansada por estar dirigindo há horas, cansada da viagem de avião, de ter perdido o voo. Tudo parece atingir meus ombros e eu sinto esse peso chegar. — Não dá pra ligar pra ninguém. Estamos completamente perdidos — passo a mão pela cabeça, puxando os cabelos para trás num completo ato de desespero.
— Parece que alguém não meditou hoje, hein?
— É, ainda não transcendi a ponto de meditar enquanto durmo.
Um silêncio paira no ar. Apoio minha cabeça no encosto do banco e fecho os olhos para respirar.
— Desculpe, . Deveria ter trazido um mapa físico para decifrar, pelo menos — ele fala com uma voz carregada de remorso. Mas é mais do que óbvio que ele não tinha feito nada de mais; somente minha frustração de estar no meio do nada que me fazia arrancar meus cabelos.
— Relaxa, a gente vai dar um jeito.
E essa é minha versão de desculpas por ter gritado. Sim, sou orgulhosa.
Olho para a tela novamente na esperança de encontrar as barrinhas do sinal preenchidas, mas elas continuam vazias, quase que zombando de mim.
— Vamos continuar dirigindo, talvez a gente encontre um posto de gasolina ou algum vilarejo em algum momento.
Faço o que ele sugere e piso no acelerador sem pena, desesperada para sair dali e encontrar um lugar com vida no meio daquele breu.
O tempo vai passando e agora apenas a música num volume baixo preenche o ambiente. Se alguém nos assistisse naquela situação, chutaria que fizemos algum tipo de aposta em que tínhamos que ficar sem nos falar pelo máximo de tempo possível. E ainda estaríamos disputando fielmente, porque o silêncio é tão esmagador que há uma tensão que poderia ser cortada com uma faca.
— Isso é um...
— Sim.
Avistamos um bar de beira de estrada. Estaciono o mais rápido possível para entrar logo no estabelecimento, agradecendo a Deus e todos os seus ajudantes por aquela benção de encontrar um lugar para pedir ajuda, já que meu copiloto é melhor sendo piloto.
O bar é minimalista e rústico, com alguns clientes espalhados pelas mesas. Desde quando desci do avião, percebi que as vestimentas eram bem diferentes naquele lugar, e o homem baixinho que aproxima-se de nós não é diferente: ele está vestido com uma calça larga e uma camisa longa com botões na frente.
— Desculpe-me, estamos um pouco perdidos porque esse homem aqui do meu lado se perdeu lendo um mapa, você acredita nisso? Enfim, queremos chegar em Pokhara, você sabe como nos ajudar?
— Namastê! — o homem faz um tipo de reverência para nós. Lewis repete seu gesto enquanto sorri, todo simpático.
Era só o que me faltava. Se dependesse dele, daqui a pouco estaríamos num desses retiros espirituais.
— Como… chegar… em… Pokhara? — pergunto pausadamente, como se isso fosse ajudar em alguma coisa.
— Pokhara? — ele franze a testa.
— Sim… cidade… Pokhara? — Lewis enfim tenta ajudar.
O homem em nossa frente sacode a cabeça, mostrando que não estava entendendo nada. Olho para meu celular e não tem nenhum sinal para usar um tradutor.
— No inglês, não entender. Raju — ele diz pausadamente e aponta para si mesmo. Bom, pelo menos aparentemente “Raju” é o nome dele. O homem gesticula com as mãos antes de sair das nossas vistas, mas não entendemos nada. Ficamos plantamos com cara de tacho esperando algum anjo nos ajudar.
— Estamos ferrados, Lewis. Nossos celulares não têm sinal. Não sabemos a língua. Nossa, me desculpe ter feito você parar em Los Angeles pra me pegar. Isso não estaria acontecendo se você tivesse...
— Ei, ei... relaxa. Eu nã...
Antes que ele terminasse de me consolar, um senhor de barba praticamente grisalha, com um pano em seu ombro, nos cumprimenta com um sorriso.
— Vocês estão perdidos?
— Ah, você fala inglês! — digo aliviada. — Qual seu nome?
— Podem me chamar de Bill.
— Então, Bill, sim, estamos muito perdidos. Queríamos chegar em Pokhara.
— Ah! Mas vocês não vão conseguir chegar hoje, estão muito distantes, e a estrada é escura, péssima de sinalização. É no mínimo quatro horas de viagem daqui, porque vocês se distanciaram da entrada da cidade — ele nos explica.
— Que droga. Você sabe algum lugar que poderíamos ficar até amanhã de manhã?
— Bom, nessa época acho difícil encontrar algum lugar disponível.
— Ainda mais essa — resmungo.
— Mas temos um quarto sobrando. Venham comigo!
Agradeço a Deus, mas ainda pensando sobre o fato de ser um quarto único. Lewis o segue sem me olhar, porque talvez não tenha raciocinado isso, então eu também não me preocupo com isso agora.
Passando pelas mesas do bar, subimos uma escada estreita e pequena, que ressoa pequenos rangidos à medida que pisamos em cada degrau. Há um corredor no andar de cima com três portas apenas. Bill indica que o nosso é o do meio, informando que qualquer coisa ele estaria lá embaixo e com a cozinha aberta até onze horas.
Lewis vai na frente e abre a porta, e ao nos depararmos com o quarto, talvez fosse melhor dormir no carro. O cômodo é bem antigo, com a tinta das paredes descascadas e parte do reboco aparecendo. Aparentemente está limpo, apesar de existir um cheiro remanescente de mofo no ar.
— Bom, considerando que não é o Hilton, pelo menos temos um lugar para ficar — comendo, passando por ele e entrando no quarto de vez. Hamilton concorda, mesmo que não demonstrasse entusiasmo em seu rosto. E, mais uma vez, um silêncio constrangedor se faz presente entre nós, mas agora numa situação bem pior.
Chefe. Funcionária. E uma cama de casal.
Seus olhos estão fixos na cama desde o momento em que entramos no quarto. Sua mente parecia estar viajando longe, talvez tentando buscar alguma solução alternativa, mas nenhuma iria funcionar.
Hamilton coça a nuca rapidamente e pigarreia, totalmente desconfortável.
— Você fica com a cama, eu fico com o chão — ele diz finalmente, com a voz mais tensa da que eu estava acostumada a escutar. Quase quebro meu pescoço para olhar para ele, porque eu não estava acreditando naquela barbárie de sugestão.
É uma situação chata, e por um lado eu admiro como Lewis estava tentando lidar de forma profissional e madura. Mas talvez ele estivesse sendo racional demais. Ambos estávamos cansados da viagem, eu nunca o deixaria fazer isso.
— Tá maluco? Você olhou bem pro chão que você quer dormir? Essa madeira deve estar sem ver uma vassoura desde que descobriram a existência desse vilarejo.
— Eu não tenho muita escolha, tenho?
Movimento meu olhar dele para a cama à nossa frente, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
— Ah… você... tem certeza disso? — ele hesita antes de perguntar.
— Ué, se você quiser dormir junto com os cadáveres que devem estar embaixo do piso, tudo bem por mim — argumento, ouvindo sua risada em seguida. Então, jogo minha mochila numa cadeira de canto e procuro por uma roupa confortável.
— Você tem razão, ficamos de lados opostos da cama e o problema está resolvido.
— Exato, ela é grande o suficiente para nem notarmos que estamos nela juntos. Vou usar o banheiro primeiro — respondo e logo saio de sua vista.
Me dispo e entro no chuveiro o mais rápido possível. A água parece ter saído de uma nascente de água quente, está deliciosa, e me traz a sensação de alívio que eu estava buscando. Estou cansada depois dessa longa viagem que nos levou a lugar nenhum. Se eu não fosse tão intuitiva, diria que o fato de ter que dormir ao lado de Lewis Hamilton era a mais pura coincidência. Mas tenho certeza que é pregação de peça do universo.
Enquanto sinto a água escorrer pelo meu corpo, é inevitável não pensar sobre como eu enxergaria o piloto depois de tudo isso. Afinal, existia uma barreira profissional que racharia a partir dali, mesmo nossa relação sendo diferente comparada à que eu tinha com meus superiores na empresa. Um pouco mais informal, mas eu não passava de uma funcionária. Algo mudaria. Eu só esperava que não fosse nossa dinâmica de trabalho.
Suspiro, deixando o chuveiro para me vestir com a única roupa que eu trouxe na mochila de costas, já que a mala havíamos deixado no carro: um vestido longo que deixava minhas costas totalmente expostas. Não sei onde estava com a cabeça quando fiz aquela mala, principalmente a mochila, caso minha mala fosse extraviada. De toda forma, tenho um casaco que me livraria do frio por enquanto.
— Você quer ir lá embaixo pedindo nosso jantar?
— Claro, estou morrendo de fome. Sem carne, certo?
— Isso!
Hamilton fecha a porta do banheiro e, antes de descer, caminho até a cadeira onde deixei minha mochila e procuro por meu perfume. Puxo o frasco do fundo com cuidado, retiro a tampa e coloco algumas borrifadas atrás da orelha e no meu pulso, espalhando em seguida para ativar o aroma doce que eu adorava.
Caminho pelo corredor sentindo o cheiro se exalar e dou um sorriso, porque estar limpinha e cheirosa é sempre o ponto alto do meu dia.
Sento numa mesa de canto onde há um janelão que dava para admirar a vista, que é praticamente algumas vegetações bonitas e casinhas milimetricamente idênticas.
— Nunca uma mulher tão cheirosa passou por esse bar.
— Ah, obrigada pelo elogio, Bill! Fico lisonjeada — dou um sorriso sem graça.
— Não conte pro seu namorado que te disse isso, estou velho demais para me defender — ele sussurra.
— Ele não é meu...
— Ah, desculpe. Sei como vocês jovens estão hoje em dia... Não assumem compromisso — ele me atropela antes que eu negue. Apenas dou uma risada, já que minha resposta não iria adiantar.
— Então, você tem alguma sugestão do cardápio? Lewis não come carne.
— Tem o Dal bhat, é um prato típico daqui. Vem com arroz, lentilha e vegetais.
— Ótimo! Pode trazer isso para ele, por favor.
— E para você?
— Estava esperançosa por um hambúrguer.
— Ficarei te devendo essa, mas eu trago algo tão bom quanto.
— Tudo bem, vou confiar em você! — pisco para Bill e devolvo o cardápio em suas mãos.
Ele se retira e vai em direção à cozinha entregar os pedidos. Hamilton logo desce com uma calça de moletom cinza, uma camisa preta de manga curta que deixava seus braços aparentes e uma touca na cabeça da mesma cor da calça. Tento manter meus olhos distantes, mas o homem é simplesmente muito bonito.
— Legal aqui, né? — ele se senta à minha frente, analisando o ambiente. Logo me sinto atraída pelo seu perfume, um amadeirado doce que se mistura com o meu.
— Uhum — respondo rapidamente para não me distrair com ele. — Já pedi nosso jantar, o seu é arroz, lentilha e vegetais.
— Ah, eu adoro. E o que você pediu?
— Não sei, serei surpreendida pelo Bill.
— Corajosa! Gostei. E qual bebida vai pedir?
— Acho que um suco.
— Eu falei alcoólica mesmo — ele levanta a mão, chamando Bill.
— Eu achei que você não consumisse bebida alcoólica.
— Eu realmente não bebo, mas estou de férias, num lugar desconhecido, e pensei “por que não?”
O garçom caminha até nós equilibrando a bandeja com nossos pedidos. Com um sorriso gentil, ele posiciona nossos pratos em nossa frente.
— O que vão beber?
— Vamos provar todas as bebidas do cardápio — Lewis avisa animadamente com um sorriso confiante brincando em seus lábios, indicando que estava prestes a se jogar em uma aventura. Chego a cogitar que essa sua empolgação poderia ser comparada a um adolescente colocando o primeiro gole de álcool na boca. Apesar disso me pegar de surpresa, sinto um leve desconforto por ele simplesmente decidir, por mim, o que iria beber.
— Uou! Não, não. Tá maluco? Eu preciso dirigir bem cedo pela manhã. Fora de cogitação — respondo, me opondo à sua “sugestão”.
Estreito meus olhos ligeiramente em sua direção, sentindo uma leve irritação franzir minha testa.
— Não, esquece isso. Nossos celulares estão sem sinal, vamos demorar pra chegar na cidade de toda forma. A realidade é que já estamos perdidos e algumas horas a mais ou menos não vão fazer diferença. Só vamos aproveitar — ele argumenta perfeitamente, só para me tirar mais um pouco do sério.
Balanço minhas pernas por baixo da mesa, impaciente, porque não teria como sair daquela situação, apenas aceitar.
— Anotado, Sir Lewis.
— Você está usando o Sir só para me irritar, não é?
— Aham, como descobriu?
— Então, vocês vão querer as bebidas? — a voz do garçom sobressai com aquele nosso bate e bola irritante.
Seus olhos oscilam entre nós dois, naquele impasse, sem saber o que deveria pedir ou não. Sua postura que antes estava confiante, agora tamborila o bloco de pedidos numa clara insegurança.
— Desculpe, Bill. Sim, vamos querer. Mas vou querer o suco também — o respondo rápido, antes que o intrometido do homem à minha frente falasse por cima de mim. E claramente eu não ia deixar de tomar meu suco.
— Vou fingir que você não fez isso por pura teimosia.
— Não se ache tanto, a verdade é que raramente você vai me ver fazer uma refeição com bebida alcoólica de acompanhamento. Eu simplesmente não consigo — explico um fato sobre mim. Além de que também não ia dar meu braço a torcer.
Finalmente posso observar os dois pratos diante de mim, um parecia uma entrada que se assemelhava a guiozas. Pego uma trouxinha e chucho no molho, levando diretamente para minha boca. É perfeito, e o molho é extremamente picante, o que de fato eleva o nível da comida para mim, mas podia ser minha fome idolatrando algo simples.
— Okay, vou acreditar em você — ele semicerra os olhos, dando uma risadinha. Lewis dá uma garfada em seu prato e fecha os olhos em prazer. — Isso aqui tá muito bom! Quer provar? — ele indica o garfo para que eu pegue.
Nego com a cabeça, porque não queria estragar a experiência que estou tendo com o meu prato. Além do mais, dividir um garfo com ele não seria íntimo demais? Balanço minha cabeça e afasto o pensamento, já que aquilo é o mínimo para quem dividiria uma cama nas próximas horas.
— O seu está bom?
— Uhum — respondo num murmuro com a boca cheia.
— Não vai me oferecer? — ele pergunta, levantando a sobrancelha em um claro sinal de provocação.
— Não. Odeio dividir minha comida — digo entediada, enfiando mais uma trouxinha no molho e comendo. Sua mão, mesmo assim rapidamente, roubou uma do meu prato. Fuzilo Lewis com os olhos.
— Você é muito egoísta, tem dois pratos na sua frente. O que é o outro?
— Não sei ainda — tento manter minha atenção no prato.
O segundo prato é semelhante a uma pizza; está dividido em fatias, o que facilita para que eu pegue com a mão. Tem um gosto tão apimentado quanto o outro, a massa é crocante e consigo identificar o recheio sendo carne moída, ovos, cebolas, coentro e queijo. Tem o gosto de comida caseira.
— Olhe, eu sei que ainda está um pouco chateada comigo. É nítido — Lewis dá uma pausa e joga a cabeça de lado. — Me desculpe por termos nos perdido. Eu nunca soube ler mapas direito, deveria ter sido mais cuidadoso, eu realm... — ele se explica por algum tempo até que eu o interrompo, pego em sua mão que estava parada em cima da mesa. Seus olhos parecem um pouco envergonhados com isso e ele me encara, esperando que eu fale algo.
— Eu sei de tudo isso, relaxa, tá? Me desculpe também por ter gritado com você no carro. O cansaço da viagem e o desespero tomaram conta de mim. Normalmente eu sou um anjo e não grito com ninguém.
Ele ri levemente, assentindo, e eu solto sua mão porque o contato pele a pele já estava ficando um pouco estranho. Dou um sorrisinho e volto a comer.
Enquanto aproveitamos nosso jantar, eu observo as pessoas ao redor; consigo ouvir parte das conversas animadas e as risadas. É uma atmosfera calorosa e acolhedora que não se encontra em qualquer lugar, como se as pessoas daquele vilarejo fossem uma grande família.
Quando terminamos nosso jantar, Bill troca nossos pratos por uma bandeja de bebidas que incluía pelo menos cinco drinks diferentes.
— Essa é a grande seleção, recomendo começar pelo Tongba. É esse aqui — ele sugere, apontando para um copo marrom com duas listras horizontais pratas e umas sementes em cima. Bill coloca água quente dentro dele e me oferece primeiro.
Pego o copo, dou um gole com o canudo que parece de bambu e sinto um gosto terroso e levemente adocicado tomar conta da minha boca.
— Tongba é uma bebida bem religiosa daqui, e oferecê-la para um convidado é um sinal de respeito.
— Que honra, Bill — eu digo sorrindo.
— Ela é feita com milho cozido, moído e fermentado. E para manter a temperatura quente, é preciso ficar constantemente adicionando água. Ah, e ela é feita para ser compartilhada com amigos e familiares — Bill conta e eu logo passo a bebida para Lewis provar também.
— Parece chimarrão — comento.
Chimarrão? — o garçom se mostra confuso.
Chimarrão? — Lewis também pronuncia a palavra em português, com aquele sotaque que eu acho fofo.
— Sim, é uma bebida brasileira que também é feita para ser compartilhada, mas o chimarrão é feito com folhas secas da erva-mate — explico para eles.
— É, o Tongba é levemente adocicado. Qual você gostou mais?
— Como sei que vocês não vão me julgar... — começo — eu gostei mais do Tongba — sussurro como se algum brasileiro estivesse por perto, o que gera uma gargalhada generalizada nos dois homens à minha frente.
Uma mesa chama a atenção do nosso anfitrião, que precisa nos deixar ali, provando todas aquelas bebidas sem saber mais nada sobre elas.
— Podemos ir para tequila, né? Não tem erro — Lewis sugere me dando o copinho e pegando outro.
— Estamos no Nepal e não no México, você sabe, né? Isso deve ser outra bebida — trago o copo próximo do meu nariz, sentindo um aroma bem forte.
— Nossa, é mesmo, mas se parecem porque ela é levemente amarelada. Bom, vamos provar — ele levanta o copo, brindamos rapidamente e viramos. Um calor suave se pronuncia em minha boca depois de engolir o líquido, me aquecendo por dentro. Olho para um papelzinho que havia ficado na bandeja, que indica o provável nome da bebida.
— O nome é Raksi, olha — lhe entrego o papel e ele lê. — Bill deve ter colocado o nome para sabermos minimamente o que estamos bebendo.
— Ele é um fofo! Mas, nossa, ela é muito forte! Espero que não me faça falar besteiras durante a noite — Lewis diz a frase final num tom baixo, mas eu consigo ouvir. Guardo para mim.
— Podemos dar uma pausa, né? Ou vamos passar muito mal à noite — dou um gole no meu suco que tinha deixado de lado. — Tenho algo a confessar, mas esse segredo deve morrer aqui — puxo o assunto soltando uma risada nervosa.
— Okay... — Lewis diz com a voz arrastada e um sorrisinho nos lábios.
— Tudo que sei sobre Fórmula 1 eu aprendi numa conversa de dez minutos com meu pai, uns dias antes de apresentar como seria o roteiro para você.
Nossos olhares se encontram quando a revelação foge dos meus lábios, e uma risada compartilhada preenche o ambiente. A atmosfera descontraída está começando a afetar nossos ânimos; os copos vazios na bandeja testemunham nosso estado altinho e relaxado.
— Uma conversa de dez minutos e você parece um expert. Devo pedir conselhos a seu pai? — Lewis diz tudo isso com seu sorriso ainda mais perceptível e charmoso.
— Provavelmente. Ele é tão melhor conselheiro que eu. Além disso, eu só absorvi o básico — respondo sorrindo enquanto dou de ombros.
— Seu pai é um ótimo professor, mas , saber o básico de Fórmula 1 não importa quando seu trabalho é tão bom.
Ele me olha nos olhos, e sua expressão contrasta com a descontração anterior. Sinto um calor reconfortante em suas palavras.
— Você transformou seu conhecimento básico em algo extraordinário.
Sorrio timidamente e olho para baixo, sem saber como reagir depois desse elogio. Puxo o copo de suco para dar um gole, para matar o tempo e voltar a agir como uma mulher com atitude que sou, mas nessa altura do campeonato é quase impossível. Meus lábios não conseguem mais se manter sérios, já que a sensação de leveza começa a me atingir até demais.
— Obrigada, Lew. Acho que foi a maior mentira que já tive que inventar no meu trabalho, e olhe que já tiveram muitas.
— Você fez bem em arriscar, do contrário, não estaríamos aqui — ele puxa meu copo de suco para beber um pouco também. — Já que começou, vou confessar algo também... — Lewis fez uma pausa dramática, me deixando aflita. E eu lá sabia o que esse homem ia falar? — A ideia de ter câmeras me seguindo me deixa com um certo desconforto. Tenho a sensação de que não vou ter um momento de privacidade por um bom tempo, sabe?
— Ah, Lewis, é super compreensível esse sentimento. Mas é importante para nós respeitar seus limites durante o processo. Qualquer momento que você sentir necessidade de parar é só falar, você tem que se sentir seguro e confortável.
— Isso significa muito. Acho que eu precisava falar isso para alguém que estivesse no processo, sabe?
— Uhum, mas você sabe que esse seu lado vulnerável que vai fazer a diferença no documentário, certo?
Chega a ser curioso e no mínimo engraçado como eu o enxergo agora. Toda essa confiança construída ao longo da sua carreira não apagava o sentimento de insegurança que Lewis revelava ao mostrar um lado menos conhecido por muitas pessoas. Muitas vezes, carregamos essa insegurança incrustada em nosso íntimo, e a mantemos enjaulada para evitar parecermos fracos, mas demonstrar nossas inseguranças era uma bela maneira de nos mostrar humanos. A vulnerabilidade ainda é o sentimento mais puro que eu conhecia.
— Sim, eu sei que existe um propósito maior em tudo isso e essa é a razão pela qual estou fazendo isso — ele pausa um pouco. — Obrigado por me lembrar disso — Lewis sorri um pouco tímido. — Ok, próxima bebida.
O piloto pega um copo alto que tem um líquido com aparência cremosa e uma coloração amarela. Parece um creme de frutas
— Lassi de manga, deve ser doce — ele diz. Tomo o copo de sua mão, ansiosa para provar aquele. Dou um gole generoso, me arrependendo logo em seguida. — Nossa, horrível, péssimo.
— Jura?
— É muito doce. Odiei. Bleh! — desprezo totalmente a bebida e entrego o copo para ele. Lewis bebe tranquilamente.
— Ah, não é tão ruim, você é exagerada. Achei refrescante e docinho — ele deposita o copo na mesa.
Rolo os olhos quando ele me chama de exagerada. Permaneço olhando para ele porque os vestígios da bebida haviam deixado seu bigode amarelo em alguns lugares. Rio um pouco, sabendo que ele deixaria aquilo por muito tempo se eu não avisasse.
— Do que está rindo?
— Parece que seu bigode gostou bastante da bebida também — digo sorrindo, brincalhona, indicando a região suja.
— A-há! Você é boa com piadas! Meu bigode geralmente está sempre se divertindo tanto quanto eu — ele responde com um riso solto e travesso nos seus lábios, passando a mão no rosto numa tentativa frustrada de limpar o sinal que indicava que havia gostado bastante da bebida.
— Aqui, me deixe te ajudar — pego um guardanapo que está do meu lado. Inclino meu corpo em sua direção, o tanto que a mesa entre nós me permite, e passo delicadamente o guardanapo no canto superior do seus lábios.
Enquanto limpo, percebo seus olhos em mim, o tempo todo, sem desviar nenhum momento. Eles têm um brilho divertido, como uma linguagem própria que deveria ser psicografada. Torno meus olhos para o dele, e ali o tempo pareceu se diluir ao nosso redor; o barulho da música ambiente, as milhares conversas que nos rodeiam, tudo tinha desaparecido em segundo plano. Apenas nós dois existimos naquele plano, mergulhados numa energia incandescente da companhia um do outro.
— E aí, estão se divertindo? — Bill se aproxima da gente novamente. Nos tira do transe. Volto para o meu lugar e dou um sorriso tímido para ele sem olhá-lo, pelo menos não naquele momento. Ele pigarreia antes de responder o mais velho, que esperava uma resposta nossa.
— Estamos, sim, Bill! Por onde deveríamos continuar agora? — Lewis pergunta simpático.
— Provem essa agora, o nome dela é Aila — o homem mais velho dá o copo primeiro para Lewis, e observo quando sua feição se transforma em uma grande careta. Me fodi. Se eu já estava tonta, pensando muitas besteiras, um gole de algo mais forte intensificaria tudo isso.
— Nossa, você quer nos matar, Bill?! Tá maluco — ele logo me entrega o copo para beber também. Dou um gole generoso, sinto minha boca pegar fogo, e essa sensação desce pela minha garganta. Definitivamente é uma bebida muito forte.
— UOU! A mais forte que tomamos até agora. Meu Deus! — faço uma careta assim como Lewis, sentindo todos meus poros se arrepiarem.
— Essa é uma derivação da Chhang, tem um sabor mais intenso, mas sabia que vocês iam aguentar — ele diz tudo isso sempre com um sorriso no rosto, claramente porque não era ele bebendo.
— A Chhang é a que sobrou, certo? — aponto para o copo na minha frente e ele assente.
— Sim, ela é uma bebida de arroz. Você vai gostar dessa — ele informa. Sinto o cheiro do líquido branco, beberico um pouco e sinto um sabor ligeiramente ácido e azedo. Tem uma textura um pouco espessa, mas é uma bebida levinha.
— É gostosinha, muito melhor que a última — digo ainda sentindo o gosto na minha língua. Passo para Lewis, observando ele fazer uma careta.
— Parece um saquê, porém com um toque terroso. Não foi minha favorita — o piloto diz. — Mas as escolhas foram ótimas, Bill. Muito obrigado.
— É um prazer para mim mostrar cultura para um casal tão charmoso — ele diz isso agora na presença do Lewis. Nós trocamos olhares cúmplices. Essa ideia é patética, já que não tínhamos trocado nem um selinho, mas o garçom insistia nessa ideia.
— Nós adoramos, de verdade. Muito obrigada — eu digo, por fim.
— Querem mais alguma coisa?
Lewis me olha, me questionando silenciosamente o que deveríamos fazer. Eu indico um não com a cabeça, já estou bêbada o suficiente para sentir meu corpo quente pedindo por uma noite tranquila de sono.
— Não, acho que isso é suficiente por uma noite. Muito obrigado, Bill! — Hamilton se desfaz da proposta do garçom.
— Quanto devemos? — pergunto.
— Amanhã nós acertamos tudo, vão descansar! Até amanhã — ele nos deixa a sós novamente na mesa.
— Até amanhã então, Bill! Boa noite.
Muito alegrinha, me levanto da mesa primeiro, sentindo seu corpo logo atrás de mim. Encaro a escada em minha frente rapidamente e quase me estabano nos primeiros lances no caminho para o quarto. Lewis gargalha de mim ao invés de me ajudar, e eu o empurro pelos ombros, trocando olhares reveladores com ele. Estamos visivelmente altos, o que não ajuda em nada meus pensamentos sobre o que aqueles olhos escondem.
— Aposto que vai tropeçar no final da escada.
— Ah, pare! Você está tão bêbado quanto eu, talvez você devesse tomar cuidado — lhe lanço, provocativa.
— Isso nunca aconteceria comigo, tenho ótimos reflexos.
— Ótimos reflexos? Tá bom, precisamos testar isso.
Lewis ri, joga a cabeça e coloca a mão no coração num gesto meio teatral.
— Admiro sua coragem de testar a maior qualidade de um piloto. Você realmente é algo mais, .
— Me mostre o quão equilibrado você é, Lewis Hamilton! — arqueio a sobrancelha, ainda fingindo dúvida.
Começo a correr pela escada, que agora parece ter muito mais que dez degraus. Ouço sua respiração pesada atrás de mim e, por um instante, acho pertinente olhar para trás, curiosa para ver seu desempenho. No momento em que faço isso, bato meu dedo no último degrau, me desequilibrando. Seria uma queda feia se suas mãos ágeis não tivessem me amparado.
Seu contato inesperado contra minha pele se revela muito mais do que uma simples ação de evitar minha queda. Seus dedos apertam minha pele suavemente, deixando um rastro de eletricidade sutil, uma sensação que faz meu coração acelerar.
Naquele toque há algo a mais. Algo que faz com que o tempo estique, pause, trave uma batalha com alguma outra matriz por um momento, criando uma conexão fugaz e intrigante entre nós.
— Está tudo bem? — ele pergunta muito perto de mim, tão perto que posso sentir sua respiração suave contra minha boca.
Lewis ainda me segura com firmeza, sem previsão iminente de me soltar, e eu não queria que isso acontecesse. Seus olhos jabuticabas, profundos e expressivos parecem revelar mais do que palavras podem dizer. É quase como se estivéssemos assinando o nosso próprio tratado do silêncio naquele instante.
— Sim, sim. Obrigada — digo desconcertada, me desvencilhando dele. Meu coração parece pular do peito, pelo susto e mais ainda pelo seu toque. Recupero minha compostura, mas sem me afastar ainda.
— E você ainda fez questão de duvidar do meu reflexo — ele brinca, parecendo querer se afastar da nossa bolha anterior.
— Parabéns, você passaria num teste de direção para motos, sabe, naquela parte do zigue-zague? — falo brincalhona e ele desata em risos.
Ao caminharmos até o quarto lado a lado, em silêncio, repasso a cena em minha cabeça. O cheiro dele com toda aquela adrenalina parece ter reverberado e grudado em mim; eu precisaria de um banho urgente para me desfazer dele. Ao chegarmos no quarto, as luzes suaves traziam um certo aconchego. A cama, depois de alguns goles, parece extremamente atrativa para cair nela e ter uma bela noite de sono.
Lewis sentou-se na cama e busca meu olhar em seguida. Sinto um leve rubor tomar conta das minhas bochechas porque, agora, existe uma conexão aqui. Nossa noite trouxe uma proximidade inesperada, e a dualidade dos meus pensamentos me torturavam agora, porque aquilo não estava certo. Desvio do seu olhar, caminho até o banheiro e tranco a porta atrás de mim.
Encaro meu reflexo no espelho e enxergo uma versão diferente da mulher que eu estava sendo durante este mês. A versão bagunçada, bêbada e feliz. Coloco meus braços para trás em busca do zíper, puxando-o para baixo, mas percebo que ele está emperrado. Puxo algumas vezes, mas não consigo abri-lo. O pânico começa a vir à tona, imaginando que o meu vestido novo ficaria arruinado; então, sem alternativas, busco a solução mais lógica, mesmo não querendo.
— Ei, você pode me ajudar a sair desse vestido? — falo um pouco mais alto para que Lewis escute, já que estou com a porta fechada. Um silêncio paira no ar por alguns segundos, e logo escuto sua voz.
— Cla-Claro!
A porta se abre, meu olhar encara a pia, o gotejamento da torneira que não para. Posso apostar que hiperfoquei em outra coisa que não fosse o homem que estava chegando cada vez mais perto de mim. Sinto sua respiração alcançar minha nuca, e é assim que meu olhar rebaixado lhe encara.
Droga.
— Ér... o zíper emperrou — pigarreio um pouco, desconcertada com o jeito que ele me olhava.
— Sou bom com zíperes — Hamilton dá um sorriso ladino. Eu acho que vou derreter ali mesmo. Ele está flertando.
— Vamos ver se você passa no teste — respondo, flertando de volta, porque eu não iria perder a oportunidade.
Suas mãos delicadamente tocam minha pele. Segunda vez na mesma noite. Demora um pouco até ele conseguir deslizar o zíper, que começa no meio da minha coluna e termina na lombar. Quando seus dedos percorrem as partes nuas da minha costas, sinto um arrepio percorrer minha espinha. Olho novamente para o espelho e o piloto me captura com o olhar, seus olhos escuros mais intensos que nunca, como se soubesse exatamente o que estão me causando. Aquele olhar gritava satisfação por estar me provocando.
Lewis parece também uma versão diferente dele mesmo. As tranças do seu cabelo estão soltas, o que o deixava mais livre e sexy. Essa é uma cena que eu visitaria muitas vezes na minha mente depois de hoje.
A alça direita do vestido cai pelo meu ombro, deixando parte do meu colo à mostra; sua mão, que está paralisada nas minhas costas, se prostra, pronta para colocar a alça no lugar, e desliza para cima devagar com seu toque delicado.
Que porra está acontecendo?
Estou inteira e completamente atraída por aquele homem. Um magnetismo me puxa para ele. Meu coração parece vacilar, implorando para ser expulso do meu peito. Meu sangue gela. Meu corpo ferve.
Tudo está em câmera lenta, até não estar mais.
— Pronto — ele se pronuncia, se distanciando de mim.
Me viro para agradecê-lo e demoro meu olhar em seu peito, que subia e descia com sua respiração acelerada. Meus olhos percorrem seu queixo preenchido por sua barbicha, vai até seus lábios levemente rosados, que estavam extremamente convidativos, até que pouso em seus olhos. Agora estou perto o suficiente para apreciar o quão bonito ele é, mesmo com a luz amarelada do banheiro. Lewis me olha intensamente e, durante um bom tempo, só consigo escutar o som das nossas respirações enquanto seus olhos me vislumbram em silêncio.
— Obrigada — digo depois de uma dose de mudez.
— Passei no teste? — sua voz sai baixa, usando um tom travesso.
— Claro que sim, até manteve meu vestido intacto — jogo a piada para disfarçar meu nervosismo.
— Eu ganho algum prêmio com isso? — ele sorri no meio da pergunta. Lewis sabe como provocar alguém, porque isso está me atingindo em cheio.
— Não costumo distribuir prêmios por aí, mas posso abrir uma exceção. O que acha de uma medalha? — entro em sua brincadeira, mas ainda tentando manter o clima leve.
Lewis me estuda por um tempo, inclina a cabeça e parece pensar em uma resposta em que eu não tivesse como escapar.
— É interessante, mas eu tenho várias delas. Acho que eu mereço algo mais… exclusivo — ele sussurra a última palavra, fazendo meu coração bater descompassado sem saber o que ele falaria a seguir.
— E o que seria?
Lewis sorri levemente, o brilho do seus olhos gritam diversão. Nossos olhares se atravessam por um momento, e há essa tensão no ar repentina que sempre esteve sutil ali. Meu corpo vibra e estou completa e unicamente entretida naquele flerte entre palavras e sorrisos.
— Eu quero você.
Merda. Sua voz fica mais séria, carregada ainda de provocação e mistério, como se ele estivesse mergulhando no que estava sentindo, sem pensar nos danos que aquilo causaria. Estou quase pronta para pular do precipício, mas ainda gosto dessa dança entre o risco e a tentação.
— E o quanto você me quer? — minha voz sai num sussurro, ainda não acreditando que aquilo tinha saído da minha boca.
— Muito — ele se aproxima de mim, fazendo minhas pernas tremerem. — Você nem faz ideia.
É a minha morte.
Engulo em seco, sentindo meu coração palpitar enquanto olho para ele. Um arrepio corre pela minha espinha e a hesitação começa a me delirar, porque isso é errado de tantas maneiras. Será que o universo estava me testando do jeito mais escrupuloso que ele poderia fazer?
— Lew... — travo quando o vejo colar seu corpo em mim. Sua cabeça faz um sinal negativo, como se eu não devesse falar mais nada.
— Não pense.
Desvio para seus olhos pela última vez, procurando algum indício de arrependimento neles, mas não encontro. Antes que as palavras voltem para minha boca, Lewis se inclina para frente e me puxa para si, num ato vivaz e impetuoso. Minha língua desliza pelos seus lábios gélidos, que me aquecem à medida que o beijo fica mais intenso.
Sua boca carrega o gosto de especiarias e álcool. Muito álcool.
Nossas mãos desajeitadas exploram tudo, passeiam por todos os lugares expostos, desesperadas para conhecer um ao outro. Seu corpo me pressiona fortemente contra a pia, e, sem temer que ela possa cair, Lewis me suspende e me coloca em cima dela. Um calor diferente cresce na minha barriga quando seus lábios exploram meu pescoço, descendo até minha clavícula usando a ponta da língua para conhecer meus pontos sensíveis.
Fecho os olhos. Sinto o queimor crescendo no meio das minhas pernas.
Ele desce lentamente as alças do meu vestido, e apressadamente meus seios arrebitados aparecem para ser admirados. Suas mãos os apalpam com força, gerando um gemido gostoso arrastado pela minha garganta. Me afasto alguns centímetros para livrá-lo da roupa que ainda vestia. Olho para baixo, puxo a bainha de sua camisa para cima e a jogo em algum lugar por ali. Seu abdômen fica rígido quando me aproveito dele, percorrendo o caminho até alcançar a corda da sua calça para me livrar dela também.
Quando volta a me beijar, posicionando-se contra mim, sinto-o enrijecido. Aprofundo o beijo e junto minhas pernas na sua cintura, friccionando nossos quadris melindrosamente para sentir mais prazer. Lewis percebe isso. Como bom observador, interrompe o beijo e me carrega para o quarto. Em poucos segundos, sinto minhas costas atingirem o colchão bruscamente, enquanto mantemos os olhos trancados um no outro.
Logo, seu corpo se distancia um pouco de mim, mas seus lábios conhecem meu corpo lentamente, enquanto os arrepios se fazem presente a cada extensão beijada por ele. Enrolo meu dedo pelo elástico da calcinha e seus dedos seguem os meus, arrastando ela lentamente pelas minhas pernas, me livrando dela. Sua respiração me causa ansiedade quando chega na minha intimidade, e fecho meus olhos quando sua língua conduz um caminho circular, torturante, que me faz gemer. Sua resposta é apertar suas mãos nas laterais do meu corpo, tornando tudo mais intenso, quente e viril.
Seus movimentos iam de cima para baixo, de um lado para o outro, conduzindo tão bem aquele oral que ficava difícil de controlar meus gemidos. Hamilton tira uma das mãos do meu quadril e arruma uma nova atividade para ela, mas antes de fazê-la, me encara com aqueles olhos flamejantes e introduz dois dedos em mim, suavemente. Minhas costas arqueiam, sentindo aquele tesão gostoso me encharcar, e pelos sons contínuos que eu emitia com mais frequência, eu gozaria em seus dedos em pouco tempo.
Uso minhas mãos para puxá-lo para cima e Lewis parou para me encarar, estamos ofegantes. Aproximo meu rosto para beijá-lo rapidamente e implorar por mais.
— Eu quero você dentro de mim, agora — digo decidida.
Seus olhos brilham em frenesi. Ele deposita um beijo em meus lábios, se distancia logo em seguida para procurar uma camisinha e joga todos os seus pertences no chão. Totalmente nervoso por não encontrá-la.
— Relaxa, eu tenho — digo calmamente.
Levanto da cama, vou em direção à minha bolsa, vasculho minha nécessaire e tiro um pacote com três unidades.
— Acha que vai dar? — sacodo as camisinhas sob o seu olhar oblíquo e jogo para ele pegar no ar.
— Vai dar pra você dar pra mim três vezes.
Caralho. Estou mais molhada do que antes.
Lewis se apressa em colocar a camisinha enquanto deslizo meu vestido pelo meu corpo, retirando-o por completo de uma vez por todas, ficando completamente nua. Caminho sob seu olhar, parando no meio das suas pernas. Sua mão passeia pela minha cintura, quadril, e chega na bunda. Ele aperta os dois lados com muita força, me fazendo gemer alto. Toco seu rosto, passo minhas mãos por entre suas tranças; seus olhos estão fechados, aproveitando o carinho.
Aproximo minha boca da sua, deslizo minha língua por entre seus lábios e o sinto colar mais ainda em meu corpo. Lewis está com sua respiração pesada, como se estivesse se segurando muito, aproveitando nossa fricção lenta e tortuosa. Quando solto um gemido no meio do beijo, ele me puxa para seu colo, incapaz de esperar mais um minuto sequer.
A iluminação amarelada me deixa feliz pela primeira vez naquela noite, ela se encaixa perfeitamente com nossa melanina, tornando a atmosfera mais quente e nossa pele mais vibrante. Sua boca entreaberta deixa escapar o som de quem estava sendo torturado. Eu o estava torturando ao deslizar lentamente para finalmente me encaixar nele.
— Como você quer que eu te foda?
Vislumbro no seu olhar a libertinagem prestes a nos atingir. Minhas mãos espalmam seu peito por um segundo e admiram um pouco as tatuagens cravadas em sua pele. Subo meus olhos para seu rosto, e ali está a ansiedade correndo por sua íris, porque mesmo sabendo o que está por vir, Lewis se demonstra maravilhado com a ideia.
— Como se estivéssemos perdidos no paraíso.
Lewis gruda nossos lábios rapidamente antes de movimentar seu quadril. Estou totalmente preenchida por ele. Suas mãos seguram minha cintura com mais agressividade todas as vezes que eu subia e descia do seu colo. Jogo minha cabeça para trás e aproveito o êxtase que começa a queimar cada parte do meu corpo. Cravo minhas mãos na cabeceira da cama, não ligando se ela está um pouco solta pela velhice da madeira; continuo rebolando contra ele, juntando nossos quadris numa fricção gostosa, diminuindo um pouco o ritmo para aproveitar a sensação que me invadia a cada estocada.
O ranger da cama começa a se intensificar, mas isso não nos para. Nossos corpos, concentrados em dar prazer um ao outro, são puxados para baixo quando bruscamente a estrutura da cama desaba.
— Puta merd… Caral... — grito em português, sem conseguir completá-las, porque todas as minhas forças estão focadas em não me desequilibrar e cair da cama.
Suas mãos espalmam minhas costas, me seguram para que eu não caia; nos olhamos assustados por um momento, mas logo caímos na gargalhada, nos desconcentrando totalmente da transa. Seus braços permanecem me segurando enquanto o abraço pelo pescoço, abafando minha risada em seu pescoço. Ainda sinto o álcool tomar conta do meu corpo, por isso descanso minha cabeça em seu ombro, o observando sob a penumbra do luar.
Lewis, de perfil, consegue ser mais bonito do que o normal; sua barba perfeitamente alinhada com uma boca delineada, extremamente convidativa e nariz dos sonhos, que encaixa com todo o resto do seu rosto. Tudo nele grita um grande gostoso. Sua cabeça pende um pouco para me observar, junto com uma risada convincente que demonstra estar amando ser admirado.
— Acho que vamos ter que pagar por uma cama nova — lhe lanço divertida. Me desgrudo dele, jogo meu corpo no colchão e encaro o teto por um tempo.
Seu corpo logo preenche o lado vazio, e eu o encaro, percebendo que sua respiração já tinha voltado ao normal.
— Se vamos pagar por uma cama nova, ainda podemos tirar algum proveito do que sobrou dessa.
Sua mão acaricia minha barriga, me trazendo todos aqueles formigamentos e ansiedade de ser preenchida por ele novamente.
— Ainda temos duas tentativas — lhe respondo, lembrando das duas camisinhas restantes. Lewis levanta as duas sobrancelhas sugestivamente, indicando que estava interessado naquilo.
— Ah, . Eu prometo não desperdiçá-las, nem se o teto desse quarto despencar.
Sorrio quando sinto o peso do seu corpo contra o meu e toda aquela excitação do começo está de volta, passeando pela minha barriga.


Continua...



Nota da autora: Oiii, estou aqui com uma nova história, agora com minha nova obsessão: Lewis Hamilton e Fórmula 1. Ela está guardada há um tempinho, e agora está aí no mundo. Espero que vocês gostem muito! Comentem por aqui ou pelo Instagram de autora. Estarei pronta para teorias e surtos de vocês.
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