Última atualização: 25/09/2023

Capítulo 1 — The Last Resource

Quinta-feira. Era um belo fim de tarde, mais quente que o usual. A atmosfera se coloria em tons alaranjados calorosos e nostálgicos. O clima geral era muito hospitaleiro, havia quase cinco meses desde que metade da população voltara à existência.
A felicidade ainda era a regra social, os bons ares de receber todos os queridos entes e amigos que ficaram perdidos por 5 anos inteiros não davam brecha para nenhum outro sentimento.
Ainda se lembrava da sensação de voltar. Assim como metade do planeta, fora levada pelo Blip. Para ela, nenhum tempo se passou. Quando piscou, já estava de volta, meia década depois.
Mas, há três dias, felicidade não era mais parte de seu vocabulário. O calor do sol não podia alcançá-la mais, pelo contrário, seu coração era coberto de uma névoa e desespero corrosivo.

(...)

dormia pacificamente, seu corpo abraçado pelo toque de seda de sua camisola e a maciez da manta aveludada que a cobria. Nunca teve problemas para dormir, muito pelo contrário. Ela era daquelas que onde pudesse encostar já conseguia cochilar sem muito esforço, era um de seus maiores prazeres na vida.
Para o azar daquele que se deitava ao seu lado, ele não tinha essa mesma benção. Não conseguia se lembrar do último sono de qualidade que tivera.
Às 3:33am, ele levantou de supetão em seu lado da cama. Estava suando, suas mãos trêmulas.
Enquanto seus olhos tentavam focar em meio à escuridão, ele sentia medo; era difícil se conectar à realidade de novo.
— James? — A movimentação acabara por acordar a moça.
— Droga. Me desculpa. — Ele descansou seu rosto nas próprias mãos. Sentia sua garganta seca e estava difícil engolir.
Toda noite, por volta deste mesmo horário, isso acontecia.
E, toda noite, ela fazia a mesma coisa.
Acendeu o abajur à sua esquerda e se arrastou pelo colchão até que conseguisse abraçar o namorado.
Ela passava carinhosamente a mão pelas costas desnudas de James até que ele se fincasse de volta ao presente.
Não demorou muito para ele conseguir olhá-la nos olhos, ainda no meio de sua crise de ansiedade.
Delicadamente, ela segurou as mãos dele e as posicionou sobre seu peito.
— Respira comigo? — pediu, recebendo apenas um aceno rápido de cabeça.
E como todas as noites, James fechou os olhos e focou toda sua atenção no coração de , o ritmo em que batia. Sentia o peito dela se movendo quando respirava profundamente, segurava o fôlego e soltava o ar pela boca. Ele seguia. Até que estivesse de novo sob controle de sua própria mente.
Às vezes parecia demorar uma eternidade. Às vezes era mais depressa. E, às vezes, ele queria permanecer bem ali, junto a , para sempre, como se nada mais existisse.
E, quando percebeu, deu uma discreta e singular risada.
— O que foi? — perguntou, sorrindo também.
— É engraçado, eu tenho 106 anos e um braço biônico. Eu devia cuidar de você, não o contrário. — deu um riso contido, girando os olhos.
— Não preciso de cuidados. — Ela se levantou, saindo da cama e calçando suas pantufas. — Vou preparar o chá.
— Do que vai ser hoje? — perguntou.
— Lichia.
— Li- o quê? — Ele sorriu.
Todas as noites, depois que ele acordava, lhe preparava um chá na tentativa de tornar a volta ao sono mais fácil. E apesar de saber bem do que se tratava, nunca perguntava sobre os pesadelos, sabia que James não se sentia confortável em contar.
Então ela fazia um chá.
A primeira noite que passaram juntos, James se sentiu mal por acordá-la e não queria que tivesse nenhum trabalho para fazê-lo sentir melhor. Então ela inventou que queria provar novos e exóticos chás; que aquilo era por ela, não por ele.
A desculpa esfarrapada não enganava a nenhum dos dois, mas, aos poucos, aquilo se tornou uma tradição do casal. Toda semana, encontrava sete chás diferentes, podia contar nos dedos quantas vezes ela repetiu um. Eles tomavam juntos e conversavam sobre os mais diversos assuntos, escutavam a rádio da velha guarda até que James conseguisse sentir sono de novo.
E por nem uma única noite sequer ela se arrependia de tê-lo chamado para morar em seu apartamento em Cobble Hill.

(...)

E lá estava ela, no antigo complexo dos Avengers. Fora mais fácil entrar do que havia pensado.
Desde que Tony falecera, cada um dos remanescentes seguiu o próprio caminho, mas não esperava que o complexo ficasse abandonado. De fato, não encontrou uma única alma por lá desde que adentrou o lote.
Mas, caso alguém ainda estivesse por lá, não haveria problema. costumava ser uma das maiores agentes da extinta SHIELD, ficando atrás apenas da própria Natasha Romanoff.
Depois do blip, pensou que nunca mais teria de usar suas habilidades de espiã. Deveras, chegou a receber propostas de emprego em novas agências como a S.W.O.R.D e CIA, mas decidira que seu tempo no campo de batalha já havia chegado ao fim.
deixou tudo para trás por uma vida normal.

(...)

— Tem certeza? — James a encarava de olhos cerrados, meio incrédulo.
Ele não sabia se nenhum dos dois podia deixar a carreira de defensores para trás. Tudo o que James conhecia era a guerra. Mas queria ao menos dizer que iria tentar.
— É claro. — Ela sorriu, segurando a mão do companheiro enquanto caminhavam até um restaurante em seu bairro.
— E o que vamos fazer?
— O que a gente quiser. — Ela sorria. — Isso não é ótimo?
soltou sua mão e caminhou mais à frente, abrindo seus braços e girando no meio da calçada, observando o céu nova-iorquino.
James sorriu, imortalizando aquela imagem em sua mente. Aquilo quase parecia... felicidade.
voltou a se aproximar dele, parando bem à sua frente.
— Ei! — ela falou num tom baixo. — Nós vamos ficar bem.
Naquela tarde, Pepper Potts contratara para um bom cargo administrativo em uma filial das indústrias Stark.
Em casa, gostava de fazer aquarelas, cantar, bordar, costurar. James achava que ela devia seguir para um campo mais criativo, mas não interferiria na decisão dela. Sabia bem que no momento não tinha como contribuir com as despesas e ela já começava a se preocupar em como iriam se manter.
tinha apenas 25 anos, James não queria que a vida dela — e deles, como um casal — fosse assim. Mas era.
O Blip havia tornado tudo mais difícil. Suas economias foram confiscadas pelo governo assim que sumiram da existência. Foi uma grande sorte ainda terem o apartamento intacto, ocupado por um outro jovem casal, que se prontificou a desocupar o imóvel por livre e espontânea vontade, em respeito por Bucky e terem lutado na linha de frente contra Thanos.

(...)

Apesar da imensa cortina de vidro que circundava e iluminava aquela parte do complexo, em poucos minutos seria noite. teria de usar uma lanterna para encontrar o que viera buscar.
— Droga, droga! — Revirava com pressa as caixas do antigo depósito de Banner, a vista já ficando turva com lágrimas. — Eu preciso achar, eu preciso!
Os resmungos de consigo mesma logo ficaram mais altos e agressivos, tornando-se quase rugidos.
— Mas que inferno! — ela gritou, sem conseguir vencer suas emoções.
Era inevitável, tudo o que ela fazia há exatos três dias era chorar.
Naquele momento, a gravidade parecia exercer um peso exorbitante sobre seus ombros, a empurrando para o chão.
logo se sentou, cobrindo o rosto com as mãos, aos prantos.
Ela já nem se importava se havia alguém ali, não tinha forças para controlar os sons que eclodiam de sua garganta junto às lágrimas.
Sentia seu rosto quente e as pálpebras inchadas.
— Eu preciso encontrar, eu preciso encontrar, caralho! — exclamou, em meio ao seu abismo pessoal.

(...)

— Feliz aniversário, meu amor. — Não passava das 6 horas da manhã quando James adentrou o quarto, com suas roupas casuais e uma bandeja em mãos.
não acordou de cara, expelindo apenas um grunhido e fazendo uma careta.
— Anda, eu fiz uma surpresa pra você! Não me deixe aqui com cara de bobo! — Ele ria, sentando-se à cama próximo a ela.
Preguiçosa e vagarosamente, abriu os olhos para dar de cara com aquele homem forte, de pele clara e cabelos escuros.
Ela sorriu. Ainda era difícil acreditar que conseguiu para si um cara tão bonito. James preferia usar camisas de manga longa, mas isso não impedia que seu físico fosse bem delineado através das vestes.
Não importava quanto tempo passasse, ele tinha dificuldade em aceitar seu braço biônico. A disforia corporal era uma das coisas com as quais James lidava diariamente em silêncio. Mas amava cada parte dele, seja de carne e osso ou vibranium.
— Bom dia, meu príncipe! — Ela sorriu, sentando-se e fitando a cena.
O sol adentrava a janela do quarto, iluminando perfeitamente o rosto de James e realçando o azul celestial de seus olhos.
— Não me chame assim — ele disse, apenas. Odiava qualquer tipo de apelido que não fosse “Bucky”, o oficial, mas só os íntimos (lê-se Steve ou Sam) podiam usá-lo.
Ela sorriu, pegando uma uva em um dos pratos que havia na bandeja.
Não pôde deixar de notar o empenho que ele colocara ali: frutas frescas, dois croissants, ovos mexidos e suco de uva — seu preferido. E, além da comida, havia um buque de hortênsias azuis.
Eram as flores preferidas dela, mas muito frágeis. Não sobreviviam por muito tempo depois que eram arrancadas do caule. E James sabia bem disso. Planejou há algum tempo, convenceu o senhorzinho da floricultura de arrumar um buquê e entrega-lo lá pelas 5h da manhã, quando foi buscar.
pegou o buquê e o trouxe para perto de seu rosto, cheirando as flores.
Ele se sentiu em paz assistindo àquilo. Era um rapaz das antigas, gostava de presentear com flores, como via seu pai fazendo com sua mãe em sua juventude.
— Elas não têm muito cheiro — James comentou.
— Eu sei! — riu, cheirando-as mais uma vez.
De alguma forma, as flores tinham sido contaminadas por um pouco do perfume de Bucky, possivelmente enquanto ele as carregava para casa.
— Não entendo por que gosta tanto delas — comentou.
— Eu também não — confessou. — Desde criança, sempre gostei, acho que porque são azuis. — Deu de ombros.
não mentira, desde que pôde se lembrar, aquela exótica flor azul a intrigava. Hoje, ela tem um motivo a mais para as preferir a qualquer outra: agora, olhando para as pétalas, ela pensa nos olhos azuis de James, a primeira pessoa que lhe deu um buquê de flores.
— De qualquer forma, são mais originais que aquelas rosas que você me deu a primeira vez que saímos! — provocou.
— Ei! Isso não é justo. Não tinha como eu saber que estava saindo com uma garota maluca que gosta de flores incomuns. Rosas são clássicas, agradam qualquer uma.
— Ah, é, falou o cara que não saía com ninguém desde os anos 40! Realmente um especialista no que as mulheres gostam! — Eles riram e James fez uma careta engraçada em resposta.
Ela pegou mais uma uva, encarando a bandeja sobre seus lençóis brancos e seu namorado atrás. Era o cenário perfeito.
James a encarou, já a conhecia quase com a palma de sua mão.
— Pode tirar a foto, eu sei que você quer — falou, num tom provocativo. — Não entendo o apelo de vocês jovens com fotos.
riu, pegando logo seu celular para fazer um book da comida.
— Falou o velho!
Depois, levantou-se e, em um passo, se aconchegou novamente, sentando-se no colo de James. Ele enlaçou a cintura dela com sua mão metálica, colocando a outra na parte externa da coxa da mulher, por cima do short de seu pijama.
Ela tinha suas mãos no rosto dele, acariciando sua bochecha.
— Eu te amo, sabia? — falou, simplesmente.
Tendo crescido num lar desfeito e colecionado traumas ao longo de sua vida que a levaram até a SHIELD, não sabia que o paraíso podia existir. Mas ele existia, e era qualquer lugar com James.
Ele uniu seus lábios, beijando-a calmamente, saboreando o momento.
— Que os 25 anos te tratem bem — ele sussurrou, mantendo suas testas coladas e olhos fechados, após findar o beijo.
Aquela fala veio com um certo peso, era perceptível.
— Quantos anos você tinha? — tomou fôlego e perguntou, sondando o terreno. James não gostava de falar sobre seu passado. — Quando você serviu com Steve...
Escolheu as melhores palavras que pôde. Não podia simplesmente falar “quando você supostamente morreu, mas foi torturado e modificado pela HYDRA”.
Mas ele sabia ao que ela se referia. A verdade era que todas aquelas coisas nunca tiveram um fim, ele as revivia toda vez que fechava seus olhos.
Constantemente pensava que nunca teria paz. Não, não era algo que o pertencia. Ele tinha momentos de calmaria. Como em Wakanda. Como agora, com ela em seus braços.
— Vinte e quatro — respondeu, sem querer prolongar o assunto e sem encará-la olho no olho. — Vamos comer ou não?
se levantou, voltando para seu lado da cama.
Obviamente sabia que ele era jovem quando tudo aconteceu. Mas saber que ele era apenas um ano mais novo que o que ela era agora?
Um menino do Brooklyn. Arrastado para a guerra do outro lado do oceano. Torturado. Usado. Céus, não queria nem pensar nas coisas que lhe fizeram!

(...)

Alguns minutos de profundo desespero se passaram. Sentia que já não haviam mais líquido o suficiente em seu corpo para desperdiçar pelos canais lacrimais.
Um vazio parecia engolir sua alma. Por um tempo, tudo seria silêncio. Sua mente em branco, como se nada daquilo fosse real.
Em estado quase catatônico, seus olhos percorreram o local. Ali, próximo ao chão, encontrou uma caixa com o símbolo da Tecnologias Pym. Esticou seu braço e a arrastou para fora da prateleira.
Com as mãos trêmulas, abriu o contêiner, avistando logo aquele pequeno frasco vermelho.
Finalmente.

(...)

segurava uma sacola de papel cheia de suprimentos — incluindo sete novos chás exóticos — em uma mão, enquanto tentava destrancar a porta do apartamento com a outra.
— James! Abre aqui! — chamou, sem resposta.
Ela podia ouvir o toca vinil dentro de casa, ele não devia estar escutando, provavelmente tomando banho.
Seguiu tentando passar a chave na fechadura enquanto escutava as notas de Moonlight Serenade, de Glenn Miller, ecoando do outro lado da porta.
Tentou uma, duas vezes.
Até que conseguiu. Adentrou com um sorriso. Ela gostava da textura que os vinis traziam às músicas.
E aquele era um da época de Bucky. Um de seus preferidos.
Deixou a sacola na cozinha, pegando uma ameixa na fruteira. Em passos dançantes, dirigiu-se até a pia para lavar a fruta.
— James, já cheguei! — falou, num tom alto, imaginando que ele estivesse no banheiro.
Fechou a torneira.
Mordeu sua ameixa lavada.
Franziu o cenho e os lábios, estava àcida!
— James? — chamou novamente. — Quer que eu entre no banho com você, é? — brincou, provocativa.
Saindo da cozinha, deu alguns rodopios pela sala, embalada pelo jazz.
Dançando e comendo sua ameixa.
Rodopiou.
Uma.
Duas.
Três vezes.
Notou um envelope ao lado do toca vinil.
Se aproximou.
Firmou a ameixa em sua boca, para ter suas mãos livres.
Secou seus dedos melados de fruta em sua calça.
Pegou o envelope.
Abriu-o.
No mesmo instante, seu celular começou a tocar.
Ela devolveu a carta para a mesinha, procurando o aparelho.
Tirou a fruta de sua boca e olhou o ecrã.
Era Sam Wilson. Estranhou, Sam nunca ligava para ela.
— Alô? — falou, sentindo seu coração apertado sem saber bem o porquê.
— Eu sinto muito, . Eu não cheguei a tempo.
O mundo se silenciou. O que restava da ameixa caiu, de repente, ao chão.
— Sam? — Sentia sua cabeça latejar e suas pernas bambeavam.

(...)

Como suspeitava, não tinha o suficiente de partículas Pym para um salto. Mas já era o bastante, sabia o que fazer. Guardou-o dentro de seu sutiã e se levantou.
Refez o caminho que usou na entrada, mas, dessa vez, não estava sozinha.
— O que está fazendo aqui, ? — aquela voz tão conhecida a chamou, vindo de trás.
Ela se virou.
— O que você está fazendo aqui, Sam?
Wilson deu uma boa olhada na garota. Ela estava péssima. Seu rosto completamente inchado e parecia não comer há dias.
— Pepper está preocupada. Você tem ideia do tanto de coisa que aquela mulher precisa cuidar? E no meio de tudo isso ela se preocupar com você quer dizer que a situação está feia.
— Eu estou bem — mentiu.
...
— Eu estou bem! — Mentiu novamente.
Sam respirou fundo.
— Eu sei o que você quer fazer, mas não vai conseguir — falou.
— Você não sabe disso. Não dá pra saber se eu não tentar.
sentia seu estômago quase em sua garganta. Não lhe sobrava muita força em seu âmago, mas se recusava a se sentir impotente. Ela precisava fazer aquilo.
— Eles destruíram o equipamento. Banner pegou mais das partículas para tentar salvar Natasha, mas não deu certo. Mesmo que você encontre algo, não tem como usar. É mais seguro assim.
— Bom, então por que você está aqui? — rebateu.
— Por você. Eu não vou te deixar passar por isso sozinha. Não vou cometer esse erro duas vezes.
— Não foi sua culpa, Sam. — A voz dela se desestabilizava. — Eu vou consertar tudo.
Sam precisou segurar o nó que se formava em sua garganta. Molhou os lábios e respirou fundo, encarando-a olho no olho.
— Ele está morto, — falou, sem a intenção de machucá-la.
— Não! — ela gritou, perdendo a cabeça.
— Bucky está morto.
— Não! Não! Eu vou resolver tudo, eu vou resgatá-lo! — ela gritava, caindo de joelhos no chão.
Sam correu para seu encontro, confortando-a. Deus sabe que ele queria chorar também, mas precisava ser forte.

(...)

Já era por volta das 20 horas quando Sam a deixara em sua casa.
Aquela casa vazia e fria que não era mais um lar.
Nas últimas horas, Sam a explicou de todas as formas possíveis e impossíveis que mexer com o tempo não era seguro e por isso os vingadores destruíram o equipamento.
Ofereceu-se para dormir em seu sofá, para que ela não precisasse ficar sozinha.
Mas negou. Disse que precisava digerir tudo antes de conseguir conversar com alguém.
Agora, sentada no tapete da sala, com um copo de água nas mãos, um semblante calmo e lágrimas que seguiam caindo sem que ela sequer percebesse, pôs a mão dentro de seu sutiã, pegando de volta o frasco com pouquíssimos mililitros do líquido vermelho.
Segurou-o bem dentro de sua palma, fechando a mão. Com a outra, pegou seu celular e discou o número de sua antiga amiga.
Após algumas chamadas, a inglesa atendeu.
— Simmons? Preciso de um favor seu e do Fitz. Eu preciso que vocês recriem a viagem no tempo com as partículas Pym.

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Capítulo 2 — The Mission

retirava com pressa as coisas de seu pequeno armário acima da cama, no dormitório que chamava de lar. Era difícil não pensar nas consequências daquela ação, mas tinha de fazer o que fora treinada a fazer: seguir para a próxima missão.
Controlava sua respiração para, assim, controlar seus batimentos cardíacos e, com eles, sua vontade absurda de chorar.
Focava em tudo o que havia aprendido no treinamento de agente, mas a SHIELD era sua casa, e a equipe de Coulson o mais próximo que tinha de uma família.
Ela dobrava sua última jaqueta e a acomodava na mala aberta na beira da cama. Sentia o olhar indignado de Jemma Simmons — uma inglesa de estatura média, pele clara e cabelos castanhos, com um rosto usualmente extremamente amigável, que hoje se curvava em pânico —, parada à porta, a seguindo.
— Como consegue? — ela perguntou, de braços cruzados, com a voz um pouco embargada.
— Jemma... — se virou de costas para a amiga, tentando, com todas as suas forças, se manter neutra.
— Como consegue ficar tranquila? — A inglesa, diferentemente de , não conseguia segurar as lágrimas de rolarem. — Eu preciso saber! Preciso... aprender.
parou por um instante, pegando em mãos o porta-retratos da equipe — que ficava sempre ali, ao lado de onde dormia, para que fosse a primeira coisa que visse quando acordava e antes de se deitar. Inspirou audivelmente. Colocou a foto na mala e a fechou.
Sentou-se sobre o colchão, finalmente encarando Jemma. Gesticulou para que a amiga se sentasse também.
Simmons se acomodou, de forma que a mala ficasse entre as duas. Ambas olhando para frente, sem forças para ter essa conversa olho no olho.
— A verdade é que eu não sei — confessou.
— Mas você teve o treinamento necessário, a Academia não me preparou para isso.
— A Academia não preparou nenhum de nós para isso — corrigiu , instaurando um silêncio devastador.
De um dia para outro, o mundo delas havia sido destruído. Tudo o que elas conheciam já não existia.
A SHIELD havia caído.
Presenciaram amigos se tornando inimigos e matando aliados bem na frente de seus olhos. E, numa dessas, Simmons e Fitz quase se foram também. Ward, um de seus queridos colegas da equipe de Coulson, revelou-se parte da HYDRA e tentou matá-los. Fitz salvou Jemma, mas acabou com hipóxia cerebral fazendo isso.
O tempo que passaram no hospital poderia recuperar sua saúde física, mas as marcas daquele dia jamais seriam curadas.
Não conseguiam digerir toda a barbárie e escuridão que manchava o legado da agência a qual devotavam sua vida e juventude.
Para ambas as garotas, a SHIELD era muito mais que um emprego.
Jemma, juntamente a Fitz — um rapaz esguio, de cabelos ondulados e louro-escuros, com pouquíssimas habilidades sociais —, foram os cientistas mais jovens a se formarem na Academia da SHIELD de Ciência e Tecnologia, prodígios que já eram observados pela agência desde muito cedo.
, por outro lado, não tinha nada especial para oferecer, apenas mais uma história de garota com lar conturbado como tantas outras; mas a SHIELD a acolheu e a deu esperanças, treinou-a desde os quatorze anos em um programa secreto que pretendia replicar o RED ROOM (o mesmo que criou a Viúva Negra), sem as partes macabras do Departamento X, e, obviamente, com o consenso dos pais, ou, mais especificamente, da mãe, numa tentativa desesperada de protegê-la dos problemas de casa.
Mas só foi quando Coulson a recrutou que sentiu, pela primeira vez na vida, que tinha um lar.
E agora o estava perdendo.
— Eu só... — começou, concentrando-se em manter o controle de sua respiração. — Tento me lembrar que Coulson é a SHIELD. A SHIELD que importa, o que deveria ser. Enquanto ele estiver aqui, temos um propósito.

(...)

— Não podemos fazer isso — disse Fitz, inquieto. — Não podemos!
Jemma pôs as mãos sobre as dele.
observava o casal no laboratório, sentada sobre a mesa de necropsia — equipamento padrão e, diga-se de passagem, bem banalizado depois que se passava alguns meses em missões. A imagem deles discutindo coisas científicas, com palavras que ela nunca sabia o que queriam dizer, era tão familiar que ela quase sentia vontade sorrir.
Fitz agora tinha barba e Jemma parecia também mais adulta, mas, ainda assim, era como estar de volta a algumas de suas memórias favoritas.
Entretanto, havia tanta dor em seu coração que curvar seus lábios num leve sorriso seria impossível.
— É claro que podemos, Fitz. Você consegue recriar o equipamento em meia hora, eu replico as partículas PYM. — Jemma olhava bem dentro dos olhos de seu amado.
Apesar de ter perdido todo o desenvolvimento daquele relacionamento, não era estranho para vê-los como um casal. Todos meio que já esperavam que aquilo fosse acontecer. O amor deles era extraordinário, mesmo antes deles próprios perceberem e admitirem um ao outro. Não existia Fitz sem Simmons, nem Simmons sem Fitz.
Assim como não deveria existir uma sem um Bucky.
— Disso eu sei, Jemma! É óbvio que conseguimos. A questão é: nós devemos? Não sabemos as implicações disso — Fitz indagava, irrequieto, nunca cortando o contato com Simmons. — Pode romper toda a coesão do espaço-tempo.
— Ou ela pode causar uma pequena alteração que só ela mesma, tendo presenciado a realidade corrente, perceberia — argumentou Jemma.
— São muitas variáveis. Ela pode acabar criando uma linha alternativa completamente nova! Eles lutaram contra Thanos, e se algo mudar e a humanidade for dizimada de novo?
— Não significa que isso destruiria a nossa realidade. Se ela é a viajante, é possível que eu e você e todos os outros no planeta sigamos inalterados, sem saber o que houve com enquanto ela cria uma realidade... variante, nascida a partir da nossa.
— Talvez tenha razão, Jemma. — Contemplou por alguns segundos. — Não sabemos como poderes maiores operam, mas o universo sempre se protege do absurdo. De alguma forma, tudo acaba correndo como tem que ser.
— É claro que tenho razão, Fitz. A viagem dos vingadores aconteceu de forma linear, eles interferiram em alguma linha semelhante à nossa, que causou a volta de Thanos, mas a nossa linha seguiu intacta. Pode funcionar!
— E o simples ato de fazer o salto pode implicar que ela já o fez antes... O passado se torna seu futuro. O presente se torna passado! Mas ainda não sabemos o que de fato pode ocorrer com ela.
O casal discutia rapidamente diversas hipóteses que faziam a cabeça de girar, ela não estava muito preocupada com as tecnicidades da coisa, só... precisava fazer.
— Sei que estou pedindo demais a vocês — interrompeu, levantando-se da mesa e aproximando-se dos amigos. — Sei que podemos contar nos dedos quantas vezes nos vimos desde que eu... saí em missão quando a SHIELD caiu.
Fitz revirou os olhos.
— Quando você abandonou a equipe — corrigiu.
— Fitz! — Jemma o repreendeu.
sentia seu coração pesar. Fitz era o melhor amigo que ela já teve, mas, quando conheceu James, as coisas mudaram. Não se arrependia de suas escolhas, mas se arrependia de não ter estado com Fitz durante seu período de recuperação da lesão cerebral — que foi bem difícil e solitário, pelo que soube.
— Tudo bem, Simmons. Ele tem razão. — se culpava. — Mas você é melhor que eu, Fitz. Por favor, não vire as costas para mim como eu fiz a você.
E, dessa vez, não conteve as lágrimas. Não desestabilizou sua voz nem nada, mas já não tinha força o suficiente para seguir seu treinamento com destreza.
E Jemma sabia que a amiga tentava manter a pose, tal qual fora ensinada, mas estava visivelmente um caco.
— Não, ele não tem — Jemma disse. — A única culpada nessa história toda é a HYDRA. Nós sabemos disso, todos sabem disso. James é mais uma vítima desse monstro, como nós já fomos por mais vezes do que podemos contar. — Olhou nos olhos de . — Tenho certeza de que ele era um bom homem que merecia uma segunda chance.
mordeu o lábio inferior, levantando a cabeça e olhando para o teto, enquanto suas lágrimas rolavam quentes e rápidas. Ouvir os verbos sendo conjugados no passado não soava certo.
— Eu não tenho direito de pedir nada a vocês, mas ele é um homem bom. O melhor que já conheci. O que estou pedindo é exatamente o que vocês fariam um pelo outro — disse, apesar do nó em sua garganta quase impedir que qualquer som se fizesse.
Fitz olhou para , dos pés à cabeça. Nunca a tinha visto tão mal, nem mesmo naquela missão em que levara três tiros nas costas.
Em seguida, ele olhou para Simmons. Faria tudo por ela, sem hesitar. Desafiar o universo e qualquer lei da física para resgatá-la era quase rotina. Perdeu as contas de quantas vezes o destino tentou separá-los, das maneiras mais nefastas e inimagináveis. Mas eles sempre achavam um caminho de volta um para o outro, nunca desistiam.
O que sua amiga estava tentando era encontrar o caminho de volta para os braços de quem amava, mas não poderia fazê-lo inteiramente sozinha.
— Ela tem razão — Jemma disse baixinho, ainda segurando as mãos de Fitz.
— Eu sei que tem — ele concordou, dando um meio sorriso para sua amada. — Que se dane. Vamos fazer. Só espero que ele valha a pena.
abraçou os dois subitamente, soluçando em seu choro esperançoso.

(...)

— Tem certeza, Coulson? — agente Melinda May, a asiática baixinha que sempre se vestia toda de preto e quase nunca sorria, vulgo o braço direito de Coulson, o questionava.
Coulson tentava manter seu bom humor, sem demonstrar a preocupação que consumia seu interior, pegando a caixa de arquivos sobre sua mesa e dirigindo-se para fora de sua sala.
— Não, mas que outra alternativa eu tenho? Não temos muitos agentes em quem podemos confiar. Elas são as mais qualificadas para as missões.
O quarteto de ouro de Coulson — Fitz, Simmons, e Skye, os mais jovens e brilhantes agentes da SHIELD, que excediam as expectativas em suas áreas de atuação, o futuro da agência, que Coulson via quase como filhos, teria de ser separado.
Com Fitz ainda hospitalizado, delegou a Simmons que se infiltrasse na HYDRA, que estava alistando inúmeros cientistas que debandaram após a fatídica queda. , versada em combate e operações, investigaria o paradeiro do Soldado Invernal — arma chave da HYDRA e do secretário Pierce para derrubar a SHIELD, alguém que eles não poderiam se dar ao luxo de não saber o paradeiro.
Apenas Skye — sua protegida, com maiores habilidades de liderança, ficaria ativamente na equipe, cooperando com times recém recrutados.
Coulson caminhou até o hangar do Playground — a base secreta do Fury, de onde reconstruiriam ocultamente a SHIELD, com May ao seu lado.
— Simmons ficará bem, ela se adapta com facilidade e é a única inteligente o suficiente para esse disfarce — Coulson falava para May, mas os dois sabiam que ele estava apenas externando para tentar se convencer daquilo. — E foi treinada desde criança com os movimentos de combate mais eficazes que conhecemos, se alguém pode conter o Soldado Invernal, eu aposto nela. Ou em você, mas você já é figurinha carimbada da SHIELD, precisamos de um rosto que passe pela multidão.
— Está com medo de enviar duas crianças para os alvos mais perigosos da HYDRA. — Melinda conseguia claramente ler nas entrelinhas de tudo o que Coulson falava ou fazia. Não havia por que fazer cerimônia, era assim que funcionava a relação deles.
— Precisamente — Coulson disse, apenas, enquanto seguiam caminhando.
— Devo lembrá-lo que nem uma das duas é uma criança e não deveria tratá-las assim. São capazes de muito mais que isso e ficarão seguras — May terminou. Coulson tentou guardar aquelas palavras em sua mente.
Ao chegar ao hangar, encontraram Jemma e dispostas com suas malas e equipamentos, mantendo suas posturas firmes e profissionais.
Simmons sentia seu estômago gelar só em pensar no que teria de fazer. Infiltrar-se na HYDRA lhe despertava calafrios, ainda mais indo sozinha. E mais ainda por saber que elas estavam saindo em segredo, os únicos com autorização para saber eram os próprios Coulson e May. Não queria nem pensar em como Fitz se sentiria.
, no entanto, havia feito as pazes com a ideia. Como agente, sabia que nunca teria um lugar fixo no mundo, seria sempre de uma missão para a outra. Sob o comando de Coulson, entretanto, sentia-se inspirada e acolhida. Pronta para fazer o que fosse preciso.
— Senhor. Agente May — cumprimentou-os, com um aceno de cabeça, recebendo outro deles.
— May as levará no quinjet — Coulson instruía. — , seu destino será o primeiro. Instale-se e reporte. Aqui está o arquivo do Soldado invernal — ele a entregou uma caixa de papel pardo que parecia vir da época da SSR e ser atualizada até hoje, dado seu peso —, estude-o, conheça-o, não o deixe a pegar de surpresa. — assentiu. — Simmons, May lhe entregará a chave de um apartamento seguro para seu disfarce. Assim que conseguir adentrar a base da HYDRA, reporte.
— Sim, senhor — Jemma disse.
Coulson as olhava, ainda receoso. Confiava nelas com sua vida, mas parte dele não conseguia vê-las além de sua tenra idade. Sentia-se horrível em mandá-las para o perigo iminente.
As duas também o encaravam. Depois de um tempo na equipe, era impossível não começar a vê-lo como uma figura paterna. Coulson sempre priorizou a segurança de seu esquadrão e poupava-as de tudo que fosse possível. Sentiriam falta de não o ter mais por perto, assim como o resto da equipe e sua atmosfera divertida e afetuosa.
Os tempos agora eram outros.
— Algo mais, senhor? — perguntou, após alguns instantes daquele silêncio e vendo a cara quase engraçada que May fazia, franzindo os olhos para observar Coulson como se aguardasse ele dar fim àquela conversa.
— Sim — ele disse. — Por favor, tomem cuidado. Não poderemos nos comunicar com frequência, então fiquem seguras.
sentiu, finalmente, que aquele seria o último contato com Coulson por algum tempo. Pôs a caixa de arquivos sobre sua mala e, de supetão, abraçou Coulson — que demorou a processar o gesto por alguns segundos, mas logo correspondeu.

(...)

seguia sentada na cadeira ao canto do laboratório, enquanto observava Fitz trabalhar concentrado e em silêncio. Simmons havia saído para outro setor, a fim de testar amostragens da réplica da partícula que acabara de desenvolver.
E, apesar de todo o caos em sua mente, não conseguia simplesmente não pensar em toda a mágoa que podia ter infligido aos seus amigos, que tão prontamente se disponibilizavam a ajudá-la.
Então, sem muito ensaiar mentalmente, atreveu-se a chamá-lo:
— Fitz?
— Sim? — ele respondera, seguindo seu trabalho.
intimamente ficou até aliviada por ele não ter se virado para a fitar. O que tinha a falar não era fácil, e era melhor dizer para a impassível silhueta de costas que encarar os olhos de seu antigo amigo.
— Eu devia ter me explicado quando resolvi deixar a SHIELD. Vocês eram minha família. — Expirou audivelmente, fazendo uma pausa. — Será que pode me perdoar?
Agora, devido às circunstâncias, entendia mais que qualquer um no mundo o quão difícil era engolir uma partida brusca.
Pensara que sua decisão de deixar toda a vida que conhecia como agente fora arriscada e complicada, mas ela era a pessoa indo embora. Doeu por um curto tempo, ter seu mundo destruído; mas tivera seus motivos e a escolha se tornou nata, faria tudo de novo num piscar de olhos.
Mas, ser a pessoa deixada para trás, isso sim era difícil superar. Todas as dúvidas que rondavam e faziam alarde em sua mente, todos aqueles “e se?” perdurando sem respostas, na tentativa de encontrar um motivo para o outro partir.
Fitz parou por um momento. Pôs a minúscula chave de fenda sobre a mesa. Respirou fundo.
Finalmente se virou para encará-la.
— Você fez o que achou que era certo. Eu respeito isso. É o que nós fazemos, não é? — Ele esboçou um pequeno e discreto sorriso empático na direção de . — É tudo o que podemos fazer.
sorriu de volta, um pouco aliviada.
— Sabe que você é o melhor amigo que eu já tive, não sabe?
— Você precisa sair mais — respondeu, sarcástico, mas bem-humorado.
Fitz olhou pela divisória de vidro, enxergando Simmons à distância, trabalhando no outro compartimento.
— Não sei o que eu faria sem ela — confessou, logo voltando a fitar . — Só posso imaginar o que você está passando. Sinto muito.

(...)

“Vigie. Não se envolva.”
As ordens dadas por May quando reportou o status da missão ecoavam todos os dias na mente de .
Há exatas três semanas e dois dias, o quinjet pousara na Romênia, deixando-a num campo aberto na região de Crețuleasca, uma área ruralista próxima à capital Bucareste.
A SHIELD não era mais uma agência oficial, de fato, não tinham mais recursos suficientes para missões dispendiosas. Tudo o que Coulson pôde oferecer a fora uma caixa recheada de arquivos, com todas as informações que se tinha sobre o Soldado Invernal, e um nome, só recentemente descoberto, que dava rosto à todas as atrocidades: James Buchanan Barnes.
Pela primeira vez em muito tempo, estava sem a companhia da estimada equipe — e ainda agindo às margens da lei, agora que não tinha mais permissões de estado para trabalhar. Precisava ser duplamente cuidadosa.
Sondou a área por pistas sobre o paradeiro do alvo, o que demorou mais do que o esperado.
No primeiro dia, teve de acampar na mata, mas não podia chamar atenção. Dormira no topo de uma árvore, enfrentando, com grande dificuldade, a fome, o vento gélido e a baixa temperatura sem poder acender uma fogueira.
Mas a Academia a havia preparado para tudo isso.
Rastreou o inimigo até a cidade de Bucareste, donde reportou a primeira vez.
“Vigie. Não se envolva.”
A cidade parecia meio perdida no tempo para . Seus edifícios, todos meio decadentes, combinavam com o cinza dos céus e contrastavam com a simpatia de seu povo.
A boa notícia era que o país, relativamente recém inserido ao regime capitalista, era muito favorável a imigrantes e expatriados; o baixo custo de vida e a falta de interesse sobre o histórico de quem chegava facilitaram a instalação de , que se alocou num apartamento em zona estratégica para circular pela cidade em prol de sua missão.
A má notícia era que, da mesma forma, o assassino letal e aprimorado que destruiu a SHIELD obviamente sabia bem para onde estava indo e também já deveria estar bem instalado.
Assim que se familiarizou com o traçado urbano, passava seus dias de tocaia, escondida em telhados e terraços, e suas noites devorando os arquivos do Soldado Invernal. Precisava se preparar, memorizar todas as informações, encontrar seus pontos fracos.
Se Steve Rogers saiu ferido após um encontro com ele, não podia se dar ao luxo de não se precaver o máximo possível e usar todos os recursos que lhe foram dados.
“Vigie. Não se envolva.”
Com seus esforços e o passar dos dias, era questão de tempo para que finalmente o encontrasse. E ela o encontrou.
Numa tarde de terça feira, no oitavo dia desde que iniciara a missão, ela o viu.
Em uma igreja próxima ao centro histórico da cidade, se posicionava estrategicamente na torre sineira. Com seus binóculos tecnológicos da SHIELD, ela observava o movimento sem ser vista pelos pedestres.
E foi assim que, de repente, ela o encontrou. Pensou que sua visão pudesse estar lhe pregando uma peça, mas ativou o scanner facial do aparelho. Era ele.
Passeava pela rua quase despreocupado, se misturando com os cidadãos.
Furtiva, ela o seguiu até uma feira dobrando a rua.
Lá, na frente de um estabelecimento que pareceu um pequeno bar, ele fez contato com um homem de idade, de quem o scanner facial não apontou nenhuma ficha criminal. O super soldado se dirigiu para a lateral da loja, onde passou a descarregar caixas de um caminhão e as acomodar dentro do bar. Ativou o raio-x de seu binóculo para descobrir o conteúdo: aparentemente, bebidas alcoólicas comuns.
O homem mais velho que abordara anteriormente o entregou um pouco de dinheiro. Barnes sorriu e caminhou pela feira.
Fez uma nota mental de tudo o que ele comprou: um peixe fresco e algumas frutas diversas. Coisas diabolicamente normais.
Ao fim do dia, acabou por descobrir onde o alvo se escondia: seguiu-o até um prédio antigo e acabadiço numa região mais humilde da cidade.
Jornais colados sobre o vidro impediam a visão das janelas, mas, apesar de tudo, aquele não parecia um local de tocaia, um esconderijo até o próximo atentado. Crianças pulavam corda na frente da entrada e mães se sentavam nos degraus de acesso, as observando. Aquele parecia um lugar onde se mora.
“Vigie. Não se envolva.”
A rotina dele era sempre a mesma. Trabalhava informalmente para pessoas diversas, realizando tarefas braçais por alguns trocados. Comprava seus mantimentos. As vezes passeava um pouco, andava de trem, parecia se perder em pensamentos. Voltava para casa.
Ela lia os arquivos, sabia o que ele era capaz de fazer. As pessoas que matou à sangue frio, o mal que fizera sem o menor escrúpulo ou remorso. Céus! Ele destruiu a SHIELD e, com ela, tudo pelo que dedicara sua vida; ele era a arma mais poderosa da HYDRA.
Mas, de alguma forma, durante essas três semanas e dois dias, ele parecia perigosamente... normal. Algo não fazia sentido.
“Vigie. Não se envolva.”
Três semanas e três dias. , de tocaia em um terraço próximo à feira, o observava.
Mal dormira na última noite, relendo pela milionésima vez os arquivos da SHIELD.
Por que razão aquele homem parecia tão inofensivo?
“Vigie. Não se envolva.”
Precisava chegar mais perto, precisava investigar por si mesma. Há algo faltando nas informações que lhe foram dadas.
Ficar só ali parada de tocaia, o vigiando à distância, não iria solucionar seus questionamentos.
“Vigie. Não se envolva.”
Precisava se aproximar mais.
“Vigie. Não. Se. Envolva.”
desceu do terraço e se misturou aos outros que aglomeravam a viela.
Vigie!
Caminhou no meio da feira, com tantas pessoas indo e vindo não seria estranho se ela não o conseguisse encontrar. Mas ela o vigiara tanto que já poderia reconhecer a silhueta de Barnes em qualquer lugar.
Não!
Avistou a figura de costas, escolhendo algumas maçãs na barraca logo à frente. Era estranho vê-lo tão de perto, mas ela tinha um plano.
Se!
Com toda a confiança e tranquilidade do mundo, se encaminhou para tal barraca, apressada, esbarrando de propósito em seu alvo.
Envolva!
— Desculpe! — ela falou, ao encostar bruscamente nele, pronta para qualquer que fosse a reação violenta que o super soldado teria.
Mas ele se virou, encarando-a bem dentro dos olhos e sorriu.
— Não tem problema — disse, gentil.
Tarde demais. já estava envolvida.

(...)

— É só isso? — perguntou, observando o equipamento que Fitz ajustava em seu punho.
Parecia uma luva com uma pulseira metálica embutida, mas, em vez de ficar no pulso, se encaixava entre seu polegar e a primeira dobra dos demais dedos, enlaçando-se por todo o contorno de sua mão. Era da cor grafite e tinha quatro botões; três deles ficavam no dorso de sua mão, abaixo de um pequeno visor, onde se via uma data e coordenadas; o outro, um pouco maior e na cor roxa, se localizava na lateral, onde ela poderia ativar com o polegar.
— Os avengers construíram uma parafernália gigantesca no complexo e você me dá uma luva? — ela continuou, sorrindo.
— Você lembra o tamanho dos primeiros celulares e como eles diminuíram rapidamente? — Fitz respondeu, ainda ajustando a luva na mão de . — Conhecendo a engenharia da máquina, não é difícil melhorá-la.
Jemma os encarava bem de perto, com um olhar compassivo e ansioso. Ela estava preocupada, mas tentava esconder.
— Acha que não vai dar certo? — percebeu a hesitação da amiga, e a perguntou, buscando seus olhos.
— Não é isso, eu sei que vai — disse, sem um pingo sequer de dúvidas em seu trabalho.
— Mas as preocupações ainda são válidas — concluiu Fitz, soltando a mão de e se afastando para guardar suas ferramentas de precisão.
Jemma se aproximou com uma caixa de ampolas com as partículas recriadas, entregando-as à amiga, estendendo-lhe um olhar sincero e um meio sorriso.
— Já sabe pra onde vai? — perguntou, baixinho.
— Eu tenho algumas ideias em mente.
Fitz voltou a se aproximar, explicando os pormenores do funcionamento do aparelho, como programá-lo e onde inserir as ampolas.
ouviu tudo atentamente, agradecendo-os e se despedindo por fim.
Jemma e Fitz se encararam, aflitos, até que Simmons tomou coragem e falou:
— Tem certeza de que não quer ajuda? A gente pode ficar aqui, acompanhar o salto, saber se voltará bem...
— Não precisa — falou logo, altiva. — Eu realmente tenho que fazer isso sozinha. Além disso, já fizeram demais por mim.
À contragosto, os amigos acabaram concordando. Com um abraço, se despediu e seguiu seu caminho.
Pegou suas chaves, seu carro preto se misturando à escuridão noite adentro enquanto dirigia quase sem rumo. Precisava sair de Nova York, memórias demais sondavam cada quarteirão e olhos familiares poderiam encontrá-la pela multidão.
Formulando melhor o plano conforme viajava, decidiu ir para Nova Jersey. Tomou o cuidado de pegar o caminho mais longo, pela ponte de Williamsburg; não suportava a ideia de sequer ter a ponte do Brooklyn ao alcance de sua vista.
De forma infantil e irracional, demonizava o monumento: aceitar coexistir com a ponte do Brooklyn agora seria como aceitar a perda dele, como se o objeto arquitetônico inanimado fosse o culpado pela partida, por toda a dor, pelo oceano de sentimentos não processados em seu peito que a asfixiavam. Seria como aceitar que ele estava fora de seu alcance.
Mas, de alguma forma, fez seu caminho até o Parque Alpine — o camping administrado pelos Escoteiros da América. Apesar de fechado e vazio, algo ali parecia torná-lo o lugar certo para o que precisava.
Os faróis de seu carro eram a única fonte de luz no estacionamento. Virou a chave na ignição, desligando-o. Tentou tomar fôlego, sabendo que a tremedeira em suas mãos nada tinha a ver com o frio daquela madrugada. Recostou a cabeça no volante e fechou os olhos.
As lembranças de dias melhores com um James sorridente eram tão vívidas em sua mente que quase podia tocá-lo. Ele costumava dizer que Alpine era um bom nome para um bichinho de estimação, um que eles nunca chegaram a ter. E, às vezes, dizia também que, se tivesse filhos, adoraria levá-los ao acampamento; com sorte, eles iriam acabar querendo se tornar escoteiros e se espelhariam em Steve, Sam, ou... .
Era estranho pensar nisso agora. Nunca chegaram a conversar sobre filhos de verdade. Mas a imagem daquele James era a quem ela se agarrava, um James que ousava pensar no futuro, com grandes ou pequenos planos, seja adotando uma gatinha chamada Alpine ou tendo filhos. Ela segurava firme na infame hipótese de que algo nele queria... ficar.
E por isso ela estava pronta para o combate.
Ergueu seu rosto, ligou a luz interna do carro e esticou-se para abrir o porta-luvas, na intenção de pegar o equipamento recém entregue por Fitz e Simmons. Mas seu coração pareceu ir à garganta quando seus dedos esbarraram num pacote plástico.
Trouxe sua mão para o peito num susto, a cobrindo com a outra, como se tivesse levado um choque. Tinha esquecido que deixara, também no porta-luvas, o pacote entregue pelo legista com os pertences de James.
Tentou se recompor, não era hora de desmoronar. Mais cedo ou mais tarde, teria de lidar com aquilo, não poderia apenas deixar o pacote escondido para sempre.
Com o corpo todo tremendo, retirou o saco hermético do compartimento.
Com a visão turva, abriu-o, removendo dele um único item: a dogtag, ou colar militar de identificação, de James.
Segurou-o com força bem dentro de sua palma, fechando-a e trazendo-a para perto da boca, como se fosse abafar seu choro de irromper.
Respirou fundo, contou até dez mais de dez vezes. Lembrava de seu treinamento de agente.
Notou que havia apenas uma plaqueta no cordão. Indagou onde a outra teria parado. Sabia muito bem que aquilo era bem mais que um simples colar para Bucky. Se o legista o perdeu, ela o faria se arrepender.
Mas, por enquanto, tinha mais o que fazer.
Trouxe a placa de metal gelado para seus lábios, beijando-a rapidamente para, em seguida, transpassar o colar por sua cabeça, escondendo-o dentro de sua blusa.
Após meses do Blip e de ter se comprometido a uma vida normal, trajava mais uma vez seu uniforme clássico de super espiã. Não muito diferente daquele que costumava usar na SHIELD anteriormente, era um macacão preto, de tecido tecnológico leve, justo ao corpo para facilitar a movimentação, coldres com várias tiras nas costas, cintura e pernas, acomodavam lâminas e armas; nos pés, suas botas de solado anti-impacto permitiam que caminhasse sem ser percebida; nas mangas de seu traje, ainda se via o famoso “A” da logo dos Avengers, mesmo que o grupo — ou o que sobrou dele —, possivelmente não se reunisse nunca mais depois de Thanos.
Sentiu o vento gélido bater contra seu corpo e suas pernas amolecerem de repente. Havia muito em risco, fragilizada, não conseguia conter o nervosismo.
Com a lanterna dos pulsos de seu traje ativa, caminhou mata adentro até que não visse mais trilha ou sinais humanos. Não podia ser perturbada ou vista e todo cuidado era pouco.
Quando tudo o que lhe cercava eram árvores e a própria escuridão, parou.
Aqueceu seu corpo com rápidos alongamentos e sua mente, com a confiança de que não falharia. Tentava se convencer de que era só mais uma missão, e ela não chegou aos vingadores com um histórico de falhar em suas tarefas.
Contou até dez, tomando controle de seus batimentos e emoções mais uma vez.
Era agora ou nunca.
— Até o fim — repetiu em voz alta a promessa que um dia fez à James, rapidamente programando o equipamento em seu punho com a primeira data e local que lhe viera à mente.
Fechou os olhos com força, mas ainda podia ver uma luz forte por detrás de suas pálpebras. Seus ouvidos doeram como se tivessem pegado pressão num avião. Sentiu seu corpo inteiro vibrar numa frequência estranha, como se tudo formigasse e cada partícula de cada célula nela se agitasse.
E, de repente, silêncio.

(...)


16 de Dezembro, 1991

Já não era tão frio.
Tudo em seu corpo parecia de volta ao normal, mas sentia que seus arredores haviam mudado. Arriscou abrir uma de suas pálpebras — que mantinha fechadas com tanta força que franziam todos os músculos do rosto —, primeiro.
Ainda via árvores, mas eram iluminadas por um poste.
Com os dois olhos abertos, olhou ao redor. À sua frente, uma estrada de terra e uma cerca com uma câmera.
Um sentimento de euforia a entorpeceu de uma vez.
— Fitz, Jemma, seus gênios do caralho! Vocês conseguiram! Realmente conseguiram! — disse empolgada, enquanto um sorriso incontrolável rasgava seus lábios.
Conferiu novamente seu aparelho, Fitz deu um jeito para que mostrasse as horas de onde estivesse.
Eram exatamente 18 horas e 55 minutos.
— Merda! — resmungou.
Precisava se esconder depressa.
Havia lido tantas vezes os arquivos do Soldado Invernal que, mesmo agora, anos depois, sabia quase de cor a maioria dos eventos em que ele se envolveu. Este, sendo um dos mais notáveis, estava gravado na mente dela como uma tatuagem.
E tinha poucos minutos antes de acontecer.
Agachou-se atrás de um arbusto. Desde o salto, não cruzou o campo de visão da câmera.
Nos cinco minutos seguintes, ponderou o que exatamente faria. O que ela poderia fazer?
Lembrou-se de Fitz dizendo que não conhecem as implicações de se mexer com a linha do tempo.
Talvez devesse se ater a não alterar tanto as coisas. Talvez devesse se importar com a linha do tempo que levou Bucky a tirar a própria vida.
Mas ela se importava?
Exatamente às 19 horas e 01 minutos, ouviu um carro se aproximando.
Era agora.


Capítulo 3 — The Soldier

O carro sem freios colidiu com o muro bem frente aos seus olhos. Seu primeiro instinto seria correr para ajudar, era isso o que ela fazia, salvava pessoas.
Não dessa vez.
Parecia ocorrer em câmera lenta, cada segundo durando horas.
Assistiu sádica e atentamente o homem ensanguentado sair da porta do motorista, caindo ao chão e retorcendo-se em dor: Howard Stark.
Sua mente corria à mil, mas não tinha tempo de questionar a moral do que fazia.
Microssegundos depois, uma figura sombria numa motocicleta parou ao lado do carro.
Qualquer outra coisa na mente de se esvaneceu. Seus olhos se vidravam em cada movimento dele.
É hora de agir! — Ela pensava, mas seu corpo não parecia corresponder.
Permaneceu imóvel, em choque.
— Por favor, ajude! — Stark clamava, sua voz fraca e debilitada. — Ajude minha esposa!
Bucky se aproximou dele à passos normais, não se notava qualquer tipo de hesitação.
Ele se inclinou minimamente, puxando Howard pelos cabelos, o fazendo ver seu rosto.
— Sargento Barnes?
Faça algo! Faça algo! — O estômago de foi à boca, mas não podia se mover.
Em silêncio e sem sequer piscar, assistiu de camarote o homem que amava assassinar um senhor indefeso.
Ele sequer esboçou qualquer emoção.
— Howard? — Pôde ouvir a voz feminina e madura, confusa e sem muita força, chamar, de dentro do carro.
sabia de cor a sequência dos fatos. Depois de estraçalhar o crânio de Howard com seu punho de vibranium, acomodaria o cadáver de volta ao banco, forjando um acidente. Daria a volta e, sem muito esforço, sufocaria Maria Stark. Mas não eram mais só dados escritos num arquivo sem rosto e sem nome, ver aquilo se desenrolar bem à sua frente revirava cada fibra em seu corpo, arrepiava cada fio de cabelo e fazia sua espinha gelar de cima a baixo.
— Chega! — gritou, sem conseguir mais se controlar.
Anos de treinamento, anos de combate, nada a preparou para o que quer que fosse aquilo.
se levantou, revelando-se finalmente de seu esconderijo, caminhando em direção a ele.
O Soldado Invernal nem sequer vacilou. Apenas olhou em volta, escaneando sua próxima vítima: a mulher em traje táctico preto que não deveria estar ali.
Afrouxou a compressão que impunha na traqueia de Maria Stark ao sentir a vida se esvair de seu corpo. Sua visão fixa na estranha e hesitante figura que o encarava perto das árvores e vinha se aproximando.
Em questão de segundos, viu Bucky se acercar à passos largos. Conforme se aproximava, sob a única fonte de luz ali, tudo ganhava forma: seu traje de tecido grosso, cheio de amarras e armas, as botas de combate, o braço biônico totalmente à mostra e os cabelos, longos como quando o conheceu em Bucareste...
Finalmente, o tinha de volta ao alcance de suas mãos.
Por um momento, fraquejou. Sua mente cheia de ansiedade e confusão era barulhenta demais para processar a situação por completo. Ela só queria abraçar o homem que amava mais uma vez.
Mas quando ele chegou perto o suficiente, tentou acertá-la com um gancho de direita. Por um reflexo, conseguiu desviar e acordou de seus devaneios, voltando seu foco para o momento. Agachou-se e o acertou com uma rasteira, fazendo-o desequilibrar só o suficiente para ela se afastar dois passos.
— James! James, me escute! Esse não é quem você é! — ela dizia, firme e rapidamente, preparando-se para desviar dos próximos golpes.
O Soldado Invernal não esboçou qualquer reação. Seguiu tentando golpeá-la enquanto ela apenas se defendia e esquivava.
Numa sequência ágil de movimentos, o adversário tentou acertá-la com a mão direita enquanto alçava a esquerda nos quadris de , sacando uma lâmina de seu traje e tentando feri-la com sua própria arma.
bloqueou o ataque posicionando seus antebraços cruzados como num “x” frente ao seu rosto, sentindo neles o impacto agressivo do braço de Bucky. Ele forçava sua dominância, empunhando a lâmina enquanto usava toda sua força, firmando seus calcanhares e joelhos, para manter a posição.
Mas havia um limite até para ela. Não sabia se ele intencionalmente pegara seu equipamento para lhe humilhar, mas, seja como for, irritou-a.
Até o momento, ela seguia uma conduta defensiva, mas, no impulso, viu-se liberar de uma vez toda a força que empunhava, fazendo com que o Soldado Invernal oscilasse para frente enquanto ela o driblava pela lateral num lance hábil e felídeo. E antes que se desse conta, como que por instinto, partiu para um ataque ofensivo.
— Fale comigo, caralho! — implorou, finalmente acertando um soco no maxilar do adversário.
Ele parou por um milésimo de segundo. pensou que enfim a ouviria.
Mas a reação foi bem diferente: o Soldado pareceu encarar a luta com menos paciência.
E numa execução certeira, agarrou o pescoço de com sua mão de vibranium, imprimindo ali uma força absurda.
Ele a empurrou até que suas costas encostassem no tronco largo e áspero de uma árvore, encurralando-a e erguendo seu corpo a uns trinta centímetros do chão apenas com a força de seu braço, como se ela não fosse nada.
pôs as próprias mãos sobre o pulso e os nós dos dedos metálicos de Bucky, tentando se desvencilhar do aperto.
Sentia sua cabeça e olhos latejarem enquanto seu rosto esquentava com sangue se acumulando, sem circular. Tentava puxar ar, chutá-lo, mas nada adiantava.
Sadicamente, naquela posição, um feixe de luz do poste atravessava perfeitamente as frestas entre as copas das árvores, iluminando bem o azul dos olhos do homem que a sufocava.
Pareciam vazios, diferentes. Mais escuros até.
Ou talvez fosse a forma como ela o via que estivesse mudando naquele singular momento.
Ele não exprimia qualquer emoção, agia de forma automática, tal qual uma máquina de matar.
Foi quando percebeu: apesar de fisicamente à sua frente, James estava fora de alcance.
Com um último suspiro, ergueu sua mão esquerda bem frente ao rosto de James. Ele encarou o delicado equipamento com certa confusão, como se tentasse precipitar o que aquilo faria. Mas quando ela apertou o botão roxo com seu polegar, o Soldado invernal presenciou apenas uma luz absurdamente forte o cegar, enquanto um som agudo fez seus ouvidos zumbirem.
Jogou-se de costas no chão, cobrindo os próprios olhos.
Quando os conseguiu abrir de novo, não havia mais ninguém lá além dele e dos corpos de Maria e Howard Stark.
Roboticamente, prosseguiu com sua missão. Levantou-se, caminhou até o porta-malas do carro, abriu-o. Encontrou dentro de uma maleta o que viera buscar: ali estavam as ampolas de vidro contendo um líquido azul.
Em posse do sérum, montou em sua motocicleta e cruzou a estrada noite adentro.

(...)

Parque Alpine, Nova Jersey, 2023

sentiu suas costas e cabeça colidirem com o chão abruptamente. Desesperada e audivelmente, puxou ar para seus pulmões abrindo a boca o mais largo que conseguia.
Seu corpo se encontrava numa luta síncrona entre tossir e tentar recuperar o fôlego. Sua garganta formigava, parecendo tão seca quanto as areias de um deserto.
Tinha escapado por muito pouco. Não estava preparada.
— Não, não, não! — esbravejou, ainda jogada sobre o chão, arrancando pedaços de grama ao cerrar seus punhos. — Inferno!
Um misto de sentimentos consumia seu peito.
Raiva.
Como pôde fazer algo tão estúpido? Como pôde fazer um salto temporal sem pensar num plano? O que ela achou que aconteceria? Ele apareceria e ela o convenceria de que o Soldado Invernal é só um programa da HYDRA e ele voltaria a ser o cara que amava?
Humilhação.
Como pôde fracassar? Como pôde ser tão inútil num combate? Em tantos anos como espiã, nunca lutou de forma tão vergonhosa. Ela havia de fato tentado ou deixara seus sentimentos débeis tomarem conta de seu melhor juízo?
Dor.
Como ele podia estar lá e ao mesmo tempo não estar?
Confusão.
Ela finalmente conhecera o lado que James se esforçava em ocultar. E não sabia como digerir aquilo.
Angústia.
Ele quase a matou... E ela não fez muito para impedir.
se levantou, marchando furiosa até o próprio carro. Toda aquela neblina em seu coração parecia culminar numa explosão de uma raiva ardente.
Ao adentrar o veículo, bateu a porta com tanta força que sentiu tudo balançar.
Pressionou o botão para ligar o rádio, por pura força do hábito, mas com uma brutalidade excessiva.
Bateu a cabeça sobre o volante e gritou sons ininteligíveis que eclodiam de sua garganta, com cada partícula elétrica que lhe restava.
Sem querer, vislumbrou o próprio reflexo no espelho retrovisor. Tentou se recompor o máximo que conseguia, que, no momento, não era sequer perto do suficiente.
Ainda era madrugada. Girou a chave na ignição e fez seu caminho de volta para a cidade, em meio a soluços e com a vista embaçada, tentando fazer algum sentido de tudo que acabara de vivenciar.

(...)

Estacionou frente ao seu prédio. Ao desligar o carro, ficou parada por alguns segundos, olhando para as sombras na rua vazia.
Tudo estava errado. Queria poder se sentir vazia também, mas sentia muito e muitas coisas ao mesmo tempo.
Ele os matou. Indefesos. Bem frente aos seus olhos.
Que tipo de monstro faria aquilo sem demonstrar qualquer arrependimento? Ou, ao menos, uma ínfima e minúscula faísca de humanidade?
Finalmente, desceu do veículo, meio atônita, meio voraz.
Nada. Ele não demonstrou sentir nada. Pensou o conhecer com a palma de sua mão, mas quem encontrara naquela noite era um completo estranho.
Ainda podia sentir a superfície fria e metálica em torno de seu pescoço, comprimindo-o. Estava assustada.
Era terrível vê-lo naquele estado. Aterrorizante pensar em todas as coisas que fez. Todas as coisas que ela sabia que ele tinha feito, mas nunca o tinha visto fazer.
E enfim tudo tomava forma. Não importava o tanto de atrocidades que ela já tivesse visto em missões, ver alguém que se deitava ao seu lado todas as noites cometendo assassinato a sangue frio era muito pior que todas elas.
Adentrou o edifício sob um caminhar pesado e agitado, subiu os degraus sentindo seu peito arder e a respiração acelerar, ficando cada vez mais escassa, difícil, laboriosa.
Ar.
Ela precisava de ar.
Tem ar por toda parte, por que não consegue simplesmente respirar?
Ar!
Inútil em combate, inútil até para algo tão simples quanto encher os pulmões!
Sentia-se comprimida, sufocada, claustrofóbica. Abriu o zíper de seu traje enquanto ainda atravessava o corredor.
Estava tão alterada que mal pôde inserir as chaves na fechadura de casa. Suas mãos tremiam. Xingou o universo no timbre mais baixo que conseguiu, enquanto batia as chaves na porta até acertar.
Finalmente, adentrou.
Fechou a porta atrás de si, tratou de remover as botas e livrar-se da parte superior de seu macacão, como se fosse aliviar a tensão que carregava nos ombros, como se fosse magicamente conseguir respirar melhor assim.
Mas não conseguiu.
Escutava seu coração batendo em seus ouvidos, alto, rápido, violento.
Jogou as chaves no aparador sem o menor cuidado. Com pressa, dirigiu-se até a sala e ligou o maldito toca vinis. Serviu-se de um copo do whisky de James, que ficava ao canto, junto a outras bebidas.
Sentou-se no tapete felpudo, escorando suas costas no sofá.
Fechou os olhos e inspirou, o mais profundo que conseguiu, concentrando-se.
E expirou.
Repetiu o gesto, contando até 5 em sua mente para cada inspiração, depois mais 5 para cada expiração.
A velocidade do mundo parecia começar a voltar ao normal.
Mas sentiu a dor repuxar os músculos em seu pescoço. Franziu o cenho em reflexo. Passou a mão gentilmente pela extensão do maxilar até sua clavícula, findando por tatear o cordão que carregara durante toda a noite e agora parecia asfixiá-la.
Ela o removeu num gesto rápido, como quem se protege de um choque, como se livrasse o pescoço de um nó de forca. Transpassou-o por sua cabeça, mantendo-o em sua mão direita enquanto segurava o copo com a esquerda.
E finalmente seus olhos contornaram de novo as letras do nome dele naquela plaqueta.
Seu corpo todo estremeceu.
James Buchanan Barnes.
Levou o copo à boca e tomou um gole do whisky. Sentiu sua garganta queimar por dentro acompanhando o caminho do líquido, ao mesmo tempo em que seus músculos machucados e pele avermelhada doíam por fora.
Em algum lugar, dentro daqueles olhos vazios, estava James. O seu James, não a arma da Hydra.
Pela primeira vez, sentiu em seus ombros uma parcela do peso que Bucky havia carregado pelos últimos 70 anos.
E percebeu que, apesar de tudo, ainda o adorava. Mesmo quando o Soldado Invernal tinha as mãos ao redor de seu pescoço.

(...)

A campainha soava pelo apartamento pela terceira vez quando finalmente ousara abrir os olhos.
A luz do sol adentrou direto das janelas da sala para suas retinas, forçando as pálpebras a se fecharem com força.
— James, atende à porta — ela murmurou, ainda meio adormecida.
Mas a realidade não era tão gentil à ponto de deixá-la voltar para seus sonhos, onde nada de ruim nunca acontecia.
Assim que proferiu a frase, recobrou a consciência completamente. Não havia mais ninguém ali para atender à porta.
Olhou em volta e se deu conta de que acabara adormecendo ali no chão. Seu corpo inteiro podia sentir as consequências daquilo, principalmente sua coluna.
— Droga — muxoxou.
Encontrou a garrafa de whisky quase vazia na mesa de centro. Seu estômago se revirava tanto quanto sua cabeça. Precisava de uma aspirina.
A campainha soou mais uma vez.
Com a vista ainda meio turva, levantou-se. Quem diabos poderia estar ali num dia como aquele?
Caminhou sorrateira até o olho mágico da porta de entrada.
Reconheceu a silhueta bem definida e o rosto preocupado de Sam Wilson do outro lado.
— Merda, merda, merda! — sussurrou, olhando o próprio reflexo no espelho acima do aparador, à sua direita.
Cabelos desgrenhados, olhos inchados e ainda trajava seu macacão táctico. Bom, quase. As calças ainda estavam no lugar, enquanto a parte superior se pendurava pelo seu quadril, deixando totalmente à mostra sua barriga, sutiã e... Pescoço, com um hematoma roxo avermelhado e gigantesco.
, está aí? — Pôde ouvir Wilson chamando, sua voz abafada pela porta. — Eu trouxe café.
Uniu as sobrancelhas e suspirou, pensando no que fazer.
O apartamento estava todo um caos também. Botas, equipamentos e embalagens de comidas que ela sequer se lembrava de ter pego.
Estalou os lábios. Não havia muito como contornar a situação, a melhor saída seria ser honesta.
Mas não sobre tudo.
— Sam, eu não vou mentir pra você — disse, ainda próxima ao olho mágico. — Eu não estou vestida e acabei de acordar. Você pode me dar mais dois minutos?
Wilson sorriu, expelindo ar pelo nariz e balançando minimamente a cabeça, divertido.
— Claro! Eu espero.
recolheu seus coturnos e as luvas temporais enquanto fazia o caminho de seu quarto quase correndo.
Retirou por completo seu traje, jogando tudo dentro do armário e procurando algo para vestir que pudesse cobrir os ferimentos.
No entanto, a única coisa que encontrou e serviria ao propósito fora uma camisa de gola rolê cinza azulada, que Bucky usara em algumas missões, debaixo de suas jaquetas. E é claro que ele havia arrancado uma das mangas durante a ação.
— Ótimo. — girou os olhos, vestindo depressa. Não podia deixar Wilson esperando para sempre.
Colocou também uma legging qualquer, a primeira que avistou em sua gaveta.
Se dirigiu de novo à entrada, checando sua imagem no espelho uma última vez. Tudo coberto. Perfeito.
Girou as chaves e depois a maçaneta, revelando um Sam Wilson, como sempre, muito bem alinhado, de calça jeans escura, camisa mostarda e jaqueta esportiva cinza. Ele sempre mantinha barba e cabelos bem cortados, e cheirava a colônia masculina amadeirada. Segurava um suporte de papelão com dois cafés em uma das mãos, enquanto apoiava a outra no arco da porta.
Mas, ao finalmente recebê-lo, Sam deu de cara com uma desgrenhada, vestindo um suéter folgado que tinha uma manga só. Sabia muito bem que poderia encontrá-la em situação difícil e se preparou durante todo o caminho até o prédio para confortá-la.
Mas, com aquela imagem, não conseguiu se controlar. Sam Wilson soltou uma risadinha.
arregalou os olhos. Ele mordeu os lábios, se segurando.
— O que foi? — ela perguntou, curvando as sobrancelhas.
Ele respirou fundo antes de responder. Constatou que ela cheirava a álcool, muito álcool.
— Estava só me perguntando qual o clima real: frio ou calor. — Apontou para o braço coberto e depois para o desnudo de .
— Sam! — sorriu, repreendendo-o, com um ar divertido em meio ao seu desterro.
— Desculpe, não pude resistir — falou, enquanto dava espaço para que ele adentrasse o apartamento. — Então, estamos fazendo mais uma declaração fashion?
Estava tudo meio bagunçado, mas era compreensível. A visita não era tão gratuita assim, Wilson queria saber o que ela precisava e, com sorte, convencê-la a sair um pouco para respirar um ar que não fosse impregnado de lembranças com Bucky.
— Você acreditaria se eu dissesse que um guaxinim fez isso? — tentou fazer graça, chutando uma embalagem vazia de salgadinhos para o canto.
— Só se for uma guaxinim bem alta, com uma preferência diferenciada por álcool.
estalou os lábios, chegando à sala e se jogando no sofá, sinalizando para que Sam se sentasse também.
— Eu... — Respirou fundo, massageando suas têmporas com a mão esquerda. — Eu estou tentando, Sam. Deixar a bagunça na minha cabeça ocupar essa casa é a coisa menos destrutiva que eu poderia estar fazendo.
Ela despejou aquilo de uma vez, sem filtros. Não costumava ser assim, não se queixava, era organizada. Os dois sabiam disso.
— Isso foi estranho — corrigiu-se logo. — Podemos fingir que eu não disse nada?
Sam a analisou, rapidamente. Não precisava dizer o quão óbvia era a falta que Bucky fazia a ela, nem esperava que processasse a perda tão cedo. Mas havia algo errado ali, só não sabia o quê.
— Não, não podemos. É importante falar sobre isso, . É por isso que estou aqui — disse gentilmente, encontrando os olhos dela.
Wilson acomodou o suporte de papelão sobre a mesinha de centro, retirando o que dizia “caramel latte” e o oferecendo para a amiga, e o de café puro para si mesmo.
tomou o copo em mãos, soprando dentro do pequeno buraquinho na tampa.
— É o discurso sobre carregar a dor numa carteira de novo? — soltou o ar pelo nariz. — Sabe que já passou essa pra metade dos vingadores, não é? Eu e Nat recitávamos casualmente sempre que dividíamos uma cartela de analgésicos.
— Bom, então eu não vou mais falar! — Sam arregalou os olhos, fingindo estar ofendido.
E, por um momento, eles riram. Riram de verdade, como se o único tempo que importasse fosse aquele ali, sem passados amargos e futuros incertos.
Por um momento singelo, o calor e a doçura do latte de caramelo alcançaram o interior de e a atmosfera da sala de estar. Era bom ter Sam por perto, era bom não estar sozinha.
Mas, aos poucos, a realidade os atingiu. Lembraram-se de Natasha, outra perda com a qual mal puderam lidar.
Após a batalha final com Thanos, se agarrou com tudo na única coisa que podia, a melhor coisa que já fora sua: James.
E todas as memórias e as alegrias que ele semeara se tornaram flores em seus pulmões, a impedindo de respirar.
pôs a mão sobre a gola do suéter, num reflexo. Por fora sentia a maciez da malha, ao acariciá-la ainda podia despertar as notas do perfume que ele usava, amadeirado e marcante com um fundo cheio de frescor de rosas e bergamota; por detrás do tecido, seu hematoma, a dor sensível ao toque.
Afastou a mão ao perceber que havia se perdido no tempo de novo. Ela se dissociava com facilidade, sem aceitar o presente acabava por se submergir em memórias.
— ... Como ele era? — sussurrou, com medo de soltar aquilo em voz alta para o universo.
— Como quem era? — Sam a encarou, no fundo sabendo do que se tratava, mas ensaiando como abordaria esse assunto.
— Você sabe... o outro dele. — não conseguia sequer dizer o codinome do adversário sombrio com quem lidara na última noite. Olhava para o copo em sua mão, a fim de evitar contato visual.
Sam coçou a nuca, respirando fundo e roteirizando o que dizer a seguir.
— Não era ele, . Você sabe disso.
— Não, eu não sei. Eu nunca o vi em ação de verdade. — Fitava Wilson, obstinada. — Quando o conheci, ele já se lembrava e eu ainda não estava na equipe quando toda aquela merda com o Zemo aconteceu. Eu pensava que o conhecia, Sam, mas eu nunca o conheci inteiramente — começou a falar mais rápido e espiralar, quando Sam a interrompeu.
— Isso porque ele morria de medo que você o visse como Soldado Invernal.
franziu as sobrancelhas, aquilo não fazia sentido.
— Do que está falando?
— Bucky. Ele não queria que você soubesse detalhes disso. Caramba, , ele não tinha medo de nada, mas dava pra ver o pavor nos olhos dele quando o assunto vinha à tona.
— Mas por que, Sam? Eu sou a única que deveria conhecer ele por completo e sou a única que não teve a chance.
— Porque ele te amava mais do que qualquer outra coisa — falou, simplesmente.
— Mas eu prometi que ficaria com ele, porra! Eu amo cada parte dele e nada jamais mudaria isso, por que ele não se abria comigo?! — A voz de se embargava ao mesmo ponto em que seus olhos se enchiam de novo de lágrimas e seu peito de questionamentos.
— Ele não queria arriscar isso. — Sam pôs a mão no ombro da amiga, seu polegar a acariciando gentilmente. — Ele pediu pra gente não falar em detalhes sobre a queda da SHIELD ou a situação com Zemo com você. Não se abria muito comigo também, mas pediu ao Steve, que me repassou o recado.
— Ele não me deu a chance de entender, de conhecer ele por inteiro — falava, inconformada. — E agora tudo o que me resta é tentar pintar essa imagem dele com as migalhas confusas que mal recebi em todos esses anos.
— Não é isso, .
— O que é então? Em algum lugar lá dentro, era ele sim! E ele não me deu a chance de lidar com isso, de ajudar, de fazer algo!
— Não tinha o que fazer! — Sam aumentou o tom, apenas para abafar a confusão de , que o encarou, em choque. — Não tinha o que fazer, . Você acha que não teríamos ajudado se soubéssemos como? Se tivéssemos um contra-programa, ele não teria sido congelado de volta em Wakanda. Ninguém tinha uma resposta e ele era refém da própria mente.
— Eu só... queria ter feito algo. Acho que estou tentando preencher esse vazio com memórias novas sobre ele. Mas não é justo pedir isso a você, me desculpe — confessou, mesmo que parte daquilo fosse uma grande mentira.
Ela precisava saber quem ele era porque, bem, precisava fazer algum sentido do que viu na noite anterior.
Sam respirou fundo, pensando se deveria seguir a vontade de Bucky. Mas ela precisava daquilo.
— Não o conheci muito antes de você — começou, fazendo com que o encarasse atenta no mesmo instante. — Foi quando descobrimos sobre o Projeto Insight. Estava com Steve e Natasha, levávamos o Sitwell junto porque tínhamos um plano para derrubar o algoritmo. Foi quando o vi pela primeira vez. Não por inteiro, na verdade. — Sam sorriu. — Lembro de escutar o vidro se quebrando e ver Sitwell voando para longe pela janela. Depois o sujeito simplesmente arrancou o volante das minhas mãos. Dá pra acreditar nisso?
deu uma leve risada. Seus olhos se enchiam de lágrimas saudosas, mas era bom ouvir outra pessoa falando sobre James, e a forma como Sam falava era cheia de humor, mesmo de uma situação tão arriscada.
— Não me admira que vocês tenham tido problemas pra se acertar — ela disse, um sorriso no canto dos lábios.
— Problemas? Eu odiava o cara! — Sam riu. — Foi a pior primeira impressão do mundo! Bucky destruiu o carro, em poucos segundos estávamos todos deslizando pelo asfalto sobre a porta arrancada! Os três marmanjos abraçadinhos sobre uma porta.
Eles riam, verdadeiramente. Era como se Bucky ainda estivesse ali, através das memórias de Sam.
— Sinto falta de vocês — confessou baixinho, enquanto se esticava para colocar seu copo de volta na mesinha, mas Sam a ouviu alto e claro.
— Também sinto, todos os dias — Wilson disse, saudoso, soltando a tensão de seus ombros, livrando-se também de seu copo de café quase completamente cheio.
Não se passava um dia em que ele não pensasse no grupo, por algum tempo um ao outro era tudo o que tinham. Mas a vida tem formas estranhas de mudar as coisas. Steve, Natasha, Bucky, Visão. Do antigo time, só restavam agora , Wanda e, bom, ele mesmo. Sendo que de Maximoff não se tinha mais nem notícias.
Certo que Wilson ainda tinha sua irmã, sobrinhos e alguns amigos. Mas, de muitas formas, não era a única que se sentia sozinha ali. Ainda não teve tempo também para digerir o rumo que tudo havia tomado.
— Eu o vi na televisão... — respirou fundo e tentou formular algo, como se captasse os pensamentos do amigo. — Walker, vangloriando-se por ter derrotado os apátridas, exibindo o escudo como se fosse dele.
E rapidamente a tensão voltou para os ombros de Sam.
... — tentou a repreender, não queria falar sobre isso.
— Por que deixou ele tomar os créditos por tudo, Sam? — questionou, meio indignada. Não gostava nada daquele sujeito se denominando o novo capitão américa. — Foi você quem os deteve...
! — Sam a interrompeu, novamente implorando para não seguirem aquele assunto.
— Foi para você que Steve deu o escudo. Por que deixa aquele imbecil desfilar por aí com o título?
— É mais complicado que isso. Como você acha que seria se fosse você? Hein? — Estava exausto daquele tópico, majoritariamente porque ele mesmo se questionava a respeito toda vez que dava o azar de encontrar com alguma propaganda de John Walker, o Novo Capitão América, pelas ruas.
entendia o que ele queria dizer. A América não estaria pronta para aceitar uma mulher assumindo o manto, assim como não estava para aceitar um homem negro. Sabia do peso que aquele símbolo carregaria para qualquer um que seguisse Steve. Mas não suportava ter de engolir aquilo, simplesmente.
— Seria uma merda, sinceramente. — Ela o encarou, séria. — Mas não fui eu quem ele escolheu, Sam.
— E o que quer que eu faça? Tire o escudo dele a força? E depois?
— Eu não sei — confessou. — Mas se algum dia decidir dar uns bons socos naquele sujeitinho intragável, conte comigo. — Permitiu-se sorrir, mas Sam não acompanhou mais o tom bem-humorado.
Aquela ainda era uma história muito mal resolvida, mas tentava fazer a própria paz com a decisão que o governo tomou entregando o manto a outro — um que sequer chegou a conhecer Steve. Isso envolvia questões muito maiores que ele ou Rogers. A bandeira era pesada demais para se balançar, e o escudo infelizmente representava mais que só o legado de seu melhor amigo.
— James ficou puto, sabia? — prosseguiu, com o silêncio do amigo. — Ele acompanhou toda a questão dos Apátridas pelos jornais. Ficou puto com o governo, com Walker... com você. Por deixar ele assumir tudo sem fazer nada. Era tudo sobre o que ele falava, eu nunca tinha o visto tão incomodado com algo. Ele nunca me disse com todas as letras o motivo, mas não é difícil imaginar. Aquele escudo é tudo o que sobrou do Steve, do tempo deles, do motivo pelo qual ele deu a vida.
— É claro que ele não entenderia. — Balançou a cabeça minimamente, sem fitar a garota. — Mas, sinceramente, pensei que você iria.
— Eu entendo. Mas não gosto, nem um pouco.
— Também não gosto, mas as coisas são como são.
se surpreendia com a postura de Wilson. Ele sempre fora a pedra firme que segurava o astral de todos, incluindo até, por vezes, de Steve Rogers.
Metade do universo foi salva, mas aqueles que lutaram por ela jamais seriam os mesmos. Cada um tentou lidar do próprio jeito, da melhor forma que podia.
— Mas não precisam ser.
Wilson conseguiu captar aquela energia caótica surgindo de novo no timbre dela, já sabia bem do que se tratava.
— Já falamos sobre isso, .
— Não falamos, não. Não de verdade — insistiu, virando-se para o encarar com firmeza e sua atenção total.
— Está bem. Digamos que você volte no tempo, o que vai fazer? Já pensou nisso? Ele nunca poderia ter uma vida normal. — Olhou-a bem dentro dos olhos, tentando trazer alguma razão para ela. — Diga, apagar seu sobrenome, documentos e qualquer histórico da sua infância curou todos os seus traumas, Eclipse?
Sentiu seu peito gelar por um segundo. Ouvir de novo, depois de anos, seu antigo codinome fez o coração de perder uma batida. Mas aquilo não era sobre ela. Não era hora de pensar em suas cicatrizes e jornada dolorosa. Então ela apenas ignorou.
— Vou resgatá-lo da HYDRA antes da queda da SHIELD. Ele só precisava de mais tempo para se tratar, eu sei que ele iria conseguir eventualmente. — Seus olhos se enchiam de lágrimas, que começavam a rolar quentes pela pele de seu rosto, mas sua feição e voz não se afetavam nem por um microssegundo. Estava certa daquilo.
— Tempo era tudo o que ele não precisava, — Sam disse assertivo. — Ele e Steve sempre estiveram deslocados aqui.
Sam conhecia o peso daquela dor que ela carregava, sabia bem que a negação era um dos estágios do luto, talvez o mais complicado de se superar. Perder alguém, ainda mais da forma que Bucky escolhera partir, era inexplicavelmente excruciante e impossível de se compreender. Mas ela queria ir contra o único princípio inabalável do universo: a morte. Aquilo era demais para se conceber, precisava fazê-la voltar aos eixos e perceber a gravidade do que desejava, mesmo que para isso precisasse ser duro com uma pessoa em crise.
— E você acha que eu não estou? Estou há menos de uma semana num tempo que não pertenço. Não sem ele. — Finalmente aumentava sua voz, as emoções começando a tomar conta de seu melhor juízo.
— É muito arriscado, não se pode reverter a morte, você precisa deixar essa ideia para trás!
O coração da garota batia rápido dentro do peito, tanto que podia senti-lo pulsar em sua cabeça. Ela já não conseguia filtrar as coisas que faziam alarde em sua mente antes de verbalizá-las.
— Se Steve pôde fazer pela Carter, por que eu não posso pelo Bucky? — esbravejou, levantando-se do sofá no ímpeto e encarando Wilson com os olhos em chamas cheios de uma irresignação ardente.
— Não vá por esse caminho! — Sam se levantou também, insistentemente tentando argumentar com ela. — Você está se perdendo em coisas que não cabem mais discutir. É diferente e você sabe!
— Ah é? E por quê? — Continuava a falar alto, as lágrimas correndo rápidas e suas mãos tremendo enquanto gesticulava. — Porque Steve mereceu? Porque ele lutou contra Thanos? Porque na vida inteira ele só conheceu a guerra? Adivinha só, EU TAMBÉM. Então me diz por que é que ele pode e eu não, Wilson?
— Escute a si mesma, ! Os Vingadores fizeram um salto no espaço-tempo para salvar metade do universo e você quer arriscar isso por uma única pessoa? — Sam aumentou a voz para sobrepor a dela.
pausou por um momento, sugando o ar com uma inspiração profunda e soluçada pelo choro.
— Você acha que eu me importo com o resto do universo? Ele é o meu mundo! — gritou a plenos pulmões.
Já não ligava para mais nada. Não ligava para o que Sam iria sentir ou se aprovava o que fazia.
Wilson apenas a encarou, se encolhendo um pouco. Não sabia mais o que dizer. Não sabia como ajudá-la ou tirar aquela ideia de sua mente. Mas o equipamento foi destruído, ela não poderia de qualquer forma concluir uma viagem no tempo. Estava se agarrando a um sonho febril forjado na escuridão do luto.
— Quando você estiver pronta, eu estarei aqui — falou firme, mas calmo, dirigindo-se para a porta. Decidiu que o melhor a fazer agora era dar algum espaço para ela.
se virou, erguendo os braços e pondo as mãos sobre a testa e cabelos, imprimindo um pouco de força sobre a própria cabeça.
Tudo parecia girar.
— AAARGH! — Canalizou toda a raiva, tristeza e dor, deixando que um grito se chamasse à vida através de sua garganta.
Se aquela conversa servira de algo, fora para motivá-la ainda mais em sua missão. Nada mais importava, afinal, ela não tinha nada a perder.
No impulso, pegou o copo de café que Wilson lhe trouxera e o arremessou na parede, o líquido se espalhando em gotas por todo o lugar, incluindo seu próprio rosto e braços.
Moveu o pescoço pela sala, checando até onde as manchas se espalharam.
Seus olhos encontraram, sem querer, a forma retangular daquela carta ao lado do toca-discos, completamente intacta, limpa, imaculada. Não tinha coragem sequer de tocá-la.
Mas se tudo desse certo, ela jamais precisaria.

(...)

16 de Dezembro, 1991

— Relatório da missão. — O homem grisalho fardado de pé encarava o soldado invernal sob a pouca luz do ambiente sem janelas, falando russo.
Ele se encontrava sentado numa cadeira de contenção, seus braços e pernas presos por barras de ferro. Já o haviam despido de seu traje de combate.
Ao lado dele estavam mais dois homens de uniforme militar e boinas vermelhas, eram de menor patente, garantindo a segurança do mais velho. Um deles segurava uma prancheta, anotava informações, a arma no coldre na cintura. O outro, ativamente com uma arma a postos, o dedo no gatilho, atento a cada movimentação do soldado, mesmo que estivesse preso.
Não entendia para quê tudo aquilo, pareciam temê-lo, mesmo que não tivessem motivo para isso.
Se quisesse feri-los, poderia facilmente arrancar aquela contenção já oxidada com seu braço de vibranium, acertar dois deles com a própria cadeira, esmagar a cabeça do último. Mas por que faria isso? Tudo o que ele conhecia era aquela organização. Não se questionava, a obediência era recompensada.
Havia um propósito para ele, e ele simplesmente seguia.
— Relatório da missão! — o general repetiu a ordem, encarando-o, as rugas de sua testa se intensificando.
— Alvos eliminados sem incidentes. A morte será declarada como um acidente automobilístico — o homem com a prancheta tomou a frente, respondendo.
O soldado invernal não era de falar muito, não era exigido ou aceito que falasse além de seus relatórios. Mas a missão de hoje o surpreendeu com algo inesperado. Algo que o deixou confuso.
— Havia uma mulher. — Sua voz rouca se fez ouvir pela cela.
O general encarou o soldado invernal com ferocidade.
— Está falando de Maria Stark, senhor. — O subordinado da prancheta novamente tomou a frente, uma gota de suor escorrendo de sua têmpora, prevendo a reação negativa do superior se qualquer dúvida a respeito do sucesso da missão fosse despertada.
O Soldado encarava o general de volta, os olhos vazios. Ele não conseguia o intimidar, por mais que tentasse, e aquilo abismava o velho russo.
— Ela me chamou de James. — Prosseguiu, esperando que o homem à sua frente tivesse alguma reação, desse alguma pista do que aquilo significava.
Mas simplesmente o viu virar o pescoço no mesmo instante para o subordinado. Seus ombros meio tensos. Parecia também querer algum esclarecimento.
— O velho Stark deve ter mostrado fotos, contado sobre a Guerra. — O homem da prancheta concluiu. Pareceu convencer.
— Deve estar certo. — Voltou a encarar o Soldado Invernal, como um bicho de zoológico irascível, curvando-se para pôr o rosto bem perto dele, observando qualquer micro-expressão. — Deixou algum remanescente na cena antes de retornar? — perguntou.
— Não — respondeu sem hesitar. Não entendia o que havia ocorrido, mas, de alguma forma, aquela mulher se desmaterializou na sua frente. Não estava mais no local. Fora eliminada.
— Excelente. — O general se reergueu, dando as costas e seguindo para a porta da cela. — Reiniciem-no de qualquer forma. Apenas Implantação Mental, não podemos colocá-lo em estase ainda.
E assim que saiu, os dois subordinados se encaminharam até James Buchanan Barnes, que não sabia nem o próprio nome, o recostaram na cadeira empurrando seus ombros. Barnes abriu a boca como um animal treinado, para que colocassem a proteção em seus dentes — o que era relativamente novo.
Ele sentia tanta dor que comprimia o maxilar com força e acabou danificando os próprios dentes, a HYDRA teve de substituí-los para garantir que pudesse se defender também mordendo adversários em combate caso fosse preciso. Precisavam manter seu brinquedo intacto e lustrado, em pleno funcionamento.
Com o protetor já na boca, os homens desceram a máquina infernal e a encaixaram na cabeça de Barnes.
Qualquer lembrança que não fosse útil à HYDRA, como a da mulher de preto que encontrou na mata, logo fora apagada.
(...)


Capítulo 4 - The Man

se sentava à janela, observando os pedestres pela rua tão longínqua, tão pequenos seguindo com suas vidas, como se tivessem alguma razão para tal. Inabaláveis com suas histórias individuais que, muitas vezes, passavam como pontos insignificantes de uma pintura maior para pessoas como os vingadores, que precisavam proteger o mundo por inteiro.
Causalidades.
Pontuais.
O que ela queria era ser como eles, parte deles. E deu tudo de si na tentativa, vestiu suas melhores cores para o quadro que pintou para James. Mas, de alguma forma, em alguma parte do caminho, algo deu errado. Não foi suficiente.
Ela implorava por notas de rodapé sobre a vida dele; ela sentou e esperou para ouvir, mas nunca obteve o suficiente para arrancar a adaga do trauma de seu peito e ajudá-lo a se curar.
Então agora ali estava, com tanto e ao mesmo tempo tão pouco em sua mente, observando a janela como uma criança aguardando um milagre.
Queria encontrar o ponto certeiro onde tudo se tornou irreversível para James. Queria poder desfazer o nó na garganta que o impedia de respirar direito. Queria, mais que qualquer coisa, começar de novo, reviver todo o tempo que teve ao seu lado. Voltar para o dia em que se conheceram.

(...)

— Desculpe! — ela falou, ao encostar bruscamente nele, pronta para qualquer que fosse a reação violenta que o super soldado teria.
Mas ele se virou, encarando-a bem dentro dos olhos e sorriu.
— Não tem problema — disse, gentil.
Tarde demais. já estava envolvida.
Eles mantiveram contato visual por um tempo maior do que o convencional entre dois estranhos, tentava entender o que aquelas pupilas azuis escondiam. E quando percebeu que ele se afastaria, virando seu corpo e dando um passo para longe, precisou agir rápido.
— Fala meu idioma? — Ela sorriu, forçando-o a dá-la atenção de novo.
Ele hesitou por um singelo momento. Não queria delatar sua identidade.
Mas, no fim das contas, ainda era um homem bem-educado.
— É, parece que sim. — Deu de ombros, oferecendo um sorriso simpático, sem mostrar os dentes, colocando as mãos dentro dos bolsos da jaqueta marrom surrada que trajava.
— Ai, graças a Deus! — fingiu um misto de empolgação e alívio. — Estou aqui há semanas e não consigo me comunicar direito com uma alma viva sequer!
Bucky a encarou, tentando analisá-la. Não como um soldado analisando uma ameaça, mas como um homem analisando uma mulher que achou atraente.
Alargou seu sorriso por um pensamento ligeiro que o ocorreu. Era loucura se sentir tão à vontade ao falar com uma moça depois de décadas silenciosas?
— Sei bem como é. — E, desta vez, seu sorriso chegou a mostrar os dentes. — Mas você vai ficar bem... — Sugestionou para que ela se apresentasse.
! — Ela lhe estendeu a mão. — E você é?
Ele encarou a mão dela por um microssegundo, apertando-a em seguida. Por sorte, ela havia lhe oferecido a mão direita, possibilitando que ele a cumprimentasse com sua mão humana e sentisse, mesmo que por debaixo do couro grosso da luva, a delicadeza do toque.
Não podia evitar um sentimento íntimo de empolgação. Não conseguia se lembrar quando fora a última vez que alguém verdadeiramente tinha se interessado em trocar algumas palavras com ele. Mesmo se escondendo no meio urbano, ao redor de tanta gente, ainda se sentia sozinho e não sabia como iniciar uma conversa.
E era por isso que gostava de vir à feira, além de conseguir trabalhos eventuais, podia estar perto de pessoas, bem melhor que ficar sozinho com sua mente. Ansiava por contato muito mais do que gostaria de admitir para si mesmo.
Pensou um pouco antes de respondê-la. Como deveria se apresentar?
“Bucky”?
Ele queria um novo começo, desapegado de seu passado. Algo que ninguém em sua vida antiga usasse, mas ainda sim pudesse lembrá-lo de quem era e dá-lo espaço para descobrir quem se tornaria agora.
— James — falou, satisfeito, e pôde observar um sorriso se formar nos lábios dela.
— Sem sobrenomes? — questionou.
— Só... James. — Finalmente soltaram as mãos. Ele encarou o chão por um instante, pesaroso. — E você?
expeliu um pouco de ar numa risadinha rápida. Ele não pôde evitar sorrir junto.
— Se quer saber mais de mim, vai ter que fazer por merecer — disse, provocativa e divertida.
Naquele momento, apesar de ter um propósito específico para interagir, ela expunha sua verdadeira personalidade, sequer cogitou dar um nome falso. Estava se arriscando mais do que deveria.
Mas estava funcionando, James parecia intrigado com ela.
— Ah é? — Sorriu de canto, apoiando seu peso em uma perna e tendo a outra mais livre. Estava à vontade, ela podia ler sua linguagem corporal com facilidade.
— Você pode começar me levando até a linha do trem. Para ser honesta, estou meio perdida. Preciso ir até a Biserica Curtea? — falou num sotaque carregado, que ele achou meio que engraçadinho.
James a encarou de cima a baixo, ela era jovem, provavelmente na faixa dos vinte e poucos anos, mas parecia saber agir como adulta muito mais do que ele.
Ele inspirou fundo, estalou os lábios e disse:
— Não, sinto muito.
Simples assim.
Então já foi virando seus calcanhares, dando suas costas e se afastando, deixando embasbacada.
Mas ela morreria antes de deixar que essa auto-ordenada missão fosse sua primeira falha.
Correu ao encalço do homem.
— Como assim “não”? — perguntou, falando mais alto e caminhando apressada ao lado dele.
— Não posso, moça — respondeu, reconhecendo sua presença apenas pela lateral de seu campo visual.
— Vai mesmo deixar uma pobre mulher sozinha num país desconhecido? — Tentou dramatizar, como uma última carta no jogo, mas não surtiu muito efeito. — Posso te pagar pelo serviço de guia. — Ela parou de caminhar, observando-o seguir. — ... Por favor?
E, por algum motivo, James se viu parando. Ainda de costas para ela, baixou a cabeça, fechou os dois olhos com força e expirou, culpando-se pelo que estava prestes a fazer.
Não se sentia pronto para se aproximar de ninguém. Não confiava em si mesmo o suficiente.
Mas não deixaria aquela garota sozinha perdida por aí, simplesmente não poderia, não era quem ele era. Ou, ao menos, quem ele tentava voltar a ser.
Deu meia volta, se aproximando rapidamente de uma , cujo sorriso se abria timidamente quando o viu mudar de ideia.
— Tudo bem — James disse, perigosamente perto dela, o que a colocou em alerta, mas logo percebeu que só o fizera para que ela o ouvisse, em meio à alguns feirantes com megafones anunciando seus produtos. — Mas não posso demorar.
E por ser fatalista, Bucky sorriu para a onda que poderia o afogar: se fazer conhecido por alguém.

(...)

mergulhava em memórias observando o ar cinzento da janela. Vislumbrava outros prédios, cobertos de outras famílias, outras palavras, armários, enfermidades, heroísmos simplistas.
Em suas mãos, o colar de identificação dele.
Ela se equilibrava na lama fúnebre, metia os pés por abismos. Naquele dia nublado, só sabia que existia pelo pulsar dos relógios, demarcando o passar da tarde.
E se fechasse os olhos, podia quase o ouvir abrindo a porta, entrando com um guarda-chuva escorrendo, os cabelos molhados, o rosto com traços tão bem desenhados, as bochechas coradas pelo vento frio.
“Cheguei, Boneca!” ele sibilaria, mas daquela porta esquecida pela eternidade, ninguém mais a chamaria.
Então ela seguia perto da janela, exposta à surdez do dia.

(...)

James caminhou ao lado de por alguns quarteirões.
Sua mente, há pouco tempo tão vazia, se enchia de cobranças. Lembrava-se de quase tudo, mas não queria dizer que sabia como se portar ainda. Não, depois de tantos anos como um escravo, objeto obediente e silencioso, não sabia muito o que fazer, o que dizer.
Ainda estava se readaptando ao mundo, ao presente. Estava redescobrindo o que era ser uma pessoa.
Gostava de ser útil, e ao se ocupar, mantinha os fantasmas longe. Gostava de sentir o vento bater em seu rosto, gostava de doces coloridos e bolinhos confeitados, mas quase nunca tinha dinheiro para comprá-los, então se contentava com aqueles industrializados que vinham em pacotinhos unitários. Gostava de andar de trem para pensar — ou não pensar —, por alguns minutos, enquanto a imagem borrada da paisagem pairava por suas pupilas.
Mas já havia decidido que não a acompanharia. Deixaria a moça na estação, indicaria qual trem deveria pegar e iria embora. Simples, fácil.
Não podia se envolver mais do que isso. Não era seguro, nem para ela, nem para ele.
Contudo, uma minúscula e inadequada faísca de empolgação parecia se ascender dentro do peito dele. Era estranho que alguém lhe pedisse ajuda. Era bom.
Estava acostumado com os outros o temendo, ele mesmo sentia medo. Mas ela não sentiu, o olhou como alguém comum.
E algo tão corriqueiro como indicar uma direção acabou se tornando precioso no dia de Bucky... James.
Queria conversar. Céus, ele queria muito. Mas as décadas de lavagem cerebral e adestramento lhe tiraram a capacidade de inventar conversa fiada, de falar sem que lhe fosse ordenado. Então ele caminhava em silêncio, esperando intimamente que ela dissesse algo, que lhe desse permissão para falar também.
Mas estava mais interessada em observá-lo de perto, preparando-se e estudando seu alvo — aquele alvo que, a cada segundo, parecia mais e mais improvável de ser o homem em suas fichas.
— E então, qual é a das luvas? — perguntou, despretensiosamente.
— Problema de circulação. — Deu aquela desculpa que havia ensaiado milhares de vezes, com medo que alguém um dia perguntasse.
Ela foi a primeira.
— Hum — muxoxou, sem abrir a boca.
E Bucky se culpou por não dar mais brecha para o assunto fluir, mas estava... enferrujado nas interações sociais.
Quando chegaram à calçada da Estação, Barnes parou, bruscamente.
— É aqui — disse, colocando de novo as mãos dentro dos bolsos. — Você precisa pegar um trem para o centro. Não é muito difícil, é só observar os outros. Quando vir alguém com cara de turista, você o segue. É onde eles sempre vão.
franziu o cenho, teve vontade rir.
— Ou eu posso simplesmente perguntar. — Virou o pescoço para encará-lo.
James ficou meio desconfortável. Ele observava em vez de perguntar. Precisava aprender a se misturar de novo.
— Ou isso. — Pigarreou. — Bom, agora vou embora. Bom passeio.
Mais uma vez, ele tentou a deixar. Mas não estava pronta para deixá-lo partir.
— James! — chamou-o.
Por algum motivo, ouvir alguém falando seu nome, seu nome de batismo, o tocou onde os ossos encontram o espírito.
Era bom.
Como se ele fosse só um cara comum. James podia ser um cara comum?
Pela segunda vez, ele desistiu de ir e voltou para .
Não disse nada, só se virou e esperou.
— Você quer tomar um café? — perguntou, receosa.
— Eu não... – começou, mas ela logo o interrompeu.
— Eu meio que não conheço ninguém aqui, e você parece gentil... E fala meu idioma. — De alguma forma, aquilo não era totalmente falso. — ... Vamos?
Bucky não podia. Não planejou se aproximar de ninguém tão cedo. Não era a hora certa. Martelava em sua cabeça todos os motivos e as razões pelas quais devia ir embora antes que se tornassem algo além de estranhos. Contudo, também precisava urgente e desesperadamente de uma companhia, por meia hora que fosse.
Então ele desistiu de escutar a razão. E, às vezes, desistir é a coisa mais corajosa a se fazer.
Sorriu olhando para o chão, discretamente, retornando à vista para ela em seguida.
— Conheço um lugar aqui perto. O café é horrível, mas é barato.
sorriu.
— Perfeito.

(...)

limpou o rosto e se levantou, precisava colocar aqueles pensamentos para fora, precisava sair de dentro de sua própria cabeça.
Caminhou até seu quarto. O edredom estava amassado e jogado pelo colchão, tudo o que ela queria fazer era deitar ali o dia todo. O travesseiro ainda tinha o cheiro de James, o armário lotado de suas roupas, a lâmina de barbear dele na pia da suíte, a escova de dentes ao lado da dela, o apartamento inteiro ainda o mantinha tão vivo, tão presente, tudo contava anedotas incríveis sobre o homem perfeitamente imperfeito que ela amava... mas, no momento, aquilo a intoxicava.
Quando pensava nele, a imagem do Soldado Invernal retomava à superfície daquele mar azul escuro sem fim em que ela se afogava.
James jamais a machucaria. Mas havia um hematoma em seu pescoço dizendo o contrário.
Era difícil tolerar tudo aquilo, ainda estava se decidindo no que acreditar.
Removeu suas roupas e as jogou ao chão, sem se importar. Tudo já estava um caos mesmo.
Pegou aquela calça pantalona preta confortável, a que sempre recorre quando o mundo é apertado demais para ela, combinou-a com uma blusa cropped de gola alta de mesma cor, fechou a porta do guarda-roupas.
Encontrou consigo mesma no espelho. Seu nariz e olhos vermelhos. Ela gostava tanto de se maquiar que até para as maiores batalhas sempre tirava 5 minutos para passar um delineador. Mas aquela imagem refletida não importava mais.
Calçou seu par de all-stars surrados, sem se incomodar de colocar meias. Caminhou apressada pelo apartamento, pegando as chaves do carro e saindo.
Aquelas quatro paredes já pareciam estar se fechando sobre ela.

(...)

ouvia uma música qualquer enquanto terminava de passar seu rímel frente ao espelho. Olhou para o relógio despertador, na mesinha ao lado de sua cama. Não podia se atrasar.
Incrível como aquele minúsculo apartamento deixava de se parecer com um abrigo e se parecia cada vez mais com uma casa. Já estava em Bucareste há quase cinco meses.
Vestiu uma roupa básica, calças jeans, coturnos, uma camiseta qualquer.
Na bancada da cozinha americana, as pastas da SHIELD e SSR abertas, os documentos espalhados.
E quanto mais conhecia de James Buchanan Barnes, menos aquilo fazia sentido.
Os documentos especulavam assassinatos e crimes tão perfeitos e cruéis que sempre acabavam sendo dados como acidentes. O Soldado Invernal era uma lenda e nunca houve muitas provas de sua existência, era tudo tão... Estranho.
Sabia o que ele tinha feito no Triskelion, sabia que ele era o responsável por todas aquelas histórias de fantasmas, coletadas por décadas em seus arquivos. Mas nada ali dizia como um sargento americano simplesmente trocou de lado e passou a matar pela HYDRA.
E em algum momento daqueles quatro meses, desde que ignorara suas ordens e se aproximou, ele se parecia menos com o inimigo e mais como um homem comum, gentil, que ria quando ela falava alguma coisa idiota, mesmo que não tivesse assim tanta graça. Um homem que gostava de se sentir útil, de ter sempre algo no que trabalhar. Um homem que sempre pedia café preto, sem açúcar, mas todas as tardes, acabava provando um pedaço dos doces que ela comprava e o deixava dar uma mordida.
Após recolher todos os papéis e guardá-los em seu esconderijo debaixo dos tacos do piso, se olhou uma última vez no espelho antes de sair. Não devia se importar em como se parecia, mas, por alguma razão, queria estar bonita.
Ela sorriu sem querer, tentando repreender os pensamentos humanos que lhe ocorriam. Ultimamente estava precisando se lembrar com mais frequência de que ele era uma missão.
Reportava à SHIELD como se ainda o observasse ao longe, pronta para abatê-lo, sem complicações, caso o comando fosse dado.
Saiu de casa e se encaminhou até a estação, onde se encontravam todo fim de tarde.
Um sorriso idiótico surgiu sem que ela pudesse controlar ou entender, assim que seus olhos encontraram a silhueta daquele homem. Já não era tão pálido, seus cabelos já não eram tão escuros quanto antes, quando o conheceu; tendo passado seus dias trabalhando na feira, o sol lhe havia beijado a pele e os cabelos, resplandecendo-os em tons mais dourados.
Ele usava aquela mesma camisa esverdeada de sempre, não tinha muitas roupas. Estava parado, recostado num poste na calçada. Esperava por ela.
E ela caminhou até James, sem que ele percebesse.
— Buna ziua, domnule! — soltou aquele genérico cumprimento em romeno, aproximando-se do ouvido dele, o surpreendendo.
Ele se virou prontamente, um sorriso largo nos lábios.
! — James a abraçou, com uma risada leve.
— Treinei a pronúncia como me ensinou, o que achou?
Ele não podia admitir o quanto aquilo o fazia bem. Sentir o calor do corpo dela contra o seu, após tantos anos de privação social e afetiva. Não podia admitir que esperava o dia inteiro por aqueles dois segundos, quando podia simplesmente ser um cara comum, com ela nos braços.
— Foi ótimo, estou orgulhoso! — respondeu, soltando-a, mas mantendo o sorriso.
A amizade com tinha sido primordial para a rotina e a melhora de Bucky, mas ainda não teve coragem de lhe contar a verdade. Ela o fazia sentir como alguém que merecia uma segunda chance, alguém que podia ter uma vida com algumas pequenas alegrias.
Sua memória já estava bastante restaurada, para o bem ou para o mau, ele se lembrava de muito do que viveu antes e depois da Guerra.
Conforme as lembranças iam voltando, Bucky preenchia, em segredo, cadernos com desenhos, recortes de jornais, passagens escritas, e, bem, algumas delas não tinham nada a ver com a HYDRA. Algumas delas eram recentes, sobre passear por Bucareste com , comer pipoca em bancos de praça, conversar sobre coisas aleatórias, ouvir sempre as mesmas músicas no walk-man que ela comprou num bazar por poucos leus romenos, no único cd arranhado que veio junto.
Não estar completamente sozinho era mais do que bom. A amizade deles era saudável, simples. De alguma forma, ter com quem conviver ajudava James a entender e formular quem ele era.
A relação era tão boa que ele cogitava, por vezes e em rápidos pensamentos, ser mais do que só amizade. Mas logo espantava tais ideias, era cedo demais, ainda tinha muito a trabalhar em si mesmo.
Conversando, eles seguiram até a igreja, a mesma onde se escondia no início, observando as ruas em busca dele.
A missa havia começado há pouco, não haveria ninguém lá fora. Aproveitaram a oportunidade para subir na torre sineira. E depois de subirem muitos degraus, finalmente encontraram a melhor vista para o Sol se pondo no horizonte. Sentaram-se ao chão, admirando o céu através dos balaústres, um ao lado do outro.
retirou um mini-pacote de amendoins salgados da bolsa de lado que carregava. Abriu-o, pegando alguns e oferecendo à James, que retirou apenas sua luva direita e começou a comer junto.
— Como foi a aula hoje? — perguntou. disse a ele que era uma estudante de intercâmbio, na faculdade de artes.
E não era mentira dizer que parte dela desejava ser uma universitária, cursando história da arte. Sempre acabava se perguntando como seria se aquela vida que inventou como disfarce fosse real. Mas era só uma narrativa bem elaborada, eles iam juntos a pontos turísticos da cidade no intuito dela conhecer mais sobre a arquitetura romena. Era uma forma fácil de tê-lo por perto, uma desculpa bem pensada.
— Foi boa — falou, com um sorriso meio triste, olhando para as próprias pernas cruzadas no chão. Por algum motivo, aquilo a estava incomodando hoje, não queria ter de mentir. — E como foi seu dia?
James deu de ombros, pegando mais alguns amendoins do pacote na mão dela.
— O de sempre.
E um silêncio confortável se instalou entre eles.
O céu era meio rosado, nuvens finas completavam o quadro quase barroco no horizonte, enquanto o coral da igreja cantava, abafado pelas paredes do edifício.
Toda aquela ambientação despertou reflexões internas em ambos.
E ouvindo os fiéis orando à plenos pulmões, James decidiu externar seus pensamentos.
— Você acredita em Deus? — perguntou, sem tirar os olhos do pôr-do-sol paradisíaco que se apresentava a eles.
fora surpreendida por aquilo. Há muito não pensava em religião, mas nunca imaginou que ele pensasse sobre.
Na maioria do tempo, quase se esquecia quem James era. Mas aquilo de repente a fez lembrar. Como um assassino poderia ser cristão?
— Eu... Não sei — respondeu, meio encabulada. — Eu tive uma infância meio complicada, não sei se Deus permitiria que crianças sofressem, se estivesse encarregado mesmo.
James percebeu o peso que aquilo tinha.
— É por isso que não usa seu sobrenome?
Ela acenou com a cabeça.
— Me conta o seu que eu conto o meu — brincou, disfarçando seu desconforto.
Ele sentiu o coração pulsar com mais força. Queria tanto ser só o cara normal, sem antecedentes, sem história, queria tanto ser só o James que era para ela.
— É Barnes. — Ouviu a si mesmo dizer em voz alta. Por hora, não queria pensar nas consequências. Queria só ser fiel às lembranças que tinha retomado, com o sobrenome de seus pais, que compartilhava com sua irmã. Queria que ela soubesse.
sentiu o peito gelar, de repente. Ele estava sendo honesto com ela, mesmo sendo procurado pelo mundo todo, contara seu nome verdadeiro.
— Draven. — Sentiu a garganta seca ao dizer em voz alta. Sabia que ele não encontraria nenhuma informação sobre ela, mesmo lhe dando seu nome verdadeiro. Ainda assim, era difícil.
E era desta forma, naturalmente, que dava detalhes sobre sua vida, sobre coisas que não falava com absolutamente mais ninguém. Queria se convencer de que a melhor mentira era aquela próxima da verdade, o melhor disfarce era aquele mais próximo do natural. Queria, com todas as forças, acreditar que era só isso, uma tática para James confiar nela. Mas sabia que ele quem despertava isso, esse conforto para ser ela mesma.
– Mas e você, acredita em Deus? — prosseguiu.
— Eu costumava acreditar. — Sorriu, olhando nos olhos dela por um microssegundo, antes de desviar. — Também tenho uma bagagem pesada... — admitiu, afastando logo todos os pensamentos e memórias nefastas olhando para a luz no céu. — Mas quer saber? Em dias como hoje, eu ainda acredito. E não sei por quê. Só... Parece certo. E eu quero acreditar que no fim ficamos bem.
o observou, a luz rosada dos últimos minutos do dia beijando-lhe o rosto. Ela ainda tentava de toda forma entender como ele poderia ser a arma cruel da HYDRA. E a única resposta possível era que ele não era.
Bucky sentiu o olhar dela sobre si e deu uma risada sem graça, virando o pescoço para fitá-la também.
não pôde fazer nada além de sorrir.
— Acho que está certo. Podemos ficar bem, mesmo cheios de bagagem. Ou então podemos unir nossos passados e causar muito dano juntos! — Soltou o ar pelo nariz, como uma risadinha. — Quero acreditar também. Sabe, quando eu era beeem — enfatizou, fazendo ele sorrir — pequenininha, sonhava em me casar na igreja, com um vestido branco e enorme como uma princesa.
— E não sonha mais? — James perguntou, verdadeiramente interessado.
apenas acenou com a cabeça em negação, com um sorriso nos lábios, como se fosse a pergunta mais idiota do mundo. Era claro que ela nunca se casaria, como poderia neste ramo de agente e espiã? Sequer almejava algo como casamento, namoro, o que fosse, ela estava fora.
— Quem é que se casaria comigo? — Riu, perguntando retoricamente, como se fosse óbvio: ninguém.
Lá no fundo da mente de Bucky, como flashes borrados, havia a memória longínqua de que seus pais sonharam com um futuro como aquele para ele: uma boa moça, um casamento na igreja como manda o figurino. Não gostava de pensar neste tipo de coisa, tudo o que gostaria de ter vivido e não pôde. Lembrava-se de ter aproveitado sua juventude, com alguns casos sem compromisso e paixonites sem fundamento, mas tinha certeza de que, em algum momento levaria, uma garota para casa, apresentaria para sua mãe com um sorriso orgulhoso. Bom, nada daquilo importava mais, relacionamentos estavam fora de sua bandeja.
— Tenho certeza de que alguém irá querer um dia. — James riu também, esticando a mão para pegar mais um amendoim.
Mas se moveu para fazer o mesmo.
Suas mãos se tocaram, pele sobre pele, pela primeira vez.
Não sentiram nenhuma corrente elétrica ou viram o mundo ficar em câmera lenta, como nos filmes. Eram amigos, e estavam cada vez mais se tornando familiares e confortáveis com o toque um do outro.
percebeu pela primeira vez o quão calejadas e ásperas as mãos de James eram. E ele apreendeu o mesmo sobre ela. Mas todas as coisas que o alarmariam em qualquer outro, não funcionavam com ela. Pensou fazer sentido que uma estudante de artes tivesse calos, por trabalhar com projetos artesanais.
Afastaram suas mãos, cada um para o seu próprio lado.
— Você se casaria comigo, James? — provocou, tentando afastar o embaraço, naquele seu típico tom atrevido que ele aprendeu a reconhecer.
— Não. Vai ter de procurar outro. — Ele riu. fez-se de ofendida, abrindo a boca com uma arfada e atirando um amendoim nele.

(...)

já dirigia há quase 40 minutos, sua mente vagava por memórias contrastantes.
O James que amava, que se abriu para a amizade dela em Bucareste, cujo sorriso contido fora se tornando cada vez maior e mais folgazão, que fazia piadas e ria das suas, que tinha olhos azuis claros com um pesar misterioso, que a fazia querer desvendá-los.
O Soldado Invernal, mecânico, cruel, imparável, violento, com seus olhos vazios que nem pareciam abrigar uma alma humana, sua mão metálica gélida arrancando a vida de duas pessoas como se não fossem absolutamente nada, a pressão em seu pescoço.
As marcas estavam lá, bem visíveis, toda vez que se olhava no espelho.
Quando voltou sua atenção ao presente, deu-se conta de que estava já naquela pista tão familiar. Seu destino estava próximo.
E mais lembranças inundaram sua mente, estimuladas pelo local.

(...)

— Não precisava ter ido me buscar — James disse, sentado no banco do passageiro.
Tentava controlar seu desconforto, olhava para a paisagem turva cruzando a janela. Não se sentia bem.
E a presença de ao seu lado dificultava tudo ainda mais. Não sabia como devia agir, o que esperar, o que dizer.
O mundo passou cinco anos sem eles e metade das pessoas. E a parte mais sádica é que já estava praticamente acostumado, entre despertares e desligamentos em seus 90 anos como Soldado Invernal, estava mais que familiarizado com a sensação de acordar num mundo que seguiu sem ele.
Ainda assim, passou mais que cinco anos longe de . Ficara em Wakanda por dois anos sozinho. Tentava fazer as pazes com a ideia de que ela seguiu sua vida sem ele, não lhe devia nada, afinal.
Mal sabia que, ao seu lado, também estava apreensiva. Não sabia se ele já tinha alguém, só podia esperar que ainda pensasse nela, torcer para que James ainda sentisse aquela conexão que ela nunca, nem por um segundo, deixou de ter com ele.
o amava verdadeiramente, e o seguiu amando durante todos estes anos.
— Achei que seria uma boa desculpa para conversarmos — disse, olhando rapidamente para ele.
No mesmo instante, percebeu que havia algo errado.
— Não acho que é o melhor momento — ele respondeu, tentando evitar o assunto.
Sua mente era atormentada por fantasmas do passado, não conseguiria lidar com mais nada. Seu peito parecia apertado, seu estômago embrulhado.
— O que houve? — perguntou, preocupada.
Podia ver no rosto de James a aflição se apresentando, um muro invisível sendo armado em torno dele.
— Nada — respondeu, virando-se um pouco mais para a janela.
tentou encontrar os olhos dele pelo espelho retrovisor, mas James se fechava inteiramente, segurava o apoio de mãos da porta com mais força.
— Não vem com essa, Bucky. Passamos por coisas demais para você querer me tratar assim. Isso pode funcionar com o resto das pessoas, essa postura de impenetrável e caladão, mas comigo não, tá bom? Me diz logo o que está acontecendo.
O fato de tê-lo chamado de Bucky, não James, pela primeira vez, o fez se fincar, de repente, ao momento. Não soava certo. E dentre tudo o que estava pensando, aquilo não devia importar.
Mas importava.
— Para o carro — pediu.
— O quê? — se surpreendeu. — Estamos quase chegando.
— Para o carro, por favor! — Ele aumentou um pouco o tom, não de uma forma rude, mas quase desesperado.
E ela acatou. Desviou para a direita e parou no acostamento à marginal da pista.
Estavam exatamente no meio do nada. Já era uma área mais bucólica, não se via sinal de casas ou prédios, apenas campos extensos de pinheiros altos e grama circundavam a pista.
Bucky removeu o cinto e desceu apressado do carro, deixando a porta aberta e caminhando uns cinco metros à frente.
O coração de parecia gelar enquanto observava James passar as mãos pelos cabelos, num desespero visível.
não sabia se deveria dar espaço ou correr até lá. Havia uma barreira tangível entre eles, depois destes anos de afastamento. Ela ligou o pisca-alerta do carro e sentiu seu coração acelerar.
— O que está acontecendo? — perguntou, abrindo a porta e se levantando, com os braços apoiados na barra de aço acima da janela.
Ele não respondeu. Seus olhos a encontraram por alguns segundos, mas ele balançou a cabeça em negação e se virou de costas, as mãos cruzadas na própria nuca de forma preocupada, enquanto olhava para cima e tentava respirar fundo.
Que se dane o espaço, ela precisava estar com ele.
Cruzou a porta, batendo-a para fechar, e caminhou para mais perto.
— Sou só eu, Bucky. O que quer que seja, sabe que pode me falar. — E lá estava, mais uma vez ela o chamara de Bucky.
Aquilo deu ignição para que ele finalmente verbalizasse as coisas fazendo alarde em sua mente, que estavam debilitando seu corpo com uma energia paralisante.
— Eu não devia estar aqui! — gritou.
Era mais um ataque de ansiedade. Não tinha isto há muito tempo, tinha paz em Wakanda. Mas foi só voltar para seu país que aqueles turbilhões de fardos voltaram para suas costas.
Ele nunca seria livre de seus pecados.
— Do que está falando? — perguntou, depois de uma pequena pausa tentando entender.
Ela o encarava com as pálpebras meio franzidas, como se aquilo não fizesse o menor sentido.
— Eu não devia! — tornou a afirmar. — Porra, eu matei eles... Os pais do Tony. E a pior parte disso tudo é que Howard era meu amigo. Ele pilotou a merda do avião pro Steve me resgatar, na primeira vez que a Hydra me pegou — falava tudo rápido demais, na mesma celeridade em que aquilo rondava sua mente debilitada. — E eu matei Howard e sua esposa, deixei seu filho órfão. Ele me queria morto, ! E ele tinha o direito de me matar. Eu... Eu devia ter só me entregado. Em vez disso, eu lutei com ele... Talvez ele fosse um amigo melhor pro Steve do que eu jamais pude ser. Talvez os Vingadores não tivessem se separado se não fosse por mim, e talvez, se eles ainda estivessem juntos, poderiam ter ganhado na primeira vez que Thanos veio aqui... — Respirou um pouco. — Eu não posso ir ao funeral dele.
o encarou em silêncio, seus olhos o analisando da cabeça aos pés, suas sobrancelhas minimamente franzidas como se reprovasse tudo o que ele dizia.
Depois de longos segundos, ela finalmente disse:
— O que você falha em considerar é que você também é uma vítima, Bucky. Tony não era um santo, sabia? Ele tinha seus próprios pecados. Ele fez o Ultron, que matou centenas de pessoas e poderia ter matado o mundo inteiro. Todos temos bagagem. Alguns mais que outros. Mas eu acho que o que máximo que podemos tirar de quem Tony foi é sempre tentar fazer o melhor. Ele fez o Visão, parou o Ultron. Sacrificou a si mesmo pelo bem da humanidade. E depois de toda essa merda, ele ainda foi capaz de se dar um descanso, foi capaz de ter uma família e ser feliz. — Bucky finalmente encontrou os olhos dela. — É isso que eu quero, sabe...
— Desculpe, . — Ele soltou os ombros, gesticulando com as mãos. — Mas eu não consigo evitar pensar no quanto disso tudo foi culpa minha. Quantas coisas poderiam ter ido melhor se não fosse por mim.
respirou fundo, cruzando os braços, olhando para o céu quase como um revirar de olhos.
— Bom, se não fosse pelo Soldado Invernal, eu nunca teria conhecido você. E eu tenho certeza de que os Vingadores eram uma merda sem Eclipse e o Falcão. Se não fosse pelo Soldado Invernal, eles seriam só os seis bocós para sempre. — Ela tentou trazer um pouco de humor, dando um meio sorriso provocativo para James.
E, de alguma forma, funcionava. Não estava no clima para rir, mas, ao longo da conversa, estava se acalmando. Era esse o efeito que ela tinha nele.
— Fury ainda te recrutaria, — falou, dando alguns passos e se aproximando mais dela. — E estou certo de que Steve recrutaria Sam. Eu não fiz diferença nisso.
Eles estavam muito próximos. Barnes observou o sorriso contrariado surgir no canto direito dos lábios de , sua cabeça balançando minimamente de um lado para o outro.
— Cala a boca, Bucky — chamou-o, mais uma vez, por aquele nome. Não aguentava mais.
— James — finalmente a corrigiu, quase a cortando enquanto falava.
franziu as sobrancelhas de leve, tentando não indicar o quão surpresa aquilo a deixava.
— Pensei que preferisse Bucky, é assim que todos te chamam.
Ele olhou para o chão, soltando o ar dos pulmões, preparando-se para confessar algo que nunca lhe contou.
— Depois que te perdi eu... — Molhou os lábios. — Eu disse a todos para não me chamarem de James. Isso sempre foi só para você. — Trancou seus olhos nos dela mais uma vez. — Não soa certo quando os outros dizem.
O coração de pulava em seu peito. Era tudo o que precisava ouvir.
Ele ainda a amava. E ela precisava dar tudo de si para conter a euforia que sentia agora.
— Bom, James, acho que temos muito a conversar — disse. – Nós todos podemos ter nossa segunda chance de felicidade... Até Eclipse e o Soldado Invernal. — aguardou a reação dele, ficando contente ao ver um sorriso discreto se abrindo no rosto de James. — E eu ia te chamar para morar comigo, mas acho que primeiro devemos ir ao funeral.
E, com um sorriso atrevido, se virou e caminhou de volta para o carro, deixando um James surpreso para trás.

(...)

pisou levemente no freio, diminuindo um pouco a aceleração do veículo. Quase podia ver a própria imagem pelo para-brisas, bem ali à frente: seu carro no acostamento, as portas abertas, ela e James conversando, como se o mundo fossem só aqueles quilômetros de asfalto e gramado.
Tentava impedir mais pensamentos de surgirem em sua mente, pisando no acelerador.
Só mais alguns minutos agora.
Estava quase chegando.

(...)

Já estavam lá há quase 15 minutos. Recostavam-se sobre o capô do carro de , parado num platô junto a alguns outros, debaixo da copa das árvores.
Podiam ouvir o som suave da água do lago e a comoção das outras pessoas, se reunindo mais à frente; por entre os troncos, dava-se para ver a silhueta da requintada casa de madeira.
Mas e Bucky estavam em silêncio.
Ela entendia a posição dele, o temor, o sentimento de inadequação. Mas sabia que, na grande maioria das vezes, James preferia ficar em silêncio e tentar digerir tudo sozinho. Olhava para o chão e remexia seus dedos, dentro dos bolsos frontais de sua calça.
Ela trajava roupa formal, uma camisa social de tule, pantalonas de sarja preta, cinto e sapatos de couro. Ele com suas calças jeans de sempre e uma jaqueta preta.
Era incrível como podia ser sempre a pessoa mais bem vestida em qualquer ocasião. Depois de todo esse tempo, ainda impressionava Bucky. E ele a elogiaria, diria o quão bonita estava, não fossem os outros assuntos ocupando sua cabeça.
A conversa na beira da estrada não fora de todo má, não era só sobre os problemas dele. Bucky pensava no que ela havia dito.
— Falou sério? — Tomou fôlego e perguntou, sua voz doce e baixa quebrando a quietude que havia entre eles.
o encarou, um sorriso se formando em seus lábios.
— Não precisamos pensar nisso agora.
Ela gostaria de dizer o quão bonito os cabelos dele estavam, com reflexos mais dourados que nunca. Podia sentir o quanto seu tempo em Wakanda o tinha feito bem.
— Morar juntos, é? — Ele sorriu.
— Por que não? Se o Blip serviu para algo, foi para me fazer entender que a vida é uma merda e a qualquer instante acaba — falou, divertida.
Passaram dois anos afastados e mais cinco anos fora de existência. A ideia dela podia parecer precipitada, mas não era. Já haviam perdido tempo o bastante. Então, por que não?
— Mas você não precisa decidir nada agora — disse, sincera, pondo sua mão sobre o ombro dele, carinhosamente. — Sei que hoje não está sendo fácil.
Ele baixou a cabeça, mas sorriu em agradecimento. Pôs a própria mão sobre a dela, afagando-a com seu polegar.
Foi quando ouviram passos se aproximando e uma voz familiar soar bem ao lado de Bucky.
— Ora, ora, o que temos aqui? — Era Sam Wilson, trajado em seu terno e gravata, sapatos engraxados e um sorriso animado no rosto. — O casal finalmente reunido!
Bucky riu pelo nariz, soltando os ombros. riu e girou os olhos na direção de Sam, que se encaminhou para perto dela e a abraçou de lado, prosseguindo:
— Tudo bem por aqui? Está quase na hora de começar.
transpassou seu braço pela cintura de Wilson.
— Está sim, nós já vamos — respondeu.
Mas Sam encarou Bucky e soube na hora que havia algo. Podia não ter convivido tanto com ele, mas neste ramo, uma batalha ao lado de alguém já forma laços fortes como aço.
— Tudo bem mesmo, Buck? — perguntou, sério.
Bucky levantou o pescoço, o encarando com um sorriso triste. Wilson conhecia toda a história dele com os Stark.
James encarou , dando-a permissão para explicar, o que ela entendeu prontamente.
— Ele acha que não devia estar aqui — falou. — Você sabe o porquê.
Sam se desvencilhou de , pondo sua mão sobre o ombro de Bucky.
— Você lutou na linha de frente junto de todos nós. Viemos aqui honrar o sacrifício dele e apoiar a família. Não se martirize pelo que já passou.
Bucky franziu os lábios, abanando a cabeça minimamente em afirmação.
— Obrigado — disse, simplesmente.
Sam acenou com a cabeça, dando dois tapinhas no ombro dele.
— Estarei do seu lado, Buck. Não precisa enfrentar isso sozinho. — Sam indicou também com o olhar de relance. — Vejo vocês lá. Ah, e, , acho que devia conversar com a Wanda. Ela está lá perto das escadas, pode estar precisando de uma amiga.
sorriu em agradecimento, observando o amigo se afastar. Voltou então sua atenção a James, que mantinha a cabeça baixa, olhando para o chão.
— Eu também estou com você, sabe disso, não é? — sussurrou. — Até o fim — repetiu a promessa que o havia feito um dia, esperando que ainda se lembrasse.
Bucky inspirou suavemente, enchendo os pulmões e sentindo o frescor do ar em seu interior. Ouvir aquilo lhe deu uma segurança afável. Era a certeza de que, apesar de tudo, ainda tinha . E era tudo o que ele precisava agora.
— Sei. — Ele a olhou com um meio sorriso. — Só não deixe Steve ouvir, vai pensar que copiou dele — brincou.
— Eu me resolvo com o escoteiro, não se preocupe. — riu levemente, levantando-se do capô e se colocando à frente de James. — Está pronto? — Estendeu-lhe a mão.
Bucky a encarou por microssegundos, dos olhos com aquele brilho inabalável ao sorriso sóbrio e companheiro, à mão de dedos finos e delicados esperando por ele. E um sentimento brando de calmaria o preencheu.
Não era o suficiente para superar toda a culpa e o mal-estar, mas era um começo. E era muito precioso.
Ele segurou a mão dela, sentindo o calor de sua palma.
— Estou — respondeu, levantando-se também.
Entrelaçaram-se os dedos, James tendo a mão pequena de dentro da sua, como se fosse feita para encaixar-se a ele.
E mesmo em dias fúnebres e nefastos, quando curvavam-se à morte em nome de celebrar o que foi uma vida, quando seu passado se fazia presente demais e tudo se tornava turvo, apenas uma coisa era tida como verdade inquestionável: James Buchanan Barnes amava sua . Estando ele pronto ou não para lidar com isso.
Então seguiram, juntos, para à beira do lago, frente à soleira da casa.
E mesmo quando abraçou Wanda, não largou sua mão. Ele a cumprimentou também, apenas verbalmente, não tinha muita intimidade.
Steve Rogers, que falava com algumas pessoas mais à frente, finalmente o viu. Pediu licença para Thor e Banner, e se encaminhou até os três.
Sorriu, sincero, ao ver o melhor amigo se aproximar.
. Wanda — disse, com um sorriso cordial e um olhar preocupado na direção de James. — Bucky.
— Capitão — Wanda cumprimentou-o, sem muito humor.
— Está elegante. — sorriu provocativa. — Acho que nunca te vi de gravata.
— Não se acostume — disse, em tom de brincadeira.
Rogers logo abrandou sua feição ao ver as mãos de seus companheiros entrelaçadas, mais abaixo. Aquela era uma surpresa boa. Sabia, por experiência própria, que não há tempo capaz de apagar um laço de amor daqueles.
– Como está, velho amigo? — Apertou o ombro de Buck, carinhosamente.
— Bem, eu acho. — Sorriu, acenando de leve com a cabeça. — Você?
Mas Steve não respondeu. Apenas sorriu, sem muita emoção.
— Sinto muito, Steve. É uma grande perda — disse, lançando um olhar empático para o mais velho, vendo-o hesitar um pouco antes de dizer qualquer coisa.
— Tony podia ser difícil às vezes, mas sempre podíamos contar com ele para fazer a coisa certa. — Rogers tentou manter sua postura. Como soldado, estava mais que acostumado com perdas, mas essa atingiu a ele, e a todo mundo, de uma forma diferente. — É bom vê-los juntos.
Ambos sorriram meio constrangidos, enquanto Steve regressava para mais perto do lago, cumprimentando outras pessoas. Não sabiam se estavam juntos de novo, não ainda. Não romanticamente.
Mas mantinham-se firmes, fortalecendo um ao outro.
Logo Sam voltou a se unir ao grupo. Wanda ao lado de , Wilson na outra lateral.
Quando Pepper saiu pela porta, segurando o memorial do reator arc num arranjo de flores numa mão, e sua filha na outra, Bucky sentiu as pernas perderem a força.
Mas , à sua direita, apertou sua mão três vezes seguidas, com mais força. “Até-o-fim”.
E, à esquerda, Wilson percebeu a tensão regressando para seu cenho preocupado e pesaroso. Ele olhou para os amigos, terno. Pôs sua mão sobre o ombro de Bucky, relembrando-o que estava ao seu lado.

(...)

parou o carro sobre à terra, próximo à lateral da casa.
Levou alguns minutos para conseguir descer do carro. Tinha muito em sua mente, muito o que digerir.
Ainda estava tentando se decidir sobre como deveria se sentir sobre tudo.
E, respirando fundo, engoliu o caos que carregava no peito e desceu do automóvel.
Caminhou vagarosamente até à margem do lago, hesitando um pouco.
Sentou-se sobre os joelhos, bem na beirada do pequeno cais de madeira.
O som macio do estalar da água, das folhas nas copas das árvores dançando com o vento, preencheu-lhe os ouvidos.
Não conteve a vontade de chorar. Apoiou o corpo no pilar de estaca grosso, que sustentava o deck, à sua esquerda.
Ficou em silêncio por um tempo, apenas contemplando tudo.
Lembrava-se da cerimônia. Fora muito bonita. E Pepper lidou com tudo tão elegantemente.
Havia a conhecido apenas na batalha final, mas, naquele dia, apresentaram-se formalmente.
Não foi difícil se aproximar de Potts. Há coisas que apenas quem vive neste ramo pode entender. Não é preciso muito mais que isso. a admirava, e adorava Maguna.
Tony conseguiu para si a melhor família de todas.
— Você fez parecer fácil, sabia? Ter uma vida normal — comunicou, olhando para a água do lago. — Eu nem te conhecia antes da última batalha, mas você e Steve me inspiraram. Por causa do que vocês criaram, eu costurei aquele maldito símbolo na minha roupa, achei que nossa união, os Vingadores, traziam esperança. E era importante ter esperança naquele momento — soluçou, aumentando um pouco a voz ao continuar. — Eu estive lá quando o universo precisou de nós. Mas não sabia que isso ricochetearia e tomaria toda a minha esperança. — Arfou, limpando o rosto. — Nat estava certa, não temos lugar nesse mundo.
escondeu o rosto com as mãos, sem conseguir mais controlar o fardo das lágrimas, que rolavam com urgência. Acabou abraçando o pilar de madeira, descansando todo o peso de seu corpo ali, tentando sentir o contato físico, e, desesperadamente, confortar-se, mesmo que com um objeto inanimado.
Em sua mente, todas aquelas memórias de momentos felizes e tristes com James, junto às mais recentes com o Soldado Invernal, se misturavam e difundiam.
Passou mais alguns minutos daquele jeito, olhando para o lago até que tivesse tomado fôlego de novo.
— Eu finalmente sei o que ele fez. Quer dizer, eu vi acontecer... bem na minha frente. — O temor transparecia em seu timbre, mas o choro lhe dava uma folga. Ela falava agora de forma mais sóbria, como se tivesse um senso de clareza repentino de tudo. — Mas ele carregou essa culpa por anos. Por trás do monstro tinha um homem, um dos bons. Então eu peço perdão por não ter feito nada, não ter salvado seus pais ontem. — Limpou uma lágrima que escorreu singela e silenciosa. — E espero que tenha podido perdoar James nestes anos que se passaram, mas entendo se não tiver conseguido. Entendo mesmo.
E, ao colocar tudo para fora, havia tomado duas decisões: a primeira sendo como se sentia sobre James depois de ontem; a segunda sobre organizar melhor um plano antes de fazer um salto no tempo.
Precisava de foco, planejamento e resiliência. Tinha de pensar em como salvá-lo, não deixar seu coração débil escolher uma data qualquer e esperar pelo melhor.
trouxe os joelhos para perto do peito, repousando sua cabeça entre eles. Respirava fundo e escutava os sons pacíficos da natureza, a fim de parar de pensar um pouco, nem que fosse por dois segundos apenas. Estava exausta.
Mas ouviu um carro se aproximar, os pneus cruzando a grama e o motor vibrando.
Virou apenas seu pescoço, avistando um automóvel caro, de pintura azul, a porta se abrindo e aqueles cabelos ruivos brilhando à luz do sol.
? — Ouviu Pepper lhe chamar. — É você?
E então, a porta de trás se abriu, revelando uma silhueta pequeníssima de madeixas escuras e voz doce e fina.
! — Morgan gritou, correndo em direção ao cais.

(...)


Capítulo 5 — The Damned And The Praiseworthy

Tratou de limpar o rosto no dorso de seus pulsos, rapidamente forçando um sorriso enquanto a menina se aproximava depressa.
— Morgan, cuidado! — Pepper alertou, quando a pequena subiu o degrau para o cais. Mas sua animação era tamanha que nem se importou com a recomendação da mãe.
se levantou, abrindo os braços para que Morgan os preenchesse. E assim ela o fez, pulando no colo da mais velha, que a rodopiou no ar.
— Maguna! Que falta senti da minha ursinha! — Apertou mais a menina, até que ela reclamasse em meio aos risos.
Quando a colocou de volta no chão, Morgan deparou-se com os olhos vermelhos e inchados de .
— Estava chorando? — perguntou logo, com uma carinha consternada.
— O quê? Não! É só alergia — fungou, percebendo então o olhar inquisidor de Potts, parada frente ao cais, segurando uma sacola de papel do mercado.
— Por que não entramos? Já está ficando tarde — convidou.
Morgan se apressou e correu em direção à porta, deixando uma constrangida para trás.
Sabia que Pepper havia se mudado de volta para a cidade, para cuidar das Indústrias Stark, e ainda vinha ocasionalmente passar alguns fins de semana no chalé.
Mas não estava esperando encontrá-la, martirizou-se por não ter pensado direito.
— Oi. — Lançou um sorriso envergonhado para a ruiva.


(...)


— Como está a escola? — perguntava, mexendo nos cabelos da menina sentada em seu colo. — E aquela sua amiguinha, qual era mesmo o nome? Ashley?
Estavam sentadas à mesa de jantar, enquanto Pepper preparava algo na cozinha.
— Tá bem. — Morgan sorriu.
— Bem? Só isso? — fez cócegas na barriga da criança, que danou a rir, tentando se desvencilhar. — Ela tá bem? A escola tá bem? A Maguna tá bem?
As gargalhadas de Morgan ecoavam altas pela casa. Pepper gostava daquilo, de ter vida ali de novo. Era como se um pouco de Tony regressasse.
Apareceu de volta na sala, com uma bandeja de vime em mãos, em cima um bule de vidro e duas xícaras. Pôs tudo à mesa e se sentou ao lado de , com um sorriso no rosto vendo as duas brincando.
— Mamãe, socorro! — Morgan arfava, sem conseguir parar de rir.
— Socorro? A grande Maguna não precisa de ajuda, é a mais poderosa feiticeira do mundo! — falava animada, deixando finalmente a menina respirar um pouco.
— Senti sua falta — falou, seus pequenos braços enlaçando o pescoço da mais velha.
Mas Morgan acabou esbarrando bruscamente em seu ferimento, escondido debaixo da gola. Por reflexo, franziu o rosto com o choque.
Pepper percebeu.
— Morgan, pode nos dar um minuto? — pediu.
— Ah, não, mamãe! — a menina reclamou, agarrando-se com mais força ao pescoço de , que expeliu um gemido de dor contido.
Potts moveu os olhos entre e a filha, como se soubesse exatamente o que a outra escondia.
— É conversa de adulto, você não vai gostar.
A menina bufou, mas acabou cedendo, largando e subindo as escadas para brincar em seu quarto.
Pepper encarou por aproximadamente cinco segundos, séria, como se ela esperasse que confessasse algo.
Mas fez-se de desentendida, cortou o contato visual olhando para o bule.
— Do que é o chá? — perguntou.
Mas a ruiva sequer respondeu, apenas balançou a cabeça rapidamente da direita para a esquerda, decepcionada. Levantou-se e foi de novo à cozinha.
— O que eu fiz? — perguntou, sem entender nada.
E então, sem mais nem menos, Pepper retornou com uma bolsa de gelo em mãos, oferecendo-a para ao se sentar de novo.
Ela suspirou, envergonhada. A mais velha havia percebido.
Sem mais opções, pegou a bolsa térmica e a pressionou contra o pescoço.
— Como descobriu? — perguntou, derrotada, num tom baixinho.
Pepper soltou uma risadinha incrédula.
— Está brincando? Sabe quanto tempo eu vivi com Tony? — O sorriso vitorioso em seu rosto se alargava. — Vocês pensam que enganam alguém, mas eu aprendi a captar os pequenos detalhes.
riu pelo nariz, levemente. Sentira saudades da amiga, que infelizmente também era sua chefe. E ela não ia trabalhar desde o ocorrido com James.
— E então? — Pepper esperou.
— Então?
— O que foi? Criminoso comum ou aprimorado?
largou a bolsa sobre a mesa, suspirando e massageando o pescoço suavemente.
— Aprimorado.
Pepper mais uma vez balançou a cabeça e suspirou, absorta.
— Pensei que não quisesse mais fazer isso.
— E não quero — respondeu, prontamente.
Ela não tinha escolha. Mas não podia explicar tudo o que estava fazendo.
, eu não discutiria com você em outra situação — suspirou. — Passei anos tentando convencer Tony a deixar essa vida, constantemente aflita com o perigo que ele se colocava, com o dia em que ele não voltasse mais para casa. E sabe do que isso adiantou?
— Nada?
— Nada!
Pepper tinha um certo brilho nos olhos e um sorriso verdadeiro nos lábios. O que acertou o tom leve para que ambas rissem.
Elas encaravam o luto de formas muito diferentes. Potts precisou ser forte pela filha, por seus negócios. Aceitou graciosamente o sacrifício do marido, assegurando-o de que tudo ficaria bem para que finalmente pudesse descansar.
Ela falava de Tony com orgulho, com amor, com alegria.
jamais poderia agir assim, não da forma como tudo aconteceu, não com tão pouco tempo. Pepper sabia disso, enxergava com clareza: a ferida na alma dela era quase venenosa. Levaria muito mais tempo para cicatrizar.
— Sei que vocês carregam esse senso de responsabilidade pelos outros, pelo universo inteiro. Sei que não posso impedir, eu realmente sei — falou, num tom divertido mais uma vez, pondo a mão sobre o braço de , sobre a mesa. — Mas acho que você está fazendo isso pelo motivo errado. E pode ser perigoso. Não pode descontar sua raiva em criminosos por aí.
queria muito contar à mais velha o que realmente estava fazendo, perguntar se ela faria o mesmo por Tony, pedir conselhos ou, quem sabe, sua aprovação. Depois da discussão com Sam, ela precisava desesperadamente de alguém que entendesse seu lado.
Mas Pepper não seria essa pessoa. Ainda mais quando as viagens de tinham o potencial, mesmo que não intencional ou hipoteticamente, de acabar até mexendo com o valoroso sacrifício de Stark, como Fitz já havia cogitado quando criou o aparelho.
— Eu sei, é só que... — Inspirou, tentando encontrar as palavras certas. — É só o que eu sei fazer. Eu só sei lutar, é tudo para o que fui criada. Então é o que estou fazendo, até tudo voltar ao normal.
Pepper a encarou, empaticamente. era importante para ela e Morgan. Mesmo com todas as complicações envolvendo seus parceiros, nada daquilo as dizia respeito. Eram parecidas nesse aspecto, ambas apaixonadas por homens complicados e difíceis de lidar.
Não culpava Bucky pelo que aconteceu aos pais de Tony. Não culpava Bucky pelo que fez a si mesmo no fim. E não culpava por lidar tão mal com tudo agora.
— Deixa eu dar uma olhada nisso, vamos? — Chegou mais perto, indicando o pescoço da outra.
hesitou, seu coração pulsando mais rápido. Tinha medo de que Pepper descobrisse, de alguma forma insana, quem lhe dera aquelas marcas.
Mas a ruiva não cedeu. Ficou aguardando até que , vagarosamente, baixasse a gola de sua blusa, revelando o hematoma e as petéquias marrom-arroxeadas que se espalhavam pela pele, demarcando claramente o formato de uma mão.
— Meu Deus! — arfou, surpresa e extremamente preocupada. — Quem fez isso em você, ?
— Um aprimorado... Em New Jersey. — Tecnicamente, não era mentira.
pôde ver os olhos de Pepper milimetricamente se arregalarem, o que quase nunca acontecia — sinal de que estava realmente preocupada.
— E está lidando com isto sozinha? Não informou aos outros? — perguntou, sabendo do risco em que estava conscientemente se colocando. Não podia endossar aquilo.
Mas foi rápida em retrucar, seus lábios meio contorcidos com um sabor amargo, prontos para uma defensiva de um suposto ataque que Pepper sequer havia iniciado.
— Não é como se houvesse muitos de nós por aí ainda para informar. Clint está "aposentado". — Fez aspas com os dedos ao mesmo tempo que revirava os olhos, como se fosse uma idéia inconcebível um Avenger ter uma vida comum. — Eu não tenho notícias da Wanda há meses, e Sam e eu não estamos muito na melhor das fases um com o outro, por assim dizer.
Pepper a ouviu atentamente, mesmo que não precisasse que lhe listasse o paradeiro dos remanescentes da equipe que um dia esteve ao lado de Steve Rogers. Sabia bem que, após a partida dele e de Tony, o elo que mantinha essa corrente minimamente unida havia se partido.
Não era difícil imaginar o quão sozinha devia se sentir agora.
— Sinto muito, querida. — Pepper pressionou os lábios e encarou os olhos de , que se recostava na cadeira, um pouco encolhida, braços cruzados e olhando para o chão. Ela queria passar a imagem de que não se importava com o tópico, mas seu corpo denunciava quão incomodada realmente estava. — Mas não pode fazer isso sozinha, honestamente. Precisamos informar a CIA ou a S.W.O.R.D., tirar isso das suas mãos o quanto antes ou ao menos conseguir reforços.
— A S.W.O.R.D. é uma piada! — imediatamente ergueu seu rosto na direção de Potts, meio ofendida ou com orgulho ferido. Então ajeitou sua postura, passando mais confiança. — Eu posso cuidar disso, eu preciso. Prometo que ficarei bem.
não podia dar qualquer brecha de ter um órgão do governo metido neste assunto. Tudo o que Pepper inferia daquele comportamento errático era um possível orgulho ferido de uma ex-SHIELD. Não havia como saber o que realmente estava em jogo ali: ela não podia arriscar qualquer intervenção em sua cruzada de viagens no tempo atrás do Soldado Invernal.
Pepper inspirou e expirou, analisando a figura de . Sentia, verdadeiramente, empatia pela garota. Apesar de ter seus 25 anos e aparência ainda quase juvenil, era fácil esquecer o quão jovem era de fato. Tão calejada pela vida e usualmente tão segura de si, competente, responsável… sequer conhecia a história completa do Projeto Eclipse ou da infância dela, mas o pouco que sabia era alarmante. Pepper pensava no quanto do treinamento fabricou o comportamento de , e, quando a encontrava brincando com Morgan, tinha o duro vislumbre do quão jovem realmente era.
Quantos traumas lhe foram endorsados, quantas coisas já havia visto, vivido e feito. Ainda assim, costumava se permitir o deleite de sonhar em alcançar o objetivo mais etéreo e mitológico para alguém como ela: uma vida tranquila, um emprego comum, uma pequena família com o homem que amava.
Potts lembrava-se bem de quando lhe ofereceu o cargo nas Indústrias Stark. tinha qualificações que a tornavam almejada por todo órgão militar e de inteligência do mundo, mas recusou, contentemente, todas as propostas por uma vaga como assessora pessoal de Pepper — semelhante ao que a própria ruiva costumava fazer para Tony, com uma remuneração bem menor. E genuinamente parecia desfrutar da rotina burocrática e meio entediante, em contraste com seu passado agitado.
E, de repente, estava mais uma vez se engajando em combates obviamente perigosos demais para seu próprio bem, sozinha. E Pepper sabia que essa era a forma dela de evitar lidar com a perda, extravasar sua raiva, talvez se auto-punir. Agir como uma vigilante e brigar com criminosos aleatórios era, claramente, uma forma de seguir em negação da realidade.
Assim como focar completamente no trabalho fora a de Pepper, até perceber que estava negligenciando Morgan com isso.
— Eu entendo o que está passando — falou, as sobrancelhas meio erguidas ao centro, seus lábios se curvando aos cantos num leve sorriso de pesar.
Mas aquilo, aquela simples frase, uma simplória colocação clichê que todos parecem querer deferir quando alguém tem algum problema, aquilo que supostamente deveria confortá-la, apenas fez o estômago de se retorcer em um descontentamento que ela nem sequer entendia direito.
— Desculpa, Pepper — soltou o ar pela boca como uma pequena risada sórdida —, mas isso é impossível. Não tem como você saber o que eu estou passando agora.
Não tinha qualquer intenção de ofender a mais velha, mas desconfiava que alguém como Pepper Potts não fosse capaz sequer de imaginar como ela se sentia.
— Eu sei, sim, sei exatamente como se sente — insistiu. — Quando perdi Tony, eu…
— Tony morreu como herói a cortou, elevando um pouco seu tom sem sequer perceber. — Ele morreu trazendo paz para todo o universo, fazendo algo louvável. Bucky só…
— Bucky pensou que era o único jeito de obter paz para si mesmo. — E, desta vez, fora Pepper quem interrompeu, antes que formulasse algo que não tinha intenção.
— E eu não pude salvá-lo! — arfou, perdendo sua compostura por um instante, suas pupilas já incapazes de focar direito com lágrimas embaçando qualquer imagem à sua frente.
Pepper a encarou em silêncio, não a repreendendo, mas buscando ouvir atentamente, promovendo o espaço que a amiga precisava para ventilar tudo o que tinha guardado no peito.
logo se recolheu mais uma vez na cadeira, afundando um pouco em seus próprios ombros e tentando estabilizar seu padrão de respiração. Limpou os olhos antes que a primeira lágrima pudesse escorrer, e então continuou, de uma forma bem mais baixa:
— Eu era a pessoa que devia fazê-lo se sentir em paz. Devia tê-lo feito se sentir amado… — Embora estivesse se esforçando, sua voz já era pronunciada entre soluços, suas bochechas se tornando molhadas por um choro que se recusava a reconhecer ou reivindicar. — Eu não fui capaz de fazer isso. É culpa minha.
— Não é sua culpa! — Pepper foi rápida ao interromper, falando mais alto e pondo a mão direita sobre o joelho de , tentando fincá-la ao momento e resgatá-la daquele solo fértil em sua mente onde pensamentos nefastos como este podem criar raízes rapidamente.
— É sim! — retrucou, estridente e falha. — Se ao menos eu tivesse mais tempo… — Escondeu o rosto sob as próprias mãos, o choro já a impedindo de continuar qualquer raciocínio.
— Você acha que eu tive tempo? Acha que Morgan teve tempo suficiente com o pai dela? Não! Nós nunca temos tempo — Pepper argumentava, conhecia bem o local cruel onde se encontrava agora. — Às vezes nem mesmo a mais linda história de amor do mundo é capaz de prover tudo que alguém precisa. — Pepper encarou firme e gentil como uma mãe, seu próprio coração apertando dentro do peito, sabendo que aquilo ressonava também com sua própria história com Tony Stark. — O amor não é remédio para todas as feridas, .
encarou a mais velha, ainda perdida demais em seu próprio desterro para enxergar o quão similar era a situação das duas.
— Mas Tony vai ser lembrado para sempre — resmungou, enquanto tentava, sem sucesso, limpar o próprio rosto ao mesmo tempo em que novas lágrimas caíam.
— E Bucky também. Por todos que o conheceram… Por você. — Pepper tentou oferecer um sorriso de reafirmação, mesmo que estivesse revivendo seu próprio luto com aquela conversa.
olhava para Potts por debaixo de seus cílios encharcados e pesados, a imagem da elegante e bem resolvida viúva à sua frente. Não conseguia ver em Pepper qualquer semelhança com a própria situação, não achava possível que ela entendesse e, no fundo, chegava a se irritar pela mais velha insistir em tentar empatizar com ela agora.
— Você teve esse casamento perfeito, anos e anos de memórias incríveis pra se agarrar, seguiu em frente com facilidade porque seu marido morreu como herói, Pepper. O meu morreu por nada. — Torceu os lábios ao dizer, como se sentisse o gosto amargo de admitir que o havia perdido. — E eu estou começando a achar que sequer o conhecia tão bem quanto eu pensava. Eu não sei se o James que eu amava existiu mesmo ou foi só uma imagem criada na minha mente. Eu não sabia de verdade o que ele estava sentindo, eu não conhecia a história dele por completo, eu não sei quem ele era. Merda, eu não sei nem se ele realmente me amava a este ponto.
Potts escutou tudo, pressionando os lábios numa linha fina, balançando a cabeça e inspirando fundo após terminar. Ela engoliu em seco e pensou em como externar aquilo, já que era difícil para ela mesma falar sobre; sabia o que precisava abordar agora, mesmo que não conseguisse facilmente digerir o que estava prestes a dizer em voz alta:
— Tony nunca se machucou de propósito, mas ele era imprudente com a própria vida, sempre pulando na primeira oportunidade de… — Pepper suspirou, distanciando-se e olhando para as próprias mãos, mas obtendo a atenção de imediatamente. — Eu sempre soube que algum dia ele sairia por aquela porta e não voltaria mais. E eu tentei, de todas as formas, afastá-lo disso, desse senso de responsabilidade que ele carregava desde que se tornou o Homem de Ferro. — Ela esboçou um pequeno sorriso ao canto da boca, não conseguia dizer se amargurado ou orgulhoso. — E nessa eu o perdi três vezes. Uma no Afeganistão, uma quando bombardearam a casa de Malibu depois dele mesmo dar o endereço, e a última no momento em que ele me disse que havia resolvido a viagem no tempo, pedindo a minha permissão.
a encarava atentamente, em silêncio, absorvendo cada palavra da mais velha.
— Ele sempre esteve pronto para ir, sem hesitar. E eu nunca estive pronta para deixá-lo… Sempre me lembro de uma ocasião em que eu disse "Tony, você vai acabar se matando", e ele respondeu impassível: "eu não devia estar vivo, tem que ter um motivo.". — Potts suspirou, a voz de Tony ainda ecoava em sua mente. — Ele não era muito diferente do seu James, estava sempre um passo distante de mim, de pé contemplando o precipício, na beira de um penhasco desde o dia em que se tornou o Homem de Ferro… E eu sinto sua falta de formas inefáveis, mas sempre soube que aquele dia chegaria. Tentei impedir, prevenir de acontecer. E nós realmente construímos uma vida decente e boa em meio ao caos e miséria em que o mundo foi deixado após o Blip. Por cinco anos, nós fomos felizes, ou o mais perto de felizes que poderíamos ser. Aí, num dia ensolarado, os Avengers bateram àquela mesma porta. — Pepper olhou para a entrada da casa e indicou a esquadria com um movimento leve da cabeça. — E assim que o fizeram, Tony finalmente encontrou o motivo dele.
quase era transportada para dentro das memórias de Pepper, quanta dor aquela decisão de Tony pode ter lhe causado. E quando uma lágrima, por fim, rolou solitária pela bochecha esquerda da ruiva, sentiu o próprio peito apertar. Potts parecia lidar com tudo como uma profissional, ter todos os sentimentos sob controle, o luto lhe caía bem como um blazer preto Dior sob medida, e a dor parecia não a afetar. Essa era a primeira vez que cogitou que, sim, elas tinham muito em comum. E não, perder alguém nunca é fácil, seja qual for a circunstância.
— Mas o que eu poderia fazer? Proibi-lo de fazer o que ele precisava? — Pepper continuou, tomando um pouco de fôlego. — Não, não… Ele tinha essa sensação palpável de que a vida de qualquer um valia mais que a dele, eu sempre soube. Eu o amei da melhor forma que pude, ele amou a mim e a Morgan da melhor forma que pôde, também. Mas nem amá-lo "mil milhões" poderia tirar essa disposição para se jogar na frente do perigo como se ninguém fosse sentir falta dele. — Pepper suspirou, molhando os lábios e ainda olhando para as próprias mãos. — O que eu quero dizer é que Tony sempre agiu como suicida. Talvez não da mesma forma, mas eu sei exatamente como você se sente, , porque eu me senti assim também, por anos e anos até finalmente perdê-lo.
franziu as sobrancelhas e engoliu o próprio choro, sem saber muito como reagir.
— Pepper, eu não… — Sequer sabia o que dizer, então apenas tentou alcançar as mãos da ruiva com as próprias.
— Às vezes a vida só é injusta e turbulenta, às vezes eu penso que paz não é algo tangível para pessoas como os vingadores. — Pepper apenas se deu conta do que havia dito quando foi tarde. Aquilo incluía . As duas sabiam. — O que estou tentando dizer é que não é justo se cobrar de ser essa fonte inesgotável de força e coragem, ou achar que é seu dever fornecer isso para alguém. — Pepper suspirou uma vez mais, rezando para que suas palavras estivessem fazendo algum sentido para a outra, mesmo sem estar certa sequer do que dizia. Não há uma verdade universal para como lidar com esse tipo de coisa. — O que nos resta é tentar encontrar um espaço minimamente confortável para se viver no meio de toda essa turbulência… Você precisa achar uma forma de viver com isso, . Não foi sua culpa.
Dizer que aquelas palavras atravessaram os ouvidos de sem qualquer efeito seria longe da veracidade.
Não foi sua culpa.
Aquilo bateu dentro de seu peito junto ao coração, como se colidisse com suas costelas.
Não foi sua culpa.
Ela não acreditava nisso nem por um segundo.
Era, sim, sua culpa não ter sido fogo suficiente para aquecer o coração de James até que seu corpo se esquecesse de todas as vezes que fora posto em criogenia. Era, sim, sua culpa não ter pintado melhores sonhos nas paredes daquele apartamento para calarem o terror noturno dele. Era, sim, sua culpa nunca ter tido coragem e convicção para enxergar que o perigo que ela tanto temia vivia dentro de James.
E era, sim, sua culpa não ter ido para casa mais cedo aquele dia.
Mas ela sentaria nas trincheiras com ele, estava disposta a dar seu melhor, dar-lhe o silêncio confortável que só acontece quando duas pessoas se entendem, dar-lhe um lar quebrado naquela família de duas pessoas, que já era muito melhor do que a que ela teve.
E principalmente, havia dado a James sua palavra de que estaria com ele até o fim.
Este não é o fim.
Não ainda. Não enquanto ela pudesse encontrar meios para tentar, tentar e tentar até conseguir salvá-lo.
E a forma malsucedida com que estava lidando com tudo, aquela absoluta bagunça de emoções que se tornara, que findava em falhar em seu objetivo também era sua culpa.
Ela precisava, sim, parar de agir como uma criança gritando ferozmente suas emoções, sem saber lidar com elas. Estava na hora de se comportar como a agente de alto escalão que fora ensinada a ser.
Certo que é mais fácil dito que feito, mas tomava consciência de que devia começar a agir como Eclipse, não como : pensar estrategicamente, analisar fatos, entregar resultados.
Tudo o que fizera até agora fora uma vergonha: desperdiçar seus recursos (partículas PYM) num salto cego sem um plano, sequer enfrentar o Soldado Invernal e, por fim, fugir.
Ela precisava de um plano. Precisava de mais informações, precisava reaver os arquivos da SHIELD e SSR sobre o Soldado Invernal, aqueles mesmos que Coulson lhe entregara anos atrás, antes que partisse para Bucareste.
E sabia exatamente onde conseguir.


Continua...



Nota da autora: Sem nota.

Outras Fanfics:
» Blood Traitor – The Losing Game




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