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Última atualização: 05/03/2021

Capítulo Único

O pouso após a queda

A fachada de cor branca já podia ser vista em meio aos arbustos e o verde das folhas saudáveis fazia um contraste muito oposto do sutil para quem olhasse a primeira vez; os vidros do carro estavam tão limpos que a ausência da película escura proporcionava aquela visão nítida de cores. O vivo da natureza em combate com a opacidade do apagado da arquitetura triste. Era uma clínica para reabilitação de diversas áreas, mas mais parecia com um filme preto e branco de drama dos anos passados.
O pensamento indiferente que assolava a mente de Taehyung não o deixava sentir qualquer impacto com aquela vista, assim como não sentira nada ao sair de Seul e viajar de avião por algumas horas, para depois enfrentar aquela estrada perfeitamente pavimentada até a propriedade afastada de alguma cidade suíça que ele ao menos se lembrava o nome. Talvez se lhe perguntassem que dia era ou qualquer coisa sobre tempo e espaço, o homem de 30 anos não responderia nada, não só pela sua indiferença tão comum perante o que era alheio, mas também por não ter nenhuma noção sobre qualquer coisa.
Nem sempre foi assim. Houve a época que Kim Taehyung sorria ao ver um dia lindo como aquele, ensolarado e com o céu mais azul que o próprio azul. Este fora um tempo de muita fartura em sua vida pessoal e profissional, entretanto, já estava em um passado razoavelmente distante.
Houve esse ano em que todas as coisas passaram a ser questionadas, muitas pessoas estiveram em meio a provas de vida. O ano de 2020 foi algo para ser lembrado como o ano da aprendizagem; uma pandemia de um vírus letal assolou o mundo inteiro e causou de tudo um pouco – isso é uma forma simplória de dizer. E Kim Taehyung foi um dos "provados" nesse período.
Após perder a mãe e o pai por terem contraído o vírus, Taehyung caiu em um modo miserável da própria existência com a perda da namorada. De um grande ator e cantor coreano, com muito sucesso e importante para a história do país, ele passou a ser um problemático de 24 anos na época. Tamanho foi o trabalho de sua equipe para reparar todas as polêmicas causadas por seu comportamento e temperamento. Acabou por se tornar um usuário de cocaína, e até completar 30 anos, se ver perdido e ter tido um infarto por causa do uso da droga – isso foi o que lhe fez se sentir menos atormentado por tudo, até mesmo pela forma estúpida a qual estava se tratando.
Custou muito para que fosse convencido a buscar ajuda. Por sorte, teve ao seu lado pessoas que não queriam desistir de sua melhora – mesmo que o maior interesse fosse no uso de sua imagem e afins. Contudo, V – como era conhecido artisticamente – chegou a aceitar precisar de ajuda quando passou por um momento de pavor, ao ter um infarto poucos minutos após misturar bebida alcoólica com a droga. Sua agente, que teve sucesso em administrar a fortuna toda para que ele não entrasse em falência, pagou mais do que o necessário para a clínica a qual ele estava mais próximo a cada quilômetro percorrido com o carro.
O centro de tratamento para reabilitação intensiva Memorial Jung Hoseok ficava na Suíça e até a segunda página do livro de boas-vindas que Taehyung chegou a ler, ele soube que era comandado por uma médica chamada , especializada em cardiologia. Mas os cuidados dele seriam outros e, a princípio, sabia que teria uma ala inteira fechada só para que não houvesse problemas com sua privacidade sendo comentada por todo mundo mais do que já havia sido.
Quando o carro passou pelos portões enormes e fez a volta no grande círculo em frente ao que parecia ser a entrada da mansão – que mais parecia um castelo em meio àquelas montanhas –, Taehyung analisou cada centímetro da construção a partir daquela fonte enorme no meio do círculo de entrada. Parecia um outro mundo. Mas o ambiente natural sendo iluminado pelo Sol e com todo aquele ar de vida, ainda não era suficiente para que a sua indiferença fosse superada.
Com certeza não era. Com certeza acreditou que estava mesmo perdido. E olhando para aquele Sol que radiou em seu rosto quando desceu do carro estacionado, encarando a imensidão azul sob seu pequeno ser, ele suspirou.
Kim Taehyung não tinha mais esperanças em si e, mesmo indiferente, agradeceu por pelo menos terem escolhido um lugar agradável para que vivesse até o fim de sua existência.


— Erin, por favor, não me diga mais uma palavra sobre esse novo–
— Doutora , eu sei que você não gosta de tratamentos VIP para ninguém. Gosto de sua filosofia ética por isso. — Erin moveu-se na cadeira, ficando mais relaxada no móvel, e, sem dar espaços para a outra médica em sua frente, continuou: — Mas não se deixe levar apenas pelo o que é superficial. Este rapaz é jovem, tem apenas 30 anos.
— Você diz como se eu estivesse o negando... — bufou. — Entenda, Erin, eu fiz um juramento, mas em nenhum momento isso significou em minha vida que eu daria privilégios a uns por conta de movimentos financeiros. Ele está sendo admitido aqui por se tratar de uma vida precisando de cuidados, assim como todos. — respirou fundo. — E estou dando apenas um mês para que se adapte ao local. Esse pedido de isolamento não irá perdurar. Aqui não é uma colônia de férias.
Erin apenas soltou um suspiro, direcionando seu rosto para a janela. O dia estava realmente lindo lá fora, mal dava para reclamar de uma simples nuvem carregada, por mais que o clima naquela sala com a diretora e proprietária da clínica não fosse tão agradável. não queria ceder muito tempo de tratamento VIP para o novo paciente admitido, enquanto Erin gostaria que a situação fosse tratada com menos razão pelo lado da diretora.
Mas ela não podia fazer mais do que conversar com , que também era sua amiga, já que ali era apenas uma psiquiatra funcionária do lugar.
— Há tempos não temos um clima tão agradável e um céu tão aberto por aqui. — optou por mudar o assunto. — Um dia atípico eu diria. — respondeu enquanto digitava em seu laptop.
No momento seguinte, dois toques foram ouvidos na porta e liberou a entrada, para ver Harold entrar animado e com um sorriso bem aberto em seus lábios.
— O paciente de ouro chegou. — disse demonstrando sua animação. — Harold, por favor se contenha! — Erin riu. — Ele é mais um paciente comum, como nossa querida chefe diz...
desistiu de continuar a digitar, encerrando o trabalho por hora para se concentrar na situação.
— Eu espero que vocês dois não me deem trabalho, ouviu, senhor Harold? — tentou soar rígida com o enfermeiro enquanto se levantava.
— Você está apática assim porque não o viu pessoalmente ainda, senhorita .
Preferindo ignorar os comentários de seus dois amigos/funcionários, fez o caminho para fora de sua sala, indo em direção ao quarto onde o idol ficaria hospedado. Durante o percurso, sentiu seu celular vibrar algumas vezes e encarando o dia de céu e aberto pelas janelas extremamente limpas, se lembrou que faltava pouco para ver o filho naquelas férias de verão — então provavelmente estaria recebendo mensagens dele.
Cruzou o campo verde após sair do prédio administrativo, novamente admirando a paisagem, digna de pintura do Louvre, que tinha em volta de sua propriedade construída com muito carinho. "Com certeza Hoseok amaria esse lugar", logo pensou. Quando entrou no outro prédio, o de hospedagem de seus pacientes da reabilitação, pegou o corredor que levaria para a ala mais isolada. Logo começou a cavar em sua memória as notícias que havia visto sobre Kim Taehyung anos atrás. Nenhuma delas eram animadoras.
Se recordou do dia que foi anunciado em programação nacional a morte da namorada dele, algo muito trágico e triste para ser exposto midiaticamente. Ela estava na farmácia de manipulação próxima ao seu condomínio em Seul, sua antiga moradia. Naquele dia, estava disposta a se abrir com Jung Hoseok, seu então vizinho e posteriormente pai de seu filho, e havia passado para comprar florais para que ajudasse na ansiedade do mesmo. Enquanto estava na fila do caixa, viu pela televisão a notícia e se lembrava de ter sentido muita pena do rapaz pela escolha errada que tomou.
Nem sempre escolhemos o caminho doloroso por falta de conhecimento, avisos ou pura falta de vergonha, tudo possui um contexto – seja ele bom ou ruim.
Pensou em como o mundo girou, pois exatos oito anos após aquele dia – o qual ela passou a avaliar mais sobre o método de reabilitação equivocada existente mundo afora – Kim Taehyung estaria entrando em sua clínica, a fim da ajuda médica e psicológica que o Memorial Jung Hoseok tinha a oferecer. Riu fraco com o pensamento e quando parou em frente à porta do quarto 234, bateu e esperou ser atendida. O rosto pálido de Taehyung logo apareceu no vão de porta aberta e seu olhar indiferente ao mesmo demonstrou esforço para parecer surpreso pela visita. Ele não demonstrava expressão nenhuma e ela logo imaginou como seria se Hoseok encarasse aquele olhar.
Talvez ele ficaria com terror daquele momento, assim como ela esteve.
— Senhor Kim, boa tarde. — soou o mais formal possível, colocando as mãos nos bolsos de sua calça social. — Me chamo , sou a diretora do Memorial Jung Hoseok e vim lhe dar nossas boas-vindas.
Mesmo que ela sorrisse o mais informal possível, Taehyung só conseguia pensar em como gostaria de estar deitado em sua cama, com um "não perturbe" na porta, de preferência.
— Ah... Olá... — respondeu com sua voz grave, ansioso para retornar ao seu momento a sós.
E essa indiferença em Taehyung foi bem perceptível para , que logo pensou em uma ideia diferente para iniciar com um pé direito a estadia dele no memorial.
— E também quero saber se está pronto para a nossa primeira volta. — sorriu de forma empolgada para ele.
Taehyung sentiu todos os seus extremos clamarem por piedade naquele momento. O que era um momento de silêncio e a sós? Muito a se pedir?
— Eu estou um pouco cansado da viagem, se não se importa, podemos fazer isso amanhã?
O olhar dele dizia o contrário, claro que por baixo de toda aquela indiferença. E já havia adquirido uma certa experiência para compreender alguns comportamentos corporais, então sabia que aquilo não passava de uma desculpa para que ele pudesse voltar ao seu monótono silêncio e solidão. Até porque, de forma mais óbvia, ele havia viajado em primeira classe, de carro não foram tantas horas, e ainda não estava tão velho para sentir tanto assim o percurso.
Mas ela decidiu dar apenas esse primeiro resto de dia como brecha, principalmente ao ouvir a voz estridente de Erin no começo do corredor, na parte mais cheia — era o horário das visitas da equipe psiquiátrica para os outros pacientes.
— Escute, senhor Kim, eu não costumo ficar em cima de meus pacientes admitidos aqui, tenho uma equipe extremamente competente para isso. — sorriu novamente. — Mas eu posso te assegurar que iremos nos ver mais vezes. Esteja pronto todos os dias às oito horas em ponto, com chuva ou Sol.
Ele apenas assentiu positivamente, muito mais pela vontade de cessar logo a conversa do que estar mesmo de acordo. Novamente: para Taehyung, era um enorme tanto faz.
— E, mais uma vez, seja bem-vindo.
ouviu o "muito obrigado" sem entoação dele e lhe deu as costas. Sorriu pensando em como o tempo em que esteve ao lado de Hoseok a fez compreender mais sobre um lado humano da vida que ela poderia aplicar ao seu profissional. E mais uma vez sentiu falta do seu melhor amigo, namorado, marido, companheiro e confidente. Lembrando-se dele pegou o celular do bolso, ansiosa para ler o que havia recebido de Ian, seu filho, mas eram apenas emojis de felicidade por poder matar a saudade da mãe muito em breve.
Quando chegou no final do corredor, em direção à entrada, viu Erin vir do lado da porta, rindo e tirando a tiara de borboletas. , desta vez, sorriu para a amiga, como sempre entregue aos cuidados carinhosos de seus pacientes.
— Olha, eu digo para as pessoas que Andjela tem apenas nove anos e ninguém acredita. — Erin diz rindo.
— Deve ser por que ela tem quase setenta? — disse com uma careta. — A família dela realmente a esqueceu aqui, não?
— Mas o pagamento está em dia. — Erin logo se tocou de onde estava vindo e questionou: — E aí, qual o grau de dificuldade dali? — gesticulou com a cabeça demonstrando estar falando sobre Taehyung.
— Caminhada todas as manhãs. — respondeu enquanto olhava as mensagens em seu celular.
— Você realmente vai aplicar nele o método Hoseok para se livrar da celebridade assim tão rápido?
— Não, Erin! — guardou o celular, franzindo o cenho com a pergunta da amiga. — Eu só não quero um caso perdido em meu instituto, o nome do intensivo quer dizer uma coisa.
— Eu te conheço, . Se não é isso, então você viu naqueles olhos caídos um desafio e está querendo ganhar o troféu. — O sorriso de Erin era bem camuflado, mas podia ver.
— Argh! Você é a psiquiatra aqui. Estou apenas complementando seu trabalho, não é agradável ficar numa sala digitando em um computador diariamente.
— Que seja, só tenta não pegar pesado, ele já vai dar trabalho o suficiente. — a psiquiatra suspirou.
— É, deu para perceber. — e apenas revirou os olhos.


O corredor não era escuro e muito menos tinha uma vibe assustadora, assim como Ian pensava que era. Sua mãe nunca lhe deixava cruzar o campo que separava o prédio administrativo do de alojamento, mas naquele dia ele havia saído sorrateiramente do tédio que estava na sala dela, enquanto ela discutia algo no telefone com um tal de "Yoongi". Ele queria se divertir, estava de férias da escola e convencera seus avós de ir visitar a mãe na Suíça, então não tinha a menor chance de uma criança de sete anos ficar parado num metro quadrado só. Seriam poucos dias ali, qualquer minuto de diversão contava.
Com certeza Yohana receberia uma chamada de sua mãe por não ter prestado atenção quando ele fugiu do local em que estava com ela, apesar de o ideal ser que a babá não precisasse se preocupar 100% com o cuidado da criança, ela ainda era contratada para tal. Mas ele não estava se importando. Em sua cabeça infantil, o que deveria valer naquele momento era a diversão. Então prosseguiu com os passos cautelosos para a área que era mais reservada daquele prédio.
Ele entrou na primeira porta que estava aberta. Era um quarto arrumado e quase vazio pela falta de muitos móveis. Tinha um quadro pequeno numa mesinha que ficava embaixo da janela e a cama estava desarrumada. Mas o que lhe chamou a atenção foi o pequeno teclado próximo ao guarda-roupa. Era igual ao que tinha em sua casa e que um dia fora de seu pai, que não teve a felicidade de conhecer. Todos os detalhes eram exatamente parecidos e se lembrava de sua avó lhe dizer que aquela versão do instrumento era única e poucas versões existiam no mundo, coisa de no máximo sete.
"Seu pai amava música, as produzia muito bem e ganhou de presente de um amigo este teclado, único, de poucas réplicas", ela dizia.
Se aproximou devagar, soltando a bola no chão e levando seus dedos finos para as teclas. Ao mesmo tempo em que o som saiu do instrumento, a bola parou de quicar e uma voz grossa ecoou no ouvido de Ian, o assustando.
— Você não deveria estar aqui.
Olhou para trás e viu a figura de um homem alto, vestido de preto quase que por completo — se não fosse pela pulseira vermelha em seu pulso. Ele não parecia zangado por vê-lo ali, não parecia sentir nada, se Ian precisasse ser honesto.
— Me desculpa, eu vi esse teclado, igualzinho ao do meu pai, e... — disparou a falar, tomando um fôlego quando não encontrou a desculpa perfeita. — Me desculpe, senhor.
Taehyung pouco entendia inglês, mas compreendeu que ele lhe pedia desculpas. E ficou sem graça por não saber como responder ao garotinho que se sentia extremamente culpado à sua frente. Não estava zangado, ele deixou a porta do quarto aberta. E também não lhe ocorreu a mente porque uma criança daquele tamanho estava solta em um centro de reabilitação.
— Tudo... Tudo bem. — disse de forma básica, estendendo a bola em direção dele.
— Ah, você não fala inglês, fala? — Ian o perguntou, sorrindo feliz na tentativa de usar o coreano.
Taehyung ficou mais aliviado. Tinha algo naquela criança que o fazia se sentir menos indiferente. Talvez fosse a inocência de uma criança que o obrigava a não ser tão trágico em sua presença, os problemas que ele havia encontrado em sua vida eram resultados de suas escolhas da vida adulta.
— Sim. Digo, não. — suspirou. — Você está perdido? — de repente sentiu essa certa preocupação em saber como uma criança estava ali.
— Não. — Ian sorriu, se aproximou e pegou a bola de volta. — Aqui é minha segunda casa.
Essa fala pegou Taehyung de surpresa. O que aquela criança tinha para estar naquele lugar? Ao seu ver, o garotinho estava perfeitamente bem fisicamente. Ele não quis perguntar, mas vendo o brilho no olhar do menino após tocar no teclado, teve uma ideia completamente aleatória.
— Sabe tocar? — apontou para o instrumento. Ian ficou surpreso.
— Teclado? Mais ou menos. — o respondeu, dando de ombros. — Meus avós não me deixam usar o que tem lá em casa porque era do meu pai e na escola eu troquei música por futebol. — explicou, encarando a bola em suas mãos.
— Posso te ensinar, se quiser, mas não sou tão bom assim. — Taehyung coçou a nuca, tentando entender de onde estava vindo aquela disposição. Os olhos de Ian brilharam mais, assim como seu largo sorriso.
— Eu quero!
— Como você se chama? — perguntou finalmente adentrando o quarto, optou por deixar a porta aberta, caso Erin aparecesse parecendo um furacão, como sempre fazia quando estava atrás de algum paciente.
— Me chamo Ian e você? — Ian o respondeu colocando a bola no chão, de forma que ela ficasse parada no lugar.
— Sou Taehyung.
Então os dois se sentaram no pequeno branquinho e Taehyung começou a tocar o que sabia, para, em seguida, explicar nota por nota para o garoto.
Enquanto Ian prestava atenção em cada palavra e dedilhar de Taehyung, se perguntava por que seus avós evitavam tanto falar sobre o gosto de seu pai para música. Ele mesmo gostaria de saber mais, se fosse possível, mas nem sua mãe tinha tempo para isso. Quando se encontravam nos feriados e férias, Ian e ela faziam todo e qualquer tipo de programa que envolvesse alguma parte da propriedade do instituto. Para uma criança de sete anos, Ian Jung- era muito observador e gostava de apreciar detalhes.
Estava encarando cada movimento de Taehyung.
A atenção de Ian não durou muito, é claro, Taehyung poderia dizer que foi algo em torno de quase quarenta minutos — o que era até bom, devido a sua idade, e se fosse calcular que ele deveria ter de seis a oito anos, ainda era muito esperto. Quando percebeu que ele já não estava tão aficionado naquele momento, finalizou com uma pequena canção que havia composto a letra, ousando cantar para que apenas o garoto ouvisse.
— Bom, finalizamos. Por hoje. — disse sorrindo com os lábios fechados. — Se quiser podemos continuar amanhã e eu te ensino mais.
— Jura? — o respondeu com excitação. Taehyung apenas assentiu. — Eu quero sim!
— Você vai precisar de um caderno para anotações. Sabe escrever?
— Claro que sei, sou o mais inteligente da minha turma e vou fazer oito anos em breve! — Ian o respondeu animado. Mas logo murchou os ombros. — Eu preciso só ver sobre o caderno, mas acho que consigo... Erin deve ter um com certeza.
O sorriso de felicidade de Ian era enorme e mostrava sua janelinha entre os dois dentes frontais superiores. Taehyung se pegou achando aquilo uma graça, o observando levantar-se e pegar a bola.
— A tarde está linda, quer ir comigo na quadra? Posso te ensinar futebol, assim temos uma troca, Taehyung.
Era como se existisse sempre um diabinho e um anjinho nos ombros dele, lhe dizendo o que fazer. Normalmente o diabinho o forçava a acreditar no "não" para tudo, enquanto o anjinho era sempre positivo e, se tivesse tamanho e realidade suficiente, o chutaria para fora da cama e daquela monotonia toda. Porém, quando Ian o fez aquele convite, Taehyung apenas deu de ombros e respondeu um "sim". Não tão animado, mas já era um começo, uma resposta atípica.


suspirou mais uma vez quando Yohana voltou para sua sala sozinha. A parte que confiava na intelectualidade de seu filho de sete anos a fizera não entrar em surto nenhum quando notou a ausência dele e recebeu um "não sei para onde foi" da babá — até porque era uma questão de pouco tempo até receber resposta das câmeras de segurança. E se sentiu uma péssima mãe, claro. Quem deixava uma criança solta em um lugar como aquele, cheio de pessoas com todo e qualquer problema, incluindo os mais sórdidos? Inclusive, quem levava uma criança para passar as férias naquele lugar?
Novamente a voz de sua ex-sogra a julgando se fez presente em sua memória. Mas logo foi varrida pelo tom culpado da babá.
— Me desculpa, doutora , eu realmente não o vi sair daqui e–
— Yohana, não diga mais nada, por favor. — suspirou dando a volta na mesa. — A propriedade é toda fechada e possui extrema segurança, Ian deve estar em algum canto brincando com a bola. Só precisamos ter paciência de encontrar.
"Paciência", algo que ela precisava e muito quando estava com o filho. Era uma vergonha dizer isso em voz alta, mas era real. Ian podia ser muito esperto e por sua intelectualidade avançada para uma criança de sua idade, ele era bem sorrateiro. Ela precisava ser pacienciosa para não condená-lo por ser uma criança, principalmente por não se sentir no menor direito de tirar a diversão dele quando tinham pouco tempo juntos.
Suspirou novamente ao sair da sala e caminhou a passos largos para as escadas. Quando desceu, viu o grupo de seguranças entrar com uma Erin sorridente com um tablet em mãos.
— Se eu te contar, você não vai acreditar. — ouviu da amiga enquanto descia os últimos degraus.
— O quê? — questionou, recebendo o aparelho com um vídeo pausado.
— É da rede de segurança. Ian entra... — Erin dá o play. — E depois de meia hora sai com ele.
Custou um pouco para entender e digerir o que estava sob seus olhos. No vídeo era nítido a entrada de Ian no prédio dois, o alojamento, carregando sua bola embaixo do braço e seguindo para o corredor reservado. Em seguida, coisa de meia hora depois, ele saiu com Kim Taehyung.
— Para onde eles foram? — perguntou preocupada.
— Aqui ó. — Erin esticou o braço e passou o vídeo, mostrando Taehyung e Ian na quadra de futebol. — Isso é de agora, ao vivo.
O sorriso de Erin era de satisfação, o de de confusão. Estava tentando tirar palavras de Kim Taehyung desde o dia que ele chegou no Memorial, mas ele nada dizia durante os quarenta minutos de caminhada que tinham regularmente a quase quinze dias. Ela falava, perguntava, e ele apenas respondia com palavras monossilábicas ou nem se importava em responder. Então, ver Ian rindo e parecendo ter um diálogo com o rapaz enquanto estavam juntos era confuso para ela, mas, de certa, forma prazeroso.
— Eu acho que você e Elijah fazem uma boa dupla e estamos confirmando isso agora — disse para Erin, a entregando o tablet. — E vocês dois querendo me convencer de que ele era um caso perdido.
— Não, amiga, eu já estava me convencendo de que admitimos um caso perdido. — a respondeu, demonstrando sua incredulidade. — Preciso ir mostrar isso para Elijah, ele estava me dizendo hoje no almoço que essas três sessões que já teve com Taehyung foram o suficiente para lhe fazer questionar o próprio diploma. — fez uma pausa. — Se bem que ao ver que seu filho conseguiu tirar o homem da toca e, aparentemente, manter uma conversa, ele vai mesmo se questionar.
— Erin! — evitou rir com o comentário cheio de humor da amiga. — Vai lá, use essas imagens para descobrir com Elijah uma alternativa para o tratamento dele.
A psiquiatra apenas concordou e se afastou, indo para o lado contrário de , que seguiu para fora. Caminhou para longe dos prédios e depois de alguns minutos estava na área de lazer da propriedade. Ficou observando de longe como Taehyung se comportava de forma menos rígida ao lado de Ian, não parecendo estar com uma bigorna amarrada em cada perna. Ele parecia mais leve, não menos indiferente.
E Ian sorria, ria, celebrava quando se dava bem em algum movimento, deixando o mais velho a ver navios. se sentiu apaixonada e encantada, estava há tanto tempo sem ver o filho que teve vontade de deitar no trilho do trem para ser torturada só de lembrar que não lhe deu atenção suficiente. Yoongi e suas reclamações sobre o casamento com Maya poderiam esperar, ela precisava colocar Ian como prioridade. Mesmo que seu rosto tivesse todos os traços de Hoseok. Mesmo que ele risse como Hoseok. Mesmo que sua voz tivesse o mesmo timbre da de Hoseok. Mesmo que ele fosse uma cópia exata do pai.
Anos haviam se passado e ela precisava se acostumar com a ausência de um e a presença do outro. Havia prometido a Hobi que cuidaria do filho deles e, sobretudo, de si. Sentia que aos poucos falhava nos dois.
Se aproximou e quando saiu de detrás dos arbustos, Ian sorriu mais animado ao ver a mãe se aproximar. Num ato pouco comum para quem a conhecesse dali, tirou os saltos ao entrar na quadra.
— Mãe? — Ian a questionou.
— Posso me juntar a vocês? — o questionou, trocando um rápido olhar com Taehyung, que pareceu não se recolher ao jeito que ela já estava acostumada a vê-lo, mas um pouco confuso.
— Pode... Mas você joga? — o garoto se lembrava de que o gosto por futebol veio muito por parte de sua mãe, mas não de que ela sabia jogar.
— E você acha que seu gostar de futebol veio de onde, criança? — respondeu com as mãos na cintura, Ian apenas deu de ombros.
— Gostar é diferente de saber a prática, mamãe.
— Está me desafiando, criança? — o encarou com os olhos semicerrados e ele riu fraco. — Manda logo essa bola para cá.
— Tá. — se deu por vencido e a obedeceu, olhando para Taehyung que de repente ficou sério e quieto. — Tae, essa é minha mãe, . Mãe, esse é o Tae, meu novo amigo.
Taehyung e se encararam. Foram segundos importantes para ela ler o que aqueles olhos traziam de novidade e o tom menos pesado que ele carregava a encheu de uma certa esperança. Ian não sabia metade do que estava acontecendo e muito menos o quanto havia ajudado, independente de como. O sorriso de lábios fechados de Taehyung, que agora tinha um apelido, "Tae", foi suficiente para ela fazer tal observação.
Eles continuaram a brincadeira e muitos risos de Ian ecoaram pelo ar livre. não tinha nenhum jeito para jogar em uma linha no futebol, para defender o gol ela era até melhor, mas seria importante que se contivesse apenas à medicina. O filho levou muito tempo para cansar e Taehyung, ao mesmo tempo que participava do momento com os dois, observava aquilo com uma certa apreciação. Deveria ser honesto e confessar para si, mesmo que muito a contragosto, que estava gostando.
Gostava da presença inocente de Ian, queria lhe dizer que o pai falecido teria muito orgulho e prazer de estar com o filho. Queria parabenizar pela educação da criança. Se pudesse, pediria encarecidamente a que preservasse o máximo da inocência de Ian, que não deixasse ele descobrir a maldade do mundo e se aventurasse nela, assim como ele havia feito consigo. Se pudesse, ele mesmo cuidaria para que Ian não fosse atingido por isso.
Mas se conteve no próprio lugar. Pelo o que havia entendido das milhares de palavras que Ian tinha lhe disparado, morava com os avós paternos porque a mãe trabalhava muito e morava em tempo integral no Memorial, não sendo adequado para uma criança viver. Pensou que se a vida fosse tão boa para preservar a inocência de Ian, os avós e teriam uma boa convivência, não a culpando por suas escolhas. Até porque o que mais há neste mundo, pela sua percepção, são pessoas infelizes com as escolhas pessoais alheias. O que ele sabia muito bem poder ser um empurrão para o próprio martírio.
Quando a tarde começou a cair, estava com o filho em suas costas, pronta para pegar o caminho de volta para o centro do Memorial e ir para a sua casa — dentro da propriedade, porém bem afastada. Ian não queria se despedir de Tae, realmente tinha gostado de sua companhia e então uma ideia lhe ocorreu.
— Mãe, Tae pode jantar com a gente hoje? Eu quero mostrar meu quarto para ele. — sorriu, mesmo que a mãe não pudesse ver. — Ele não acredita que tenho a coleção toda de Star Wars.
— Eu–
— Claro, filho. — respondeu, sem pensar muito bem no lado ético, cortando Tae. Novamente pensou que fosse lá o que Ian estava fazendo, dando resultado ela seguiria na mesma linha. — Você gosta de pizza, Taehyung? — ousou perguntar diretamente.
— Gosto sim, doutora.
— Pode me chamar somente de . — sorriu para ele desta vez.
— E espero que você goste de pizza de micro-ondas, Tae, minha mãe é péssima cozinhando!
— Ei, garoto!


Uma criança possui a visão da vida sem o peso sórdido dela. Seu coração acelera com as alegrias que sente, podendo ser pelas coisas mais simples e julgadas bobas pela mente adulta. Ser criança é não ter sido pego pelas características reais da vida, estas que tiram toda a sua inocência. Ter a fluência disso fez com que Taehyung observasse Ian cada segundo desde que chegaram à casa em que morava ali naquela mesma propriedade, porém bem afastada e reservada.
A criança parecia ter entrado em outro universo com a presença do homem que havia conhecido naquele dia, no qual dividiram toda a tarde juntos. observou cada movimento, cada segundo e palavras trocadas entre ambos. Ian estava sendo como um azul bem radiante para Taehyung e quando o mesmo sorriu ao ouvir o garoto falar apaixonadamente sobre o pai que não tivera a chance de conhecer, sentiu o peso de seus ombros escorregar um degrau a menos. Estava se sentindo mais leve como a muito não se sentia.
Kim Taehyung não seria um caso perdido.
Ian não quis ir embora. Ele estava de férias, tinha a disposição de trinta dias corridos sem precisar ir para a escola, mas passar poucos dias com a mãe era um combinado com os pais de Hoseok — que cuidavam dele longe daquele ambiente perigoso para sua infância. ia para Seul quando podia e mesmo que a relação com os ex-sogros fosse bem mais ou menos, eles não impediam a mãe de ver ou estar com o filho. No fundo, eles sabiam que não podiam punir a mulher por terem perdido o filho mais novo ainda jovem e para uma doença tão cruel. Pelo contrário, a senhora Jung gostava de pensar que Ian fora lhe dado em troca daquilo que foi tirado e não tinha uma vez que não se sentia grata por Hoseok ter conhecido .
De uma forma ou de outra, o casal que formaram rendeu coisas boas, apesar dos apesares.
E Ian mais uma vez estava ali mostrando para sua mãe que sua avó materna tinha um ponto muito forte sobre dizer que o garoto era seu filho encarnado. Além dos traços físicos, o jeito único comandado pela inocência da sua infância estava misturado com a fidelidade aos sorrisos de Hoseok. Não importava como, quando ou o tanto de tempo passado, Ian seria sempre o retrato exato do que seu pai queria que a vida fosse para todos. não queria perder mais nenhum minuto disso.
— Eu vou convencer vovó a me deixar tocar o teclado e piano do papai. Agora que Tae me ensinou algumas notas, eu posso provar que também levo jeito para a música, mãe.
A voz animada de Ian se fez presente na mesa quando ele se sentou eufórico na cadeira em seu lugar separado por sua mãe. havia os chamado para comerem a pizza que ela mesma tinha tido o simples trabalho de colocar no forno — e pela atenção em não fazer feio na frente de Taehyung e queimar a pizza nos poucos minutos que era recomendado estar assando. Ele, como um fato, chegou quieto na área de jantar. Ela pôde ouvir a conversa dos dois sobre super-heróis, música e futebol enquanto preparava tudo.
— Eu tenho certeza de que ela vai apoiar você, Ian. — Para a surpresa de , foi Taehyung quem disse.
— Se ela me apoiar da mesma forma que apoia quando o advogado tenta tirar mais dinheiro de mamãe... Bom, eu vou estar bem então!
— Ian?! — o olha cortante, por sua resposta sem preceitos. — Isso não é assunto para uma criança de sua idade. E muito menos para comentar com pessoas que você acabou de conhecer, filho.
— Desculpa, mamãe. — respondeu triste.
— Tudo bem, só não repita.
sorriu para Ian e se sentou em sua cadeira ao lado da dele na mesa quadrada. Taehyung a seguiu no movimento, sentando-se no outro lado. Algo meio incomum para as últimas horas aconteceu, a criança não disse mais nada e os três comeram em silêncio. Quando Ian terminou sua parte, despediu-se de Taehyung e foi direto para o quarto, preparar-se para dormir. pediu licença para o homem e foi até o filho, teria que ajudar ele a escovar os dentes para deitar.
— Eu não quero deitar agora, minha barriga está cheia.
— Mas você não vai deitar mesmo, não faria isso com você, criança. — respondeu à reclamação do mais novo com uma careta enquanto o ajudava a vestir o pijama.
— É, verdade. — Ele riu com a própria confusão no comentário. — Mas eu quero descer conversar mais com Taehyung, ele é muito legal.
— Agora é hora de você assistir um pouco aqui no seu quarto e depois dormir. Amanhã poderá ver Taehyung de novo se quiser.
— Tá bom, mãe.
Não parecendo tão derrotado, Ian abraçou a mãe e seguiu para seu sofá no canto que ficava para assistir televisão. saiu do quarto e deixou a porta um pouco encostada, não havia mais problemas em deixar Ian para dormir sozinho, ele o fazia muito bem. Quando chegou na parte de baixo, não encontrou Taehyung onde o havia deixado e sentiu um leve desespero, sua casa ficava para uma saída da propriedade que pouco havia segurança necessária para travar qualquer paciente que desejasse fugir. Andou pelo jardim e não o encontrou; sala, escritório e nada, até que decidiu ir para a cozinha ligar para a segurança de seu interfone.
— Eu não sabia onde colocar as louças lavadas, então deixei elas no escorredor de pratos.
fechou os olhos por um instante, sentindo o ar voltar devagar para seu pulmão, quando o encontrou encostado na pia limpa e com louças escorrendo a água no suporte próprio para isso.
— Não tem problema. Você não precisava lavar a louça, eu sempre coloco na máquina — apontou a lava louças um pouco próxima do corpo do rapaz. — Mas obrigada.
— Sem problemas. Era o mínimo que poderia fazer para te ajudar.
— Você é a visita, Taehyung. — ela ri e, em um estalo, decide prolongar o tempo dele ali. — Tem sorvete, quer?
— Eu acho que já estou um tempinho fora do meu lugar. — responde se afastando e quando o seu olhar cruza com o incisivo de , muda de ideia. — Mas acho que não tem como negar um sorvete, não é?
— Eu nunca consigo.
aponta para o banco na ilha da cozinha que fica para alimentações mais rápidas e faz o caminho para sua geladeira. Taehyung se senta e observa a forma tranquila como a doutora se move, imaginando como deve ser complicado para ela estar vivendo o cenário que vivia.
Mas, afinal, ele não sabia muito sobre a mulher, apenas o mínimo que Ian havia soltado nas conversas com sua inocência infantil.
— Aqui está, tem morango, chocolate e pistache. Qual? — a voz dela lhe trouxe de volta à superfície e ele sorriu apontando o pote de pistache. — Meu favorito!
Ela lhe serviu e alguns minutos em silêncio sentados de frente um para o outro, com uma "ilha" de separação, foram responsáveis por atiçar a mente de Kim Taehyung a trabalhar na curiosidade de entender mais sobre ela. Durante as caminhadas que haviam feito desde que chegara ao Memorial ele não havia sido muito simpático e quase nada fora dito por ambos, embora tivesse tentado o máximo.
— Ian não mora com você? — perguntou para iniciar, mesmo que a resposta fosse retórica.
— Não. — o encarou um pouco receosa de passar para esse assunto, mas aproveitou o momento para não deixar que Taehyung retornasse casas em seu dia tão produtivo. — Pouco tempo depois de o pai dele morrer, eu decidi montar essa clínica. Sempre tive vontade de refazer o conceito de reabilitação. Então quando Ian tinha um ano, foi quando tudo ficou pronto e eu vim para cá. Ele ficou comigo por cerca de dois anos, mas aqui não é um ambiente favorável à infância. — suspirou. — Os pais de Jung cuidam dele, temos guarda compartilhada, ele vem para cá quando quer e obrigatoriamente nas férias da escola. — completou.
Não seria correto no conceito de Taehyung dizer que ela havia aberto mão do próprio filho pelo trabalho, era injusto. Mas ele podia presumir que ela ouvia muito isso e que muitos a julgavam por trás.
— É comum fazermos escolhas que não favorecem sempre todos os lados. — disse automaticamente, anotando mentalmente que aqui era um momento para se conter.
— Se todos pensassem assim, Ian não passaria uma infância vendo os avós o castigarem com assuntos adultos demais para a idade dele. — foi sincera.
— O que eu não compreendo, se, no caso deles, eles possuem esse problema com você, por que envolver uma criança?
— É aí onde mora a questão prior da vida: em um momento ou outro qualquer discurso cai por terra.
tinha razão, Taehyung pensou. Infelizmente ela estava certa sobre isso.


Parecia que a disposição daquele dia estava diferente em seu sistema. Taehyung mal reconheceu a si quando acordou antes do despertador e agilizou o tempo no banho, descendo para o café da manhã com os outros pacientes. Poderia dizer que todos ali também estavam tão confusos quanto ele. Era a primeira vez que não tomava café da manhã em seu quarto sozinho. Claro que gostaria de dividir a mesa com Ian lhe falando incansavelmente sobre os diversos assuntos que sempre vinham — e ele não fazia ideia como aquele garoto tinha tanto assunto.
Já fazia uma semana que compartilhava sua rotina com o filho da doutora , e de uma forma agradável. Taehyung sentia que o tempo ali, naquele país distante do seu, em uma propriedade escondida de uma civilização mais completa, estava valendo a pena. Até as sessões com Elijah haviam se tornado mais leves e os remédios que Erin o indicara pareciam surtir um efeito menos pesado. Kim Taehyung se sentia menos imerso à própria indiferença e mesmo que passasse mal pelos desconfortos causados por seu fígado prejudicado, ele sentia a vontade contrária de estar quieto no próprio canto.
Depois de seu café da manhã, seguiu para a parte de atendimento médico para fazer o seu check up total. Diversos exames foram colhidos e quando estava se sentindo um pouco entediado, apareceu sorridente, desejando um bom-dia para todos seus funcionários de maneira geral. Ela caminhou até ele que estava terminando de amarrar o próprio tênis, com as mãos na cintura, disse:
— Bom dia, Taehyung. Hoje Ian tem um compromisso com o sono dele, eu realmente não sei o que vocês fizeram ontem naquela quadra que deixou o garoto cansado. — ela riu, sendo mais descontraída que da primeira vez que haviam se visto. — Ele não quis sair da cama cedo, então a sua caminhada esta manhã será comigo.
— Parece bom para mim, doutora.
Algumas observações podem ser feitas deste momento, enquanto caminharam em silêncio — desta vez por um caminho diferente do qual o levou nos primeiros dias e de que Ian ia com ele. não parou de pensar um segundo sequer na forma como Taehyung estava diferente a cada dia, porque quando ele chegou, ela só conseguia pensar em como faria para resgatar aquele ser perdido. Não duvidava de sua equipe, mas sabia que uma moeda é composta por dois lados, e situações que envolvem mais de uma pessoa sempre possuem diversos. E era esse o caso. Não importava os diversos diplomas e horas de trabalho se Taehyung não quisesse ser salvo de sua própria armadilha depressiva.
E que alívio ela sentia diariamente, muito pela parte ética e profissional, mas também havia a parcela emocional. Seu filho havia se apegado ao que o homem era para ele, um amigo diferente dos quais estava acostumado e algo mais próximo do que teria se o pai ainda fosse vivo. E ela, bom, havia se apegado ao que via do filho com Taehyung e, consequentemente, ao que via de Taehyung com Ian. Era a situação que ela poderia chamar de uma moeda.
Taehyung sentia o apego crescente pela companhia de Ian, mas também gostava do adendo que tinha o nome de . Era uma amizade silenciosa que se atava em um laço contínuo, ele podia sentir isso, caso contrário, não se sentiria à vontade com a médica. E sentia ser algo recíproco, uma vez que ela demonstrava algo por deixar que a amizade com seu filho crescesse e que caminhasse com ele, sem o fazer com nenhum outro paciente, compartilhando o pouco de coisas pessoais com ele — de forma básica, colocando um lado ético em prova. Era silenciosa por ser uma crescente de duas pessoas que podiam se comunicar pelo olhar.
Talvez tivesse passado por algo parecido com o dele e por isso o compreendia facilmente, não desistindo em nenhum momento de lhe trazer para um azul no meio daquele monte cinza. E por isso ele sentia essa comunicação apenas com o visual. O que lhe agraciava.
Quando percebeu um certo incômodo pulmonar, notou que havia andado muito.
— Está me levando para uma seita ou algo do tipo? — Taehyung perguntou, desviando de um galho no estreito caminho daquela trilha, erguendo o rosto para encarar as costas de a sua frente.
— Algo do tipo. — o respondeu, tentando entoar uma seriedade para parecer natural. — Mas fica tranquilo, o sangue que irão tirar não vai drenar o seu corpo todo.
— Ah e para que a seita então? — resolveu entrar na brincadeira.
parou abruptamente quando o caminho demarcado no chão acabou. Virou-se para Taehyung com a mão em um galho grosso e suspenso em sua frente.
— Eu sou uma bruxa de 1700 e uma vez no ano preciso de sangue inocente de homens da sua idade para manter minha cútis jovial.
— Agora faz muito sentido, doutora . — a respondeu com um sorriso mínimo traçando seus lábios fechados.
não disse nada, apenas empurrou o galho para o lado oposto, mostrando a Taehyung o local ao qual haviam chegado. Era o topo do que parecia ser uma montanha, ele julgou. Conforme caminhou pelo espaço deixado por , percebeu a grandeza do lugar. Estavam em um dos pontos altos do morro que tinha na parte de trás da propriedade. A visão que tinha dali era de tirar o fôlego.
Podia observar a imensidão no horizonte composto por montanhas. Seriam quilômetros de um extremo natural, com muitas árvores e, olhando por aquele ângulo e distância, uma imensidão de grama que mais parecia com um tapete felpudo bem cuidado. Era lindo e esbanjava uma calmaria extensa. Não era como ele se sentia por dentro, mas estava no caminho. Sentia que estava.
— Eu tinha trinta anos quando 2020 aconteceu. — iniciou, sentando-se na grama fofa, sendo seguida por Taehyung, que se sentou ao seu lado. — Trabalhava dia e noite no centro cirúrgico do hospital mais movimentado de Seul e aquilo tudo foi como uma última pá em cima da montanha de estragos que já tinha. — completou, sentindo a atenção toda de Tae em si. — Hoseok era meu vizinho. A gente sempre se esbarrava no elevador, ele produzia música e vez ou outra eu conseguia ouvir algo vindo de sua janela. Ele sabia remediar as reuniões de condomínio muito bem e era o típico bom companheiro.
— Ian me disse muito sobre isso. — a respondeu, inteirado do assunto. — Por mais que não tenha o conhecido, ele sente bem o que você emana sobre o pai.
— Hobi passava muito tempo falando com minha barriga. A energia dele era tão grande. — sorriu nostálgica. — Não tinha como evitar Jung Hoseok e sua felicidade incisivamente contagiante. Ele me fez compreender muito sobre muitas coisas, deixar de lado várias outras que só complicam nossa existência pessoal e — o olhou nos olhos, prendendo-se naquela imensidão que pela primeira vez parecia lhe dizer muito. — eu tive pouquíssimo tempo com ele. Mas eu sei que ele planejou o Ian para eu não ficar sozinha.
— Ele morreu de...
— Um tumor raro. A primeira intervenção havia sido feita com sucesso, mas pouco tempo depois retornou e não tinha muito o que fazer com o câncer. Eu estava grávida de seis meses quando ele se foi. — A voz de era funda, sem vida e conforme ia compartilhando essa parte de sua história, Taehyung a sentia ir se distanciando daquele olhar neutro e sólido.
— Eu sei como você se sente. E entendo o que sentia antes de Hoseok acontecer.
A troca de olhar não durou por muito. Ambos, em sincronia, voltaram a admirar a paisagem em seu campo de visão. Em um silêncio que muito dizia.
Taehyung lembrava de ter ouvido por aí uma explicação mais simbólica sobre cores. E permitiu se imaginar em meio aos sentimentos que cada cor representa, olhando para aquela imensidão verde, misturada com o azul do céu — o mesmo que sempre brilhava com o Sol ardente desde que chegara ali. Olhando o verde, sentia aquela esperança e a liberdade que lhe entrava por todos os seus instintos; o amarelo forte do Sol o fazia sentir a alegria, animação e calor da presença de Ian em seus dias. Enquanto a tranquilidade, serenidade e harmonia do azul em cima de si era voltado para o que sentia de .
E essa bandeira colorida contrastava com a busca de em colocar acima dos dois o mais puro e original tom de lilás. A atmosfera serena e intimista que ela sentia sendo proporcionada pelos momentos que estiveram juntos entregava aquela visão elevada de uma espiritualidade pessoal. gostava de como as coisas aconteciam da forma como deveriam acontecer, independente de todos os porquês.
— Então me diz, . Você superou? — Taehyung foi o primeiro a dizer. Ele direcionou o olhar para a doutora pela primeira vez depois do silêncio, quando sentiu o Sol bater firme em sua pele, naquele morro. Seu coração bateu forte, Taehyung sentiu cada centímetro de seu corpo vibrar conforme deixava ser invadido por toda aquela atmosfera sendo compartilhada e sem arrependimentos esperou pela resposta.
Por outro lado, o lado dela, cada pelo e centímetro de pele estava arrepiado. O frio dentro da barriga era como se um turbilhão de borboletas estivesse naquele momento dançando em free style. passou tantos anos de sua vida evitando aquele sentimento, evitando todo e qualquer vínculo, para de repente colocar em prova sua ética profissional porque Ian havia encontrado em um paciente seu o caminho para ser o céu lilás. Assim como um dia ela tivera a sombra azul de Hobi.
E para ela poder observar e viver aquela imensidão lilás, era importante que ajustasse em si a resposta para a pergunta de Taehyung. E não, ela não havia superado.
— Não. — sua resposta foi curta, na proporção oposta das lágrimas que em prontidão se fizeram rolar por seu rosto sempre gélido.
Doía, como ela nunca pensou que seria quando deixasse aquele mar de emoções correr por suas extremidades. O coração estava sendo comprimido pela dor incessante e que apenas despontava. sabia que seria preciso muito para superar aquele sentimento de perda e que quando se permitisse, o que estava sentindo era apenas o começo. E ao sentir os braços de Taehyung em volta dos seus ombros, lhe puxando para seu colo, permitiu-se ser abraçada por aquele lilás.
E que maravilhoso seria se Kim Taehyung soubesse que o azul dela era uma fraude e que gostaria de poder reviver aquilo, ser aquilo, como Hobi um dia fora para ela.




Fim.



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