Capítulo 1 — So Far Away
“How do I live without the ones I love?
Time still burn the pages of the book is burned
Place and time always on my mind
I have so much to say, but you’re so far away”
— So Far Away, Avenged Sevenfold
Um dia você está vivendo o seu sonho e no outro dia... Nada.
Mesmo que a nossa única certeza seja a morte. Mesmo que tudo o que vem antes e depois dela seja a mais pura e irrevogável incerteza. Insistimos em passar todo o nosso escasso e inegociável tempo lutando contra a única coisa da qual não há como fugir. Em vão.
Seria trágico se não fosse cômico.
não foi capaz de segurar o sorriso, muito menos o som esganiçado que escapou de sua garganta. Não quando olhou para Gus.
Os olhos fechados. O cabelo milimetricamente penteado. O terno branco, perfeitamente limpo e ajustado ao corpo. A superfície acolchoada delimitada por paredes de madeira. A pele desprovida de cor.
Ele estava ridículo.
Ridiculamente morto.
Gus teria achado aquilo hilário.
Pensar nisso só fez gargalhar ainda mais à medida que o peito arfava e o rosto esquentava perdido na sequência de acontecimentos que se sucederam durante a cerimônia.
Não era necessário muito mais do que isso para criar um escândalo.
não foi à recepção na casa de Train. Não se deu o trabalho de prestar seus sentimentos à família. Não havia restado nenhum. Muito pelo contrário, após o velório, o cantor foi direto para sua mansão em Beverly Hills, onde sua própria recepção já tomava forma. Viva, como August Train foi um dia.
Naquela festa não havia luto. Não havia lágrimas ou arrependimentos ou até mesmo saudade. Havia apenas a mais pura celebração da vida de Gus. dedicou a noite a tudo o que fazia August feliz. Não precisou pedir emprestada a camisa do Metallica favorita do amigo. Bebeu as garrafas de vinho mais velhas da adega que estavam guardando para uma ocasião especial. Misturou álcool, maconha, êxtase, cocaína sem se preocupar com a ressaca ou a rebordose do dia seguinte. Fez uma tatuagem à meia luz com um profissional duvidoso com uma maleta de materiais mais duvidosos ainda. Quebrou duas ou três peças da mobília com um taco de baseball no calor do momento. Trocou socos com um desconhecido por motivo nenhum. Comeu uma aspirante à modelo e uma garota de programa sem se importar com o que sua namorada iria pensar. E foi embora antes de a festa acabar.
Tudo bem, talvez tivesse feito um esforço para fazer um escândalo.
Depois disso, não demorou para que as matérias relacionando o cantor à morte do guitarrista estampassem todos os veículos de comunicação. Teria influenciado a overdose de Gus Train? Não, claro que não. Eles eram amigos desde sempre, formaram a banda juntos, conquistaram o mundo juntos. Mas por quê não deu nenhum pronunciamento desde então?
Onde estava ?
A resposta só apareceu algumas semanas depois, quando o cantor da banda Disclaimer foi encontrado em coma alcoólico em um pub qualquer nos arredores de Milwaukee, com nada além das roupas do corpo, um cartão de crédito ilimitado, cinco pílulas de aspirina, duas gramas de haxixe e um olho roxo. Na verdade, já era uma conquista que ele não estivesse pelado por aí.
passou duas semanas em recuperação no melhor hospital de Milwaukee fingindo que nada havia acontecido. Não falou nada sobre o tempo em que esteve fora. Não tocou uma única vez no nome de Gus. Se era assim que ele queria, então era assim que seria.
Na manhã em que recebeu alta do hospital, o vocalista da banda Disclaimer precisou esconder o olho roxo atrás de um par de óculos escuros e usar roupas de moletom simples ao se encaminhar à delegacia mais próxima, para não chamar muita atenção. O que não adiantava de muita coisa já que a companhia de Doc nunca poderia passar despercebida, principalmente com os dois guarda-costas à tiracolo. Quando estava na sala do oficial encarregado, sentado ao lado do seu agente, se limitou a acenar com a cabeça durante a quase uma hora que o policial dedicou a uma reprimenda não tão rigorosa assim sobre as infrações e denúncias que o levaram a ser encontrado quando estava desaparecido. Doc respondeu todas as perguntas em nome do seu cliente e pagou a fiança do vocalista em seu cartão sem se importar com a quantidade de zeros da fatura. não deu a mínima. Se dependesse dele teria até recusado o pedido de autógrafo do policial, mas o olhar lançado pelo agente foi o suficiente para que cedesse. Poderia usar esse favor como moeda de troca mais tarde.
Logo deixaram a delegacia para trás e tomaram o seu rumo para o Aeroporto de Milwaukee, onde compraram passagens para o primeiro voo disponível com destino à Los Angeles. O cantor agradeceu mentalmente pela personalidade introvertida do agente durante o trajeto de cerca de cinco horas, que poderiam facilmente ser dias. não queria falar e Doc certamente não queria ouvir. Era fácil lidar com ele. Não eram necessariamente amigos, mas também não deixavam de ser. Doc não perdia o seu tempo se preocupando com o que o vocalista fazia ou deixava de fazer, contanto que estivesse vivo, fizesse dinheiro e que só se envolvesse em problemas passiveis de solução. Até hoje não havia nada que Doc não pudesse resolver. Nada exceto a morte prematura de Gus.
Em Los Angeles tudo era mais fácil. Estava em casa. Apesar de terem pegado um voo comercial não tiveram problemas, a presença macabra dos guarda-costas era o suficiente para afastar qualquer um que sequer pensasse em se aproximar. A equipe não precisou nem mesmo enfrentar o LAX lotado para reclamar suas bagagens, não tinham nenhuma. O carro forte da gravadora buscou o grupo ainda na pista de aterrisagem, enquanto apenas aceitou o seu destino, o que quer que ele fosse. As ruas de West Hollywood permaneciam as mesmas. Os mesmos carros barulhentos, a mesma onda de calor subindo pelo asfalto, as mesmas pessoas alheias aos seus arredores. A vida continuava, mesmo que Gus tivesse ficado para trás.
queria gritar com alguém, queria bater em alguma coisa, queria fazer qualquer coisa para que as pessoas, alguma pessoa, qualquer pessoa, percebesse que tudo tinha mudado. Mas de que adiantaria? Gus estava morto e isso não fazia diferença alguma. Não tinha como voltar disso. August não voltaria. E certamente também não seria capaz de voltar.
pensou em como seria dali em diante. Se Tony e Kalil já haviam pensado a respeito. A banda era apenas uma ideia, uma loucura, um delírio, uma das maiores insanidades de Gus. Nem eles mesmos se lembravam bem, mas de alguma forma o guitarrista conseguiu convencer os quatro amigos a transformarem o sonho em realidade. Talvez todos eles estivessem perdidos. A verdade nua e crua era essa. A Disclaimer era August Train e August Train era a Disclaimer. Não havia banda sem ele. Era o fim da Disclaimer. E essa consciência se tornou clara à medida que reconhecia o trajeto para o escritório. Mesmo que sentisse lá no fundo, que entraria no grande prédio empresarial e o veria lá, as pernas estiradas sobre a mesa da sala de reuniões em meio a uma gargalhada.
decidiu fingir que era apenas mais um dia. Como qualquer outro.
Fingiu que o mal-estar era culpa de uma noite de bebedeira e não a abstinência da medicação do hospital. Fingiu que as últimas duas semanas nada mais eram do que um borrão causado pela amnésia alcoólica. Fingiu que se preparava mentalmente para mais uma longa sessão de brigas com Leto sobre seu comportamento irresponsável. Fingiu que conversariam sobre o cronograma de desenvolvimento, gravação e divulgação do próximo álbum. Fingiu que daria em cima da nova secretária da gravadora, já que a antiga deveria ter sido demitida após o seu caso com Kalil. Fingiu que dispensaria Doc para pegar carona com Tony para se reunirem na casa de Gus para beber mais um pouco. Fingiu que estava tudo bem como fingia desde que se despediu do seu pai pela última vez. Mas fingir não adiantou nada quando o carro blindado chegou ao prédio espelhado da West Coast Records.
Dezenas de pessoas interditavam o caminho para a garagem do edifício. Fãs. Eles usavam camisas da banda, com o rosto de Gus. Os cartazes que carregavam diziam tudo. Para sempre Gus. Train nós te amamos. Nunca esqueceremos August Train. Luto. Descanse em paz. Gus.
Algo se quebrou dentro de e ele se perguntou quantas vezes mais seria capaz de quebrar algo que já estava quebrado.
Não conseguiu evitar. Quando as vozes começaram a clamar o seu nome, o vocalista sentiu o seu corpo se encolher. O ar faltou em seus pulmões à medida que uma gota fria de suor escorria pela sua têmpora. Merda. Deveria ficar mais fácil com o tempo.
O breu e o silêncio do estacionamento não foram o suficiente para ajustar os batimentos descompassados de . Não. Era muito pior. Era mais uma ausência. Mais uma falta. A falta de luz. A falta de som. A falta de Gus. O vocalista nem percebeu quando o carro parou, ou quando os demais passageiros desembarcaram. Não ouviu o que Doc disse quando abriu a sua porta. Apenas viu o agente lhe estender um cigarro e respirou fundo, aceitando com dedos trêmulos e se impulsionando para fora do veículo com um zunido em seus ouvidos. Doc insistia em tentar dizer alguma coisa, mas o vocalista não conseguia ouvir nada além do rugido em sua mente. Sua visão foi ofuscada por uma fração de segundo, quando o reflexo do farol de algum carro que passava por ali refletiu no material metálico do isqueiro que o agente segurava. estendeu a mão em um pedido silencioso, que foi rapidamente atendido.
Uma chama. Um trago. Um sopro. Um trago, um sopro. repetiu o gesto algumas vezes, sentindo a pressão baixar e o os pensamentos se reduzirem a um sussurro inconveniente.
— Se sente melhor? — perguntou Doc, olhando-o de soslaio. No escuro, a sua pele negra não denunciava nenhum traço de expressão.
respondeu com um aceno.
— Melhor se acostumar com a ideia de começar a falar — o agente fez um estalo com a boca — você não vai gostar muito do que vai encontrar lá dentro.
O vocalista deu mais um trago e limpou a garganta.
— A coisa está muito feia?
fez uma careta ao ouvir o som da própria voz. Estava rouca de uma forma errada. O som arranhou sua garganta e morreu áspera. As palavras não pareciam certas. O vocalista sacudiu a cabeça para afastar o pensamento e olhou para o outro com a sobrancelha arqueada.
— A gravadora quer terminar a turnê — Doc disse simplesmente. Sem cerimônias, como quem tira um curativo de uma só vez.
— Não.
— Não é como se você tivesse alguma escolha — o homem deu de ombros — o contrato da banda com a West Coast tem validade para mais dois anos. Até lá vocês pertencem a eles.
Gus está morto, queria dizer. Mas não ousou pronunciar as palavras em voz alta. Preferiu dar mais um trago no cigarro.
— Mesmo que vocês tivessem escolha. Se vocês escolhessem antecipar o fim do contrato a multa seria tão onerosa que vocês e suas famílias teriam que voltar direto para o buraco de onde saíram em Atlanta.
bufou em descontentamento. Se Doc queria que falasse, então ele ouviria poucas e boas sobre o que ele achava a respeito disso. Mas antes que pudesse abrir a boca, o agente falou primeiro.
— Sem falar nos Train…
— O que tem eles? — Você sabe… — Doc brincou com um fio solto invisível em seu casaco — A mãe de August está internada há um ano por conta da sua… Condição.
— E o que isso tem a ver?
— Tem a ver que a parte de August do contrato é o que paga aqueles médicos sabichões, a clínica limpinha e os remédios caros da Srª. Train. Que a parte de August é a única coisa que coloca um teto sobre cabeça moribunda daquele marido solitário dela — explicou o agente com uma calma letal, que fez trincar o maxilar — Você e os outros podem até dar a volta por cima depois disso, vocês estão vivos, já…
— Já entendi — o vocalista disse rápido, antes que o homem pudesse terminar a frase. Sentiu a cabeça começar a doer e respirou fundo. — Merda.
— Sabia que entenderia — Doc deu um sorriso que não chegou aos olhos.
— Eu sei o que você está tentando fazer.
Estava tentando fazê-lo falar.
— O que eu faço de melhor…
Estava tentando fazê-lo enfrentar isso.
— Eu não preciso da sua ajuda — o vocalista resmungou.
— Estou tentando administrar a sua vida — Doc rebateu com uma piscadela — Você deveria tentar qualquer dia desses.
— E tirar o seu ganha-pão?
Os dois quase se permitiram rir.
— Se a gravadora já decidiu terminar a turnê — fez um estalo com a boca — Qual é a da reunião?
— Eles encontraram alguém para substituí-lo — disse o agente, como quem fala sobre o clima. precisou morder a língua para não dizer nada. Doc estava conseguindo. — Hoje é a assinatura do contrato.
O vocalista se engasgou com a fumaça quente da ponta do cigarro, desencadeando uma sequência de tosses. Jogou o filtro no chão, impaciente, cuspindo sobre o objeto como se pudesse de alguma forma ofendê-lo, ou simplesmente tirar aquele gosto amargo da boca.
— Merda — praguejou.
marchou em direção às portas automáticas com uma carranca lhe deformando as feições. É. A coisa não ia ser bonita.
— Vamos acabar logo com isso — disse ao passar por Doc, o tom irredutível dizia tudo que ele não precisou dizer.
O que estava ruim tinha acabado de piorar.
O trajeto até a reunião foi como o inferno particular de . As paredes dos largos corredores pareciam se fechar. O elevador era a sua caixa de Pandora. Cada passo era dado com urgência e mesmo assim o tempo parecia passar mais devagar. As vozes que ecoavam no edifício empresarial somadas ao som pulsante dos batimentos cardíacos nos ouvidos faziam o estômago de se embrulhar. Mas quando avistou a porta de vidro da sala de reuniões o vocalista quase parou, fazendo Doc trombar em suas costas e murmurar um xingamento.
Quando entrou na sala todas as conversas cessaram. O olhar de foi atraído diretamente para a cadeira vazia no centro da mesa, o furo de uma queimadura de cigarro ainda aparente era uma lembrança melancólica daquela ausência sufocante.
— Eu pedi para tirarem a cadeira — Doc disse baixo para que apenas o vocalista pudesse ouvir.
permaneceu estático, como se pudesse ver um fantasma diante dos seus olhos.
— Vamos tirar a cadeira de Gus para as próximas reuniões — disse Leto em cumprimento, recebendo o cantor na porta com um sorriso no rosto e batidinhas no ombro.
respirou fundo e deixou um sorriso debochado ao passar pelo produtor, rumo ao seu assento.
— A cadeira fica.
Não era um pedido.
O vocalista afundou sobre o estofado de sua cadeira e podia jurar que conseguia sentir um cheiro de nicotina exalando do assento ao lado. Aproveitou a privacidade dos óculos escuros para fechar os olhos vagarosamente. Ele estava em todo lugar e ainda sim não estava em lugar nenhum. Quando abriu os olhos encontrou Tony e Kalil à sua frente em seus lugares usuais, suas feições eram um misto de receio e preocupação.
— O quê? — disse sem emitir nenhum som, mas antes que os amigos pudessem gesticular qualquer coisa foram interrompidos pelo som de uma única palma.
— Que maravilha que tenha nos concedido a honra da sua companhia hoje, — começou Leto, sorrindo tão forte que era possível que todos os seus dentes se quebrassem. Estranho. — Aposto que voltou de viagem com tantas notícias para compartilhar quanto nós.
O vocalista sorriu amarelo para as pessoas ali reunidas.
Pela primeira vez, percebeu que a sala estava mais cheia que o normal. Além da banda, do agente e do produtor, havia mais três pessoas engravatadas, duas mulheres e um homem. quase podia ouvir artigos de lei sendo berrados em sua cara apenas com um olhar. Advogados eram inconfundíveis em qualquer lugar do mundo, com seus ternos cinzentos, pastas sanfonadas e olhar analítico. A sua presença era como uma doença contagiosa, pronta para infectar a banda Disclaimer e destruí-la de dentro para fora. O vocalista sentiu um bolo se formar em sua garganta.
— Estamos aqui hoje com grandes notícias — Leto olhou nos olhos de cada um ao iniciar o que parecia ser um monólogo, fazendo suspirar. — A perda de Gus, que Deus o tenha, foi uma grande tragédia para os familiares, amigos e fãs.
O vocalista sentiu as mãos fecharem em punhos sob a mesa. Ele não podia estar fazendo isso.
— Achamos que era o fim, mas não poderíamos deixar que o legado de Gus se perdesse junto com ele. August Train era uma inspiração, um homem bom que acreditava que o amor poderia mudar o mundo…
gargalhou alto.
Era como estar no velório mais uma vez.
— Algum problema, ? — perguntou o produtor, impaciente.
O vocalista limpou uma lágrima que ameaçava escorrer pelo olho direito.
— Você é muito engraçado, Leto, só isso — o sorriso ainda brincava nos lábios do vocalista.
Doc chutou a cadeira do artista em repressão, mas não surtiu efeito algum.
— Gus não é nada disso — não era capaz de dizer as sentenças no passado e todos na sala repararam nisso. — Ele é um canalha de primeira categoria que age primeiro e conversa depois. Alguma coisa ou alguém sempre acaba quebrado no final.
Leto engoliu em seco quando um silêncio constrangedor dominou o recinto, mas foi logo suprimido por uma risada feminina. Uma das mulheres engravatadas olhava do vocalista para o produtor com um brilho de diversão. Tinha os cabelos presos em um coque baixo apertado até o último fio de cabelo e usava óculos de armação fina que a conferiam um ar de superioridade incontestável. a odiou no momento em que colocou os olhos nela.
O som de alguém limpando a garganta cortou a sala.
— Ainda bem — ela disse com um sorriso debochado — Estava começando a achar que poderíamos ter problemas.
Leto pareceu suspirar aliviado.
— Como eu ia dizendo… — o produtor retomou o seu discurso — O sonho de Gus e toda a banda Disclaimer não poderia partir com ele. Em honra a tudo o que ele fez e que poderia fazer ainda o sonho deve continuar. E é com imensa gratidão e orgulho que hoje oficializamos a nova configuração da Disclaimer.
já podia sentir o seu maxilar doer ao trincá-lo com cada vez mais força. Não conseguiu evitar de xingar August mentalmente de todos os palavrões que tinha em seu vocabulário.
Aquilo não poderia estar acontecendo.
Por que ele tinha que simplesmente morrer?
Filho da puta. Cuzão. Imbecíl Pau no cu. Canalha. Vigarista. Desgraçado. Retardado. Corno. Idiota. Energúmeno. Arrombado. Zé buceta. Fodido.
O produtor tomou um longo fôlego antes de dar um sorriso triunfante. Era o fim.
— Dêem as boas-vindas à — disse Leto, estendendo o braço para o grupo de engravatados. A mulher que estava rindo a pouco se levantou com um sorriso de canto dos lábios olhando para os demais com toda a sua glória. — A nova guitarrista da Disclaimer.
A nova guitarrista da banda.
A nova guitarrista da banda era uma mulher. Era aquela mulher.
Não.
— Vocês só podem estar de brincadeira — murmurou encarando a mulher com puro ódio no olhar.
— O que disse, ? — perguntou Leto.
— Eu disse que vocês só podem estar de brincadeira — o vocalista disse. Ele estava puto, o que só alargou o sorriso da mulher quando notou o seu olhar.
— Certo, , desculpe se esquecemos de consultar com você enquanto passou mais de dois meses completamente entorpecido atravessando todos os quatro cantos da América fugindo das suas responsabilidades — ironizou o produtor.
— Eu sou o líder da banda!
— August era o líder da banda — Leto respondeu rispido. trincou o maxilar. — Talvez essa função deva ser herdada pela sua sucessora.
Os músculos do vocalista se enrijeceram instantaneamente.
— Eu não estou muito interessada — disse simplesmente, para ninguém em especial.
Os homens se entreolharam. A tensão no ar era palpável.
– Você não precisa fazer isso, – disse a mulher de cabelos curtos ao lado dela. – Não faz parte dos termos do contrato.
- Obrigada, Marta – disse baixo, voltando a sentar-se ao seu lado com um sorriso gentil que nada combinava com suas feições.
Leto pareceu satisfeito com a intervenção da segunda mulher.
— é graduada em Comunicação Social, tem pós-graduação em Trade Marketing, toca violão, guitarra e piano — o produtor decidiu continuar como se nada houvesse acontecido. — Além disso, ela já é reconhecida no mercado fantasma como compositora e já escreveu alguns dos grandes hits que temos no mercado hoje em dia, o que faz dela uma grande aquisição para a banda nesse momento desafiador de transição que vamos enfrentar.
não deixou de notar torcendo o nariz em meio a um gesto de cruzar os braços, claramente fingindo prestar atenção. Não se permitiu simpatizar com a sua postura, não enquanto ela era uma das grandes responsáveis pela contaminação do sonho do seu melhor amigo.
— Leto, por favor, os rapazes não estão interessados nessa ladainha — disse Marta. Será que ao menos ela era a advogada daquela aberração? — Vamos ao contrato, sim?
O vocalista quase riu quando Leto não conseguiu conter a careta. O produtor deu um aceno positivo com a cabeça para o homem de gravata ao lado de Marta e ele prontamente entregou a papelada para a mulher.
— Vejamos aqui — murmurou a mulher, fazendo sons ao prosseguir com a leitura. — Vigência de dois anos. Não exclusividade para desenvolvimento de propriedade autoral. Autorização de uso de imagem. Multa em caso de violência física, verbal ou sexual pelos contratados e subcontratados. Remuneração compatível com a do último contratado para a função. Multa por quebra de contrato em 30% da original. 20% dos lucros sobre as produções e merchandising relativos à vigência do contrato. Disponibilidade para jornada de trabalho diversificada e viagens. Plano de saúde. Mediação e arbitragem de conflitos pelo ICC.
olhou para o teto, entediado.
— O toxicológico? — perguntou em um sussurro tão baixo que os demais não tiveram certeza do que tinham ouvido.
— Foi retirado — murmurou o homem. tinha quase certeza que já tinha o visto antes. Devia ser o advogado da West Coast. Willie, Billie, Millie alguma coisa.
— Ficamos felizes — Marta deu um aceno breve. — Se os contratos dos demais não tem essa cláusula, não há motivo para haver nesse.
deu um sorriso diabólico enquanto a advogada terminava a leitura. tentou não reparar demais.
— Parece que está tudo aqui — a advogada anunciou aos presentes e se virou para a sua cliente. — , pode fazer as honras.
Leto deu um largo sorriso ao retirar do bolso interno do casaco uma caneta montblanc cravejada e entregou-a para a guitarrista. não pareceu se importar com a celeridade do gesto, apenas abriu o objeto e rabiscou todas as páginas do contrato sem nem pensar duas vezes.
Os músicos tiveram dificuldade de acreditar quando o sorriso torto do produtor aumentou ainda mais. Leto se aproximou da mulher, estendendo o braço para um aperto de mãos que foi aceito com prontidão.
— Seja bem-vinda, — disse ele, ao segurar a sua mão.
— — corrigiu ela, os olhos brilhando em desafio.
— — repetiu ele.
O sorriso que ela deu causou arrepios sinistros que percorreram todo o corpo do vocalista.
— Doc, meu amigo — Leto se dirigiu ao agente. — Você se importaria de tirar uma foto?
— Sem problemas.
— Vamos, meninos? — o produtor convidou os integrantes da banda.
Um a um, Kalil, Tony e se levantaram. Mesmo que à contragosto do último. Por último, . Ela se posicionou entre Leto e o baterista ao mesmo tempo em que o produtor puxou para ficar do seu outro lado. Doc apontou a câmera do celular e fez uma contagem antes de apertar o botão. Era isso. A primeira foto da nova banda Disclaimer.
O início do fim.
O produtor puxou uma salva de palmas e foi seguido pelos demais em comemoração. Todos, exceto . O vocalista apenas sustentou um olhar assassino sobre , que ao notar lançou-lhe um sorriso debochado em resposta.
ficou à deriva, enquanto os demais engataram em uma conversa sobre os próximos passos. Planejaram uma grande festa de divulgação na próxima semana. O vocalista estava tão aéreo que nem mesmo encontrou sua voz para protestar quando decidiram que a recepção seria em sua casa. Tony e Kalil pareceram já ter conhecido a nova guitarrista antes ao conversarem com a mulher entre uma ideia ou outra, pareciam realmente levar a sua opinião em consideração. Já a opinião de não valia de nada, não foi provocado a colaborar uma única vez durante todo o andamento da discussão, então não se deu o trabalho de se intrometer. Anthony parecia se divertir com o humor ácido de , falava mais bobagem que o normal apenas para ver o que ela poderia dizer em resposta. Ainda sim, ele não parecia deixar de ficar surpreso com as palavras ásperas e irônicas que saíam da boca da mulher, deixando-o de olhos arregalados ou sem fôlego em meio ao riso entrecortado. Era insuportável para . Ao menos Kalil era normal. O baterista de cabelos compridos se mantinha segundo plano como de costume, concordando ou discordando quando achasse pertinente, mas sem se preocupar em dar mais explicações. Tinha permanecido próximo à desde o momento da foto, olhava-a com atenção enquanto ela falava e vez ou outra fazia comentários sussurrados, mas nada fora do usual. Era um cara quieto, falava baixo, tratava as pessoas bem e não dava trabalho. Não era nada como e seu pavio curto. Assim, o vocalista permitiu a si mesmo que se perdesse em seus pensamentos autodestrutivos.
Se fosse à sete palmos do chão e não o melhor amigo, nada seria desse jeito. Gus naquela sala ele estaria empolgado. Não pensaria duas vezes antes de começar a discutir ideias para o próximo álbum. Soltaria alguns palavrões e riria na cara de cada um que o olhasse em reprovação. Talvez até mesmo acenderia um cigarro só para deixar uma nova marca no estofado de couro de sua cadeira. Chamaria todos para emendar as comemorações em sua casa, com direito a bebida e quaisquer outras coisas que os convidados quisessem consumir. Contaria à nova integrante da banda sobre o seu melhor amigo. Falaria dele como se fosse a melhor pessoa que já pisou na Terra, mesmo que fosse exatamente o contrário. Mentiria sobre suas aventuras para que parecessem ainda mais inacreditáveis. Ficaria feliz por dar continuidade ao sonho do amigo que se tornou realidade.
Mas não era nada como Gus.
Quando se deu conta, o seu olhar vazio estava fixo em uma bunda redonda perfeitamente ajustada à uma calça de alfaiataria. Uma bela bunda. Entretanto, ao perceber a quem pertencia a expressão do vocalista se fechou como um temporal.
estava à sua frente no elevador, conversando descontraída com Tony. Ao seu lado, Kalil o olhava de esgueira com um sorriso contido nos lábios. bufou encarando o visor do elevador como se pudesse fazê-lo chegar ao piso da garagem mais rápido.
Aquele espaço era pequeno demais para ser dividido com . Não suportava ouvir aquele riso de escárnio reverberar pelo seu corpo. O perfume dela sufocava o ar em seus pulmões. A voz como era como uma maldição em seus ouvidos.
Quando as portas de abriram, se permitiu respirar fundo. Foi um alívio miserável. Colocou as mãos nos bolsos do moletom e manteve sua distância.
— A conversa está ótima, mas eu preciso ir — anunciou , sem rodeios, olhando para os demais membros da banda sobre o ombro anguloso do blazer.
Aos poucos, o peso sobre os ombros de parecia aliviar. Ele quase agradeceu mentalmente por isso.
— Nós costumamos nos reunir na casa de Gus depois das reuniões… — começou Tony sugestivamente.
apenas arqueou uma sobrancelha.
— Costumávamos — corrigiu Kalil suavemente.
— Acho que agora vamos precisar frequentar a casa de de agora em diante — ele riu sem jeito, mexendo no cabelo como se fosse capaz de disfarçar o desconforto.
percebeu que seus sentidos lhe enganaram mais uma vez. De repente, começou a sentir a cabeça latejar. Puxou do bolso traseiro da calça um maço de cigarros que Doc esgueirou para ele durante a reunião e sacou o isqueiro que esqueceu de devolver mais cedo.
Ótimo.
Kalil limpou a garganta para preencher o silencio.
— Você não quer ir? — perguntou Tony, quando o amigo soltou o primeiro trago.
Maravilha.
olhou para quando ele pareceu puxar a nicotina com mais força. O vocalista não se deu o trabalho de retribuir o olhar. Não ofereceria nada a ela.
— Quem sabe uma próxima vez? — foi a única resposta dela.
Anthony aceitou com um aceno de cabeça e se despediu dela com um beijo em cada lado do rosto. Ela se aproximou lentamente de Kalil para um abraço rápido, mas foi surpreendida com um beijo cuidadoso na bochecha, parecendo parar por um momento para pensar.
Logo, percebeu o que viria a seguir. Sentiu o corpo inteiro enrijecer quando a mulher deu alguns passos em sua direção. Colocou o cigarro na boca, como se fosse possível fingir que esse era o motivo da carranca que deformava a sua expressão. Talvez o câncer industrializado fosse o suficiente para espantá-la.
Foi quando se deu conta que não precisaria mesmo oferecer nada a ela. tomaria tudo o que quisesse.
Só precisou chegar perto o suficiente e estender o braço para tomar o cigarro aceso de seus lábios. pareceu entretida ao fitar o olhar mortífero do vocalista sobre si, quando levou o objeto à boca e deu dois longos tragos. sentiu uma das mãos se fechar em um punho no bolso do moletom, no mesmo momento em que a mulher assoprou a fumaça em seu rosto.
— O gato comeu a sua língua? — sussurrou ela, para que apenas ele pudesse ouvir, olhando-o de cima a baixo com um sorriso irônico no rosto.
A guitarrista não esperou uma resposta. Jogou o cigarro pela metade no chão como se não fosse nada e tirou uma chave do sutiã.
trincou o maxilar quando a mulher desfilou até uma moto que não estava muito longe dali.
— Ei, — o vocalista jurou nunca ter ouvido a voz de Kalil tão alta.
A mulher olhou para o grupo por cima dos óculos, enquanto subia cavalete da motocicleta.
— O capacete — disse o baterista, como se isso explicasse tudo.
Por algum motivo, aquilo pareceu a coisa mais engraçada do mundo.
apenas jogou a cabeça para trás em uma gargalhada genuína e saiu do estacionamento cantado pneu, enquanto os demais ficavam para trás.
Capítulo 2 — How You Remind Me
“And I’ve been wrong, I’ve been down
Been to the bottom of every bottle
These five words in my head
Screaming ‘Are we having fun yet?’”
— How You Remind Me, Nickelback
Margot suspirou em descontentamento ao seu lado, levantando-se e vestindo suas roupas, chamando a atenção do namorado.
— Amor — chamou , segurando os dedos da mulher e depositando um carinho preguiçoso nas costas de sua mão com o polegar ainda trêmulo. — O que foi?
A modelo bufou ao se desvencilhar suavemente para abotoar o sutiã.
— Nada — ela murmurou, fazendo o homem suspirar fundo.
— E você quer que eu acredite nisso?
A mulher continuou a recolher as peças de roupa e vestir uma de cada vez sob o olhar atento de que ainda recuperava o fôlego.
— Mar… — o vocalista insistiu mais uma vez, permitindo a sua voz soar manhosa.
Margot revirou os olhos impaciente.
— Não venha com Mar para cima de mim — cortou ela em um tom acusatório, quando já estava completamente vestida. — Primeiro você desaparece por dois meses, com sabe-se lá quem, fazendo sabe-se lá o que. Não atende nenhuma das minhas ligações e nem responde nenhuma das minhas mensagens. Ao menos falou comigo quando você voltou, seu canalha. Eu só estou aqui porque o Doc me convidou para a sua porcaria de anúncio do novo guitarrista da banda. E tudo o que eu recebo é uma rapidinha esfarrapada antes de um ensaio? Não. Nada de Mar. Você sabe muito bem o que foi.
passou a mão nos fios de cabelo bagunçados em um gesto de impaciência, suspirando ruidosamente.
— Da nova guitarrista — murmurou ele à contragosto.
— Da?
O vocalista confirmou com um aceno sem olhar para ela. Margot não conseguiu conter uma risadinha.
— Uau — ela se recostou no batente da porta com os braços cruzados e uma expressão divertida no rosto — O novo guitarrista é uma mulher?
não se preocupou em responder, apenas soltou o corpo sobre a cama macia derrotado.
— Você deve estar morrendo por dentro — era possível ouvir o sorriso na voz da mulher.
— Muito obrigado, Margot — resmungou ele entre os lençóis.
A risada dela foi quase tão desagradável quanto o sermão que a antecedeu.
— Bom, acho que vou indo — disse Margot, abrindo a porta do quarto. — Aparentemente o universo decidiu te punir por mim.
O vocalista chamou por ela mais uma vez.
— Você vem?
— Ao anúncio? — perguntou ela com um sorriso debochado. — Não perderia o seu castigo por nada nesse mundo.
Margot não esperou uma resposta, saindo da casa batendo a porta sem olhar para trás.
ficou ali, deitado olhando para o teto por mais um tempo. Deveria estar realmente fodido. Para até a própria namorada achar que ele merecia esse método de tortura, ele só poderia estar muito na merda.
Depois de um bom tempo, que ainda sim não pareceu o suficiente, o vocalista bebeu uma dose de whisky, tomou uma ducha fria e vestiu uma regata preta com uma calça jeans escura, antes pegar o seu Challenger rumo à casa de Kalil. Decidiram que seria o melhor lugar para ensaiarem dali em diante. Antes de tudo acontecer, tudo era na casa de Gus, ele tinha as melhores bebidas, o estúdio profissional, todos os instrumentos, os melhores videogames. Agora sem ele, seria mais fácil deslocar todo o material para a casa de Kalil do que tentar transportar a bateria em cada ensaio que tivessem.
Em apenas vinte minutos já estava na casa modesta do amigo às margens de Beverly Hills. Kalil não se importava muito com mansões, carros ou marcas de roupa, nunca se importou. Então não foi surpresa para ninguém quando ele se mudou para uma casa simples de dois andares e apenas três quartos nos arredores do bairro das estrelas, mantendo-se naquela região apenas pela segurança necessária quando se é uma pessoa pública. E é claro, pela privacidade. Enquanto as pessoas eram sempre atraídas por Santa Monica ou Hollywood Hills, o baterista encontrou o seu próprio oásis particular, onde não precisava se preocupar com vizinhos ou tráfego, próximo aos parques e reservas naturais da região. O único sinal de poluição no perímetro eram a fumaça dos cigarros de Kalil e o rugir da sua bateria.
costumava amar os ensaios da banda. Montar setlists. Tentar coisas novas. Beber até não acertarem um acorde ou se esquecerem as letras das músicas. Agora não conseguia nem pensar em fazer isso sem Gus. Muito menos um show.
O vocalista então decidiu adiar o inevitável. Antes de desligar o carro, tomou mais uma dose do cantil que carregava no bolso de trás da calça. Saiu do carro com um suspiro pesado, sem se preocupar em trancar o veículo. Sentou-se preguiçosamente aos pés das escadas de madeira que levavam à varanda e à entrada principal da casa de Kalil, sacando da capa de sua guitarra um maço de cigarros e um isqueiro.
se perguntou por que a gravadora nem ao menos considerou mantê-lo como guitarrista principal. Poderiam muito bem se virar para seguir com a banda sem um intruso no seu caminho. Sabia que não tinha o dom inato do amigo, não tinha o ouvido musical, mas, mesmo assim, era um bom guitarrista.
tragou e assoprou a fumaça.
Poderiam fazer isso sozinhos se quisessem. Talvez no fundo esse fosse o problema. não queria fazer isso. Não sem Gus. Por isso a gravadora tinha decidido que precisariam de uma pessoa nova. Alguém que usasse essa oportunidade para criar o seu nome e fazer acontecer. Os rapazes já tinham tudo. Mesmo que tivessem que continuar o trabalho, o básico era o suficiente para simplesmente terminar o tempo do contrato, juntar as suas coisas e irem embora. Agora, com uma nova pessoa na jogada, o futuro era imprevisível.
era um covarde autodestrutivo e agora pagaria o preço por isso.
Foi no meio desse pensamento que ele ouviu o uivo de uma motocicleta ao longe. Aos poucos uma imagem surgiu no horizonte da rodovia, os cabelos presos em um rabo de cavalo chicoteavam o ar, ou talvez fosse o contrário. A motoqueira se aproximou mais rápido do que poderia se preparar para a sua chegada, sua pequena imagem transformada em uma presença aterrorizante e ensurdecedora em questão de instantes.
desmontou da motocicleta em um único movimento, soltando os cabelos escuros e refazendo o penteado castigado pelo vento do trajeto. Quando terminou, seu olhar intenso foi instantaneamente atraído pelo de , que a observava desde o momento em que notou a sua chegada iminente.
— — o homem decidiu engolir o orgulho e arriscar um cumprimento.
— — corrigiu ela, arisca.
Ele deveria ter a chamado de vadia.
revirou os olhos e se contentou em lançar lhe um sorriso debochado.
— Que seja.
simplesmente correspondeu a provocação com um sorriso irônico, olhos grandes em um misto de surpresa e desafio. se viu encarando-a por tempo demais enquanto ela rebolava lentamente em sua direção. Os olhos brilhantes. Os cílios compridos. O rubor nas bochechas. Os lábios entreabertos. Precisou fechar fortemente as pálpebras para se lembrar de quem ela era e o que fazia ali. Quando reabriu os olhos, foi o bastante para que o desprezo cobrisse o seu rosto como uma máscara.
O homem voltou a observá-la, com escárnio dessa vez, ao aventurar-se pelo caminho de ladrilhos. Totalmente diferente do último encontro, dessa vez ela vestia uma camisa dois números maiores do Pearl Jam, uma calça jeans de lavagem clara e coturnos pretos. Cada passo violento era milimetricamente calculado como uma marcha militar. Mas faltava alguma coisa.
riu sem humor.
— Perdeu os óculos, espertinha?
deu uma risada sincera ao se aproximar.
— Você não achou mesmo que eu usava óculos, não é?
O vocalista ponderou com um estalo da língua.
— Isso tudo não passa de uma brincadeira pra você? — perguntou ele, a paciência e os bons modos se esvaindo aos poucos.
— Com certeza — ela respondeu. — Estou descobrindo que mexer com você pode ser bem divertido.
bufou, soltando a nicotina em uma fumaça disforme.
— Estou começando a me perguntar se você realmente sabe tocar alguma coisa.
— Posso aprender a tocar várias coisas se você quiser — provocou ela com um sorriso ladino.
A piada suja. não conseguiu deixar de se lembrar de Gus. Precisou remexer os ombros para se livrar do desconforto que aquela impressão causou.
Quando ela chegou perto o suficiente, perto demais, a mulher estendeu o braço em frente ao rosto do homem e balançou os dedos esguios. Como se tivesse a educação necessária para pedir o cigarro.
O vocalista deixou escapar uma risada entrecortada pela fumaça em seus pulmões. É claro que ela não pediria verbalmente.
Ele agradeceu mentalmente a postura dela e se permitiu ignorar o gesto.
abaixou a mão com um sorriso vitorioso, como se esperasse por aquela reação o tempo todo. A mulher apoiou-se contra a pilastra de madeira da varanda e olhou-o de esguelha. Ela soltou um estalo com a boca, apoiando-se contra a pilastra de madeira da varanda e olhando-o de esguelha.
— Está se sentindo mais falante hoje, bonitinho?
pareceu considerar por um momento se responderia ou não.
— Você vai acabar descobrindo que eu consigo ser muito mais agradável quando as pessoas não se metem onde não são chamadas — respondeu ele em um tom ríspido, sem olhar para ela enquanto ainda fumava.
— Então você vai gostar de saber que foi a West Coast que me procurou e não o contrário — ela ponderou.
— Você ainda está aqui, então não muda nada — resmungou, o som abafado pelo cigarro em seus lábios.
riu sem pudor, colocando-se em frente ao vocalista com um sorriso provocante nos lábios.
— Isso vai ser interessante.
não conseguiu nem reagir quando a mulher tomou o cigarro de seus lábios e marchou para dentro da residência.
O vocalista olhou para o teto, contou até dez mentalmente e com um suspiro seguiu o trajeto da mulher com os dentes trincados. Seguiu o odor de cigarro, do seu cigarro, pelo conhecido caminho da sala simples e minimalista até a porta escondida atrás da cozinha americana, que levava às escadas que davam no porão, onde o som ensurdecedor da bateria de Kalil já dominava o ambiente.
O baterista esmurrava os tambores com a mais nua e crua fúria. Nada como o homem pacato que conhecia. A violência de seu solo era tanta que era como se hipnotizasse os demais para que contemplassem o que poderia ser uma verdade sombria escondida por trás da personalidade calma e tranquila do homem. Ninguém ousou ao menos piscar. sequer se incomodou com a presença da mulher escorada no corrimão ao seu lado, aceitando de bom grado o trago final de seu próprio cigarro que ela o ofereceu. A figura transtornada e pecaminosa de Kalil atrás da bateria tornava a presença odiosa da tirana em nada além de um mero inconveniente. O cabelo comprido do baterista chicoteava o ar como uma tempestade de verão à medida que gotas de suor começavam a desenhar sua camisa cinza em uma arte abstrata. Os demais não passavam de espectadores até o seu fim repentino, marcado pelo barulho de baquetas caindo no chão e os ruídos de sua respiração ofegante.
Em meio ao silêncio macabro que se sucedeu, o som agudo de um assobio seguido por palmas entusiasmadas de cortou o ambiente. Logo foi acompanhada por um grito de incentivo de Tony que se juntou ao coro. não pôde evitar de sorrir verdadeiramente e aplaudir o amigo em admiração.
— Cara — iniciou o baixista, sorridente — é sempre um prazer ver você fazer isso!
— Nada mau! — o vocalista abandonou a inércia com um sorriso sacana nos lábios andando em direção ao sofá no canto da sala e jogando-se sobre ele.
observava à distância, com um sorriso ladino no rosto.
— Não enche — respondeu Kalil sem dar muita importância, pegando uma toalha que descansava sobre a banqueta e secando o rosto brilhante de suor.
O baixista esperou o amigo se aproximar para dar-lhe dois tapinhas amigáveis no ombro.
— Isso traz memórias, não é? — Tony disse sorridente, analisando o porão do baterista com o olhar.
Ele tinha razão.
Estar ali era como estar novamente na garagem dos Train e sonhar com um sonho impossível.
Os instrumentos espalhados pelo ambiente. O teto baixo. A risada estridente de Tony. O sofá surrado no canto do ambiente para que pudessem matar o tempo. Os incontáveis pares de baquetas de Kalil espalhados pelo cômodo. O cinzeiro cheio de bitucas de cigarro ainda exalando fumaça do último exemplar adicionado à coleção. Era quase como se August pudesse chegar a qualquer momento falando alto para que movessem suas bundas gordas para o palco improvisado. Mas ele nunca mais chegaria.
— Não pra mim — disse fazendo graça, ao desencostar-se da escada com um sorriso no rosto.
sentiu sua expressão se fechar quase que instantaneamente.
— Não teria como, Kalil não costuma trazer as mesmas garotas em mais de um ensaio — respondeu ele inevitavelmente grosseiro. Não conseguia evitar. Mas a verdade era que ele nem ao menos tentava.
— É uma coisa boa que isso vai mudar então — ela replicou arisca. Era impressionante como ela sempre tinha uma resposta na ponta da língua.
O vocalista abriu a boca para responder, mas foi logo interrompido por Kalil.
— , por favor.
Um pedido de cessar fogo. Ao menos por hora. Um pedido irrecusável. Principalmente depois daquela performance. Não era apenas uma forma de impressionar uma mulher bonita que estava no ensaio. Não. sabia que, a sua própria maneira, o baterista sofria tanto quanto ele por conta das circunstâncias atuais. Por esse único motivo, permitiu que as palavras morressem antes que saíssem de sua garganta.
Os amigos pareceram satisfeitos com isso, e se uniram ao vocalista no que poderia ser considerada a sala de estar do porão. Tony deu uma batidinha no ombro do baterista, antes de soltar o seu corpo sobre o puff ao lado do braço do sofá. Kalil jogou a tolha sobre os ombros e sentou-se no chão sem pressa alguma, escorando as costas na parte central da mobília. soltou a cabeça sobre o encosto acolchoado, como se permitisse o seu corpo relaxar pela primeira vez em muito tempo. Juntos, os homens olharam através da sala como se esperassem por alguma coisa.
O vocalista bufou impaciente.
— Pode vir, bonitinha, não vamos fazer nada que você não queira — provocou ele com uma voz preguiçosa.
não disse nada. Apenas caminhou em passos lentos até a ponta mais distante do sofá, sentando-se ao chão ao lado de Kalil.
arqueou uma sobrancelha para o baterista que apenas deu de ombros para o gesto.
— Faltaram quatro shows para terminar a turnê — começou Kalil. — New York, Tampa, Chicago e Venice.
O vocalista se mexeu desconfortável no assento.
— Não conseguimos, tirar New York da programação, cara, sinto muito — Tony se solidarizou.
Era em New York que tocariam no dia em que encontraram o corpo do amigo sem vida em seu quarto de hotel.
— Que merda — ouviram murmurar e todos pareceram concordar com ela, sem exceção.
— O setlist tem doze músicas, mas você já deve saber disso — o baixista complementou com os olhos cerrados, como se desafiasse a mulher a se intrometer na sua explicação. — Normalmente começamos com Kick Me e terminamos com King For A Day.
limpou a garganta, chamando a atenção dos outros para si.
— Vamos tirar King For A Day do repertório — decretou ele.
— O quê? — a voz de Tony subiu algumas oitavas.
Até mesmo parecia descrente.
— Não vou cantar a música de Gus sem ele — disse , irredutível.
— Você só pode estar ficando louco — o tom da guitarrista era impaciente, os olhos brilhando com algo que parecia ódio, ou até mesmo ressentimento.
O vocalista sustentou o seu olhar por um breve momento, antes de quebrar o contato visual como se não fosse nada. Como se ela não fosse nada.
— Talvez você tenha razão, — Kalil parecia reflexivo, contemplando o nada. — Afinal a música é um dueto.
suspirou, afundando no estofado.
— Eu não canto — resmungou Tony.
— Muito menos eu — concluiu o baterista, dando de ombros.
— Eu poderia…
a encarou com tanta intensidade que a guitarrista até perdeu as palavras.
— Você poderia o quê, ? — sibilou ele, usando pela primeira vez o apelido da mulher, como se fosse uma maldição. — Você poderia roubar o lugar do nosso amigo na banda que ele criou? Ou você poderia cantar a única música que ele escreveu para ele cantar?
franziu o cenho para o vocalista em uma expressão de mais puro desgosto.
— Você poderia ficar com a guitarra dele também. Ou até mesmo morar na casa dele. Quem sabe ficar com os cachorros dele também? Posso te passar o telefone da prostituta favorita dele se precisar, apesar de eu achar que você não daria conta dela.
A guitarrista se levantou consternada, colocando-se rapidamente em frente a com o indicador apontado para a sua cara perturbada.
— Quer saber, ? — ela quase cuspiu o nome dele. — Vai se foder. Destruir essa banda, as pessoas ao seu redor e a si mesmo não vão trazer o seu amiguinho viciado de volta. Pensando bem, é bem provável que você seja o responsável por matar o resto da família dele desse jeito se você não se matar primeiro. — o vocalista trincou o maxilar, enquanto a mulher tomou fôlego em uma inspiração violenta — Então, por que você não para de falar merda e usa essa sua boca imunda para fazer a única coisa que você sabe fazer e canta essas palhaçadas que você chama de músicas?
Com isso, simplesmente deu as costas pegando uma guitarra vermelha que descansava em sua capa ali perto e posicionando-se à esquerda do pedestal onde um microfone descansava. A mulher encarou os três amigos com os olhos em chamas e uma expressão beirando a insanidade.
Kalil foi o primeiro a se levantar, caminhando silenciosamente até a bateria com as mãos nos bolsos, sendo seguido por Tony que pegou um baixo branco que descasava em um suporte à direita. por sua vez tomou o seu tempo para se levantar, com um sorriso sádico no rosto, se limitando a dar um passo de cada vez aproveitando cada faísca do olhar de . Sem pressa, colocou-se no centro da formação e puxou o microfone para si.
— O que sabe tocar, bonitinha? — sussurrou ele contra o microfone, olhando à de soslaio. Sua voz reverberou por todo o recinto.
— Tenta a sorte — respondeu ela, ríspida.
a lançou um sorriso insolente, tentando disfarçar o desapontamento, fazendo alguns gestos para os amigos que logo entenderam o recado.
Kalil fez uma contagem com as baquetas marcando o tempo da música, enquanto o vocalista tomou fôlego dedilhando as primeiras notas da música em sua própria guitarra.
— Vozes na minha cabeça outra vez. Preso em uma guerra dentro da minha própria pele. — a voz de dominou o ambiente — Elas estão me puxando para baixo!
Mas antes que o vocalista pudesse se virar com um sorriso triunfante a melodia da guitarra principal rasgou a primeira estrofe no tempo exato da música. teve que se esforçar para seguir a música sem se distrair com a presença ao seu lado. não errava nenhuma única nota e não dava ao vocalista a satisfação de buscar o seu olhar em aprovação. A guitarrista tocava como se fizesse isso durante a vida inteira e talvez fosse isso mesmo. Mesmo que lutasse contra, se viu diversas vezes observando a mulher de esguelha. Os olhos fechados, os dedos inquietos sobre as cordas do instrumento, a batida ritmada do pé direito.
Só poderia ser sorte. Ela estava em negociação com a gravadora enquanto o vocalista esteve ausente, deve ter estudado a discografia.
— Eu não quero viver, tão insensível e congelado, feio e sem esperança. Não quero viver para sempre. Eu só quero viver agora.
Não conseguiu deixar de pensar em Gus. Talvez fosse a perspicácia da guitarrista em reconhecer a melodia. Os reflexos rápidos. A postura. Os lábios que não resistiam a formar a letra da canção mesmo sem emitir som algum.
parecia estar ao mesmo tempo tão perto e tão distante. Assim como August Train.
Em meio a um solo de guitarra, encontrou a oportunidade de virar-se para os amigos com mais um conjunto de orientação para as próximas músicas de codificadas por gestos e expressões. Se queria testar a sorte, então ela seria testada.
Quando chegaram aos últimos acordes de Voices, Kalil emendou ao ritmo da canção seguinte. O vocalista viu abrir os olhos em sua visão periférica, quase podia ver as engrenagens do seu cérebro trabalhando para reconhecer a melodia. Estava pronto para cantar vitória, mas foi impedido pelo som da guitarra vermelha que mais uma vez acertou o tempo de entrada. A mulher manteve o olhar perdido enquanto franzia o cenho ao tocar sem muito esforço. Por um momento a sua expressão lembrou tanto a que August costumava fazer.
sentiu as mãos fecharem em punhos, então puxou o ar violentamente e cantou a sua raiva:
— Meus segredos estão queimando um buraco em meu coração e os meus ossos estão com febre — sua voz rouca arranhava a garganta, deixando os seus pulmões em chamas. — Quando isso te corta tão profundo assim é difícil encontrar uma maneira de respirar.
O vocalista estava furioso, cantando em plenos pulmões a canção mais dolorosa que escreveu. Não que existisse outra forma de cantá-la. Era uma canção de ódio, mágoa e agonia. Então por que diabos a tocava tão tranquilamente?
Por um momento se sentiu apenas um coadjuvante. Um mero expectador. Sua voz não passava de uma música ambiente, uma trilha sonora para o que acontecia ao seu lado. Sem ao menos querer, a verdadeira performance acontecia ao seu lado. Como se o tempo passasse mais devagar e todo o som exterior fosse abafado. Talvez nada que fizesse fosse o suficiente.
Naquele momento ele era apenas testemunha da mais pura demonstração de talento bruto.
puxou o cantil entre um verso e outro em um gesto de desespero. Sentindo a visão começando a ficar turva.
O vocalista interrompeu a música no meio com um acorde ruidoso de sua guitarra. O silêncio caiu sobre o porão. se recusou a olhar para a esquerda.
— Eu sento no meu quarto desolado sem luzes, sem música — ele tomou fôlego — APENAS RAIVA. Eu matei a todos. Estou ausente para sempre, mas estou me sentindo melhor.
Para o desgosto de a guitarra soou no momento exato, sendo imediatamente seguida pela bateria e pelo baixo. O vocalista deixou fúria se espalhar pelo seu corpo junto à dormência relacionada ao álcool enquanto cantava. Aproveitou a oportunidade de merda que ele mesmo havia criado para descontar todo o seu rancor. Sentiu cada nota da guitarra à sua esquerda como uma facada no peito, enquanto a sua voz era um clamor colérico. À medida que o seu rosto esquentava, o ar parecia lhe faltar, mas ele não deu importância. Deixou sua mente se anuviar e o mundo desaparecer, como se transformados pela sua voz, esquecida pelos últimos meses, e pelo sentimento que o acompanharia para sempre. Quando cantou a sua última nota, com o peito arfando e a respiração entrecortada, teve a impressão de que se forçasse mais um pouco nunca mais seria capaz de fazer aquilo novamente.
Mas antes que o silêncio pudesse dominar o ambiente, o porão foi preenchido por uma gargalhada extasiada.
tentou não revirar os olhos quando tombou seu pescoço para a esquerda, em direção ao som.
— Não vai ser com System of A Down que você vai me derrotar, — disse divertidamente, limpando uma lágrima do canto dos olhos.
O homem não expressou nenhuma reação, completamente esgotado pela performance.
A guitarrista tirou a correia do ombro e deixou o instrumento sobre um apoio ali perto, antes de se jogar sobre o sofá com um suspiro satisfeito. Exatamente onde estava antes. Ela deixou a cabeça pender no ar longe do acolchoado ao mirar o vocalista.
— Tente Guns ‘n Roses da próxima vez — disse ela, dando uma piscadela, como se compartilhasse um segredo — Eu não gosto muito deles.
Tony tossiu alto, voltando para o seu lugar original sem nem ao menos se separar do baixo.
— Como alguém não gosta de Guns?
— Pergunte ao — Kalil deu de ombros, levantando-se da bateria e sentando-se mais uma vez sobre o carpete preguiçosamente. — Ele não gosta de muitas coisas.
— Isso não vem ao caso — o vocalista resmungou, guardando sua guitarra novamente na capa.
O baterista puxou uma pequena maleta sob o sofá, de onde tirou uma tesoura, seda, papel de piteira e um slicker, concentrando-se no trabalho manual de enrolar um baseado.
— ? — insistiu o baixista, dando um tapinha na mão da mulher que pendia para fora do sofá.
— Ahn, sei lá — hesitou ela. — as letras são constrangedoras, a voz do Axl Rose é desagradável, fora que as músicas envelheceram mal demais.
— Fala sério, a voz dele? — Tony estava incrédulo. — Ninguém no mundo faz o que ele fazia.
— Não é à toa que ele ficou sem — comentou , sem se importar com a mulher ao sentar-se no sofá ao seu lado.
fez um estalo com a boca.
— Guns é rock pra quem finge que gosta de rock.
O vocalista brindou ao comentário, levantando o cantil e dando mais um gole amargo. A mulher o fitou por um momento.
— Seu vocal ao vivo é melhor do que eu esperava — disse ela. Talvez isso fosse um elogio na mente distorcida dela.
— Seu som também não é dos piores — respondeu ele, com o máximo de cordialidade que podia direcionar a ela. O que não era muita.
Como se essa troca de palavras já não fosse inesperada o suficiente, foi além e sorriu. Sorriu para ele. Um sorriso sincero que o deixou com um vinco no meio das sobrancelhas.
sentiu um cutucão na perna e quando olhou viu Kalil estendendo-lhe o baseado. Pegou o cigarro enrolado entre os dedos e deu dois tragos generosos, sentindo a pressão baixar instantaneamente.
— Podemos ensaiar a setlist das próximas vezes? — perguntou a ninguém em especial.
— Essa é a ideia — respondeu o baterista, esticando-se até se deitar sobre o carpete, encarando o teto. — só não é muito bom com pessoas novas.
O vocalista encarou o amigo, incrédulo.
— Como vamos substituir King For A Day? — perguntou Tony, brincando com as cordas do baixo.
— Podemos fazer um cover diferente em cada show — sugeriu .
a ofereceu o baseado com um sorriso ladino nos lábios.
— Gostou do que viu, ?
A guitarrista arqueou uma sobrancelha aproximando-se além do necessário para pegar o cigarro enrolado.
— E se eu tiver gostado? — disse ela, o rosto à poucos centímetros do dele.
— Na verdade, isso é uma ótima ideia — ouviram Kalil dizer.
A guitarrista piscou algumas vezes e retomou a sua posição original, distanciando-se de e assoprando fumaça para cima.
— É claro que é uma ótima ideia — disse ela com uma risada sem humor. — Se vocês vão decepcionar os fãs privando-os de uma das melhores músicas que vocês já fizeram, o mínimo que podemos fazer é surpreendê-los em cada show.
— Não vamos decepcionar os fãs — sibilou.
deu mais dois tragos e passou o baseado para Tony.
— Se você está dizendo…
Ainda no primeiro trago, o baixista teve um acesso de tosses que amenizou o clima com algumas risadas contidas de todos os presentes. jogou para o amigo uma garrafa de vodka que estava jogada ao seu lado. Tony aceitou a bebida com uma careta no rosto, tomando alguns goles sofridos.
— Deveríamos começar a deixar garrafas d’água por aqui — disse o baixista após recuperar o fôlego, mas ainda com a voz fanha.
— Não seja fraco, de La Rocha! — respondeu Kalil.
— E perder cenas como essa? — ponderou sorridente. — De jeito nenhum!
O grupo riu como grandes amigos. Até mesmo .
— Você deveria parar de tentar respirar enquanto traga — o baterista implicou. — São coisas diferentes, você sabe.
— Se você tabacasse menos o baseado, talvez eu não precisasse ficar buscando por ar por conta desse gosto de merda — resmungou Tony.
— E você fuma todas as vezes — argumentou Kalil, olhando-o com um sorriso canalha nos lábios.
— Meninas… — censurou em um tom divertido.
deixou um riso frouxo escapar. Deveria ser o álcool.
— Tudo bem — Tony cedeu rapidamente, fazendo os amigos rirem. — Como vamos escolher as músicas?
A guitarrista deu de ombros.
— São quatro shows, quatro músicas, quatro integrantes da banda…
— Nem pensar! — protestou.
jogou a cabeça para trás em uma gargalhada.
— Sabe, , eu tomaria cuidado se eu fosse você...
— E por que eu faria isso? — perguntou ele, impaciente.
— Qualquer hora dessas eu posso acabar gostando — respondeu a mulher com uma piscadela.
O vocalista bufou em resposta.
— Ela tem razão — disse Kalil.
— Eu não estou muito inclinado a discutir fantasias sexuais com vocês — resmungou.
— Sobre os covers — o baterista complementou.
O vocalista soltou um estalo com a boca.
— Você está mesmo pensando em deixar o de La Rocha e uma desconhecida escolherem alguma coisa?
— Estou.
Tony riu escandalosamente.
— Realmente, vocês estão ficando loucos — disse o baixista, espreguiçando-se.
— Eu entendo que vocês criaram essa personalidade revoltada, introspectiva e problemática pra banda e que isso é a identidade musical de vocês — argumentou, limpando as unhas deliberadamente. — Mas, quer vocês queiram ou não, as coisas mudaram. Vocês perderam um guitarrista e ganharam outra. O público quer se conectar não só com o que vocês eram, mas com o que nós podemos ser.
quase rosnou.
— Acho que você não está ajudando muito — sussurrou o baixista para a mulher.
— Não diga — revirou os olhos, afundando no sofá.
— — a voz de a chamou.
A guitarrista o encarou com o cenho franzido.
— Pelo seu incomodo — disse ele, e jogou para ela o cantil que carregava com menos da metade do seu conteúdo original.
encarou o vocalista com desprezo antes de abrir o recipiente e despejar todo o seu conteúdo em sua boca sem expressar uma reação sequer.
Aparentemente ela não iria cair sem lutar.
Capítulo 3 — The Downfall of Us All
“It’s not easy making a name for yourself
Where do you draw the line?
I never thought I’d be in this far”
— The Downfall of Us All, A Day To Remember
Uma risadinha divertida soou no aparelho.
— Os eventos sempre são na sua casa — rebateu Tony do outro lado da linha. Só pelo tom de voz o vocalista sabia que o amigo estava sorrindo. Aquele traidor.
suspirou audivelmente.
— Eu não quero ela aqui.
— É, não tem muito o que podemos fazer — o baixista fez um estalo com a boca. — já que ela é meio que a atração principal.
O vocalista se jogou sobre a sua cama, sendo engolido pelos lençóis espalhados sobre ela. Anthony pareceu pensar por um momento, já que cantarolava uma melodia aleatória no alto-falante como costumava fazer nessas ocasiões. bufou, arrancando do amigo uma risadinha.
— Achei que já tivesse superado isso — disse Tony, a voz modulada pelo sorriso que com certeza estampava sua face — Estavam até bebendo juntos nos ensaios nas últimas semanas…
— Eu estava bêbado — resmungou .
— Você está sempre bêbado…
— Exatamente.
— Por que estamos tendo essa conversa, então? — ponderou o baixista, bem-humorado. — Basta abrir uma daquelas suas garrafas caras e voilà.
— Eu só quero reclamar, se eu quisesse soluções teria ligado para o Kalil.
— Meu Deus, não é possível que eu tô parecendo o Kalil! — praguejou Tony em meio a sons desconexos da ligação. O vocalista podia jurar que o amigo estava passando as mãos descontroladamente sobre os cabelos curtos ou até se esfregando sobre a cama ou sofá. — E a sua namorada?
— O que tem ela?
— Me diga você, você não tem falado muito dela, e isso é desde antes de New York.
— Não há nada pra falar, já estamos juntos há quase um ano, não existem muitas novidades num relacionamento à essa altura… — revirou os olhos impaciente.
— Por que não reclama com ela?
— Porque ela está adorando essa merda — rebateu ele impaciente. — Ela deve acreditar que é algum tipo de punição divina ou algo assim.
— Não é como se você não estivesse merecendo — pontuou Tony.
— Eu não acredito nessas coisas.
— Sorte sua.
riu sem humor.
— Vocês deveriam parar com isso, sabe? — disse Anthony com um suspiro do outro lado da linha.
— Não sei do que você está falando.
— De ficarem machucando um ao outro — continuou o baixista. — Vocês têm essa mania, nenhum dos dois faz questão um do outro e quando a mídia começa a cair em cima arranjam a maior confusão por causa do que outras pessoas estão falando.
— A gente não…
— E tá tudo bem, cara, vocês não têm nada a ver um com o outro.
— A gente se gosta, Tony…
— Não do jeito certo — rebateu o baixista. — Eu sei que você ficou gamado quando eu apresentei vocês e também sei que vocês se sentem sim atraídos um pelo outro, mas você é meu amigo, , e ela também. Eu e ela temos muito mais a ver que vocês dois.
— O que você quer dizer com isso? — revirou os olhos, já arrependido de ter iniciado essa ligação. — Não é como se você fosse ficar com ela se nós não estivéssemos juntos.
— Não mesmo!
Os amigos riram juntos.
— Não é como se eu nunca tivesse dito isso antes — argumentou Anthony.
— Se eu não te ouvi antes, por que estamos falando sobre isso?
— Porque nós dois conhecemos uma pessoa recentemente que faz super o seu tipo...
não acreditou nas palavras que saíram pelo alto-falante, não mesmo. Quando se deu conta já estava em meio a uma crise desenfreada de tosse.
— Eu tô falando sério — Tony resmungou quando o amigo pareceu respirar normalmente. — Ela é super maneira, tem um bom gosto musical, engraçada, gata…
— Eu nem reparei…
— Você iria gostar dela se desse uma chance — pontuou La Rocha.
— Você sabe que eu não vou comer a , não sabe? — cortou impaciente.
— Você é quem sabe — o baixista se fez de desentendido. — Ela faz o tipo de Kalil também…
— Espero que ele foda ela até ela desaparecer de minha vida — respondeu irredutível.
— Você não tem jeito.
— Por que você não incomoda o Casablanca? — resmungou o vocalista.
O baixista riu abafado.
— Ao menos converse com a Margot — Tony disse suavemente. — Pare de ser um cuzão com a minha amiga.
— Posso pensar sobre isso.
— Vou ter que me contentar com isso — La Rocha suspirou — Melhor eu ir, quero chegar antes de você mais tarde.
— Não vai ser muito difícil — resmungou.
— E é por isso que os eventos sempre são na sua casa — finalizou Tony com uma gargalhada, desligando a chamada antes que o amigo tivesse a chance de protestar.
Antes que pudesse se preparar psicologicamente para o que estava por vir, a festa já tomava vida na ampla sala de estar da casa de . Meia centena de pessoas se reuniam sob o pé direito exagerado da mansão, bem servidos de champanhe e muita conversa afiada. se demorou apoiado ao batente do andar superior, adiando o inevitável. Vestia uma regata canelada preta ajustada ao corpo que deixava a completude dos seus braços tatuados e definidos à mostra, combinados com uma calça de couro vermelha baggy e uma Dr. Martens nos pés. Analisava as pessoas andando para lá e para cá com o cenho franzido e um copo de whisky entre os dedos cobertos por uma quantidade exagerada de anéis. Reconheceu amigos, familiares, sócios da West Coast, algumas personalidades importantes do cenário do rock americano e uma dúzia agentes de comunicação previamente contratados para cobrir o evento. Seria uma maravilha.
Depois de alguns goles violentos em sua bebida, o vocalista decidiu finalmente erguer a cabeça e enfrentar o seu pesadelo do dia. Em poucos minutos foi encontrado por Doc sob as luzes negras e vermelhas que ambientavam os cômodos, enquanto tentava ferozmente driblar qualquer interação social com um aceno de cabeça e um sorriso forçado.
— Você costumava ser melhor em festas — disse o agente em forma de cumprimento, ao erguer sua taça em um brinde amistoso.
o olhou com desconfiança.
— Eu costumava ser muitas coisas.
Doc riu sem humor.
— Sabe o que eu acho, ? — perguntou o homem, sua pele negra engolindo os poucos resquícios de luz do ambiente.
— Não, Doc — respondeu o músico em tom de deboche. — Por favor, me conceda mais uma das suas doses de sabedoria.
— Isso tudo… — o agente começou com um sorriso, ao ver o amigo e cliente revirar os olhos. — Não é sobre as coisas que acontecem com você. É sobre o que você faz com isso.
— Eu preferia uma dose — respondeu espirituoso, antes de bebericar o seu copo.
Anthony que estava por perto não perdeu a oportunidade de se aproximar com todo o seu carisma. O baixista usava uma camisa preta transparente solta no corpo, por dentro de uma calça de cargo com uma diversidade de bolsos e zíperes característicos do street wear. O sorriso nos lábios de La Rocha chamava confusão. Mas quando é que não o fazia?
— Vejo que já começou os trabalhos — disse Tony observando o copo do vocalista com um olhar malicioso.
— É o jeito — respondeu, dando um tapinha no ombro do amigo como cumprimento.
— Tá com sorte, vai poder aproveitar um pouco antes da sua cara metade aparecer — brincou o baixista, arrancando do amigo um suspiro impaciente.
— Não cante vitória tão cedo, Margot está vindo para cá — alertou Doc indicando a mulher com um aceno de cabeça.
O vocalista revirou os olhos, ignorando os comentários dos outros dois.
— Não era dessa cara metade que eu estava falando — cantarolou Tony, antes de ser empurrado pelo amigo e encerrar o assunto com uma risada escandalosa.
O agente olhou para com uma sobrancelha arqueada, sem entender claramente a conversa dos músicos. Mas se limitou a negar com a cabeça, respirando fundo uma única vez antes de caminhar em direção à mulher que já chegava ao seu alcance.
Margot o lançou um sorriso malicioso quando seus olhares se encontraram. Usava um vestido exagerado para a ocasião, longo demais, apertado demais, brilhoso demais. Apenas o tecido preto era capaz de, com muito esforço, transmitir a energia do evento.
precisou forçar um sorriso. Sabia que ela tinha feito de propósito, ela sempre fazia. A modelo gostava de ser referência de moda nos sites e revistas de fofoca e não perdia uma oportunidade de ostentar designs das maiores e mais caras grifes do ramo.
depositou uma de suas mãos delicadamente sobre a lombar da mulher quando esta se inclinou espalmando o seu peito para selar os seus lábios em um gesto coreografado. Exatamente como costumavam fazer.
— Achei que teria que subir pra te buscar — disse Margot divertidamente em cumprimento.
estreitou os olhos desconfiado.
— Você não perderia isso por nada, não é?
A modelo deu uma risadinha, entrelaçando um dos braços com o do namorado e conduzindo-o sutilmente até os amigos que ficaram para trás.
Decidiu fazer um esforço para melhorar o clima com Margot, sabia que estava pisando na bola e levar a melhor do seu temperamento volátil não iria ajudar em nada. Mesmo que às vezes a mulher lhe desse nos nervos.
— Você está bonita…
A modelo soltou uma gargalhada gostosa, fazendo permitir que seus lábios até se curvassem levemente para cima.
— Você também não está nada mal — disse ela, com uma piscadela. — Qualquer dia desses você poderia falar com a gravadora para chamar a minha estilista para vestir vocês, tenho certeza de que ficariam ainda mais bonitos…
O vocalista engoliu em seco. Não podia responder o não de sempre. Nem mesmo rir para fugir assunto. Muito menos criticar as roupas que nada tinham a ver com os eventos ou a estética da banda. Então apenas murmurou:
— Podemos falar com Leto da próxima vez…
Margot precisou se esforçar para escutar as palavras em meio ao caos do evento, mas quando compreendeu o que foi dito quase não conseguiu conter os pulinhos de felicidade. pôde finalmente suspirar aliviado.
— Obrigada por trazerem ele pra mim — disse Margot sorridente para os homens que os esperavam.
— Não poderíamos deixar a dama sem o seu vagabundo — brincou Tony.
— Se o universo permitir ele não vai ser vagabundo por muito mais tempo — respondeu a modelo acariciando o braço do vocalista como quem acaricia um animal de estimação.
bufou.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou o baixista, encarando o amigo como se o desafiasse a responder.
— disse que vai tentar falar com a West Coast sobre chamar a agência para vestir o próximo evento da Disclaimer — explicou Margot ainda vibrando com a expectativa da conquista.
Doc riu entretido.
— Boa sorte em colocar Kalil Casablanca dentro de um terno — brincou o agente com um sorriso irônico no rosto.
— Falando de mim?
Como se convocado pela menção do seu nome, o baterista apareceu atrás deles com as mãos nos bolsos e o mesmo semblante tranquilo de sempre. Mas…
— Belo terno, cara! — elogiou Tony, o rosto vermelho como quem segura uma risada daquelas.
Anthony não estava brincado. Kalil vestia calças de cintura alta de cetim pretas e um blaser oversized condecorado por um padrão de spikes aberto no mesmo estilo que deixava o seu tronco nu e tatuado exposto como se fosse a própria camisa de alfaiataria.
— Que porra… — não conseguiu nem se expressar.
— Obrigado por trocar comigo, La Rocha — o baterista disse bagunçando os cabelos compridos, completamente sem graça.
— Nós homens nus precisamos nos unir — respondeu Tony com uma piscadinha arrancando uma risada de todos.
engoliu em seco, travando uma batalha interna entre odiar o amigo por acabar com sua única chance de se livrar da ideia de merda de Margot e apoiá-lo. De um jeito ou de outro, a escolha era óbvia.
— Ficou bem em você, irmão.
— Achei que fosse ser legal, no meio de todo esse clima de mudança e tudo mais — disse o baterista, dando de ombros.
Tudo o que pôde fazer foi oferecê-lo mais um daqueles sorrisos amarelos. Parecia que estava fazendo muito isso ultimamente.
— Vocês viram a em algum lugar? — perguntou Kalil para ninguém em especial.
sentiu o estômago afundar apenas com aquela combinação de letras malditas.
— Ela ainda não chegou — respondeu Doc simplesmente.
— Parece alguém que conhecemos — ironizou Tony, lançando um olhar malicioso para .
O vocalista apenas o ignorou.
— Eu vou precisar de mais algumas bebidas — resmungou ele, sem se importar em ser ouvido ao arrastar Margot para longe dos amigos em direção ao bar.
fez um bom uso da hora que se sucedeu, distraído por entre doses diversificadas, um copo whisky sempre cheio, um cigarro constantemente aceso entre os dedos e os beijos inebriantes da namorada.
Estava perdido na língua de Margot quando os ruídos constantes de música e conversas da festa se transformaram em único clamor fervoroso. soube exatamente o que isso significava. Separou seus lábios dos da mulher em seu colo, juntando suas testas e respirando fundo, ainda de olhos fechados.
Seu maior pesadelo finalmente se tornaria realidade.
Quando conseguiu acalmar a respiração, ele ergueu o olhar para a porta da frente e a viu. Todos os aplausos, gritos e assobios só poderiam ser para ela. A mulher vestia um corset vermelho que valorizava o seu colo e um par de botas de vinil da mesma cor. Suas calças pretas tinham tantos recortes que poderiam facilmente ser consideradas um cinto que segurava o mosaico de tecido e pele. Com os cabelos presos em duas tranças bem apertadas, um delineado grosso e um conjunto de pulseiras e cordões de spike e arame farpado, o seu visual todo indicava problema. Um problema difícil de se livrar.
Diferente do que já tinha visto antes, mais do que nunca parecia estar exatamente onde ela deveria estar. E isso o matou por dentro.
— Merda! — Margot xingou baixinho se ajeitando no colo do namorado. — Ela é gostosa.
demorou um instante para processar o que ela tinha falado. Não tinha nem ao menos certeza de que estava piscando, hipnotizando pela visão deturpada da mulher que começava a dominar cada centímetro do ambiente em que ocupava. Expansiva. Soberana. Intocável. E terminantemente proibida.
— O que? — perguntou ele perdido, os olhos arregalados ainda presos no mesmo lugar. — Quem?
A mulher em seu colo suspirou audivelmente.
— A guitarrista.
O vocalista desviou o olhar para encarar sua namorada, ainda atônito. Não por muito tempo, é claro. Seu olhar parecia ser inevitavelmente atraído para o outro lado do cômodo, como o de todas as outras pessoas. Todos sob a influência do mesmo feitiço profano.
— É — murmurou pensativo. — Parece que ela é.
Margot virou-se para ele com a sobrancelha arqueada.
— Por que não disse nada antes? — questionou ela. não soube dizer se o seu tom era acusatório ou apenas… Curioso?
— Ela não era há alguns dias atrás — respondeu ele com o cenho franzido.
Margot revirou os olhos e colocou-se de pé em um pulo, estendendo a mão para o namorado, abrindo-a e fechando-a algumas vezes em um pedido silencioso.
— Venha me apresentar — disse ela com uma tranquilidade que não tinha.
— Você vai ter que esperar, gatinha — disse Anthony ao aproximar-se de súbito com uma bebida colorida em mãos. — É hora do show!
Com isso, o baixista espalmou firmemente a nuca do amigo, arrastando-o por entre a multidão na única direção para onde não queria ir. Na direção dela.
Quando os amigos alcançaram a aglomeração que seguia a guitarrista para dentro da sala de estar, chegaram no mesmo momento em que Leto e Doc a interceptaram o seu caminho para sabe-se lá onde.
— Você está atrasada — ouviram o alerta de Doc quando se aproximaram.
— Desculpe, tive um problema com a correia da moto quando estava saindo — explicou a mulher, sacando um maço de cigarros de algum dos retalhos da sua calça, colocando um na boca e acendendo-o sem cerimônias.
— — disse Leto calmamente, apertando o cenho com os dedos em garra. — Nós mandamos um carro.
A guitarrista soprou a primeira lufada de fumaça em sua direção e lançou ao produtor um sorriso endiabrado.
— Não é agora que eu vou começar a andar de carro — respondeu ela com uma piscadela.
— Certo — Leto respirou fundo. teve certeza de que ele tentava realinhar os seus chácras, o que quer que isso quisesse dizer. Se fosse qualquer outra pessoa protagonizando aquela cena, ele acharia hilário, mas esse não era o caso. — Vamos puxar o anúncio em dez minutos.
assentiu, olhando ao redor como se analisasse o evento. Quando seu olhar cruzou com o do vocalista suas sobrancelhas se ergueram em surpresa e arrogância.
— Ora, ora — disse ela com um sorriso predatório, antes de dar mais um trago em seu cigarro. — Veio me dar as boas-vindas?
E tão rápido quanto o feitiço o atingiu, ele se dissipou, deixando com a sua boa e velha carranca.
— Tente não quebrar nada — foi o que ele disse. Não um cumprimento. Nem uma pergunta cordial. Apenas uma repressão nua e crua.
A guitarrista assoprou a fumaça em sua direção, estreitando os olhos.
— Não posso prometer nada.
Anthony riu, entretido com as provocações entre o casal de amigos que já se tornava rotina aos poucos, mesmo que o vocalista negasse até o túmulo.
— Espero que isso não se aplique a mim — brincou o baixista, mordendo o canudo colorido de seu drink tão colorido quanto. — Você sabe o quanto eu adoro mudar a sua mobília.
resmungou, pegando o copo das mãos do amigo e dando um gole generoso sem se importar com as gotas que o canudo pendente deixava escorrer pelo seu pescoço desnudo. Tony riu mais uma vez, limpando o amigo com o polegar e lambendo os dedos sujos em seguida.
— Que desperdício…
O vocalista revirou os olhos teatralmente, antes de oferecer-lhe um dos seus sorrisos mais canalhas.
— Já que você gosta tanto de me limpar, você deveria colocar aquela sua fantasia indecente e vir arrumar a sua bagunça e a da sua amiguinha amanhã.
— Se você quer ver minhas pernas, , sabe que pode pedir — Tony respondeu com uma piscadela, arrancando uma risada tanto do vocalista quanto da guitarrista.
e pararam de rir imediatamente quando perceberam. O baixista precisou morder a língua para não fazer um comentário que provavelmente custaria seu drink, ou na pior das hipóteses a roupa impecável na hora do anúncio.
— Não entendo por que eu deveria limpar a sujeira dela — Tony se fez de desentendido, indicando a mulher ao seu lado com a cabeça, ao mesmo tempo em que retomou seu copo. Decidiu, então, arriscar o seu comentário mais sutil. Não conseguia resistir. — Tenho certeza que ela ficaria tão bem naquela roupa quanto eu.
encarou o amigo desconfiada, sem perceber o olhar colérico do vocalista.
— não precisa ficar nessa casa mais do que o necessário, não é? — pontuou em um misto de deboche e ironia, seu pescoço pendendo em um ângulo viperino.
— Surpreendentemente, você não poderia estar mais certo — respondeu ela, inclinando-se sobre Tony que estava entre eles e abocanhando o canudo colorido para experimentar a bebida. O olhar dela não poderia ser descrito de outra forma que não sensual. Os olhos fixos em , a boca em bico ao redor do canudo.
O vocalista piscou uma, duas, três vezes, antes de receber um tapinha nas costas.
— Vocês três — Doc anunciou, alternando o olhar entre a mulher e os dois homens. — Encontrem Kalil e se reúnam atrás do palanque, não temos mais tempo a perder.
mudou o peso de uma perna para a outra em desconforto, mas concordou com a cabeça, lançando um olhar significativo para os outros dois e seguindo seu rumo para o bar, esperando que os outros o seguissem. Mesmo de costas, o vocalista conseguia sentir a presença latente de às suas costas. Os olhares que os acompanhavam a cada esbarrar de braços também não ajudavam. Como esperado, encontraram o baterista escorado em uma pilastra, conversando perigosamente próximo à uma ruiva, mas ele não teve nem tempo de protestar ao ser puxado pelo aperto de aço de Tony para o palco improvisado montado na sala principal da casa.
Eram apenas dez minutos, mas pareceram mais serem dez horas. Durante todo esse curto, longo, tempo, precisou se esforçar mais o que ele achava possível para não olhar à mulher ao seu lado de canto do olho. A fumaça da ponta do cigarro em sua boca suja pairava em sua visão periférica como um convite, uma tentação. Mas não se permitiria olhá-la. Não se permitiria ser enganado pelos seus sentidos. Não quando isso envolvia . Não mesmo.
Ele não foi capaz de resistir.
— Tá olhando o quê? — a voz da guitarrista soou ríspida, mesmo que para um sussurro.
franziu o cenho, olhando-a de forma estranha. Ela suspirou impaciente.
— Você tá esquisita — disse ele simplesmente.
cruzou os braços, encarando-o com uma sobrancelha arqueada.
— O que aconteceu com bonitinha? — desdenhou ela, segurando um sorriso.
O vocalista abriu a boca para responder, mas não foi capaz de emitir nenhum som. deixou uma gargalhada divertida escapar de seus lábios e virou-se para frente, determinada a ignorá-lo, mesmo que ainda tivesse os lábios curvados para cima.
Quando a música cessou e as luzes se apagaram, eles souberam que tinha chegado a hora. O último ato. não conseguiu decidir se era um alívio ou apenas mais um desespero. Os membros da banda esperaram em um silêncio fúnebre, mas cheio de expectativa. Não havia nada a ser dito. Antes que pudessem se preparar, um conjunto de holofotes se acendeu sobre o palanque no mesmo momento em que Leto colocou-se diante do público bem no centro da estrutura com um microfone em mãos.
— Boa noite!
A plateia reagiu com gritos e assobios entre uma salva de palmas entusiasmada. O som um pouco mais ensurdecedor do que o vocalista esperava, ao sentir a adrenalina da antecipação.
— Obrigado pela atenção! — disse ele. O produtor olhou de esguelha para o grupo que esperava ao fundo do palco improvisado. — Rapazes, por que vocês não sobem aqui?
não gostou da ideia, mas seguiu Tony e Kalil quando ambos se dirigiram para a estrutura abobada, posicionando-se atrás do porta-voz da gravadora. Era estranho estar diante de tantas pessoas depois de tudo. Sentia-se como um animal de circo, uma aberração. Era claustrofóbico. Os olhos em sua direção pareciam se multiplicar a cada segundo, cheios de expectativa. Prontos para vê-lo perder a cabeça.
Leto os ofereceu um sorriso amigável antes de volta-se novamente para a plateia.
— Sabe — o produtor retomou seu discurso. — Quando Doc me apresentou esses caras, eles eram um grupo de desajustados...
— Nós ainda somos! — Tony gritou divertidamente, arrancando risadas por toda a multidão.
— Isso é verdade — Leto riu bem-humorado. — Mas quando eu conheci esses caras eu nem acreditei que o aqui era capaz de cantar alguma coisa, ele não abria a boca — o público riu com o comentário, arrancando também algumas risadas contidas da banda. — o que era muito estranho para alguém que estava estudando para ser advogado. Anthony estava fazendo faculdade de enfermagem, era impossível coincidir as agendas. E por algum motivo que até hoje eu não entendo Kalil viajava duas vezes por mês para New York para estudar culinária.
Algumas pessoas gritaram animadas em coro, o som fez o vocalista realmente se questionar se realmente teriam mais pessoas ali. Esse definitivamente não era o som de uma reunião íntima. sabia mais do que ninguém.
— No meio disso tudo eles encontravam tempo para ter uma banda de garagem e gritar suas frustrações pra quem quisesse ouvir em uma daquelas festas de fraternidade que todos nós sabemos como são.
Leto se virou mais uma vez, trocando com os rapazes um daqueles olhares cúmplices. Mas quando sustentou os olhos do vocalista, pensou ter visto algo como culpa e pontada de dor. Não podia ser por acaso. O músico precisou engolir em seco para se preparar para o que estava por vir.
— Mas quando eu conheci Gus eu entendi exatamente o que Doc queria me mostrar... Ele era um pé no saco, aparecia na gravadora uma vez por mês só pra tentar agendar uma reunião. Tão insistente que, apesar de ignorarmos todas as suas tentativas, em um desses dias ele conseguiu interceptar Doc no estacionamento. Como ele conseguiu chegar lá sem autorização eu não sei, mas ainda bem que ele conseguiu. Porque no momento em que Doc apareceu na minha sala, sem hora marcada, com aquele cara magrinho, usando uma camisa social que claramente não era dele e com uma guitarra nas costas eu soube que algo grande estava para acontecer. Bastou colocar a correia da guitarra e tocar algumas notas… E eu soube. Doc também sabia. — ele suspirou, como se lembrasse de cada detalhe. — Aquele cara... Ele era a porra de uma estrela do rock da cabeça aos pés.
fechou os olhos por um breve instante, mudando o peso de uma perna para a outra desconfortavelmente. Sabia que era impossível passar por aquele momento sem falar de Gus. Era inevitável. Ainda assim, saber não tornava aquilo mais fácil.
— Eu acho que falo por todos nós quando digo que não estaríamos aqui hoje se não fosse por ele. — continuou Leto, seu tom de voz cauteloso. — O que aconteceu com Gus é conhecimento público e afetou a todos nós. Apesar de termos soltado algumas notas oficiais, tudo ainda é muito recente e muito difícil de lidar. Decidimos então aproveitar esse momento pra fazer uma homenagem à August, por tudo o que ele foi e ainda é.
Em sua visão periférica, o vocalista notou um telão se erguer às suas costas. O tempo pareceu parar por um momento. Teve a sensação de que todas as pessoas ali presentes houvessem prendido a respiração. Não ousou olhar para trás. Afinal, não precisava. Ele ouviu, e sentiu o ar faltar em seus pulmões instantaneamente.
Mesmo depois de meses o som daquela risada estava para sempre gravado em sua memória.
Alta. Contagiante.
August.
não foi capaz de controlar suas pernas. Entrou em piloto automático. Quando se deu conta já tinha saído do palco, atravessado o cômodo e saído pela porta da frente. Apenas quando o ar fresco tocou o seu rosto ele se deu conta do que havia acontecido.
A voz de Gus ainda ecoava em sua mente. Dando risada. Chamando o seu nome. Falando bobagens.
Naquele maldito compilado de vídeos.
definitivamente não estava pronto para isso.
O vocalista precisou se sentar na escadaria de mármore. Tirou o isqueiro, o maço e o celular dos bolsos, sentindo os olhos arderem. Não esperava ouvir aquela voz. Não quando ainda tinha uma mensagem de voz dele em sua caixa postal. Nem mesmo o primeiro trago foi capaz de amenizar o aperto em seu peito. Ou o terceiro. Ou o quinto.
Quase não percebeu quando um grupo de pessoas falando alto passou por ele aos tropeços a caminho da festa. E mais outro. Muito menos quando alguns pares de flashes brilharam em sua direção. Não. Seus olhos estavam vidrados na tela. Encarando o número que jamais seria discado novamente.
Apenas quando já estava fumando o filtro do cigarro, sentiu uma mão tocar-lhe o ombro. Kalil não tinha a melhor das expressões no rosto. imaginava que não estivesse muito diferente.
— Ainda bem que você me deu um motivo pra sair também — disse o baterista com uma careta. — Aquilo foi uma merda.
não conseguiu fazer mais do que encará-lo, sem uma única expressão no rosto. Ainda em choque, aceitou o braço estendido do amigo, sem se importar onde largou os restos mortais do cigarro. Deixou que Kalil o conduzisse de volta para a mansão, sentindo a mão sobre seu ombro, ao confiar que a sua presença ali significava que o pior já tinha passado.
Os aplausos da multidão abafaram todo e qualquer pensamento de no mesmo instante em que atravessaram as portas. A sala parecia ainda mais cheia do que antes. Como se mais e mais pessoas não parassem de chegar. A mão de Kalil em seu ombro era a única coisa que parecia real enquanto abria caminho por entre a multidão. Sentia-se como um espectro, flutuando através dos corpos sem ao menos ser notado. Uma simples memória do amigo que se foi.
Quando olhou para o palco, o produtor já tinha o microfone novamente em mãos, dando sequência ao seu discurso com os olhos distantes. Como se procurasse alguém ao fundo.
— Ele não iria querer que o seu sonho acabasse. É pensando nisso que nós queremos continuar o seu legado e honrar a sua história. Para isso ser possível, nós precisamos encontrar reforços — a voz de Leto reverberou pelas paredes através dos alto-falantes.
O olhar do produtor encontrou o de com um brilho de reconhecimento. Por um curto momento de silêncio, os dois se encararam em uma conversa silenciosa. O vocalista podia jurar que no fundo, bem no fundo, o brilho não passava de lágrimas que ele lutava para segurar. E apesar de todo o ressentimento, mágoa e revolta envolvidos naquela troca de olhares, havia também compreensão. sentiu o peito apertar, mas engoliu o orgulho uma última vez antes de assentir para Leto em sinal de aceitação.
O produtor tomou um longo fôlego para proferir a sentença seguinte.
A sentença final.
— É com muito prazer, essa noite, que eu apresento a vocês a nova guitarrista da banda Disclaimer.
Foi quando ela subiu ao palco.
O queixo erguido. O olhar determinado. O belo par de pernas. O maldito sorriso debochado brincando nos lábios.
pareceu finalmente entender o que Leto disse em seu discurso sobre o amigo alguns minutos antes. Porque, de repente, ele soube. Ali, diante de todas aquelas pessoas, ela parecia a porra de uma estrela do rock.
— !
Capítulo 4 — Cum on Feel the Noize
“So you think I got an evil mind
I'll tell you honey
I don't know why, I don't know why
So you think my singing's out of time
It makes me money
I don't know why, I don't know why anymore”
— Cum on Feel the Noize, Quiet Riot.
abriu um sorriso sádico no momento em que os seus olhares se cruzaram, fazendo com que todos os pelos do corpo do vocalista se arrepiassem.
— É uma honra poder fazer parte disso — disse ela, quando pegou o microfone que Leto ofereceu entre seus dedos de unhas longas e afiadas, sua voz arrastada e provocante. — Vamos aproveitar essa festa mais baixos que um porão! Obrigada!
Com um sorriso viperino para a multidão, a nova guitarrista da banda Disclaimer simplesmente largou o microfone no chão sem se importar com o eco agudo da microfonia ao deixar o palco sem olhar para trás.
não tinha mais certeza se estava piscando.
— Você pode até não gostar dela — o vocalista ouviu o amigo dizer atrás de si. — Mas ela tem atitude.
nem ao menos respondeu. Estava sem palavras. Tudo o que conseguia fazer era encarar o palco agora vazio. Completamente atordoado pela constatação terrível sobre sua mais nova companheira de banda.
Uma estrela do rock. Assim como August era.
— !
Uma voz estridente o despertou do transe.
precisou piscar algumas vezes antes de se virar e encontrar o semblante impaciente da namorada, que foi logo substituído por preocupação.
— Você está bem? — perguntou Margot, entrelaçando seus braços delicadamente.
— Eu… — ponderou, coçando a nuca. — Precisava respirar um pouco.
O vocalista ouviu uma risada baixa.
— Pulmões de fumante, Margot, sabe como é, né? — disse Kalil ao seu lado, dando um tapinha amigável no ombro do companheiro de banda.
não encontrou palavras para agradecer o amigo quando o encarou ainda um pouco atordoado. Talvez estivesse mesmo entorpecido pelo álcool e pelos cigarros. Ao menos torcia que fosse por isso.
O baterista o lançou um olhar cúmplice.
precisou respirar fundo antes de oferecer um sorriso à namorada.
— Onde paramos, amor?
— Na parte em que você me apresenta à minha nova amiga — respondeu Margot, piscando repetidamente em uma inocência dissimulada.
bufou.
— Não podemos ficar só nós dois essa noite? — arriscou ele, com um tom preguiçoso que normalmente seria capaz de convencê-la.
Ouviram Kalil engasgar-se ao lado deles. O vocalista não hesitou em dar uma cotovelada no amigo.
— Até parece! — Margot soltou uma risada irônica, brincado com os dedos sobre o braço firme do namorado. — É impossível ficarmos só nós dois nesses eventos e você sabe disso! A qualquer momento Leto vai aparecer querendo falar de trabalho, Doc nunca quer conversar, mais tarde Tony vai passar mal… Seria bom ter outra mulher como companhia de vez em quando…
revirou os olhos e se poupou de ter que responder alguma coisa, mal esperando que ela terminasse de falar para se colocar em movimento e arrastando-a com ele. Ouviram Kalil rir em seu encalço quando começaram a abrir caminho entre as pessoas. Margot precisou agarrar-se mais firmemente ao braço dele à medida que avançavam por entre a multidão que só parecia aumentar mais e mais.
Cada passo que tentava dar, sentia-se como um fã em seu próprio show, lutando contra pares e pares de braços e pernas que já começavam a suar aglomerados entre si. O que antes era só uma sensação se tornou um fato incontestável. A festa havia realmente ficado mais cheia e não parecia que iria parar por ali. Quem havia chamado todas aquelas pessoas? A informação que recebeu era que seria uma reunião mais privada apenas para tornar público o anúncio, não aquilo. O que era muito estranho, porque, se as coisas não tivessem mudado tanto do dia para noite, essa confusão poderia ser facilmente obra de Gus. Mas ele nunca mais poderia fazer isso de novo.
Quanto mais avançavam na multidão, mais o vocalista tinha a impressão de que entrava no olho de um furacão. Lutando para chegar ao ponto onde todas as outras pessoas também tentavam chegar. O centro de tudo. A atração principal. Só esse pensamento fazia o estômago de se revirar. Estava ficando irritado. Sentia o braço de Margot se apertar cada vez mais em volta do seu e não tinha mais certeza se Kalil teria sido capaz de acompanhá-los. As gotas de suor começavam a brotar em sua testa, enquanto o ar ficava cada vez mais denso, de modo que o vocalista precisou recitar um mantra mental para preservar o pouco de paciência que lhe restava. De onde teria saído tanto filho da puta?
Quando estava prestes a estourar com algum idiota que derrubou bebida em seu ombro ou até mesmo lhe deu alguma cotovelada, ele a viu, conversando despreocupadamente com o baixista da banda enquanto andava sem nenhuma dificuldade naquele lugar apertado. Como se todas as outras pessoas ali presentes abrissem caminho para ela movimentar-se livremente e a seguissem como alguma espécie de profeta profano. É claro que era certamente o centro de toda e qualquer desgraça.
soltou um xingamento e apertou mais a namorada contra o seu corpo, abrindo caminho entre as pessoas sem se importar em usar força bruta ou ao menos pedir licença.
Quando chegou perto o suficiente, agarrou a guitarrista pelo pulso, parando-a em um solavanco em meio ao movimento contínuo pela multidão, recebendo como resposta uma cara feia e um empurrão leve que quebrou o contato entre os dois. Ambos se encararam por um momento, como se avaliassem a ameaça que o outro representava.
— — disse ele, seguido de um pigarro. — Essa é Margot.
A companheira de banda estreitou os olhos para ele e depois olhou para a mulher ao seu lado, os olhos brilhando divertidamente. O sorriso que surgiu em seus lábios era quase animalesco.
— Na verdade é — disse ela à modelo, espirituosamente.
— É um prazer finalmente te conhecer, — Margot sorriu, estendendo a mão em um cumprimento.
olhou a mão que a mulher oferecia e jogou a cabeça pra trás em uma gargalhada, antes de puxá-la para um abraço caloroso. O vocalista piscou os olhos desnorteado e não acreditou quando ouviu o som da risada da namorada.
— falou tanto de você — disse a modelo, ao afastar o rosto, mas ainda sim encarar a outra com os braços entrelaçados.
Uma mentira deslavada.
se engasgou com a própria saliva, fazendo as mulheres o encararem desconfiadas.
— Tenho certeza que sim — rolou os olhos.
— Porra… — resmungou.
— Espera — disse a guitarrista com uma cara estranha. — Você é Margot como a modelo da Calvin Klein?
— Em carne e osso — a outra mulher deu um sorriso felino.
— Garota, eu mal te reconheci com toda essa roupa — exclamou, puxando a modelo para mais um abraço alvoroçado. — Você tem os melhores peitos!
— Obrigada? — Margot deu uma risadinha, abraçando-a se volta. — Eu acho.
Foi quando viu os olhos de se arregalarem e o seu rosto se iluminar em um sorriso sincero antes de soltar a modelo. Se o vocalista já não estava entendendo muita coisa, agora ele entendia menos ainda.
— Pete! — exclamou ela, com um sorriso no rosto, atravessando o grupo de amigos e correndo na direção contrária.
— E aí, ? — ouviram alguém gritar sobre o barulho das demais pessoas. — Festa maneira.
Os demais acompanharam a guitarrista com o olhar a tempo de vê-la jogar-se nos braços de um homem misterioso na multidão. Os braços tatuados dele envolveram a cintura da mulher possessivamente em um abraço carinhoso quando ele escondeu o rosto no pescoço dela, parecendo respirar fundo. Quando se afastaram minimamente, conseguiram ver um pouco mais do desconhecido, a cabeça raspada que mal disfarçava os riscos de tatuagens até ali, o cavanhaque desgrenhado e as roupas completamente pretas grandes demais para serem do seu tamanho.
tinha um namorado?
franziu o cenho, assistindo à interação inesperada. Viu o homem e a mulher conversarem entusiasmadamente, rirem alto e se tocarem ocasionalmente, como apenas pessoas que se conhecem bem permitem-se tocar um ao outro. O desconhecido passou um braço sobre o ombro da guitarrista e seguiu abraçado com ela, ainda conversando de perto, na direção do grupo que os observava em um silêncio curioso.
Ao se aproximar novamente, ofereceu aos outros uma expressão simpática que não fazia jus a pessoa que achavam que conheciam.
— Pessoal — disse ela, cantarolando. — Esse é-
— Massacre — o homem disse em cima dela, com um sorriso torto no qual não confiou nem um pouco.
deu uma risadinha ao seu lado, como se compartilhassem de uma piada interna da qual ninguém mais tinha conhecimento. O vocalista não gostou nada disso.
— Certo, esse é o Massacre — reelaborou ela, com uma expressão engraçada.
O grupo se entreolhou sem entender.
— Massacre? — perguntou Tony em um sussurro, para ninguém em especial. — Por que isso me parece um nome de…
A guitarrista riu de alguma coisa que o seu acompanhante disse, chamando novamente a atenção de todos quando se voltou para ele.
— Você trouxe o bagulho?
— Você sabe que eu sempre trago, gata — ele deu uma piscadela, acariciando o bolso da frente de seu colete preto. — Espero que não se importe, chamei uns conhecidos pra valer a viagem.
Então era por isso que a festa estava tão cheia?
fechou as mãos em punhos. Incrédulo que era sem noção ao ponto de vazar a localização de um evento tão sigiloso para uma pessoa daquelas. Um traficantezinho de meia tigela. Quem dirá de sua residência pessoal. Em poucos instantes, o vocalista já travava uma batalha interna contra o seu temperamento. Nada como mais uma noite tranquila para a banda Disclaimer...
Antes que pudesse resolver o seu dilema a resposta veio, mas não de sua boca.
— Claro que não, alguém tem que começar essa festa! — a mulher disse, dando palminhas de alegria.
Sem aviso prévio, a entrelaçou os dedos aos de Margot, puxando-a junto de si com mais um daqueles sorrisos que ela não parava de exibir durante aquela noite. sentiu seu maxilar trincar quando se viu obrigado a seguir sua ruína de braços dados com a sua garota festa à dentro.
— Vamos, amor, você vai amar o — ouviu a guitarrista dizer com uma risadinha — Massacre.
Amor.
podia jurar que revirara os olhos a ponto de estes saírem das órbitas.
Patética.
os levou para a sala de estar principal, parando em frente ao conjunto amplo de sofás persas ocupados por desconhecidos. Bastou apenas um olhar afiado da mais nova guitarrista da banda Disclaimer para que as pessoas ali reunidas se entreolhassem e parecessem decidir conjuntamente aproveitar as suas noites em outro lugar. A mulher virou-se para e os amigos que a acompanhavam com um sorriso vitorioso.
— Vamos ficar confortáveis? — propôs ela, com uma inocência dissimulada.
A guitarrista não esperou resposta jogando-se na ponta de um dos sofás com um sorriso satisfeito no rosto. respirou fundo antes de bufar e se antecipar para senta-se ao seu lado em um gesto violento de descontentamento. Enquanto os demais se acomodavam, o vocalista puxou a mulher pelo cotovelo com certa urgência.
— Você trouxe um traficante pra minha casa? — questionou ele em um sussurro incrédulo.
olhou-o de esguelha com um brilho divertido nos olhos.
— Parecia que vocês precisavam de um — disse ela, dando de ombros.
— Essa é uma festa privada — rebateu o vocalista, trincando o maxilar.
— Feita pra mim! — disse , com uma piscadela.
— Na minha casa — rosnou ele, intensificando o aperto no braço da mulher.
Ela olhou-o de cima a baixo, com um sorriso vicioso.
— Eu gosto quando deixam marcas — sussurrou , as palavras escorrendo de seus lábios como um doce veneno.
soltou-a de súbito, arrancando dela uma risada debochada.
— Fala sério! — a guitarrista disse entre uma risada e outra, enquanto ajeitava-se no sofá — Não é como se o contato de vocês não soubesse onde vocês moram.
soltou um estalo com a boca, recusando-se a olhar para ela.
— A menos que vocês não façam o próprio corre de vocês… — continuou ela, sugestivamente.
bufou.
— Meu Deus! — não conseguiu conter a gargalhada. — Vocês não fazem.
É isso. Ela não ia mais parar.
O vocalista afundou o corpo no sofá à medida que os demais amigos se encaixavam nos espaços livres, balançando seus corpos com o movimento das almofadas.
— Nós não precisamos nos expor… — sentiu como se tentasse explicar o óbvio a uma criança.
— Ah, mas quebrar a cara de fotógrafos e dirigir embriagado está tudo bem — a guitarrista riu bem-humorada, tirando do bolso de seus retalhos um cigarro e um isqueiro. — Quem é o coitado que tem que fazer isso pra vocês?
cruzou os braços emburrado, os seus olhos fuzilando a companheira de banda enquanto ela acendia o cigarro e dava os primeiros tragos.
— O roadie — ele resmungou.
— Você não sabe nem o nome dele! — gargalhou mais uma vez, agora chamando a atenção indesejada dos amigos que observavam a cena sem entender o que estava acontecendo.
— O nome dele é Larry — disse ele entredentes.
— Eu aposto que é — a guitarrista o lançou um sorriso travesso.
sentiu os dedos finos da namorada tamborilarem em sua perna e só então percebeu que ela tinha sentado ao seu lado. Notou que todos já tinham se acomodado, Kalil e Tony estavam do outro lado de Margot, enquanto o tal do traficante sentou-se sozinho na ponta do outro móvel, perto de .
Como uma grande família feliz.
— Eu posso emprestar o Massacre pra vocês qualquer dia desses se precisarem — comentou fazendo pouco caso da situação.
— O que vocês estão cochichando? — perguntou Margot inclinando-se sobre o namorado para olhar entre os dois.
A guitarrista deu a ela um sorriso inocente, que de inocente não tinha nada.
— Nada importante — disse dando de ombros.
— — o estranho, Massacre, chamou a mulher, mas conseguiu a atenção de todos os demais. — O que vai ser? Hoje temos o verde, índica e sativa, quadrado, bala, pó, lean, key…
franziu o cenho, pensativa.
— Amor — disse ela, olhando para Margot. não pode deixar de bufar. — O que você vai querer?
— Margot não… — o vocalista tentou dizer.
— O que você recomendaria pra uma primeira vez? — perguntou Margot antes que ele pudesse terminar, batendo os cílios longos de forma angelical.
arregalou os olhos incrédulo, mas não disse nada. A guitarrista revezou o olhar entre os dois como se ponderasse.
— A gente pode dividir uma bala, mas você vai ter que maneirar no álcool e beber muita água — sugeriu ela, ignorando o homem ao seu lado.
— Tem certeza? — sussurrou ao pé do ouvido da namorada.
Margot sorriu maliciosamente.
— Por que não? — a modelo deu de ombros. — Vocês todos fazem isso e eu estou precisando espairecer.
remexeu desconfortavelmente no sofá, oferecendo apenas um suspiro ruidoso como resposta.
— Tudo bem, então — decidiu sorridente.
inclinou-se em direção à guitarrista, arrancando o sorriso daqueles lábios pecaminosos com uma lufada de ar em seu ouvido.
— Você vai ter que ficar de olho nela — o vocalista murmurou insatisfeito.
A mulher pareceu precisar de alguns instantes para recuperar a postura, mas logo a superioridade já tinha retomado às suas feições diabólicas.
— Eu não pretendia olhar pra nenhum outro lugar — respondeu ela provocativamente.
bufou, cruzando os braços ao afundar nas almofadas brancas. Inclinou o pescoço por trás do corpo da modelo encontrando o olhar atento e divertido do baterista que assistia tudo de camarote.
— Você topa um papel? — perguntou ao amigo, dando-se por vencido.
— Achei que nunca fosse perguntar — Kalil respondeu com um sorriso genuíno nos lábios.
Num gesto ensaiado, como o que apenas pessoas que convivem por muito tempo fazem, os dois lançaram um olhar interrogativo para Tony do outro lado do baterista.
— Eu vou com as garotas — disse La Rocha dando de ombros.
que estava atenta a tudo, antes mesmo que os demais pudessem se manifestar, virou-se para o traficante com um sorriso ladino no rosto.
— Por enquanto vão ser duas balas, dois quadrados e três gramas da Purple Haze e do Banana Kush.
Massacre confirmou com um aceno de cabeça, abrindo o colete que vestia e retirando o pedido dos bolsos internos da peça, entregando os produtos à guitarrista. Se entreolharam por um momento, a mulher com as pequenas mãos cheias da variedade de drogas e Massacre esperando por algo. O homem deu um pigarreou e deu uma cotovelada nada gentil no vocalista ao seu lado lançando-o um olhar impaciente. revirou os olhos com a situação e, à contragosto, retirou algumas notas de cem do bolso da calça para entregar ao vendedor.
Massacre sorriu satisfeito.
— Vou estar por aí, me chamem se precisarem de mais alguma coisa.
— Aproveite a festa! — disse a guitarrista em despedida.
fuzilou a mulher com o olhar, enquanto ela nem parecia notar ser objeto de sua fúria. entregou-o o ziplock com os papeizinhos coloridos cobertos de LSD, balançando a cabeça no ritmo da música que tocava no ambiente, totalmente alheia a qualquer sinal de descontentamento ao seu redor.
sentiu um empurrão leve em seu ombro e quando olhou para o lado, encontrou Kalil encarando-o com expectativa. respirou fundo, abrindo o saquinho de plástico rapidamente e colocando o quadrado na língua, para logo em seguida entregar o objeto para que o baterista fizesse o mesmo. Em poucos instantes o gosto azedo já começava a se espalhar por toda a sua boca.
inclinou-se sobre o corpo do vocalista para, mais uma vez, dirigir-se à namorada dele com olhos brilhantes. precisou se concentrar no gosto de merda que sentia para simplesmente não a jogar no chão.
— O que você gosta de beber? — perguntou a guitarrista.
— Margarita — respondeu Margot com uma timidez que ela não tinha.
A interação entre as duas mulheres ficava cada vez mais estranha e não sabia dizer o porquê.
— — virou o rosto para ele, encarando-o de perto demais. O vocalista pareceu congelar um momento pela proximidade, enquanto a mulher permanecia como sempre. Inabalável. — Você pode nos fazer o favor?
Nem ao menos notaram que ela o havia chamado pelo apelido.
piscou algumas vezes e estreitou os olhos para a mulher que estava praticamente em seu colo. Apesar disso, a namorada parecia não dar a mínima para a situação. Logo, a guitarrista o ofereceu um daqueles sorrisos arrogantes que ele tanto odiava, fazendo-o trincar os dentes enquanto não se decidia entre encarar o seu olhar ou a sua boca.
— Leve Kalil com você — continuou ela, indicando o baterista com a cabeça. — Ele não vai ligar de pegar um mojito pra mim, certo, K?
Tony riu alto, sendo rapidamente acompanhado por Margot no momento em que Casablanca levantou-se do sofá acatando o pedido. manteve o seu olhar mortífero na guitarrista, que precisou pressionar os lábios em linha para evitar rir junto, deixando-a com uma careta divertida no rosto enquanto retomava sua posição inicial para permitir os movimentos do vocalista.
— Vamos, , você não vai querer comprar essa briga — Kalil anunciou, puxando-o pelo ombro para que se levantasse. apenas resmungou, mantendo a boca fechada para preservar o amargor da droga em sua língua.
— E duas águas! — ouviram gritar enquanto se afastavam.
sentiu as mãos fecharem em punhos instantaneamente.
Mais uma vez cada passo que deram para dentro da multidão foi uma batalha. Tentar atravessar aquele mar de gente era como tentar se movimentar em areia movediça. Quando mais tentavam se mexer mais eles pareciam se afundar entre os corpos conhecidos e desconhecidos. sentiu a língua começar a ficar dormente e torceu para que o efeito da droga batesse logo sobre o seu corpo. Ansiava por parar de se sentir incomodado com todas aquelas pessoas, mas principalmente com aquela maldita guitarrista.
Quando alcançaram o bar, e Kalil ignoraram a fila de convidados, esgueirando-se para a entrada dos fundos para abordar os garçons. Pegaram bebidas que estavam sendo preparadas para outras pessoas antes de mais uma vez enfrentarem o tráfego interminável de convidados na festa.
Ao avistar os sofás brancos da sala principal, foi surpreendido pela cena de sua namorada e sua inimiga conversando alegremente como grandes amigas. Tudo bem, talvez não estivesse tão surpreso assim. Conhecia Margot bem o suficiente para reconhecer a sua habilidade de falar, falar e falar com qualquer pessoa sobre qualquer assunto. Era uma das coisas que mais admirava nela, mas naquele momento foi a coisa que mais odiou. Era claro que não perderia a oportunidade de atingi-lo de todas as formas possíveis. Que jeito melhor de fazer isso do que usar a sua namorada?
Não importava que Anthony estivesse ali com elas, rindo, gritando, gesticulando. Tudo o que podia ver eram Margot e . E ele via tudo vermelho.
Não perca a cabeça. Não perca a cabeça. Não perca a cabeça.
No mesmo instante, como se pudesse ouvir o mantra mental de , o rosto da guitarrista se virou em sua direção com um sorriso ardiloso.
— Muito obrigada, queridos! — exclamou ela de braços abertos.
pensou que questão de minutos seria capaz de ver o veneno fluorescente escorrendo no queixo da mulher sob a luz negra.
O vocalista segurou as bebidas em suas mãos com mais força e respirou fundo, determinado a não se deixar vencer por aquela figura satânica em seu sofá. deu um sorriso amarelo e deixou as bebidas de Margot na mesa de centro, antes de sentar-se ao lado do baixista e o mais longe possível dela.
Mas não o suficiente para deixar de ouvi-la.
— Ok — a voz de parecia atravessar toda e qualquer matéria para chegar direto em seus ouvidos. — Agora você vai tomar a metade do comprimido com a água sem deixar ele ficar na sua boca, porque o gosto é horrível.
A modelo fez uma careta.
— Se o gosto é horrível porque vocês continuam tomando?
— Você vai ver — disse com uma piscadela.
Margot não tirou tempo para pensar duas vezes. Pegou a sua metade do comprimido e a sua água, tomando a droga o mais rápido possível para que não perdesse a coragem. Não demorou nem um minuto para que ela soltasse um gemido sôfrego.
— Que gosto de merda!
— Eu avisei! — gargalhou — Agora toma a sua margarita pra tirar o gosto e quando você começar a sentir o efeito vai ser só água pra você.
— Quanto tempo demora pra bater? — perguntou Margot, curiosa.
— Uma meia hora.
— Nossa!
— Veja pelo lado bom — a guitarrista deu de ombros, indicando e Kalil com o olhar. — Os dois bobos tem que ficar com o gosto de merda na boca porque não podem engolir e o deles deve demorar cerca de uma hora.
A dupla de amigos mostrou as línguas para a modelo, exibindo os papéis quadrados que já perdiam a sua tonalidade original. Margot deu uma risadinha, cobrindo o rosto com as mãos.
— O que fazemos enquanto isso? — perguntou a modelo, animada.
— Eu gosto de fumar, mas eu diria pra você ir devagar.
— Eu não fumo.
— Posso te ensinar outro dia então — brincou com uma piscadela.
bufou impaciente, tomando uma cotovelada do baixista ao seu lado.
— Que ideia maravilhosa — resmungou ele, acariciando o braço onde foi atingido.
O vocalista viu a mulher deitar a cabeça sobre o ombro de Kalil, olhando-o com uma expressão pidona. vomitaria se isso não fosse desperdiçar a droga em seu sistema digestivo. Por isso, se limitou a apenas grunhir o seu descontentamento.
— Relaxa, cara — sussurrou Tony para que apenas ele pudesse ouvir.
— É fácil pra você falar — respondeu , seu tom de voz baixo. — Não é a sua namorada que está sendo aliciada debaixo do seu nariz.
Os ombros do baixista se mexeram para cima e para baixo em uma risada contida.
— Você só está se doendo porque ela conseguiu em minutos o que você tem tentado há meses.
O som de algo se quebrando à distância chamou a atenção dos amigos, fazendo trincar o maxilar com raiva.
— Você trouxe o kit, Kalil? — ouviram perguntar.
O baterista deu de ombros.
— tem um na dispensa.
— Ele tem um em todo canto da casa, você quis dizer — Margot brincou, arrancando uma risada dos outros dois.
Desde quando Casablanca ria das coisas que a modelo falava?
fez o possível e o impossível para ignorar o pensamento.
— Pode pegar, por favor, K? — perguntou com os olhos brilhando.
Quando o baterista se levantou com um sorriso conquistador, se perguntou se teria algo que a mulher pediria que o amigo pudesse negar.
Com sorte, a dispensa onde o material de tabacaria estava não ficava muito longe dali. Mesmo que o vocalista tivesse omitido o fato de que realmente tinha um kit em todo canto da casa e que o mais próximo estava em uma escrivaninha ali perto. Kalil não foi capaz de demorar o suficiente para perturbar mesmo que minimante a paz de espírito da guitarrista.
Antes que pudessem sequer dar falta, lá estava ele novamente. Com um sorriso no rosto, um estojo preto em mãos e uma caixa grande debaixo do braço, deixando todos os demais com uma cara de interrogação.
se inclinou para olhar franzindo as sobrancelhas de uma forma engraçada.
— Talvez eu tenha te subestimado um pouco.
engoliu em seco, quase engasgando-se com o papel amargo no céu da sua boca.
— Isso não é meu — disse ele.
— Na verdade — Kalil interrompeu com um pigarro. — É um presente. De boas-vidas.
— Você tá brincando — disseram e ao mesmo tempo. A guitarrista surpresa, enquanto o vocalista parecia inconformado.
Tony riu alto da cena.
— Cala a boca! — reclamou Kalil sem graça, entregando a caixa para a mulher sem mais cerimônias. — Só abre.
A guitarrista deu de ombros, contente, e não esperou mais um minuto sequer antes de abrir a caixa misteriosa, tirando de dentro dela um capacete de motoqueiro com a logo da banda e alguns adesivos que simulavam tatuagens no estilo blackwork. A expressão da mulher era um misto de gratidão e fascínio.
— Fala sério, Kalil! — foi tudo o que ela conseguiu dizer.
— É sério — respondeu ele sem graça. — Eu acho que falo por todo mundo quando digo que não queremos perder outro guitarrista.
— Nem todo mundo — o vocalista resmungou para ninguém em especial.
Anthony não foi discreto em dar um pisão no pé do amigo pelo comentário no mesmo momento em que a gargalhada da guitarrista preencheu o ambiente.
— Obrigada! — disse ela, segurando a mão do baterista, parecendo sincera em suas palavras.
Kalil deu de ombros, sentando-se do outro lado da mulher e abrindo o estojo com acessórios de tabacaria pronto para abandonar o tópico.
— O que está fazendo? — perguntou, mas o seu tom de voz estava mais para um alerta.
— O que parece que eu estou fazendo? — perguntou o baterista sem olhar para ela, pegando uma cuia e uma tesoura. — Eu vou bolar o baseado.
— Nada disso! — repreendeu a mulher, entregando o capacete para ele e tirando o material de suas mãos e colo. — Hoje é por conta da casa. Hoje nós vamos fumar um .
Kalil balançou a cabeça sorrindo.
Em poucos minutos, entre risadas e alguns comentários obscenos que fez questão de ignorar, bolou o baseado mais bem servido que ele não via em tempos. Como ela conseguiu fazer isso com unhas daquele tamanho ele não sabia. Mas ali estava, o blend perfeito de Purple Haze, Banana Kush e tabaco, pronto para ser degustado por aquele conjunto inusitado de amigos, não tão amigos assim.
Apesar de tudo, não se deu o luxo de negar o tal do . Não quando tudo o que ele precisava no momento era um baseado grande e gordo para acelerar e potencializar o efeito da droga que começava a manifestar os seus primeiros sinais em seu corpo.
O primeiro trago já foi capaz de deixar a sua pressão abaixo do porão da casa. No trago seguinte tudo se acalmou ao seu redor, todos os movimentos, todos os sons, todos os sentimentos. Por mais que ele quisesse, não estava enganada sobre o seu baseado. Uma única unidade foi capaz de deixá-lo chapado como uma porta, se é que isso fazia sentido.
A guitarrista não parou por aí, bolando outro e mais outro enquanto o grupo ainda fumava, conversando amenidades entre si. Ficaram ali até a metade do segundo baseado, mas logo a mulher arrastou Margot e Anthony para a pista de dança, deixando os outros dois para trás nos sofás com uma ponta e outro espécime ainda a fumar.
Não muito tempo depois, estava entorpecido. Sentia-se como se estivesse fora de seu próprio corpo, assistindo a tudo e a todos como um mero espectador. Bêbado até o último fio de cabelo e chapado em cada célula do seu corpo.
Mesmo assim, o olhar do vocalista o traía de tempos em tempos, encontrando-a na multidão. Mexendo-se nos ritmos mais variados das músicas que ali tocavam. As mãos esguias acariciando o próprio corpo com malícia. O olhar anuviado tão embriagado quanto do dele. A risada diabólica que parecia encontrar o próprio caminho para os seus ouvidos. Em alguns momentos parecia estar assistindo a um filme ou a um clipe de música, toda a ambientação, tudo o que ela fazia, parecia ser coreografado para a captura perfeita. Em outros ele podia ver a sua pele brilhante pelo suor, escorrendo e derretendo até formar uma poça disforme no chão da sala. Às vezes ele pensava vê-la pulsar, crescendo entre as outras pessoas como uma gigante. Independente da forma, lá estava ela em todos os lugares.
não soube dizer quanto tempo se passou. Em algum momento se viu encarando o produtor de pé à sua frente com um sorriso satisfeito no rosto.
— Crianças! — disse ele, contente demais para estar sóbrio como de costume. — Vejo que estão se dando bem.
— Melhor impossível — ironizou, mas sua voz já não tinha mais tanta acidez como horas antes.
Leto deu uma risada espirituosa, sentando-se ao lado do vocalista. pensou estar em um colchão d’água pela forma que sentiu o seu corpo ondular com o movimento do sofá.
— Você é justamente a pessoa com quem eu queria falar, — Leto deu um tapinha no ombro do vocalista, mas a sensação era de que a sua mão tivesse ficado por lá.
franziu o cenho, confuso.
— me contou sobre a sua ideia brilhante.
se engasgou, desencadeando uma tosse, e quando olhou para sua mão viu que segurava um baseado. Estava fumando? Ele não soube dizer. Acabou por sacodir a cabeça na esperança de que isso clareasse os seus pensamentos e passou o beck para o baterista que estava deitado ao seu lado, olhando para o teto.
— Pode me lembrar de qual ideia foi essa? — perguntou com um vinco entre as sobrancelhas.
Leto riu como se a confusão do músico fosse a coisa mais divertida de todas. Como se não fosse um dos motivos da maioria das brigas entre eles.
— Sobre os covers escolhidos por cada integrante para substituir King For a Day nos shows restantes — explicou ele com um sorriso torto.
jurou que tinha arqueado as sobrancelhas em surpresa. Mas não tinha certeza, não conseguiu sentir a sensação que normalmente tinha quando o fazia.
— Ah, claro, essa ideia — disse o vocalista sem jeito.
— Fico feliz que estão começando a se ajeitar — o produtor disse com sinceridade. — Sei o que isso significa pra você e o quanto é difícil passar por tudo isso. Obrigado pelo esforço!
— Não se preocupe com isso, Leto — se viu falando, antes que pudesse se impedir. Merda. — Nós vamos dar um jeito.
— Tenho certeza de que vamos — o homem levantou-se com um sorriso.
— Um passo de cada vez — sorriu amarelo, amaldiçoando-se mentalmente.
Por que tinha dito aquelas coisas? Boca estúpida.
Por que tinha deixado que o produtor acreditasse na mentira da guitarrista? Mulher estúpida.
Por que não conseguia se controlar? Estúpido. Estúpido. Estúpido.
Quando se deu conta, mais uma vez naquela noite, já estava em movimento. Andando com facilidade entre os corpos suados e espremidos entre si, imperturbável pela simples magia das drogas. Costurou por entre as pessoas mais rápido do que se estivesse realmente tentando chegar a algum lugar e não no automático como realmente estava. Como se soubesse exatamente onde procurar, encontrou-a escorada no bar conversando com o traficante enquanto observava Margot dançar ali perto.
não respirou fundo. Não contou até dez. Não se preparou mentalmente. Apenas andou em sua direção puxando-a pelo braço sem pedir licença.
— Você disse a Leto que eu dei a ideia de fazermos um cover escolhido por cada membro da banda para substituir King For A Day nos shows? — ele foi direto.
— Foi uma excelente ideia, , nem acredito que você pensou em algo assim! — disse ela alegremente, apertando as bochechas do vocalista como se ele fosse uma criança.
— A ideia foi sua — cortou ele, arrancando as mãos dela de seu rosto com um movimento brusco. — Por que fez isso?
A guitarrista olhou-o de cima a baixo com um sorriso diabólico.
— Porque agora você não tem como dizer não — respondeu ela com uma expressão insolente no rosto.
bagunçou os cabelos, exasperado.
— Você é inacreditável!
A mulher riu, balançando o corpo no ritmo da música que começou a tocar.
— Você vai superar eventualmente... — disse ela, fazendo pouco caso.
O vocalista encarou-a com fúria. Os olhos cerrados. O maxilar trincado. Os dedos fechados em punhos já começavam a doer. Em um piscar de olhos o rosto da mulher começou a perder forma diante dos seus olhos, tornando-se apenas um borrão desconexo.
— Merda — murmurou ele, fechando os olhos com força.
Pensou ter ouvido dizer alguma coisa, mas não soube dizer o que era. De repente começou a se sentir distante...
— Não, não, nada disso — ele sentiu mãos esquias ampararem os seus braços. — Nada de bad por aqui.
— Eu não tô na bad, eu só... — não sabia para onde olhar, todo movimento parecia lento demais, pesado demais. — Você encheu a porra da minha casa de desconhecidos que estão cortando a minha vibe. Aparece em todos os lugares pra sugar a merda da minha onda. Você não cansa de ser uma pedra no caralho do meu sapato?
— Na verdade não — respondeu ela, ainda sustentando o corpo dele, algo na voz dela dizia ao vocalista que a mulher sorria. — Mas pra você não dizer que eu sou de tudo ruim, vou quebrar um galho pra você!
não entendeu o que ela quis dizer com isso, mas permitiu-se ser conduzido de volta para o bar, vendo a guitarrista trocar algumas palavras com Massacre que ele não se deu o trabalho de prestar atenção.
No minuto seguinte, o vocalista estava com uma nota de cem enrolada entre os dedos, encarando duas carreiras de um pó branco sobre a bancada. Olhou para cima e encontrou o olhar divertido de , estudando-o. Olhou para baixo e quase conseguiu ouvir a cocaína chamando o seu nome.
suspirou.
— Foda-se.
Em um único movimento inclinou o corpo sobre a bancada, usando o dinheiro como um canudo para inalar toda a droga de uma das fileiras pelo nariz em uma única inalação. Ouviu o coração bater em seus ouvidos acelerado. Viu as cores ficarem mais vibrantes. Sentiu a adrenalina percorrer por todo o seu corpo. E permitiu que um sorriso frouxo iluminasse o seu rosto instantaneamente, sem se importar com os olhos odiosos que tanto o observavam.
O vocalista procurou novamente com o olhar, encontrando-a a tempo de vê-la tomar o dinheiro de sua mão e repetir o seu gesto, cheirando o pó com uma expressão maliciosa no rosto. O prazer rapidamente dominou o corpo dela em uma onda de relaxamento que se manifestou visivelmente em todos os músculos do seu corpo, da mais simples ruga de expressão à tensão latente que constantemente deixava a postura da mulher ereta a todo momento. A euforia estampada em seu rosto para quem ousasse ver. Quando ela sorriu, sustentando o seu olhar, teve certeza que o diabo tinha decidido lhe fazer uma visita.
Capítulo 5 — The Show Must Go On
“Whatever happens, I'll leave it all to chance
Another heartache, another failed romance, on and on
Does anybody know what we are living for?”
— The Show Must Go On, Queen
Poderia dizer que se sentia mentalmente cansado por conta do estresse emocional que era enfrentar essa nova realidade sem o melhor amigo. Por estar pela primeira vez na cidade onde ele partiu para sempre. Mas esse não era o único motivo.
Não.
Estava exausto desde a festa de anúncio de como nova guitarrista da Disclaimer. Desde que a nova integrante da banda, com ajuda do seu amiguinho traficante, fez o favor de vazar o endereço da sua casa para fãs, mídia e quem mais quisesse saber.
Fazia dias que meia dúzia de fãs acampavam em frente aos portões de sua mansão em Beverly Hills disputando espaço com o dobro de paparazzis, jornalistas de revistas e programas de fofoca e uma ou duas emissoras de televisão. Todos sedentos pela primeira manifestação do vocalista da banda Disclaimer sobre a overdose do ex-guitarrista e a nova contratação.
Não que não tivesse aproveitado a festa. Ele aproveitou. Mesmo com seus altos e baixos. Nada que ele não tivesse se acostumado com seus anos de experiência no show business. Mas não é como se ele fosse se permitir acostumar-se com as desventuras em série de . Ainda que a tentativa da mulher de se redimir tenha sido bem-sucedida até demais, deixando os seus olhos endiabrados como a última memória daquela noite antes de acordar no sofá no dia seguinte com uma rebordose daquelas.
A sensação de lixo já durava alguns dias agora, como no dia do enterro há alguns meses, graças à quantidade de drogas lícitas e ilícitas que foram misturadas em seu sistema naquela noite. A vontade de era de xingar todos à sua volta e mais uma vez desaparecer do mapa, apenas para ter um pouquinho de paz. Mas, aparentemente, paz era a última coisa que teria se isso dependesse do fantasma de seu melhor amigo e da guitarrista do diabo. Guitarrista essa que não tinha calado a porcaria da boca desde que entraram no avião particular rumo à New York.
Insuportável.
se remexeu uma, duas vezes em sua poltrona ao lado de Kalil, que o observava com sua tranquilidade mais que inconveniente.
— Será que ela não consegue parar por meia hora pra eu poder ter o mínimo de descanso? — o vocalista resmungou, de olhos fechados, seu rosto completamente franzido pelo esforço. Seus braços cruzados, ainda encolhido em sua poltrona, como se pudesse preservar o seu estado de repouso.
O silêncio do baterista dizia que ele estava guardando algum comentário que de nada ajudaria na situação. bufou.
— Vocês dois aí atrás! — falou mais alto, ainda em sua poltrona. — Que tal falar um pouco mais baixo?
As gargalhadas que vieram do fundo do avião de pequeno porte não foram a resposta que o vocalista esperava ouvir.
— Só existe um volume para o rock, bonitinho! — ouviu a gritar de volta. Sua voz tão odiosa quanto a própria pessoa em si.
— E é alto! — a voz estridente de Tony completou.
Mais um conjunto de risadas escandalosas se sucedeu, misturada a alguns sons de palmas. torcia para que eles não tivessem criado algum tipo de cumprimento secreto para situações como essa, em que a guitarrista e o baixista decidissem infernizar a vida de alguém. Seu pavio curto não duraria muito tempo desse jeito.
gemeu em descontentamento, afundando ainda mais no assento.
— Se você não deixasse ela entrar na sua mente com qualquer coisinha você não estaria tendo esse problema — a voz baixa de Kalil soou divertida, em provocação.
— Você fala como se ela não fizesse de tudo pra testar a minha paciência — o vocalista murmurou emburrado.
— De forma alguma — o baterista soltou uma risada breve. — Ela é assim mesmo.
O vocalista bufou impaciente.
— Ela deveria abaixar a bola e se adaptar — rebateu , encarando o amigo com descontentamento em seus olhos. — Não o contrário.
— Acho que estamos todos tentando fazer isso — respondeu o cabeludo, a sua expressão serena de sempre. — À sua própria maneira.
estreitou os olhos, incrédulo.
— Então, por que eu sou o único que não dorme há dias porque a bonitinha decidiu vazar o meu endereço pessoal para fãs, paparazzi e todo o resto do mundo?
O baterista deu de ombros.
— Você pode ficar na minha casa por um tempo, sabe — Kalil sugeriu.
— Os gemidos das suas prostitutas não são o que eu chamaria de paz e silêncio — rebateu o vocalista, determinado a reclamar do que quer que fosse.
O amigo riu bem-humorado.
— Elas não são sempre prostitutas.
— Se você não vai entrar em um relacionamento com nenhuma delas, eu não estou muito interessado em saber.
sentiu o assento tremer com a risada silenciosa do amigo ao seu lado. Permitiu que o conforto da sua companhia acalmasse sua mente turbulenta por um momento.
— Sabe, antigamente era bem mais barulhento, com você, Gus e Tony — disse Kalil com um sorriso debochado. — Está até calmo sem a sua voz ali.
bufou, encolhendo-se novamente no assento, os braços entrelaçados como se pudesse segurar a si mesmo de fazer justiça com as próprias mãos.
— Queria ser Gus agora pra não ter que aguentar essa bosta toda — resmungou o vocalista, sem olhar para o amigo.
Kalil suspirou audivelmente.
— Como você está se sentindo? — a voz do baterista soou ainda mais baixo do que de costume.
— Como merda — respondeu, tentando imitar o tom. — Mas você já sabe disso.
— Não é porque eu sei que você não precise dizer — Kalil ponderou com um estalo da boca. — Todo mundo precisa falar com alguém de vez em quando.
O vocalista riu sem humor.
— Ah, é? — provocou ele com um estalo. — E você tem falado com quem, senhor extrovertido?
Kalil sorriu para ele, aquele sorriso de quem estava prestes a falar bobagem.
— Com as prostitutas.
ficou estático por um instante, mas logo quebrou em uma gargalhada, sendo imediatamente acompanhado pelo amigo.
— Mas sério — o baterista se interrompeu, buscando ar, ainda com um sorriso no rosto. — Eu estou fazendo acompanhamento com uma psicóloga.
murmurou um som desconexo, fazendo pouco caso.
— Como vamos fazer esse show? — perguntou o amigo, cuidadosamente.
— Você quer dizer como eu vou me comportar nesse show? — retrucou , estreitando os olhos para o de cabelos compridos.
— Colocando em palavras de filho da puta, sim, exatamente isso — concluiu Kalil, dando de ombros.
olhou para frente, sem enxergar nenhum ponto em específico, e suspirou.
— Eu não sei.
O baterista acenou em uma concordância silenciosa.
— E pensar que ele saberia exatamente o que fazer…
— Eu não gostaria de falar dele agora — o murmúrio de era quase uma súplica.
Eu não estou pronto.
— É o primeiro show — disse Kalil. — As pessoas esperam que você fale alguma coisa.
— Eu não vou falar merda nenhuma — protestou o vocalista, pressionando os lábios em uma linha.
Casablanca pareceu pensar por um tempo.
— Vai ser uma merda estar em New York depois de tudo — desabafou ele.
— Eu odeio essa cidade.
— Eu também.
— Poderiam destruir esse lugar inteiro, como acontece em todo filme de ação — resmungou, arrancando um sorriso do amigo.
— Seria irado — o baterista concordou divertido.
— Eu até voltaria mais vezes nesse caso — se viu dizendo, a boca quase se curvando para cima.
— Nada como um cenário apocalíptico para curar um homem — brincou Kalil, dando um soquinho no braço do amigo.
acabou deixando um sorrisinho escapar apesar de tudo.
— Você terminou Fallout? — perguntou o vocalista, olhando de esgueira para o amigo.
O baterista deu de ombros.
— Ainda estou de luto pelo final de The Last of Us — explicou ele.
— Dando um tempo no Fortnite? — perguntou com uma expressão travessa.
Kalil sorriu diabolicamente.
— Você sabe, formar caráter de crianças através de jogos online é a minha missão — disse ele com uma piscadela.
— Nós devíamos jogar o Fortnite Festival qualquer dia desses — deu de ombros.
— Você é louco de pensar que eu vou usar meu tempo de descanso com um jogo de banda — disse Kalil.
riu.
— Música é a minha missão, sabe — explicou ele com uma piscadinha.
Então Kalil Casablanca riu, dando uma batidinha no ombro do amigo. se permitiu sentir o mais próximo de felicidade que sentira em algum tempo. Não chegava a ser a felicidade em si, mas era algo no caminho. E isso já era alguma coisa. O baterista era assim mesmo, uma daquelas pessoas que te fazem se sentir um pouco menos só no mundo. Não era atoa que ele era o melhor entre os demais.
A viagem seguiu tranquila. Kalil tinha um dom de contagiar as pessoas ao seu redor com a sua calma, tinha que admitir. Assim, o restante do trajeto se passou sem maiores estresses, enquanto a dupla de amigos conversava amenidades.
Quando chegaram ao John F. Kennedy já passava da metade da tarde. Toda a equipe se encaminhou para o hotel, o mais longe possível da Times Square — uma exigência dos membros originais do grupo —, para deixar sua bagagem antes de se encaminharem para o local do show. Foram designados aos seus quartos, pegaram uma muda de roupas e logo partiram para a selva de pedra. Nada prontos para encarar de frente todos os seus demônios.
No Madison Square Garden, a banda já era esperada por centenas de fãs ainda nas ruas e mais centenas e centenas de fãs dentro do estádio que garantiam os melhores lugares para assistir ao show. Atravessar o mar de pessoas para alcançar a entrada dos fundos do local foi uma brincadeira de criança. Uma que não soube brincar. A consciência terrível da expectativa dos fãs, dos gritos de apoio e luto, da ausência irreversível de Gus, tudo era como uma sequência de golpes ininterruptos. Ainda sim, era apenas um ensaio. O show de horrores de verdade só aconteceria quando pisassem no palco de uma vez por todas. Com a sua nova guitarrista.
Apesar de tudo, fez um bom trabalho em resistir aos diversos estímulos que poderiam derrubá-lo. Um bom trabalho. Só lhe custou um conjunto de ferimentos na parte interna das bochechas, alguns arranhões nos pulsos, todas as unhas da mão esquerda e suas respectivas cutículas. Nada de mais. Ao menos conseguiu se distrair dos fãs, de suas camisas estampadas, de seus cartazes chamativos e de suas lágrimas desenfreadas. Mal podia esperar para descobrir o que a performance que estava por vir iria lhe custar. Seria um longo dia.
O vocalista não soube dizer quanto tempo se passou para que conseguissem chegar aos bastidores do evento, mas teve a impressão de ter sido até rápido, ou talvez ele estivesse concentrado demais em sua automutilação. Não importava. Quando se deu conta já estava lá dentro, andando com o restante da banda até a imagem sorridente de Margot que os aguardava para recepcioná-los com todos os seus dentes mais do que brancos. estava tão atordoado com a experiência extracorpórea que se tornou o contato com os fãs para ele, que nem percebeu quando todos foram recebidos pela namorada dele com pulinhos animados e beijinhos na bochecha. Inclusive .
Margot guiou o grupo pelos bastidores até o camarim da banda de braços dados com Anthony e entre sussurros e risadas. não conseguiu nem se dar o trabalho de se importar. Estava preocupado demais com o fantasma de Gus andando entre o grupo pelos corredores. Deveria estar ficando louco. Só podia estar louco. Mas lá estava ele.
August Train não tinha mudado. Os cachos bagunçados, o olhar astuto, o sorriso torto, a camisa de banda. Gus andava ao lado de Kalil com as mãos nos bolsos, rindo ocasionalmente de alguma bobeira que Tony dizia mais à frente. Ninguém parecia notar. Como uma assombração. Gus estava exatamente como lembrava de ter o visto pela última vez naquele mesmo maldito lugar.
estava no sofá do camarim quando se pegou sem saber se aquilo mais parecia um sonho ou um pesadelo. Todos já estavam prontos àquela altura, esparramados pelo cômodo enquanto jogavam conversa fora, apenas aguardando a hora do show, onde já podiam ouvir os gritos do público tão ansioso quanto eles. usava um conjunto de jaqueta e calças pretas de sarja com estampa artesanal de caveiras em branco e um tênis off white. Tony vestia calças xadrez vermelhas em uma combinação nada usual com um casaco de pelo em animal print e botas de cowboy. Kalil, bem, era Kalil, trajado de preto da cabeça aos pés. Todos, exceto pelo vocalista, alheios à presença macabra de Gus que os observava do sofá ao lado de com um sorriso no rosto.
— ! — ouviu uma voz feminina o chamar.
O vocalista virou o rosto esperando encontrar a namorada, mas dando de cara com e seus olhos atentos pintados de vermelho. A mulher usava um body de renda preto, uma saia plissada da mesma cor com uma cinta-liga e um mocassim. Ela acenou para com a cabeça, jogando para ele um maço de cigarros. pegou a caixinha, olhando para o objeto sem entender.
— Parecia que você precisava de um cigarro — explicou ela, jogando-se ao lado do vocalista no sofá onde antes a imagem do melhor amigo morto o assombrava.
piscou algumas vezes atordoado.
— Você tá com uma cara de merda — completou a mulher.
riu sem humor, pegando um cigarro e colocando entre os lábios. A mulher acendeu um isqueiro em frente ao rosto dele. O vocalista a olhou desconfiado, mas se aproximou para tragar o tabaco junto à chama, assoprando fumaça logo em seguida.
— Nada de drogas hoje?
— Se você se comportar...
— Nada de drogas hoje, então — concluiu ele, dando de ombros.
riu como se fosse normal ela rir de algo que ele dizia. estreitou os olhos.
— Eu queria te perguntar uma coisa… — disse ela, divertidamente.
— Quer um conselho? — o vocalista franziu o cenho e puxou mais um trago. — Não pergunte.
A mulher deu um de seus sorrisos felinos.
— Vou manter isso em mente pra próxima vez — disse ela com uma piscadela. — Você não é um guitarrista ruim, sabe…
— Onde você quer chegar com isso? — perguntou sem cerimônias.
— Eu queria saber se você tocaria a guitarra principal do cover em Chicago.
— Esse não é o show da sua música? — considerou ele.
— Esse mesmo.
deu de ombros, sem dar muita importância.
— Eu achei que o propósito disso tudo fosse se exibir um pouco — comentou ele, concentrado em bater a guimba do cigarro em um cinzeiro ali perto.
— Eu também acho — concordou ela, espreguiçando-se.
— Qual vai ser a música? — perguntou o vocalista.
— Vou te mandar a partitura — respondeu ela, tirando o celular do bolso e rapidamente digitando sobre a tela.
Um momento depois o telefone do próprio vocalista apitou. Ao desbloquear a tela ele encontrou uma mensagem de texto com o arquivo da partitura ao qual ela se referia. fez questão de não salvar o número de em sua lista de contatos, não pretendia buscar o número da mulher nem agora, nem nunca. Apenas acessou a mensagem e abriu o documento, fazendo uma análise rápida da música e do trabalho que a mulher queria que ele fizesse.
— Essa música acabou de ser lançada — murmurou. — Você espera mesmo que eu cante e toque uma música nova em um mês?
— Na verdade — a guitarrista fez um estalo com a boca, oferecendo a ele um sorriso amarelo. — Você só precisa cantar o primeiro verso.
franziu o cenho, mas logo chegou à conclusão implícita nas palavras dela. O homem deixou a sua expressão facial se suavizar ao oferecer à mulher um sorriso debochado.
— Você não vai cantar, .
abriu os lábios em um sorriso sádico que deixou o vocalista alarmado.
— Eu já falei com Leto e ele achou uma ótima ideia.
bufou. Era claro que ela tinha falado com a West Coast antes.
— Então, é isso? — ele debochou. — Toda vez que você achar que não vai conseguir fazer algo de acordo com a banda, você vai atrás do Leto como se ele fosse o seu pai pra resolver pra você.
A guitarrista deu uma risadinha.
— Kalil e Tony concordaram.
— É claro que concordaram — revirou os olhos, impaciente.
Ouviram uma batidinha na porta do camarim e um rapaz que deveria ter acabado de completar os seus vinte anos colocou a cabeça para dentro.
— Disclaimer, dez minutos! — disse ele, saindo do ambiente logo em seguida.
— Mas eu falo sério quando digo que você não é um mau guitarrista — disse ela se levantando. pensou se aquilo era o mais perto que a mulher conseguia chegar de um elogio quando se tratava dele. Não que ele fosse fazer muito diferente no lugar dela. — Imagino que não tenha gostado de saber que um estranho substituiria seu amigo, enquanto você é mais do que capaz de tocar. Achei que seria uma boa oportunidade pra você se exibir também.
a encarou por um tempo como se pensasse no que ela tinha acabado de dizer. Ela não estava errada, e a mera consciência disso fazia o estômago do vocalista revirar. Não conseguia nem imaginar a possibilidade de dar o braço a torcer. Ainda não.
— Eu vou pensar a respeito — ele disse por fim.
pareceu satisfeita com a meia resposta. A mulher abriu um sorriso vitorioso e girou nos calcanhares pronta para sair do camarim e encarar o seu primeiro show. Foi quando viu a marca de batom vermelha em sua bochecha. Uma marcar que ele conhecia muito bem.
Margot.
se levantou do sofá e respirou fundo, deixando-se ser levado pelo abraço de aço de Anthony que parecia achar que o vocalista era um animal assustado que fugiria a qualquer momento se não o segurasse com força o suficiente. fez o possível para não praguejar a medida que sua expressão se fechava na boa e velha carranca ao ser arrastado pelos corredores até a coxia.
Quando chegaram à boca do palco, os quatro membros da banda Disclaimer se reuniram em um silêncio sepulcral, ouvindo religiosamente o som de centenas de fãs reunidos na arena. , Anthony, Kalil e olharam entre si como se esperassem por algo. A guitarrista lançou um olhar para e limpou a garganta, tirando-o de sua inércia da única forma que conseguia fazer, pela fúria. O vocalista sentiu o rosto esquentar ao fitar a marca no rosto da mulher.
— Vamos fazer isso — disse ele.
Foi o suficiente para iluminar o rosto dos amigos, que se cumprimentaram amistosamente antes de rumar para o palco completamente apagado. A guitarrista olhou para trás uma última vez, encontrando o olhar raivoso de . Ela sorriu como se aquilo não fosse nada e deu uma piscadela para ele antes de correr para o palco escuro.
De repente tudo estava acontecendo rápido demais. O público gritou quando pareceu perceber os movimentos sobre o palanque e fez de tudo para ignorar a ausência latente de Gus naquele momento. Ouviu o som da guitarra se conectando ao amplificador. Ouviu as baquetas de Kalil. Ouviu o público gritar. E, enfim, as primeiras notas tocadas pelo diabo.
não teve tempo para raiva ou para luto.
Não tinha mais volta. O show tinha que continuar.
— Vamos suspender o júri — começou , mantendo a cabeça baixa ao entrar devagar no palco ainda apagado sob os gritos dos fãs. — Seu tolo julgador doente. Vou enterrá-lo a seis pés de profundidade. Estou cansado das suas regras.
O vocalista se posicionou em frente a Kalil, entre Tony e , no exato momento em que os holofotes se acenderam sobre eles.
— Foda-se você e a sua opinião. Como você pôde ser tão cego? Tudo o que vai, volta no tempo certo.
parou de cantar com um sorriso falso nos lábios e apontou o microfone para o público.
— Você não sabe merda. Você não sabe merda sobre mim — a plateia cantou em uníssono. — Você não sabe merda, merda, merda.
— Não sabe porra nenhuma sobre mim! — o vocalista gritou em plenos pulmões.
sentiu tudo de uma vez. A energia do público. A adrenalina da performance. A ira do queimando em seu peito. Tudo o que o vocalista podia ver era vermelho, como a marca dos lábios da namorada no rosto da mulher ao seu lado, mesmo que ele não olhasse naquela direção uma única vez. Sua apresentação não passava da expressão da mais pura raiva que sentia naquele momento.
— Continue me subestimando, eu sou mais do que você jamais será. Corte-me profundamente, mas eu não vou sangrar. Vai me chutar, chutar, chutar quando eu estiver pra baixo.
aproveitou a primeira canção para extravasar todo o turbilhão de sentimentos que borbulhava sob sua pele desde a última vez em que esteve naquela droga de cidade. Descontou todo o rancor interminável que parecia aumentar a cada dia que se passava. A garganta arranhava com a sua voz rouca em uma espécie de violência sadomasoquista. E quando a música terminou não restou nada além de um imenso vazio existencial. O vocalista sentia-se como uma casca, oca. Como o corpo sem vida do seu melhor amigo à seis pés de profundidade.
O silêncio da banda se prolongou à medida em que o vocalista encarava a cidade que tomou a vida de August no fundo dos olhos. O tempo pareceu passar em câmera lenta, enquanto o som estridente da plateia não passava de um ruído abafado em seus ouvidos. Não sabia mais se a respiração acelerada era por conta do esforço físico da performance ou um ataque de pânico prestes a acontecer. estava simplesmente anestesiado.
— E aí, New York? — a voz animada de reverberou pelo estádio, inflamando ainda mais o público.
Instantaneamente, o vocalista virou o rosto na sua direção no mesmo momento em que a mulher o encarou com uma sobrancelha arqueada em desafio. Os gritos da plateia foram o suficiente para que sentisse o seu temperamento se agitar em questão de segundos, enquanto fuzilava a nova companheira de banda com o olhar. Quando notou o sorriso de canto ameaçar surgir nos lábios da mulher ele percebeu que era exatamente isso que ela queria. Porque ela sabia que era capaz de despertar nele uma raiva animalesca. E talvez sentir raiva fosse melhor do que sentir coisa alguma. Mas não soube se isso era algo ao qual ele deveria agradecer. Ela não agradeceria em seu lugar.
levou o microfone à altura da boca e limpou a garganta.
— Já faz um tempo, não é? — disse ele, em um tom de provocação que beirava a diversão e o cinismo. — Vamos quebrar essa cidade, porra!
Nem o som ensurdecedor dos fãs foi capaz de impedi-lo de ouvir a risada de ao seu lado, antes que começassem os primeiros acordes da próxima música.
O restante do show se passou como um borrão para . De tempos em tempos ele se permitia ser provocado pela guitarrista para não perder o tranco. Pela primeira vez, ele entendeu por que tinha sido ela a pessoa escolhida para substituir Gus, principalmente naquele momento. Não que o vocalista tivesse mudado de ideia sobre ela em algum momento, ele não tinha. Mas ela de fato parecia saber o que fazer naquela situação, mesmo que jamais fosse admitir. Então ele decidiu se deixar levar pelo show. Não interagiu com o público mais do que necessário. Não se pronunciou sobre o falecimento de Train. Muito menos sobre a chegada de . Não foi um show ruim, foi apenas um show. Quando finalmente terminaram de tocar Seven Nation Army, o cover escolhido por Tony para encerrar a noite, finalmente permitiu-se sentir novamente a exaustão que o acompanhava desde a festa do anúncio em sua casa.
Quando se deu conta, já estavam há um bom tempo na after party. já estava devidamente embriagado, tendo se ancorado à uma garrafa de vodka desde o momento em que pisou para fora do palco naquela noite. Já fazia algum tempo que Margot tinha deixado a festa com à tiracolo. Ele nem ao menos tinha se dado o trabalho de se importar dessa vez. Estava completamente esgotado física e emocionalmente para prestar atenção em qualquer coisa àquela altura. As pernas doíam desde a pontas dos dedos até os joelhos, enquanto a única coisa que o mantinha de pé era a vontade de beber o suficiente para se esquecer de tudo aquilo que o atormentava. Os olhos estavam pesados como sacos de areia o arrastavam para baixo. já tinha mais certeza se respondia as pessoas que tentavam falar com ele, ou se ao menos gesticulava. Estava tão derrotado pelo próprio corpo que logo ele soube não aguentaria o suficiente para conseguir apagar a sua mente turbulenta, quando quebrou a terceira garrafa de bebida alcoólica em suas mãos fazendo os dedos sangrarem. Ele não sentiu nenhuma dor. Como poderia? Não quando o que mais doía de verdade estava dentro dele.
Após algumas boas garrafas de água e uma ligação nada contente de Doc, o vocalista se viu forçado a retornar ao hotel acompanhado de um guarda-costas. não viu o trajeto. Ou a recepção do hotel. Ou o elevador. Só se deu conta novamente de sua própria existência quando cambaleava sozinho sobre o carpete marrom do corredor que dava em seu quarto. Ouviu a risada de Margot ao longe e sentiu-se um pouco mais desperto. Pelo menos ela havia voltado para o hotel também e não teria que passar aquela noite em sua própria companhia.
O vocalista aproximou-se da porta de seu quarto com um suspiro, encontrando o cartão do hotel no bolso de trás de suas calças. Girou a maçaneta com cuidado para não assustar a namorada quando entrasse, sabia como ela odiava surpresas e não estava no clima para discussões naquela noite. Mas, aparentemente, ele era o único que pensava assim, porque quando colocou o corpo para dentro do quarto cuidadosamente, não acreditou na cena que viu diante de seus olhos.
Margot de olhos fechados. Nua. As pernas dobradas e afastadas uma da outra, enquanto sua respiração pesada ecoava entre das quatro paredes. De costas para ele, uma pessoa, que ele reconheceria em qualquer lugar, tinha seu rosto enterrado no meio das pernas dela. Só podia ser ela. .
— Vocês estão de brincadeira com a minha cara — se ouviu dizer.
— ! — Margot se afastou da outra mulher com um pulo, fechando as suas pernas instintivamente.
, como já era de se esperar, virou-se para o vocalista lentamente, com os lábios entre os dentes. Seu rosto completamente manchado pelo batom da modelo. a odiou ainda mais por isso. Precisou respirar fundo algumas vezes para controlar o temperamento e evitar que fizesse alguma besteira.
— , saia daqui antes que eu estrague essa sua cara bonita e consequentemente o resto da turnê — o vocalista murmurou com os punhos cerrados.
A mulher arqueou uma sobrancelha em resposta.
— Por favor.
não soube dizer se foram as palavras, ou a sua voz que falhou ao dizê-las. Mas aquilo foi o suficiente para fazer com que a guitarrista levantasse da cama. Claro, não sem antes dar uma risadinha debochada ao passar por ele limpando o rosto da umidade da sua namorada e atravessar porta com uma expressão simplesmente maliciosa.
Bastou a mulher deixar o recinto para que o vocalista se visse contando até dez mentalmente. O que não adiantou de muita coisa.
— Porra! — xingou alto e quando se deu conta já tinha golpeado a porta do banheiro.
Imediatamente Margot gritou com o susto, mas não iria se desculpar, não dessa vez.
— Que merda vocês estavam pensando?
— Eu não…
— É claro que não.
não conseguia se controlar, andava de um lado para o outro no quarto do hotel, com as mãos enterradas em seus cabelos bagunçados e uma expressão perturbada.
— Será que você pode vestir a porcaria da roupa? — pediu ele, mas não havia gentileza alguma em seu tom de voz.
O vocalista ouviu a namorada suspirar antes de se levantar da cama bagunçada e começar a recolher suas peças de roupa espalhadas pelo quarto entre tropeços. tentou não olhar muito enquanto a mulher fazia isso. Não suportava encarar o seu corpo desnudo e completamente violado transitando diante dos seus olhos. Muito menos quando o seu clássico batom vermelho borrava o seu rosto no mesmo tom em que tinha deixado o da guitarrista antes que ele as pegasse no flagra.
Quando a modelo perdeu o equilíbrio pelo que parecia a terceira vez em sequência, bufou.
— E ainda por cima está bêbada igual uma adolescente.
— Eu estou perfeitamente bem — Margot fungou ao vestir a sua última peça.
— Tão bem que fez uma merda dessas…
— Você fala como se não tivesse feito pior nos últimos dois meses — a mulher o acusou, seu olhar um misto de vergonha e mágoa.
— Não na sua frente, não no seu quarto, pelo amor de Deus, Margot!
— Mas na capa de todas as revistas e noticiários, tem razão, bem melhor.
— Eu perdi a cabeça, qual a sua desculpa?
— Eu não tenho uma desculpa, eu fiz isso.
— Caralho, Mar! — esbravejou.
— Pare de xingar! — Margot gritou de volta.
— Desde quando você gosta de mulher? — perguntou , mesmo que ele não quisesse saber a resposta.
— Eu não gosto — a velocidade que a modelo se pronunciou não ajudou em nada.
— Então que porcaria foi essa?
— Eu não sei, eu estava solitária...
— Você não pode conversar comigo sobre isso?
— Ah, claro! Como você conversa comigo sobre August?
sentiu o coração parar antes mesmo que ela terminasse a sentença.
— Gus morreu — o lábio inferior dele tremeu ao dizer, sua voz não passava de um fio. — Meu melhor amigo morreu.
Quando se deu conta, já podia sentir as primeiras lágrimas molharem suas bochechas, uma de cada vez. Em questão de segundos o que poderia ser considerado uma garoa logo se tornou uma tempestade à medida que o vocalista mal conseguia tomar fôlego. No silêncio súbito do quarto, os únicos sons audíveis passaram a ser os seus soluços.
não soube dizer quanto tempo se passou, quando de repente sentiu os braços finos de Margot o envolverem em um abraço. Ele não tinha nem forças para lutar contra o gesto. Já estava se debulhando em lágrimas curvado sobre o corpo esguio da namorada enquanto esta afagava seus cabelos bagunçados cuidadosamente.
— Ele morreu — choramingou ele copiosamente.
sentiu que poderia se sufocar a qualquer momento por conta das vias aéreas entupidas.
— Eu sei — respondeu Margot em um sussurro sôfrego.
— Eu não pude me despedir.
— Eu sinto muito, — murmurou ela.
Então não estava mais chorando sozinho. Ele conseguiu sentir o corpo da namorada trêmulo em seus braços ao mesmo tempo que ouviu o peito dela chiar. Apesar disso, sentiu-se mais só do que nunca. Ali estavam eles, juntos, finalmente compartilhando aquela dor e aquele luto, mas nada parecia se encaixar. tentou ignorar o incomodo latente. Fez tudo o que pode para não dar ouvidos àquela voz em sua cabeça. Mas nada seria capaz de arrancá-lo de sua própria mente.
Com a cabeça doendo e o peito arfando, ele fez o possível para recompor. Seu nariz estava completamente obstruído, os olhos ardiam e ele tinha certeza de que estava com uma cara daquelas.
O vocalista encontrou dentro de si uma força de vontade que não possuía ao afastar seu corpo do dela.
— Você está certa — sussurrou após mais uma fungada.
— Sobre o que? — perguntou Margot ainda com a voz chorosa, enxugando o rosto timidamente.
limpou a garganta antes de continuar.
— Não ter desculpas. Não deveríamos ter desculpas — explicou ele, sua voz mais firme dessa vez.
— Nós fizemos merda — concordou ela, seu tom de voz baixo.
— Nós deveríamos parar.
— Não sei se é possível parar de fazer merda de uma hora pra outra, mas você tem razão, deveríamos tentar mais.
— Não foi isso o que eu quis dizer.
Margot olhou pra ele com o cenho franzido, esperando uma explicação com seus olhos vermelhos e brilhantes pelas lágrimas.
— Nós — ele apontou entre eles. — Deveríamos parar.
— ... — A gente não pode ficar fazendo isso.
A modelo olhou para ele como se aquele conjunto de palavras fosse o mais absurdo que ela já tivesse ouvido em toda a sua vida.
— Você não está pensando direito — disse ela.
— Eu não sei, Mar — suspirou, levando uma mão à cabeça. — Está tudo tão errado...
— Até mesmo nós?
— Eu não...
— Até mesmo eu?
— Margot... — murmurou. — Eu acho melhor você ir embora...
— Você tá de cabeça quente — disse ela.
— É claro que eu tô! — rebateu ele. — O que mais você esperava?
— Eu não esperava...
— Eu sei. Eu só... — ele se interrompeu no meio da frase. — Eu não gosto de ser essa cara, tá bem? Eu só... Preciso de um tempo pra pensar.
O quarto ficou em silêncio, mas o som da respiração pesada dos dois ainda era audível como o mais sutil dos vendavais.
— Tudo bem, eu posso lidar com isso.
— Tudo bem — concordou ele.
Eles se encararam por um momento que foi longe de ser o suficiente. mal conseguia olhar para a namorada e ela percebeu isso.
— Só — Margot disse em meio a um suspiro. — Não faça nenhuma besteira.
não tinha uma resposta para isso, então não respondeu nada.
Mesmo que ele se recusasse a olhar para ela, Margot se aproximou como quem se aproxima de um animal perigoso. Ou seria um animal ferido? A mulher depositou uma de suas mãos na bochecha do vocalista delicadamente, forçando-o a encará-la nos olhos quando ela o lançou o sorriso mais triste do mundo. Por fim, ela se inclinou sobre ele, depositando um beijo casto em seus lábios salgados pelas lágrimas de antes.
— Me avise — disse ela ao se afastar dele. — Quando estiver pronto.
apenas assentiu, fitando o chão sem expressão.
Ele ouviu quando ela saiu do quarto. O som da porta se fechando ecoou por todas as paredes do cômodo, enquanto ele ficou ali completamente atordoado por tudo o que tinha acontecido.
Não soube dizer precisamente quanto tempo havia se passado quando ele se levantou e apagou as luzes. Ainda um pouco desorientado, se recolheu para a cama com um cigarro e um isqueiro em mãos e se permitiu fumar até que sua pressão caísse e o levasse ao sono. Com sorte teria dormido com a chama ainda acesa por entre as pontas dos dedos. Com sorte o objeto seria responsável por dar início a um incêndio que o levaria com todos aqueles sentimentos com os quais ele não queria lidar. Com sorte encontraria Gus.
Em meio a um sono conturbado, reviveu repetidamente o seu maior pesadelo. A perda. A traição. A solidão. Apesar de tudo, mesmo inconscientemente, ele não conseguiu entender o porquê, justamente a expressão maliciosa de tinha ficado gravada em sua mente.
Capítulo 6 — One More Light
“Who cares if one more light goes out
In a sky of a million stars? It flickers, flickers
Who cares when someone time runs out
If a moment is all we are? Or quicker, quicker”
— One More Light, Linkin Park
abaixou a cabeça e enterrou as mãos nos bolsos em punhos, apressando o passo. Pensou em fazer uma oração mental para que ela não o alcançasse, mas logo desistiu, nunca atenderiam as preces de alguém que não acreditava em nada mesmo.
O som de passos mais apressados reverberou por entre as paredes, fazendo o vocalista praguejar. Não demorou muito para que sentisse uma mão firme agarrar o seu ombro.
— — a mulher disse, recuperando o fôlego.
Ele girou nos calcanhares, encarando-a com a sua melhor expressão de desdém.
— — disse ele, sem emoção.
A mulher, pela primeira vez desde que se conheceram, pareceu desconfortável, mudando o peso do corpo de um pé para o outro, enquanto encarava o vocalista com um olhar agitado.
— Nós deveríamos conversar — disse, sua voz mais baixa do que ele estava acostumado a ouvir.
deu de ombros.
— Ainda não me decidi sobre o seu cover, se é isso que quer saber.
— Obrigada pela atualização — a guitarrista respondeu com uma careta estranha. — Mas não é sobre isso que eu quero falar, você sabe.
O vocalista bufou, dando as costas.
— Eu não estou a fim, — disse ele, retomando o seu caminho para lugar nenhum.
Infelizmente, a mulher o acompanhou pelo corredor.
— Nós deveríamos conversar sobre o que aconteceu com Mar — continuou ela.
trincou o maxilar.
— Eu não tenho nada pra falar com você que não seja sobre música — disse ele, irredutível. — Principalmente sobre Margot.
— Você não pode fugir dos problemas pra sempre, sabe — respondeu a mulher, debochada.
parou de andar imediatamente, fazendo com que a guitarrista fosse de encontro com as suas costas com força por conta da parada repentina. Ela murmurou um xingamento, colocando a mão no nariz que provavelmente estava dolorido.
— Os meus problemas com Margot eu resolvo com ela — disse pausadamente, olhando para a mulher com raiva.
revirou os olhos impaciente.
— E quanto aos seus problemas comigo?
riu ironicamente.
— Você sabe como resolver nossos problemas, bonitinha.
A guitarrista bufou com a resposta, sustentando o seu olhar, mas ele apenas sorriu esperando o seu próximo movimento. Aparentemente não havia nenhum, porque a mulher apenas se empertigou e deu as costas, saindo para a outra direção batendo os pés insatisfeita. Finalmente.
Já fazia alguns dias desde o primeiro show. Não que estivesse contando. Mas fazia uns bons dias que ele estava evitando a guitarrista. E as ligações insistentes de Margot. Ele não estava fugindo, longe disso. Ele só queria esquecer aquela porcaria toda, mas lá estava ela, rindo, gritando, o provocando. fazia tudo piorar, dia após dia. E ele estava exausto de lidar com aquilo.
não estava mais chateado com a situação. Estava apenas... triste. Estava triste pela morte de Gus. Triste como nunca. Por ser um idiota, por ser corno, por perder o controle, por sentir tanto. Em meio a isso tudo, ela estava em todos os lugares. Nos ensaios da banda, na sala de reuniões da West Coast, nas noites de bebedeira na casa de Kalil. Na cama com sua namorada todas as vezes que fechava os olhos e no lugar de seu melhor amigo todas as vezes que os abria.
Já era provavelmente a quinta vez que tentava cercá-lo para discutir o assunto e o vocalista a despistava, já estava ficando sem estratégias para evitar aquele confronto. Não que não quisesse brigar com ela. Céus, como ele gostaria de xingar até a última geração da família dela e quebrar algo, talvez os dois juntos. Mas havia aquela porcaria de cláusula de contrato que o impedia de fazer qualquer uma dessas coisas. Então decidiu simplesmente se afastar para não à mercê dos seus próprios impulsos.
Sabia por Tony que as duas ainda estavam se falando. Mesmo que não quisesse saber de nenhuma delas. Por , ambas poderiam desaparecer do mapa que ele nem iria se importar. Talvez até agradecesse a algum deus hipócrita ou espírito da natureza pelo favor. Quem queria enganar? Se converteria imediatamente se esse fosse o caso.
só queria não ser ele mesmo por um tempo. Deixar tudo para trás. Se perder em alguma imensidão infinita, em algum lugar que ninguém lembrasse o seu nome, o que tinha feito, o que queria fazer consigo mesmo, com os outros. Faria qualquer coisa para tirar todos os sentimentos de dentro do seu peito.
Evitou o camarim até que fosse obrigado pela produção a se aprontar para a apresentação da noite. Foi buscado na área de fumantes que ninguém usava de fato por Kalil, que parecia ser a única pessoa que ouvia nos últimos tempos. O vocalista adentrou o recinto cabisbaixo na esperança de que evitar os olhares dos demais impedisse que fosse forçado a qualquer interação social. Vestiu uma regata preta e jeans de lavagem escura exageradamente rasgados no mais profundo silêncio antes de se sentar no sofá para calçar as botas de plataforma. Silêncio esse que foi logo interrompido pelo som de um celular tocando.
quase pulou com o grito de Anthony quando este encontrou o aparelho e já atendeu a ligação no alto-falante.
— Fala, linda, você está no viva-voz — disse o baixista em cumprimento, enquanto tentava prestar atenção em qualquer outra coisa.
No momento em que a voz da pessoa do outro lado da linha soou, teve que fazer um esforço para conter a careta.
— Coloca na TMZ, estão falando da — a voz de Margot soou alarmante da saída de som do celular.
— Espero que apenas coisas boas — disse a guitarrista, jogando-se no sofá ao lado de Tony para participar da conversa.
não conseguiu conter o revirar de olhos.
— Você não vai gostar disso — a voz da modelo soou do outro lado da linha seguido por um estalo de descontentamento.
Enquanto isso, Kalil já tinha providenciado o controle para a grande televisão que tinham no camarim e já estava zapeando pelos canais até chegar àquele que estavam procurando.
A tela foi tomada por uma sequência de imagens amadoras gravadas no show da banda em New York, em seguida dando espaço à imagem de uma mulher em frente ao Madison Square Garden. Quase que diretamente saída de um dorama, a jornalista era definitivamente asiática, ou bem próxima disso. A pele de porcelana e os longos cabelos escuros davam a ela um ar de falsa inocência que nada combinava com a chamada do quadro escrita na parte inferior do monitor.
Estreia desastrosa da nova guitarrista da Disclaimer decepciona fãs e críticos.
não pôde deixar de sorrir.
— Tá de sacanagem — murmurou com os olhos vidrados na televisão.
— Valeu, Margot — Anthony limpou a garganta antes de continuar. — Falo com você de novo depois do show.
E encerrou a ligação a tempo de ouvir as primeiras palavras da repórter.
— Confira em primeira mão como foi a estreia da nova guitarrista da banda Disclaimer em New York. Ou devemos dizer Gus de calcinha? A musicista latina, , deixou a desejar em sua primeira performance parecendo estar mais preocupada em imitar os trejeitos do falecido guitarrista August Train acima de qualquer coisa.
— Você é latina? — perguntou Tony, estupidamente.
— Sério? — questionou inconformada.
— Você não tinha me contado… — o baixista resmungou descontente.
— Eu não acredito que é nisso que você está pensando agora — protestou a mulher.
— Você pensou que vinha de onde? — rebateu Kalil segurando o riso.
Anthony pareceu pensar por um momento.
— Canadá?
O baterista deixou escapar uma risada frouxa e quase se permitiu sorrir com a situação.
— Calem a boca! — censurou a guitarrista.
— Quem pareceu não ter gostado nada disso também foi o vocalista , que nem ao menos olhava em direção à nova integrante e parecia claramente perturbado com as atitudes debochadas da mulher. Fontes afirmam que os companheiros de banda não se deram muito bem e passam mais tempo trocando farpas no dia a dia do que qualquer outra coisa, o que ficou evidente na decadência da sua performance de retomada da turnê.
— Quanta baboseira — reclamou a com os braços cruzados e uma expressão nada boa deformando suas feições.
— Eles me parecem bem-informados — murmurou para ninguém em especial, recebendo um olhar mortífero da mulher em resposta.
Na tela, a imagem da mulher foi substituída por filmagens da fachada do hotel em que a banda ficou hospedada em Wall Street.
— Funcionários do hotel onde a banda esteve hospedada em New York ainda alegaram que na noite do show, a nova guitarrista retornou ao estabelecimento acompanhada de ninguém mais ninguém menos que Margot Woelffel, modelo, embaixadora da Calvin Klein e namorada do vocalista da banda. O que ninguém esperava é que imagens da câmera de segurança dos elevadores do local, flagraram as duas mulheres aos beijos antes de chegarem ao quarto.
Então os pesadelos de novamente se tornaram realidade diante de seus olhos. Dessa vez as imagens do estabelecimento foram sucedidas pela gravação da câmera do elevador. O vocalista até quis fechar os olhos, mas era impossível não olhar atentamente para a cena.
— Bem-informados até demais — o baterista murmurou.
— Não diga — e sussurraram ao mesmo tempo, com os olhos tão vidrados na tela da televisão que nem ao menos se permitiram sentir repulsa pela coincidência da fala.
Na tela podiam ver as duas mulheres entrarem no cubículo um pouco desequilibradas por conta do excesso de bebida parecendo rirem de si mesmas. escorou-se em uma das paredes do elevador, sendo acompanhada pela modelo enquanto pareciam envolvidas em alguma conversa mais séria do que as outras que o vocalista já tinha presenciado. Não demorou muito para que Margot deixasse seu corpo escorregar pela parede em direção à guitarrista, selando os seus lábios. sentiu um aperto no peito de imediato ao ver a iniciativa partir da namorada, tão natural e intencional. Pouco tempo após a surpresa, viram levar suas mãos à nuca da outra mulher e aprofundar o beijo. As mãos exploratórias, os sorrisos indiscretos, a fome nua e crua no ato. quase podia sentir seus olhos sangrarem com a visão.
— Hóspedes do hotel ainda alegam que foram acordados por barulhos de coisas se quebrando no momento em que o vocalista flagrou a traição e que a discussão entre e Woelffel teria durado cerca de duas horas entre gritos e choros abafados. Seria o fim do relacionamento dos dois?
Mas antes que a jornalista pudesse prosseguir com as suas especulações, Kalil desligou o monitor parecendo farto do caos e discórdia disseminados por aquela cobertura televisiva da intimidade do grupo.
— Merda — disseram e em uníssono mais uma vez. Aparentemente ambos estavam mais atentos aos seus arredores porque imediatamente fuzilaram um ao outro com o olhar por conta disso.
— Isso é o que eu chamo de escândalo — comentou Kalil com um suspiro.
— O que é uma turnê sem um bom espetáculo, não é mesmo? — brincou Tony divertidamente, recebendo olhares um conjunto de olhares assassinos dos demais. — Muito cedo?
— Muito — concordou com a cara fechada.
— Até demais — completou à contragosto.
O baixista deu de ombros com um de seus sorrisos inabaláveis.
— Quem é a vadia? — perguntou para ninguém em especial.
— Que vadia? — Tony se fez de desentendido, arrancando um riso frouxo do baterista.
A guitarrista revirou os olhos impaciente.
— A repórter? — perguntou Kalil, recebendo um aceno positivo da mulher.
O baterista deu de ombros, fazendo-a bufar.
— Jennie Mizu — Tony decidiu colaborar — ela é nova na TMZ e tá fazendo carreira expondo alguns podres bem podres de Hollywood.
— E põe podre nisso — comentou Kalil.
— Ela é podre — resmungou a .
— E estupidamente bonita — se viu falando no automático, chamando a atenção de todos ao seu redor.
— Parece ser o seu tipo — sorriu irônica na direção dele.
Atento, Tony lançou um olhar cheio de significados para o vocalista que ele fez questão de ignorar.
Aquela conversa de novo não.
— Andam dizendo por aí que ela tem dormido com as pessoas por informações privilegiadas — o baixista deu de ombros, milagrosamente decidindo não incomodar mais o amigo em prol de uma boa e velha fofoca. O vocalista chegou a agradecer mentalmente por isso.
fez uma careta, parecendo não gostar nada daquela informação.
— Parece o seu tipo — decidiu dar o troco, olhando para a guitarrista desafiadoramente.
Mas antes que a guitarrista pudesse oferecer uma de suas respostas espertinhas, três batidas soaram na porta do camarim. Larry, o jovem roadie de cabelos raspados e uniforme da produção adentrou o recinto com um sorriso envergonhado, chamando a atenção do grupo.
— Desculpem interromper — disse ele, limpando a garganta. — , vamos precisar trocar o seu fone, parece que alguns sensores de retorno estão falhando.
— Sem problemas — disse ela, colocando-se de pé em um pulo para ir até o rapaz com um sorriso no rosto.
Em alguns minutos o rapaz fez a troca de aparelho da guitarrista, ajudando-a prender a caixinha e os fios junto ao conjunto de couro preto que a mulher usava naquela noite. Não demorou muito para que o tempo passasse, andava tão absorto em seus pensamentos ultimamente que os dias mais pareciam um compilado de cenas cuidadosamente editadas para fazê-lo perder a cabeça. Quando se deu conta, já estava no automático. Nem ao menos fez questão de prestar atenção nas conversas que se sucederam, no caminho para o palco ou nas três primeiras músicas que tocou. Cada mínimo ato parecia exigir cinco vezes mais esforço.
se viu no palco sob os holofotes com o microfone em mãos e se sentiu perdido. Olhou para o lado em busca de alguma luz, algum conforto, algum amigo. Mas deu de cara com a guitarrista observando-o com uma feição curiosa. Ele suspirou, voltando a sua atenção para o público novamente. Aquelas centenas de pequenas lanternas brilhantes apontadas em sua direção e deixou seus ombros caírem curvados.
— Boa noite, Tampa, como vocês estão? — disse ele para a multidão. Até a sua voz parecia abatida.
A plateia gritou calorosamente em resposta, arrancando do vocalista um sorriso triste. Ele inspecionou o estádio com seu olhar cansado, mas não encontrou o que estava procurando. distribuiu alguns acenos e andou calmamente até a frente do palco para sentar-se com cuidado na beira da estrutura.
— Kalil e eu estávamos conversando um dia desses. Quando estávamos a caminho de New York — disse , seu tom de voz baixo amplificado pelas caixas de som. — E ele disse que eu deveria tentar falar com alguém sobre essas coisas. Vocês sabem o quê.
Por algum motivo o público pareceu dominado pelo mesmo luto que , completamente silenciados por um sentimento compartilhado.
— Então eu pensei que talvez eu devesse falar com vocês — ele respirou fundo. — Não parece certo falar disso com mais ninguém, sabe.
sentiu a garganta queimar e olhou para o céu estrelado para evitar que as lágrimas começassem a se formar em seus olhos.
— Acontece que- — a voz do vocalista falhou no meio da frase, fazendo com que ele precisasse limpar a garganta para continuar. — eu não sei como fazer isso.
O silêncio da plateia era tão diferente da sua mente barulhenta. Ele não sabia dizer se era um diferente bom ou ruim.
— Eu sinto falta daquele filho da puta pra caralho.
De repente o vocalista ouviu um som diferente da sua voz, ao longe, em meio a multidão. Que se repetiu por algumas vezes, só. Então o som começou a ecoar de alguns pontos diferentes, espalhados por entre os corpos, um a um juntando-se em um coro. Aplausos. O público deu início a uma salva de palmas. Como se demonstrassem que estavam ali com ele. Como se tentassem dizer a ele que o entendiam. Que ele não estava sozinho.
sentiu uma lágrima solitária escorrer pela sua bochecha até que ela encontrasse seus lábios com o gosto salgado da dor e do afeto. Uma marca que ele fez questão de não apagar.
— Nós nos conhecíamos desde a quarta série, quando ele me atropelou de bicicleta no primeiro dia de aula e nós dois fingimos que tínhamos brigado para justificar os braços engessados. A gente acabou ganhando como lição duas semanas de detenção e um mês de trabalho comunitário depois da nossa recuperação. — o vocalista deu uma risada triste antes de continuar. — No primeiro colegial nós ganhamos o show de talentos da escola depois de ele me ouvir cantando no banho e praticamente me obrigar a me apresentar com ele e seu violão de segunda mão. Depois disso ele me ensinou a tocar, por acaso um cara da casa vizinha tocava bateria e de repente ele tinha decidido que iriamos formar uma banda. Foi assim que ele encontrou um outro cara no Youtube que de acordo com ele não era ruim no baixo e morava a quarenta minutos de nós.
parou por um momento, o olhar perdido na multidão, e ele teve certeza de que o amigo estava em cada uma daquelas pessoas ali presentes. Mas ele ainda não sabia como se sentir em relação a isso. A única coisa que passava em sua mente era o mais nu e cru arrependimento. Das coisas não ditas, de tudo o que não conseguiu fazer. Um nó se formou em sua garganta à medida que parecia cada vez mais difícil de continuar.
— Ele era a pessoa mais teimosa que eu já conheci e eu nunca tive a oportunidade de agradecer a ele por isso — a voz de se embargou ao dizer. — Se não fosse por ele, nós não estaríamos aqui hoje.
Nada que ele dissesse jamais seria o suficiente.
E passaria o resto de sua vida tentando compensar esse fato.
— Gus, se é que você está aí em algum lugar, essa é pra você!
olhou para trás, para onde August deveria estar e encontrou a nova guitarrista com uma expressão estranha. O vocalista deu um suspiro cansado antes de acenar a cabeça para a mulher, que respondeu ao gesto tocando os primeiros acordes da próxima canção.
Imediatamente se lembrou de quando escreveram aquela música. Quando August escreveu aquela música. A mãe do ex-guitarrista havia acabado de ser diagnosticada com aquela doença ingrata e as coisas começaram a ir de mal a pior. Train não aceitou muito bem a situação e acabou se envolvendo em diversos escândalos. Brigas de bar, direção sob o efeito de entorpecentes, jogos de azar. Foi somente quando o amigo começou a faltar shows esgotados que os demais conseguiram fazer com que ele abrisse o jogo. Todos ficaram arrasados. Mas não podiam deixar que Gus destruísse a si mesmo por conta daquilo. Foi quando propôs que escrevessem a canção.
Depois de tudo, a música nunca fez tanto sentido quanto agora.
— Eu não estou bem e não está tudo certo — cantou, as palavras partindo o seu coração como nunca. — Você não vai procurar no lago e me levar para casa de novo?
deixou as lágrimas escorrerem livres pelo seu rosto.
— Quem vai me consertar agora? Mergulhar quando eu estiver lá embaixo? Me salve de mim mesmo. Não. Me. Deixe. Afogar.
A emoção do público quando a música chegou ao fim não era nada comparada a emoção estampada no rosto do vocalista. nunca se sentiu tão exposto. Talvez Kalil estivesse certo, talvez ele devesse mesmo conversar com alguém, mas isso teria que bastar por hora.
Encerraram a apresentação com o cover escolhido por Kalil, Run to the Hills, e uma sensação de dever cumprido. O show daquela noite foi definitivamente melhor do que em New York. O que não significava que ele fosse mais fácil. Na verdade, parecia cada vez mais difícil. A ausência de August parecia cada vez mais permanente e a consciência disso era um novo conceito de dor, com a qual não tinha certeza se seria capaz de se acostumar. Estar no palco com , que o provocava com o mesmo ímpeto de desafio, que não sabia ficar parada, que fazia aquelas piadas sujas e que falava tão alto era como uma brincadeira de mal gosto. Porque tudo o que ela fazia lembrava o melhor amigo e conviver com isso tinha se tornado um grande desafio na sua vida.
estava a caminho do camarim, após a performance, quando a mulher se colocou em seu caminho com olhos curiosos e um sorriso de canto para ele.
— Ei, bonitinho — disse ela. Por algum motivo o apelido não parecia carregar o tom de ironia de sempre.
O vocalista se permitiu baixar a guarda por um momento. Mesmo que a visão dela lhe causasse dor física.
— Fala — disse ele meio sem jeito.
parecia igualmente desconfortável com a situação, trocando o peso de um pé para o outro em um gesto repetitivo.
— Maneiro o que você fez lá em cima hoje — disse ela, sem olhá-lo diretamente nos olhos.
definitivamente não estava entendendo.
— O show? — perguntou ele, sua testa franzida em confusão. — Eu não fiz nada de mais. Você também estava lá...
A guitarrista revirou os olhos impacientemente. Mas por algum motivo, pensou ter visto o rosto da mulher ruborizar sob as camadas de maquiagem pesada.
— Eu não quis dizer isso.
coçou a cabeça, sem saber o que dizer a seguir.
— O que você falou antes de Drown — explicou ela, parando por um momento para encontrar as palavras certas. — Foi bem… Decente.
tentou ignorar a sensação estranha de ter uma conversa minimamente civilizada com a mulher dando de ombros. Por que ela estava sendo legal com ele? Ele não conseguia entender, mesmo com muito esforço. E subitamente a sua consciência começou a pesar mil toneladas por todos os desentendimentos até então.
— A gente pode conversar mais tarde, se você ainda quiser.
Ela se empertigou imediatamente, encarando-o desconfiadamente com uma sobrancelha arqueada.
— Eu não vou te pedir desculpas, se é isso que você tá pensando.
O vocalista achou graça da situação. Então fez a última coisa que qualquer um esperasse que ele poderia fazer a seguir.
soltou uma gargalhada.
— Eu jamais esperaria isso — disse ele, lançando uma piscadela para a mulher antes de retomar o seu caminho ao passar por ela, deixando-a para trás com uma cara de interrogação.
Capítulo 7 — I Miss You
“We can live like Jack and Sally, if we want
Where you can always find me
And we'll have Halloween on Christmas
And, in the night, we'll wish this never ends
We'll wish this never ends”
— I Miss You, blink-182
Halloween era o feriado favorito de Gus. Mesmo que tivesse conseguido se livrar da responsabilidade de ser anfitrião da festa desse ano. Ainda haveria festa. Porque, afinal, Halloween também era o feriado favorito de Tony.
Ao menos havia tido a melhor ideia dela desde que entrara para a banda, sugerindo uma festa à fantasia na qual todos mantivessem suas ocultas a todo tempo. Não que fosse admitir isso em voz alta. Mas era um alívio saber que poderia simplesmente curtir uma noitada sem a presença constante do espírito obsessor que a mulher tinha se tornado na sua vida. Ou de qualquer pessoa que esperasse alguma coisa dele. Ou o tratasse como algo quebrado, sem conserto. No geral, era um alívio poder passar uma noite sem ser .
Esse foi o único motivo que compeliu o vocalista da banda Disclaimer a passar mais de doze horas sob os cuidados de uma equipe de efeitos especiais da Universal Studios para a sua caracterização. A roupa não era o problema, estava pronta há algumas semanas, costurada pelos melhores designers de figurino que o dinheiro podia pagar. Não, o grande elefante na sala era sem sombra de dúvidas a maquiagem. Foi preciso uma equipe de três maquiadores, duas cabeleireiras e uma figurinista para montar o look final, em meio a diversas queixas de , algumas reprimendas da própria equipe e risadas generalizadas. Era um milagre que tivesse conseguido ficar pronto a tempo.
Tudo valeu a pena quando olhou-se no espelho antes de sair de casa e viu nada mais nada menos do que o Grinch olhando-o de volta.
Talvez não odiasse tanto o Halloween assim quanto ele fazia questão de expressar.
aproveitou o anonimato para chegar na festa do baixista depois da comoção inicial, quando todos já estariam loucos o suficiente para não prestarem atenção demais nele. Pela primeira vez em anos se sentiu apenas um cara normal em uma fantasia de Halloween. Claro que algumas pessoas ficaram olhando, até porque não é todos os dias que você dá de cara com o Grinch, enquanto a maioria das pessoas decidiria por um clássico dos filmes de terror. Mas não era sobre quem ele era e sim o que ele era. Havia algo perturbadoramente libertador nisso.
Ao chegar ao endereço, o vocalista não precisou se preocupar em com nada nem ninguém. Tudo bem, talvez tenha se preocupado um pouco com a gigantesca porta vermelha de Sobrenatural que o encarava de volta, como se o desafiasse a encarar aquela noite de horrores. Não era uma surpresa para . O baixista não brincava em serviço.
Entrou na gigantesca mansão de Anthony no mais confortável silêncio, acompanhado de seu saco de presentes vermelho. O primeiro ambiente estava completamente decorado como a casa de O Chamado, tendo toda a sua mobília substituída por móveis que faziam alusão ao cenário do famoso filme de terror, calculadamente coloridas para parecer que todo o ambiente estava sob o filtro de cores frias característicos da película. A única diferença era a televisão, idêntica à da obra, mas de tamanho consideravelmente maior que servia como painel de fotografia para os convidados.
Não demorou muito para que encontrasse o baterista da banda, que apesar das instruções de ocultar sua identidade durante todo o evento, era o único cara da indústria da música que insistia em reciclar ano após ano a sua fantasia de Michael Myers apenas para deixar livre os seus longos fios de cabelo. riu consigo mesmo ao passar pelo amigo fingindo não o reconhecer. Aparentemente a identidade de Kalil só ficaria oculta para a guitarrista já que todos os demais já haviam o visto naquela fantasia antes.
rapidamente se encaminhou para a cozinha de Tony em busca de algo forte para refrescar o seu paladar. E para a sua surpresa o cômodo estava uma bagunça. Decorado como a sala de jantar de Perl com uma mesa montada para refeição completamente apodrecida e dummies dos corpos em decomposição de seus pais sentados ao redor. O vocalista não conseguiu ignorar a náusea na boca do estômago apenas de encarar o cenário. Tony tinha definitivamente passado dos limites dessa vez.
tentou não olhar muito para os objetos cenográficos, completamente desgostoso e se dirigiu ao freezer ali perto apenas para encontrar uma cabeça decapitada e xingar mentalmente todas as gerações do amigo. Decidiu punir Tony e seus convidados por aquela maldita situação e não se importou em pegar uma garrafa inteira de rum Zacapa para guardar em seu saco de presentes junto de uma Coca-Cola e um licor de limão. Teria que sobreviver de Cuba Libre apenas para não ter que visitar aquele cômodo novamente.
O vocalista fez questão de sair da cozinha o mais rápido o possível, andando sem rumo para se estabelecer em qualquer lugar que fosse o mais longe possível daquela imundice. Quando se deu conta já tinha alcançado a área externa da casa, que mais parecia um ambiente importado diretamente dos tempos da inquisição, completamente em preto e branco. se apoiou em uma pedra cenográfica de boca aberta, se perguntando como Anthony se deu o trabalho de replantar árvores caducifólias ou até mesmo cobrir o seu gramado perfeito com folhas secas na mais diversa tonalidade de cinza. Montou o seu primeiro copo da noite ali, de cenho franzido, buscando em sua memória de onde viria a referência para aquele cenário.
— Ei, Grinch — ouviu alguém chamar enquanto ele se servia.
olhou para cima, sem entender por que alguém tinha decidido perturbar a sua paz, dando de cara com um Pennywise para lá de cabeçudo.
— Sim? — respondeu ele, desconfiado.
— Pode dividir comigo a sua bebida? — perguntou o palhaço se aproximando com um sorriso macabro.
— Não gostou da cozinha? — perguntou ele divertidamente.
Pennywise riu, mas havia algum nervosismo no som que saía de sua boca dentuça.
— Não queria ter que voltar lá tão cedo.
sorriu para ele, um sorriso duro pela quantidade de massa de maquiagem artística que mumificava o seu rosto, e acenou com a cabeça para que o outro erguesse o copo em sua direção. Decidiu montar a quem quer que fosse um copo bem servido com um equilíbrio perfeitamente fatal de álcool e sabor, pronto para investir nessa primeira interação para o que prometia ser uma noite das boas. Quando recolheu o seu loot para guardar novamente no saco vermelho, retirou de lá um porta-comprimidos com um sorriso malicioso.
— Aceita uma bala, cara? — ofereceu ao estranho a caixinha e olhou para ele com um brilho no olhar.
— Só se você aceitar um cigarro — disse Pennywise sorridente.
riu e ambos trocaram uma pílula e um varejo do cigarro como uma criança que troca figurinhas na escola.
— Parece que eu escolhi o cara certo — disse o palhaço depois de tomar um gole de sua bebida juntamente do comprimido e oferecendo um isqueiro ao vocalista em seguida.
— Você também não me parece nada mal — respondeu simpático, acendendo o cigarro e devolvendo o objeto.
Ambos aproveitaram um momento de cumplicidade, fumando lado a lado em um silêncio agradável.
— Me diga, Grinch — disse Pennywise depois de alguns tragos tranquilos. — Você não está no feriado errado?
riu com a pergunta, dando mais um trago antes de responder.
— Eu sou um grande fã de blink-182 — disse ele, observando a figura macabra ao seu lado de esguelha. — Esse foi o meu jeito de viver o Halloween no Natal, só que ao contrário.
— Eu não estava esperando por isso — disse o palhaço sorridente.
— Estamos num Halloween de banda afinal de contas — brincou ele, assoprando a fumaça para o céu.
Pennywise riu uma risada digna de vilão que fez até os pelos da nuca do vocalista se arrepiarem.
— Acho que eu não reconheceria nenhum dos membros da Disclaimer, hoje mesmo se estivesse de frente para ele — disse o palhaço dando um trago em seu próprio cigarro.
— Exceto Kalil — comentou , com um sorriso de canto, antes de dar um gole em sua bebida.
— Estão falando por aí que ele emprestou a fantasia de Michael Meyers para outra pessoa esse ano fingir que é ele — disse Pennywise com um sorriso travesso. — Ele pode ser qualquer um.
gargalhou com a teoria da conspiração que parecia estar se espalhando pela festa.
— Eu duvido muito — disse ele, tentando recuperar o fôlego.
Pennywise pareceu pensar a respeito, mas também acabou caindo na gargalhada.
— Afinal, em que cenário nós estamos? — decidiu finalmente fazer a pergunta que estava martelando em sua cabeça.
O palhaço deu de ombros, apontando para um grupo que estava sentado próximo a uma das árvores secas.
— Minha garota disse que é a floresta de As Bruxas de Blair.
— Terror de mulher? — o vocalista brincou.
— Com certeza — concordou o estranho com uma risada culpada.
Os dois ficaram por ali, conversando amenidades. Falavam sobre todo e nenhum assunto em meio a risadas e encontros com todo tipo de personalidade da indústria que apareciam para filar um cigarro ou até mesmo reclamar sobre a decoração da cozinha. Vez ou outra falavam das fantasias e das pessoas por trás delas, tentando inutilmente adivinhar quem poderia estar por baixo das camadas de tecido e maquiagem. As fantasias eram como uma pequena janela por onde podiam espiar os gostos e aspirações de quem às vestiam. Todos pareciam abraçar a oportunidade de ser algo além deles mesmos e ainda sim se mostrar através do enigma do Halloween.
Depois de algum tempo, um amigo de Pennywise que estava vestido de Doutor Facilier apareceu chamando o de Noah, mas fingiu não perceber. Esse amigo disse que ouviu falar que uma mulher vestida de diabinha estava limpando todos os convidados nas cartas no andar de baixo e perguntou à dupla de recém conhecidos se eles queriam tentar a sorte. obviamente aceitou. Até porque quem não gostava de um bom desafio? Principalmente quando isso provavelmente envolvia um belo par de pernas e chifres de diabo.
O vocalista acompanhou então a dupla de amigos pela festa lotada até o porão da casa de Tony, que estava decorada como a espaçonave de Alien, com direito a uma mesa profissional de pôquer com um corpo de astronauta morto do qual um alienígena saía de um ferimento especialmente grotesco em sua barriga. O ambiente era preenchido pelo som de uma melodia etérea que só poderia ter sido escolhido a dedo pelo baixista da banda para aquele ambiente em particular. Na mesa estavam sentados o Monstro Elizasue, Beettlejuice, Lord Voldemort, Freddy Krueger e ninguém mais ninguém menos do que Lilith. Aparentemente não era uma diaba qualquer, mas a Rainha das Succubi. precisou piscar algumas vezes para ter certeza de que seus olhos não estavam o enganando.
— Também vieram implorar por suas almas, rapazes? — disse a mulher quando percebeu a presença de novas presas, fazendo com que um calafrio excitante atravessasse todo o corpo do músico.
pensou ter reconhecido a voz da mulher de algum lugar, mas talvez fosse apenas os seus hormônios tentando tirar o seu juízo pela excitação incontrolável de ver a chefona mais macabra e sedutora de todos os jogos da atualidade diante dos seus olhos. O vocalista estava prestes a se colocar de joelhos e permitir que aquela mulher lhe enganasse o quanto quisesse apenas pelo prazer sadomasoquista de estar em sua presença.
fez tudo ao seu alcance para se recuperar do choque o mais rápido possível apenas para que não se humilhasse diante daquele pedaço de mal caminho.
— Eu não me importaria nem um pouco de implorar qualquer coisa a você.
Ao invés de se sentir ofendida com a insinuação, a demônia jogou a cabeça para trás em uma gargalhada maléfica que ouviria a noite inteira se pudesse.
— Ah, Grinch, você é um galanteador! — ela respondeu com uma voz afetada e um sorriso malicioso. — Venham, juntem-se a nós.
Como um bando de plebeus enfeitiçados, os três homens fizeram exatamente o que ela queria.
se acomodou ao lado do dealer, na intenção de resistir aos encantos da mulher e quando se deu conta teve certeza de que tinha encontrado Anthony. Primeiro porque ele conhecia o amigo o suficiente para saber que ele não deixaria qualquer idiota dar as cartas em uma jogatina sob o seu próprio teto. Segundo porque quem mais naquela festa se vestiria como o Diabo de Tenacious D? O vocalista acabou agradecendo mentalmente por ter se sentado ao seu lado, caso contrário seria rapidamente desmascarado por uma mera troca de olhares. Consequentemente, tinha se sentado exatamente de frente para a mulher dos seus sonhos mais sombrios e mais belos pesadelos.
, Pennywise e Doutor Facilier então trocaram duzentos dólares cada por fichas de pôquer e logo deram início uma nova rodada de apostas. Rapidamente o dealer embaralhou as cartas do baralho com a maestria de um profissional e distribuiu duas cartas alternadamente para todos. encarou a sua mão agradecendo mentalmente pela quantidade de camadas em sua maquiagem que o impediam de demonstrar a sua reação decepcionada ao encarar a sua mão. Um sete de espadas e um três de paus. Não havia chance alguma de vencer a mulher que aparentemente tinha limpado os bolsos de todos os outros convidados da festa com uma mão dessas. desistiu logo na primeira jogada, aproveitando para assistir a rodada e sentir o clima da mesa para as próximas.
Lilith era boa de jogo. Blefava e provocava como ninguém. Acabou ganhando a rodada apenas no psicólogo, fazendo com que todos os demais jogadores desistissem. No final as cartas da mesa foram dois setes, um três, um quatro e um nove. A mulher fez questão de exibir sua mão, que continha apenas uma trinca de sete. teria feito um Full House se não tivesse amarelado logo no começo.
O vocalista bufou inconformado, mas logo se recompôs ao receber a mão da segunda rodada. Uma dupla de ás. Não tinha como perder essa.
começou apostando alto, duas fichas de vinte, que foram cobertas por Lord Voldemort, Freddy Krueger, Doutor Facilier e Lilith. Quando o dealer queimou a primeira carta e abriu a segunda para mesa o vocalista sentiu a adrenalina percorrer por todo o seu corpo. Um ás. Já tinha uma trinca. Esse seria o jogo mais fácil de sua vida.
Imediatamente o vocalista aumentou a sua aposta com uma ficha de cinquenta. Uma jogada ousada, para assustar os demais jogadores, mas não tinha como dar errado. Aquela rodada já estava ganha. Apenas Freddy Krueger e Lilith cobriram a aposta daquela vez e já podia imaginar o peso do dinheiro em sua sacola de presentes quando voltasse para casa ao fim daquela noite.
A rodada continuou entre blefes e muita conversa fiada, mas não voltou a aumentar as apostas. Tentou deixar os adversários mais confortáveis para que quando fizesse a aposta final eles fossem definitivamente derrotados, sem chance de misericórdia.
Quando chegaram à última jogada, Lilith estava estranhamente quieta, enquanto na mesa estavam abertos um ás, dois dois e um três e um quatro. observou os adversários atentamente antes de levar suas mãos verdes e peludas para o seu conjunto de fichas e empurrar todas para o centro da mesa com um sorriso presunçoso. All in. Lord Voldemort e Freddy Krueguer desistiram na hora. Enquanto Lilith pareceu parar para pensar por um momento, antes de encarar com olhos inquisidores que poderiam facilmente ver através da sua alma e oferecer ao homem um sorriso diretamente do quinto dos infernos. O vocalista engoliu em seco, vendo a mulher colocar todas as suas fichas para jogo, o que era muito mais do que os míseros duzentos dólares de àquela altura, tendo em vista a sequência de vitórias que o incentivaram a ir até lá desafiá-la.
Com o aval do dealer, o vocalista mostrou as suas cartas arrancando suspiros dos demais jogadores na mesa, que murmuraram algumas palavras de alívio por não enfrentarem aquele embate. encarou Lilith, que olhava para as cartas dele com espanto, e sentiu o orgulho da vitória se manifestar sobre seu espírito quase que imediatamente. Mas quando a mulher levantou o olhar para ele, não havia derrota alguma naqueles olhos completamente negros. Um ás e um cinco. Straight.
Vitória para Lilith.
Derrota para .
O vocalista fechou as mãos em punhos instintivamente ao vê-la se debruçar sobre as fichas e arrastá-las em sua direção com um sorriso no rosto. Maldita mulher demônio.
Lilith se recostou relaxadamente em sua cadeira e tirou de uma de suas asas um charuto extravagante. A mulher fez questão de ignorar os protestos inconformados dos demais jogadores ao pegar um isqueiro que estava jogado sobre a mesa e acender o objeto formando uma densa nuvem de fumaça amadeirada.
— Sinceramente? — disse ela, colocando os seus olhos pecaminosos sobre o vocalista novamente. — Eu achei que demoraria um pouco mais pra limpar os seus bolsos.
cerrou o maxilar com a provocação, absorto em um misto de fúria e excitação pelo jogo e pela criatura à sua frente.
— Quem disse que os meus bolsos estão limpos? — rebateu ele com um sorriso sacana, abrindo o seu saco vermelho e colocando sobre a mesa mais duzentos dólares.
Lilith abriu um sorriso exageradamente branco de orelha a orelha e ele não conseguiu saber se a odiou ou amou por isso.
Quatro rodadas depois, Lilith cometeu a proeza de eliminar Monstro Elizasue, Freddy Krueger e Doutor Facilier, que abandonaram a mesa dando os parabéns para a Rainha das Succubi como se ela fosse alguma espécie de falso profeta. ficava inconformado a cada eliminação, não era possível que a mulher não fosse perder uma rodada sequer.
Na rodada que se sucedeu, com o grupo de jogadores reduzido, encontrou uma nova chance para fazer o seu nome. Mesmo que ninguém ali soubesse quem ele realmente era.
Com todas as cartas já abertas sobre a mesa, tinha um Flush de copas em mãos e decidiu mais uma vez fazer a sua jogada final. Era tudo ou nada. All in. Mas Lilith não se deixava abalar facilmente e cobriu a aposta do vocalista sem nem mesmo pensar duas vezes.
— Você não tem como ganhar essa, Lilith — disse ele, mais determinado do que nunca.
A mulher pareceu momentaneamente surpresa por ser chamada por aquele nome, mas rapidamente se recompôs com um sorriso vicioso.
— Ah, Grinch — disse ela com a voz arrastada, em meio a um suspiro provocador que não podia ser nada além de proposital. — De todas as almas que eu manipulei, a sua foi a mais fácil.
Com isso, ela mostrou suas cartas sobre a mesa.
Full House.
Vitória para Lilith.
Derrota para .
Fim de jogo.
O vocalista sorriu para a mulher, oferecendo-a um aceno de cabeça em sinal de respeito e se levantou para enfim se retirar da mesa.
retornou para a festa com o peso da derrota sobre seus ombros. Aquela altura as bebidas que tinha sequestrado do freezer já estavam todas secas e precisou novamente encarar a cozinha para pegar um grande copo de whisky para engolir o seu ego ferido.
Algum tempo se passou e descobriu um novo ambiente no térreo da mansão, o baile de formatura de Carrie, a Estranha, decorado como um ginásio de ensino médio coberto por sangue e com papéis da votação para rainha do baile espalhados por todo o ambiente como que esquecido por ali em meio a uma grande cena de slasher americano. Abatido, o vocalista se estabeleceu em um sofá ao fundo do ambiente pronto para fumar um baseado e esquecer de Lilith de uma vez por todas.
não sabia dizer há quanto tempo estava ali, afundado no sofá puído e no próprio torpor. A mistura de álcool, êxtase e maconha o envolvia como um véu pesado, deixando-o leve como uma pluma, mas desconectado do mundo ao seu redor. Os sons da festa — risadas abafadas, música alta e conversas atravessadas — pareciam vir de uma outra dimensão. Ele encarava o teto tingido pelas luzes coloridas, até que algo incomum atravessou sua visão periférica.
Um par de grandes asas negras, adornadas por garras afiadas, desceu lentamente sobre ele como uma cortina. piscou, tentando decifrar se era real ou apenas mais uma alucinação. Antes que pudesse reagir, ela surgiu.
Lilith.
A Rainha das Succubi estava ali, em carne, osso e luxúria. Sua presença era avassaladora, uma força que parecia submeter todo o ambiente. Os cinco chifres que adornavam sua cabeça, curvando-se como uma coroa infernal, exalavam autoridade absoluta. Vestida em couro negro que abraçava cada curva como um segundo pecado, ela parecia tanto uma rainha quanto uma predadora. Os olhos dela, negros como o abismo, pousaram em , analisando-o, como se sopesasse se ele representava algum tipo de ameaça ou mera distração.
, por sua vez, estava imerso demais para pensar em qualquer coisa. Tudo o que ele podia ver eram os belos lábios negros, o pescoço delgado e o decote pecaminoso que ela carregava.
O vocalista não conseguia nem ao menos dizer nada para ela, enquanto era observado. Estava simplesmente petrificado pelo impacto mortificante do olhar dela sobre si.
— O Grinch definitivamente era a última pessoa que eu esperava encontrar essa noite — disse ela em cumprimento.
continuou encarando a mulher estático, sem ter a certeza de que aquela interação era real ou apenas fruto da sua imaginação perversa. Lilith limpou a garganta depois de algum tempo, despertando o homem do seu estado de inércia, fazendo com que ele se empertigasse e se colocasse de pé diante dela.
— Louvada mãe, que honra! — disse ele prontamente, depositando um beijo nas costas de suas mãos.
Ela o olhou com uma expressão surpresa. Deixando que um sorriso tímido escapasse de sua feição irredutível.
— Acho que você é a primeira pessoa que me reconheceu essa noite — disse Lilith com uma risadinha.
sorriu verdadeiramente, orgulhoso por causar uma boa primeira impressão apesar da sequência de derrotas desastrosas na mesa de pôquer.
A mulher lançou um olhar sugestivo para o sofá onde o vocalista estava sentado, esperando um convite para que se juntasse a ele. Rapidamente , ainda segurando a mão da mulher, abriu espaço para que ela se acomodasse, e Lilith aceitou com a graça de uma soberana, ajeitando as asas ao se acomodar ao lado dele.
— Tenho que conhecer os presentes de Natal que quero destruir — respondeu ele com uma piscadela. — Vossa majestade fuma?
Ela sorriu um daqueles sorrisos macabros.
— Não tem muitas pessoas no inferno que não fumem — respondeu ela, dando de ombros.
— Que idiotice a minha — deu um tapa em sua própria testa, arrancando dela uma risada contagiante. — Se importaria de me acompanhar?
— Achei que nunca fosse perguntar — disse ela com uma inocência dissimulada.
O vocalista rapidamente se aprontou para atender os desejos de Lilith, abrindo o saco de presentes vermelho e tirando de lá uma carteira de cigarros embalada para presente com um conjunto de cigarros de maconha já enrolados. A mulher demônio deu uma risada maligna com a cena.
— Como o Grinch bola com esses dedos? — perguntou ela, com uma curiosidade sincera.
ofereceu a ela um de seus sorrisos sacanas antes de responder.
— Eu não saio contando isso para qualquer um.
Lilith colocou a mão sobre o peito, ostentando uma expressão de indignação fingida.
— Nem para a rainha do submundo? — perguntou ela provocante.
O vocalista a observou sem nenhum escrúpulo, dos chifres à ponta dos pés, como se ponderasse a importância desse fato para prosseguir. Surpreendentemente, Lilith não pareceu incomodada pelo olhar descarado, muito pelo contrário, seus olhos brilhavam em chamas quando ela mordeu o lábio inferior seus dentes excessivamente brancos.
— Realmente, você não é qualquer pessoa — refletiu . — Podemos fazer um acordo.
— Estou ouvindo — disse ela, entrando na brincadeira.
— Eu te conto o meu segredo e você dropa algum item lendário na próxima run.
A risada de Lilith encheu o espaço, uma mistura de diversão genuína e algo perigosamente sedutor.
— Temos um trato.
A mulher ergueu uma de suas mãos para ele, na espera que ele fechasse com ela um pacto profano, e a agarrou sem ao menos hesitar. Talvez fosse até o inferno e voltasse por uma mulher dessas se assim ela quisesse. O sorriso que ela ofereceu a ele era capaz de fazer o mais virtuoso dos homens cometer pecados inomináveis.
suspirou audivelmente antes de acender um beck e assoprar a fumaça para cima.
— Elfos do Papai Noel — disse ele em um tom sério. — Mantenho um ou outro de refém em minha caverna para situações como essa.
acendeu o cigarro com a precisão de alguém que já tinha repetido aquele ritual inúmeras vezes. Ele deu uma tragada longa antes de entregar o baseado a Lilith. Ela o pegou com uma elegância que parecia contradizer o gesto banal, os dedos adornados com anéis demoníacos brilhando à luz da festa.
— Nunca imaginei que o Grinch fosse generoso — provocou ela, levando o cigarro aos lábios com um sorriso quase imperceptível.
riu baixo, soltando a fumaça em lentamente entre os dois.
— Só com quem merece.
Lilith deu uma risada abafada, expelindo uma nuvem de fumaça prateada que parecia dançar ao seu redor.
— Generosidade é algo que não vejo muito no inferno — disse ela, inclinando a cabeça para o lado, os olhos fixos em . — O que mais eu não sei sobre você, Grinch?
— Provavelmente muita coisa. Eu sou cheio de surpresas — respondeu ele, com um sorriso de canto.
A mulher demônio arqueou uma sobrancelha, desafiando-o.
— Surpreenda-me, então.
fez uma pausa, como se ponderasse o que dizer.
— Talvez você não goste do que eu tenho a oferecer... — a voz dele foi baixa, como se não tivesse realmente a intenção de dizer aquilo. Estava concentrado demais no movimento dos lábios dela para pensar claramente.
Ela não pareceu notar quando ofereceu o cigarro de maconha de volta para ele, observando-o com uma curiosidade afiada.
— Me teste.
deixou que a chama dançasse por um momento antes de dar outra tragada profunda. O efeito da maconha já começava a tomar conta dele, mas ele não deixou que isso o distraísse.
— O que você quer saber, Lilith? — ele a observou com os olhos um pouco mais nublados agora, tentando disfarçar o desconforto que sentia com a intensidade do olhar dela.
A Rainha das Sucubbi se aproximou um pouco mais, seus anéis reluzindoa, e sua voz se fez mais suave, mas carregada de um tom desafiador.
— Eu gosto de jogos, sabe? — ela disse, a voz baixa e carregada de um significado oculto. — Eu só quero saber até onde você está disposto a ir para manter as coisas interessantes.
Ele riu baixinho, o sorriso nos lábios como uma provocação silenciosa.
— Eu posso entrar no seu jogo, se é isso que você quer — perguntou ele com um sorriso desafiador, como se estivesse testando os limites dela.
Lilith sorriu, o brilho nos olhos ainda presente, e se afastou um pouco, como se tivesse se satisfeita com a resposta dele. Ele, surpreso pela repentina distância entre eles, sentiu uma leve tensão se formar no peito e puxou uma tragada mais profunda para tentar aliviar a sensação.
No entanto, a mulher não tirava os olhos dele, observando cada movimento com uma intensidade quase desconcertante. engoliu em seco e, com um gesto quase automático, ofereceu o cigarro de para ela mais uma vez, recebendo um sorriso felino da demonia em troca.
— Acontece, querido Grinch, que eu sou uma péssima perdedora — provocou ela, levando o cigarro aos lábios.
riu baixo, soltando a fumaça que estava segurando em espirais.
— Eu acho que nós vamos ter um problema.
Lilith deu uma risada abafada, expelindo uma nuvem de fumaça prateada que parecia dançar ao seu redor.
— Sorte sua que eu goste tanto de problemas, então — disse ela, inclinando a cabeça para o lado, seu olhar dominado por um brilho proibido.
A mulher riu mais uma vez, sendo imediatamente acompanhada pelo vocalista. Mas antes que ele pudesse dizer mais alguma besteira, apenas para mantê-la lá mesmo que só por mais alguns momentos, Lilith se inclinou sobre ele, a proximidade repentina fazendo o ar ao seu redor parecer mais denso, e quase implorou para que ela reivindicasse de uma vez por todas.
Os olhos dela estavam fixos nos dele, desafiadores e enigmáticos, como se quisesse ver até onde ele aguentaria aquela tensão crescente. A fumaça do cigarro se entrelaçou entre os dois, criando uma espécie de véu entre o que era dito e o que estava prestes a acontecer.
O vocalista sentiu o calor da presença dela invadir o espaço pessoal de uma maneira inesperada, como se ela tivesse quebrado a barreira invisível que ele sempre mantinha intacta, e, por um momento, o jogo parecia ter mudado de rumo. Ele manteve o olhar firme, mas a respiração acelerada denunciava que ele estava mais afetado do que gostaria de admitir.
Lilith sorriu de maneira quase imperceptível, como se soubesse exatamente o efeito que causava. Ela não se afastou, apenas ficou ali, desafiando-o com o silêncio pesado que pairava entre eles.
Mas antes que ele pudesse fazer qualquer coisa a imagem de Margot passou por sua mente para lembrá-lo de que apesar de toda mágoa e decepção ainda era um homem comprometido. imediatamente reviveu tudo de uma vez. A visão da namorada se entregando para a sua maior inimiga em seu quarto de hotel New York. A discussão que se sucedeu com Margot entre gritos e lágrimas desesperadas. A exposição do caso na reportagem da TMZ. As filmagens da câmera de segurança do hotel em que Margot tomou a iniciativa. A dor. O luto.
se afastou da mulher demônio com um nó no estômago, chamando imediatamente a atenção dela.
— O que houve? — Lilith perguntou confusa.
respirou fundo, sem saber como sair daquela situação sem ser nada além de sincero.
— Eu tenho outra pessoa — disse ele com mais calma do que ele sentia no momento.
Ao contrário do que ele esperava, a mulher não pareceu ofendida, mas sim compreensiva. Lilith deu um sorriso levemente decepcionado ao dar um trago no baseado e devolveu o objeto ao vocalista com uma cara que poderia ser tudo, menos demoníaca.
— Eu deveria ter imaginado — disse ela com tranquilidade. — Alguém que veste uma fantasia de Natal no Halloween raramente estaria solteiro depois de blink-182.
piscou algumas vezes desconcertado pela comprensão da mulher sobre a referência da sua fantasia.
Lilith se levantou com elegância, colocando-se novamente diante do vocalista com uma postura ereta que nada combinava com o sorriso acolhedor em seu rosto macabro.
— Me desculpe pelo inconveniente — disse ela, inclinando-se sobre ele uma última vez para depositar um beijo no canto dos lábios do vocalista e se afastar um uma risadinha travessa, deixando para trás com uma sensação estranha na boca do estômago.
Por algum motivo, a festa não pareceu mais muito interessante depois disso.
Ele mal conseguia processar a música que pulsava ao redor, o som agora uma mistura distante de batidas que se fundiam em uma massa irreconhecível. As conversas, antes alegres, eram agora ruídos abafados que ele mal conseguia distinguir. Ele olhou para as pessoas se divertindo, rindo, mas a sensação de estar completamente deslocado tomou conta dele.
Diferente do que costumava fazer, foi embora não muito tempo depois de se despedir de Lilith. Ligou para o seu motorista particular e partiu sem se despedir de ninguém. Tendo como única companhia a sensação de vazio que a Rainha das Succubi deixou consigo. Talvez fosse um alívio que aquilo não passasse de uma festa à fantasia e que ele nunca descobriria a identidade dela graças a ideia brilhante de . Tinha ficado tão hipnotizado, diga-se obcecado, pela mulher nos poucos momentos em que desfrutou de sua companhia, que teve medo do que poderia acontecer se ele soubesse quem ela realmente era.
O rosto dela, com seus olhos penetrantes e o sorriso travesso, ainda o atormentavam, uma lembrança vívida que parecia dominar cada espaço em sua mente anuviada. Havia algo em Lilith, algo perigoso, que o atraía. Mas não foi apenas a sua aparência ou a sua personalidade forte. Havia uma força invisível que o puxava para ela, uma aura de mistério e sedução que não saía da cabeça dele. Mesmo agora, sozinho no carro, com a rua vazia e os faróis cortando a escuridão, a sensação de querer mais dela não se dissipava.
sentiu o cansaço cair sobre o si à medida que o carro embalava o seu corpo entorpecido e aproveitou o trajeto para acessar suas redes sociais, enquanto procurava qualquer coisa que pudesse tirar a mulher de sua mente. Estava rolando o feed do seu Instagram quando deu de cara com uma foto recém-publicada por Anthony.
Ele não poderia ser tão azarado.
Mas lá estava, Anthony, fantasiado de Diabo de Tenacious D, posando lado a lado de Lilith. Sua Lilith.
Na marcação apenas um nome aparecia na tela.
.
Capítulo 8 — The Devil in I
“Make amends
Some of us are destined to be outlived
Step inside, see the devil in I
Too many times, we've let it come to this
Step inside, see the devil in I
You'll realize I'm not your devil anymore”
— The Devil in I, Slipknot.
Pelo menos desde a festa de Halloween, ele tentava se convencer.
Não quando o beijo roubado no canto de sua boca naquela noite ainda parecia marcado em sua pele todas as vezes que ele colocava os olhos nos lábios dela.
Ele deveria estar ficando louco.
Só poderia estar ficando louco.
Por Deus ou qualquer outra coisa, estava até a tratando bem desde aquele dia, mal conseguia se controlar. Mal conseguia lutar contra aquele impulso. Estava tão obcecado que tinha passado noites em claro apenas estudando a droga da música apenas porque ela tinha pedido. Mesmo que não tivesse contado a ela nada a respeito disso.
Estava simplesmente fodido.
A verdade era que estudar a música do show de Chicago tinha se tornado uma espécie de terapia através dos dias, principalmente depois da confusão que tinha se tornado a sua mente desde que viu aquela maldita foto no Instagram. Já sabia que era uma mulher interessante, mesmo que se recusasse a todo momento a admitir aquilo até para si mesmo. Então, trabalhar na música parecia ser a única coisa que impedia seus pensamentos de entrarem em colapso a qualquer momento. Principalmente porque, apesar dos últimos acontecimentos, ainda estava afundado até os joelhos na merda com Margot.
Por algum motivo o vocalista parecia não sentir mais nada em relação a isso, o que era um alívio. Mas, ao mesmo tempo, não conseguia deixar de se sentir culpado. e Margot tinham passado por muitas coisas juntos, apesar do relacionamento turbulento, sempre tinham sido bons amigos e a química entre eles sempre foi algo intrínseco na relação dos dois desde antes de se tornarem alguma coisa. Agora, tudo parecia ter se tornado o eco distante de algo que já não fazia mais sentido.
Nos últimos dias, tudo pareceu desaparecer como se nunca tivesse existido. nem ao menos sentia a falta dela e isso não era alguma coisa da qual ele se orgulhava.
Mesmo assim, a sua mente parecia em um looping infinito em todos os momentos errados desde aquela maldita festa.
estremeceu ao ser repentinamente envolvido pelo som ensurdecedor da plateia, uma onda de vozes e aplausos que parecia arrancá-lo de um estado de transe. Seus sentidos, antes dispersos, se reajustaram de forma brusca enquanto ele piscava várias vezes, tentando clarear a mente. Ele estava no palco. Em Chicago. O show, o público, a energia vibrante da cidade, dos fãs. Por algum motivo era como se ele estivesse observando outra pessoa vivendo aquele momento.
No centro daquele caos controlado de notas e acordes, estava . De pé, com a guitarra pendurada no pescoço, a expressão intensa e concentrada, como se tudo ao seu redor tivesse desaparecido e ela estivesse completamente imersa no seu próprio mundo particular.
Mas quando a música chegou ao fim, as últimas notas ecoando no ar, ela lentamente abriu os olhos. Foi aí que seu olhar se encontrou com o de . Foi um choque direto, como um raio atravessando a distância que os separava.
O tempo pareceu se esticar como uma corda prestes a se romper. sentiu a tensão no ar, e, sem aviso, o tempo pareceu se estender entre eles em câmera lenta. Cada segundo com o olhar de fixo no dele parecia se arrastar, prolongado e denso, enquanto a luta interna que ele travava se tornava uma ameaça iminente ao seu autocontrole. Ele tentava manter a compostura, mas tudo ao seu redor parecia conspirar contra ele. A intensidade do olhar dela, desafiador e profundo, mexia com algo dentro dele que ele não queria reconhecer, algo que ele lutava para não deixar transparecer.
Então, a contagem para a próxima música começou. buscou fôlego, seus olhos ainda fixos na guitarrista.
— Eu ouvi batidas na minha porta outro dia. Abri e vi a morte me encarando — ele cantou, a voz firme e profunda, como se cada palavra fosse arrancada de suas entranhas. Com um olhar desafiador, pareceu analisá-lo como se estivesse tentando entender a súbita mudança na atitude dele em relação a ela. — A sensação de uma perseguição mortal ainda persiste. Onde quer que eu vá eu levo esse caixão, por segurança.
De repente, deu um passo na direção dele. O movimento foi quase imperceptível, mas carregado de uma irreverência insolente, como se ela estivesse empurrando as fronteiras invisíveis entre os dois. E ela não parou por aí.
Ele não conseguia desviar o olhar. quis reagir, queria fazer algo, qualquer coisa, mas os seus músculos pareciam estar paralisados, incapazes de se mover um centímetro sequer. Merda. Não havia nada que pudesse fazer para quebrar o contato visual, nada que pudesse fazer para se afastar à medida que ela se aproximava cada vez mais. Ele não pode deixar de se comparar à um animal assustado.
deu um passo, depois mais outro e outro, a audácia estampada em seus olhos. Cada passo que ela dava fazia o chão tremer sob seus pés, e a cada centímetro que ela avançava, a guitarrista parecia rir da resistência dele, como se soubesse exatamente o efeito que estava exercendo sobre ele.
tentou se concentrar na música, mas a presença dela, tão próxima, tornava tudo cada vez mais difícil. parou a centímetros dele, o olhar ainda fixo nele, não precisou dizer uma palavra, o desafio estava lá, claro para quem quisesse ver.
A guitarrista estava tão perto agora que podia sentir o calor do seu corpo, o cheiro dela, cada detalhe parecia amplificado.
se inclinou para ele enquanto tocava, os dedos ágeis deslizando pelas cordas da guitarra com precisão, em uma provocação velada. Cada maldita inclinação do seu corpo contra era uma jogada calculada para mexer com a cabeça dele. Ele sentiu o peso da raiva e da atração conflitantes se chocarem dentro de si de uma só vez.
A guitarrista não estava apenas performando. Não. Ela estava testando seus limites, entrando no território dele de uma forma que o desafiava a reagir.
Incapaz de resistir, decidiu dar o troco. Em vez de recuar, ele também se inclinou para ela, mais agressivo do que o normal, cantando cada palavra com intensidade, como se estivesse respondendo a uma pergunta que ela sequer fez. Quando ela quase tocou seu rosto enquanto se inclinava, sussurrando as palavras da música, a proximidade se fez insuportável.
— Está com medo? — a voz dela sussurrou em seu ouvido, tão próxima que nem mesmo a música ecoando pelos amplificadores era capaz de abafar.
Imediatamente um calafrio percorreu todo o corpo dele.
Ela estava tão perto que ele podia sentir a sua respiração, tinha a impressão de que poderia sentir as batidas do coração dela caso se esforçasse um pouco. Foi como se o autocontrole de se partisse instantaneamente.
O vocalista deu um passo a frente, inclinando-se na direção dela e, por um segundo, parecia que o mundo inteiro poderia explodir bem naquele momento.
Ele soube que estava caminhando em direção a um precipício, mas já não tinha como voltar atrás.
— Eu perdi a minha maldita mente, isso acontece o tempo todo. Eu não posso acreditar que eu realmente deveria estar aqui — ele cantou com uma força que soava como uma ameaça, mas também como um aviso, como se estivesse se entregando àquela tensão que, por tanto tempo, ele tentava ignorar. — Tentando consumir. A droga em mim é você. E eu estou tão chapado de miséria. Você não consegue ver?
Um lampejo de algo passou pelo rosto da guitarrista e antes que pudesse ao menos processar, a mulher se inclinou, sem cortar o contato visual, e, em um movimento lento, deslizou a língua ao longo da extensão do antebraço dele, que erguia o microfone.
congelou por um instante. Ele sentiu a umidade da saliva dela se espalhando pela sua pele, a sensação que ela deixou queimando em seu braço. O impacto daquele gesto desprovido de qualquer inocência reverberando por todo o seu corpo. Ela sabia o que estava fazendo, o efeito que causava nele. O vocalista entrou em estado de alerta, dominado pelo jeito que os lábios dela curvaram em um sorriso imperceptível, a confiança quase cruel nos olhos que o encaravam.
Que porra era aquela?
E foi nesse momento, no final da música, que fez algo que nem ele mesmo esperava: segurando o microfone, ele se aproximou ainda mais de . O vocalista estendeu a mão livre e, com uma suavidade que contrastava com a tensão entre eles, tocou o rosto da guitarrista. O toque foi lento, quase possessivo, enquanto ele a observava com os olhos fixos nos dela. Seus dedos roçaram pela pele dela, tocando sua mandíbula e depois subindo até a linha do maxilar, como se estivesse fazendo uma promessa silenciosa — ou talvez uma ameaça.
não recuou, mas o olhar dela estava carregado de algo que ele não sabia identificar. Ela parecia se divertir com o momento, mas também havia algo mais nos olhos dela, como se ela estivesse esperando pela próxima jogada.
Quando ele terminou de cantar a última linha da música, o silêncio entre eles não passava uma explosão prestes a acontecer.
O toque do vocalista no rosto de permaneceu por um momento, pele queimando contra pele. Ele não a tirou de perto, não a afastou. Foi como se, naquele breve momento, o tempo tivesse parado. A plateia, o palco, a banda — tudo isso desapareceu por um segundo, e o único espaço que existia era aquele entre eles.
puxou a mão de volta, com os olhos ainda fixos em . A última nota da música ecoou no ar, decretando a derrota dele com um eco fúnebre. Quando a guitarrista finalmente se afastou, o movimento foi tão deliberado quanto a aproximação. Ela ainda o olhava, aquele sorriso sutil nos lábios, um lembrete de que ela sabia que tinha vencido, mesmo enquanto retomava seu espaço no palco.
O público explodiu em euforia, o som das palmas e gritos preenchendo o espaço como uma onda avassaladora. A energia da multidão era quase tangível, alimentada pelo espetáculo intenso que acabara de testemunhar. O frenesi da plateia parecia amplificar o que sentia por dentro, um misto de adrenalina e confusão, enquanto tentava processar a dinâmica silenciosa que havia se desenrolado entre ele e .
O show havia chegado ao fim, mas o momento mais intenso ainda estava para acontecer: a última música, um cover cuidadosamente escolhido por ela. Era a peça de encerramento, o golpe final.
As luzes do palco pulsaram uma última vez, enquanto o vocalista ainda tentava se recompor.
O silêncio expectante tomou conta da arena como uma onda de expectativa. , parado sob os holofotes, sentiu o peso do momento antes de erguer os olhos para os outros integrantes da banda. Era isso. Não tinha como voltar agora.
— Obrigado, Chicago! — ele disse contra o microfone, sua respiração ainda ofegante.
O público respondeu com uma explosão de gritos e aplausos, o som reverberando como um canto de guerra. Um leve sorriso cruzou o rosto de enquanto ele caminhava devagar de um lado para o outro no palco, criando um clima de excitação latente.
— Para a última música dessa noite, vamos precisar ter uma pequena conversa — o vocalista anunciou, parando por um momento para observar a multidão. O público reagiu animado, o burburinho crescendo. — Pra quem não me conhece eu sou o , eu gosto de cantar no banho e por algum motivo alguém achou que eu deveria fazer isso fora do banheiro
Ele riu divertido, fazendo a plateia se agitar ainda mais.
coçou a têmpora, momentaneamente envergonhado. Ele apontou com um gesto descontraído para o baterista, que sorriu de forma ampla enquanto girava uma baqueta entre os dedos.
— Lá no fundo, na bateria, temos o Kalil, ele definitivamente tem o melhor cabelo entre todos nós.
Naquele momento algumas mulheres gritaram mais alto entre o público. não conseguiu conter seu sorriso de divertimento.
Ele alcançou o baixista, enlaçando o pescoço dele com o braço e puxando-o para perto em um gesto que era ao mesmo tempo descontraído e carregado de energia.
— E esse maluco aqui do meu lado é o Tony. Ele gosta de falar merda, então, fazemos o possível para manter ele longe dos microfones.
O amigo, pego de surpresa, arregalou os olhos e fez uma expressão de falsa indignação,
— Canalha! — exclamou Tony, sua voz soando distante pelos amplificadores por conta do alcance dos microfones, arrancando uma risada do público. deu um leve aperto no amigo, antes de soltá-lo e dar um passo para trás.
O baixista fez uma reverência exagerada, e o público respondeu com risadas e mais aplausos.
— Nós queríamos fazer algo especial pra fechar a turnê — continuou andando, ajustando o ponto no ouvido com um movimento breve, a voz ganhando um tom mais sério e intencional. — Cada membro da banda nomeou um cover, uma música escolhida a dedo pra fechar as últimas apresentações com chave de ouro.
A reação do público foi imediata, uma mistura de curiosidade e empolgação. fez uma pausa, deixando o momento se prolongar, antes de continuar, agora mudando o tom.
— E, para isso, precisamos apresentar alguém pra vocês esta noite.
Ele não olhou imediatamente para onde estava a guitarrista. A voz dele soou firme, mas havia algo mais — uma ponta de emoção contida que parecia fazer o público prender a respiração.
— Chicago, por favor, façam muito barulho para a nossa nova guitarrista. !
O som do nome dela ecoou pelo espaço, e finalmente virou-se para ela. piscou, surpresa, o olhar denunciando que o discurso a pegara desprevenida. Mas foi o som do apelido dela — dito pela primeira vez na voz dele — que pareceu ter a deixado momentaneamente sem reação. Ele nunca havia chamado ela assim antes.
Os olhos de faiscaram ao encontrar os dela, como se reconhecessem que ela havia notado o detalhe. Sem quebrar o contato visual, ele inclinou a cabeça em um gesto sutil, incentivando-a a se adiantar.
respirou fundo, andando em direção a eles para alcançar o microfone e, com uma energia típica dela, gritou:
— Chicago!
A resposta foi imediata. O publico inteiro pareceu rugir com ela.
lançou um olhar rápido para , e os dois trocaram um momento breve, mas carregado. Então, ela riu, um som claro e insolente como sempre.
— Caralho, eu não tava esperando por isso! — admitiu, rindo enquanto a multidão aplaudia novamente. — Espero que gostem da música. Eu, pelo menos, estou completamente obcecada por ela.
Com um último sorriso de canto, ajustou a postura, olhou para a guitarra e acenou com a cabeça, como quem diz que estava pronta. Ao fundo, Kalil iniciou a percussão da bateria com uma batida suave, criando uma atmosfera crescente. No mesmo momento, se aproximou do pedestal, encaixando o microfone com uma calma carregada de adrenalina.
— Suas lâminas são afiadas com precisão — ele cantou, sendo imediatamente ovacionado pelo público com o reconhecimento da canção. — Exibindo seu ponto de vista favorito. Eu sei que você está esperando à distância. Assim como você sempre faz.
olhou para a guitarrista enquanto ela tocava o arranjo de apoio, e seu olhar encontrou o dela. Como se o apelido dela ainda reverberasse entre eles. Ela o observava com uma certa incredulidade, como se não esperasse que ele tivesse realmente se dado o trabalho de aprender a música que ela pediu. Mesmo que isso fosse parte do trabalho deles.
— Já está me sugando, já está me atingindo — a voz de fluiu suave, perfeitamente alinhado com o ritmo da bateria, enquanto a música começava a ganhar forma e intensidade. — E sei exatamente como isso acaba, eu…
jogou a guitarra para trás, deixando-a girar ao redor de seu corpo ainda presa à alça. Com um movimento rápido, ela agarrou o microfone dele com firmeza, tomando um fôlego profundo.
— Deixei você me cortar só para me ver sangrar — ela cantou em plenos pulmões, o olhar queimando sobre o público. A confiança dela, a presença forte e desafiadora, de repente, precisou se esforçar para acompanhar a música. — Desisti de quem eu sou por quem você queria que eu fosse. Não sei por que estou esperando pelo que não vou receber, acreditando na promessa da máquina do vazio.
O choque dominou , a voz da guitarrista atingindo-o como um tiro certeiro, despedaçando sua mente em milhões de pedaços. Ele sempre soube que ela tinha talento, mas aquilo era diferente. A força com que ela cantava não era só impressionante, era avassaladora. Havia uma intensidade crua em sua voz, algo selvagem e ao mesmo tempo preciso parecia arrancar o ar de seus pulmões.
Eles trocaram um olhar inesperado, quase cúmplice. Sem hesitar, ele se inclinou sobre o microfone que dividiam, sua voz se unindo à dela com uma naturalidade surpreendente.
Era como se, por um segundo, a tensão entre eles fosse deixada de lado, substituída por algo mais profundo, mais visceral. Tudo o que restava era a música e seus olhares, fixos um no outro.
À medida que a música avançava, a troca entre eles se intensificava. Cada acorde que ele tocava, cada palavra que ela cantava, parecia envolver a atmosfera com uma euforia contagiante. E, de alguma forma, não conseguia deixar de ser atraído pela força dela, essa habilidade de dominar o momento, o palco, ele.
A reação do público foi imediata e estrondosa. Quando e começaram a cantar juntos, algo mudou no ar. A tensão que antes se concentrava apenas no palco agora se espalhava pela multidão, criando uma conexão eletrizante. O ambiente estava fervilhando de energia, e a plateia parecia respirar no mesmo ritmo da música, como se a aquele momento uma vitória compartilhada.
Quando a última nota da música se desfez no ar, e , ainda ofegantes, se encararam no palco, cada um tentando recuperar o fôlego. Nenhum dos dois disse uma palavra. Seus olhares se mantiveram fixos um no outro, desafiadores, mas também carregados de uma estranha compreensão.
Quando os dois finalmente se distanciaram um pouco, o público explodiu em aplausos e gritos, não apenas pela habilidade técnica, mas como se sentissem que aquela performance tinha ido muito além daquilo.
Mas entre e , o mundo parecia ter desacelerado, e naquele breve momento, apenas eles existiam. E o vocalista sentiu que ficaria cada vez mais difícil lutar contra aquilo.
Após o show, contagiado pelo sucesso da noite, o after party fervia, como se dominado por uma espécie única de frenesi. Apesar disso, sentia como se estivesse num ritmo diferente, completamente dominado por uma quietude incomum. O vocalista estava no bar, mexendo em seu copo, tentando absorver tudo o que tinha acontecido. Ele olhava para a multidão, mas seus pensamentos estavam em outro lugar — no olhar de , na intensidade com que ela o desafiou e na forma como ele reagiu.
Ela, por outro lado, parecia se misturar mais com o ambiente, se deixando levar pela vibração da festa, mas seu olhar, de vez em quando, despretensiosamente se encontrava com o de . E ele não conseguia deixar de pensar no que aquilo poderia significar.
Na pista de dança, a maioria estava envolvida no momento, se deixando levar pelo ritmo da música, com movimentos rápidos e descontraídos. A combinação de neon, fumaça artificial e risadas preenchia o espaço, como se a própria noite tivesse se distorcido, se fundido com a música e as emoções à flor da pele.
apareceu no canto de sua visão periférica, cercada por algumas pessoas, mas sempre com o olhar atento, como se estivesse procurando por algo. Quando seus olhares se cruzaram à distância, foi como se o mundo tivesse parado de girar por alguns segundos. Não havia necessidade de palavras. A tensão estava ali, ainda viva, e embora a festa estivesse em seu auge, nada ao redor parecia tão importante quanto aquele momento de silêncio compartilhado.
Ela se aproximou, sem pressa, como se soubesse exatamente onde ele estava, e parou ao seu lado. Não houve um cumprimento, nem um sorriso. Apenas a presença dela, uma provocação silenciosa no ar. não disse nada, mas sentiu uma inquietação crescendo dentro de si.
Antes que pudessem fazer qualquer coisa a respeito disso, um som familiar invadiu o momento. Tony apareceu, com um sorriso largo e olhos levemente mareados, acompanhado por Kalil, que parecia tão calmo quanto sempre, sua postura serena contrastando com o estado animado do baixista.
Tony deu uma risada alta, jogando os braços ao redor dos ombros dos dois amigos, sem parecer perceber o clima tenso entre eles. A guitarrista olhou para baixo, soltando uma risada baixa, como se achasse graça daquela situação.
— Exatamente quem eu estava procurando! — exclamou o baixista, alto o suficiente para machucar os tímpanos de qualquer pessoa normal.
fez uma careta instintiva, inclinando a cabeça para trás como se tentasse escapar da intensidade do volume, mas logo cedeu, deixando escapar um sorriso. A energia de Tony, como sempre, era impossível de ignorar.
— Que show! — continuou o baixista, suspirando de forma exagerada enquanto se inclinava para encostar a cabeça na de , um gesto tão dramático quanto cheio de admiração.
ergueu as sobrancelhas, o canto da boca se curvando em diversão.
— Você sempre consegue fazer uma entrada — o vocalista disse, lançando um olhar de esguelha para o amigo.
— Antes fosse só a entrada — Kalil brincou do fundo, antes de tomar um gole da long neck que carregava consigo.
Tony revirou os olhos para o amigo, mas logo soltou e , mais pelo calor do ambiente e da bebida do que por qualquer outra coisa. Ele começou a se abanar dramaticamente com uma das mãos, a expressão teatral arrancando risos dos outros. Sem pensar duas vezes, pegou o copo da mão de e deu um longo gole.
— Claro, Tony, não precisava pedir — ironizou o vocalista, erguendo as sobrancelhas com um toque de exasperação fingida.
O baixista soltou uma gargalhada alta sua alegria inconfundível preenchendo o espaço. Sem cerimônia, entregou o copo para , que virou o restante do conteúdo sem pensar duas vezes.
— Vocês têm ideia do que acabaram de fazer? — Anthony gritou, gesticulando como se estivesse pregando um sermão. A energia dele era tão absurda que arrancou sorrisos de todos os amigos. — Por que caralhos vocês não tinham feito isso antes?
desviou o olhar por um instante, mudando o peso de uma perna para a outra, claramente desconfortável com o comentário.
— Você fala como se não conhecesse o seu amigo — interveio , sua voz carregada de provocação e diversão.
Os olhos de pousaram nela, queimando com algo que não podia ser descrito apenas como irritação.
— Eu acho que foi tudo no momento certo — disse Kalil, diplomático.
— Chato! — Tony cantarolou, jogando a cabeça para trás enquanto ria, deixando o ambiente ainda mais descontraído, apesar das tensões sutis que pairavam ali.
A risada de foi espontânea, escapando sem que ela percebesse, e o som pareceu contagiar , que, sem querer, acabou rindo junto.
Kalil, como era de se esperar, aproximou-se de como sempre. Ele girou a garrafa de cerveja que segurava com uma mão, fazendo o líquido balançar suavemente dentro do vidro. Então, com um gesto casual, estendeu a cerveja para ela, inclinando-se levemente enquanto a olhava de soslaio. Eles trocaram um olhar cúmplice, antes de ela aceitar a oferta e bebericar a garrafa silenciosamente.
— Eu não sabia que você podia cantar daquele jeito — disse Kalil, sua voz baixa quase engolida pelo burburinho da festa ao redor.
, parado ali perto, não conseguiu deixar de observar a cena.
— Eu só cantei, não foi nada de mais — respondeu com um riso leve, enquanto colocava uma mecha de cabelo atrás da orelha, como se não soubesse como receber o elogio.
limpou a garganta, chamando atenção para si de forma um tanto abrupta.
— Eu concordo com Kalil — ele disse, meio sem jeito. — Eu definitivamente não estava esperando por aquilo.
ergueu uma sobrancelha em sua direção, surpresa com o comentário.
— É mesmo? — perguntou ela, o tom carregado de desconfiança provocativa. — Você não parecia muito impressionado quando estávamos no palco.
O vocalista engoliu em seco, desviando o olhar enquanto mexia no copo vazio em sua mão.
— Não força — resmungou ele, a voz emburrada arrancando uma risada sincera da guitarrista.
Antes que a rodada de provocações pudesse continuar, Tony se debruçou entre os dois, agarrando o rosto de com as mãos e apertando suas bochechas como se ele fosse uma criança.
— Mal posso acreditar em vocês se dando bem! — exclamou ele, sua voz carregada de exagero e diversão. E, talvez, também um pouco embargada pelo álcool.
revirou os olhos, afastando as mãos de Tony com um empurrão leve.
— Eu não estou no clima, Tony!
O baixista deu de ombros, absolutamente imune ao mal humor rotineiro do amigo, e anunciou:
— Pois eu estou! Vou voltar pra festa.
Ele se afastou em direção ao tumulto de pessoas e música, deixando Kalil, e em um silêncio que parecia estranho depois de todo aquele alvoroço.
— E se a gente fosse dançar? — perguntou , a voz carregada de uma diversão contida.
Kalil terminou sua cerveja em um só gole, largando o copo vazio no balcão.
— Eu topo.
começou a se dirigir para a pista de dança, e Kalil a seguiu sem hesitar. Mas, antes de desaparecer no meio da multidão, o baterista parou por um momento, virando-se para olhar para , que continuava parado no bar, imóvel, observando todos os movimentos deles.
— Você vem? — perguntou Kalil casualmente, mas os olhos atentos de sempre.
fez uma careta, levantando a mão em um gesto desconexo e pouco convincente.
— Vou precisar de outra bebida.
observou Kalil e se afastando, caminhando juntos em direção à pista de dança, as luzes piscando ao redor deles enquanto a música se tornava mais alta e envolvente. Kalil, como sempre, parecia tranquilo, curtindo a festa com a sua característica simplicidade. , por outro lado, tinha uma postura mais solta agora, mas o jeito como ela andava, a leveza nos movimentos, a forma como parecia se entregar à noite, não passava despercebida por .
Que porra estava acontecendo com ele?
O show fora algo fora do comum, ele sabia disso. Não era só o público que estava envolvido, não era só o calor da performance. Era a voz dela, aquela surpresa que ele não soube como lidar.
A noite continuava a se desenrolar em sua volta, mas, naquele momento, ele só conseguia pensar nela. No palco, não tinha sido a mesma de sempre. Ela não estava apenas fazendo seu trabalho. Ela parecia viva, como se estivesse revelando uma parte de si mesma que ninguém havia visto antes. E isso... Foi o que realmente o pegou de surpresa.
se aproximou do bar, pegou outra bebida e deu um gole longo, sentindo o calor do álcool aquecer o seu interior. Mesmo tentando afastar o turbilhão de pensamentos, ali estava ele, observando Kalil e na pista de dança.
A guitarrista se movia com naturalidade, como se a música fosse uma extensão dela mesma. Ela ria de algo que Kalil dissera, os olhos brilhando com uma energia que não via todos os dias.
Ele deu outro gole na bebida, os olhos ainda fixos nos dois. Kalil e estavam se divertindo, como se compartilhassem de um entendimento mútuo que não conseguia ignorar.
Por um momento, ele quis se juntar a eles. Mas antes que pudesse se mover, foi subitamente invadido por uma onda avassaladora de luto, traição e raiva, que o atingiram de uma vez, paralisando-o onde estava. se lembrou repentinamente de August. De Margot.
Abalado, o vocalista virou o copo de uma vez só, sentindo o líquido queimando sua garganta, e sem dizer mais nada, se afastou do bar. Seus olhos percorreram rapidamente o ambiente, mas tudo parecia distante e turvo. Ele precisava sair dali.
O vocalista retornou ao hotel ainda perdido, tentando colocar os pensamentos no lugar, mas tudo parecia em pedaços, como se a cada passo ele estivesse tentando juntar algo que não conseguia mais entender.
August não estava mais ali. pensou em todo o seu ódio irracional por , por preencher os espaços que antes pertenciam a ele, por ser tão parecida com ele. E, no entanto, naquele momento, sentia como se nada disso tivesse realmente a ver com ela, apesar de todos os sentimentos conflitantes que ele tinha em relação a isso.
Então havia Margot. Ele se lembrou do corpo de debruçado sobre o da namorada, a cena em si ainda clara em sua mente, mas agora a sensação não era de revolta. A memória da traição, que antes o havia paralisado com raiva e dor, agora parecia distante, como uma sombra que já não o tocava da mesma maneira. A dor havia dado lugar a uma sensação de desgaste, mas também a uma quietude que ele não sabia se era alívio ou simplesmente algo que já estava se desenvolvendo há algum tempo. E o que aconteceu entre elas, o que ela fez com , não tinha absolutamente nada a ver com ele. Não. Não era culpa de . Margot tinha feito a escolha dela e não estava na posição de julgar. Na verdade, nem queria mais pensar nessa possibilidade.
Merda, o tempo inteiro não passava de um maldito efeito colateral.
Ele sabia que ainda havia uma coisa a ser feita. Uma conversa que ainda não tinha tido tempo, muito menos iniciativa de ter. estava cansado de toda aquela desgraça e todo o poder que aquilo tinha sobre ele. Não estava falando de perdão, pelo menos não ainda. Mas ele sabia que uma trégua, mesmo que temporária, poderia ser um começo.
O sol já começava a despontar no horizonte quando , ainda com a cabeça cheia de pensamentos e a alma mais leve do que se sentira nas últimas semanas, decidiu que não podia mais adiar. Ele se levantou da cama, ainda vestindo as roupas da noite passada, e saiu do quarto.
O corredor do hotel estava quieto, os ecos de risadas e conversas já distantes, abafados pela penumbra da madrugada. O vocalista se esgueirou pelo corredor, em passos lentos, quase como se a própria quietude do amanhecer pedisse por silêncio.
Quando chegou à porta do quarto de , parou por um momento. Não sabia o que esperar daquela conversa, mas sabia que algo tinha que ser dito, algo tinha que mudar. deu um suspiro profundo e, com um movimento decidido, tocou a maçaneta da porta. Não estava trancada. Ele entrou devagar, os passos suaves no carpete macio do corredor.
No momento seguinte ele desejou que não o tivesse feito.
A sensação de déjà vu foi como uma droga de uma piada de mal gosto.
ouviu primeiro as respirações descompassadas, um som sutil que vinha do interior do quarto. Não era um ruído alto, mas havia algo sobre ele que o fez parar na porta, como se a natureza irregular das respirações fosse um aviso mantivesse os seus pés fixos no lugar. Então, distinguiu o som de pele se chocando contra pele, rítmico e constante. Ele quis fechar os olhos, mas seu corpo parecia não responder ao comando.
Quando a porta se abriu por completo, ele viu.
vestia apenas uma camisa larga que balançava junto ao movimento do seu corpo posicionada de quatro sobre a cama. Atrás dela, completamente nu, o suor brilhando contra a sua pele, estava Kalil, enterrando-se nela como se a sua vida dependesse daquilo. Os dois tão envolvidos um no outro que não perceberam a presença dele de imediato.
viu a guitarrista jogar a cabeça para trás, os olhos fechados, o prazer estampado em suas feições, e soltar um gemido arrastado. A luxúria do momento fez uma sequência de arrepios se espalhar por toda a extensão do corpo do vocalista. Automaticamente sua boca ficou seca.
Os olhos da guitarrista se abriram lentamente, como se instantaneamente atraídos pelo peso do olhar de sobre si. Quando os seus olhares se conectaram ele sentiu o peso entre suas pernas.
— — sussurrou em meio a um suspiro, fazendo com ele sentisse o seu coração errar uma batida.
Caralho.
O som do nome dele saindo dos lábios pecaminosos dela fez com que todo o seu corpo queimasse em chamas. Ele se viu paralisado por um segundo, uma fração de tempo que parecia durar uma eternidade, e sua mente disparou em várias direções, como se, naquele instante, ele estivesse sendo puxado para um lugar desconhecido.
Foi quando Kalil finalmente notou a presença de no recinto, parado na porta. Ele desviou o olhar de e lançou para o amigo um sorriso preguiçoso, como se estivesse completamente alheio à tensão que se espalhou pelo ambiente.
O vocalista se sentiu constrangido, subitamente exposto. Como se ele tivesse sido pego no flagra.
Ele limpou a garganta, suas mãos bagunçando seu cabelo mecanicamente.
— A porta estava aberta — disse, a voz mais áspera do que ele pretendia.
Um sorriso felino estampou o rosto de , seus olhos ainda fixos nele.
Apesar da interrupção, Kalil e a guitarrista não pareceram se preocupar em pararem aquilo que estavam fazendo. As estocadas continuaram com um ruído tortuosamente molhado.
fechou os olhos com força, tentando controlar a sua respiração.
— Eu devo ter esquecido sem querer — a voz de Kalil soou rouca, entrecortada pela sua respiração ofegante.
O vocalista ouviu um gemido suprimido que provavelmente tinha escapado dos lábios da guitarrista sem a sua autorização. O ar pareceu faltar nós pulmões dele.
Porra.
Ele não havia se dado conta de quão tenso ele estava até aquele momento, até que se sentiu completamente sobrecarregado pela situação. Ali estava dando vida às fantasias que desde o Halloween ele se recusava a alimentar. Só que com o pau de seu amigo se afundando na bunda dela como a droga de um mergulhador.
O jeito que ela se movia, o suor brilhando sobre sua pele, os fios de cabelo fora do lugar, o rubor tingindo o seu rosto. Era demais pra ele.
Ela estava tão gostosa.
abriu os olhos, decidido a encarar e Kalil uma última vez, sustentando o olhar anuviado deles com mais firmeza do que sentia realmente. Ele deixou um sorriso sutil escapar de seus lábios, mas a expressão não foi capaz de alcançar seus olhos.
— Eu não sei o que estou fazendo aqui — ele disse, soltando uma risada sem humor.
Kalil ofegou em meio ao ato e as mãos do vocalista se fecharam em punhos instintivamente.
O cheiro de sexo começava a infestar o ambiente, pesado e denso, misturando-se ao odor pungente de álcool, quase palpável pelo calor que crescia no quarto. respirou fundo, recuando um passo, sua mão ainda segurando a maçaneta como se para manter-se de pé.
deu uma risadinha que ecoou na mente de mesmo depois do som acabar.
— Quer se juntar a nós? — perguntou ela, a voz por um fio, o som da mais perversa tentação.
Momentaneamente petrificado, não respondeu. Seu coração rugindo em seus ouvidos à medida que um calafrio percorria a sua espinha.
O vocalista fechou os olhos mais uma vez, inspirando fundo. Ele encontrou uma força dentro de si que não sabia que existia, uma determinação silenciosa que o impulsionou a dar outro passo para trás, obrigando-se a se afastar daquela cena. Sem dizer uma palavra, ele girou nos calcanhares, movendo-se no automático.
Mas não sem antes ouvir a voz divertida de Kalil:
— Feche a porta quando sair!
Continua...
Também quero compartilhar a felicidade que foi ver Disclaimer como fiction do mês em novembro. Por essa eu não tava esperando, mas, porra, que surpresa gostosa!!
Aproveitei esse mês com a atualização tripla pra tirar o meu tempo, estudei bastante o futuro dessa história, participei da minha primeira Ficstape (fiquem ligados!) e agora estou às vésperas de ir ao show da banda que é uma das principais inspirações para Disclaimer. Então, vem muita coisa por aí!
Pra não perder o costume, esse capítulo vem com um toque especial da música indicada pelo meu docinho de coco. Parece que as coisas estão mudando por aqui, não é? Capa nova, sentimentos novos. Será que isso vai durar? Já antecipo que o que eu considero como primeiro arco dessa história está chegando ao fim e eu mal posso esperar pra viver essa próxima fase com vocês!
xXx Bleme