Última atualização: 06/09/2024

Capítulo 1 - So Far Away


“How do I live without the ones I love?
Time still burn the pages of the book is burned
Place and time always on my mind
I have so much to say, but you’re so far away”
— So Far Away, Avenged Sevenfold


A morte é uma coisa engraçada.
Um dia você está vivendo o seu sonho e no outro dia... Nada.
Mesmo que a nossa única certeza seja a morte. Mesmo que tudo o que vem antes e depois dela seja a mais pura e irrevogável incerteza. Insistimos em passar todo o nosso escasso e inegociável tempo lutando contra a única coisa da qual não há como fugir. Em vão.
Seria trágico se não fosse cômico.
não foi capaz de segurar o sorriso, muito menos o som esganiçado que escapou de sua garganta. Não quando olhou para Gus.
Os olhos fechados. O cabelo milimetricamente penteado. O terno branco, perfeitamente limpo e ajustado ao corpo. A superfície acolchoada delimitada por paredes de madeira. A pele desprovida de cor.
Ele estava ridículo.
Ridiculamente morto.
Gus teria achado aquilo hilário.
Pensar nisso só fez gargalhar ainda mais à medida que o peito arfava e o rosto esquentava perdido na sequência de acontecimentos que se sucederam durante a cerimônia.
Não era necessário muito mais do que isso para criar um escândalo.
não foi à recepção na casa de Train. Não se deu o trabalho de prestar seus sentimentos à família. Não havia restado nenhum. Muito pelo contrário, após o velório, o cantor foi direto para sua mansão em Beverly Hills, onde sua própria recepção já tomava forma. Viva, como August Train foi um dia.
Naquela festa não havia luto. Não havia lágrimas ou arrependimentos ou até mesmo saudade. Havia apenas a mais pura celebração da vida de Gus. dedicou a noite a tudo o que fazia August feliz. Não precisou pedir emprestada a camisa do Metallica favorita do amigo. Bebeu as garrafas de vinho mais velhas da adega que estavam guardando para uma ocasião especial. Misturou álcool, maconha, êxtase, cocaína sem se preocupar com a ressaca ou a rebordose do dia seguinte. Fez uma tatuagem à meia luz com um profissional duvidoso com uma maleta de materiais mais duvidosos ainda. Quebrou duas ou três peças da mobília com um taco de baseball no calor do momento. Trocou socos com um desconhecido por motivo nenhum. Comeu uma aspirante à modelo e uma garota de programa sem se importar com o que sua namorada iria pensar. E foi embora antes de a festa acabar.
Tudo bem, talvez tivesse feito um esforço para fazer um escândalo.
Depois disso, não demorou para que as matérias relacionando o cantor à morte do guitarrista estampassem todos os veículos de comunicação. Teria influenciado a overdose de Gus Train? Não, claro que não. Eles eram amigos desde sempre, formaram a banda juntos, conquistaram o mundo juntos. Mas por quê não deu nenhum pronunciamento desde então?
Onde estava ?
A resposta só apareceu algumas semanas depois, quando o cantor da banda Disclaimer foi encontrado em coma alcoólico em um pub qualquer nos arredores de Milwaukee, com nada além das roupas do corpo, um cartão de crédito ilimitado, cinco pílulas de aspirina, duas gramas de haxixe e um olho roxo. Na verdade, já era uma conquista que ele não estivesse pelado por aí.
passou duas semanas em recuperação no melhor hospital de Milwaukee fingindo que nada havia acontecido. Não falou nada sobre o tempo em que esteve fora. Não tocou uma única vez no nome de Gus. Se era assim que ele queria, então era assim que seria.
Na manhã em que recebeu alta do hospital, o vocalista da banda Disclaimer precisou esconder o olho roxo atrás de um par de óculos escuros e usar roupas de moletom simples ao se encaminhar à delegacia mais próxima, para não chamar muita atenção. O que não adiantava de muita coisa já que a companhia de Doc nunca poderia passar despercebida, principalmente com os dois guarda-costas à tiracolo. Quando estava na sala do oficial encarregado, sentado ao lado do seu agente, se limitou a acenar com a cabeça durante a quase uma hora que o policial dedicou a uma reprimenda não tão rigorosa assim sobre as infrações e denúncias que o levaram a ser encontrado quando estava desaparecido. Doc respondeu todas as perguntas em nome do seu cliente e pagou a fiança do vocalista em seu cartão sem se importar com a quantidade de zeros da fatura. não deu a mínima. Se dependesse dele teria até recusado o pedido de autógrafo do policial, mas o olhar lançado pelo agente foi o suficiente para que cedesse. Poderia usar esse favor como moeda de troca mais tarde.
Logo deixaram a delegacia para trás e tomaram o seu rumo para o Aeroporto de Milwaukee, onde compraram passagens para o primeiro voo disponível com destino à Los Angeles. O cantor agradeceu mentalmente pela personalidade introvertida do agente durante o trajeto de cerca de cinco horas, que poderiam facilmente ser dias. não queria falar e Doc certamente não queria ouvir. Era fácil lidar com ele. Não eram necessariamente amigos, mas também não deixavam de ser. Doc não perdia o seu tempo se preocupando com o que o vocalista fazia ou deixava de fazer, contanto que estivesse vivo, fizesse dinheiro e que só se envolvesse em problemas passiveis de solução. Até hoje não havia nada que Doc não pudesse resolver. Nada exceto a morte prematura de Gus.
Em Los Angeles tudo era mais fácil. Estava em casa. Apesar de terem pegado um voo comercial não tiveram problemas, a presença macabra dos guarda-costas era o suficiente para afastar qualquer um que sequer pensasse em se aproximar. A equipe não precisou nem mesmo enfrentar o LAX lotado para reclamar suas bagagens, não tinham nenhuma. O carro forte da gravadora buscou o grupo ainda na pista de aterrisagem, enquanto apenas aceitou o seu destino, o que quer que ele fosse. As ruas de West Hollywood permaneciam as mesmas. Os mesmos carros barulhentos, a mesma onda de calor subindo pelo asfalto, as mesmas pessoas alheias aos seus arredores. A vida continuava, mesmo que Gus tivesse ficado para trás.
queria gritar com alguém, queria bater em alguma coisa, queria fazer qualquer coisa para que as pessoas, alguma pessoa, qualquer pessoa, percebesse que tudo tinha mudado. Mas de que adiantaria? Gus estava morto e isso não fazia diferença alguma. Não tinha como voltar disso. August não voltaria. E certamente também não seria capaz de voltar.
pensou em como seria dali em diante. Se Tony e Kalil já haviam pensado a respeito. A banda era apenas uma ideia, uma loucura, um delírio, uma das maiores insanidades de Gus. Nem eles mesmos se lembravam bem, mas de alguma forma o guitarrista conseguiu convencer os quatro amigos a transformarem o sonho em realidade. Talvez todos eles estivessem perdidos. A verdade nua e crua era essa. A Disclaimer era August Train e August Train era a Disclaimer. Não havia banda sem ele. Era o fim da Disclaimer. E essa consciência se tornou clara à medida que reconhecia o trajeto para o escritório. Mesmo que sentisse lá no fundo, que entraria no grande prédio empresarial e o veria lá, as pernas estiradas sobre a mesa da sala de reuniões em meio a uma gargalhada.
decidiu fingir que era apenas mais um dia. Como qualquer outro.
Fingiu que o mal-estar era culpa de uma noite de bebedeira e não a abstinência da medicação do hospital. Fingiu que as últimas duas semanas nada mais eram do que um borrão causado pela amnésia alcoólica. Fingiu que se preparava mentalmente para mais uma longa sessão de brigas com Leto sobre seu comportamento irresponsável. Fingiu que conversariam sobre o cronograma de desenvolvimento, gravação e divulgação do próximo álbum. Fingiu que daria em cima da nova secretária da gravadora, já que a antiga deveria ter sido demitida após o seu caso com Kalil. Fingiu que dispensaria Doc para pegar carona com Tony para se reunirem na casa de Gus para beber mais um pouco. Fingiu que estava tudo bem como fingia desde que se despediu do seu pai pela última vez. Mas fingir não adiantou nada quando o carro blindado chegou ao prédio espelhado da West Coast Records.
Dezenas de pessoas interditavam o caminho para a garagem do edifício. Fãs. Eles usavam camisas da banda, com o rosto de Gus. Os cartazes que carregavam diziam tudo. Para sempre Gus. Train nós te amamos. Nunca esqueceremos August Train. Luto. Descanse em paz. Gus.
Algo se quebrou dentro de e ele se perguntou quantas vezes mais seria capaz de quebrar algo que já estava quebrado.
Não conseguiu evitar. Quando as vozes começaram a clamar o seu nome, o vocalista sentiu o seu corpo se encolher. O ar faltou em seus pulmões à medida que uma gota fria de suor escorria pela sua têmpora. Merda. Deveria ficar mais fácil com o tempo.
O breu e o silêncio do estacionamento não foram o suficiente para ajustar os batimentos descompassados de . Não. Era muito pior. Era mais uma ausência. Mais uma falta. A falta de luz. A falta de som. A falta de Gus. O vocalista nem percebeu quando o carro parou, ou quando os demais passageiros desembarcaram. Não ouviu o que Doc disse quando abriu a sua porta. Apenas viu o agente lhe estender um cigarro e respirou fundo, aceitando com dedos trêmulos e se impulsionando para fora do veículo com um zunido em seus ouvidos. Doc insistia em tentar dizer alguma coisa, mas o vocalista não conseguia ouvir nada além do rugido em sua mente. Sua visão foi ofuscada por uma fração de segundo, quando o reflexo do farol de algum carro que passava por ali refletiu no material metálico do isqueiro que o agente segurava. estendeu a mão em um pedido silencioso, que foi rapidamente atendido.
Uma chama. Um trago. Um sopro. Um trago, um sopro. repetiu o gesto algumas vezes, sentindo a pressão baixar e o os pensamentos se reduzirem a um sussurro inconveniente.
— Se sente melhor? — perguntou Doc, olhando-o de soslaio. No escuro, a sua pele negra não denunciava nenhum traço de expressão.
respondeu com um aceno.
— Melhor se acostumar com a ideia de começar a falar — o agente fez um estalo com a boca — você não vai gostar muito do que vai encontrar lá dentro.
O vocalista deu mais um trago e limpou a garganta.
— A coisa está muito feia?
fez uma careta ao ouvir o som da própria voz. Estava rouca de uma forma errada. O som arranhou sua garganta e morreu áspera. As palavras não pareciam certas. O vocalista sacudiu a cabeça para afastar o pensamento e olhou para o outro com a sobrancelha arqueada.
— A gravadora quer terminar a turnê — Doc disse simplesmente. Sem cerimônias, como quem tira um curativo de uma só vez.
Não.
— Não é como se você tivesse alguma escolha — o homem deu de ombros — o contrato da banda com a West Coast tem validade para mais dois anos. Até lá vocês pertencem a eles.
Gus está morto, queria dizer. Mas não ousou pronunciar as palavras em voz alta. Preferiu dar mais um trago no cigarro.
— Mesmo que vocês tivessem escolha. Se vocês escolhessem antecipar o fim do contrato a multa seria tão onerosa que vocês e suas famílias teriam que voltar direto para o buraco de onde saíram em Atlanta.
bufou em descontentamento. Se Doc queria que falasse, então ele ouviria poucas e boas sobre o que ele achava a respeito disso. Mas antes que pudesse abrir a boca, o agente falou primeiro.
— Sem falar nos Train…
— O que tem eles? — Você sabe… — Doc brincou com um fio solto invisível em seu casaco — A mãe de August está internada há um ano por conta da sua… Condição.
— E o que isso tem a ver?
— Tem a ver que a parte de August do contrato é o que paga aqueles médicos sabichões, a clínica limpinha e os remédios caros da Srª. Train. Que a parte de August é a única coisa que coloca um teto sobre cabeça moribunda daquele marido solitário dela — explicou o agente com uma calma letal, que fez trincar o maxilar — Você e os outros podem até dar a volta por cima depois disso, vocês estão vivos, já…
— Já entendi — o vocalista disse rápido, antes que o homem pudesse terminar a frase. Sentiu a cabeça começar a doer e respirou fundo. — Merda.
— Sabia que entenderia — Doc deu um sorriso que não chegou aos olhos.
— Eu sei o que você está tentando fazer.
Estava tentando fazê-lo falar.
— O que eu faço de melhor…
Estava tentando fazê-lo enfrentar isso.
— Eu não preciso da sua ajuda — o vocalista resmungou.
— Estou tentando administrar a sua vida — Doc rebateu com uma piscadela — Você deveria tentar qualquer dia desses.
— E tirar o seu ganha-pão?
Os dois quase se permitiram rir.
— Se a gravadora já decidiu terminar a turnê — fez um estalo com a boca — Qual é a da reunião?
— Eles encontraram alguém para substituí-lo — disse o agente, como quem fala sobre o clima. precisou morder a língua para não dizer nada. Doc estava conseguindo. — Hoje é a assinatura do contrato.
O vocalista se engasgou com a fumaça quente da ponta do cigarro, desencadeando uma sequência de tosses. Jogou o filtro no chão, impaciente, cuspindo sobre o objeto como se pudesse de alguma forma ofendê-lo, ou simplesmente tirar aquele gosto amargo da boca.
— Merda — praguejou.
marchou em direção às portas automáticas com uma carranca lhe deformando as feições. É. A coisa não ia ser bonita.
— Vamos acabar logo com isso — disse ao passar por Doc, o tom irredutível dizia tudo que ele não precisou dizer.
O que estava ruim tinha acabado de piorar.
O trajeto até a reunião foi como o inferno particular de . As paredes dos largos corredores pareciam se fechar. O elevador era a sua caixa de Pandora. Cada passo era dado com urgência e mesmo assim o tempo parecia passar mais devagar. As vozes que ecoavam no edifício empresarial somadas ao som pulsante dos batimentos cardíacos nos ouvidos faziam o estômago de se embrulhar. Mas quando avistou a porta de vidro da sala de reuniões o vocalista quase parou, fazendo Doc trombar em suas costas e murmurar um xingamento.
Quando entrou na sala todas as conversas cessaram. O olhar de foi atraído diretamente para a cadeira vazia no centro da mesa, o furo de uma queimadura de cigarro ainda aparente era uma lembrança melancólica daquela ausência sufocante.
— Eu pedi para tirarem a cadeira — Doc disse baixo para que apenas o vocalista pudesse ouvir.
permaneceu estático, como se pudesse ver um fantasma diante dos seus olhos.
— Vamos tirar a cadeira de Gus para as próximas reuniões — disse Leto em cumprimento, recebendo o cantor na porta com um sorriso no rosto e batidinhas no ombro.
respirou fundo e deixou um sorriso debochado ao passar pelo produtor, rumo ao seu assento.
— A cadeira fica.
Não era um pedido.
O vocalista afundou sobre o estofado de sua cadeira e podia jurar que conseguia sentir um cheiro de nicotina exalando do assento ao lado. Aproveitou a privacidade dos óculos escuros para fechar os olhos vagarosamente. Ele estava em todo lugar e ainda sim não estava em lugar nenhum. Quando abriu os olhos encontrou Tony e Kalil à sua frente em seus lugares usuais, suas feições eram um misto de receio e preocupação.
O quê? disse sem emitir nenhum som, mas antes que os amigos pudessem gesticular qualquer coisa foram interrompidos pelo som de uma única palma.
— Que maravilha que tenha nos concedido a honra da sua companhia hoje, — começou Leto, sorrindo tão forte que era possível que todos os seus dentes se quebrassem. Estranho. — Aposto que voltou de viagem com tantas notícias para compartilhar quanto nós.
O vocalista sorriu amarelo para as pessoas ali reunidas.
Pela primeira vez, percebeu que a sala estava mais cheia que o normal. Além da banda, do agente e do produtor, havia mais três pessoas engravatadas, duas mulheres e um homem. quase podia ouvir artigos de lei sendo berrados em sua cara apenas com um olhar. Advogados eram inconfundíveis em qualquer lugar do mundo, com seus ternos cinzentos, pastas sanfonadas e olhar analítico. A sua presença era como uma doença contagiosa, pronta para infectar a banda Disclaimer e destruí-la de dentro para fora. O vocalista sentiu um bolo se formar em sua garganta.
— Estamos aqui hoje com grandes notícias — Leto olhou nos olhos de cada um ao iniciar o que parecia ser um monólogo, fazendo suspirar. — A perda de Gus, que Deus o tenha, foi uma grande tragédia para os familiares, amigos e fãs.
O vocalista sentiu as mãos fecharem em punhos sob a mesa. Ele não podia estar fazendo isso.
— Achamos que era o fim, mas não poderíamos deixar que o legado de Gus se perdesse junto com ele. August Train era uma inspiração, um homem bom que acreditava que o amor poderia mudar o mundo…
gargalhou alto.
Era como estar no velório mais uma vez.
— Algum problema, ? — perguntou o produtor, impaciente.
O vocalista limpou uma lágrima que ameaçava escorrer pelo olho direito.
— Você é muito engraçado, Leto, só isso — o sorriso ainda brincava nos lábios do vocalista.
Doc chutou a cadeira do artista em repressão, mas não surtiu efeito algum.
— Gus não é nada disso — não era capaz de dizer as sentenças no passado e todos na sala repararam nisso. — Ele é um canalha de primeira categoria que age primeiro e conversa depois. Alguma coisa ou alguém sempre acaba quebrado no final.
Leto engoliu em seco quando um silêncio constrangedor dominou o recinto, mas foi logo suprimido por uma risada feminina. Uma das mulheres engravatadas olhava do vocalista para o produtor com um brilho de diversão. Tinha os cabelos presos em um coque baixo apertado até o último fio de cabelo e usava óculos de armação fina que a conferiam um ar de superioridade incontestável. a odiou no momento em que colocou os olhos nela.
O som de alguém limpando a garganta cortou a sala.
— Ainda bem — ela disse com um sorriso debochado — Estava começando a achar que poderíamos ter problemas.
Leto pareceu suspirar aliviado.
— Como eu ia dizendo… — o produtor retomou o seu discurso — O sonho de Gus e toda a banda Disclaimer não poderia partir com ele. Em honra a tudo o que ele fez e que poderia fazer ainda o sonho deve continuar. E é com imensa gratidão e orgulho que hoje oficializamos a nova configuração da Disclaimer.
já podia sentir o seu maxilar doer ao trincá-lo com cada vez mais força. Não conseguiu evitar de xingar August mentalmente de todos os palavrões que tinha em seu vocabulário.
Aquilo não poderia estar acontecendo.
Por que ele tinha que simplesmente morrer?
Filho da puta. Cuzão. Imbecíl Pau no cu. Canalha. Vigarista. Desgraçado. Retardado. Corno. Idiota. Energúmeno. Arrombado. Zé buceta. Fodido.
O produtor tomou um longo fôlego antes de dar um sorriso triunfante. Era o fim.
— Dêem as boas-vindas à — disse Leto, estendendo o braço para o grupo de engravatados. A mulher que estava rindo a pouco se levantou com um sorriso de canto dos lábios olhando para os demais com toda a sua glória. — A nova guitarrista da Disclaimer.
A nova guitarrista da banda.
A nova guitarrista da banda era uma mulher. Era aquela mulher.
Não.
— Vocês só podem estar de brincadeira — murmurou encarando a mulher com puro ódio no olhar.
— O que disse, ? — perguntou Leto.
— Eu disse que vocês só podem estar de brincadeira — o vocalista disse. Ele estava puto, o que só alargou o sorriso da mulher quando notou o seu olhar.
— Certo, , desculpe se esquecemos de consultar com você enquanto passou mais de dois meses completamente entorpecido atravessando todos os quatro cantos da América fugindo das suas responsabilidades — ironizou o produtor.
— Eu sou o líder da banda!
— August era o líder da banda — Leto respondeu rispido. trincou o maxilar. — Talvez essa função deva ser herdada pela sua sucessora.
Os músculos do vocalista se enrijeceram instantaneamente.
— Eu não estou muito interessada — disse simplesmente, para ninguém em especial.
Os homens se entreolharam. A tensão no ar era palpável.
– Você não precisa fazer isso, – disse a mulher de cabelos curtos ao lado dela. – Não faz parte dos termos do contrato.
- Obrigada, Marta – disse baixo, voltando a sentar-se ao seu lado com um sorriso gentil que nada combinava com suas feições.
Leto pareceu satisfeito com a intervenção da segunda mulher.
é graduada em Comunicação Social, tem pós-graduação em Trade Marketing, toca violão, guitarra e piano — o produtor decidiu continuar como se nada houvesse acontecido. — Além disso, ela já é reconhecida no mercado fantasma como compositora e já escreveu alguns dos grandes hits que temos no mercado hoje em dia, o que faz dela uma grande aquisição para a banda nesse momento desafiador de transição que vamos enfrentar.
não deixou de notar torcendo o nariz em meio a um gesto de cruzar os braços, claramente fingindo prestar atenção. Não se permitiu simpatizar com a sua postura, não enquanto ela era uma das grandes responsáveis pela contaminação do sonho do seu melhor amigo.
— Leto, por favor, os rapazes não estão interessados nessa ladainha — disse Marta. Será que ao menos ela era a advogada daquela aberração? — Vamos ao contrato, sim?
O vocalista quase riu quando Leto não conseguiu conter a careta. O produtor deu um aceno positivo com a cabeça para o homem de gravata ao lado de Marta e ele prontamente entregou a papelada para a mulher.
— Vejamos aqui — murmurou a mulher, fazendo sons ao prosseguir com a leitura. — Vigência de dois anos. Não exclusividade para desenvolvimento de propriedade autoral. Autorização de uso de imagem. Multa em caso de violência física, verbal ou sexual pelos contratados e subcontratados. Remuneração compatível com a do último contratado para a função. Multa por quebra de contrato em 30% da original. 20% dos lucros sobre as produções e merchandising relativos à vigência do contrato. Disponibilidade para jornada de trabalho diversificada e viagens. Plano de saúde. Mediação e arbitragem de conflitos pelo ICC.
olhou para o teto, entediado.
— O toxicológico? — perguntou em um sussurro tão baixo que os demais não tiveram certeza do que tinham ouvido.
— Foi retirado — murmurou o homem. tinha quase certeza que já tinha o visto antes. Devia ser o advogado da West Coast. Willie, Billie, Millie alguma coisa.
— Ficamos felizes — Marta deu um aceno breve. — Se os contratos dos demais não tem essa cláusula, não há motivo para haver nesse.
deu um sorriso diabólico enquanto a advogada terminava a leitura. tentou não reparar demais.
— Parece que está tudo aqui — a advogada anunciou aos presentes e se virou para a sua cliente. — , pode fazer as honras.
Leto deu um largo sorriso ao retirar do bolso interno do casaco uma caneta montblanc cravejada e entregou-a para a guitarrista. não pareceu se importar com a celeridade do gesto, apenas abriu o objeto e rabiscou todas as páginas do contrato sem nem pensar duas vezes.
Os músicos tiveram dificuldade de acreditar quando o sorriso torto do produtor aumentou ainda mais. Leto se aproximou da mulher, estendendo o braço para um aperto de mãos que foi aceito com prontidão.
— Seja bem-vinda, — disse ele, ao segurar a sua mão.
— corrigiu ela, os olhos brilhando em desafio.
— repetiu ele.
O sorriso que ela deu causou arrepios sinistros que percorreram todo o corpo do vocalista.
— Doc, meu amigo — Leto se dirigiu ao agente. — Você se importaria de tirar uma foto?
— Sem problemas.
— Vamos, meninos? — o produtor convidou os integrantes da banda.
Um a um, Kalil, Tony e se levantaram. Mesmo que à contragosto do último. Por último, . Ela se posicionou entre Leto e o baterista ao mesmo tempo em que o produtor puxou para ficar do seu outro lado. Doc apontou a câmera do celular e fez uma contagem antes de apertar o botão. Era isso. A primeira foto da nova banda Disclaimer.
O início do fim.
O produtor puxou uma salva de palmas e foi seguido pelos demais em comemoração. Todos, exceto . O vocalista apenas sustentou um olhar assassino sobre , que ao notar lançou-lhe um sorriso debochado em resposta.
ficou à deriva, enquanto os demais engataram em uma conversa sobre os próximos passos. Planejaram uma grande festa de divulgação na próxima semana. O vocalista estava tão aéreo que nem mesmo encontrou sua voz para protestar quando decidiram que a recepção seria em sua casa. Tony e Kalil pareceram já ter conhecido a nova guitarrista antes ao conversarem com a mulher entre uma ideia ou outra, pareciam realmente levar a sua opinião em consideração. Já a opinião de não valia de nada, não foi provocado a colaborar uma única vez durante todo o andamento da discussão, então não se deu o trabalho de se intrometer. Anthony parecia se divertir com o humor ácido de , falava mais bobagem que o normal apenas para ver o que ela poderia dizer em resposta. Ainda sim, ele não parecia deixar de ficar surpreso com as palavras ásperas e irônicas que saíam da boca da mulher, deixando-o de olhos arregalados ou sem fôlego em meio ao riso entrecortado. Era insuportável para . Ao menos Kalil era normal. O baterista de cabelos compridos se mantinha segundo plano como de costume, concordando ou discordando quando achasse pertinente, mas sem se preocupar em dar mais explicações. Tinha permanecido próximo à desde o momento da foto, olhava-a com atenção enquanto ela falava e vez ou outra fazia comentários sussurrados, mas nada fora do usual. Era um cara quieto, falava baixo, tratava as pessoas bem e não dava trabalho. Não era nada como e seu pavio curto. Assim, o vocalista permitiu a si mesmo que se perdesse em seus pensamentos autodestrutivos.
Se fosse à sete palmos do chão e não o melhor amigo, nada seria desse jeito. Gus naquela sala ele estaria empolgado. Não pensaria duas vezes antes de começar a discutir ideias para o próximo álbum. Soltaria alguns palavrões e riria na cara de cada um que o olhasse em reprovação. Talvez até mesmo acenderia um cigarro só para deixar uma nova marca no estofado de couro de sua cadeira. Chamaria todos para emendar as comemorações em sua casa, com direito a bebida e quaisquer outras coisas que os convidados quisessem consumir. Contaria à nova integrante da banda sobre o seu melhor amigo. Falaria dele como se fosse a melhor pessoa que já pisou na Terra, mesmo que fosse exatamente o contrário. Mentiria sobre suas aventuras para que parecessem ainda mais inacreditáveis. Ficaria feliz por dar continuidade ao sonho do amigo que se tornou realidade.
Mas não era nada como Gus.
Quando se deu conta, o seu olhar vazio estava fixo em uma bunda redonda perfeitamente ajustada à uma calça de alfaiataria. Uma bela bunda. Entretanto, ao perceber a quem pertencia a expressão do vocalista se fechou como um temporal.
estava à sua frente no elevador, conversando descontraída com Tony. Ao seu lado, Kalil o olhava de esgueira com um sorriso contido nos lábios. bufou encarando o visor do elevador como se pudesse fazê-lo chegar ao piso da garagem mais rápido.
Aquele espaço era pequeno demais para ser dividido com . Não suportava ouvir aquele riso de escárnio reverberar pelo seu corpo. O perfume dela sufocava o ar em seus pulmões. A voz como era como uma maldição em seus ouvidos.
Quando as portas de abriram, se permitiu respirar fundo. Foi um alívio miserável. Colocou as mãos nos bolsos do moletom e manteve sua distância.
— A conversa está ótima, mas eu preciso ir — anunciou , sem rodeios, olhando para os demais membros da banda sobre o ombro anguloso do blazer.
Aos poucos, o peso sobre os ombros de parecia aliviar. Ele quase agradeceu mentalmente por isso.
— Nós costumamos nos reunir na casa de Gus depois das reuniões… — começou Tony sugestivamente.
apenas arqueou uma sobrancelha.
— Costumávamos — corrigiu Kalil suavemente.
— Acho que agora vamos precisar frequentar a casa de de agora em diante — ele riu sem jeito, mexendo no cabelo como se fosse capaz de disfarçar o desconforto.
percebeu que seus sentidos lhe enganaram mais uma vez. De repente, começou a sentir a cabeça latejar. Puxou do bolso traseiro da calça um maço de cigarros que Doc esgueirou para ele durante a reunião e sacou o isqueiro que esqueceu de devolver mais cedo.
Ótimo.
Kalil limpou a garganta para preencher o silencio.
— Você não quer ir? — perguntou Tony, quando o amigo soltou o primeiro trago.
Maravilha.
olhou para quando ele pareceu puxar a nicotina com mais força. O vocalista não se deu o trabalho de retribuir o olhar. Não ofereceria nada a ela.
— Quem sabe uma próxima vez? — foi a única resposta dela.
Anthony aceitou com um aceno de cabeça e se despediu dela com um beijo em cada lado do rosto. Ela se aproximou lentamente de Kalil para um abraço rápido, mas foi surpreendida com um beijo cuidadoso na bochecha, parecendo parar por um momento para pensar.
Logo, percebeu o que viria a seguir. Sentiu o corpo inteiro enrijecer quando a mulher deu alguns passos em sua direção. Colocou o cigarro na boca, como se fosse possível fingir que esse era o motivo da carranca que deformava a sua expressão. Talvez o câncer industrializado fosse o suficiente para espantá-la.
Foi quando se deu conta que não precisaria mesmo oferecer nada a ela. tomaria tudo o que quisesse.
Só precisou chegar perto o suficiente e estender o braço para tomar o cigarro aceso de seus lábios. pareceu entretida ao fitar o olhar mortífero do vocalista sobre si, quando levou o objeto à boca e deu dois longos tragos. sentiu uma das mãos se fechar em um punho no bolso do moletom, no mesmo momento em que a mulher assoprou a fumaça em seu rosto.
— O gato comeu a sua língua? — sussurrou ela, para que apenas ele pudesse ouvir, olhando-o de cima a baixo com um sorriso irônico no rosto.
A guitarrista não esperou uma resposta. Jogou o cigarro pela metade no chão como se não fosse nada e tirou uma chave do sutiã.
trincou o maxilar quando a mulher desfilou até uma moto que não estava muito longe dali.
— Ei, — o vocalista jurou nunca ter ouvido a voz de Kalil tão alta.
A mulher olhou para o grupo por cima dos óculos, enquanto subia cavalete da motocicleta.
— O capacete — disse o baterista, como se isso explicasse tudo.
Por algum motivo, aquilo pareceu a coisa mais engraçada do mundo.
apenas jogou a cabeça para trás em uma gargalhada genuína e saiu do estacionamento cantado pneu, enquanto os demais ficavam para trás.

Capítulo 2 - How You Remind Me


“And I’ve been wrong, I’ve been down
Been to the bottom of every bottle
These five words in my head
Screaming ‘Are we having fun yet?’”

— How You Remind Me, Nickelback


Com o coração na garganta e o suor pingando da testa, investiu suas últimas estocadas antes de cair deitado na cama.
Margot suspirou em descontentamento ao seu lado, levantando-se e vestindo suas roupas, chamando a atenção do namorado.
— Amor — chamou , segurando os dedos da mulher e depositando um carinho preguiçoso nas costas de sua mão com o polegar ainda trêmulo. — O que foi?
A modelo bufou ao se desvencilhar suavemente para abotoar o sutiã.
— Nada — ela murmurou, fazendo o homem suspirar fundo.
— E você quer que eu acredite nisso?
A mulher continuou a recolher as peças de roupa e vestir uma de cada vez sob o olhar atento de que ainda recuperava o fôlego.
— Mar… — o vocalista insistiu mais uma vez, permitindo a sua voz soar manhosa.
Margot revirou os olhos impaciente.
— Não venha com Mar para cima de mim — cortou ela em um tom acusatório, quando já estava completamente vestida. — Primeiro você desaparece por dois meses, com sabe-se lá quem, fazendo sabe-se lá o que. Não atende nenhuma das minhas ligações e nem responde nenhuma das minhas mensagens. Ao menos falou comigo quando você voltou, seu canalha. Eu só estou aqui porque o Doc me convidou para a sua porcaria de anúncio do novo guitarrista da banda. E tudo o que eu recebo é uma rapidinha esfarrapada antes de um ensaio? Não. Nada de Mar. Você sabe muito bem o que foi.
passou a mão nos fios de cabelo bagunçados em um gesto de impaciência, suspirando ruidosamente.
— Da nova guitarrista — murmurou ele à contragosto.
— Da?
O vocalista confirmou com um aceno sem olhar para ela. Margot não conseguiu conter uma risadinha.
— Uau — ela se recostou no batente da porta com os braços cruzados e uma expressão divertida no rosto — O novo guitarrista é uma mulher?
não se preocupou em responder, apenas soltou o corpo sobre a cama macia derrotado.
— Você deve estar morrendo por dentro — era possível ouvir o sorriso na voz da mulher.
— Muito obrigado, Margot — resmungou ele entre os lençóis.
A risada dela foi quase tão desagradável quanto o sermão que a antecedeu.
— Bom, acho que vou indo — disse Margot, abrindo a porta do quarto. — Aparentemente o universo decidiu te punir por mim.
O vocalista chamou por ela mais uma vez.
— Você vem?
— Ao anúncio? — perguntou ela com um sorriso debochado. — Não perderia o seu castigo por nada nesse mundo.
Margot não esperou uma resposta, saindo da casa batendo a porta sem olhar para trás.
ficou ali, deitado olhando para o teto por mais um tempo. Deveria estar realmente fodido. Para até a própria namorada achar que ele merecia esse método de tortura, ele só poderia estar muito na merda.
Depois de um bom tempo, que ainda sim não pareceu o suficiente, o vocalista bebeu uma dose de whisky, tomou uma ducha fria e vestiu uma regata preta com uma calça jeans escura, antes pegar o seu Challenger rumo à casa de Kalil. Decidiram que seria o melhor lugar para ensaiarem dali em diante. Antes de tudo acontecer, tudo era na casa de Gus, ele tinha as melhores bebidas, o estúdio profissional, todos os instrumentos, os melhores videogames. Agora sem ele, seria mais fácil deslocar todo o material para a casa de Kalil do que tentar transportar a bateria em cada ensaio que tivessem.
Em apenas vinte minutos já estava na casa modesta do amigo às margens de Beverly Hills. Kalil não se importava muito com mansões, carros ou marcas de roupa, nunca se importou. Então não foi surpresa para ninguém quando ele se mudou para uma casa simples de dois andares e apenas três quartos nos arredores do bairro das estrelas, mantendo-se naquela região apenas pela segurança necessária quando se é uma pessoa pública. E é claro, pela privacidade. Enquanto as pessoas eram sempre atraídas por Santa Monica ou Hollywood Hills, o baterista encontrou o seu próprio oásis particular, onde não precisava se preocupar com vizinhos ou tráfego, próximo aos parques e reservas naturais da região. O único sinal de poluição no perímetro eram a fumaça dos cigarros de Kalil e o rugir da sua bateria.
costumava amar os ensaios da banda. Montar setlists. Tentar coisas novas. Beber até não acertarem um acorde ou se esquecerem as letras das músicas. Agora não conseguia nem pensar em fazer isso sem Gus. Muito menos um show.
O vocalista então decidiu adiar o inevitável. Antes de desligar o carro, tomou mais uma dose do cantil que carregava no bolso de trás da calça. Saiu do carro com um suspiro pesado, sem se preocupar em trancar o veículo. Sentou-se preguiçosamente aos pés das escadas de madeira que levavam à varanda e à entrada principal da casa de Kalil, sacando da capa de sua guitarra um maço de cigarros e um isqueiro.
se perguntou por que a gravadora nem ao menos considerou mantê-lo como guitarrista principal. Poderiam muito bem se virar para seguir com a banda sem um intruso no seu caminho. Sabia que não tinha o dom inato do amigo, não tinha o ouvido musical, mas, mesmo assim, era um bom guitarrista.
tragou e assoprou a fumaça.
Poderiam fazer isso sozinhos se quisessem. Talvez no fundo esse fosse o problema. não queria fazer isso. Não sem Gus. Por isso a gravadora tinha decidido que precisariam de uma pessoa nova. Alguém que usasse essa oportunidade para criar o seu nome e fazer acontecer. Os rapazes já tinham tudo. Mesmo que tivessem que continuar o trabalho, o básico era o suficiente para simplesmente terminar o tempo do contrato, juntar as suas coisas e irem embora. Agora, com uma nova pessoa na jogada, o futuro era imprevisível.
era um covarde autodestrutivo e agora pagaria o preço por isso.
Foi no meio desse pensamento que ele ouviu o uivo de uma motocicleta ao longe. Aos poucos uma imagem surgiu no horizonte da rodovia, os cabelos presos em um rabo de cavalo chicoteavam o ar, ou talvez fosse o contrário. A motoqueira se aproximou mais rápido do que poderia se preparar para a sua chegada, sua pequena imagem transformada em uma presença aterrorizante e ensurdecedora em questão de instantes.
desmontou da motocicleta em um único movimento, soltando os cabelos escuros e refazendo o penteado castigado pelo vento do trajeto. Quando terminou, seu olhar intenso foi instantaneamente atraído pelo de , que a observava desde o momento em que notou a sua chegada iminente.
— o homem decidiu engolir o orgulho e arriscar um cumprimento.
— corrigiu ela, arisca.
Ele deveria ter a chamado de vadia.
revirou os olhos e se contentou em lançar lhe um sorriso debochado.
— Que seja.
simplesmente correspondeu a provocação com um sorriso irônico, olhos grandes em um misto de surpresa e desafio. se viu encarando-a por tempo demais enquanto ela rebolava lentamente em sua direção. Os olhos brilhantes. Os cílios compridos. O rubor nas bochechas. Os lábios entreabertos. Precisou fechar fortemente as pálpebras para se lembrar de quem ela era e o que fazia ali. Quando reabriu os olhos, foi o bastante para que o desprezo cobrisse o seu rosto como uma máscara.
O homem voltou a observá-la, com escárnio dessa vez, ao aventurar-se pelo caminho de ladrilhos. Totalmente diferente do último encontro, dessa vez ela vestia uma camisa dois números maiores do Pearl Jam, uma calça jeans de lavagem clara e coturnos pretos. Cada passo violento era milimetricamente calculado como uma marcha militar. Mas faltava alguma coisa.
riu sem humor.
— Perdeu os óculos, espertinha?
deu uma risada sincera ao se aproximar.
— Você não achou mesmo que eu usava óculos, não é?
O vocalista ponderou com um estalo da língua.
— Isso tudo não passa de uma brincadeira pra você? — perguntou ele, a paciência e os bons modos se esvaindo aos poucos.
— Com certeza — ela respondeu. — Estou descobrindo que mexer com você pode ser bem divertido.
bufou, soltando a nicotina em uma fumaça disforme.
— Estou começando a me perguntar se você realmente sabe tocar alguma coisa.
— Posso aprender a tocar várias coisas se você quiser — provocou ela com um sorriso ladino.
A piada suja. não conseguiu deixar de se lembrar de Gus. Precisou remexer os ombros para se livrar do desconforto que aquela impressão causou.
Quando ela chegou perto o suficiente, perto demais, a mulher estendeu o braço em frente ao rosto do homem e balançou os dedos esguios. Como se tivesse a educação necessária para pedir o cigarro.
O vocalista deixou escapar uma risada entrecortada pela fumaça em seus pulmões. É claro que ela não pediria verbalmente.
Ele agradeceu mentalmente a postura dela e se permitiu ignorar o gesto.
abaixou a mão com um sorriso vitorioso, como se esperasse por aquela reação o tempo todo. A mulher apoiou-se contra a pilastra de madeira da varanda e olhou-o de esguelha. Ela soltou um estalo com a boca, apoiando-se contra a pilastra de madeira da varanda e olhando-o de esguelha.
— Está se sentindo mais falante hoje, bonitinho?
pareceu considerar por um momento se responderia ou não.
— Você vai acabar descobrindo que eu consigo ser muito mais agradável quando as pessoas não se metem onde não são chamadas — respondeu ele em um tom ríspido, sem olhar para ela enquanto ainda fumava.
— Então você vai gostar de saber que foi a West Coast que me procurou e não o contrário — ela ponderou.
— Você ainda está aqui, então não muda nada — resmungou, o som abafado pelo cigarro em seus lábios.
riu sem pudor, colocando-se em frente ao vocalista com um sorriso provocante nos lábios.
— Isso vai ser interessante.
não conseguiu nem reagir quando a mulher tomou o cigarro de seus lábios e marchou para dentro da residência.
O vocalista olhou para o teto, contou até dez mentalmente e com um suspiro seguiu o trajeto da mulher com os dentes trincados. Seguiu o odor de cigarro, do seu cigarro, pelo conhecido caminho da sala simples e minimalista até a porta escondida atrás da cozinha americana, que levava às escadas que davam no porão, onde o som ensurdecedor da bateria de Kalil já dominava o ambiente.
O baterista esmurrava os tambores com a mais nua e crua fúria. Nada como o homem pacato que conhecia. A violência de seu solo era tanta que era como se hipnotizasse os demais para que contemplassem o que poderia ser uma verdade sombria escondida por trás da personalidade calma e tranquila do homem. Ninguém ousou ao menos piscar. sequer se incomodou com a presença da mulher escorada no corrimão ao seu lado, aceitando de bom grado o trago final de seu próprio cigarro que ela o ofereceu. A figura transtornada e pecaminosa de Kalil atrás da bateria tornava a presença odiosa da tirana em nada além de um mero inconveniente. O cabelo comprido do baterista chicoteava o ar como uma tempestade de verão à medida que gotas de suor começavam a desenhar sua camisa cinza em uma arte abstrata. Os demais não passavam de espectadores até o seu fim repentino, marcado pelo barulho de baquetas caindo no chão e os ruídos de sua respiração ofegante.
Em meio ao silêncio macabro que se sucedeu, o som agudo de um assobio seguido por palmas entusiasmadas de cortou o ambiente. Logo foi acompanhada por um grito de incentivo de Tony que se juntou ao coro. não pôde evitar de sorrir verdadeiramente e aplaudir o amigo em admiração.
— Cara — iniciou o baixista, sorridente — é sempre um prazer ver você fazer isso!
— Nada mau! — o vocalista abandonou a inércia com um sorriso sacana nos lábios andando em direção ao sofá no canto da sala e jogando-se sobre ele.
observava à distância, com um sorriso ladino no rosto.
— Não enche — respondeu Kalil sem dar muita importância, pegando uma toalha que descansava sobre a banqueta e secando o rosto brilhante de suor.
O baixista esperou o amigo se aproximar para dar-lhe dois tapinhas amigáveis no ombro.
— Isso traz memórias, não é? — Tony disse sorridente, analisando o porão do baterista com o olhar.
Ele tinha razão.
Estar ali era como estar novamente na garagem dos Train e sonhar com um sonho impossível.
Os instrumentos espalhados pelo ambiente. O teto baixo. A risada estridente de Tony. O sofá surrado no canto do ambiente para que pudessem matar o tempo. Os incontáveis pares de baquetas de Kalil espalhados pelo cômodo. O cinzeiro cheio de bitucas de cigarro ainda exalando fumaça do último exemplar adicionado à coleção. Era quase como se August pudesse chegar a qualquer momento falando alto para que movessem suas bundas gordas para o palco improvisado. Mas ele nunca mais chegaria.
— Não pra mim — disse fazendo graça, ao desencostar-se da escada com um sorriso no rosto.
sentiu sua expressão se fechar quase que instantaneamente.
— Não teria como, Kalil não costuma trazer as mesmas garotas em mais de um ensaio — respondeu ele inevitavelmente grosseiro. Não conseguia evitar. Mas a verdade era que ele nem ao menos tentava.
— É uma coisa boa que isso vai mudar então — ela replicou arisca. Era impressionante como ela sempre tinha uma resposta na ponta da língua.
O vocalista abriu a boca para responder, mas foi logo interrompido por Kalil.
, por favor.
Um pedido de cessar fogo. Ao menos por hora. Um pedido irrecusável. Principalmente depois daquela performance. Não era apenas uma forma de impressionar uma mulher bonita que estava no ensaio. Não. sabia que, a sua própria maneira, o baterista sofria tanto quanto ele por conta das circunstâncias atuais. Por esse único motivo, permitiu que as palavras morressem antes que saíssem de sua garganta.
Os amigos pareceram satisfeitos com isso, e se uniram ao vocalista no que poderia ser considerada a sala de estar do porão. Tony deu uma batidinha no ombro do baterista, antes de soltar o seu corpo sobre o puff ao lado do braço do sofá. Kalil jogou a tolha sobre os ombros e sentou-se no chão sem pressa alguma, escorando as costas na parte central da mobília. soltou a cabeça sobre o encosto acolchoado, como se permitisse o seu corpo relaxar pela primeira vez em muito tempo. Juntos, os homens olharam através da sala como se esperassem por alguma coisa.
O vocalista bufou impaciente.
— Pode vir, bonitinha, não vamos fazer nada que você não queira — provocou ele com uma voz preguiçosa.
não disse nada. Apenas caminhou em passos lentos até a ponta mais distante do sofá, sentando-se ao chão ao lado de Kalil.
arqueou uma sobrancelha para o baterista que apenas deu de ombros para o gesto.
— Faltaram quatro shows para terminar a turnê — começou Kalil. — New York, Tampa, Chicago e Venice.
O vocalista se mexeu desconfortável no assento.
— Não conseguimos, tirar New York da programação, cara, sinto muito — Tony se solidarizou.
Era em New York que tocariam no dia em que encontraram o corpo do amigo sem vida em seu quarto de hotel.
— Que merda — ouviram murmurar e todos pareceram concordar com ela, sem exceção.
— O setlist tem doze músicas, mas você já deve saber disso — o baixista complementou com os olhos cerrados, como se desafiasse a mulher a se intrometer na sua explicação. — Normalmente começamos com Kick Me e terminamos com King For A Day.
limpou a garganta, chamando a atenção dos outros para si.
— Vamos tirar King For A Day do repertório — decretou ele.
— O quê? — a voz de Tony subiu algumas oitavas.
Até mesmo parecia descrente.
— Não vou cantar a música de Gus sem ele — disse , irredutível.
— Você só pode estar ficando louco — o tom da guitarrista era impaciente, os olhos brilhando com algo que parecia ódio, ou até mesmo ressentimento.
O vocalista sustentou o seu olhar por um breve momento, antes de quebrar o contato visual como se não fosse nada. Como se ela não fosse nada.
— Talvez você tenha razão, — Kalil parecia reflexivo, contemplando o nada. — Afinal a música é um dueto.
suspirou, afundando no estofado.
— Eu não canto — resmungou Tony.
— Muito menos eu — concluiu o baterista, dando de ombros.
— Eu poderia…
a encarou com tanta intensidade que a guitarrista até perdeu as palavras.
— Você poderia o quê, ? — sibilou ele, usando pela primeira vez o apelido da mulher, como se fosse uma maldição. — Você poderia roubar o lugar do nosso amigo na banda que ele criou? Ou você poderia cantar a única música que ele escreveu para ele cantar?
franziu o cenho para o vocalista em uma expressão de mais puro desgosto.
— Você poderia ficar com a guitarra dele também. Ou até mesmo morar na casa dele. Quem sabe ficar com os cachorros dele também? Posso te passar o telefone da prostituta favorita dele se precisar, apesar de eu achar que você não daria conta dela.
A guitarrista se levantou consternada, colocando-se rapidamente em frente a com o indicador apontado para a sua cara perturbada.
— Quer saber, ? — ela quase cuspiu o nome dele. — Vai se foder. Destruir essa banda, as pessoas ao seu redor e a si mesmo não vão trazer o seu amiguinho viciado de volta. Pensando bem, é bem provável que você seja o responsável por matar o resto da família dele desse jeito se você não se matar primeiro. — o vocalista trincou o maxilar, enquanto a mulher tomou fôlego em uma inspiração violenta — Então, por que você não para de falar merda e usa essa sua boca imunda para fazer a única coisa que você sabe fazer e canta essas palhaçadas que você chama de músicas?
Com isso, simplesmente deu as costas pegando uma guitarra vermelha que descansava em sua capa ali perto e posicionando-se à esquerda do pedestal onde um microfone descansava. A mulher encarou os três amigos com os olhos em chamas e uma expressão beirando a insanidade.
Kalil foi o primeiro a se levantar, caminhando silenciosamente até a bateria com as mãos nos bolsos, sendo seguido por Tony que pegou um baixo branco que descasava em um suporte à direita. por sua vez tomou o seu tempo para se levantar, com um sorriso sádico no rosto, se limitando a dar um passo de cada vez aproveitando cada faísca do olhar de . Sem pressa, colocou-se no centro da formação e puxou o microfone para si.
— O que sabe tocar, bonitinha? — sussurrou ele contra o microfone, olhando à de soslaio. Sua voz reverberou por todo o recinto.
— Tenta a sorte — respondeu ela, ríspida.
a lançou um sorriso insolente, tentando disfarçar o desapontamento, fazendo alguns gestos para os amigos que logo entenderam o recado.
Kalil fez uma contagem com as baquetas marcando o tempo da música, enquanto o vocalista tomou fôlego dedilhando as primeiras notas da música em sua própria guitarra.
Vozes na minha cabeça outra vez. Preso em uma guerra dentro da minha própria pele. — a voz de dominou o ambiente — Elas estão me puxando para baixo!
Mas antes que o vocalista pudesse se virar com um sorriso triunfante a melodia da guitarra principal rasgou a primeira estrofe no tempo exato da música. teve que se esforçar para seguir a música sem se distrair com a presença ao seu lado. não errava nenhuma única nota e não dava ao vocalista a satisfação de buscar o seu olhar em aprovação. A guitarrista tocava como se fizesse isso durante a vida inteira e talvez fosse isso mesmo. Mesmo que lutasse contra, se viu diversas vezes observando a mulher de esguelha. Os olhos fechados, os dedos inquietos sobre as cordas do instrumento, a batida ritmada do pé direito.
Só poderia ser sorte. Ela estava em negociação com a gravadora enquanto o vocalista esteve ausente, deve ter estudado a discografia.
Eu não quero viver, tão insensível e congelado, feio e sem esperança. Não quero viver para sempre. Eu só quero viver agora.
Não conseguiu deixar de pensar em Gus. Talvez fosse a perspicácia da guitarrista em reconhecer a melodia. Os reflexos rápidos. A postura. Os lábios que não resistiam a formar a letra da canção mesmo sem emitir som algum.
parecia estar ao mesmo tempo tão perto e tão distante. Assim como August Train.
Em meio a um solo de guitarra, encontrou a oportunidade de virar-se para os amigos com mais um conjunto de orientação para as próximas músicas de codificadas por gestos e expressões. Se queria testar a sorte, então ela seria testada.
Quando chegaram aos últimos acordes de Voices, Kalil emendou ao ritmo da canção seguinte. O vocalista viu abrir os olhos em sua visão periférica, quase podia ver as engrenagens do seu cérebro trabalhando para reconhecer a melodia. Estava pronto para cantar vitória, mas foi impedido pelo som da guitarra vermelha que mais uma vez acertou o tempo de entrada. A mulher manteve o olhar perdido enquanto franzia o cenho ao tocar sem muito esforço. Por um momento a sua expressão lembrou tanto a que August costumava fazer.
sentiu as mãos fecharem em punhos, então puxou o ar violentamente e cantou a sua raiva:
Meus segredos estão queimando um buraco em meu coração e os meus ossos estão com febre — sua voz rouca arranhava a garganta, deixando os seus pulmões em chamas. — Quando isso te corta tão profundo assim é difícil encontrar uma maneira de respirar.
O vocalista estava furioso, cantando em plenos pulmões a canção mais dolorosa que escreveu. Não que existisse outra forma de cantá-la. Era uma canção de ódio, mágoa e agonia. Então por que diabos a tocava tão tranquilamente?
Por um momento se sentiu apenas um coadjuvante. Um mero expectador. Sua voz não passava de uma música ambiente, uma trilha sonora para o que acontecia ao seu lado. Sem ao menos querer, a verdadeira performance acontecia ao seu lado. Como se o tempo passasse mais devagar e todo o som exterior fosse abafado. Talvez nada que fizesse fosse o suficiente.
Naquele momento ele era apenas testemunha da mais pura demonstração de talento bruto.
puxou o cantil entre um verso e outro em um gesto de desespero. Sentindo a visão começando a ficar turva.
O vocalista interrompeu a música no meio com um acorde ruidoso de sua guitarra. O silêncio caiu sobre o porão. se recusou a olhar para a esquerda.
Eu sento no meu quarto desolado sem luzes, sem música — ele tomou fôlego — APENAS RAIVA. Eu matei a todos. Estou ausente para sempre, mas estou me sentindo melhor.
Para o desgosto de a guitarra soou no momento exato, sendo imediatamente seguida pela bateria e pelo baixo. O vocalista deixou fúria se espalhar pelo seu corpo junto à dormência relacionada ao álcool enquanto cantava. Aproveitou a oportunidade de merda que ele mesmo havia criado para descontar todo o seu rancor. Sentiu cada nota da guitarra à sua esquerda como uma facada no peito, enquanto a sua voz era um clamor colérico. À medida que o seu rosto esquentava, o ar parecia lhe faltar, mas ele não deu importância. Deixou sua mente se anuviar e o mundo desaparecer, como se transformados pela sua voz, esquecida pelos últimos meses, e pelo sentimento que o acompanharia para sempre. Quando cantou a sua última nota, com o peito arfando e a respiração entrecortada, teve a impressão de que se forçasse mais um pouco nunca mais seria capaz de fazer aquilo novamente.
Mas antes que o silêncio pudesse dominar o ambiente, o porão foi preenchido por uma gargalhada extasiada.
tentou não revirar os olhos quando tombou seu pescoço para a esquerda, em direção ao som.
— Não vai ser com System of A Down que você vai me derrotar, — disse divertidamente, limpando uma lágrima do canto dos olhos.
O homem não expressou nenhuma reação, completamente esgotado pela performance.
A guitarrista tirou a correia do ombro e deixou o instrumento sobre um apoio ali perto, antes de se jogar sobre o sofá com um suspiro satisfeito. Exatamente onde estava antes. Ela deixou a cabeça pender no ar longe do acolchoado ao mirar o vocalista.
— Tente Guns ‘n Roses da próxima vez — disse ela, dando uma piscadela, como se compartilhasse um segredo — Eu não gosto muito deles.
Tony tossiu alto, voltando para o seu lugar original sem nem ao menos se separar do baixo.
— Como alguém não gosta de Guns?
— Pergunte ao — Kalil deu de ombros, levantando-se da bateria e sentando-se mais uma vez sobre o carpete preguiçosamente. — Ele não gosta de muitas coisas.
— Isso não vem ao caso — o vocalista resmungou, guardando sua guitarra novamente na capa.
O baterista puxou uma pequena maleta sob o sofá, de onde tirou uma tesoura, seda, papel de piteira e um slicker, concentrando-se no trabalho manual de enrolar um baseado.
? — insistiu o baixista, dando um tapinha na mão da mulher que pendia para fora do sofá.
— Ahn, sei lá — hesitou ela. — as letras são constrangedoras, a voz do Axl Rose é desagradável, fora que as músicas envelheceram mal demais.
— Fala sério, a voz dele? — Tony estava incrédulo. — Ninguém no mundo faz o que ele fazia.
— Não é à toa que ele ficou sem — comentou , sem se importar com a mulher ao sentar-se no sofá ao seu lado.
fez um estalo com a boca.
Guns é rock pra quem finge que gosta de rock.
O vocalista brindou ao comentário, levantando o cantil e dando mais um gole amargo. A mulher o fitou por um momento.
— Seu vocal ao vivo é melhor do que eu esperava — disse ela. Talvez isso fosse um elogio na mente distorcida dela.
— Seu som também não é dos piores — respondeu ele, com o máximo de cordialidade que podia direcionar a ela. O que não era muita.
Como se essa troca de palavras já não fosse inesperada o suficiente, foi além e sorriu. Sorriu para ele. Um sorriso sincero que o deixou com um vinco no meio das sobrancelhas.
sentiu um cutucão na perna e quando olhou viu Kalil estendendo-lhe o baseado. Pegou o cigarro enrolado entre os dedos e deu dois tragos generosos, sentindo a pressão baixar instantaneamente.
— Podemos ensaiar a setlist das próximas vezes? — perguntou a ninguém em especial.
— Essa é a ideia — respondeu o baterista, esticando-se até se deitar sobre o carpete, encarando o teto. — só não é muito bom com pessoas novas.
O vocalista encarou o amigo, incrédulo.
— Como vamos substituir King For A Day? — perguntou Tony, brincando com as cordas do baixo.
— Podemos fazer um cover diferente em cada show — sugeriu .
a ofereceu o baseado com um sorriso ladino nos lábios.
— Gostou do que viu, ?
A guitarrista arqueou uma sobrancelha aproximando-se além do necessário para pegar o cigarro enrolado.
— E se eu tiver gostado? — disse ela, o rosto à poucos centímetros do dele.
— Na verdade, isso é uma ótima ideia — ouviram Kalil dizer.
A guitarrista piscou algumas vezes e retomou a sua posição original, distanciando-se de e assoprando fumaça para cima.
— É claro que é uma ótima ideia — disse ela com uma risada sem humor. — Se vocês vão decepcionar os fãs privando-os de uma das melhores músicas que vocês já fizeram, o mínimo que podemos fazer é surpreendê-los em cada show.
— Não vamos decepcionar os fãs — sibilou.
deu mais dois tragos e passou o baseado para Tony.
— Se você está dizendo…
Ainda no primeiro trago, o baixista teve um acesso de tosses que amenizou o clima com algumas risadas contidas de todos os presentes. jogou para o amigo uma garrafa de vodka que estava jogada ao seu lado. Tony aceitou a bebida com uma careta no rosto, tomando alguns goles sofridos.
— Deveríamos começar a deixar garrafas d’água por aqui — disse o baixista após recuperar o fôlego, mas ainda com a voz fanha.
— Não seja fraco, de La Rocha! — respondeu Kalil.
— E perder cenas como essa? — ponderou sorridente. — De jeito nenhum!
O grupo riu como grandes amigos. Até mesmo .
— Você deveria parar de tentar respirar enquanto traga — o baterista implicou. — São coisas diferentes, você sabe.
— Se você tabacasse menos o baseado, talvez eu não precisasse ficar buscando por ar por conta desse gosto de merda — resmungou Tony.
— E você fuma todas as vezes — argumentou Kalil, olhando-o com um sorriso canalha nos lábios.
— Meninas… — censurou em um tom divertido.
deixou um riso frouxo escapar. Deveria ser o álcool.
— Tudo bem — Tony cedeu rapidamente, fazendo os amigos rirem. — Como vamos escolher as músicas?
A guitarrista deu de ombros.
— São quatro shows, quatro músicas, quatro integrantes da banda…
— Nem pensar! — protestou.
jogou a cabeça para trás em uma gargalhada.
— Sabe, , eu tomaria cuidado se eu fosse você...
— E por que eu faria isso? — perguntou ele, impaciente.
— Qualquer hora dessas eu posso acabar gostando — respondeu a mulher com uma piscadela.
O vocalista bufou em resposta.
— Ela tem razão — disse Kalil.
— Eu não estou muito inclinado a discutir fantasias sexuais com vocês — resmungou.
— Sobre os covers — o baterista complementou.
O vocalista soltou um estalo com a boca.
— Você está mesmo pensando em deixar o de La Rocha e uma desconhecida escolherem alguma coisa?
— Estou.
Tony riu escandalosamente.
— Realmente, vocês estão ficando loucos — disse o baixista, espreguiçando-se.
— Eu entendo que vocês criaram essa personalidade revoltada, introspectiva e problemática pra banda e que isso é a identidade musical de vocês — argumentou, limpando as unhas deliberadamente. — Mas, quer vocês queiram ou não, as coisas mudaram. Vocês perderam um guitarrista e ganharam outra. O público quer se conectar não só com o que vocês eram, mas com o que nós podemos ser.
quase rosnou.
— Acho que você não está ajudando muito — sussurrou o baixista para a mulher.
— Não diga — revirou os olhos, afundando no sofá.
— a voz de a chamou.
A guitarrista o encarou com o cenho franzido.
— Pelo seu incomodo — disse ele, e jogou para ela o cantil que carregava com menos da metade do seu conteúdo original.
encarou o vocalista com desprezo antes de abrir o recipiente e despejar todo o seu conteúdo em sua boca sem expressar uma reação sequer.
Aparentemente ela não iria cair sem lutar.

Capítulo 3 - The Downfall of Us All


“It’s not easy making a name for yourself
Where do you draw the line?
I never thought I’d be in this far”

— The Downfall of Us All, A Day To Remember


— Eu ainda não acredito que vocês acharam que seria uma boa ideia fazer o evento de anúncio da nova contratação na minha casa — disse impaciente contra o telefone.
Uma risadinha divertida soou no aparelho.
Os eventos sempre são na sua casa — rebateu Tony do outro lado da linha. Só pelo tom de voz o vocalista sabia que o amigo estava sorrindo. Aquele traidor.
suspirou audivelmente.
— Eu não quero ela aqui.
É, não tem muito o que podemos fazer — o baixista fez um estalo com a boca. — já que ela é meio que a atração principal.
O vocalista se jogou sobre a sua cama, sendo engolido pelos lençóis espalhados sobre ela. Anthony pareceu pensar por um momento, já que cantarolava uma melodia aleatória no alto-falante como costumava fazer nessas ocasiões. bufou, arrancando do amigo uma risadinha.
Achei que já tivesse superado isso — disse Tony, a voz modulada pelo sorriso que com certeza estampava sua face — Estavam até bebendo juntos nos ensaios nas últimas semanas…
— Eu estava bêbado — resmungou .
Você está sempre bêbado…
— Exatamente.
Por que estamos tendo essa conversa, então? — ponderou o baixista, bem-humorado. — Basta abrir uma daquelas suas garrafas caras e voilà.
— Eu só quero reclamar, se eu quisesse soluções teria ligado para o Kalil.
Meu Deus, não é possível que eu tô parecendo o Kalil! — praguejou Tony em meio a sons desconexos da ligação. O vocalista podia jurar que o amigo estava passando as mãos descontroladamente sobre os cabelos curtos ou até se esfregando sobre a cama ou sofá. — E a sua namorada?
— O que tem ela?
Me diga você, você não tem falado muito dela, e isso é desde antes de New York.
— Não há nada pra falar, já estamos juntos há quase um ano, não existem muitas novidades num relacionamento à essa altura… — revirou os olhos impaciente.
Por que não reclama com ela?
— Porque ela está adorando essa merda — rebateu ele impaciente. — Ela deve acreditar que é algum tipo de punição divina ou algo assim.
Não é como se você não estivesse merecendo — pontuou Tony.
— Eu não acredito nessas coisas.
Sorte sua.
riu sem humor.
Vocês deveriam parar com isso, sabe? — disse Anthony com um suspiro do outro lado da linha.
— Não sei do que você está falando.
De ficarem machucando um ao outro — continuou o baixista. — Vocês têm essa mania, nenhum dos dois faz questão um do outro e quando a mídia começa a cair em cima arranjam a maior confusão por causa do que outras pessoas estão falando.
— A gente não…
E tá tudo bem, cara, vocês não têm nada a ver um com o outro.
— A gente se gosta, Tony…
Não do jeito certo — rebateu o baixista. — Eu sei que você ficou gamado quando eu apresentei vocês e também sei que vocês se sentem sim atraídos um pelo outro, mas você é meu amigo, , e ela também. Eu e ela temos muito mais a ver que vocês dois.
— O que você quer dizer com isso? — revirou os olhos, já arrependido de ter iniciado essa ligação. — Não é como se você fosse ficar com ela se nós não estivéssemos juntos.
Não mesmo!
Os amigos riram juntos.
Não é como se eu nunca tivesse dito isso antes — argumentou Anthony.
— Se eu não te ouvi antes, por que estamos falando sobre isso?
Porque nós dois conhecemos uma pessoa recentemente que faz super o seu tipo...
não acreditou nas palavras que saíram pelo alto-falante, não mesmo. Quando se deu conta já estava em meio a uma crise desenfreada de tosse.
Eu tô falando sério — Tony resmungou quando o amigo pareceu respirar normalmente. — Ela é super maneira, tem um bom gosto musical, engraçada, gata…
— Eu nem reparei…
Você iria gostar dela se desse uma chance — pontuou La Rocha.
— Você sabe que eu não vou comer a , não sabe? — cortou impaciente.
Você é quem sabe — o baixista se fez de desentendido. — Ela faz o tipo de Kalil também…
— Espero que ele foda ela até ela desaparecer de minha vida — respondeu irredutível.
Você não tem jeito.
— Por que você não incomoda o Casablanca? — resmungou o vocalista.
O baixista riu abafado.
Ao menos converse com a Margot — Tony disse suavemente. — Pare de ser um cuzão com a minha amiga.
— Posso pensar sobre isso.
Vou ter que me contentar com isso — La Rocha suspirou — Melhor eu ir, quero chegar antes de você mais tarde.
— Não vai ser muito difícil — resmungou.
E é por isso que os eventos sempre são na sua casa — finalizou Tony com uma gargalhada, desligando a chamada antes que o amigo tivesse a chance de protestar.
Antes que pudesse se preparar psicologicamente para o que estava por vir, a festa já tomava vida na ampla sala de estar da casa de . Meia centena de pessoas se reuniam sob o pé direito exagerado da mansão, bem servidos de champanhe e muita conversa afiada. se demorou apoiado ao batente do andar superior, adiando o inevitável. Vestia uma regata canelada preta ajustada ao corpo que deixava a completude dos seus braços tatuados e definidos à mostra, combinados com uma calça de couro vermelha baggy e uma Dr. Martens nos pés. Analisava as pessoas andando para lá e para cá com o cenho franzido e um copo de whisky entre os dedos cobertos por uma quantidade exagerada de anéis. Reconheceu amigos, familiares, sócios da West Coast, algumas personalidades importantes do cenário do rock americano e uma dúzia agentes de comunicação previamente contratados para cobrir o evento. Seria uma maravilha.
Depois de alguns goles violentos em sua bebida, o vocalista decidiu finalmente erguer a cabeça e enfrentar o seu pesadelo do dia. Em poucos minutos foi encontrado por Doc sob as luzes negras e vermelhas que ambientavam os cômodos, enquanto tentava ferozmente driblar qualquer interação social com um aceno de cabeça e um sorriso forçado.
— Você costumava ser melhor em festas — disse o agente em forma de cumprimento, ao erguer sua taça em um brinde amistoso.
o olhou com desconfiança.
— Eu costumava ser muitas coisas.
Doc riu sem humor.
— Sabe o que eu acho, ? — perguntou o homem, sua pele negra engolindo os poucos resquícios de luz do ambiente.
— Não, Doc — respondeu o músico em tom de deboche. — Por favor, me conceda mais uma das suas doses de sabedoria.
— Isso tudo… — o agente começou com um sorriso, ao ver o amigo e cliente revirar os olhos. — Não é sobre as coisas que acontecem com você. É sobre o que você faz com isso.
— Eu preferia uma dose — respondeu espirituoso, antes de bebericar o seu copo.
Anthony que estava por perto não perdeu a oportunidade de se aproximar com todo o seu carisma. O baixista usava uma camisa preta transparente solta no corpo, por dentro de uma calça de cargo com uma diversidade de bolsos e zíperes característicos do street wear. O sorriso nos lábios de La Rocha chamava confusão. Mas quando é que não o fazia?
— Vejo que já começou os trabalhos — disse Tony observando o copo do vocalista com um olhar malicioso.
— É o jeito — respondeu, dando um tapinha no ombro do amigo como cumprimento.
— Tá com sorte, vai poder aproveitar um pouco antes da sua cara metade aparecer — brincou o baixista, arrancando do amigo um suspiro impaciente.
— Não cante vitória tão cedo, Margot está vindo para cá — alertou Doc indicando a mulher com um aceno de cabeça.
O vocalista revirou os olhos, ignorando os comentários dos outros dois.
— Não era dessa cara metade que eu estava falando — cantarolou Tony, antes de ser empurrado pelo amigo e encerrar o assunto com uma risada escandalosa.
O agente olhou para com uma sobrancelha arqueada, sem entender claramente a conversa dos músicos. Mas se limitou a negar com a cabeça, respirando fundo uma única vez antes de caminhar em direção à mulher que já chegava ao seu alcance.
Margot o lançou um sorriso malicioso quando seus olhares se encontraram. Usava um vestido exagerado para a ocasião, longo demais, apertado demais, brilhoso demais. Apenas o tecido preto era capaz de, com muito esforço, transmitir a energia do evento.
precisou forçar um sorriso. Sabia que ela tinha feito de propósito, ela sempre fazia. A modelo gostava de ser referência de moda nos sites e revistas de fofoca e não perdia uma oportunidade de ostentar designs das maiores e mais caras grifes do ramo.
depositou uma de suas mãos delicadamente sobre a lombar da mulher quando esta se inclinou espalmando o seu peito para selar os seus lábios em um gesto coreografado. Exatamente como costumavam fazer.
— Achei que teria que subir pra te buscar — disse Margot divertidamente em cumprimento.
estreitou os olhos desconfiado.
— Você não perderia isso por nada, não é?
A modelo deu uma risadinha, entrelaçando um dos braços com o do namorado e conduzindo-o sutilmente até os amigos que ficaram para trás.
Decidiu fazer um esforço para melhorar o clima com Margot, sabia que estava pisando na bola e levar a melhor do seu temperamento volátil não iria ajudar em nada. Mesmo que às vezes a mulher lhe desse nos nervos.
— Você está bonita…
A modelo soltou uma gargalhada gostosa, fazendo permitir que seus lábios até se curvassem levemente para cima.
— Você também não está nada mal — disse ela, com uma piscadela. — Qualquer dia desses você poderia falar com a gravadora para chamar a minha estilista para vestir vocês, tenho certeza de que ficariam ainda mais bonitos…
O vocalista engoliu em seco. Não podia responder o não de sempre. Nem mesmo rir para fugir assunto. Muito menos criticar as roupas que nada tinham a ver com os eventos ou a estética da banda. Então apenas murmurou:
— Podemos falar com Leto da próxima vez…
Margot precisou se esforçar para escutar as palavras em meio ao caos do evento, mas quando compreendeu o que foi dito quase não conseguiu conter os pulinhos de felicidade. pôde finalmente suspirar aliviado.
— Obrigada por trazerem ele pra mim — disse Margot sorridente para os homens que os esperavam.
— Não poderíamos deixar a dama sem o seu vagabundo — brincou Tony.
— Se o universo permitir ele não vai ser vagabundo por muito mais tempo — respondeu a modelo acariciando o braço do vocalista como quem acaricia um animal de estimação.
bufou.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou o baixista, encarando o amigo como se o desafiasse a responder.
disse que vai tentar falar com a West Coast sobre chamar a agência para vestir o próximo evento da Disclaimer — explicou Margot ainda vibrando com a expectativa da conquista.
Doc riu entretido.
— Boa sorte em colocar Kalil Casablanca dentro de um terno — brincou o agente com um sorriso irônico no rosto.
— Falando de mim?
Como se convocado pela menção do seu nome, o baterista apareceu atrás deles com as mãos nos bolsos e o mesmo semblante tranquilo de sempre. Mas…
— Belo terno, cara! — elogiou Tony, o rosto vermelho como quem segura uma risada daquelas.
Anthony não estava brincado. Kalil vestia calças de cintura alta de cetim pretas e um blaser oversized condecorado por um padrão de spikes aberto no mesmo estilo que deixava o seu tronco nu e tatuado exposto como se fosse a própria camisa de alfaiataria.
— Que porra… — não conseguiu nem se expressar.
— Obrigado por trocar comigo, La Rocha — o baterista disse bagunçando os cabelos compridos, completamente sem graça.
— Nós homens nus precisamos nos unir — respondeu Tony com uma piscadinha arrancando uma risada de todos.
engoliu em seco, travando uma batalha interna entre odiar o amigo por acabar com sua única chance de se livrar da ideia de merda de Margot e apoiá-lo. De um jeito ou de outro, a escolha era óbvia.
— Ficou bem em você, irmão.
— Achei que fosse ser legal, no meio de todo esse clima de mudança e tudo mais — disse o baterista, dando de ombros.
Tudo o que pôde fazer foi oferecê-lo mais um daqueles sorrisos amarelos. Parecia que estava fazendo muito isso ultimamente.
— Vocês viram a em algum lugar? — perguntou Kalil para ninguém em especial.
sentiu o estômago afundar apenas com aquela combinação de letras malditas.
— Ela ainda não chegou — respondeu Doc simplesmente.
— Parece alguém que conhecemos — ironizou Tony, lançando um olhar malicioso para .
O vocalista apenas o ignorou.
— Eu vou precisar de mais algumas bebidas — resmungou ele, sem se importar em ser ouvido ao arrastar Margot para longe dos amigos em direção ao bar.
fez um bom uso da hora que se sucedeu, distraído por entre doses diversificadas, um copo whisky sempre cheio, um cigarro constantemente aceso entre os dedos e os beijos inebriantes da namorada.
Estava perdido na língua de Margot quando os ruídos constantes de música e conversas da festa se transformaram em único clamor fervoroso. soube exatamente o que isso significava. Separou seus lábios dos da mulher em seu colo, juntando suas testas e respirando fundo, ainda de olhos fechados.
Seu maior pesadelo finalmente se tornaria realidade.
Quando conseguiu acalmar a respiração, ele ergueu o olhar para a porta da frente e a viu. Todos os aplausos, gritos e assobios só poderiam ser para ela. A mulher vestia um corset vermelho que valorizava o seu colo e um par de botas de vinil da mesma cor. Suas calças pretas tinham tantos recortes que poderiam facilmente ser consideradas um cinto que segurava o mosaico de tecido e pele. Com os cabelos presos em duas tranças bem apertadas, um delineado grosso e um conjunto de pulseiras e cordões de spike e arame farpado, o seu visual todo indicava problema. Um problema difícil de se livrar.
Diferente do que já tinha visto antes, mais do que nunca parecia estar exatamente onde ela deveria estar. E isso o matou por dentro.
— Merda! — Margot xingou baixinho se ajeitando no colo do namorado. — Ela é gostosa.
demorou um instante para processar o que ela tinha falado. Não tinha nem ao menos certeza de que estava piscando, hipnotizando pela visão deturpada da mulher que começava a dominar cada centímetro do ambiente em que ocupava. Expansiva. Soberana. Intocável. E terminantemente proibida.
— O que? — perguntou ele perdido, os olhos arregalados ainda presos no mesmo lugar. — Quem?
A mulher em seu colo suspirou audivelmente.
— A guitarrista.
O vocalista desviou o olhar para encarar sua namorada, ainda atônito. Não por muito tempo, é claro. Seu olhar parecia ser inevitavelmente atraído para o outro lado do cômodo, como o de todas as outras pessoas. Todos sob a influência do mesmo feitiço profano.
— É — murmurou pensativo. — Parece que ela é.
Margot virou-se para ele com a sobrancelha arqueada.
— Por que não disse nada antes? — questionou ela. não soube dizer se o seu tom era acusatório ou apenas… Curioso?
— Ela não era há alguns dias atrás — respondeu ele com o cenho franzido.
Margot revirou os olhos e colocou-se de pé em um pulo, estendendo a mão para o namorado, abrindo-a e fechando-a algumas vezes em um pedido silencioso.
— Venha me apresentar — disse ela com uma tranquilidade que não tinha.
— Você vai ter que esperar, gatinha — disse Anthony ao aproximar-se de súbito com uma bebida colorida em mãos. — É hora do show!
Com isso, o baixista espalmou firmemente a nuca do amigo, arrastando-o por entre a multidão na única direção para onde não queria ir. Na direção dela.
Quando os amigos alcançaram a aglomeração que seguia a guitarrista para dentro da sala de estar, chegaram no mesmo momento em que Leto e Doc a interceptaram o seu caminho para sabe-se lá onde.
— Você está atrasada — ouviram o alerta de Doc quando se aproximaram.
— Desculpe, tive um problema com a correia da moto quando estava saindo — explicou a mulher, sacando um maço de cigarros de algum dos retalhos da sua calça, colocando um na boca e acendendo-o sem cerimônias.
— disse Leto calmamente, apertando o cenho com os dedos em garra. — Nós mandamos um carro.
A guitarrista soprou a primeira lufada de fumaça em sua direção e lançou ao produtor um sorriso endiabrado.
— Não é agora que eu vou começar a andar de carro — respondeu ela com uma piscadela.
— Certo — Leto respirou fundo. teve certeza de que ele tentava realinhar os seus chácras, o que quer que isso quisesse dizer. Se fosse qualquer outra pessoa protagonizando aquela cena, ele acharia hilário, mas esse não era o caso. — Vamos puxar o anúncio em dez minutos.
assentiu, olhando ao redor como se analisasse o evento. Quando seu olhar cruzou com o do vocalista suas sobrancelhas se ergueram em surpresa e arrogância.
— Ora, ora — disse ela com um sorriso predatório, antes de dar mais um trago em seu cigarro. — Veio me dar as boas-vindas?
E tão rápido quanto o feitiço o atingiu, ele se dissipou, deixando com a sua boa e velha carranca.
— Tente não quebrar nada — foi o que ele disse. Não um cumprimento. Nem uma pergunta cordial. Apenas uma repressão nua e crua.
A guitarrista assoprou a fumaça em sua direção, estreitando os olhos.
— Não posso prometer nada.
Anthony riu, entretido com as provocações entre o casal de amigos que já se tornava rotina aos poucos, mesmo que o vocalista negasse até o túmulo.
— Espero que isso não se aplique a mim — brincou o baixista, mordendo o canudo colorido de seu drink tão colorido quanto. — Você sabe o quanto eu adoro mudar a sua mobília.
resmungou, pegando o copo das mãos do amigo e dando um gole generoso sem se importar com as gotas que o canudo pendente deixava escorrer pelo seu pescoço desnudo. Tony riu mais uma vez, limpando o amigo com o polegar e lambendo os dedos sujos em seguida.
— Que desperdício…
O vocalista revirou os olhos teatralmente, antes de oferecer-lhe um dos seus sorrisos mais canalhas.
— Já que você gosta tanto de me limpar, você deveria colocar aquela sua fantasia indecente e vir arrumar a sua bagunça e a da sua amiguinha amanhã.
— Se você quer ver minhas pernas, , sabe que pode pedir — Tony respondeu com uma piscadela, arrancando uma risada tanto do vocalista quanto da guitarrista.
e pararam de rir imediatamente quando perceberam. O baixista precisou morder a língua para não fazer um comentário que provavelmente custaria seu drink, ou na pior das hipóteses a roupa impecável na hora do anúncio.
— Não entendo por que eu deveria limpar a sujeira dela — Tony se fez de desentendido, indicando a mulher ao seu lado com a cabeça, ao mesmo tempo em que retomou seu copo. Decidiu, então, arriscar o seu comentário mais sutil. Não conseguia resistir. — Tenho certeza que ela ficaria tão bem naquela roupa quanto eu.
encarou o amigo desconfiada, sem perceber o olhar colérico do vocalista.
não precisa ficar nessa casa mais do que o necessário, não é? — pontuou em um misto de deboche e ironia, seu pescoço pendendo em um ângulo viperino.
— Surpreendentemente, você não poderia estar mais certo — respondeu ela, inclinando-se sobre Tony que estava entre eles e abocanhando o canudo colorido para experimentar a bebida. O olhar dela não poderia ser descrito de outra forma que não sensual. Os olhos fixos em , a boca em bico ao redor do canudo.
O vocalista piscou uma, duas, três vezes, antes de receber um tapinha nas costas.
— Vocês três — Doc anunciou, alternando o olhar entre a mulher e os dois homens. — Encontrem Kalil e se reúnam atrás do palanque, não temos mais tempo a perder.
mudou o peso de uma perna para a outra em desconforto, mas concordou com a cabeça, lançando um olhar significativo para os outros dois e seguindo seu rumo para o bar, esperando que os outros o seguissem. Mesmo de costas, o vocalista conseguia sentir a presença latente de às suas costas. Os olhares que os acompanhavam a cada esbarrar de braços também não ajudavam. Como esperado, encontraram o baterista escorado em uma pilastra, conversando perigosamente próximo à uma ruiva, mas ele não teve nem tempo de protestar ao ser puxado pelo aperto de aço de Tony para o palco improvisado montado na sala principal da casa.
Eram apenas dez minutos, mas pareceram mais serem dez horas. Durante todo esse curto, longo, tempo, precisou se esforçar mais o que ele achava possível para não olhar à mulher ao seu lado de canto do olho. A fumaça da ponta do cigarro em sua boca suja pairava em sua visão periférica como um convite, uma tentação. Mas não se permitiria olhá-la. Não se permitiria ser enganado pelos seus sentidos. Não quando isso envolvia . Não mesmo.
Ele não foi capaz de resistir.
— Tá olhando o quê? — a voz da guitarrista soou ríspida, mesmo que para um sussurro.
franziu o cenho, olhando-a de forma estranha. Ela suspirou impaciente.
— Você tá esquisita — disse ele simplesmente.
cruzou os braços, encarando-o com uma sobrancelha arqueada.
— O que aconteceu com bonitinha? — desdenhou ela, segurando um sorriso.
O vocalista abriu a boca para responder, mas não foi capaz de emitir nenhum som. deixou uma gargalhada divertida escapar de seus lábios e virou-se para frente, determinada a ignorá-lo, mesmo que ainda tivesse os lábios curvados para cima.
Quando a música cessou e as luzes se apagaram, eles souberam que tinha chegado a hora. O último ato. não conseguiu decidir se era um alívio ou apenas mais um desespero. Os membros da banda esperaram em um silêncio fúnebre, mas cheio de expectativa. Não havia nada a ser dito. Antes que pudessem se preparar, um conjunto de holofotes se acendeu sobre o palanque no mesmo momento em que Leto colocou-se diante do público bem no centro da estrutura com um microfone em mãos.
— Boa noite!
A plateia reagiu com gritos e assobios entre uma salva de palmas entusiasmada. O som um pouco mais ensurdecedor do que o vocalista esperava, ao sentir a adrenalina da antecipação.
— Obrigado pela atenção! — disse ele. O produtor olhou de esguelha para o grupo que esperava ao fundo do palco improvisado. — Rapazes, por que vocês não sobem aqui?
não gostou da ideia, mas seguiu Tony e Kalil quando ambos se dirigiram para a estrutura abobada, posicionando-se atrás do porta-voz da gravadora. Era estranho estar diante de tantas pessoas depois de tudo. Sentia-se como um animal de circo, uma aberração. Era claustrofóbico. Os olhos em sua direção pareciam se multiplicar a cada segundo, cheios de expectativa. Prontos para vê-lo perder a cabeça.
Leto os ofereceu um sorriso amigável antes de volta-se novamente para a plateia.
— Sabe — o produtor retomou seu discurso. — Quando Doc me apresentou esses caras, eles eram um grupo de desajustados...
— Nós ainda somos! — Tony gritou divertidamente, arrancando risadas por toda a multidão.
— Isso é verdade — Leto riu bem-humorado. — Mas quando eu conheci esses caras eu nem acreditei que o aqui era capaz de cantar alguma coisa, ele não abria a boca — o público riu com o comentário, arrancando também algumas risadas contidas da banda. — o que era muito estranho para alguém que estava estudando para ser advogado. Anthony estava fazendo faculdade de enfermagem, era impossível coincidir as agendas. E por algum motivo que até hoje eu não entendo Kalil viajava duas vezes por mês para New York para estudar culinária.
Algumas pessoas gritaram animadas em coro, o som fez o vocalista realmente se questionar se realmente teriam mais pessoas ali. Esse definitivamente não era o som de uma reunião íntima. sabia mais do que ninguém.
— No meio disso tudo eles encontravam tempo para ter uma banda de garagem e gritar suas frustrações pra quem quisesse ouvir em uma daquelas festas de fraternidade que todos nós sabemos como são.
Leto se virou mais uma vez, trocando com os rapazes um daqueles olhares cúmplices. Mas quando sustentou os olhos do vocalista, pensou ter visto algo como culpa e pontada de dor. Não podia ser por acaso. O músico precisou engolir em seco para se preparar para o que estava por vir.
— Mas quando eu conheci Gus eu entendi exatamente o que Doc queria me mostrar... Ele era um pé no saco, aparecia na gravadora uma vez por mês só pra tentar agendar uma reunião. Tão insistente que, apesar de ignorarmos todas as suas tentativas, em um desses dias ele conseguiu interceptar Doc no estacionamento. Como ele conseguiu chegar lá sem autorização eu não sei, mas ainda bem que ele conseguiu. Porque no momento em que Doc apareceu na minha sala, sem hora marcada, com aquele cara magrinho, usando uma camisa social que claramente não era dele e com uma guitarra nas costas eu soube que algo grande estava para acontecer. Bastou colocar a correia da guitarra e tocar algumas notas… E eu soube. Doc também sabia. — ele suspirou, como se lembrasse de cada detalhe. — Aquele cara... Ele era a porra de uma estrela do rock da cabeça aos pés.
fechou os olhos por um breve instante, mudando o peso de uma perna para a outra desconfortavelmente. Sabia que era impossível passar por aquele momento sem falar de Gus. Era inevitável. Ainda assim, saber não tornava aquilo mais fácil.
— Eu acho que falo por todos nós quando digo que não estaríamos aqui hoje se não fosse por ele. — continuou Leto, seu tom de voz cauteloso. — O que aconteceu com Gus é conhecimento público e afetou a todos nós. Apesar de termos soltado algumas notas oficiais, tudo ainda é muito recente e muito difícil de lidar. Decidimos então aproveitar esse momento pra fazer uma homenagem à August, por tudo o que ele foi e ainda é.
Em sua visão periférica, o vocalista notou um telão se erguer às suas costas. O tempo pareceu parar por um momento. Teve a sensação de que todas as pessoas ali presentes houvessem prendido a respiração. Não ousou olhar para trás. Afinal, não precisava. Ele ouviu, e sentiu o ar faltar em seus pulmões instantaneamente.
Mesmo depois de meses o som daquela risada estava para sempre gravado em sua memória.
Alta. Contagiante.
August.
não foi capaz de controlar suas pernas. Entrou em piloto automático. Quando se deu conta já tinha saído do palco, atravessado o cômodo e saído pela porta da frente. Apenas quando o ar fresco tocou o seu rosto ele se deu conta do que havia acontecido.
A voz de Gus ainda ecoava em sua mente. Dando risada. Chamando o seu nome. Falando bobagens.
Naquele maldito compilado de vídeos.
definitivamente não estava pronto para isso.
O vocalista precisou se sentar na escadaria de mármore. Tirou o isqueiro, o maço e o celular dos bolsos, sentindo os olhos arderem. Não esperava ouvir aquela voz. Não quando ainda tinha uma mensagem de voz dele em sua caixa postal. Nem mesmo o primeiro trago foi capaz de amenizar o aperto em seu peito. Ou o terceiro. Ou o quinto.
Quase não percebeu quando um grupo de pessoas falando alto passou por ele aos tropeços a caminho da festa. E mais outro. Muito menos quando alguns pares de flashes brilharam em sua direção. Não. Seus olhos estavam vidrados na tela. Encarando o número que jamais seria discado novamente.
Apenas quando já estava fumando o filtro do cigarro, sentiu uma mão tocar-lhe o ombro. Kalil não tinha a melhor das expressões no rosto. imaginava que não estivesse muito diferente.
— Ainda bem que você me deu um motivo pra sair também — disse o baterista com uma careta. — Aquilo foi uma merda.
não conseguiu fazer mais do que encará-lo, sem uma única expressão no rosto. Ainda em choque, aceitou o braço estendido do amigo, sem se importar onde largou os restos mortais do cigarro. Deixou que Kalil o conduzisse de volta para a mansão, sentindo a mão sobre seu ombro, ao confiar que a sua presença ali significava que o pior já tinha passado.
Os aplausos da multidão abafaram todo e qualquer pensamento de no mesmo instante em que atravessaram as portas. A sala parecia ainda mais cheia do que antes. Como se mais e mais pessoas não parassem de chegar. A mão de Kalil em seu ombro era a única coisa que parecia real enquanto abria caminho por entre a multidão. Sentia-se como um espectro, flutuando através dos corpos sem ao menos ser notado. Uma simples memória do amigo que se foi.
Quando olhou para o palco, o produtor já tinha o microfone novamente em mãos, dando sequência ao seu discurso com os olhos distantes. Como se procurasse alguém ao fundo.
— Ele não iria querer que o seu sonho acabasse. É pensando nisso que nós queremos continuar o seu legado e honrar a sua história. Para isso ser possível, nós precisamos encontrar reforços — a voz de Leto reverberou pelas paredes através dos alto-falantes.
O olhar do produtor encontrou o de com um brilho de reconhecimento. Por um curto momento de silêncio, os dois se encararam em uma conversa silenciosa. O vocalista podia jurar que no fundo, bem no fundo, o brilho não passava de lágrimas que ele lutava para segurar. E apesar de todo o ressentimento, mágoa e revolta envolvidos naquela troca de olhares, havia também compreensão. sentiu o peito apertar, mas engoliu o orgulho uma última vez antes de assentir para Leto em sinal de aceitação.
O produtor tomou um longo fôlego para proferir a sentença seguinte.
A sentença final.
— É com muito prazer, essa noite, que eu apresento a vocês a nova guitarrista da banda Disclaimer.
Foi quando ela subiu ao palco.
O queixo erguido. O olhar determinado. O belo par de pernas. O maldito sorriso debochado brincando nos lábios.
pareceu finalmente entender o que Leto disse em seu discurso sobre o amigo alguns minutos antes. Porque, de repente, ele soube. Ali, diante de todas aquelas pessoas, ela parecia a porra de uma estrela do rock.
!

Capítulo 4 - Cum on Feel the Noize


“So you think I got an evil mind
I'll tell you honey
I don't know why, I don't know why
So you think my singing's out of time
It makes me money
I don't know why, I don't know why anymore”
— Cum on Feel the Noize, Quiet Riot.

teve a impressão de que o som do nome dela fosse um feitiço quando se viu sendo instantaneamente atraído para o palco. Porque não poderia ser o rosto dela. Muito menos o corpo. Nem mesmo aquela personalidade. Ali, o nome dela não parecia uma maldição como em todos os outros momentos. A sua presença diabólica pela primeira vez parecia algo pelo qual valia a pena queimar.
abriu um sorriso sádico no momento em que os seus olhares se cruzaram, fazendo com que todos os pelos do corpo do vocalista se arrepiassem.
— É uma honra poder fazer parte disso — disse ela, quando pegou o microfone que Leto ofereceu entre seus dedos de unhas longas e afiadas, sua voz arrastada e provocante. — Vamos aproveitar essa festa mais baixos que um porão! Obrigada!
Com um sorriso viperino para a multidão, a nova guitarrista da banda Disclaimer simplesmente largou o microfone no chão sem se importar com o eco agudo da microfonia ao deixar o palco sem olhar para trás.
não tinha mais certeza se estava piscando.
— Você pode até não gostar dela — o vocalista ouviu o amigo dizer atrás de si. — Mas ela tem atitude.
nem ao menos respondeu. Estava sem palavras. Tudo o que conseguia fazer era encarar o palco agora vazio. Completamente atordoado pela constatação terrível sobre sua mais nova companheira de banda.
Uma estrela do rock. Assim como August era.
!
Uma voz estridente o despertou do transe.
precisou piscar algumas vezes antes de se virar e encontrar o semblante impaciente da namorada, que foi logo substituído por preocupação.
— Você está bem? — perguntou Margot, entrelaçando seus braços delicadamente.
— Eu… — ponderou, coçando a nuca. — Precisava respirar um pouco.
O vocalista ouviu uma risada baixa.
— Pulmões de fumante, Margot, sabe como é, né? — disse Kalil ao seu lado, dando um tapinha amigável no ombro do companheiro de banda.
não encontrou palavras para agradecer o amigo quando o encarou ainda um pouco atordoado. Talvez estivesse mesmo entorpecido pelo álcool e pelos cigarros. Ao menos torcia que fosse por isso.
O baterista o lançou um olhar cúmplice.
precisou respirar fundo antes de oferecer um sorriso à namorada.
— Onde paramos, amor?
— Na parte em que você me apresenta à minha nova amiga — respondeu Margot, piscando repetidamente em uma inocência dissimulada.
bufou.
— Não podemos ficar só nós dois essa noite? — arriscou ele, com um tom preguiçoso que normalmente seria capaz de convencê-la.
Ouviram Kalil engasgar-se ao lado deles. O vocalista não hesitou em dar uma cotovelada no amigo.
— Até parece! — Margot soltou uma risada irônica, brincado com os dedos sobre o braço firme do namorado. — É impossível ficarmos só nós dois nesses eventos e você sabe disso! A qualquer momento Leto vai aparecer querendo falar de trabalho, Doc nunca quer conversar, mais tarde Tony vai passar mal… Seria bom ter outra mulher como companhia de vez em quando…
revirou os olhos e se poupou de ter que responder alguma coisa, mal esperando que ela terminasse de falar para se colocar em movimento e arrastando-a com ele. Ouviram Kalil rir em seu encalço quando começaram a abrir caminho entre as pessoas. Margot precisou agarrar-se mais firmemente ao braço dele à medida que avançavam por entre a multidão que só parecia aumentar mais e mais.
Cada passo que tentava dar, sentia-se como um fã em seu próprio show, lutando contra pares e pares de braços e pernas que já começavam a suar aglomerados entre si. O que antes era só uma sensação se tornou um fato incontestável. A festa havia realmente ficado mais cheia e não parecia que iria parar por ali. Quem havia chamado todas aquelas pessoas? A informação que recebeu era que seria uma reunião mais privada apenas para tornar público o anúncio, não aquilo. O que era muito estranho, porque, se as coisas não tivessem mudado tanto do dia para noite, essa confusão poderia ser facilmente obra de Gus. Mas ele nunca mais poderia fazer isso de novo.
Quanto mais avançavam na multidão, mais o vocalista tinha a impressão de que entrava no olho de um furacão. Lutando para chegar ao ponto onde todas as outras pessoas também tentavam chegar. O centro de tudo. A atração principal. Só esse pensamento fazia o estômago de se revirar. Estava ficando irritado. Sentia o braço de Margot se apertar cada vez mais em volta do seu e não tinha mais certeza se Kalil teria sido capaz de acompanhá-los. As gotas de suor começavam a brotar em sua testa, enquanto o ar ficava cada vez mais denso, de modo que o vocalista precisou recitar um mantra mental para preservar o pouco de paciência que lhe restava. De onde teria saído tanto filho da puta?
Quando estava prestes a estourar com algum idiota que derrubou bebida em seu ombro ou até mesmo lhe deu alguma cotovelada, ele a viu, conversando despreocupadamente com o baixista da banda enquanto andava sem nenhuma dificuldade naquele lugar apertado. Como se todas as outras pessoas ali presentes abrissem caminho para ela movimentar-se livremente e a seguissem como alguma espécie de profeta profano. É claro que era certamente o centro de toda e qualquer desgraça.
soltou um xingamento e apertou mais a namorada contra o seu corpo, abrindo caminho entre as pessoas sem se importar em usar força bruta ou ao menos pedir licença.
Quando chegou perto o suficiente, agarrou a guitarrista pelo pulso, parando-a em um solavanco em meio ao movimento contínuo pela multidão, recebendo como resposta uma cara feia e um empurrão leve que quebrou o contato entre os dois. Ambos se encararam por um momento, como se avaliassem a ameaça que o outro representava.
— disse ele, seguido de um pigarro. — Essa é Margot.
A companheira de banda estreitou os olhos para ele e depois olhou para a mulher ao seu lado, os olhos brilhando divertidamente. O sorriso que surgiu em seus lábios era quase animalesco.
— Na verdade é — disse ela à modelo, espirituosamente.
— É um prazer finalmente te conhecer, — Margot sorriu, estendendo a mão em um cumprimento.
olhou a mão que a mulher oferecia e jogou a cabeça pra trás em uma gargalhada, antes de puxá-la para um abraço caloroso. O vocalista piscou os olhos desnorteado e não acreditou quando ouviu o som da risada da namorada.
falou tanto de você — disse a modelo, ao afastar o rosto, mas ainda sim encarar a outra com os braços entrelaçados.
Uma mentira deslavada.
se engasgou com a própria saliva, fazendo as mulheres o encararem desconfiadas.
— Tenho certeza que sim — rolou os olhos.
— Porra… — resmungou.
— Espera — disse a guitarrista com uma cara estranha. — Você é Margot como a modelo da Calvin Klein?
— Em carne e osso — a outra mulher deu um sorriso felino.
— Garota, eu mal te reconheci com toda essa roupa — exclamou, puxando a modelo para mais um abraço alvoroçado. — Você tem os melhores peitos!
— Obrigada? — Margot deu uma risadinha, abraçando-a se volta. — Eu acho.
Foi quando viu os olhos de se arregalarem e o seu rosto se iluminar em um sorriso sincero antes de soltar a modelo. Se o vocalista já não estava entendendo muita coisa, agora ele entendia menos ainda.
— Pete! — exclamou ela, com um sorriso no rosto, atravessando o grupo de amigos e correndo na direção contrária.
— E aí, ? — ouviram alguém gritar sobre o barulho das demais pessoas. — Festa maneira.
Os demais acompanharam a guitarrista com o olhar a tempo de vê-la jogar-se nos braços de um homem misterioso na multidão. Os braços tatuados dele envolveram a cintura da mulher possessivamente em um abraço carinhoso quando ele escondeu o rosto no pescoço dela, parecendo respirar fundo. Quando se afastaram minimamente, conseguiram ver um pouco mais do desconhecido, a cabeça raspada que mal disfarçava os riscos de tatuagens até ali, o cavanhaque desgrenhado e as roupas completamente pretas grandes demais para serem do seu tamanho.
tinha um namorado?
franziu o cenho, assistindo à interação inesperada. Viu o homem e a mulher conversarem entusiasmadamente, rirem alto e se tocarem ocasionalmente, como apenas pessoas que se conhecem bem permitem-se tocar um ao outro. O desconhecido passou um braço sobre o ombro da guitarrista e seguiu abraçado com ela, ainda conversando de perto, na direção do grupo que os observava em um silêncio curioso.
Ao se aproximar novamente, ofereceu aos outros uma expressão simpática que não fazia jus a pessoa que achavam que conheciam.
— Pessoal — disse ela, cantarolando. — Esse é-
— Massacre — o homem disse em cima dela, com um sorriso torto no qual não confiou nem um pouco.
deu uma risadinha ao seu lado, como se compartilhassem de uma piada interna da qual ninguém mais tinha conhecimento. O vocalista não gostou nada disso.
— Certo, esse é o Massacre — reelaborou ela, com uma expressão engraçada.
O grupo se entreolhou sem entender.
— Massacre? — perguntou Tony em um sussurro, para ninguém em especial. — Por que isso me parece um nome de…
A guitarrista riu de alguma coisa que o seu acompanhante disse, chamando novamente a atenção de todos quando se voltou para ele.
— Você trouxe o bagulho?
— Você sabe que eu sempre trago, gata — ele deu uma piscadela, acariciando o bolso da frente de seu colete preto. — Espero que não se importe, chamei uns conhecidos pra valer a viagem.
Então era por isso que a festa estava tão cheia?
fechou as mãos em punhos. Incrédulo que era sem noção ao ponto de vazar a localização de um evento tão sigiloso para uma pessoa daquelas. Um traficantezinho de meia tigela. Quem dirá de sua residência pessoal. Em poucos instantes, o vocalista já travava uma batalha interna contra o seu temperamento. Nada como mais uma noite tranquila para a banda Disclaimer...
Antes que pudesse resolver o seu dilema a resposta veio, mas não de sua boca.
— Claro que não, alguém tem que começar essa festa! — a mulher disse, dando palminhas de alegria.
Sem aviso prévio, a entrelaçou os dedos aos de Margot, puxando-a junto de si com mais um daqueles sorrisos que ela não parava de exibir durante aquela noite. sentiu seu maxilar trincar quando se viu obrigado a seguir sua ruína de braços dados com a sua garota festa à dentro.
— Vamos, amor, você vai amar o — ouviu a guitarrista dizer com uma risadinha — Massacre.
Amor.
podia jurar que revirara os olhos a ponto de estes saírem das órbitas.
Patética.
os levou para a sala de estar principal, parando em frente ao conjunto amplo de sofás persas ocupados por desconhecidos. Bastou apenas um olhar afiado da mais nova guitarrista da banda Disclaimer para que as pessoas ali reunidas se entreolhassem e parecessem decidir conjuntamente aproveitar as suas noites em outro lugar. A mulher virou-se para e os amigos que a acompanhavam com um sorriso vitorioso.
— Vamos ficar confortáveis? — propôs ela, com uma inocência dissimulada.
A guitarrista não esperou resposta jogando-se na ponta de um dos sofás com um sorriso satisfeito no rosto. respirou fundo antes de bufar e se antecipar para senta-se ao seu lado em um gesto violento de descontentamento. Enquanto os demais se acomodavam, o vocalista puxou a mulher pelo cotovelo com certa urgência.
— Você trouxe um traficante pra minha casa? — questionou ele em um sussurro incrédulo.
olhou-o de esguelha com um brilho divertido nos olhos.
— Parecia que vocês precisavam de um — disse ela, dando de ombros.
— Essa é uma festa privada — rebateu o vocalista, trincando o maxilar.
— Feita pra mim! — disse , com uma piscadela.
— Na minha casa — rosnou ele, intensificando o aperto no braço da mulher.
Ela olhou-o de cima a baixo, com um sorriso vicioso.
— Eu gosto quando deixam marcas — sussurrou , as palavras escorrendo de seus lábios como um doce veneno.
soltou-a de súbito, arrancando dela uma risada debochada.
— Fala sério! — a guitarrista disse entre uma risada e outra, enquanto ajeitava-se no sofá — Não é como se o contato de vocês não soubesse onde vocês moram.
soltou um estalo com a boca, recusando-se a olhar para ela.
— A menos que vocês não façam o próprio corre de vocês… — continuou ela, sugestivamente.
bufou.
— Meu Deus! — não conseguiu conter a gargalhada. — Vocês não fazem.
É isso. Ela não ia mais parar.
O vocalista afundou o corpo no sofá à medida que os demais amigos se encaixavam nos espaços livres, balançando seus corpos com o movimento das almofadas.
— Nós não precisamos nos expor… — sentiu como se tentasse explicar o óbvio a uma criança.
— Ah, mas quebrar a cara de fotógrafos e dirigir embriagado está tudo bem — a guitarrista riu bem-humorada, tirando do bolso de seus retalhos um cigarro e um isqueiro. — Quem é o coitado que tem que fazer isso pra vocês?
cruzou os braços emburrado, os seus olhos fuzilando a companheira de banda enquanto ela acendia o cigarro e dava os primeiros tragos.
— O roadie — ele resmungou.
— Você não sabe nem o nome dele! — gargalhou mais uma vez, agora chamando a atenção indesejada dos amigos que observavam a cena sem entender o que estava acontecendo.
— O nome dele é Larry — disse ele entredentes.
— Eu aposto que é — a guitarrista o lançou um sorriso travesso.
sentiu os dedos finos da namorada tamborilarem em sua perna e só então percebeu que ela tinha sentado ao seu lado. Notou que todos já tinham se acomodado, Kalil e Tony estavam do outro lado de Margot, enquanto o tal do traficante sentou-se sozinho na ponta do outro móvel, perto de .
Como uma grande família feliz.
— Eu posso emprestar o Massacre pra vocês qualquer dia desses se precisarem — comentou fazendo pouco caso da situação.
— O que vocês estão cochichando? — perguntou Margot inclinando-se sobre o namorado para olhar entre os dois.
A guitarrista deu a ela um sorriso inocente, que de inocente não tinha nada.
— Nada importante — disse dando de ombros.
— o estranho, Massacre, chamou a mulher, mas conseguiu a atenção de todos os demais. — O que vai ser? Hoje temos o verde, índica e sativa, quadrado, bala, pó, lean, key
franziu o cenho, pensativa.
Amor — disse ela, olhando para Margot. não pode deixar de bufar. — O que você vai querer?
— Margot não… — o vocalista tentou dizer.
— O que você recomendaria pra uma primeira vez? — perguntou Margot antes que ele pudesse terminar, batendo os cílios longos de forma angelical.
arregalou os olhos incrédulo, mas não disse nada. A guitarrista revezou o olhar entre os dois como se ponderasse.
— A gente pode dividir uma bala, mas você vai ter que maneirar no álcool e beber muita água — sugeriu ela, ignorando o homem ao seu lado.
— Tem certeza? — sussurrou ao pé do ouvido da namorada.
Margot sorriu maliciosamente.
— Por que não? — a modelo deu de ombros. — Vocês todos fazem isso e eu estou precisando espairecer.
remexeu desconfortavelmente no sofá, oferecendo apenas um suspiro ruidoso como resposta.
— Tudo bem, então — decidiu sorridente.
inclinou-se em direção à guitarrista, arrancando o sorriso daqueles lábios pecaminosos com uma lufada de ar em seu ouvido.
— Você vai ter que ficar de olho nela — o vocalista murmurou insatisfeito.
A mulher pareceu precisar de alguns instantes para recuperar a postura, mas logo a superioridade já tinha retomado às suas feições diabólicas.
— Eu não pretendia olhar pra nenhum outro lugar — respondeu ela provocativamente.
bufou, cruzando os braços ao afundar nas almofadas brancas. Inclinou o pescoço por trás do corpo da modelo encontrando o olhar atento e divertido do baterista que assistia tudo de camarote.
— Você topa um papel? — perguntou ao amigo, dando-se por vencido.
— Achei que nunca fosse perguntar — Kalil respondeu com um sorriso genuíno nos lábios.
Num gesto ensaiado, como o que apenas pessoas que convivem por muito tempo fazem, os dois lançaram um olhar interrogativo para Tony do outro lado do baterista.
— Eu vou com as garotas — disse La Rocha dando de ombros.
que estava atenta a tudo, antes mesmo que os demais pudessem se manifestar, virou-se para o traficante com um sorriso ladino no rosto.
— Por enquanto vão ser duas balas, dois quadrados e três gramas da Purple Haze e do Banana Kush.
Massacre confirmou com um aceno de cabeça, abrindo o colete que vestia e retirando o pedido dos bolsos internos da peça, entregando os produtos à guitarrista. Se entreolharam por um momento, a mulher com as pequenas mãos cheias da variedade de drogas e Massacre esperando por algo. O homem deu um pigarreou e deu uma cotovelada nada gentil no vocalista ao seu lado lançando-o um olhar impaciente. revirou os olhos com a situação e, à contragosto, retirou algumas notas de cem do bolso da calça para entregar ao vendedor.
Massacre sorriu satisfeito.
— Vou estar por aí, me chamem se precisarem de mais alguma coisa.
— Aproveite a festa! — disse a guitarrista em despedida.
fuzilou a mulher com o olhar, enquanto ela nem parecia notar ser objeto de sua fúria. entregou-o o ziplock com os papeizinhos coloridos cobertos de LSD, balançando a cabeça no ritmo da música que tocava no ambiente, totalmente alheia a qualquer sinal de descontentamento ao seu redor.
sentiu um empurrão leve em seu ombro e quando olhou para o lado, encontrou Kalil encarando-o com expectativa. respirou fundo, abrindo o saquinho de plástico rapidamente e colocando o quadrado na língua, para logo em seguida entregar o objeto para que o baterista fizesse o mesmo. Em poucos instantes o gosto azedo já começava a se espalhar por toda a sua boca.
inclinou-se sobre o corpo do vocalista para, mais uma vez, dirigir-se à namorada dele com olhos brilhantes. precisou se concentrar no gosto de merda que sentia para simplesmente não a jogar no chão.
— O que você gosta de beber? — perguntou a guitarrista.
— Margarita — respondeu Margot com uma timidez que ela não tinha.
A interação entre as duas mulheres ficava cada vez mais estranha e não sabia dizer o porquê.
virou o rosto para ele, encarando-o de perto demais. O vocalista pareceu congelar um momento pela proximidade, enquanto a mulher permanecia como sempre. Inabalável. — Você pode nos fazer o favor?
Nem ao menos notaram que ela o havia chamado pelo apelido.
piscou algumas vezes e estreitou os olhos para a mulher que estava praticamente em seu colo. Apesar disso, a namorada parecia não dar a mínima para a situação. Logo, a guitarrista o ofereceu um daqueles sorrisos arrogantes que ele tanto odiava, fazendo-o trincar os dentes enquanto não se decidia entre encarar o seu olhar ou a sua boca.
— Leve Kalil com você — continuou ela, indicando o baterista com a cabeça. — Ele não vai ligar de pegar um mojito pra mim, certo, K?
Tony riu alto, sendo rapidamente acompanhado por Margot no momento em que Casablanca levantou-se do sofá acatando o pedido. manteve o seu olhar mortífero na guitarrista, que precisou pressionar os lábios em linha para evitar rir junto, deixando-a com uma careta divertida no rosto enquanto retomava sua posição inicial para permitir os movimentos do vocalista.
— Vamos, , você não vai querer comprar essa briga — Kalil anunciou, puxando-o pelo ombro para que se levantasse. apenas resmungou, mantendo a boca fechada para preservar o amargor da droga em sua língua.
— E duas águas! — ouviram gritar enquanto se afastavam.
sentiu as mãos fecharem em punhos instantaneamente.
Mais uma vez cada passo que deram para dentro da multidão foi uma batalha. Tentar atravessar aquele mar de gente era como tentar se movimentar em areia movediça. Quando mais tentavam se mexer mais eles pareciam se afundar entre os corpos conhecidos e desconhecidos. sentiu a língua começar a ficar dormente e torceu para que o efeito da droga batesse logo sobre o seu corpo. Ansiava por parar de se sentir incomodado com todas aquelas pessoas, mas principalmente com aquela maldita guitarrista.
Quando alcançaram o bar, e Kalil ignoraram a fila de convidados, esgueirando-se para a entrada dos fundos para abordar os garçons. Pegaram bebidas que estavam sendo preparadas para outras pessoas antes de mais uma vez enfrentarem o tráfego interminável de convidados na festa.
Ao avistar os sofás brancos da sala principal, foi surpreendido pela cena de sua namorada e sua inimiga conversando alegremente como grandes amigas. Tudo bem, talvez não estivesse tão surpreso assim. Conhecia Margot bem o suficiente para reconhecer a sua habilidade de falar, falar e falar com qualquer pessoa sobre qualquer assunto. Era uma das coisas que mais admirava nela, mas naquele momento foi a coisa que mais odiou. Era claro que não perderia a oportunidade de atingi-lo de todas as formas possíveis. Que jeito melhor de fazer isso do que usar a sua namorada?
Não importava que Anthony estivesse ali com elas, rindo, gritando, gesticulando. Tudo o que podia ver eram Margot e . E ele via tudo vermelho.
Não perca a cabeça. Não perca a cabeça. Não perca a cabeça.
No mesmo instante, como se pudesse ouvir o mantra mental de , o rosto da guitarrista se virou em sua direção com um sorriso ardiloso.
— Muito obrigada, queridos! — exclamou ela de braços abertos.
pensou que questão de minutos seria capaz de ver o veneno fluorescente escorrendo no queixo da mulher sob a luz negra.
O vocalista segurou as bebidas em suas mãos com mais força e respirou fundo, determinado a não se deixar vencer por aquela figura satânica em seu sofá. deu um sorriso amarelo e deixou as bebidas de Margot na mesa de centro, antes de sentar-se ao lado do baixista e o mais longe possível dela.
Mas não o suficiente para deixar de ouvi-la.
— Ok — a voz de parecia atravessar toda e qualquer matéria para chegar direto em seus ouvidos. — Agora você vai tomar a metade do comprimido com a água sem deixar ele ficar na sua boca, porque o gosto é horrível.
A modelo fez uma careta.
— Se o gosto é horrível porque vocês continuam tomando?
— Você vai ver — disse com uma piscadela.
Margot não tirou tempo para pensar duas vezes. Pegou a sua metade do comprimido e a sua água, tomando a droga o mais rápido possível para que não perdesse a coragem. Não demorou nem um minuto para que ela soltasse um gemido sôfrego.
— Que gosto de merda!
— Eu avisei! — gargalhou — Agora toma a sua margarita pra tirar o gosto e quando você começar a sentir o efeito vai ser só água pra você.
— Quanto tempo demora pra bater? — perguntou Margot, curiosa.
— Uma meia hora.
— Nossa!
— Veja pelo lado bom — a guitarrista deu de ombros, indicando e Kalil com o olhar. — Os dois bobos tem que ficar com o gosto de merda na boca porque não podem engolir e o deles deve demorar cerca de uma hora.
A dupla de amigos mostrou as línguas para a modelo, exibindo os papéis quadrados que já perdiam a sua tonalidade original. Margot deu uma risadinha, cobrindo o rosto com as mãos.
— O que fazemos enquanto isso? — perguntou a modelo, animada.
— Eu gosto de fumar, mas eu diria pra você ir devagar.
— Eu não fumo.
— Posso te ensinar outro dia então — brincou com uma piscadela.
bufou impaciente, tomando uma cotovelada do baixista ao seu lado.
— Que ideia maravilhosa — resmungou ele, acariciando o braço onde foi atingido.
O vocalista viu a mulher deitar a cabeça sobre o ombro de Kalil, olhando-o com uma expressão pidona. Sykes vomitaria se isso não fosse desperdiçar a droga em seu sistema digestivo. Por isso, se limitou a apenas grunhir o seu descontentamento.
— Relaxa, cara — sussurrou Tony para que apenas ele pudesse ouvir.
— É fácil pra você falar — respondeu , seu tom de voz baixo. — Não é a sua namorada que está sendo aliciada debaixo do seu nariz.
Os ombros do baixista se mexeram para cima e para baixo em uma risada contida.
— Você só está se doendo porque ela conseguiu em minutos o que você tem tentado há meses.
O som de algo se quebrando à distância chamou a atenção dos amigos, fazendo trincar o maxilar com raiva.
— Você trouxe o kit, Kalil? — ouviram perguntar.
O baterista deu de ombros.
tem um na dispensa.
— Ele tem um em todo canto da casa, você quis dizer — Margot brincou, arrancando uma risada dos outros dois.
Desde quando Casablanca ria das coisas que a modelo falava?
fez o possível e o impossível para ignorar o pensamento.
— Pode pegar, por favor, K? — perguntou com os olhos brilhando.
Quando o baterista se levantou com um sorriso conquistador, se perguntou se teria algo que a mulher pediria que o amigo pudesse negar.
Com sorte, a dispensa onde o material de tabacaria estava não ficava muito longe dali. Mesmo que o vocalista tivesse omitido o fato de que realmente tinha um kit em todo canto da casa e que o mais próximo estava em uma escrivaninha ali perto. Kalil não foi capaz de demorar o suficiente para perturbar mesmo que minimante a paz de espírito da guitarrista.
Antes que pudessem sequer dar falta, lá estava ele novamente. Com um sorriso no rosto, um estojo preto em mãos e uma caixa grande debaixo do braço, deixando todos os demais com uma cara de interrogação.
se inclinou para olhar franzindo as sobrancelhas de uma forma engraçada.
— Talvez eu tenha te subestimado um pouco.
engoliu em seco, quase engasgando-se com o papel amargo no céu da sua boca.
— Isso não é meu — disse ele.
— Na verdade — Kalil interrompeu com um pigarro. — É um presente. De boas-vidas.
Você tá brincando — disseram e ao mesmo tempo. A guitarrista surpresa, enquanto o vocalista parecia inconformado.
Tony riu alto da cena.
— Cala a boca! — reclamou Kalil sem graça, entregando a caixa para a mulher sem mais cerimônias. — Só abre.
A guitarrista deu de ombros, contente, e não esperou mais um minuto sequer antes de abrir a caixa misteriosa, tirando de dentro dela um capacete de motoqueiro com a logo da banda e alguns adesivos que simulavam tatuagens no estilo blackwork. A expressão da mulher era um misto de gratidão e fascínio.
— Fala sério, Kalil! — foi tudo o que ela conseguiu dizer.
— É sério — respondeu ele sem graça. — Eu acho que falo por todo mundo quando digo que não queremos perder outro guitarrista.
— Nem todo mundo — o vocalista resmungou para ninguém em especial.
Anthony não foi discreto em dar um pisão no pé do amigo pelo comentário no mesmo momento em que a gargalhada da guitarrista preencheu o ambiente.
— Obrigada! — disse ela, segurando a mão do baterista, parecendo sincera em suas palavras.
Kalil deu de ombros, sentando-se do outro lado da mulher e abrindo o estojo com acessórios de tabacaria pronto para abandonar o tópico.
— O que está fazendo? — perguntou, mas o seu tom de voz estava mais para um alerta.
— O que parece que eu estou fazendo? — perguntou o baterista sem olhar para ela, pegando uma cuia e uma tesoura. — Eu vou bolar o baseado.
— Nada disso! — repreendeu a mulher, entregando o capacete para ele e tirando o material de suas mãos e colo. — Hoje é por conta da casa. Hoje nós vamos fumar um .
Kalil balançou a cabeça sorrindo.
Em poucos minutos, entre risadas e alguns comentários obscenos que fez questão de ignorar, bolou o baseado mais bem servido que ele não via em tempos. Como ela conseguiu fazer isso com unhas daquele tamanho ele não sabia. Mas ali estava, o blend perfeito de Purple Haze, Banana Kush e tabaco, pronto para ser degustado por aquele conjunto inusitado de amigos, não tão amigos assim.
Apesar de tudo, não se deu o luxo de negar o tal do . Não quando tudo o que ele precisava no momento era um baseado grande e gordo para acelerar e potencializar o efeito da droga que começava a manifestar os seus primeiros sinais em seu corpo.
O primeiro trago já foi capaz de deixar a sua pressão abaixo do porão da casa. No trago seguinte tudo se acalmou ao seu redor, todos os movimentos, todos os sons, todos os sentimentos. Por mais que ele quisesse, não estava enganada sobre o seu baseado. Uma única unidade foi capaz de deixá-lo chapado como uma porta, se é que isso fazia sentido.
A guitarrista não parou por aí, bolando outro e mais outro enquanto o grupo ainda fumava, conversando amenidades entre si. Ficaram ali até a metade do segundo baseado, mas logo a mulher arrastou Margot e Anthony para a pista de dança, deixando os outros dois para trás nos sofás com uma ponta e outro espécime ainda a fumar.
Não muito tempo depois, estava entorpecido. Sentia-se como se estivesse fora de seu próprio corpo, assistindo a tudo e a todos como um mero espectador. Bêbado até o último fio de cabelo e chapado em cada célula do seu corpo.
Mesmo assim, o olhar do vocalista o traía de tempos em tempos, encontrando-a na multidão. Mexendo-se nos ritmos mais variados das músicas que ali tocavam. As mãos esguias acariciando o próprio corpo com malícia. O olhar anuviado tão embriagado quanto do dele. A risada diabólica que parecia encontrar o próprio caminho para os seus ouvidos. Em alguns momentos parecia estar assistindo a um filme ou a um clipe de música, toda a ambientação, tudo o que ela fazia, parecia ser coreografado para a captura perfeita. Em outros ele podia ver a sua pele brilhante pelo suor, escorrendo e derretendo até formar uma poça disforme no chão da sala. Às vezes ele pensava vê-la pulsar, crescendo entre as outras pessoas como uma gigante. Independente da forma, lá estava ela em todos os lugares.
não soube dizer quanto tempo se passou. Em algum momento se viu encarando o produtor de pé à sua frente com um sorriso satisfeito no rosto.
— Crianças! — disse ele, contente demais para estar sóbrio como de costume. — Vejo que estão se dando bem.
— Melhor impossível — ironizou, mas sua voz já não tinha mais tanta acidez como horas antes.
Leto deu uma risada espirituosa, sentando-se ao lado do vocalista. pensou estar em um colchão d’água pela forma que sentiu o seu corpo ondular com o movimento do sofá.
— Você é justamente a pessoa com quem eu queria falar, — Leto deu um tapinha no ombro do vocalista, mas a sensação era de que a sua mão tivesse ficado por lá.
franziu o cenho, confuso.
me contou sobre a sua ideia brilhante.
se engasgou, desencadeando uma tosse, e quando olhou para sua mão viu que segurava um baseado. Estava fumando? Ele não soube dizer. Acabou por sacodir a cabeça na esperança de que isso clareasse os seus pensamentos e passou o beck para o baterista que estava deitado ao seu lado, olhando para o teto.
— Pode me lembrar de qual ideia foi essa? — perguntou com um vinco entre as sobrancelhas.
Leto riu como se a confusão do músico fosse a coisa mais divertida de todas. Como se não fosse um dos motivos da maioria das brigas entre eles.
— Sobre os covers escolhidos por cada integrante para substituir King For a Day nos shows restantes — explicou ele com um sorriso torto.
jurou que tinha arqueado as sobrancelhas em surpresa. Mas não tinha certeza, não conseguiu sentir a sensação que normalmente tinha quando o fazia.
— Ah, claro, essa ideia — disse o vocalista sem jeito.
— Fico feliz que estão começando a se ajeitar — o produtor disse com sinceridade. — Sei o que isso significa pra você e o quanto é difícil passar por tudo isso. Obrigado pelo esforço!
— Não se preocupe com isso, Leto — se viu falando, antes que pudesse se impedir. Merda. — Nós vamos dar um jeito.
— Tenho certeza de que vamos — o homem levantou-se com um sorriso.
— Um passo de cada vez — sorriu amarelo, amaldiçoando-se mentalmente.
Por que tinha dito aquelas coisas? Boca estúpida.
Por que tinha deixado que o produtor acreditasse na mentira da guitarrista? Mulher estúpida.
Por que não conseguia se controlar? Estúpido. Estúpido. Estúpido.
Quando se deu conta, mais uma vez naquela noite, já estava em movimento. Andando com facilidade entre os corpos suados e espremidos entre si, imperturbável pela simples magia das drogas. Costurou por entre as pessoas mais rápido do que se estivesse realmente tentando chegar a algum lugar e não no automático como realmente estava. Como se soubesse exatamente onde procurar, encontrou-a escorada no bar conversando com o traficante enquanto observava Margot dançar ali perto.
não respirou fundo. Não contou até dez. Não se preparou mentalmente. Apenas andou em sua direção puxando-a pelo braço sem pedir licença.
— Você disse a Leto que eu dei a ideia de fazermos um cover escolhido por cada membro da banda para substituir King For A Day nos shows? — ele foi direto.
— Foi uma excelente ideia, , nem acredito que você pensou em algo assim! — disse ela alegremente, apertando as bochechas do vocalista como se ele fosse uma criança.
— A ideia foi sua — cortou ele, arrancando as mãos dela de seu rosto com um movimento brusco. — Por que fez isso?
A guitarrista olhou-o de cima a baixo com um sorriso diabólico.
— Porque agora você não tem como dizer não — respondeu ela com uma expressão insolente no rosto.
bagunçou os cabelos, exasperado.
— Você é inacreditável!
A mulher riu, balançando o corpo no ritmo da música que começou a tocar.
— Você vai superar eventualmente... — disse ela, fazendo pouco caso.
O vocalista encarou-a com fúria. Os olhos cerrados. O maxilar trincado. Os dedos fechados em punhos já começavam a doer. Em um piscar de olhos o rosto da mulher começou a perder forma diante dos seus olhos, tornando-se apenas um borrão desconexo.
— Merda — murmurou ele, fechando os olhos com força.
Pensou ter ouvido dizer alguma coisa, mas não soube dizer o que era. De repente começou a se sentir distante...
— Não, não, nada disso — ele sentiu mãos esquias ampararem os seus braços. — Nada de bad por aqui.
— Eu não tô na bad, eu só... — não sabia para onde olhar, todo movimento parecia lento demais, pesado demais. — Você encheu a porra da minha casa de desconhecidos que estão cortando a minha vibe. Aparece em todos os lugares pra sugar a merda da minha onda. Você não cansa de ser uma pedra no caralho do meu sapato?
— Na verdade não — respondeu ela, ainda sustentando o corpo dele, algo na voz dela dizia ao vocalista que a mulher sorria. — Mas pra você não dizer que eu sou de tudo ruim, vou quebrar um galho pra você!
não entendeu o que ela quis dizer com isso, mas permitiu-se ser conduzido de volta para o bar, vendo a guitarrista trocar algumas palavras com Massacre que ele não se deu o trabalho de prestar atenção.
No minuto seguinte, o vocalista estava com uma nota de cem enrolada entre os dedos, encarando duas carreiras de um pó branco sobre a bancada. Olhou para cima e encontrou o olhar divertido de , estudando-o. Olhou para baixo e quase conseguiu ouvir a cocaína chamando o seu nome.
suspirou.
— Foda-se.
Em um único movimento inclinou o corpo sobre a bancada, usando o dinheiro como um canudo para inalar toda a droga de uma das fileiras pelo nariz em uma única inalação. Ouviu o coração bater em seus ouvidos acelerado. Viu as cores ficarem mais vibrantes. Sentiu a adrenalina percorrer por todo o seu corpo. E permitiu que um sorriso frouxo iluminasse o seu rosto instantaneamente, sem se importar com os olhos odiosos que tanto o observavam.
O vocalista procurou novamente com o olhar, encontrando-a a tempo de vê-la tomar o dinheiro de sua mão e repetir o seu gesto, cheirando o pó com uma expressão maliciosa no rosto. O prazer rapidamente dominou o corpo dela em uma onda de relaxamento que se manifestou visivelmente em todos os músculos do seu corpo, da mais simples ruga de expressão à tensão latente que constantemente deixava a postura da mulher ereta a todo momento. A euforia estampada em seu rosto para quem ousasse ver. Quando ela sorriu, sustentando o seu olhar, teve certeza que o diabo tinha decidido lhe fazer uma visita.


Continua...



Nota da autora: Perguntei pro meu docinho de coco qual seria minha nota da autora nessa att e a resposta foi: I’ll just keep on moanin’ and bitching. Para todas as Carpenters de plantão! E sinceramente, essa frase tá tão a cara do nosso pp, né? KK Brincadeiras a parte. Gente! Esse foi o capítulo mais rápido que eu já escrevi. Tudo bem que ele já tava quase completamente pré-escrito já que era para ser parte do capítulo 3 que acabou ficando grande demais. Mas já adianto que estou fazendo um speed run no meu cronograma de escrita pra conseguir trazer um capítulo de Disclaimer na atualização temática de Halloween, que pasmem é uma das minhas datas comemorativas favoritas. Dá um like no vídeo, se inscreve no canal e não esquece de ativar o sininho pra receber notificações sempre que sair um vídeo novo por aqui. Até já já! xXx Bleme.