Finalizada em: 25/05/2021
Music Video: Give Me Love - Ed Sheeran

1.

encarava a carta em suas mãos, avaliando a caligrafia que ela já havia decorado.
Há três meses, sua mãe a abandonara. Sumira por completo, deixando a garota de vinte e um anos sem dinheiro, sem rumo, sem família. perdera a casa um mês depois, já que grande parte do dinheiro de seu trabalho na lanchonete era convertido para pagar sua faculdade. Começara a viver no porão de uma conhecida que a deixara ficar ali, por pena. Mas tudo o que tinha era um colchão velho, um banheiro, um circulador e algumas ferramentas esquisitas deixadas pela mãe.
A comida escassa refletia na sua perda de peso, embora, pelo menos, não estivesse passando fome. Mas a situação ficava mais difícil a cada momento. Talvez tivesse que largar os estudos para trabalhar integralmente.
E tudo era culpa de sua mãe. Bom, também de seu pai porque, se ele não tivesse largado as duas antes mesmo de nascer, pelo menos a garota teria alguém ali com ela segurando a barra.
Mas a verdade é que ela estava completamente sozinha.
Encarou a carta de novo, relendo-a em busca de qualquer resposta que pudesse encontrar, mesmo sabendo que não encontraria nada ali, como sempre.
“Querida ,
Peço desculpas por deixá-la sozinha, mas entenda que não posso me desculpar por partir. Durante vinte e um anos, longos e cansativos, eu lutei contra o mundo por você. Segurei o peso de oferecer tanto amor para que você não o tivesse.
Porém eu simplesmente não consigo mais.
Não consigo mais. Tentei afastar esse peso de você, mas não consigo mais.
Não espero que me perdoe, mas sei que, infelizmente, você vai me entender.
E eu só posso pedir desculpas por você ser minha filha.
O jardim do amor que nunca acaba é vasto e cativante a princípio, porém é cansativo não poder florescer nele também.
Não me procure. Não irá me achar.
Joanne”

E aquilo era tudo. Sem um “eu te amo”. Apenas uma acusação implícita de não ter a amado.
É claro que ela a amava. Sua mãe era tudo para si. Cresceram dizendo tudo uma a outra.
Ou talvez não tudo, já que Joanne nunca havia dado qualquer indício de que iria fugir.
A carta continuava tão sem sentido quanto antes. E, antes que pudesse divagar mais, percebeu que estava atrasada para a aula. Respirou fundo e pegou a mochila já arrumada, com seu material e a roupa do trabalho para depois.

🏹💘


suspirou contente quando a aula terminou. Quando escolhera Literatura para cursar, esperava as leituras, estudar a história, interpretar, mas não imaginava como daria de tudo para não ler mais nenhum parágrafo sequer. Continuava empurrando aquela matéria como empurrava tudo o que estava acontecendo na sua vida.
— E para a próxima aula, não se esqueçam de ler a história de Eros e Psiquê, os poemas marcados na página 32 e os artigos que enviarei por email. — O professor anunciou, antes de pegar seu material e o copo de café e se retirar.
— Puxa, achei que ele nunca acabaria. — Martha, sua colega, comentou.
— Nem me fale. — respondeu, revirando os olhos. — Esse homem deve ser muito triste para nos passar tanto sofrimento em forma de dever assim.
— Ah, , você é uma figura. — Martha riu. — Jesper!
olhou para trás e percebeu que Jesper, o namorado de Martha, se aproximava. Naquele momento, sumiu para o casal, ela sabia. Os dois se olhavam como se fossem os únicos na sala e sorriam de forma aérea um para o outro.
— Vamos almoçar, Martha? — Jesper perguntou para a namorada, depositando um beijo em sua bochecha.
— É por isso que eu te amo, sabia? — Martha riu, então seu olhar voltou para , piscando confusa, como se não esperasse que ela ainda estivesse ali. — Você gostaria de vir com a gente?
— Ah, que isso, não se preocupem! Eu trouxe meu almoço. — disse, o que era apenas parte do motivo. Não gostaria de ser um grande castiçal para o casal.
— Se você diz… Qualquer coisa estaremos no restaurante daqui da frente.
— Valeu. — forçou-se a sorrir.
— Tchau, Edelweiss. — Jesper acenou, antes de sair de mãos dadas com Martha, fazendo-a rir de algo.
A garota suspirou, saindo da sala e indo até o refeitório, onde esquentou a comida do dia anterior e se sentou para apreciar esses momentos sozinha.
Afinal, pessoas com namorados nem podiam aproveitar esse tempo espetacular de ficar consigo mesmo. Era uma perda, não um ganho.
Mas por que mesmo assim ela se sentia solitária?

🏹💘


— Edelweiss, pedido na mesa 3! — Poppy, sua gerente, gritou.
Ajeitando o cabelo que insistia em se soltar do coque, saiu da cozinha e foi para o espaço aberto da lanchonete. Algumas mesas estavam cheias, um movimento razoável para uma terça à noite.
Procurou rapidamente a mesa de número três, que estava com um grupo grande de adolescentes reunidos. Falavam (ou melhor, gritavam) uns com os outros de tal forma que nem perceberam sua presença.
— Boa tarde, o que desejam?
Os jovens continuavam sem notá-la, ignorando se estavam sendo desrespeitosos. desviou o olhar e esperou ser notada.
— Moça, que que você tá fazendo aqui? — Uma garota que mascava um chiclete extremamente barulhento finalmente notou a presença de .
— Sou a garçonete. — forçou um sorriso e apontou para ser crachá.
— Ah. — O garoto loiro ao lado da menina do chiclete falou. — Que triste.
Então o grupo voltou a conversar e rir animadamente. Bufando, ela foi atender outra mesa, porém mal deu dois passos, quando o grupo a chamou de volta.
“Poderiam ter pedido antes”, pensou irritada, mas não estava em condição de reclamar, então só abriu um sorriso forçado e voltou.
De repente, o grupo já não estava mais tão falante, pois estavam divididos em casais, todos abraçados ou fazendo mais, sem nenhum decoro público. Quando chegou, novamente fora ignorada, mas não pela falação, e sim porque cada casal estava focado demais olhando seu respectivo parceiro.
— Ah, você voltou! — Uma menina de cabelos rosas comentou. — Vamos querer… O que a gente ia pedir mesmo?
A menina ao seu lado riu e depositou um beijo no canto da boca da outra.
— Íamos pedir milkshake, sua boba.
As duas riram uma para a outra, uma felicidade espontânea. Então uma delas se lembrou novamente da garçonete:
— Vamos querer… cinco milkshakes?
— Com dez canudos, por favor. — Outro garoto completou.
— Mais alguma coisa? — perguntou, mas o grupo já voltara a ignorá-la.
Ela se dirigiu até a cozinha e falou o pedido para sua colega, depois voltando ao caixa enquanto esperava o pedido ficar pronto.
Seus olhos relanceavam frequentemente aquele grupo tão jovem e apaixonado. Apesar de achar o grupo patético, de novo ela sentiu um vazio dentro de si.
Pensando melhor, gostava mais da lanchonete sem clientes.

🏹💘


se revirava de um lado para o outro, sem conseguir dormir. O vazio continuava em seu peito e cada vez que fechava os olhos, via aquelas pessoas juntas, felizes, unidas.
Amando.
“O jardim do amor que nunca acaba é vasto e cativante a princípio, porém é cansativo não poder florescer nele também.”

Os olhos de se abriram repentinamente. Sim, era exatamente assim que se sentia. Cansada de nunca se sentir assim. Porque, em toda a sua vida, nunca havia sido amada. Não de verdade. Achava que sim, mas sua mãe fora embora. Seu pai nunca estivera ali. Seus amigos se afastaram.
Seria culpa de ou das pessoas ao seu redor? Eram muitas repetições para botar a culpa nos outros.
Uma lágrima rolou do seu rosto antes que pudesse impedir. Desde que sua mãe se fora, um sentimento de vazio crescente se encontrava dentro dela. Tudo estava difícil demais. Talvez fosse melhor largar tudo de uma vez. Não valia a pena.
Ela não valia a pena.
Não bastasse isso, ainda tinha a maldita carta da mãe para atormentá-la todos os dias. Que peso era aquele que ela dizia agora ter passado para ? O de ser abandonada?
Antes que se desse conta, as lágrimas rolavam em seu rosto, agora sem conseguir controlar. Ela se sentia desolada, perdida e irritada.
Droga, tudo o que ela queria era ter tudo de volta ao normal. Antes, ela ao menos achava que era amada.
A verdade era essa. O que mais doía no seu peito é que queria viver o amor novamente.
“Mesmo se não for diretamente para si?”
Que pergunta estranha essa que surgira em sua cabeça de repente. Mas, agora, não conseguia esquecê-la. Gostaria de viver o amor mesmo que fosse indireto?
A única resposta desesperada que ali cabia era “sim”.
Imediatamente, ela sentiu um comichão nas costas. Tentou alcançar com as mãos, mas era difícil. O comichão se transformou em uma pontada cada vez mais incômoda. Irritada, tentava de toda forma se livrar daquela sensação horrível. Até que finalmente alcançou o que parecia ser o ponto de incômodo. Mexeu ali, mas ainda doía tanto…
Instintivamente, arranhou o local até que uma ferida se abriu. Então sentiu algo pontudo. Algo saindo de dentro das suas costas. E era aquilo que doía. Percebeu que, quando puxavam a dor era intensa, porém, quando mais para fora, maior era o alívio. Então respirou fundo e puxou de uma vez. Um grito de dor escapou da sua garganta. Ergueu a causa de sua dor e se espantou com o que via: uma pena alva.
Os comichões aumentaram e a dor se tornou mais aguda. se levantou, desnorteada, até encontrar o banheiro. Se apoiou sem fôlego na pia e se virou para ver suas costas. Retirou a regata para olhar melhor e percebeu que suas omoplatas estavam muito mais evidentes. Edelweiss percebeu diversos pontos brotando em suas costas e a dor imediata a deixou tonta. Seguindo o mesmo instinto incomum de antes, arranhou suas costas e puxou as penas o máximo que pode (penas essas que não paravam de sair). Em meio a tontura e a dor, não desistiu e abriu cada ponto de onde saía aquelas plumas brancas e macias que não carregavam uma mancha sequer de seu sangue. A beira de um desmaio, a garota sentiu a dor cessar e desabou de alívio e pavor.
Recuperando-se no chão, apoiou-se na pia e se levantou, encarando seu reflexo no espelho, surpresa com o que via. Mas, ao estender a mão para suas costas, soube que a reflexão estava correta.
tinha um par de asas de anjos.
Não, não de anjos. O mesmo instinto que a fez tirar cada uma daquelas penas também a fazia saber o que era.
Ela era o cupido.

2.

Três meses depois…
— Um pouco mais para a direita… — sussurrou para si mesma. — Um pouco mais… pronto.
A flecha foi disparada, acertando em cheio o peito de uma menina apoiada na parede. Apesar de o túnel estar escuro, sabia que seu alvo estava vivenciando algo parecido com borboletas no estômago nesse momento. Era sempre assim. As flechadas no geral se seguiam por beijos intensos.
Não que ela já houvesse sentido aquilo para saber, pensou, enquanto dava meia volta, com o trabalho cumprido. Mas era uma das muitas esquisitices que sentia agora que era cupido. Ganhara um tipo de sexto sentido que a informava quem era seu próximo alvo e onde estaria. Também era por meio dessa intuição que sabia, com certeza, embora não soubesse como, que ninguém conseguia ver suas asas e suas flechas. E que, ao serem atingidas, as pessoas não sentiam dor e sim felicidade.
estava realmente vivendo o amor pelos outros.
No entanto, seu sexto sentido também a revelava que sua mãe havia sido cupido antes dela e que, se agora a tarefa estava com ela, era porque sua mãe não estava mais naquele mundo.
Aquilo a machucou de verdade quando se deu conta, embora um alívio egoísta tenha preenchido seu peito: não havia sido a causa da fuga da sua mãe. Aquilo tudo deveria doer ainda, mas, na verdade, a deixava apenas curiosa e apreensiva. Afinal, sua mãe preferira morrer a continuar aquele trabalho.
“O jardim do amor que nunca acaba é vasto e cativante a princípio, porém é cansativo não poder florescer nele também.”
Claro que às vezes se pegava pensando por que não podia ter alguém que a amasse também, mas ela sabia que era contra as regras. A flecha não funcionaria com ninguém se fosse direcionada a gerar amor por . Então, ela tinha que viver com o que havia aceitado até morrer e um descendente seu ficar com a sina. Não necessariamente um filho, mas qualquer parente distante.
Seu sobrenome significava “amor eterno”. Era tudo o que ela podia proporcionar para os outros, mas não para si. E, por enquanto, isso ao menos ajudava um pouco com o vazio dentro do peito. Lhe oferecia um propósito. Não era mais a garota sem ninguém. Era aquela que ajudava a todos.
Descobrira ao menos para que serviam as ferramentas que sua mãe lhe deixara. Observava com certo carinho as flechas que ela mesma havia feito, usando madeira e suas próprias penas. Às vezes, imaginava quantas vezes a própria mãe poderia ter feito aquelas mesmas coisa. Nesses momentos, ela gostaria de ter a mãe viva para lhe contar algumas coisas.
Mas nada disso traria a mãe de volta, então ela tentava focar apenas no seu trabalho.
Estava vagando pelas ruas desertas, quando sentiu seu sexto sentido ser ativado. Diversas vezes.
Geralmente isso só podia significar uma coisa: festa.

🏹💘


A música alta tocava despercebida para assim como ela passava despercebida pelas pessoas. Se antes já era tida como invisível para os olhos de todos, agora ninguém realmente a notava, algo relacionado ao poder de cupido. Tinha quase certeza de que a conhecida que lhe abrigava nem se lembrava de que estava vivendo no seu porão. Tudo bem. Gostava mais do silêncio e da privacidade. Algo completamente oposto do cenário daquela confusão. Pelo menos, ela estava gostando da atmosfera misteriosa daquele local subterrâneo abandonado e suas luzes azuladas. A proximidade e distração das pessoas também facilitavam tudo. Não precisava de seu arco, apenas das flechas e suas próprias mãos.
Dançava pelo local enquanto as flechas guiavam suas mãos para os próximos apaixonados. Era mágico assistir a flecha se afundando no corpo de alguém e então virando fumaça. No instante seguinte, a paixão já era visível entre os alvos.
Não era exatamente um trabalho. Era automático. Vagar por aí, deixando a sua intuição a levar, ver as flechas virando fumaça, seguida por demonstrações intensas dos apaixonados. Um após o outro.
Depois de usar vinte de suas flechas e sentir sua intuição se acalmar, percebeu que seu trabalho ali estava feito. Agora, bastava voltar para casa e fazer mais flechas, tantas quanto pudesse. Pelo menos, como estava de férias, não tinha aulas pela manhã. Poderia matar o trabalho. Poppy não sentiria falta dela. Ficaria com suas flechas. Ali ela era útil.
Desvencilhando-se das pessoas, quase alcançou o lado de fora, porém, por azar, sentiu algo gelado correr por toda a sua blusa.
— Caralho! — xingou, sem acreditar no que estava acontecendo ao ver uma mancha escura. Aquela era sua melhor blusa e não podia se dar ao luxo de comprar nada novo. Tinha que torcer para que a mancha não ficasse tão aparente.
— Desculpa, moça. Permita que eu te ajude, por favor. — ouviu uma voz grossa e levantou os olhos em direção ao causador do seu azar.
Ou talvez fosse muita, muita sorte.
O homem que a encarav aparecia alguns anos mais velho, com músculos definidos marcados pela camiseta branca e alguns centímetros mais alto que ela. Mas, não bastasse seu corpo espetacular, o rosto do homem havia tirado do eixo. Nunca vira um homem tão bonito assim como ele.
— Então, posso te ajudar de alguma forma? — Ele repetiu.
— Ahn… — se sentia uma abestalhada. Não, precisava manter o foco. Aquele homem havia destruído sua blusa favorita. — Não sei. Conhece alguma mágica para retirar manchas?
O homem sorriu torto e a garota se sentiu tonta. Por Deus, era só um cara! Ela tinha que parar de agir assim. Mas não era exatamente sua culpa, todos os caras que ela conhecia nem sequer a olhavam na cara agora. Passara tanto tempo sendo invisível que esqueceu como era bom ser notada. Seu coração se acelerou, abobalhado.
— Desculpa pela mancha… Posso compensar comprando uma nova blusa?
“Não só pode, como deve!”, era o que deveria ter respondido, mas aquela beleza parecia estar afetando o oxigênio de seu cérebro, fazendo-a responder:
— Não esquenta… Eu também estraguei sua bebida. — A garota sorriu torto.
— Bom, não sei por você, mas, por mim, até que valeu a pena. — Ele respondeu, os dentes formando um sorriso fantástico. — A propósito, sou . .
. Edelweiss.
— Aceita uma bebida?
Um cara como ele queria oferecer uma bebida para alguém como ela? Algo parecia errado, mas bom demais também.
— Claro. — O sorriso bobo não saía de seu rosto. — Bom… só preciso de uma ajuda aqui. — Ela apontou para a própria blusa.
— Opa, deixa comigo. — tirou o próprio casaco rapidamente, passando pelos ombros de . Ele não sabia, mas também estava cobrindo suas asas. Aquele havia sido o gesto mais gentil que recebera em meses e aquilo a fez lembrar de todo aquele vazio que ela tentava ignorar. — Desculpa não ter pensado nisso antes. — Ele completou.
Enquanto caminhavam para o bar, ela só pensava em como não se lembrava da última vez que alguém tinha se interessado por ela. Antes de qualquer história de cupido, do sumiço de sua mãe… Havia mais de seis meses que não conseguia se permitir viver nada romântico, não tinha sequer energia para isso, e parecia que todos pensavam o mesmo sobre ela.
Até aquele momento.
— O que você vai querer? — Ele perguntou.
A garota viu as diversas bebidas e comidas diante de si e a realidade caiu sobre ela de novo. Como pagaria por tudo aquilo?
— Eu… tô de boa. Pede algo você. — Ela desconversou., envergonhada.
deve ter notado o constrangimento em seu rosto, porque ele logo emendou:
— Por favor, peça o que quiser. É por minha conta.
“Peça o que quiser”. Desde quando não tinha o luxo de pedir o que queria? Um sentimento crescia em seu peito, algo que havia muito tempo ela não conseguia experimentar. Foi no som de sua leve risada que ela se lembrou como era sentir aquilo: felicidade. Bom, ele havia estragado sua blusa, ela merecia algo assim, certo? Talvez ele estivesse até tentando compensá-la.
— Já que você insiste… Eu vou querer um pouco de whisky. E uma porção de batata frita.
— Espero que eu não me arrependa disso. — falou, embora, em cada sílaba pronunciada por ele, avavia que não havia nada sequer parecido com arrependimento.
As conversas vieram, aquecendo o coração de assim como o álcool aquecia seu corpo. Era fácil falar com ele, se lembrar de uma história boba de sua infância e contá-la com muito drama, ao que ele respondia empolgado. No início, tivera suas reservas e se embolara por não ter o hábito de conversar com os outros há tanto tempo. Mas aquilo fazia bem para ela. Estar com era o oposto de sentir o vazio. tinha rido naquela noite o que não ria há muito, muito tempo.
— Edelweiss… — falou, em um tom um pouco mais baixo e um pouco mais sério que a arrepiou completamente.
. — Ela o corrigiu. — Me chame de .
… — Ele disse e o nome dela em sua boca parecia muito mais bonito do que realmente era. — Eu quero beijá-la.
A garota respirou fundo, na expectativa. Aquilo parecia mentira. Parecia algo tão diferente do que ela estava vivendo nos últimos tempos. Um sonho irreal. Mas, mesmo assim, ela também queria beijá-lo. Na verdade, era algo ainda mais forte, como se precisasse beijá-lo.
E, por isso, sem esperar que ele tomasse a iniciativa, ela selou os lábios de no dela.
ficou sem fôlego com aquele mínimo contato. Seus lábios estavam úmidos e doces por conta da bebida, mas havia algo mais. Algo único dele que despertava uma fome dentro de si.
não a decepcionou correspondendo ao beijo. Suas mãos a seguravam firme, uma em sua nuca e outra apertando sua cintura, enquanto a puxava mais perto para aprofundar o beijo. se sentia novamente uma garota inexperiente, ainda mais que fazia tanto tempo que não beijava ninguém. Mas, se ele estava decepcionado, não demonstravam. Pelo contrário, tomava sua boca com tanta vontade que ela se sentia a mulher mais desejada do país.
A boca do homem era tão maravilhosa quanto os beijos que ele depositava em seu pescoço, fazendo-a suspirar e inclinar a cabeça para o lado, deixando ainda mais espaço para que ele explorasse. Em resposta, os beijos de se arriscavam cada vez mais na pele macia, alcançando o decote da garota.
O calor crescia cada vez mais entre suas pernas e ela arquejou, surpresa e satisfeita, ao perceber o volume nas calças dele. Em compensação, ele sorriu e mordeu o lóbulo da sua orelha, antes de voltar para o seu decote. Eram tantas emoções, tanta euforia. estava tonta de prazer e tudo o que ela queria era mais de .
Porém, naquele momento, sua cabeça explodiu com uma dor muito forte. Afastou-se rapidamente de , procurando se equilibrar nas paredes.
— Ei, você está bem? — perguntou, preocupado.
Não, ela não estava. Mas não por causa do beijo. O beijo era maravilhoso e tudo o que ela mais desejava naquele momento. Mas aquela dor… não era natural. Pelo seu sexto sentido, ela soube que era algo dentro daquela história maluca de cupido. Algo que tentava tirá-la de qualquer experiência de amor.
E, por mais que ela não quisesse, tinha que parar. Afinal, não tinha controle sobre aquilo. Quanto mais tentava se aproximar dele, mais a dor aumentava>. Sua garganta se apertou e ela sentiu uma angústia crescente dentro de si.
— Eu… tenho que ir. — Ela disse, simplesmente, antes de se esgueirar pela multidão.
! — Foi a última coisa que ela ouviu, abafado pela música do local.
Ela deveria estar chorando. Deveria estar frustrada. Mas tudo o que fazia era correr, sentindo o cheiro de no casaco que ficara com ela. “Pelo menos, uma lembrança” pensou, enquanto corria automaticamente.
Quando alcançou o porão, trancou-se dentro do que era seu lar e jogou-se no colchão. Então, gritou.
Ela não tinha casa, ela não tinha comida, ela não tinha dinheiro. Não tinha mãe e nem família nenhuma. Há tempos que também não tinha amigos. Não tinha nada nem ninguém. Só tinha a si mesma.
E uma maldição.
Gritou ainda mais alto, socando o colchão e derrubando uma das ferramentas que usava para construir suas flechas. Percebeu, em cima da mesa, que esquecera uma delas em casa. Quase quis rir. Talvez, se a tivesse levado, não teria esbarrado com . E, então, talvez não tivesse provado como era se sentir humana. E desejada.
O vazio voltou com mais força do que em qualquer outro momento que ela o houvesse sentido. Era péssimo conviver com aquilo todos os dias, mas a garota arranjava um jeito de se enganar, se distrair, fingir que não se sentia assim todos os dias.
Mas aquele momento com ... fez com que ela sentisse tudo o que ela nunca poderia ter, tudo o que ela sempre estaria perdendo, o que nunca estaria vivendo. Ela provara daquilo, provara o que era realmente sentir o vazio diminuir e abrir espaço para outros sentimentos, e agora o vazio se tornara mil vezes mais insuportáveis. Seus gritos se mesclavam com lágrimas a esse ponto.
Ela pegou a maldita flecha nas mãos. Ainda vestia o casaco dele, que escondia suas asas. Ainda sentia o cheiro dele. Ainda percebia o gosto dele na sua boca. Mas nunca, nunca o teria.
“O jardim do amor que nunca acaba é vasto e cativante a princípio, porém é cansativo não poder florescer nele também.”
finalmente entendia a mãe. Entendia a dor de ver tudo, mas não sentir nada. Estava cansada de só observar. Queria florescer junto. Provara a paixão e agora ela a queria para si, não mais para os outros. Os outros tinham demais. Ela? Não tinha nada.
Tentou se iludir de que tinha aquele maldito trabalho de cupido. Mas aquilo era uma desculpa para fingir que ela era importante. A verdade era outra. Ela se sentia tão insignificante quanto há seis meses. Aquilo também era uma merda, ela nunca pedira aquilo. Nunca pediu para ser uma Edelweiss.
Tudo o que ela pedia era sentir alguma coisa que não fosse aquele vazio terrível.
Ela nunca poderia flechar ninguém com a intenção de fazer uma pessoa se apaixonar por ela. Mas não tinha nada que impedisse que ela fosse o alvo.
Por isso, não foi difícil espetar o próprio pescoço com a flecha.
Mas, ao invés de desaparecer em fumaça, a flecha a perfurou e fez se engasgar com o próprio sangue.

3.

Uma noite de folga. Tudo o que havia pedido, uma única noite de folga. Uma noite para beber, esquecer do trabalho, fazer alguma besteira que fosse.
E ele estava conseguindo. … Só de lembrar do gosto da boca dela na sua… Tudo havia sido perfeito, exatamente o que ele queria e precisava. Mas ele a havia assustado. Teria ido rápido demais? Poderia ter a desagradado?
Não teve nem sequer tempo de se lamentar porque a delegacia o ligara sobre uma emergência a três ruas dali. Ele só teve tempo de colocar o uniforme e o distintivo antes de partir.
Agora, estava do lado de fora de uma casa acompanhado pelo barulho de sirenes. Não exatamente como esperava que fosse o seu fim de noite.
— Delegado . — Um homem alto e carrancudo o cumprimentou.
— Sargento Harts. — cumprimentou de volta. — Alguma testemunha?
— Apenas a moradora da casa que acionou a polícia. Parece que ela abrigava uma jovem sem dinheiro no seu porão. A mulher afirmou que escutou gritos vindo de lá e, quando abriu a porta, a garota estava no chão, com a garganta sangrando, uma flecha enfiada no pescoço.
— Uma… flecha? — indagou, cético. — Certo. Digitais?
— Jordan está analisando, mas ainda estamos receosos de mexer no corpo. Os paramédicos estão a analisando. Devem levar para a autópsia, mas…
— O que foi?
— Parece um caso de suicídio. A jovem não tinha dinheiro, família e nem amigos pelo que disse a moradora da casa.
— Deixe-me ver. — insistiu. Harts saiu de sua frente, abrindo-lhe o caminho.
passou por baixo da fita de isolamento e seguiu em frente, vendo alguns colegas em seu caminho. As sirenes já haviam se tornado um barulho ambiente.
Viu a pequena entrada para o porão e desceu, encontrando uma moradia muito precária. Talvez Harts estivesse certo. Talvez tivesse sido um caso de suicídio.
O corpo estava oculto por Jordan, o responsável por colher digitais, e uma legista. Curioso com toda aquela história da flecha, os contornou para analisar o cadáver.
E sentiu a pressão cair rapidamente, a visão ficar turva e o peito apertar. Em todos os seus anos trabalhando, nunca havia ficado tão desestabilizado por uma cena de crime.
Mas o que se esperaria, quando ele estava frente a frente com , a garota que ele havia visto ainda viva há apenas uma hora? Não só visto, como havia a beijado, abraçado, escutado sua risada. Agora o seu sangue manchava os lençóis alvos do colchão. Ela ainda usava seu casaco e ele não conseguia pensar em uma cena mais triste para encerrar aquela noite. Aquela garota pálida e fraca… Por isso ela fugira? Ele estivera entre ela e sua tentativa de tirar a própria vida?
Se ele soubesse antes, teria a impedido de fugir?
Aquilo era perturbador demais. Nem conseguia imaginar tudo o que ela podia ter passado para chegar nesse ponto.
virou-se, confuso de como investigaria tudo aquilo devido ao seu estado abalado. Não havia nada mais que pudesse fazer para salvá-la.
Em uma noite, havia ganhado e perdido uma pessoa incrível.
No entanto, o que ele e nem mais ninguém viu foi o momento em que aquela flecha mágica, ou talvez amaldiçoada, se transformou em fumaça. Com ela, o sangue se foi, a ferida foi curada e os olhos da garota se abriram.
estava confusa. Apenas se lembrava da flecha e de nada mais. Sua cabeça doía, assim como todo o seu corpo. Sua audição estava abafada e sua visão completamente embaçada.
No momento que sua visão entrou em foco, contudo, um rosto muito bonito e angustiado estava abaixado perto do seu, com um uniforme azul e um distintivo brilhante. Seus lábios formavam uma palavra que ela não conseguia escutar, mas podia ler: “”. Seu cheiro era o mesmo que o casaco ao seu redor.
E, de repente, o seu mundo virou de cabeça para baixo. Ela perdeu o fôlego, sua barriga se encheu de borboletas e seu coração acelerou, pensando apenas em uma coisa: . Abraçar . Beijar . Conversar com . Estar com .
, , .
— Então… É assim que eles se sentem? — Ela sussurrou, pensando em cada pessoa que ela fora responsável por flechar, antes de desmaiar.
Porque ela só sabia de uma coisa: estava apaixonada.

Epílogo

segurava uma pluma branca entre suas mãos e então olhava para o espelho em uma tentativa de ver as próprias costas, mas ela sabia a verdade. Não restava mais nada ali.
“Acabou”.
Um sorriso de alívio brotou no rosto de . Desde quando flechara a si própria e quase morrera pelos efeitos retardados da flecha, a garota perdera seus poderes. Não conseguia mais construir nenhuma flecha, não tinha um sexto sentido que a diria onde estava o próximo alvo, mas, por algum motivo estranho, as suas asas permaneceram.
Fracas, sem funcionar, dia após dia diminuindo, suas penas caindo. E, por fim, a última delas.
Ela não tinha certeza se o fim da maldição se aplicava somente a ela ou a todos os seus descendentes. Não gostava de pensar muito nisso, ficava ansiosa com o qual ainda nem precisava se preocupar. Mas, a verdade é que tinha medo de ser a causadora de sofrimento para qualquer futuro filho ou neto seu.
Às vezes, ela pensava que gostaria de ter sabido que a solução era essa antes. Poderia ter salvado a própria mãe.
não se ressentia mais pelas atitudes de Joanne. Entendia, profundamente, como aquele poder podia ser enlouquecedor e machucar de formas impensáveis. Agora, ela só desejava que, se houvesse um depois, que a mãe tivesse finalmente encontrado paz.
Já ela mesma não sabia se iria se recuperar totalmente daquela experiência. Mesmo que a flecha não tenha a matado, ela ainda possuía uma pequena cicatriz no pescoço. E se lembrava dos policiais que a encaravam, sem entender como acontecera aquela “ressuscitação”. Foi difícil quando as notícias saíram e contaram para todos sobre a “mulher zumbi”. Ela já tinha feridas demais para lidar e não precisava de mais nenhuma.
Mas cuidou de tudo para mantê-la protegida. Da polícia, da imprensa, do mundo, até que ela estivesse preparada para voltar a esse mundo também.
E, quando ela voltou, foi que insistiu que ela não desistisse dos seus estudos e providenciou um local melhor para que ela vivesse. Suas conquistas eram apenas suas, mas ela sabia que, com aquele apoio, tudo se tornara muito mais fácil.
Não foi surpresa para ninguém quando os dois passaram a morar juntos. Claro que muitos comentaram, ainda mais sabendo que ele estivera envolvido no caso de “morte” de . Mas ela não se importava. Não mais.
Ela finalmente entendeu que o amor não podia torná-la completa, como ela tanto ansiava nos momentos em que não tivera nada em sua vida. nunca preencheu aquele vazio. Ele podia a fazer se esquecer da dor, mas a dor permanecia. Não, ela mesma teve que lidar com o vazio e fechá-lo, com muito apoio psicológico e muita luta. Às vezes, ela ainda o sentia lá, mas agora tinha forças para enfrentá-lo.
Não, o amor não preenchia, nem completava. O amor transbordava. teve que aprender a ser feliz sozinha para ser ainda mais feliz com . Ele apenas intensificava o que ela podia sentir sozinha.
levou um susto quando sentiu um beijo em sua bochecha.
— Sabia que eu amo essa sua expressão pensativa? Te deixa ainda mais gata. — A voz de tão próxima do ouvido dela gerou um arrepio no pescoço da garota. Ela nunca iria se acostumar com aquilo.
— Você fala isso de todas as minhas expressões. — rebateu, constrangida, sem saber como reagir aos elogios dele. Ela nunca sabia.
— E é sempre verdade. — disse, deixando mais um beijo em sua bochecha. — O pessoal já tá esperando a gente no restaurante, vamos?
— Claro, deixa eu só pegar meu casaco. — Ela disse, se levantando. Os amigos de os chamaram para sair naquele dia. Ela gostava. Ousava dizer que alguns já eram seus amigos também.
— O que é isso? — disse, a mão esbarrando de leve na sua, enquanto segurava a pluma alva em suas mãos.
Um arrepio subiu pela espinha de . Aquela pena era tanta coisa. Era a resposta para toda a história misteriosa de . O motivo de ela ter fugido do beijo de . O porquê de sua mãe ter a abandonado. Por três meses, aquilo tinha sido ela mesma.
Contudo, não mais.
— Não é nada.
E, sem nenhum arrependimento, soprou a pena pela janela, que desapareceu carregada pelo vento.


FIM.



Nota da autora:Olá, fanfiqueiras! Quem aí também infartou e reviveu com esse final? Porque eu me senti assim escrevendo! Essa foi uma história que estava muito clara na minha cabeça, mas que foi difícil de tirar dos pensamentos e botar no papel (ou melhor, no computador). Apesar de tudo, estou feliz com o resultado, mesmo sendo uma história bem rapidinha (e com um gosto de quero mais, mas não ousem me tentar hein?).
Espero que tenham gostado de ler tanto quanto eu gostei de escrever. Queria agradecer a Ju que me inspirou MUITO e ainda fez uma capa de motivação para mim (que virou uma OBRA DE ARTE), agradecer a Di por todas as diquinhas e incentivos, gente, o tanto que eu admiro essa mulher! Agradecer a Thaís que sempre tem os melhores surtos. Enfim, um squad é um squad. Pati e Lu, vocês são tudo! Não tenho nem palavras pra agradecer pelos surtos e incentivos (e me fazerem escrever um epílogo que nem ia existir KKKKK).
Não esqueçam de comentar o que acharam e me sigam no instagram para saber mais das minhas outras histórias e das minhas atualizações. Obrigada por terem tirado seu tempo para ler e por chegarem até aqui!
Beijos!





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