Finalizada em: 28/05/2021
Music Video: LMM - MAMAMOO

Capítulo Único

Aviso: Nenhum fato citado aqui é o retrato da realidade. De fatos reais apenas a base foi utilizada como inspiração. Com esta história a autora não tem o objetivo de ferir nenhuma religião ou ofender alguma crença. A compreensão é livre.

Como se o mundo tivesse acabado
O Sol está caindo
Na escuridão por muito tempo
Vamos ser jogados fora
LMM — Hwa As


Podia sentir uma leveza em seu corpo que a tempos não sentia, o que parecia estranho, pois aquele peso não era o seu. Parecia que era feita de pena — o que no sentido literal, não tinha tanta noção real de como era. Mas era assim que estava se sentindo, tendo receio de abrir os olhos e não encontrar algo agradável para sua situação. Inclusive, a última coisa da qual se lembrava era de estar dentro do elevador do prédio administrativo da grande Eulora&Co, seu trabalho.
O seu trabalho.
Mesmo contra sua vontade tinha que abrir os olhos. Havia sido transferida de volta para o polo de Seul, a matriz da multinacional, não tinha nem duas semanas. Tinha que se levantar daquela cama e criar coragem para ir trabalhar, muitas coisas dependiam do seu aceite e não queria perturbar a paz da sua chefe, que geraria aquele efeito dominó até chegar na CEO da companhia que tanto gostava dela.
Voltar para Seul, a cidade em que nasceu e viveu por pouco tempo, era muito gratificante. Exceto pela parte da mudança, mesmo que estivesse se esforçando nos intervalos de seu home office para organizar todas as caixas no apartamento minúsculo que conseguiram encontrar perto da empresa dela.
E como ela tinha sorte por ter alguém como ele. Dentre todas as qualidades e defeitos, deixava que seu companheirismo sobressaísse no relacionamento dos dois que já durava mais de dez anos. Ela com toda certeza do mundo casaria com ele sem pestanejar.
Pensando nele, em todos os momentos que estava e era feliz ao lado dele, sentiu o corpo pesar novamente, como se fizesse o efeito de um ímã, a puxando para fora de onde estava. Mas não sabia onde estava. Ela precisava abrir os olhos. E tamanha fora sua surpresa e confusão mental ao o fazer. Seus olhos miravam o céu mais limpo e azul que já havia tido a oportunidade de ver em sua vida inteira. Era lindo, mas percebeu que a sensação melancólica a estava puxando para um tipo de realidade que ela mesmo não compreendia.
O que estava acontecendo? Como foi parar ali?
Observou à sua volta o espaço vazio. Não, não era um espaço, era uma propriedade com árvores e, agora, ela sentia estar deitada em uma grama fofa. Embora a sensação do mato estar tocando em seu corpo fosse diferente do que já conhecia, não gerava bem um sentimento — e talvez nem ela conseguisse explicar direito. E novamente ela teve medo de analisar cada ponto do que estava acontecendo ali para encontrar, com racionalidade, explicações. Preferia achar que pela primeira vez havia perdido o senso de sono e seu despertador estava tocando estridentemente, enquanto dormia pesado abraçada em .
— Você finalmente acordou!
O susto que levou a fez estranhar. Em uma situação normal, ao ver aquele rosto aparecendo em seu campo de visão, tampando sua vista do céu azul, se assustaria ao ponto de fazer seu coração acelerar. Mas ela não sentiu isso, e reparou que não estava sentindo como se dentro de si tivesse órgãos e, dentre eles, um coração bombeando sangue para seu corpo.
Ela mal estava inspirando oxigênio.
Na verdade, não estava respirando.
— Oh, me desculpe! Não queria lhe assustar. — O homem de barba bem feita ofereceu a mão para ela. — Venha, vou te ajudar. — insistiu, a vendo hesitar.
Ele estava vestido de branco e descalço. Era lindo como aquele céu em cima deles e o sorriso era hipnotizante. estava incrédula com tamanha perfeição e como, mesmo naquele estado, não sentia absolutamente nada fisicamente. Nem quando esteve pensando sobre seu coração acelerou como de costume.
Aceitou a mão, sendo vencida pela dúvida e convencida de que tudo não passava de um sonho.
— Eu sou Azrael. Vi que você se perdeu e agora temos um trabalho difícil até encontrar o ponto de partida para o que está te prendendo entre os dois planos — explicou, como se aquilo tudo fosse de fácil compreensão para ela.
reparou na própria roupa: um vestido branco de alças finas e estava descalça assim como Azrael.
Este nome, aliás, lhe era familiar.
— Me desculpe… já que estamos no meu sonho, preciso que seja mais direto e objetivo — disse pela primeira vez. Azrael revirou os olhos.
— Por que todos vocês vêm com essa história de que é um sonho como se não soubessem que a morte é a resposta exata da vida? E ainda me chamam! — suspirou, parecia cansado.
— Como assim vocês? Eu não estou entendendo. — Ela insistiu, desta vez mais confusa ainda.
Azrael deixou sua incapacidade de compreensão se esvair. Aquele era o seu propósito, ajudar as almas a se ajustarem à vida do outro lado. Ele deveria ser chamado e isso acontecia e muito com as almas que não conseguiam se desapegar, ficando presas entre um plano e outro.
— Bom, eu sou um anjo, como pode ver — fez um movimento circular em cima de sua cabeça, mostrando uma auréola brilhante, que sumiu no final do movimento. — Auxílio almas como a sua, perdidas e que precisam de crescimento espiritual para passar pro outro lado. Ir para o céu. Ir com Deus, como os jovens dizem hoje em dia naquela espécie de… Nime. É nime que fala?
riu, mesmo estando ainda confusa. Era como se suas reações não precisassem ser muito bem pensadas antes de existirem.
— Não, é meme — cruzou os braços, vendo-o concordar. — Então você está me dizendo que eu estou numa experiência de pós morte dentro do meu sonho?
Ele a encarou com tédio.
— Olha, a cada dia que passa fica mais difícil. O Senhor precisa me ajudar daí de cima! — disse olhando para o céu. — Você não se lembra? — ela negou, não sabia do que ele estava falando. — De nada? — novamente negou. — Nadinha mesmo? — E de novo. Ele bufou. — Ok. Vamos desde o príncipio então. Fecha os olhos.
não o fez, continuou o encarando de braços cruzados. Agora aquilo tudo parecia mais real do que no princípio e estava lhe dando um certo receio. Não sentia mais como se fosse mesmo um sonho.
— Confia em mim, você viu minha auréola, não tem como eu trapacear. Mas preciso que feche os olhos para a gente ter esse tour, só assim você irá compreender. E nesse caminho eu também já aproveito para estudar seu caso. — Ele insistiu, olhando em seus olhos com todo o senso positivo que carregava consigo.
Ela se rendeu ao pedido do tal anjo e fechou seus olhos. Sentiu um vento embalar seu corpo e de repente o que era claro, ficou escuro. Abriu suas pálpebras antes que ele dissesse algo e o seu susto foi maior do que qualquer outro já levado. se olhava deitada na rua, debruçada no asfalto e em volta deles tinha um carro capotado, e tudo era em frente à saída da empresa. Era uma cena de atropelamento, ela concluiu, já que aquele carro não era o dela.
— Fique à vontade… só não toque em nada, isso influencia em algumas sensações. — Azrael a disse, se afastando ao ver que ela tinha aquela curiosidade toda.
Devagar, se aproximou do seu corpo estirado no chão, o reconhecendo sem vida. Agachou para poder observar de perto e viu seu rosto todo sujo de sangue, seu cabelo molhado pela chuva que começava a cair e suas roupas amassadas e sujas. Seu pé direito estava com o salto ainda ali, enquanto o outro estava descalço, e varrendo seu olhar pelo local não encontrou o outro par em nenhum lugar. Reparou então que estava em cima de estilhaços de vidros e que os cacos de todos os tamanhos estavam presos em seu corpo. O uniforme de trabalho estava irreconhecível.
Ela não se reconhecia naquele estado, tão sem vida. Como se estivesse morta de fato.
— Não… por favor… , acorde — sussurrou, contendo a vontade de tocar seu corpo e se chacoalhar.
! Ela logo lembrou-se dele. Olhou em volta e viu que ainda não estava ali, o que reforçou que novamente naquele dia ele devia ter voltado para o apartamento no meio do caminho para pegar o guarda-chuva.
A chuva se intensificou e nesse mesmo ritmo muitas pessoas começaram a aparecer naquela cena, sendo em volta de seu corpo ou no carro capotado. A preocupação era em cima do estado das duas vítimas daquele acidente. Mas ela não tinha mais chances, conseguiu compreender, mesmo na dor, que aquele corpo estava sem vida e só restavam pedaços machucados ali.
Jeon havia falecido em um atropelamento.
E, incrivelmente, ela não estava sentindo nada. Sabia que a dor estava ali, mas não a sentia.
Mesmo quando viu se aproximar, alheio que sua noiva era quem estava naquele asfalto, até certo tempo. O instinto do homem o fez ir até aquela muvuca de pessoas, parando ao lado do corpo de . E mesmo que não fosse aconselhado, se abaixou naquele chão cheio de vidro e molhado pela chuva crescente, tocando no corpo de sua amada.
! ! , por favor… não… ! — gritava, já imerso nas próprias lágrimas, sendo sua mão colocada no rosto dela ou nos ombros. — Fala comigo, por favor! Não… é… ! Alguém chama uma ambulância!
Ela novamente soube que a dor estava ali, que estava sofrendo, porque seus olhos encheram de água e o vendo perdido daquela forma, não conseguia controlar o choro compulsivo.
Havia abandonado o amor de sua vida sem ao menos poder dizer naquele dia que o amava. E sim, ela entendeu que não estava em um sonho.
… amor… — fez menção de tocar no rosto dele, para enxugar as lágrimas, mas parou no meio do caminho.
Trocou o olhar com Azrael e ele assentiu compreensivo. Ela estava pronta para a próxima cena.
— O motorista da caminhonete teve um mal súbito e o carro passou em muita velocidade. Você rodou no ar e caiu em cima da placa de vidro do anúncio. — Ele a explicou, se aproximando. continuou olhando o noivo agarrado em seu corpo e chorando, logo ouvindo o som das sirenes. — Morreu na hora e o motorista no hospital.
Se levantou, vendo que os paramédicos agora tiravam de cima de seu corpo e a cobriam com um saco preto, depois de se certificar que ela realmente estava morta. Não conseguiu encarar tudo aquilo por muito tempo e, mesmo de olhos abertos, viu Azrael trocar aquele fundo pelo campo novamente. Porém, na propriedade agora tinha uma casa no fundo. Uma casa branca e com piscina.
Era a casa que ela e o noivo haviam projetado para quando decidissem se casar e quisessem passar finais de semanas e feriados afastados da cidade.
— Você precisa de um tempo ou podemos continuar? — perguntou, encarando a mesma direção que ela.
— Há quanto tempo eu estou presa? — perguntou. Não tinha sentido aquela casa estar ali, se fosse algo recente. Era um plano para a longo prazo que tinha com .
— Você está tentando sozinha já são contados oito anos do plano humano.
Então estavam em 2019, pelas suas contas. O ano em que eles queriam casar e o fariam na propriedade daquela casa, a qual queriam tanto comprar quando se mudaram para Seul e vinha economizando para.
— Mas aqui as coisas onde estamos passam rápido, é o meio entre um e outro, então o tempo não é certo. Na verdade, apenas no plano em que estava ele é contado como uma grandeza científica. — Azrael explicou.
— Eu não me lembro de nada. Por que?
— É muito comum, apesar de eu achar isso um saco, facilitaria muito o meu trabalho e o de vocês para a passagem. Mas também não teria muito sentido a minha ajuda se vocês ficassem aqui e soubessem de tudo, eu não seria necessário — analisou. apenas prestou atenção ao monólogo dele. — Enfim, quando voltamos para cá, algo que você sentiu lá deu uma luz ao que pode ser o possível motivo que te prende aqui. Muitas vezes são pessoas, mas podem ser situações e até mesmo coisas materiais. Humanos são muito materialistas.
parou para pensar, encarando ao longe aquela casa enorme.
Ela não conseguia encontrar em si a resposta para aquilo, muito menos sentia algo mais intenso. Era como se seus sentimentos e sensações estivessem apenas em sua ideia e não de fato sendo o que deveriam ser. E isso tudo era muito louco para ela poder se acostumar.
Sabia que sentia saudade, que doía, a sensação de estar longe de casa e tudo o que se remete ao medo de estar ali. Ela sabia de tudo isso, mas era estranho não sentir.
Podia dizer que ao seu redor haviam flechas caindo, mas nenhuma delas acertavam seu corpo. Como se ela não pudesse ser atingida pelos próprios sentimentos mais e estivesse sendo blindada de tudo.
— E você segue comigo? — resolveu perguntar a Azrael.
— Não, eu vou estar aqui, mas você deve trilhar esse caminho sozinha, . Digamos que eu te dou a dica, como estou fazendo, e depois você segue sozinha. Quando estiver pronta para ir, assim como quando estava para me chamar, nos veremos de novo. — A explicou com o mesmo semblante que dava para todas as almas perdidas, de forma compreensiva. Ainda eram almas com muitas características do plano terrestre, valia a empatia.
— Então eu só irei te ver quando…
— Quando for partir de vez, eu venho te buscar. — Desta vez ele sorriu.
Ela apenas assentiu, vendo-o caminhar para o lado contrário que estava. Em sua cabeça muitas dúvidas surgiam, como, por exemplo, para que lado deveria ir, ou se tinha que ir a algum lugar. Estava naquele campo e a casa parecia, ao mesmo tempo visível, tão distante. Dentre tudo, conseguia sentir pelo menos aquele bolo entalado em sua garganta, como se fosse uma angústia e em sua memória, sabia que isso não era nada bom.
Estar confusa como estava não era nada bom.
— Azrael… eu…
Se virou o chamando e não encontrou o anjo. Ele já havia sumido e não encontrou nenhum rastro para onde tinha ido. estava sozinha.
Estar sozinha aumentava o bolo em sua garganta.


Não sentia o sol queimar em seu corpo, por mais que já estivesse caminhando por aquele campo a um bom tempo. Sequer notou que o céu era o mesmo de quando acordou, a sua concentração ia direto para aquele caminho que fazia, caminhando agraciada pela grama fofa — estava descalça, caminhar toda aquela extensão que a separava da casa em meio a pedregulhos seria, no mínimo, desconfortável.
Se pudesse dizer por cálculos feitos de cabeça, diria que sua caminhada já estava indo para quatro horas e meia. E ainda assim não parecia estar tão próxima.
Entretanto, não suava, não tinha fadiga e muito menos parecia cansada.
Novamente, era apenas a ideia em sua cabeça de tudo isso. Ela não sentia nada.
O que estava começando a incomodar.
Contou que mais três horas de caminhada passaram, quando finalmente chegou na casa, que agora ela constatava ser uma mansão. E era linda, completamente do jeito que sonhou com em todas as vezes que chegaram no assunto sobre como seria a vida dos dois depois do casamento.
Casamento, se lembrou novamente daquilo. Eles não chegaram a casar.
Fechou os olhos, abraçando o próprio corpo, sentindo aquela brisa que bateu quando parou em frente ao muro baixo de concreto. Precisava se livrar daquele pensamento sobre sua morte, tinha que compreender que seu momento havia chego e, se fosse para ficar perdida naquele meio de caminho entre dois planos, que gastasse seu tempo tentando passar para o outro lado de vez. A sensação de não poder sentir a própria dor estava a consumindo e poderia deixá-la louca — se fosse possível.
Se concentrou em ouvir o barulho da água que corria da cascata da piscina, olhou em volta uma última vez, soltando os braços e decidindo que deveria explorar as suas opções.
Naquele momento, a opção era pular o muro e descobrir o que aquela mansão iria lhe revelar. E assim fez.
Não era um muro muito alto, portanto não teve dificuldades e nem se sujou. Depois de pular, caiu em cima da grama fofa, novamente agraciada por aquele toque na sola de seus pés. Caminhou o pequeno morro que tinha até chegar à superfície, encontrando um enorme espaço de lazer. Desde o piso até os detalhes de decoração eram como ela e haviam planejado.
Caminhou sentindo o frio do granito abaixo dos pés, observando tudo com atenção.
Era lindo. Era como ela queria que fosse e, com toda certeza, como queria ter vivido.
Conforme foi entrando, descobriu mais sobre o lugar. Em tudo tinha dois. Era duas cadeiras de balanço, duas cadeiras de piscina, dois bancos no balcão da churrasqueira, dois pares de chinelos na porta. Tudo era em par. Pensou que talvez ele ainda contasse com ela em todas as suas somatórias.
Talvez não estivesse superando sua morte, por isso não conseguia ir embora.
Parou por um tempo observando os quadros pendurados na parede que tinha a churrasqueira. Haviam diversos de humor, como ele sempre queria colocar para enfeitar o ambiente de uma forma mais descontraída. Assim como tinham alguns com dizeres que, pelo o que conhecia do noivo, não faziam seu estilo.
Desde quando gostava de Beatles?
Deu mais alguns passos e acabou pisando em uma bolinha, forçando o barulho do brinquedo, que muito provavelmente deveria ser de Boateng, o Labrador que eles tinham adotado assim que chegaram em Seul.
Não demorou muito para que o cachorro chegasse e ela quis correr em sua direção, para abraçar aquele monte de pelos — com certeza Boateng já estava velho o suficiente para ser ranzinza, se lembrava que ele odiava ser abraçado, mas faziam mesmo assim. Mas ele passou direto, indo em direção ao objeto que havia chamado sua atenção. Boateng não conseguia ver .
Abaixou os ombros, decidindo continuar sua caminhada, ou então ficaria naquela paranóia olhando para o animal. Afinal, sabia que estava triste e com saudade, mas não sentia nada disso, então não faria muita diferença.
Por fim, então, entrou na casa. A porta da piscina dava direto para a sala. E o ambiente era todo clean, assim como gostava.
Ele odiava bagunça e todas as vezes que chegava deixando suas coisas espalhadas pelo caminho que fazia da porta até o banheiro, ele ia atrás, juntando item por item. Era realmente obcecado por organização e adorava a teoria de menos ser mais. Viviam caindo em discussão sobre como seria importante que na casa tivesse menos móveis e qualquer utensílio ou objeto, para que não se sobrecarregarem na arrumação, uma vez que o tempo que tinham para tal era bem escasso.
Andou até chegar no aparador atrás do sofá. Ele era de madeira refinada, lindo, e todo decorado com um vaso de flor e quadros em cima. Outro detalhe: amava colecionar momentos em fotos.
Teve, mais uma vez, o intuito de pegar um quadro em mãos, mas não o fez. Azrael havia lhe dito que isso influenciava, então não poderia causar mais danos. Se fosse mesmo real que estava ali, presa naquela tentativa de ir embora, por todos aqueles anos, seria de bom senso que não causasse mais demora em sua ida. Mesmo que não soubesse nada sobre o outro lado, afinal não tinha o que temer.
Inclinou o corpo um pouco para frente e encontrou o que não gostaria de ter visto.
estava naquela foto com outra pessoa. Era uma mulher linda e de sorriso simpático. E na foto eles estavam vestidos de noivos.
Em outro quadro a mulher loira segurava o buquê de girassóis com uma mão e com a outra entrelaçava seus dedos nos dele, enquanto ele passava um braço em volta de sua cintura e tocava os lábios no dela. Eles pareciam estar em tamanha sintonia e felizes. só não conseguia sentir aquilo, mesmo que chorasse naquele momento o tanto que nunca havia chorado. Colocando pra fora tudo aquilo sem saber exatamente o quê de fato tinha para ser exteriorizado.
— Boateng!
Levou um susto quando ouviu a voz fina ecoando pela sala, em meio aos risos, pelo mesmo caminho que ela havia feito. Demorou poucos segundos para se lembrar que eles não podiam vê-la. Logo atrás veio . poderia dizer que seu coração parou ao vê-lo se ao menos tivesse como. Mas de qualquer forma a ideia estava ali.
Ele sorria e ria de alguma palhaçada que Boateng fazia para chamar a atenção do casal. não parava de pensar: ficou tanto tempo tentando e tentando ir embora, que foi o suficiente para quando pudesse ver eles, encontrá-los assim, vivendo outra vida? E por que ela não podia se lembrar das vezes que esteve tentando? Como tudo aquilo funcionava?
Era tortuoso não ter respostas.
-Eu te disse que ele iria se comportar, Hanna — observou se agachar ao lado do animal, fazendo carinho nele.
— Claro, com aquele tanto de petisco que você deixou no pote dele, obviamente que iria se comportar. — A tal da Hanna revirou os olhos, sumindo por uma entrada próximo a escada.
— Não liga pra ela, Tetê. É o jet leg da viagem — suspirou. — Bom, pelo visto sua tia esteve aqui hoje e fez o que eu pedi.
Boateng latiu, se jogando no chão com a barriga pra cima em seguida. olhou para todo o ambiente, de forma panorâmica, com suas mãos na cintura. Ela não havia se tocado inicialmente, mas naquele momento percebeu como ele estava diferente, parecia mais velho e, para seu espanto, feliz. Carregava aquele semblante calmo, tranquilo e de quem não tinha que se preocupar com as rugas que apareciam por causa do estresse do trabalho.
Ele parecia estar bem como se nada tivesse acontecido. Como se não tivesse falecido de uma fatalidade.
— Achei que estava tirando as malas do carro, amor.
Amor
. Ela o chamou assim por muito tempo, mas agora era a Hanna quem o fazia.
— A gente precisa de algo que esteja lá? — perguntou.
Ah, aquele tom preguiçoso. sabia bem como ele odiava ter de fazer qualquer coisa, pelo mínimo esforço que fosse, quando chegavam de viagem. Permitiu-se rir com nostalgia, vendo-o pular no sofá e receber Boateng em seu colo logo em seguida. Ambos eram duas crianças e corpos de adultos, porque com aqueles olhares lançados para Hanna, não havia quem não cedesse.
— Tá vendo? Até o Tetê concorda e está te chamando com o olhar pra vir deitar aqui. — Ele disse batendo no espaço vazio ao seu lado no sofá.
— É porque ele ainda não sabe que você trouxe da Coreia aquele petisco que ele ama. — Hanna se aproximou, sentando-se ao lado dos dois. — Não é? Se você soubesse, seu pai não estaria aqui agora e sim lá fora tirando as malas do carro.
rebobinou algumas palavras e voltou na parte que ouviu Hanna dizer "Coreia". O que ela estava querendo dizer quando mencionou que ele havia trazido algo da Coreia? Não estavam na Ásia? Que lugar era aquele se falavam em coreano?
Novamente, mil perguntas misturadas às ideias de suas sensações, em combate com aquele bolo em sua garganta.
— Você tem razão. — tombou a cabeça no ombro dela, fazendo carinho em Boateng.
— E você precisa ir antes de escurecer na…
— Na cripta de — finalizaram juntos.
Ela apenas deu um passo para trás, observando daquele ângulo o casal de costas, sentados no sofá. Ela tinha uma cripta e a visitava? O quão melancólico aquilo soava?
Então, mesmo estando com Hanna ele ainda não havia superado?
Esse era o ponto, afinal. Ela estava presa porque não conseguia deixá-la ir de vez, ele não havia superado.

andava de um lado para outro em cima do tapete, esperando que e Hanna descessem logo. Eles tinham subido para tomar banho e se arrumarem para ir à cripta, que ela entendeu ser no mesmo terreno.
Ela tinha notado que desde que entrou na propriedade do outro lado do muro, não sentia mais seus pés tocando o chão, como sentiu quando tocou a grama. Descreveria como uma sensação de estar levitando, se soubesse exatamente qual sensação estava tendo com aquilo. Mas, diferente dos momentos anteriores, agora ela não estava preocupada com a sua falta de sentimentos e sensações. Queria ir logo até a cripta e precisava entender mais como iria fazer para que se sentisse pronto para deixá-la ir.
E como Azrael fazia falta naquela hora.
Tirando seus devaneios com as mãos, Hanna e desceram os degraus em meio a risos apaixonados. Aquele padrão de não sentir nada desta vez a deixou extremamente irritada, porque não sabia como estava se sentindo ao ver ele com outra; até a página que viveu ele ainda era seu noivo, então de repente o ver com outra pessoa, e feliz, se tornou incômodo — ou pelo menos ela queria que fosse, pela razão óbvia. Era estranho não saber que estava se sentindo enciumada com aquela cena.
O caminho por aquele gramado, seguindo-os, foi feito em pouco tempo. Ela já não tinha mais sequer noção sobre contagem de tempo e muito menos espaço, parecia flutuar e ter o peso de um vento, o que se sabe ser nulo. Boateng os seguia com toda sua alegria e vez ou outra parava para poder respirar, não sendo mais tão jovem e sua disposição mais baixa para um caminho como aquele.
Quando chegaram ao final daquela subida, de um morro nem tão alto, soltou a mão de Hanna e caminhou para a porta da estrutura de pedra que parecia ter sido esculpida à mão. Era lindo, desde o seu topo, até o chão cimentado e com dizeres em diversas línguas — traduções estas que ela não compreendia. tirou uma chave grande do bolso e levou até a fechadura enorme de bronze naquela porta de madeira rústica. Era o estilo de arquitetura que gostava.
Ao abrir a porta ela observou com cuidado o interior, era pequeno, porém o tamanho suficiente para caber duas pessoas ali dentro. Haviam algumas pinturas e, o que ela reconheceu ser, seus quadros favoritos. Seguiu os curtos passos de e Hanna para dentro do ambiente e, depois de algumas velas acesas e um lustre se acender, deixou sua atenção ser tomada pelo casal.
— Eu acho que agora podemos dizer que finalmente está pronto…
De dentro do bolso de seu casaco, Hanna tirou um pequeno chaveiro de girassol. Ele reluziu o dourado do ouro de encontro com a luz mediana das velas em mistura com a do lustre de cristais no teto. Era lindo e exatamente igual ao pingente que usou até seus quinze anos, como forma de se lembrar de sua avó. Aquilo a fez recuar para trás, tendo uma visão mais ampla e enxergando na parede de frente com a porta uma pedra preta toda escrita em dourado.
Era seu nome. Sua data de nascimento. E era a prova de que havia falecido. A prova de que estava realmente ali, presa naquele caminho porque , ao seu julgar, não havia superado.
Embaixo das informações, do que era uma lápide, em uma letra cursiva muito bem desenhada, estava escrito: “Flores florescem na chuva que cai”. Ela leu e releu, se lembrando de como sua avó lhe dizia isso para que se mantivesse firme nas situações da vida. Assim como a convenceu que as pessoas deveriam aprender mais com girassóis e inibirem a escuridão de suas vidas. Lendo aquilo e observando todos os detalhes, ela compreendeu: precisava partir.
— Dois anos para construir isso do zero…
Ouviu a voz calma e relativamente aliviada de e se virou para prestar atenção naquela feição nítida dele, enquanto continuava seu monólogo, com uma Hanna totalmente atenciosa ao seu lado. E encantada. Ela estava com aquele brilho no olhar, olhando-o e parecia que aquele olhar era o suficiente para confortá-lo.
— Eu acho que finalmente podemos dizer que está tudo no lugar e… mesmo sendo um ambiente que reflita um falecimento, está bem representada. — Ele suspirou.
Hanna o abraçou de lado, arrancando um sorriso lindo de seus lábios.
Não havia tom de choro ou um ambiente melancólico e isso, de uma forma diferente desde que havia aberto os olhos, pôde sentir.
— Você se dedicou muito a isso e, tenho certeza absoluta, deve estar muito agraciada. — Hanna o respondeu.
se soltou dela rapidamente, colocando o girassol, agora em sua posse, na pedra preta. Havia o espaço exato ali para aquilo.
Surpreendentemente, Boateng latiu.
— Encontrar esse chaveiro foi difícil mesmo, Tetê… não achei que os pais dela te dariam.
— Eu também não… — A respondeu, tomando seu abraço novamente. — Acho que agora posso dizer que estou tranquilo. Acho não, eu estou.
— Você sabe que vai estar para sempre aqui, não sabe? — Hanna colocou a mão em cima do peito dele, no lado esquerdo, e o encarou com o rosto levemente erguido. assentiu. — Ninguém vai tirar ou mudar o que vocês tiveram.
— Mas eu posso fazer com que ela se mantenha viva em minha memória — completou a fala da mulher, recebendo um sorriso de lábios fechados.
— Exatamente. Você não a perdeu, você a teve enquanto podia e…
— Foi o melhor que eu pude ter. Assim como tenho agora também.
Os lábios de tocaram os de Hanna em um beijo casto e ela se afastou, saindo de vagar e o deixando sozinho com Boateng. O animou tomou o lugar ao lado de e dividido entre olhar para o dono e para a parede, os dois ficaram em um silêncio conjunto, até que pôde-se ouvir o barulho da chuva do lado de fora.
— Sabe, … — Ele iniciou. — Eu não gostava desse som, dessa sensação fria que o barulho da chuva caindo pode nos dar. A melancolia que vem com ela e tem potencial para nos dar, é ridiculamente dolorida, quando eu paro para pensar que foi em um dia assim que eu te perdi. Um dia de tempo nublado, com um desfecho que deixou o vazio.
“Foi difícil, com certeza foi. Boateng compreendeu todas as noites que eu tinha pesadelos porque dormia sozinho naquela cama e não tinha o seu corpo para abraçar ou me apertar. Algumas vezes ele me deixou usá-lo como escape e eu passei a compreender porquê você gostava e religiosamente o levava para banhos no pet shop. Aquele macio dele, embora não fosse como o toque da sua pele, me confortou por algum tempo. E aí veio a ideia absurda de “vou seguir com nossos planos e comprar o terreno”, então eu tive de voltar para o Brasil. Outro momento difícil. Porque eu saí de lá com o amor da minha vida e voltei sem ele. Voltei porque ele havia me deixado… pelo menos era como eu enxergava naquela época. Tetê passou a entender que você não entraria mais pela porta e somente eu o buscaria no banho e tosa todas as sextas depois do trabalho. Mas eu? Bom, eu não.”
“Era complicado imaginar que aqueles planos do casamento, da casa, da vida que tínhamos e queríamos, não iriam ter a chance de se concretizarem. Parecia que meu rumo havia sido perdido. E eu me senti assim por muito tempo. Trabalhei, muito até, e conquistei esse lugar. Foi quando Hanna entrou em nossas vidas. Ela sabia que eu já tinha alguém em meu coração e que a construção dessa casa era muito importante para que se tornasse menos real a sua perda. Mas, embora eu tenha sido relutante, ela me fez entender que… assim como sua avó lhe dizia: as flores podem florescer mesmo na chuva que cai. E aqui floresceu, eu me senti reflorescer.”
podia dizer que seu corpo estava quente. Ela sentia isso.
Não estava transtornada ou algo do tipo, apenas atenta àquelas sensações que começaram a surgir.
estava sentindo. Eram flechadas em direção ao seu corpo e nenhuma delas atingia seu coração, mas ela sentia. Sentia todo aquele aquecimento em volta do lugar em que, simbolicamente, mantinha seu amor por . Não só por ele, mas por todos os momentos aos quais viveram juntos em todos os anos de relacionamento. E reconheceu, ao ver tamanho carinho emanando naquelas palavras e momentos dos dois, que ela não o abandonou.
Ela foi embora no momento certo, apesar das circunstâncias. Cumpriu com seu objetivo de vida, mesmo que não soubesse ainda qual era. E o mais importante: se amou enquanto estava sendo amada. Porque assim como se sentiu ouvindo aquele desabafo dele, amada e querida, havia sentido por todos os anos que estiveram um ao lado do outro.
Sentir aquela coisa boa quanto ao novo estado de vida de lhe fez compreender que o amor perfeito era aquilo: em sua máxima imperfeição enxergar que nem tudo é como queremos e como achamos que deve ser. E se sentir assim, livre, sabendo que ele e Boateng estavam bem, a fez soltar o controle sobre si.
Seu corpo cambaleou para trás, saindo da cripta, agora ela sentia cada centímetro de sua extensão. O pé no chão tinha o peso de toda a sua massa e podia sentir seu cabelo tocando o ombro nu pela ausência de mangas. Aquilo parecia com as vezes que havia entrado no mar e sido engolida por ondas maiores que seu corpo, porque ela estava sendo levada por todos os sentimentos que estavam ali todo aquele tempo, presos. A compreensão passando a fazer o jus da diferença com o entendimento.
Como um dia havia escutado em algum lugar: primeiro entendemos e depois compreendemos.
E ao erguer o rosto, molhando-se naquela chuva que parecia a lavar de toda e qualquer angústia, Azrael despontou-se em seu campo de visão. Ele não parecia ser tocado pelos pingos e estar ensopado como ela, mas sorria e lhe esticou a mão.
Ela, por fim, compreendeu. Naquele momento já estava pronta para ir.



FIM.



Nota da autora: Olá!
Primeiramente, obrigada por ler e, se possível, não esqueça de comentar. É muito bom saber o que você achou da história.
Segundo, eu gostaria muito de indicar que assistam ao clipe dessa música e procurem a tradução da letra! A reflexão é muito pessoal e eu acho ela incrível.
Agora, sobre o enredo, para quem não assistiu o clipe e caiu aqui porque se interessou, uma breve explicação:
Há o momento em que tem flechas caindo do céu, nenhuma acertando Hwasa. Isso, na história, significa os momentos em que ela está com todas os sentimentos e sensações ali, bloqueados porque não consegue se compreender, então não sente nada. Os sentimentos são as flechas e ela não sentir, é quando não é acertada.
E há o momento em que ela é atingida por uma. Este, na história, representa quando ela sente o mar de sentimentos a atingindo. Quando ela sai do entendimento para a compreensão.
Espero mesmo que tenham gostado!





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