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Finalizada!
Music Video: Love Killa - Monsta X

Inquérito

A fachada não era muito bonita para uma delegacia situada numa das zonas mais movimentadas da capital coreana, tampouco tinha aparência limpa, não só em sujeira no chão, mas no todo. Os diversos policiais parados do lado de fora, discutindo suas próprias apostas sobre casos, tentando convencer autoridades maiores para liberações de mandados e até mesmo os que só saiam para tomar um ar ou fumar, traziam uma certa poluição visual e confusão para quem chegasse. Tinha muita gente ali, aparentemente ociosos demais, enquanto a criminalidade continuava rolando pelos bairros daquele distrito do qual a unidade se responsabilizava.
Essa proposta de desleixo fazia com que homens como , criminosos que ainda não tinham provas para preencher toda uma ficha policial em seu nome, não se sentissem amedrontados ao se aproximar dali. Ele caminhava tranquilamente, usando suas tão marcantes jaqueta vermelha e calça preta, ambas de couro, com os fios de cabelo preto penteados perfeitamente para trás, salientando seu penteado no corte mullet. A caminhada parecia tão suave e descontraída, enquanto segurava seu pirulito por entre os lábios e continuava em sua pose descolada de um jovem recém apadrinhado por um dos maiores procurados, que os olhares caíram sobre seus ombros.
Mas ele não iria se preocupar, não tinha nada que pudesse levantar suspeitas sobre seu nome. Era novo sim, mas não significava que era totalmente inexperiente.
Sorriu ladino para uma policial ou outra e assim que terminou o último degrau para a porta de entrada da unidade, viu do lado de dentro, diante de uma mesa discutindo algo em seu telefone, a figura da mulher que havia invadido o Odium (em coreano, 증오: Jeung-o) naquela noite, justamente no único dia em que o dono estaria lá — mas ele não era inocente, isso com certeza fazia parte de uma investigação pesada em cima de , afinal, a presença de diversos magnatas das zonas mais ricas da cidade havia se tornado rotina e isso chamava a atenção; o que, de fato, aconteceu e levou seu chefe a ser investigado e preso. Manteve seu semblante tranquilo, sem retirar o óculos preto em modelo aviador, embora já estivesse no meio da madrugada, e entrou, atraindo atenções e se sentindo cheio por isso.
Repetiu em mantra a si mesmo que não deveria dar atenção aos olhares, lembrando do que tentava ensiná-lo sobre superioridade, e seguiu até a primeira mesa que viu, tentando evitar a mulher que já havia visto mais cedo.
Limpou a garganta, chamando a atenção do rapaz concentrado em carimbar folha por folha de um bloco de notas, e foi ignorado, tentando mais duas vezes. Na verdade, ele não era ouvido porque ainda não tinha se anunciado com algo mais sonoro. Então bateu a mão na mesa, não muito forte, mas não muito fraco, o que causou um susto no outro, fazendo-o pular no lugar e erguer o rosto completamente pálido. Isso, porém, fez com que a mulher “conhecida” se aproximasse, com as mãos na cintura e exibindo seu distintivo em um colar em volta de seu pescoço.
— Em quê podemos ajudá-lo? — , pelo o nome lido na identificação com um “investigadora” logo abaixo, disse séria e com o cenho travado em um vinco.
— Vim fazer uma visita. — desviou o olhar do dela, que tentava ler seus olhos pelas lentes escuras. Nunca foi tão grato por um presente em sua vida como aquele acessório em seu rosto.
— Aqui não é centro de detenção, não temos horários de visitas e pausas para o café. — Ela devolveu, olhando para o rapaz sentado entre eles; o jovem permanecia estático e assustado. — Gon, por que não vai tomar um ar? Pode deixar que eu termino aqui.
acompanhou a pressa do garoto para sair dali e tornou a encarar , tentando respirar fundo da forma mais neutra possível. Mesmo mantendo sua pose imbatível, não poderia ser mentiroso e dizer que não estava lhe causando arrepios estar naquela delegacia. Todo o ambiente ali, em estética, era horrendo e o ar condicionado causava mais frio ainda em sua espinha, ainda que estivesse usando uma jaqueta tão pesada.
Ela se sentou na cadeira e ele continuou a olhando, em expectativa.
— Ainda está aqui? — questionou, sem olhar para ele, ao invés disso estava se preparando para continuar o trabalho de Gon.
— Sim, estou aguardando minha liberação para a visita.
pressionou as pálpebras fechadas, assentindo e soltando uma lufada de ar pela boca.
— Quem você veio ver? — Se virou para ele, cruzando as pernas na cadeira.
. Você prendeu ele hoje-
— Ah, claro. — O sorriso sarcástico nos lábios dela o incomodou. — Você é o advogado dele?
— Não. — fez um bico, já sabendo que ela negaria outra vez. — Ele tem direito a uma visita.
— Um advogado. O que não é o seu caso.
— Por favor, é rápido… — Ele continuou tentando. — Ele é…
— Cuidado com a mentira que irá inventar. — voltou a desviar sua atenção.
Por mais esperto que pudesse ser, não era tão inteligente assim com leis constitucionais e o que seria a respeito do código penal. Nunca teve que se preocupar com isso e o mais próximo que havia chegado de uma delegacia em seus vinte e três anos tinha sido em passagens rápidas pela rua, entrar em uma sequer tinha surgido em cogitação.
De fato, não tinha bem uma frase pronta para refutar a opinião de .
— Eu prometo que é rápido — tentou mais uma vez, tirando o óculos para que ela pudesse ver em seus olhos o lado genuíno de seu pedido.
O desvio da atenção dela foi rápido, outra vez. Analisou ele de cima a baixo e depois de um breve momento, assentiu, se levantando.
— Me acompanhe — disse, contornando a cadeira e seguindo pelo lado esquerdo dele.
Os passos dela foram seguidos por ele em silêncio, indo por um corredor extenso e cheio de salas, até sair em uma porta no final que levava para a repartição das selas. Porém, ele foi orientado que ficasse em uma sala e ela iria mandar buscarem . Assim ele o fez, entrando em um ambiente frio como todo o resto da delegacia.
Era tudo cinza e tinha uma mesa no centro, sendo iluminada por uma lâmpada baixa pendurada no teto bem posicionada no centro do metro quadrado. Bem clichê, inclusive. não quis se sentar, ficou divagando pela estética local e se olhando pelo reflexo das placas laminadas que tinham em duas paredes opostas, uma bem direcionada à outra — certamente como demonstrava nos filmes que ele esteve acostumado a apenas assistir: do outro lado, em todos os ângulos daquela sala, deveriam ter outras salas com escutas e outros agentes esperando por qualquer brecha na conversa que fossem ter ali dentro.
Suspirou, já sentindo a demora de e ficou encarando a porta, começando a ficar preocupado, não só por isso, mas pelo fato de não estarem em total privacidade.
Foi quando a maçaneta girou e a porta se abriu, que ele levou um susto, levando a mão ao peito, sem reparar quem trouxe quem ele queria ver.
— Céus! Que susto! — exclamou, soltando o ar pela boca e tirando o óculos de seu rosto.
—Falando assim até parece um amador… — disse, sentando-se na cadeira diante da mesa e, com as mãos algemadas, gesticulou para que tomasse seu lugar à sua frente.
O policial, que definitivamente não era , saiu, deixando-os a sós, e se sentou.
— Como isso tudo foi acontecer? — foi o primeiro a dizer, demonstrando sua frustração.
se recostou mais no encosto da cadeira, mantendo os braços esticados sobre a superfície da mesa. Mordeu a bochecha por dentro e, depois de respirar fundo e umedecer os lábios, voltou o corpo para frente.
— Eu já estava sendo investigado há um bom tempo… Desde o escândalo daquele atorzinho que apareceu no Odium — disse, sem nenhum resquício de dúvida, mas envolto de sua repulsa.
— Mas isso já faz tanto tempo.
— Ainda bem. Significa que fui eficiente em me esquivar deles por muito tempo. — voltou a relaxar suas costas na cadeira, mantendo seu cenho em um vinco. — Mas agora eu preciso que você seja mais esperto.
— Mais esperto? — o rapaz franziu o cenho — O que quer dizer?
Antes que falasse, o pupilo girou a cabeça para a entrada e fez um sinal para que ele não continuasse.
— Espera. Acha que aqui é o melhor lugar para resolvermos isso?
olhou por sobre o ombro na mesma direção, visualizando o policial alto prostrado ao lado do batente, olhando para algum ponto da parede como se não respirasse.
— Fica tranquilo, ele não está escutando. Não por 500 mil wons por semana — explicou com um sorriso cafajeste no rosto. conseguiu retribuir o gesto, mas seus ombros ainda não relaxaram.
— Não é só dele que eu estava falando — uma sobrancelha erguida fez ficar completamente desentendido — A gata de distintivo lá fora. A que te trancou aqui dentro.
repuxou os lábios com desgosto, mas também com uma pontada de divertimento. Era o que o rosto de significava para ele.
— A investigadora está bem ocupada agora se preparando para as coletivas e seja lá do que precisa pra sair riscando minha ficha. Não importa. Precisamos seguir adiante com o plano.
A tensão contornou toda a sua voz, deixando apreensivo, puxando seu tronco para o meio da mesa.
— Estamos falando do leilão, certo? — sussurrou, mesmo com o aviso de propina. apenas assentiu, sem tirar o sorriso do rosto.
— Ele vai se manter do jeito que combinamos, mas algumas mudanças terão que ser necessárias. A começar por você me tirando daqui.
escutou a sentença e engoliu em seco. Tinha ouvido, não compreendido.
— Eu o que?!
— Não vou pedir pra você sacar uma arma e render toda essa gente até que saiamos pela porta da frente, se é isso que pensou — disse em tom óbvio, e até um pouco tedioso — Mas outras pessoas podem fazer isso pra mim e é você quem vai atrás deles.
O rapaz pareceu ligeiramente atingido. Os olhos piscaram rápido, o pirulito por pouco não escapou dos dentes.
— De que outras pessoas estamos falando, chefe?
— Uma gente que eu não me meteria sem a devida necessidade, mas é o que é — ele ergueu os punhos sobre a mesa, atados com as algemas de metal — Mas eles são bons, e tenho certeza que com a lábia e o incentivo certo, eles vão topar na hora.
— Tá legal, mas… Isso tem que ser feito agora? — frisou a palavra, olhando novamente para a porta da frente — Digo, eles acabaram de te prender. Com certeza ainda vão revirar o Odium mais duas vezes antes de fecharem tudo e se darem por satisfeitos. E se alguma coisa surgir até lá? Alguma coisa que me coloque no meio ou algum dos outros caras?
— Isso não vai acontecer em dois dias, . Pode acreditar — cerrou os dentes por um momento, jogando um aviso implícito na resposta: não seja um covarde — Os babacas aí fora com certeza olharam algo sobre você porque não são idiotas, mas não vão achar nada. E preciso que você use cada minuto do seus dias lá fora pra encontrar os nomes que vou te dar, e convencê-los a fazer o serviço, entendeu?
concordou com a cabeça duas vezes, os olhos ainda mais atentos do que antes.
— Tudo bem, entendi. Quem são os caras?
O sorriso astuto de por pouco não serviu como uma resposta pronta.
— Acho que você já sabe — disse com confiança. ainda mantinha a mesma expressão de confusão — Pensa bem…
— Você está exigindo demais. Tem ideia do quanto já pensei essa madrugada até chegar aqui? Não é mais fácil dizer quem, quando, onde… sei lá, endereço postal? — tirou o pirulito de sua boca para despejar seu estresse momentâneo em cima de , que permaneceu o encarando com a mesma feição, adicionando mais tédio em sua postura, porém.
— Na minha época de escola, se eu respondesse assim aos meus professores, ficaria de castigo… Talvez você esteja indo mesmo para o lugar certo, corrigir alguns modos enquanto eu fico aqui.
O pirulito voltou a ficar entre os lábios do mais novo, que assentiu lentamente para o que ouviu; reconheceu seu desespero daquele instante, mas já estava passando. Não precisava que viesse uma cartela de informações a mais, tinha compreendido muito bem o que quis dizer e aceitou em seu mais profundo íntimo a nova tarefa: e o faria com afinco.
Porém, quando ia questionar mais sobre o primeiro e principal plano, o agente corrompido do meio daquela situação, se fez presente.
— Acabaram? Preciso te levar de volta. — Ele se aproximou de , ainda sentado e com os braços esticados. — Se demorar mais pode me complicar…
— Tudo bem, já acabamos por aqui.
— Já? — A voz de saiu um tanto esganiçada e surpresa, e ele se levantou no mesmo instante que o fez, respondendo o agente com tranquilidade.
— Sim. — o encarou. — Você precisa ir logo, tem muito trabalho a fazer — disse, por fim, dando as costas para ele.

🔪💔


A passeata de para a saída foi ladeada com a mesma pose da chegada: nariz em pé, confiança e o ar patife que exibia abertamente por aí. A pose de um cara que não devia e não temia, por mais que a situação fosse completamente contrária.
Quando passou novamente pelo mesmo rapaz da recepção, a quem se recordava chamar Gon, deu uma piscadinha de leve e, logo mais à frente, a mesa organizada que trazia a placa transparente com o nome de , a investigadora que certamente já estava mostrando o quanto gostava de se meter onde não era chamada.
Era uma atitude inteligente continuar e sair pacificamente como um bom civil que não tinha culpa no cartório, mas algo naquela superfície metódica chamou a atenção de a ponto de baixar os óculos escuros e se aproximar descaradamente do móvel.
Duas pastas estavam posicionadas de forma um pouco jogada, reviradas, com uma folha de papel se sobressaindo de cada uma delas, escapando e revelando o bastante para que ele lesse o suficiente apenas olhando por cima, sem precisar tocar em nada.
As duas fichas não tinham nome, datas de nascimento, antecedentes e muito menos fotos. Falavam claramente sobre as identidades de duas pessoas, S. e M., mas não passava muito mais do que isso: uma letra e várias e várias linhas de fotos sangrentas, gargantas decepadas, dedos há vários metros do corpo e, principalmente, fotos das cartas, de todas elas, umas menos ou mais manchadas de vermelho, mas todas elas carregando a mesma mensagem: o padrão que ostentava o serviço muito bem feito dos dois assassinos mais bem pagos, e também mais procurados de Seul.
Dois malfeitores que não tinham nome, rosto e muito menos misericórdia.
A ficha tinha um certo tom cômico pela falta de detalhes. permaneceu parado, esticando os dedos para puxar a folha e ler mais um pouco, apenas para sentir o frio na barriga com a conexão bizarra que tinha a ver com a imposição de a poucos minutos atrás.
— Precisa de alguma ajuda? — a voz da garota veio por detrás de suas costas de novo, ultrapassando-o até chegar na mesa — De novo.
Ele ergueu um dos braços junto com as sobrancelhas, demonstrando rendição.
— Só reparando como essa mesa é brilhantemente mais limpa do que as outras.
— Fico lisonjeada pelo brilhantemente. Tenho ouvido isso o dia inteiro. Sabe? Depois que prendi o seu amigo — ela não o olhou quando se sentou e puxou as pastas quase abertas, tirando-as do campo de visão do garoto.
Mas não entendia um limite para ser detestável.
— A senhorita está querendo se meter com peixes grandes, não é? — perguntou, sem nenhuma hesitação — Eu vi as fotos. Acho que, perto desses caras, meu amigo ali não passa de um girino indefeso.
— Já viu uma colônia de girinos, senhor ? É destrutivo — ela sorriu sem humor — E homens como Yoo reproduzem centenas deles, e guardam muito mais do que mostram. Agora, se não se importa, acho que seu horário de visita acabou. Ou prefere ficar e responder algumas perguntas minhas? — disse, sugestiva e impiedosa. sentiu a ameaça em toda parte de seu corpo, mas não hesitou. Em vez disso, encarou a mulher com tanta intensidade quanto ela e arrancou o pirulito da boca apenas para dizer:
— Você ainda é novata — não era uma pergunta. continuou estática, sem entender — Só novatos tem esse sangue no olho e um senso dispensável de justiça, então, bonitinha, só por isso não vou ficar pra bater um papo. Gosto de mulheres mais fáceis — ele deu de ombros e começou a se afastar para a porta, enquanto entreabria a boca em perplexidade — Foi um prazer conhecê-la, senhorita . Espero que não nos esbarremos por aí de novo.


Arquivo 1

As sirenes abarrotaram a entrada do BOK tarde demais naquela noite.
Em uma confusão de gritos, chutes, disparos e alguns impactos surdos no piso, confiscava o que tinha ido buscar enquanto seus bodes expiatórios — que não sabiam o que eram até a hora certa — eram pegos ou eliminados pela revolta por todo o corpo da polícia coreana. Causar um caos fazia parte do espetáculo, que se iniciava com a buzina do ônibus escolar amarelo e terminava com o veículo vazio, assim como os cofres dos estabelecimentos e pelo menos ¼ dos responsáveis em total desaparecimento.
A situação daquele dia não tinha nada de diferente.
Aproveitando a deixa da bagunça, o rapaz juntou o máximo que pôde em mãos, bolsos e — quando se tratava de joias preciosas — pescoço e dedos, e curvou na saída residual e estreita de emergência do BOK, desembocando em uma rua ainda mais apertada, estrangulada tanto pelo edifício envidraçado do banco quanto por uma fachada simplista de uma cafeteria. As sinetas já piscavam em azul e vermelho, curvando na próxima esquina, e não demoraria nem cinco minutos para travarem todas as entradas e saídas em qualquer direção.
O Mustang 1987 estava estacionado não muito longe da porta de saída, o motor já rugindo em preparo para cantar pelo asfalto e desaparecer dali. olhou para trás uma última vez, certificando-se de nenhum olhar mais esperto ter seguido seus passos, e abriu a porta com força, saindo para o ar morno do início da noite e apressando-se para dentro do veículo, onde já tinha o pé a postos no acelerador.
— Vai! — gritou o primeiro, sendo prontamente obedecido antes mesmo que fechasse a porta do carona. Algumas notas voaram pela janela por causa da bolsa mal fechada, o que o fez xingar e resmungar, jogando-a para o banco de trás junto com as demais conquistas.
— Qual é o seu problema? Atrasou quase três minutos hoje! — murmurou do volante, jogando o cigarro pela metade janela afora, curvando bruscamente na avenida movimentada de Yongsan-gu, onde a polícia não se atreveria a invadir sem estar disposta a matar alguns civis.
— Já ouviu falar na merda que é bancar o herói? O cara estava implorando por um tiro na cabeça.
— Não me diz que matou alguém — os dentes do garoto trincaram, enquanto seus olhos averiguavam continuamente o retrovisor, atentos a qualquer movimentação que sugerisse uma perseguição; oficial ou não.
— Hoje não. Deixei isso na mão do Hong.
— Puta que pariu — bufou em cansaço, olhando de soslaio para o parceiro com perplexidade. Ele sempre dizia: faça somente o necessário. O dinheiro é o que importa, não adicione mortes e degolações na nossa sentença, mas, na hora de tomar decisões, parecia sempre considerá-lo como o garoto do TI e piloto de fuga. O cérebro da operação era muito bom para dar ideias, não para bater o martelo de nenhuma delas, sempre vítimas da impulsividade de .
— Fica tranquilo, você conhece o Hong. É um pouco temperamental — o outro balbuciou, relaxando um pouco mais os ombros à medida que se afastaram — Mas deu certo, não viu? 1 bilhão de wons. Com isso podemos até tirar duas semanas de folga.
— Nós nunca tiramos nem uma semana de folga — tinha os olhos cravados no retrovisor interno. A velocidade do Mustang não podia diminuir de forma alguma antes que chegasse há poucos quilômetros do destino, e que se danem as multas de trânsito — Como fica o lance do pagamento dos outros dessa vez?
— Ah, você sabe. Quando entramos, é cada um por si. Leve sua bolsa, escolha um cofre, pegue o dinheiro, essas coisas — deu de ombros, simplesmente.
— E os caras fazem um estrago e é a nossa reta que fica na frente da polícia.
— Você sabe que fazemos um estrago muito maior — o outro disse, em um tom óbvio — Mas esse é o fardo de ser o líder. Quando precisarmos de novo, eles vão estar lá.
não tinha muita certeza disso, mas preferiu não opinar. Já tinha dirigido o suficiente para reduzir um pouco da velocidade e se camuflar no meio de outros carros populares até os confins da cidade, desaparecendo por uma curva estreita de terra batida, onde desembocaria em um terreno plano que costumava ser industrial talvez na década de 80 e estacionando, finalmente, na frente do grande galpão aparentemente abandonado, lotado de pneus, mantas e grama alta.
Saindo do veículo com a bolsa nos ombros, caminhou até o fundos do lugar assobiando, sentindo que o céu e o ar estavam mais limpos naquele belo dia, destravando a fechadura eletrônica com mais felicidade que o normal enquanto puxava a manta sobre o Mustang com diligência, fruto da rotina, tentando se livrar da pulga atrás da orelha em relação ao roubo daquele dia que tinha envolvido um óbito, o que fugia totalmente de seus planos. Ele não era considerado um anti-herói totalmente contra matar, mas assassinato era algo que trazia dores de cabeça depois, sempre traziam.
Lá dentro, o barulho e o vento da rua mal penetravam aquelas paredes grossas de metal do subsolo. já estava com a bolsa aberta no meio da mesa larga, separando bolos e bolos de notas lacradas em valores de 50000 ou 100000 wons. O garoto não lhe deu atenção de imediato, virando-se para o outro lado para pegar uma cerveja no compartimento do frigobar.
— Acho que aquelas notas que voaram não vão fazer tanta falta assim no final — soltou uma risada alta, feliz como sempre ficava depois de um assalto. O outro garoto revirou os olhos e andou até seu universo particular: o canto do espaço, onde se jogou na poltrona grande e ficou de frente a pelo menos quatro monitores, um maior no centro, ligado a outros dois menores ao lado e um notebook fechado, conectando todos eles. Com um dedo no teclado, a tela principal se acendeu, mostrando o que ele queria verificar: as principais notícias. E achou o que procurava.
— Aquele idiota do Hong matou um e feriu mais 3, está feliz agora? — ele grunhiu, levantando-se devagar — Isso é o que o detetive chamou de “ainda verificando”, fala sério.
— Bom, é como eu disse: foi o Hong. Por que ainda tá esquentando a cabeça com isso?
A gente sabe que foi aquele boçal. Mas sabe o que andam fofocando no rádio da polícia? A grande dupla de ladrões e agiram de novo e mataram um civil. Porra — ele pousou a cerveja na mesa, expirando com pesar.
desviou os olhos da grana, erguendo o queixo para o mais novo com as sobrancelhas arqueadas.
— Seu moralismo de merda vai interromper meu momento de prazer de novo?
— Você não sabe conduzir esses caras. Ser conhecido como ladrão de primeira? Que se foda, não ligo pra isso, gosto muito de dinheiro também. Mas adicionar assassino na frente desse nome? Fala sério, é uma merda.
— Não acha que isso seja uma vantagem? O medo deixa as pessoas mais mansas, sabia? Nos dá mais poder.
— Medo é diferente de respeito, você sabe disso.
— E daí? As duas coisas levam ao mesmo resultado, no final — deu de ombros, pegando a cerveja do colega e bebendo um grande gole — Não vamos precisar provar que não matamos aquela gente porque não vamos ser pegos. Nunca, entendeu? Esqueceu do nosso plano principal?
— Aposentadoria — respondeu sem olhá-lo. estalou a língua, balançando a cabeça em negação.
— Não. Férias. Férias muito, muito longas — sorrindo, ele sacudiu um dos ombros do garoto — Itália, Espanha, talvez a Alemanha. Hm? Não era isso que você queria? E quando estiver lá, mal vai lembrar de quantas cabeças o Hong furou ou deixou de furar. Beleza? Pode esperar mais um pouco por isso e comemorar por hoje?
encarou o amigo com apreensão, mas, no fim, abriu um meio sorriso, afastando seus braços e andando de volta para os computadores.
— Vou apagar os rastros do Mustang das CTVs e dos rastreadores de velocidade — murmurou, sentando-se novamente na cadeira inclinável, virando-se para antes de começar — Mais dois bancos e então caímos fora. Tá legal?
O outro sorriu, assentindo.
— Claro. Mas antes das férias, teremos as duas semanas de recesso — ele riu, e revirou os olhos novamente, sem acreditar.
— Tudo bem. Duas semanas.

🔪💔


O lugar parecia ser muito mais reservado quando bateu o olho na localização pelo Google Maps, mas pessoalmente ela viu que estava enganada, porque aquele galpão tinha de tudo, menos qualquer requinte de querer passar despercebido – o que a fez querer soltar sua gargalhada mais honesta e longa ao notar quão burros a repartição de investigação de crimes especializados estava sendo mediante às quadrilhas que cada vez mais conseguiam passar "despercebidos" e continuar a plantar o crime por onde passavam. Em seu carro, parada à paisana há mais de quarenta minutos, ela se entediava com o rádio policial, tentando passar as horas com algo produtivo em seu joguinho no celular que a cada meia hora lhe lembrava estar quase sem espaço de armazenamento.
E o café tinha acabado. O que só estava lhe dando mais irritação.
Nenhuma movimentação, nenhum trombadinha pulando as grades altas e correndo pelo gramado extremamente alto. Nada. Nenhuma emoção ou qualquer coisa que estivesse custando seu tempo sendo gasto ali, fazendo valer a pena.
Se estivesse ao lado de Dawon, com certeza estaria ouvindo as reclamações de seu parceiro. Ele tinha sido bem específico sobre como estava sendo boba em continuar batendo naquela tecla: prender tudo e todos do submundo criminal da capital coreana. Dawon era novo, assim como ela, na repartição, mas já havia ouvido falar bastante sobre todos aqueles casos que vinha carregando em fichas embaixo do braço; todos tinham o mesmo prognóstico de não serem colocados como encerrados, porque ali corria muita propina, portanto, qualquer investigação em andamento seria sempre carregada de frustração. E, além disso, o maior dos casos que ela queria trabalhar em cima era de uma dupla assassina que não tinha sequer uma identidade como ponto de partida.
Porém, era muito determinada em tudo o que fazia, não seria diferente com sua profissão. Estudou e batalhou muito para ser aceita na polícia como investigadora, não iria fazer nada por baixo ou mínimo.
Custou muito para que ela tivesse tido apoio e licença legal para investigar e seu esquema todo de apostas e lutas ilegais. Até passou a assistir alguns episódios do drama que tinha como protagonista o ator flagrado saindo da Odium, pois fora naquele ponto que tudo passou a ser levado mais a sério e ela consagrada com sua investigação sendo aceita. O resultado, a prisão em flagrante de , foi seu maior triunfo, mas infelizmente não tinha sido suficiente para que se estendesse em suas outras quadrilhas — o que levou ela a estar ali, naquele momento, do lado de fora do galpão que viu o endereço no histórico de pesquisas recentes de , à espreita para recolher o máximo de provas que pudesse dele.
Em seu conceito, só sendo muito idiota ou corrupto para não ter dado continuidade em investigar todos os nomes que ela tinha em lista e que surgiram conforme foi tendo seu perfil cavado.
Mas seria assim, usaria de suas folgas para investigar sozinha, então. Um a um. Dupla por dupla. Quadrilha por quadrilha.
— Ah, merda! — bateu a mão no volante quando o celular em sua mão desligou, justamente no momento que fazia uma sequência perfeita em seu jogo do baralho online. Ergueu o rosto, deixando o aparelho de lado, e olhou para frente.
Seu coração parou, mas seu rosto formou um sorriso imediato.
Logo a frente, abrindo o portão da grade, tinha uma pessoa que ela queria muito encontrar no submundo investigado, embora não houvesse rastros nenhum dele. Afinal, era esse o atual dono do seu foco.
olhava para os lados quando entrou na propriedade, com seu tão fiel acessório no topo de sua cabeça: o óculos preto de modelo aviador. Seus passos eram cautelosos, como se estivesse adentrando aquelas imediações pela primeira vez e ainda não fosse familiarizado. E, achando isso tão cômico quanto peculiar, riu fraco do modo jovial que ele se portava, ainda que usasse roupas que o deixassem com uma aparência inabalável e intocável. Seus trejeitos denunciavam como ainda era um pouco novo naquilo tudo e toda a cautela mostrava que ele ainda precisava ser mais experiente como os demais nomes que já tinha visto serem investigados antes. Assim como , o suposto chefe ou parceiro dele.
— Isso vai ser interessante. — Ela murmurou, pegando a câmera no banco ao seu lado e se posicionando para tirar fotos, não limitando-se à quantia e o zoom dado.
Ele parou diante da porta, com as mãos nos bolsos e cabeça baixa, esperando depois de ter batido algumas vezes. Ela se afundou no banco quando o viu varrer seu redor com o olhar, sendo uma busca mais incisiva, como se procurasse o que pudesse lhe incriminar e banir somente com seu olhar. A porta foi aberta e teve sua atenção tomada para frente novamente.
não conseguiu ver, porque quem abriu não apareceu, mas continuou tirando suas fotos e decidiu que permaneceria ali, mesmo que seu celular desligado fosse um excelente motivo para ir embora.

🔪💔


Se por fora parecia abandonado, por dentro tinha, objetivamente, uma aura dual.
De um lado do interior do galpão tinha uma zona mais organizada, com computadores, mesas, equipamentos de todos os tipos — até mesmo rádios ligados na mesma sintonia da polícia local — e absolutamente nenhuma desordem. A julgar pelo jeito do cara que tinha aberto a porta para ele, diria que não seria dele aquele espaço, porque com certeza quem usava aquela mesa tinha, no mínimo, um óculos no rosto e cabelos penteados para trás de forma totalmente alinhada. O oposto completo de .
Com certeza o lado contrário do galpão era dele.
Tinha um sofá de cor escura — ou talvez fosse sujeira mesmo —, uma mesinha logo à frente do móvel, cheia de latinhas de cerveja e uma caixa de pizza pela metade, garrafas de soju e na televisão logo ao lado, passava a partida do que ele reconheceu ser futebol americano. Era um pouco menos organizado e trazia um ar despreocupado, prático e de quem usava o cabelo vermelho, com alguns fios espetados e um sorriso independente, sem qualquer sombra de preocupação, mesmo sendo um nome sempre citado no viés criminal.
Inclusive, sabia que era ali, porque o que tinha de conhecimento da dupla que o disse que deveria procurar era como eles tinham suas personalidades plantadas no meio do submundo do crime, pelo famoso boca a boca. tinha ouvido falar sobre eles algumas vezes durante o início de seus dias na Odium como o novo braço direito de e, depois da prisão que o obrigou a ir atrás dos dois, fez outra pesquisa mais aprofundada, se surpreendendo que o endereço a qual havia chegado, por fim, era tão descarado. Tão óbvio. E nessa sua lição de casa, novamente se deparou com os traços das personalidades: um é teórico, o outro é prático.
Uma simplificação para dizer que era racional e não.
— Já está rolando o Super Bowl? — perguntou, apontando para a televisão. caminhava em sua frente, indo para a geladeira um pouco mais ao fundo, numa cozinha que pegava a parte de trás dos dois ambientes, que, inclusive, eram divididos por uma mesa no centro. — Esse ano a apresentação vai ser bem interessante, vários artistas de hip hop… — continuou, tentando jogar conversa fora antes de plantar as cartas na mesa.
O barulho da porta da geladeira batendo forte fez se assustar, virando o rosto para a direção de . Estava parado na lateral da mesa, de costas para o ambiente dos computadores, podendo ver a televisão com um ângulo melhor. O silêncio de seu anfitrião começou a deixá-lo incomodado, então desviou o olhar.
Por poucos segundos, pois logo em seguida, a garrafa verde de soju bateu na mesa em sua frente, fazendo um barulho alto outra vez. Novamente ele se assustou.
— O-obrigado. — agradeceu em um fio de voz, pegando a garrafinha para levar à boca, enquanto seus olhos acompanhavam e sua caminhada até o sofá.
Sentado de frente para ele, com os pés na mesinha, bem no único espaço que ainda restava, ele ergueu o rosto e perguntou:
— Você não veio aqui só para tietar artista americano passando na minha televisão, veio?
virou o líquido, desviando o olhar e se concentrando outra vez.
— Não. Seu parceiro vai demorar? Acho que seria melhor falar com ele também… — disse, colocando a garrafa sobre a mesa. — Assim vocês dois já pensam juntos.
— Não nasci grudado com . — O tom de foi neutro, porém seu olhar parecia carregar uma seriedade da qual não estava pronto. — Pode falar o que tanto você quer com a gente e te trouxe até aqui… Respeitamos muito , então não se considere ter sido sortudo — disse em complemento, gesticulando com a mão que segurava a garrafa; a outra estava pousada no encosto do sofá, por seu braço esticado.
— Bem — deu de ombros. —, é algo um tanto simples. Como sabe, foi preso em flagrante.
— Trágico, mas isso pode acontecer com qualquer um — bebeu seu soju, parecendo não ligar o mínimo para a informação. — Continue — maneou a cabeça, dando a deixa.
— Precisamos tirar ele da detenção provisória, antes do julgamento, e para isso você e são os nomes mais confiáveis e que sabe que pode contar.
— Ele é uma cédula?
— Quê? — não compreendeu, arqueando a sobrancelha.
— Seu chefe, ou parceiro… Tanto faz. Ele é uma nota de won? — repetiu.
— Não.
— Um diamante? — perguntou outra vez.
— Não. Mas o que isso tem a ver?
— Somos ladrões de bancos, garoto. Não salva-vidas barra heróis. — Ele riu, bebendo o soju outra vez. — Se ele acabou se metendo atrás das grades porque não teve o cuidado certo em se manter fora do radar da polícia, não tenho nada a ver com isso. Ele precisa de um advogado, não de dois ladrões numa missão. Não é Marvel ou DC.
— Ele pode oferecer dinheiro. — rebateu, sem muita paciência para detalhar. — Muito dinheiro, na verdade.
— Mas é claro que valeria dinheiro. Nada nessa vida é feito de graça.
— Pode ao menos ouvir? Você conversa com sua dupla imbatível sobre o assunto e me telefonam de volta dando o parecer de vocês — proferiu mais irritado, vendo que estava a pouco de realmente ter perdido tempo demais indo até ali e que, realmente, o estereótipo dado para a dupla parecia ser real. Um gesto de mão deu novamente a deixa para que ele continuasse: — Daqui alguns dias irá rolar um leilão de pedras preciosas e raras, já tem esse leilão visado há muito tempo, porque ele está em plano por mais de dois anos. A última pedra chegará essa semana, porque foi encontrada tem poucos dias; então, ele precisa sair da cadeia para que a gente consiga ir nesse leilão.
— E qual é o plano de vocês, gênio?
— Ainda não tínhamos porque precisávamos saber como de fato vai ser todo o esquema do negócio… Digamos que o leilão é a segunda parte. Porque pra ele acontecer, a gente precisa primeiro tirar o da cadeia; ele saindo da cadeia, nós focamos no leilão e aí você e terão o pagamento de vocês.
Johooney estalou a língua no céu da boca. Levou segundos encarando , com os dois sendo banhados pelo silêncio corrompido por causa da narração em volume médio na televisão sendo interrompida pela apresentação do intervalo — o famoso show do Super Bowl.
— Estamos falando de quantos milhões? — A pergunta veio como resposta perto de completar dois minutos da conversa pausada.
— A pedra mais barata vale dez milhões. E estamos falando de dólares. — se segurou para manter o olhar centrado e não parecer tão emocionado. — São, no mínimo, dez de uns cinco modelos diferentes.
Viu o peito do outro inflar e os olhos brilharem. bebeu um longo gole de seu soju e virou o rosto para o lado, vendo a apresentação que passava.
— Gosto de Eminem e você? — disse, sem desviar a atenção dali.
imaginou que o suposto cifrão já havia arrematado o coração dele e se permitiu sorrir ladino, ajeitando o óculos de sol em sua cabeça, para beber mais do soju e se sentir confiante em sua postura.

🔪💔


Quando dobrou a esquina da vegetação em frente ao galpão, a garota acabava de abrir a porta do carro.
Frear os passos foi sua reação imediata. Automaticamente, sua mão voou até o cano da pistola escondido atrás da cintura, e sua respiração era muito mais baixa do que o vento. Ele viu que ela também tinha uma elevação debaixo do blusão na área do quadril, e não hesitou nem um momento quando um corvo sobrevoou seus ombros a uma distância considerável, revelando segredos que estavam explícitos para quem prestasse atenção: carne morta, ossos desfigurados e tantas outras coisas escondidas naquele buraco que ninguém queria pisar.
Ninguém.
Ele avançou à medida que ela fazia o mesmo. A mulher parecia desprezivelmente despreocupada enquanto andava a passos firmes, porém discretos, em direção à porta do galpão, inclinando a cabeça à medida que tentava observar mais para dentro, de um jeito mais profundo, pescando qualquer movimento ínfimo que não fossem de pássaros carniceiros ou ratos que moravam nos entulhos.
, seu desgraçado, o que você fez? Ou o que eu fiz? Quem estacionaria aqui de uma hora para outra?
Ele teve de deixar a sacola com as latas de cerveja e a pasta de dente em cima de uma superfície de concreto, andando agora um pouco mais rápido, esticando os olhos para averiguar o veículo estático. Era um carro comum, de um civil comum, e seu cérebro havia registrado a placa assim que bateu os olhos nela. Seus olhos queimaram pelo reflexo do sol forte no retrovisor, e ele viu o momento exato em que ela parava, levava as mãos para o bolso de trás e puxava o telefone.
tinha a chance de soltar lágrimas de vergonha caso o que estivesse desconfiando não passasse de um nada. podia estar fazendo um milhão de coisas em um galpão nojento e abandonado – e, pelo porte do sujeito, envolvia o padrão de quem cuidava de uma casa de apostas: sexo, drogas e bebida. Não era motivo o suficiente para prendê-lo – pelo menos, não sem ter que vê-lo saindo pela porta da frente na manhã seguinte com o devido pagamento de fiança.
Mas algo a dizia que o risco valia a pena. Que o combo marginal de prazeres sórdidos de poderiam ser conseguidos em um lugar melhor, mais limpo. Ele era um homem de preferências, pelo amor de deus! E seu nível tinha se tornado bastante elevado desde que começou a trabalhar para , sabia. Ela tinha refeito seu dever de casa com ainda mais afinco depois de presenciar aquela postura arrogante e aquela língua venenosa na delegacia.
Não existia a menor possibilidade de que algo sério não estivesse acontecendo ali.
E com esse pensamento, ela pegou o telefone, pronta para ligar para Dawon e pedir sua presença, pedir a presença de todos que estivessem disponíveis porque tinha descoberto algo realmente relevante, mesmo que fosse a pessoa menos interessante para que o departamento de polícia de Seul perdesse o seu tempo.
Na sua cabeça, era apenas a ponta do iceberg de um enorme esquema inimaginável.
No entanto, antes que a ligação se completasse, uma voz soou simpática há poucos metros de suas costas:
— Posso ajudá-la?
se virou imediatamente, levando as mãos para trás em um arfar intenso enquanto o garoto erguia as duas mãos para cima em sinal de rendição.
— Oi pra você também — ele tentou sorrir, mas seus olhos rápidos tentavam focar na tela do telefone agora exposta, buscando o nome de ou qualquer coisa que a identificasse. Torceu para que não fosse nenhuma das garotas que ele havia largado em um quarto de hotel e desaparecido no dia seguinte. Em uma retrospectiva da vida do parceiro, percebia-se que ele tinha forte tendência a se envolver com mulheres vingativas.
não pensou na hora sobre a impossibilidade de mais alguém aleatório ter acesso ao espaço empoeirado. Escutando a voz longínqua de Dawon no telefone, ela o desligou imediatamente, colocando-o de volta no bolso e ajeitando a postura, agora encarando bem o rapaz. Parecia ter a sua idade. Ou ter idade o suficiente para ter carteira de motorista.
— Quem é você? — perguntou em sua melhor voz profissional, o que não foi muito inteligente porque, tecnicamente, ela não estava trabalhando. Era a hora certa de soar como uma estudante da Universidade de Seul com um cartão ilimitado e um carro bacana, não como uma detetive.
— Posso ajudá-la? — ele voltou a perguntar, vendo-a relaxar as mãos agora ao lado do corpo. Parecia ter dedos ágeis, mas ele também tinha. Aquele solo desleixado seria o palco de uma bela luta caso a garota desconhecida tentasse entrar no galpão.
O sorriso educado dele foi um catalisador para que ela, de repente, se achasse uma completa maluca pela reação impulsiva.
— Você trabalha aqui?
— Existe alguma coisa para se trabalhar aqui?
— Uma limpeza seria interessante — murmurou. olhou brevemente ao redor, percebendo que em nenhum lugar de sua memória morava uma imagem daquele lugar minimamente limpo e apresentável.
— É, tenho que concordar. Outro dia me disseram que ratazanas comem umas às outras aí dentro, fora o festival de morcegos, parece assustador — ele deu de ombros, despreocupado e superficial. fez uma leve careta de asco — Mas e então, está procurando alguma coisa? Talvez eu possa te ajudar. Vivo de papo furado com aquele velho da oficina na outra quadra, ele vive despejando coisas nesse terreno.
— Ele não pode sair despejando coisas aqui, é uma propriedade do governo — ela soltou sem pensar, e levantou uma sobrancelha.
— E você vai denunciá-lo à polícia? — A ironia veio acompanhada de seu orgulho absolutamente intacto. abriu a boca para responder, mas fechou logo em seguida, sem respostas imediatas que não a entregassem.
E segurou um riso pela situação.
não queria se sentir acovardada e humilhada, mas se viu perguntando em voz baixa:
— Sabe me dizer se alguém mora aí?
repuxou os lábios, aparentemente lembrando de um fato e não refletindo em uma melhor resposta.
— Além das ratazanas? Tenho certeza que não — ele abriu um sorriso fraco, mas convincente. Não deixava qualquer margem para que alguém duvidasse — Se alguém entra aí dentro, não é pra ficar por muito tempo, pode acreditar.
— Pra esconder algo não precisa de muito tempo.
— O ser humano tem diferentes prazeres. A fila de senhoras ao lado da oficina também pode te confirmar isso. Algumas vezes elas veem um ou outro carro estacionado aqui pra se embrenharem no escuro, mas os barulhos não passam despercebidos. Acho que entende o que eu digo.
Agora o sorriso dele era sugestivo, recheado de malícia cômica. Deixou que lembrasse de outro garoto, um dos vários delinquentes que tinham os braços atados direto para o reformatório no lado sul da cidade por se meterem com coisas afiadas e caixas registradoras de lojas de conveniência. Sua resposta imediata foi um arregalar de olhos e um barulho estranho no fundo da garganta como se repelisse a ideia, ou algo muito próximo disso.
— Com as ratazanas?
— Pessoas casadas não são tão exigentes quanto você pensa, senhorita Shakespeare.
franziu o cenho, e reparou que ele alternou o olhar entre seu busto e seu relógio velho e castigado no pulso.
— Senhorita Shakespeare?
inclinou o queixo para a parte frontal do tórax da garota, que seguiu a indicação com atraso, ainda um pouco confusa. O rapaz soltou um suspiro pesado e disse:
“Há mais perigo em teus olhos do que em vinte espadas!” Puta merda. Todo o drama de Romeu e Julieta acaba ficando um pouco melhor quando é estilizada em um pedaço de lã.
Sem entender se aquilo se tratava de um elogio, perguntou:
— Gosta de Romeu e Julieta?
— Conhecer não significa exatamente gostar.
— Mas existem razões pra se conhecer alguma coisa.
Changkyung quis soltar uma risada e encerrar o assunto porque, de repente, ficar jogando papo fora com uma garota estranha que estava procurando alguém onde não se procurava coisa nenhuma pareceu uma ideia de merda, mas, reparando em uma mecha de seu cabelo que caía na testa e naquele olhar decidido e confuso ao mesmo tempo, ele achou interessante parar e olhar por mais um tempo, só um pouco.
Até que um telefone vibrasse loucamente e interrompesse aquele silêncio apreensivo.
encarou a tela. Era Dawon, com certeza irritado por ter sido interrompido à toa, mas logo teve a chamada recusada enquanto ela limpava a garganta e se preparava para sair.
— Acho que tá ficando tarde. Eu vou indo. Obrigada pela ajuda.
Com uma sobrancelha erguida, ele a viu andar até o carro novamente, abrindo a porta enquanto ainda mantinha os olhares furtivos pelo espaço.
— Disponha, senhorita. Foi um prazer — ele fez uma pequena continência divertida e sarcástica, e o encarou uma última vez antes de entrar, erguendo os olhos para o teto da estrutura antiga antes de arrancar com o veículo, jogando a nuvem de poeira para todos os lados.

🔪💔


não era conhecida por ser uma pessoa flexível.
Uma ideia plantada permaneceria estática em completa inércia até que outra coisa mais urgente a tirasse daquele eixo. Poucas coisas tinham esse poder. E, mesmo com todas as pastas fechadas e empilhadas em cima de sua mesa, gritos e telefonemas recorrentes por toda a delegacia sobre crimes violentos que estavam acontecendo naquele exato momento, lá estava ela de novo, parada dentro do carro, estacionada em frente ao galpão imundo e desagradável, 2 dias depois que estivera ali pela última vez.
E, novamente, estava pronta para digitar o número de Dawon a qualquer momento.
Antes que começasse a se entediar, ela viu surgir da mesma estrada de antes, um pouco mais tarde desta vez, caminhando para a mesma entrada larga da estrutura. se encolheu ainda mais no banco, travando o maxilar de apreensão, seguindo cada passo do homem com veemência. Ele parou entre as duas pilastras enferrujadas da frente, tragou duas vezes o cigarro e jogou-o no chão, soterrando-o com os pés antes de dizer em uma voz suspirada:
— Que saco.
E sumiu novamente pelo mesmo lugar em que tinha entrado pela primeira vez.
Sem perder tempo, destrancou o carro devagar, mantendo os passos leves sobre o chão empoeirado, a mão em prontidão no quadril, atenta a qualquer sobressalto suspeito que poderia surgir das sombras, ou surgir de qualquer outro lugar. Andando mais rápido, ela quase chegou ao acesso escuro e asqueroso da infraestrutura quando ouviu uma resposta deliberada há alguns metros:
— Senhorita Shakespeare?
Como uma amadora, ela se virou para trás em um salto, as mãos agora literalmente segurando no cano da pistola.
Desta vez, estava escuro. Só por isso ela não foi capaz de ver recostado nas pedras polidas do meio dos entulhos, não ouviu seus passos silenciosos quando ele mudou de posição para observá-la quando estacionou o carro, não viu sua sombra passando pelo para-choque enquanto o sujeito lia a placa e, de quebra, conseguia enxergar a hesitação da garota segurando o celular, olhando e largando-o, roendo as unhas e movendo as costas sem parar. Mas, além de tudo isso, conseguiu ver o principal.
Ele viu a arma. E viu as verdadeiras intenções da mulher quando seu alvo chegou, na forma de um cara alto e meio paspalho, trajado de jaqueta vermelha e óculos aviador, fumando um cigarro caro e extravagante.
Mais da metade do quebra-cabeça se encaixou quando saiu do carro.
E também não era conhecido por ser flexível.
— Não quero acreditar que você realmente ficou interessada nas ratazanas — ele continuou mesmo diante daqueles olhos assustados. Em seguida, viu quando ela endireitou as costas, movendo os olhos para todas as direções em agitação, como se esperasse que mais alguém fosse aparecer do nada.
— O que faz aqui? — perguntou com intensidade. Aos poucos, seu coração ia se esticando do fundo do estômago, voltando ao seu devido lugar depois da surpresa.
deu de ombros, descontraído. Não havia absolutamente nada de suspeito em sua postura — como sempre. Carregava propositalmente uma sacola plástica sem nenhuma logo, jeans de 10.000 wons, camiseta neutra e cabelos desvairados. Nenhum adorno, nenhuma característica especial. Dava para apostar que ele não passava de um garoto desempregado.
— Eu já disse. O velho da oficina, as senhoras que gostam de bater um papo…
— Há quanto tempo você está aqui? — interrompeu antes que aquilo virasse um monólogo. O rapaz tinha uma língua fácil. Não, tinha uma lábia fácil. O que era perigoso, porque ele era um pouco atraente — Você viu um homem entrando ali, não viu?
Ele olhou na direção indicada. Agora o breu não permitia nem que as pilastras aparecessem. enrugou a testa, novamente com a expressão reflexiva.
— Hã… Não. Você está vendo um homem ali? — pareceu sinceramente confuso. Fez com que se virasse e olhasse novamente — E se alguém entrou nesse buraco, eu não estou nem um pouco interessado em saber porquê.
Talvez não tenha sido a resposta certa. tornou a se virar para ele, agora com os olhos chamuscados de atenção.
— Então também acha que podem estar fazendo algo ilegal?
— Ah, com certeza estão fazendo algo ilegal, senhorita Shakespeare — ele levou as mãos nos bolsos da frente, estendendo o olhar para a entrada quase desaparecida na penumbra e, logo depois, de volta para ela: — A pergunta é: todas as coisas ilegais valem o seu tempo?
franziu o cenho. A expressão de continuava impassível.
— Desculpe, não entendi.
— Sabe… Muita coisa é ilegal nesse país, mas algumas delas só fazem mal a quem pratica. Fumar um baseado, transar com uma prostituta, aplicar metanfetamina até necrosar um membro, que diferença isso vai fazer na vida daquelas senhoras fazendo tricô na calçada? — seus braços se alongaram rumo à estrada logo atrás, onde só se viam metade dos postes iluminados e pequenas janelas acesas em casas baixas — Lei e ordem são muito necessárias, mas existe uma disputa muito grande em todas as pessoas sobre quem se destrói primeiro. Ninguém tem saco para monitorar isso. A não ser que você seja uma vigilante das séries de TV — e com um sussurro sugestivo, completou: — Ou então uma policial.
baixou os olhos na hora, temendo que estivesse sendo muito óbvia. Não é porque o garoto atraente com tênis da coca-cola parecia ser um palerma que precisava saber de seus verdadeiros planos.
— O que você está fazendo aqui mesmo? — ela coçou a cabeça para gesticular a mudança de assunto. Ele piscou os olhos e ergueu um braço, mostrando a sacola amarelada, que estava cheia de barulhos metálicos.
— Despejando coisas, lembra?
— Ah. Certo.
levou um momento para se dar conta de que ele se referia à verdadeira função daquele espaço inabitado: um grande depósito de merda e entulho.
Ah, e que com certeza chamava a atenção de .
observou aquele rosto pensativo, irritando-se por dentro. Qualquer um já teria desistido. Qualquer um nem teria entrado aqui, para início de conversa.
— Hum… Quer entrar lá dentro? — a voz dele saiu suave e imperturbável, como se entoasse um bom dia qualquer. ergueu o queixo novamente. A posição de suas sobrancelhas demonstrou total embaraço.
— O quê?
— Posso entrar com você — reiterou, dando de ombros mais uma vez — Matar a sua dúvida sobre o que o pobre rapaz deve estar fazendo. Podemos descobrir uma legião de corpos, quem sabe. Sou bom em achar coisas bizarras.
Que bom, pensou em responder, com uma nova expectativa nascendo em seu peito, mas que logo se apagou, dando lugar à cisma que sempre considerou vir na hora certa.
— Você faria isso? — por que?!, ela pensou em completar, ou chamá-lo de louco logo em seguida, mas ele parecia tão despreocupado e decidido que nenhuma dessas palavras o afastariam.
— Claro. Não estou fazendo nada mesmo — sorriu, e se sentiu brevemente estranho por isso — E lidar com gente sinistra parece ser interessante, não tenho muita experiência em sentir adrenalina. A não ser quando os cachorros do senhor Nam pensam que tenho biscoito nos bolsos, aí já vira uma corrida pela vida.
soltou uma risada, e aumentou o sorriso. Houve um instante breve e desconfortável enquanto os dois tentavam voltar a seus devidos personagens. Já existiam tantos mosquitos ao redor que, logo mais, precisariam ser detidos aos tapas. Toda aquela grama nos tornozelos era mais do que incômoda, e crescia tanto em alguns pontos que ficava difícil até mesmo de enxergar o asfalto. Em um pico súbito de realidade, ela se perguntou pela primeira vez o que estava fazendo em um lugar daqueles sozinha, guiada por uma desconfiança tola de um cara que com certeza estava fazendo coisas ardilosas, mas coisas ardilosas que não acrescentariam em nada em sua investigação principal.
não parecia ser um cara muito inteligente. Não ao nível de seu chefe, pelo menos, que foi preso com tantas acusações acumuladas no decorrer de anos que era totalmente compreensível que não achasse que fosse pego algum dia. Mas , montado em sua jaqueta e óculos característicos, tinha a astúcia de um criminoso estampada; na aparência, não guardada em seu cérebro. Como dissera o outro cara do terreno: o que quer que ele esteja fazendo lá dentro, não passava disso: vícios humanos. Necessidades fisiológicas e autodestrutivas. Existiam palestras e grupos anônimos para ajudar nisso, não ela.
Pela reação outra vez absorta da garota, não devia estar esperando que ela aceitasse a proposta. Mesmo assim, seus dedos começaram lentamente a migrar para as costas, onde a Taurus estava perfeitamente localizada e pronta para uso. Quanto mais ela demorava, mais inquietos os olhos de ficavam, porque um mentiroso nato sempre vacilava em algum ponto visível do corpo.
Se se desse ao trabalho de reparar bem em seus olhos, veria que aquele cara não estava tão tranquilo assim.
— Não, tudo bem — ela responde, por fim, deixando-o ligeiramente surpreso. As mãos relaxaram e voltaram para a frente devagar, e a constatação de não precisar usar a Taurus fez seu estômago parecer vazio — Acabei de lembrar que tenho um assunto mais urgente para resolver, então vou nessa.
Com um meio sorriso de canto, ela começou a se afastar para o carro estacionado. deu uma risadinha fraca, virando-se rapidamente para ela.
— Vai desistir da sua caçada às práticas sórdidas do ser humano ou vou te ver de novo por aqui?
Ela parou com as mãos na maçaneta, suspirando antes de responder com uma careta incerta.
— Sinceramente, não sei te responder isso.
— Eu consigo responder que seria interessante te ver de novo — a resposta saiu de repente, mas minimamente calculada. Os pontos se ligavam a todo instante. Se ela voltou duas vezes, poderia voltar uma terceira e isso não devia acontecer — Não aqui, é claro. Por Deus. Mas… — ele desceu o olhar pela sua camiseta mais uma vez, que hoje ostentava um desenho de flores brancas na malha preta — “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia.
permaneceu estática, verificando seu tórax instintivamente, mesmo sabendo perfeitamente a roupa que usava. O tom melodioso usado por ele foi charmoso e bonito. Deixou-a sem uma resposta imediata.
— Não estou usando uma camiseta de Hamlet hoje.
— Eu sei, mas quis te impressionar — então sussurrou, aproximando-se a dois passos: — Deu certo?
Ora, sai daqui! Era a primeira coisa que queria gritar, que tinha aprendido a gritar quando um rosto desconhecido chegava perto daquele jeito, mesmo que ainda se mantivessem separados há alguns metros, mas aquele garoto…
— O que te faz pensar que vou sair com um cara que conheci no meio do nada? — arqueou as sobrancelhas, tentando esconder toda a sua agitação interna e maluca.
Ele novamente levantou os ombros, totalmente sossegado.
— Curiosidade, talvez. Possibilidades, expectativas. Coisas que sempre agitam o sangue.
— Não sei nada sobre você.
— As pessoas não saem umas com as outras justamente para descobrir?
se viu novamente sem uma rebatida instantânea. Existiam pelo menos 15 pessoas morando em torno de sua região, com bons empregos e boas casas que naturalmente mereciam a chance de um encontro, pessoas com identidades limpas assim como sapatos impecáveis. Então por que ela ainda estava ali?
— Eu nem sei o seu nome — disse, a ponto de gaguejar.
Desta vez, não tinha a contestação na ponta da língua. Aquela garota não era ninguém. Era uma estranha, desconhecida, que tinha sido instigada a estar ali graças ao estúpido parceiro de e que poderia complicar minimamente o resto de paz que ele e estavam tentando manter até caírem fora. Além disso, nada. Ela não conheceria seu quarto. Ela não duraria mais que 12 horas caso descobrisse alguma coisa. Era totalmente sem importância. Não se dizia seu nome a pessoas assim.
Mas o que ele estava fazendo hoje não se classificava em nenhuma regra que já seguiu na vida.
. Sem necessidade de formalidades — ele estendeu a mão muito naturalmente, e ela a encarou por um instante antes de apertá-la.
— e respondeu com a mesma leveza que ele, como se fosse a coisa mais espontânea do mundo na Coreia se apresentar sem o uso de um sobrenome.
Como se já fossem amigos.
Ficou mais fácil para dizer:
— E então, ? Vai considerar que eu estava prestes a me meter em uma caverna cheia de limo, mofo e criaturas hostis por você e aceitar tomar um café comigo um dia desses?
Ela soltou uma risada sarcástica, revirando os olhos.
— Não pedi pra você explorar nada comigo, .
— Eu sei que não, mas, sabe… “A beleza provoca o ladrão mais que o ouro”.
Ela riu outra vez, agora um tanto pasma.
— Sabe bastante coisa sobre Shakespeare. Quer vir junto para o clube do livro?
— Tem café?
— Claro, é um clube do livro.
— Então ‘tô totalmente dentro, senhorita Shakespeare.
arregalou brevemente os olhos em divertimento, começando a achar o apelido engraçado. Ou uma graça. Não importava o que sua consciência dissesse agora, ela não estava ouvindo.
— Sua memória é boa pra gravar números de telefone também?
— Diga e faça o teste.
De propósito, recitou uma sequência de números mais rápido do que diria para qualquer outra pessoa. Fazer as coisas desse jeito valeu a pena só pela expressão de choque genuíno no rosto de .
— Não vou dizer duas vezes. Vou nessa — finalmente, puxou a maçaneta da porta, preparando-se para entrar.
Ele permaneceu parado, como se tivesse sofrido um golpe na cabeça e tentasse entender de qual direção tinha vindo. Logo mais, estava sorrindo, e aquele parecia um pouco mais verdadeiro.
— Até mais, senhorita Shakespeare. Até muito breve, eu espero.
expulsou todo sentimento diferente e estranho que queria fazer uma exploração em seu peito e entrou, por fim, no banco do motorista, ligando a chave logo em seguida e arrancando para longe como da última vez.
Protegendo os olhos da poeira, abaixou os braços e ergueu a cabeça para o céu, para o ínfimo ponto de luz despercebido no poste mais próximo, ligado à energia de todos os seus equipamentos do lado de dentro, achando-se imbecil por aquele mísero detalhe.
Não existia mais sorriso. Não existia mais nenhum resquício de divertimento. Agora todos os seus músculos faciais travavam de aborrecimento, a expressão mais séria do que nunca enquanto certificava-se que os faróis desapareciam. Então, movendo os pés para dentro do edifício, ele grunhiu e bateu a primeira porta, deixando que os outros dois ouvissem sua chegada.

🔪💔


Diferente da primeira vez que tinha ido àquele lugar, existia algo novo no ar e não era alguma fragrância, tinha um faro muito bom para afirmar que não tinha nada a ver com cheiro, parecia muito mais com a energia. Soava mais positivo, como se estivesse sendo melhor recebido agora; não é como se a ligação de sendo aceita pela segunda tentativa pudesse lhe afirmar como um novo amigo dele e do parceiro que, ainda, não tinha um rosto figurado em sua mente. Mas parecia um pouco menos detestável do que sua primeira tentativa — e agora não passava a partida final da NFL, tinha um desenho animado qualquer na televisão.
Estava escuro, até mesmo porque do lado de fora já não tinha tanta luz clara do céu, apenas a lua que se iluminava cada vez mais. Não tinha as tantas garrafas vazias de soju e a parte mais polida, de aparência menos caótica, de dentro daquele balcão estava com os computadores ligados. Certamente, movido por sua curiosidade maior, caminhou para aquela direção; qualquer jovem como ele teria sua atenção captada sem nenhum esforço por todo aquele equipamento, e ele foi andando levemente como um ser hipnotizado por uma serpente. No caso, uma serpente com muitos fios e de aparente sistema bem evoluído e tecnológico.
Gostava de tecnologia, embora gastasse seus dias atuais andando por aí e limitado apenas ao uso de um aparelho telefônico; quando era mais jovem, antes de se interessar pelo submundo que vivia atualmente, depois de conhecer em uma de suas apostas de bom resultados, tinha o sonho em ser um jogador de jogos online profissional — mas isso não perdurou, pelo menos até ter certeza de que gostava mais da adrenalina real de se esgueirar pelos lugares perigosos de Seul, se tornando o braço direito de um dos maiores nomes procurados até então; agora parecia mais interessante viver ao vivo e em carne o que geralmente fazia no GTA em seu Playstation.
Passou o dedo pela mesa assim que se aproximou por fim, cessando toda a distância que estava maltratando sua curiosidade de garoto. Tinha uma textura diferente, inovadora, como se a madeira fosse unicamente produzida para suportar todas aquelas telas e um CPU potente. Os três teclados brilhavam, cada um em uma cor, e um deles possuía teclas diferenciadas, em uma sequência que ele não soube reconhecer. Mas era muito bonito e , mesmo sem se ver em algum reflexo, sabia que estava com seus olhos brilhando em tamanha admiração.
Olhou tecla por tecla, monitor por monitor, sequer passou pela sua cabeça o detalhe de parecer estar sozinho ali, e que quando havia chegado a porta estava aberta e sem nenhum sinal de . Nem mesmo ao fundo, na parte não iluminada, parecia ter algum resquício da presença dele. Porém, não entrou em sua linha de preocupação naquele momento.
E nem no próximo, quando pareceu que sua alma iria sair do corpo ao ouvir uma voz grossa lhe trazendo de volta para uma superfície que ele jamais teria voltado.
— O que pensa que está fazendo? — Lhe disse, no momento que iria sentar-se na cadeira.
Seu coração acelerado poderia ser ouvido a quilômetros de distância e, pelo susto, certamente lhe tirando de todo aquele transe de garoto bobo, pareceu que sua pressão havia sido alterada e juraria de pé junto ter sentido uma vertigem.
Contaria para sua avó mais tarde que agora sabia como ela se sentia quando tinha o mesmo episódio de mal estar; coitadinha, nunca mais iria duvidar das intenções dela.
— E-E-Eu…
Gaguejando, engoliu a seco, se afastando da cadeira, mas ainda apertando seus dedos em volta do arco do encosto. De repente não sabia muito bem como reagir ao desconhecido e se sentiu como um garotinho perdido; com toda certeza, ficaria decepcionado naquele instante se soubesse que ele se assustou a ponto de quase molhar a própria calça. Levou alguns segundos para se recompor, com o olhar cortante do outro em sua direção, lhe queimando enquanto esperava sua resposta coerente. Julgou pelo seu raciocínio rápido que, pelo tom apresentado, aquele deveria ser , o tal parceiro de .
Assim como tinha sentido na primeira vez, existia uma aura muito dual entre os dois.
De um lado o caos e do outro parecia ter a calmaria — ainda que a cena de e sua mandíbula travada estivesse deixando-o um pouco desconcertado.
Para ficar mais cômico e ter mais dos seus trejeitos em todo o contexto, forçou-se demais contra o aperto no encosto da cadeira de rodas, ficando sem firmeza no lugar e se desequilibrando. A cadeira foi ao chão e ele quase seguiu o mesmo rumo.
— Merda! — murmurou, ainda mais envergonhado por parecer tão bocó.
A gargalhada estridente que veio de outro lado levou encarar a direção, franzindo o cenho desgostoso ao ver nas condições que estava.
— Eu não sei o que fiz para merecer um bocó e você no mesmo ambiente — disse, massageando as têmporas, virando-se para a mesa atrás de si e jogando o primeiro pedaço de pano que encontrou. — Me diz que não tem ninguém aí com você — jogou para ele cobrir sua nudez, tendo o alívio de ser uma toalha de banho abandonada e não uma de mesa, da qual usariam para comer em cima posteriormente.
Ainda aos risos, sem comentar sobre o pedido do parceiro, enrolou a toalha em seu quadril, encarando a feição perdida, completada pelos atos destrambelhados de . Ele parecia estar sentindo uma dor exorbitante, mas isso não foi capaz de fazê-lo rir menos.
— Esse aí é o bonitinho que veio pedir pra gente bancar o herói — apontou, cruzando os braços na altura do peito nu.
— Ah, o pupilo do . — Em reflexo, também cruzou seus braços da mesma forma.
Os dois pares de olhos encarando fez com que ele suspirasse e tentasse manter sua postura, esquecendo-se que iria precisar justificar porquê estava onde estava e o que iria fazer, sem que ele mesmo soubesse exatamente o que sua cabeça tinha planejado antes de ser pego.
Até porque sua alma havia ido passear e não era pela hipnose.
— Quando disse que você era… Jovem demais, achei que estava falando só pela aparência. — riu nasalado, mas de forma bem sutil. Apontou para a mesa e completou: — Gostou?
— É chamativo. — limpou a garganta. — Mas eu não sei para o que serve esse teclado.
— Ah, esqueça garoto. — gesticulou, saindo dali para ir até a geladeira. Sua voz alta ecoou por todo o galpão e a forma como disse pareceu trazer um tom mais leve para toda a situação. — Ele jamais vai te dar aulas de informática.
se virou e ele o acompanhou, saindo dali e se aproximando da mesa.
— Precisamos fazer compras… Acabou soju e agora só tem cerveja.
saiu de frente da geladeira com as garrafinhas de cerveja em mãos, colocando elas em cima da mesa.
— O que foi? — perguntou, ultrajado, para , que mantinha o mesmo olhar de julgamento. — Não tem ninguém aqui, cara.
— Usou a saída de trás outra vez?
— A porta dos fundos por onde as pessoas entram e saem, você diz? — tinha algo naquele diálogo que estava perdendo, mas não quis encontrar, vendo a forma como um parecia ser realmente o que o seu julgamento tinha plantado: e tinham uma diferença notória em suas personalidades.
— De qual fundo eu estaria falando? — abriu sua garrafinha. — Você é nojento.
— Sim, saiu pelos fundos. — O outro riu, também abrindo sua garrafinha e erguendo-a para brindar com o parceiro antes de beber.
tinha a sua cerveja aberta e fez o movimento para brindar junto, mas notando que seria precipitado, voltou sua mão para baixo, desviando o olhar da dupla do outro lado da mesa.
Então, depois do gole que deram, ambos o encararam em silêncio.
— O quê? — Ele arqueou a sobrancelha, confuso.
— Eu achei que o tinha escolhido alguém à imagem e semelhança dele…
— Eu te falei! — sussurrou de volta para o comentário de
— Posso ouvir vocês dois. — disse brevemente.
Os dois assentiram e, em sincronia, colocaram as garrafinhas em cima da mesa, cruzando os braços e, depois de se entreolharem, disse:
— Primeiro: não somos super-heróis e de forma alguma trabalhamos de graça. Mas o principal é bem simples: se vamos trabalhar juntos nisso tudo que você propôs, é por, pelo menos, uma divisão justa de valores.
O sorriso de se manteve preso, pois ele não podia sair de sua postura admitida desde que havia passado a vergonha de minutos atrás. Agora o assunto havia bem começado e ele precisava agir como tinha aprendido com .
Friamente calculado.
— Fiz minhas buscas e sei que o leilão que seu chefe quer roubar não é algo pequeno, então, com ele preso e sem muitas aberturas para ordenar de onde está, agiremos com nossas estratégias daqui.
Não era isso que queria, ele tinha sido bem categórico sobre tudo e já tinha tempo o suficiente com ele para saber que odiava ser colocado como uma cabeça abaixo; a ideia toda de seus negócios surgiu inicialmente por sua decisão de não receber mais ordens de ninguém.
Haviam muitas coisas que ele tinha contado para quando lhe adotou como um braço direito, queria que aprendesse tudo o que pudesse lhe agregar em seu caminho e nunca o incentivou a fazer o que não queria, a escolha de continuar e seguir ao lado de foi puramente do desejo de viver toda a adrenalina que vivia e também pela resposta rápida em sua conta no banco. Com a avó doente e o pai e a mãe em trabalhos de pagamento mediano, que apenas custeava as despesas, mas nunca trazia fartura, se viu perdido e ansiado por alguma coisa de resposta rápida.
E conhecer não o fez apenas entrar para o submundo do crime, mas também se desenvolver como um homem mais responsável — mesmo que pudesse parecer como um menino em algum dos seus momentos de confusão e atitudes joviais; ele ainda estava aprendendo e, não podia fazer nada, era mesmo desastrado, ao ponto de quase cair por se apoiar em uma cadeira de rodinhas.
Toda a sua bagagem com até então o fez torcer o nariz com a exigência de , sabia que ele iria odiar saber que sua opinião quanto ao seu plano não seria validada no posto de líder de toda aquela operação dupla. Era sua ideia que havia sido atingida por uma curva inesperada ao ser preso em flagrante pela investigação silenciosa da investigadora novata, jamais iria deixar na mão de qualquer um os ideais da interceptação do leilão, ou até mesmo sua liberdade.
— Eu não sei, não… — murmurou, olhando de um para outro. — tem esse plano do leilão há anos.
— Sim, esse leilão vem sendo preparado há muito tempo mesmo. São pedras preciosas extraídas de minas do mundo inteiro… Quase extintas. — manteve seu tom intelectual e os braços cruzados.
— Entenda, garoto, nós não trabalhamos para os outros, mas podemos trabalhar com seu chefe. Ainda que ele ter sido preso não seja assim tão atrativo… O nome dele está cada vez mais mal visto… Como um fracassado. — espalmou as mãos na mesa. — Só que o valor desse leilão, mesmo que seja dividido entre nós quatro igualmente, ainda dá muito tesão. Então, por ele, podemos bancar os Vingadores de porta de cadeia e depois fazer o roubo. Seríamos loucos em recusar esse dinheiro.
— E se vamos fazer isso, iremos precisar de mais ajuda.
Mais? — a voz de saiu esganiçada e ele riu nervoso. — Você só pode estar maluco. Por que a necessidade de mais gente? Vocês são bons o suficiente, tanto que roubam há anos e até hoje não foram pegos. Sequer possuem qualquer investigador na sua porta.
mordeu as bochechas internamente, respirando fundo para controlar suas ideias. A calmaria em seu ser era uma característica única.
— Você já sabe quem é o dono deste leilão? Quem ele tem envolvido?
não respondeu a pergunta dele. Ele não sabia porque não tinha dito nada. Por um momento sua espinha pareceu travar em um vento gelado percorrendo toda ela.
— Matty Simons. — disse, bebendo sua cerveja. — Americano, magnata no ramo hoteleiro em todo o ocidente.
Enquanto se manteve olhando para ele, prestando atenção em suas poucas palavras, sacou o celular do bolso, jogando-o na direção de . O aparelho deslizou pela superfície, com a tela iluminando uma foto de um homem não tão velho, mas com a aparência milionária de alguém que não tinha problemas.
Alguém que não precisou contar moedas algum dia em sua vida.
Pegou o celular e escaneou bem a imagem.
— A segurança desse homem é mais fechada que a bolha coreana dos costumes ultrapassados. — apontou. — Está vendo essa mulher com ele? É ela quem está atrás das pedras pelo mundo todo; a maior ladra sorrateira que você um dia irá conhecer… ou não, porque ela jamais se plantaria na sua frente.
Ele queria ver o rosto dela, mas não conseguia, somente o cabelo ruivo, já que estava sentada de costas na imagem.
— Nesse almoço eles estavam em Paris e na outra mesa ao lado, cheia de mulheres, são as seguranças dele. Todas bem treinadas e não tem uma que não saiba o mínimo três tipos de lutas corporais.
— Eu tenho certeza que seu chefe sabia sobre isso quando decidiu bancar o ladrão. — O tom sarcástico de não causou nenhum impacto em , mas ele se sentiu um bobo por eles saberem aquelas informações, mas ele não.
Como iria entrar naquilo de cabeça se não tinha chance alguma contra nenhuma daquelas mulheres bem vestidas da foto. Três tipos de lutas? Ele havia aprendido a manusear corretamente armas de fogo há pouco tempo.
Devolveu o celular, pensando racionalmente, assumindo a posição que teria de ter já que estava fora e dentro. Deveria ser ele a pensar coerentemente.
— Então me contem, parece que vocês já estudaram tudo muito bem. Qual a sugestão? — perguntou, tentando soar mais concentrado.
sorriu ladino e guardou o celular, trocando um breve olhar com .
— Ah, lá vem você…
— Pare de reclamar. — Ele o deu um leve empurrão e esclareceu o olhar curioso do outro: — achou que você iria sair correndo daqui para contar ao sem aceitar.
— Não é como se ele fosse gostar da ideia, mas se esse tal Matty é tudo isso… Não temos muita escolha mesmo. E o dinheiro do leilão é o bastante para todo mundo sair bem. Estamos falando de quantas pessoas a mais?
riu nasalado, parecendo irritado com aquela ideia.
— Duas.
— E quem são?
Outro riso, mas dessa vez parecendo mais humorado.
o encarou e ele passou a mão no rosto enquanto dizia:
— Já ouviu falar na dupla de serial killers que não possuem face?
— Eles são como mercenários da morte. Pagam para eles matarem sem dó nem piedade. — completou. — A polícia não consegue decifrar o modus operandi deles de forma alguma e-
— Vocês só podem estar de brincadeira comigo. — disse desacreditado.
— É essa a sensação. — apontou pra ele. — Precisamos encontrar fantasmas.
Se encararam; os dois olhando para e ele sem saber em quem fixar seu olhar. Suspirou, pensando e repensando, ao mesmo tempo que não sabia muito bem no que pensar.
Seria ir contra o que lhe fora ordenado, mas do lado de fora, sabia que as coisas seriam diferentes em prática.
— Certo… E como faremos isso? — disse, espalmando as mãos na mesa.
Descruzando os braços, sorriu abertamente, enquanto pesou os prós e contras de sua decisão. Com certeza iria ficar furioso por ele envolver mais pessoas sem o seu prévio consentimento. Mas tentaria fazer tudo certo antes de lhe contar na próxima visita.
— Primeiro, você vai tomar um banho e se vestir… Está cheirando a troca de fluidos corporais. — apontou para , fazendo a volta na mesa para ir até o seu canto.
Rindo, fez o que lhe fora dito. Durante o caminho, tirou a toalha de sua cintura.
— Isso se chama sexo e eu recomendo! — gritou, já longe.

🔪💔


— Você o que?
A voz de saiu alta demais para o que sequer havia se preparado.
Já sabia que quando o contasse sobre o novo plano formado com e iria trazer desagrado de neste tópico, mas não imaginou que ele berraria da forma como fez, mesmo dentro da sala de visita de penitenciária da qual estava alocado agora, depois de sua transferência feita dias atrás.
— Eu-
— Isso explica porque não veio antes. — o cortou, descendo os braços da mesa e descansando as mãos algemadas no próprio colo. Ele fez sua pausa, sendo observado pelo outro, respirando fundo. Moveu o pescoço em quase círculos, como se estivesse alongando-se.
Ajustando sua postura com seriedade, Hyunwgon ponderou se deveria esperar ele dizer alguma coisa, mas não quis, tornando a falar:
— Você não me contou as partes importantes, sobre com quem iríamos lidar.
— Não precisava disso. Você não iria fazer a parte pesada ou ter que apontar uma arma para Matty. — revirou os olhos.
— O que exatamente eu iria fazer? Servir para sempre como seu pombo correio?
riu nasalado e bufou, voltando a apoiar os braços na mesa.
— Simons não é tudo isso que eles pensam. Na prática ele é um cagão e nada mais, não sabe usar estratégias e facilmente se entregaria durante nossa ação. Sequer iríamos precisar de toda essa artilharia pesada que você me falou. Armas não são a maior carta na manga do ser humano.
— Mas me parece mais coerente ter pessoas mais práticas além do .
— Você está pulando fases, . — A resposta veio calma. — Primeiro pensamos sobre como me tirar daqui, depois vem o leilão. E quanto ao leilão já temos nossas cartas.
— Não sei, não conheço nenhuma delas. — rebateu descontente; soava como uma conversa de pai e um filho adolescente.
— Irá, se não continuar com essa postura malcriada comigo. Já te falei inúmeras vezes sobre não ser precipitado.
O longo e velho papo de que ele deveria sempre conter sua ansiedade em palavras e atos e dar um passo de cada vez; como se fosse fácil lidar com os zilhões de pensamentos que acometiam diariamente sobre tudo, desde sua família ao seu trabalho ilegal, ainda dando um jeito de se manter invisivel aos olhos da lei.
Lei e ordem caminhando lado a lado para o jovem , mas de uma forma contrária do sendo tão comum.
— Se o dinheiro ainda vai ser satisfatório dividindo entre seis, por que não aceitar a ajuda? — Tentou mais uma vez.
— Me diz então como irão encontrar uma dupla que a polícia sequer tem um rosto? — O olhar desafiador de lhe serviu como um solavanco.
Era algo que aos poucos ele descobria sobre si: odiava ser desafiado de tal forma a parecer que era fraco.
— Vamos tentar desvendar o modus operandi deles. Dizem que é um cartão e por ele conseguimos contatá-los para um trabalho.
A gargalhada de chamou a atenção e o deixou desconfortável. O som estridente e incessante durou mais do que longos segundos. Quando, finalmente, ele pareceu respirar fundo e cessar o seu acesso de humor, se debruçou na mesa, com os braços em cima da superfície.
Usando o seu olhar semicerrado, ele disse:
— Sei que parece engraçado porque a polícia não conseguiu isso até hoje, mas se você mesmo me mandou ir atrás deles para me ajudar a te tirar daqui, então deve ser porque confia no potencial que os dois têm.
Os lábios de Kiyun se esticaram para um lado só, fechados.
— Sabe que se algo der errado, é você quem irá dividir cela comigo, não sabe? — disse, ainda desafiador.
— Estou fazendo de tudo para não ter o mesmo descuido que você teve.
A risada dele, agora, foi mais leve e parecia menos humorada. Tampouco durou o mesmo tempo que a outra gargalhada incômoda.
— Inclusive, você pode começar a contribuir mais e me contar toda a verdade sobre esse leilão. Isso vai me divertir enquanto eu trabalho pra te tirar daqui. — voltou a se encostar na cadeira, de forma folgada.
Somente a lembrança de parte do seu passado fez com que mudasse sua feição para traços sérios e com nenhum pingo do mesmo humor passado. Era um assunto que ele evitava e evitaria por tanto tempo pudesse.
Jamais contaria ou falaria para sua própria sombra de onde surgiu sua ideia e como planejava tal ação há anos.
— Um passo de cada vez, pequeno gafanhoto. Vamos focar primeiro na missão de me tirar daqui.
respirou fundo, assentindo, ao mesmo tempo que torcia os lábios se sentindo contrariado.


Arquivo 2

Uma galeria de arte contemporânea para exposição de artistas internacionais em Seocho tinha sido alvo naquela noite e antes mesmo da polícia despontar no endereço com suas viaturas e agentes divididos profissionalmente para a perícia, descia pela porta de trás do carro, acompanhado de e ; certamente, os três se mantiveram bem atentos com os arredores enquanto, pela viela lateral da galeria, se acertava com a fechadura da porta para abrir e poderem entrar. Por sorte, o alarme não estava ligado, e quando eles entraram tiveram liberdade para caminharem pelos fundos.
Era um corredor extenso e ainda tinha as luzes acesas, para o alívio de – odiava não ter certeza de onde seus pés pisavam. Seguiram por ele, cada um bem armado e em prontidão, tendo as respectivas pistolas apontadas para o chão, como mandava o protocolo básico. E em silêncio, claro. O plano já havia sido bastante repetido entre eles, salientando bastante sobre o comportamento em campo.
Passaram pela sala de almoxarifado, tesouraria e inúmeras outras portas que compunham o caminho para, então, sairem em um pré salão. E nesse hall já tinha algumas marcas do que aconteceu ali naquela noite, antes da chegada deles. Os pingos de sangue, que surgiam já na soleira que dividia o corredor do espaço bem montado – mas destruído por, evidentemente, uma luta corporal –, eram a marca certa de que realmente só haveria morte naquele lugar, assim como já havia sido alertado que seria quando um de seus informantes lhe contou sobre o que aconteceu na galeria Parkson Choi. Seria assustador para ele e se já não estivessem acostumados com tantos sinais de violência.
O que fez ele sentir uma leve preocupação com a reação de , julgando que o garoto nunca tinha tido tal experiência.
Mas ele estava errado. As noites gastas na área do Odium serviram-no como um grande aprendizado. Não era a mesma coisa, mas deu um certo preparo para que não se sentisse enojado e estivesse um pouco pronto para o que ainda tinha por vir.
Trocaram olhares antes de continuar o caminho pelo hall, sendo o primeiro a passar, desviando do corpo estirado de um segurança logo naquela parte. Seguindo-o, e fizeram o mesmo para passarem, ficando atrás dele, que se posicionou diante da porta dupla, depois de desviar de mais outros dois corpos. Tanto quanto se posicionaram às costas dele, que outra vez trabalhava na fechadura ao constatar que estava trancada. Não foi difícil, obviamente, mas tomou alguns minutinhos até que acertasse, ainda tendo os outros dois fazendo sua proteção traseira.
— Achei que levaria a noite toda. — reclamou, bufando em impaciência.
— Desculpa se não consigo ser instantâneo igual à sua mãe que te deu a luz de seis meses. — A resposta veio atravessada, irritando-o a ponto de dar um tapa na nuca de . — Ai! Seu tapa é ardido.
Já cansado da discussão que tinha um grande potencial de se iniciar e durar mais do que sua vontade permitiria, revirou os olhos, passando pelos dois.
— Não vamos perder tempo. — Ele disse seriamente.
Os lábios de se curvaram para baixo, formando uma careta em seu rosto ao trocar um breve olhar comunicativo com o parceiro, que somente chacoalhou os ombros, suspirando em seguida. não rendeu o que poderia virar um assunto, seguindo a mesma linha racional do garoto, e passou pela porta também, parando logo atrás de .
Ele estava parado diante de uma cena horrenda e sanguinária.
Um perfeito cenário deixado por uma dupla movida pela psicopatia.
Quando os olhos de varreram todo o metro quadrado da galeria, que era em um pavimento só, precisou de alguns segundos para que o corpo se mantivesse firme no lugar. Nem toda violência vista nas ruas e nos assaltos que fazia com ele tinha tido tamanho contado com aquilo, que passava de qualquer beira do bizarro. Era, no mínimo, feio. Talvez não fosse existir adjetivos suficientes para definir o que estava diante de si.
Engoliu a seco, vestindo sua capa mais fria, ao sentir a presença de , provavelmente estando colado atrás de seu corpo, necessitando de espaço para adentrar mais naquela cena toda. Respirou fundo e tocou o ombro de , sem dizer nada, fazendo-o dar os primeiros passos para frente, completamente hesitante. Ele sabia bem qual era aquela sensação e julgou que, talvez, estivesse vendo algo parecido pela primeira vez. Poderia dizer qualquer coisa, mas as cenas violentas da Odium, por mais que pudesse resultar algumas vezes em corpos estirados no chão sem vida ou apenas desacordados, não chegariam perto daquilo, jamais.
Silenciosamente eles se separaram, indo cada um para um lado daquele enorme salão. Pelo ângulo que haviam saído, tinha duas fileiras de pilares com quadros expostos, e cada fileira deveria possuir, em sua conta rápida, cerca de vinte deles; o que formou um corredor para cada lateral e um no meio.
Não tinha como saber em qual deles contava com o maior número de corpos ensanguentados e alguns até degolados. Variava entre homens e mulheres. E ficou para o trabalho de ir pelo centro, que se concentrava a maior parte de todo o caos. Era de arrepiar.
— Sejam rápidos, daqui a pouco a polícia já chega e temos mais nove minutos até as câmeras voltarem a funcionar — ditou para os outros dois, lembrando-os mais uma vez sobre o tempo.
A resposta de ambos veio apenas com o movimento positivo de cabeça, deixando claro pelo ato que estavam cientes daquilo.
Então ele começou a dar os primeiros passos adiante, desviando do primeiro homem caído no chão. Era nojento, ao mesmo tempo que soava incurável; toda aquela cena ficaria em sua mente pelo resto de sua vida.
Se concentrou, escondendo a parte emocional de seu caráter, assim como a racional. Nenhum dos dois o levaria a descobrir o que queria estando ali, se sujeitando a ver aquilo tudo e também se colocar como alvo da investigação criminal ao contaminar a cena do crime — por sorte, seu neurônio funcionava, não para o bem comum, e a ideia de encontrar sapatos de pessoas que já estivessem na mira da polícia a muito tempo, contando com a praticidade de , garantiu que não iriam colocar suas solas de sapato naquele chão e se tornarem possíveis alvos. Era uma ideia bem simples, criada a partir do óbvio. Também o mantinha mais seguro para aproveitar o tempo contado que tinham para estarem ali sem serem pegos.
Antes de ser , ele tinha tido um bom tempo para aprender algumas coisas teóricas da prática criminal durante um período que esteve estudando para entrar naquele mundo por uma porta contrária, antes de descobrir que seu maior e melhor desempenho se dava atrás de computadores, agindo mais como a parte pensante em todos os planos. Poderia ter entrado para a área de inteligência, que cumpriria com aquele papel de “o fulano do computador”, mas seria pacato demais. gostava da calmaria e ainda assim não poderia viver pro resto da vida naquele perfil, por isso surgira e se deu tão bem com .
E como ele aprendeu muito sobre saber pesquisar, ter paciência e um olhar mais clínico, cirúrgico e técnico. O que lhe fez não demorar tanto a matar uma charada que vinha mantendo para si.
Nas buscas policiais, a dupla fantasma ainda era uma incógnita, colocando à prova a segurança nacional. Sabiam que eles não tinham nenhum interesse político ou financeiro, parecia muito mais com uma psicopatia gerada para facilitar trabalhos, uma vez que todos os casos que vinham sendo registrados com o modus operandi seguiam a linha de pessoas que haviam feito algo para alguém e, na prática, se dava por sempre faltar um membro de alguma vítima. Não ter uma seletividade e agir no meio de grupos grandes igual haviam feito ali mostrava o tamanho da psicopatia e frieza que tinham. Até então, o padrão seguido era este e o que levou a constatar o trabalho ser executado em dupla não tinha sido exposto ainda.
Mas tinha algo na matemática da investigação que parecia nunca bater e a ciência exata tem como princípio a ausência de dúvidas; se uma conta não bate, é porque tem algo errado. E ali, nessa situação específica, encontrou o erro.
Não era pelo modus operandi que iriam chegar até os dois, mas pelo cartão sempre deixado com uma criptografia impossível de ser decifrada – para reles mortais, no conceito de .
O cartão preto, com detalhes em cor de ouro, estava no meio do pescoço de uma mulher com a cabeça degolada. Ele se agachou, analisando cada centímetro, enquanto sua mente voltava para o ambiente e escutava as vozes de e .
— Eu acho que deve ser uma mulher e um homem. Tipo Bonnie e Clyde, porém psicopatas. — comentou.
— Jamais. Uma mulher não seria capaz de fazer isso com outra. — E rebateu, com total certeza. — Olha isso! Precisa ser muito psicopata para deixar alguém nesse estado.
podia jurar que o parceiro estava apontando e olhando de perto a situação da vítima em sua frente.
— E vocês dois querem trabalhar com eles! Isso não soa um pouco preocupante, não? — A voz do garoto soou preocupada.
— Claro que sim. Mas pensa, já falamos sobre isso… Se a polícia não conseguiu chegar neles até hoje, é porque são bons e é disso que precisamos: gente que saiba não cair na mira de investigação — fez uma pausa. — Qual é? Sequer conseguiriam nomes!
— Continua sendo bizarro. Matar pessoas por esporte não me parece algo coerente em nenhuma forma. Nem mesmo faz de alguém bom o suficiente. Isso é doentio! E você não deveria estar surpreso com tudo isso.
— Eu nunca matei por esporte. — disse parecendo mais sério, agora ele tinha certeza de que o cenho dele estava franzido.
— Isso não te faz menos assassino.
Por mais que tivesse um ponto favorável para seu lado naquela discussão, não quis deixar que prosseguissem, umedecenedo os lábios e limpando a garganta, ele chamou:
— Encontrei algo e adoraria que os dois viessem para irmos embora logo.
Não teve resposta, mas logo tinha ambos em pé ao seu lado.
— Ai…— levou a mão coberta por luvas até o pescoço, acariciando sua própria pele ao ver o estado do corpo em sua frente.
— Eu conheço essa mulher. — disse automaticamente, causando um certo desconforto nele e a confusão no olhar de , que girou o pescoço para a direção dele.
— E como caralhos você sabe quem ela é se não sabe o rosto desse corpo decapitado? — O tom do outro foi acusatório, embora estivesse confuso e esperando por uma boa explicação.
— Não! Calma… — balançou a cabeça rapidamente, levando as mãos à cintura. — O colar no pescoço dela — apontou. — é da Bel Air. E pra ser de ouro, ela só pode ser a esposa do chefão. O que me leva a acreditar que esse cara do lado dela — mudou a direção de seu indicador para o homem com rosto desfigurado e terno branco encharcado em vermelho, recostado com apenas o tronco na pilastra. — é o próprio.
assentiu, olhando bem para aquilo. Não era do seu interesse, então não iria se aprofundar em continuar perguntando como seu parceiro conhecia bem uma parte super importante da pirâmide de uma das maiores máfias de toda a Ásia.
Seu relógio apitou quando chegou em um minuto a contagem regressiva do tempo que tinham ali, não lhe dando tempo para que prolongasse mais a conversa, e seu celular vibrou com a programação que havia feito para denunciar a chegada da polícia. Agiu rapidamente, pegando o cartão no meio da carne da tal esposa do mafioso morto e se levantou, conversando com os outros dois apenas pelo olhar e sendo seguido. Desta vez, porém, foram mais rápidos voltando pelo mesmo caminho.
Ao entrarem no veículo, que também não era de propriedade de nenhum deles, tiraram as máscaras e ligou o motor, dano a ré na viela para sair na rua o mais rápido que podia, continuando na mesma marcha até se posicionar no semáforo do cruzamento, exatamente no instante que viaturas fecharam a rua da galeria por todos os ângulos.
Respiraram aliviados, certamente.
— E agora seguimos para onde queimar esse carro? — A voz de foi ouvida no meio do silêncio, enquanto se livrava dos tênis e alguns outros acessórios que compunham seu “uniforme”, sentado no banco do acompanhante na frente,
, porém, não conseguiu se concentrar, sequer movimentou o carro decentemente quando o sinal ficou verde para sua passagem. Seus olhos e consciência foram direto para a janela da viatura descaracterizada, com apenas uma sirene portátil no teto, que parou no meio do cruzamento, aguardando liberação da polícia para entrar no quarteirão.
A porta se abriu e saiu dali de dentro, rápida, trajada e com seu crachá na mão, sendo exibido para o policial que estava finalizando a barreira.
? — tentou mais uma vez ser ouvido. — ? — Desta vez um pouco mais alto.
E isso o trouxe de volta num sobressalto.
— O que foi, merda? — esbravejou, arrancando com o carro.
— Parece que você viu um fantasma… Que isso? — comentou, virando-se para ele.
se apoiou nos dois bancos para se colocar no meio.
— Viu os assassinos? — questionou.
— Calem a boca, eu estava apenas pensando qual caminho é melhor fazer para o descarte.
o mediu de cima a baixo, sem dizer nada, mas pensando em muito. Deixou o assunto se encerrar sozinho, virando o rosto para o garoto quase se colocando no meio deles ali na frente.
— Quer sentar no colinho do tio, é? — usou de seu tom sempre cômico, batendo nas próprias pernas.
— Nojento. — reclamou, voltando a se encostar no banco.
Mais uma vez mediu o perfil de , sabendo que ali também tinha um pouco da película de .
— O que foi? — O parceiro perguntou, olhando-o rapidamente.
— Tem algo que queira me contar?
— Não.
— Certeza? — insistiu. — Te conheço e parece que alguma coisa aconteceu.
— Não aconteceu nada. Confia em mim. — o encarou uma última vez, sendo firme em sua resposta.

🔪💔


— Você realmente sabe o que está fazendo? — andava de um lado para o outro, preocupado, roendo as unhas. Já nem usava mais sua jaqueta de tão quente que seu corpo estava, suando pelos poros, tamanho nervosismo e ansiedade.
— Desculpa, sou a única pessoa na minha família que não é médium, então só entendo de trabalhos práticos e presentes murmurou, sentado à mesa, cumprindo bem seu papel com cuidado e atenção. Era difícil fazer isso enquanto ouvia as inúmeras perguntas de , que o rodeava sem sossego, e as mesmas respostas sarcásticas não pareciam deixá-lo mais calmo.
Desde que chegaram da galeria, estava em algum canto, bebendo e tragando alguma erva cara do sul, despreocupado e tranquilo; tanto por causa da maconha, quanto pela confiança genuína que tinha no parceiro. Isso tornava as coisas mais fáceis para que trabalhasse em paz. Porém, parecia um urubu em cima da carniça, esperando qualquer atualização do processo, que consistia em dedos rápidos sobre um teclado mecânico, um tira-e-bota incessante do cartão dentro de um compartimento antigo e vintage de computadores antiquados, já que quase não existiam mais entradas maiores do que um USB e, claro, muitas telas em vermelho piscando em alerta, pedindo senhas e mais códigos. Era um tanto desesperador para um leigo como ele. Se a mágica de realmente existia, ainda não estava dando as caras.
No fundo, também queria ver. Queria constatar a grande inteligência daquele cara ao vivo, que descobriu ser uma lenda com habilidades desconhecidas, só um nome ligado ao grande , que gritava, atirava e roubava. Só uma vez.
queria confirmar só uma vez. Como se fosse extremamente rápido e fácil desvendar uma codificação única, sem precedentes, que nem mesmo a divisão mais inteligente da polícia havia sequer notado que existia. Era um caso tão sério quanto os caras que derrubavam o Twitter e o Instagram, mas não parecia disposto a compreender e segurar a ansiedade.
O modus operandi da dupla já tinha sido figurado e as investigações trabalhavam em cima disso: sempre um membro faltando, sendo da vítima da qual eles tinham ido, de fato, atrás como um alvo principal e um cartão com detalhes em dourado; mas os detalhes eram simples e não tinha nenhuma pista ao olhar da divisão científica.
Para , porém, tinha. A superfície do cenário macabro disse a maioria das coisas que precisava saber.
E seu sorriso foi convincente quando finalmente chegou ao resultado final: um conjunto de números dispersos em uma tela.
— E aí? Terminou? — Desta vez foi quem perguntou, surgindo ao lado de de repente, com os cabelos molhados e a toalha enrolada na cintura, enquanto tinha outra nos ombros. A impressão que tinha era que não achou o saldo encontrado tão ruim assim.
— Sim. — ergueu o rosto para ele, tirando o óculos e se esticando na cadeira para se espreguiçar.
— Temos um recorde, você fez isso em apenas cinco horas — apontou para o relógio digital na mesa, simulando palmas em seguida. — Acho que não precisa de nada além de uma cerveja e Marlboros agora. E o que é?
apenas observava os dois, agora estando parado e com os braços cruzados na altura do peito.
— Cinco horas? Isso é rápido? — balbuciou. Os outros dois o encararam com as sobrancelhas arqueadas; uma visão estranhamente intimidadora.
— Em que tipo de submundo da vida real você vivia? — perguntou, ao mesmo tempo em que apontava para e uma das cervejas depositadas na bancada.
— Um que só exista drogas, sexo, lutas e rock ‘n roll, igual aos porcos dos anos 70 — agarrou a garrafa, passando-a para o parceiro pela mesa — Ah, não me entenda mal, eu gosto muito dos anos 70. — Completou, com um sorriso — Mas tem formas mais discretas de fazer as coisas hoje em dia.
— E chegar na porta de um banco em um ônibus escolar amarelo é realmente muito discreto… — estreitou os olhos.
— Disse que existem formas, não que sou adepto a todas elas. Deixo a parte elegante e diplomática na mão do meu garoto aqui, ele diz que sou muito esquentado — soou brevemente como uma ameaça, mesmo que ele ainda mantivesse os lábios erguidos em um sorriso. sustentou o olhar e revirou os olhos, batendo com a garrafa suada no tampo da mesa, chamando a atenção dos dois.
— Se forem atirar um no outro, façam isso lá fora. Essa é a única impressão que vou ter dessa belezinha — disse ele, virando uma folha de papel recém gravada, virando-a de lá para cá, onde os números rodeavam cada ponto. Em um segundo, a tela do laptop se apagava, e o cartão retirado se mostrava avermelhado, encolhido e a um ponto da total deterioração.
se sentiu instantaneamente aliviado pela rapidez do serviço; aqueles desgraçados eram geniais e tinham uma bela cartada até no final: se mantivesse aquela coisa dentro do compartimento por mais dez minutos, todos os seus eletrônicos explodiriam, vítimas da corrosão eletroquímica induzida. Existiam mais do que códigos naquele retângulo fino, e misturar tecnologia com reações de oxirredução era algo ao nível dos filmes do Homem de Ferro, nada mais. Era lógico porque ninguém nunca chegava ao final.
Quem eram esses caras? Puta que pariu.
— E agora? — perguntou depois de um tempo, encarando o cartão se desfazer com um olhar assustado.
— Agora… — ergueu as costas para a frente, puxando a folha de papel contra a luz do pendente e pegando mais coisas dentro de uma maleta: mais canetas, mais folhas e um papel manteiga — Serão mais cinco horas.
soltou uma risada e um suspiro alto, retirando-se para o outro lado novamente. não havia se dado conta de como ele estivera imóvel nesse meio tempo, até dar uma de suas gargalhadas assustadoras. Até mesmo riu, sem precisar olhar para a expressão estupefata de para saber que ele estava aturdido.
Por fim, o garoto também entrou na onda de aceitar que estavam na merda e deu uma risadinha também, levantando os ombros à medida que caminhava para o sofá de couro depositado aleatoriamente no espaço, sentindo que a tensão tinha sido retirada do ar.
Cinco horas. Era o tempo ideal para um cochilo.

🔪💔


— Ei, paspalho — abriu os olhos depois do impacto nos tornozelos. O susto o fez fazer uma careta confusa, até olhar para o rosto de bem em cima do seu — ‘Tá na hora de traçar o caminho dos corpos.
Ele saiu logo depois de falar, e o garoto ainda levou alguns segundos para estabilizar o cérebro na realidade e descer as pernas para o chão, levantando-se ainda meio tonto.
— O que você disse? — perguntou, coçando os olhos. Um mísero feixe de luz invadia o lado de dentro, revelando o dia que começava a nascer lá fora. estava sentado no mesmo lugar, talvez agora com mais garrafas vazias de cerveja ao lado dos cotovelos, e o cabelo bagunçado em uma genuína imagem de cansaço — Que horas são?
— 6 horas — respondeu, sentando-se ao lado do parceiro, indicando a tela do laptop aberta no centro da mesa e os vários e vários papéis rabiscados no tampo — Chega mais perto, . Quanto antes chegarmos na linha ley desses desgraçados, melhor.
— Linha ley? — o outro perguntou, aproximando-se dos dois.
— É uma linha sobrenatural e invisível onde todas as desgraças acontecem. Conhece um pouco de folclore europeu ou só entende de NFL? — explicou, ainda com os olhos grudados na pilha de papéis, ou o tanto que sua atenção desfalcada pela exaustão permitia. continuou inexpressivo, como se tivesse falado em outra língua.
— Esquece. Ele não precisa saber dessas merdas. Ninguém precisa, apontou para as folhas rabiscadas com a sobrancelha arqueada — O principal. Vamos.
assentiu devagar, respirando fundo antes de dizer:
— Tudo bem. No início, eu pensei que os números indicariam uma localização exata, como os que mostram em latitude e longitude, mas no fim, isso não faz muito sentido sem os asteriscos porque levariam insanas semanas para testar tudo, é maluquice. Esses caras podem ser geniais, mas querem ser encontrados. Foi a conclusão que eu tirei pra ir por outro caminho — ele moveu o papel manteiga para o lado, alinhando duas folhas em paralelo — Tem um padrão com que cada número foi colocado no arquivo, como se literalmente tivessem sido jogados; um padrão de não ter um padrão. Pensei que fosse uma senha, outro endereço, páginas de um livro, mas a resposta era mais óbvia do que se pensa: onde mais se encontra um parâmetro de números tão desordenados e sem nenhuma lógica? — a pergunta soou como a de um professor. permaneceu calado com um sorrisinho e abriu e fechou a boca várias vezes até entender o teor retórico da questão — Companhias telefônicas. Tem um número de telefone sobre toda essa teia.
Os olhos de se arregalaram levemente. ergueu as costas pra se aproximar dos rascunhos, franzindo o cenho com estranheza.
— Tem certeza? — quis saber, gesticulando com uma mão — Hoje em dia existem e-mails, chips, mensagens codificadas em celulares ou outras merdas tecnológicas, e os caras são encontrados por uma ligação?
lhe lançou um olhar absolutamente fulminante.
— É exatamente por causa disso que utilizam dos meios antigos, gênio. A Interpol não quer saber de fax ou telefones analógicos com teclas, eles tem toda a porra de chips e mensagens codificadas para passar o tempo — respondeu em um tom óbvio, deixando se encolher de volta na cadeira e levantar os ombros como se fosse irrelevante — Esses caras apelam para o vintage anos 80 justamente para fugir da polícia. Se eu tivesse pensado nisso assim que vi o cartão, economizaríamos 3 horas.
— Olha, eu ainda não estou entendendo — finalmente puxou uma cadeira, apoiando os cotovelos na mesa — Como você extraiu um número de telefone dessa bagunça? Tem tantos que me deixam louco. Dá pra combinar e formar todos os celulares de Seul.
— Testei todas as opções nas últimas 2 horas e achei algo interessante. Na verdade, tenho certeza que os encontrei — respondeu com confiança. Não foi o suficiente para que deixasse de fazer uma careta de dúvida. Não tinha como, não era possível fazer isso em 2 horas. Visto isso, o garoto apenas bufou e deu um sorriso venenoso para o novo parceiro: — Ou você acredita em mim, ou pode estudar lógica e matemática aplicada para dar uma forcinha a mais. Quem sabe da próxima não resolvemos em 40 minutos.
deu uma gargalhada, erguendo os pés para se apoiarem em cima da mesa.
— Ou não dê detalhes demais para o cérebro de ervilha. Anda, você já ligou?
— Não. Acho que nem eu saberia como convidar um par de serial killers para um chá, acho que você entende — jogou as costas para a cadeira, mordendo os lábios enquanto observava os números — Mas antes que perguntem, pesquisei cada combinação junto com a localização das torres telefônicas. Uma delas não existe em nenhum registro oficial, mas tem um ponto ativo em todas as torres espalhadas pela cidade. Todas elas.
— Isso é possível? — perguntou .
— Claro que não — respondeu pacientemente — Por isso mesmo nós achamos nosso Bonnie & Clyde.
sentiu o peito apertar em expectativa. bateu uma palma, aproximando-se mais da tela, mesmo sem saber qual era exatamente o próximo passo. Explorar as opções de pareciam sempre ser muito divertidas. Com mais alguns cliques, o garoto já tinha um telefone descartável em cima do tampo e abria um outro programa no computador.
— O que está fazendo agora? — perguntou , a atenção redobrada.
O rosto de se fundiu em um largo sorriso.
— Vou gravar a ligação. Esse número só pode ser usado uma única vez — respondeu, concentrado. continuou piscando, esperando por mais — Os vários pontos ativos na cidade significam que usam números diferentes em cada cartão. Ou seja, se não tivéssemos pego essa evidência, teríamos que esperar o próximo crime. É só assim que se chega nesses caras.
— Tudo bem, tudo bem, o que está esperando? Liga — apressou, esfregando uma mão na outra com empolgação.
conectou o velho celular flip ao notebook e terminou de configurar o programa de gravação. Prestes a digitar os números sublinhados no papel A4, ele ouviu dizer na frente:
— Espera, espera — colocou uma mão abaixo do queixo de , chamando sua atenção — E se alguém já tiver ligado antes?
estalou a língua, aborrecido. umedeceu os lábios e manteve a irritação apenas para si.
— Um número, um cartão, cara. Ouviu alguma coisa que eu disse? — respondeu em voz baixa, porém entredentes. engoliu em seco e fez um sinal para que continuasse, sem mais objeções.
Finalmente, digitou os números no celular, apertando na tecla verde com um pouco mais de nervosismo que o normal.
Quando o primeiro toque aconteceu, não houve nada. Aí veio o segundo, e o nada parecia ficar cada vez maior. À medida que a linha ia tentando completar, os três rapazes não respiravam, como se estivessem na presença física do desconhecido. roía as unhas sem perceber. não tinha mais umidade na garganta; a saliva descia rasgando e se encontrava com seu estômago turbulento. , sempre tão sereno e concentrado, tinha uma expressão tão diferente do usual no rosto que seus traços precisaram mudar completamente para acomodá-la.
Até que, por fim, o “tuuu-tuuu” incessante parou. E todo o cômodo mergulhou em completo silêncio.
Depois de quase um minuto inteiro sem qualquer barulho, o estardalhaço de um apito escapou do viva-voz, fazendo os 3 levarem às mãos aos ouvidos de susto, acabando quase ao mesmo tempo em que começou.
E então, uma voz robótica escapou do aparelho:
Park Hyatt Seoul. Gangnam. 3 dias. 7 horas. Park Hyatt Seoul. Gangnam. 3 dias. 7 horas.
E assim, a chamada se encerrou.
ainda ficou parado, imóvel, esperando alguma outra informação. baixou os ombros, as sobrancelhas juntas em um choque atípico e parecia amedrontado. Sinceramente amedrontado.
— Mas o que foi essa merda? — foi o primeiro a quebrar o silêncio tenebroso, levantando-se em um ímpeto.
— Não é nada sinistro, não é? — tentou dar uma risada, mas saiu engasgada e sem credibilidade.
— Isso foi uma máquina? Aqueles cuzões mandam uma máquina para falarem com a gente? Puta merda… — do jeito que disse isso, parecia sinceramente ofendido — Quem eles pensam que são…
— Acho melhor o tentar outro número, vai que…
— Vocês são tão burros assim ou estão tentando me impressionar? — o garoto interrompeu qualquer outra fala que pudesse vir a seguir, olhando para os dois com escárnio — Conseguimos o que queríamos. Esses são os caras. E acabaram de marcar um encontro com a gente, dá pra se acalmarem e pararem de fazer nas calças agora? — ele bufou, também se pondo de pé, movendo cabeça e ombros para esticar a postura.
— Como sabemos que são eles? — insistiu, quase sussurrando.
— Porque se revelar no último momento é a melhor parte de um espetáculo — respondeu, simplesmente, arrancando os cabos e digitando mais alguma coisa antes de jogar o celular na lixeira mais próxima — Agora, se não se importam, vou dormir por pelo menos 16 horas. Se me acordarem antes disso, vão levar um tiro no saco. Adeus — murmurou, arrastando os pés para uma porta avulsa no espaço e desaparecendo por ela.
Agora sozinhos, e se entreolharam, divididos por um momento entre questionar o que estavam fazendo ou se poderiam duvidar da confiança de pelo menos uma vez na vida.
Mas não era possível. A verdade estava bem ali, às claras, junto com a adrenalina e a expectativa de uma grande ação explosiva.
— E então — começou, bagunçando os cabelos já bagunçados de nascença — Pronto pra tomar um chá com assassinos?

🔪💔


A porta do carro bateu e jogou as costas contra o encosto do banco, ainda completamente hesitante. Tinha algo em todo aquele plano que não parecia correto e seguro o suficiente — a cena catastrófica e sanguinária que ele tinha visto na galeria ainda não saía de sua cabeça e sequer parecia algo tão distante. Era perturbador pensar que tentariam negociar com assassinos frios e calculistas como bons sociopatas, seguindo o significado do termo. E parecia ainda pior não demonstrar nenhum traço de preocupação.
Ou ele estava atuando muito bem, entrando num personagem perfeito para que pudesse estar no mesmo ambiente que os outros dois fantasmas, como eram tidos pela polícia.
— Escuta… — Se assustou com a voz de quando ele debruçou na janela traseira, olhando-o tranquilo. — Se disser que irá subir, você não conteste. Ele saberá quando for o momento certo de agir, se isso for necessário.
— Você está tranquilo demais para quem tem um plano B — respondeu com o cenho fechado em um vinco. — Está indo de encontro com uma morte lenta e vermelha… Deveria mostrar mais amor próprio.
riu fraco, dando um tapinha na lataria do carro ao se afastar.
— Confio em você — disse para o parceiro sentado no banco da frente, que apenas acenou com uma mão erguida à uma altura média, enquanto se mantinha concentrado no celular e as fotos de uma modelo qualquer no instagram.
Sem resposta e ouvindo apenas o murmúrio da reprovação medrosa vindo de , ele se afastou, atravessando a rua e caminhando adiante para a porta do hotel. Respirou fundo entre os passos que precisou dar, colocando as mãos nos bolsos e repensando estreitamente o que estava fazendo; o desejo por suas férias prolongadas e talvez até mesmo definitivas, jamais pareceu tão grande. Sonhava ainda mais com o dia que iria trocar seu vício de enigmas e planos estrategistas por uma ilha deserta, com uma casa de veraneio na qual ele passaria todas as estações do ano; poderia ser somente com a sua própria presença, não exigiria muito — julgava que no mundo atual seria meio complicado de encontrar alguém que quisesse o mesmo e possuísse as mesmas perspectivas, com exceção da parte criminosa de sua vida.
Poderia receber de vez em quando, claro, mas somente isso.
Seria uma solidão planejada, talvez.
Assim que passou pela porta giratória, olhou uma última vez para trás, observando o carro estacionado em uma vaga autorizada pelas leis de trânsito. Os dois estavam concentrado em seus telefones, pelo o que ele pôde ver pela luz refletida respectivamente em seus rostos; suspirou reflexivo e se virou para a direção da recepção, assumindo sua postura decidida. Não havia mais volta, era somente um caminho: o de ida.
Ao parar diante da recepcionista bem arrumada e sorridente, não soube o que deveria dizer ou fazer, não tinha recebido nenhum sinal do que dizer quando chegasse no lugar. Somente recebeu coordenadas, mas nenhuma informação adicional que pudesse lhe fazer saber como agir. De repente a postura recém assumida entrou em modo de falha.
Engoliu a seco e espalmou delicadamente as mãos no balcão, tentando não parecer nervoso ou amador, demonstrando que estava ali para algo errado e perigoso, longe de qualquer perfil dentro de um senso comum.
— Com licença… — disse baixo, fazendo uma pausa para ajustar o próprio tom. — Eu estou-
— O senhor está aqui para uma visita à suíte presidencial. — A moça lhe cortou, respondendo diretamente, entregando um cartão. — Só precisa ir em direção ao elevador, por gentileza.
Ele seguiu o olhar para o lado que ela, elegantemente, apontou com um aceno de mão. Não leu o nome da recepcionista e nem mesmo teve palavras para responder a ela, apenas seguiu para a direção do elevador e entrou no cubículo, reverenciando brevemente o rapaz que o acompanhou ali dentro.
Nunca uma “viagem” de elevador havia durado tanto tempo como aquela. E não era sobre a quantia de andares do prédio, seu estômago diria completamente o oposto.
Quando as portas se abriram, depois do som típico de chegada no andar desejado, Changkuyn teve espaço para passar e se surpreendeu com o local. O corredor era extenso e tinha somente um porta no final; toda a decoração seguia o mesmo tom de mogno com dourado como ouro e algumas partes em um leve creme, quase próximo do branco. Lembrava a arquitetura dos hotéis da franquia Ritz, em extrema elegância na aparência, além da estrutura alta das paredes e a porta dupla se tornando maior a cada passo dado em sua direção.
Talvez fosse o clima de toda aquela situação que lhe fez ficar um pouco tenso, mas ele não diria a ninguém que deu um pulinho no lugar em que estava dando seu, provavelmente, terceiro passo ao ouvir novamente o mesmo som, e se virou apenas com metade do tronco para ver as portas se fecharem, deixando-o sozinho ali. A companhia mais próxima agora estava por trás de um toque na maçaneta.
Ou de duas batidas na madeira, já que ele não tinha certeza se deveria bater ou abrir direto.
Optou por dar dois toques ao finalmente cessar os passos, mas não obteve resposta. Esperou por alguns contáveis segundos e deixou que sua ansiedade falasse mais alto, cobrindo a maçaneta com seus dedos esguios e a palma de cada mão coberta por uma camada fina de suor. Lentamente foi forçando a abertura para dentro, colocando seu corpo junto, conforme tinha espaço. Notou o espaço vazio e hesitou. Porém, depois de olhar para todos os lados, pelo o ângulo que tinha, certificou-se de que não tinha ninguém ali, entrando por fim. Certamente, fechou a porta; com isso, ao se virar novamente para o ambiente que parecia ser uma sala, levou um dos grandes sustos da noite, mas evitou ao máximo demonstrar que seu coração estava acelerado.
— Boa noite.
Um dos dois homens bem trajados, cada um usando um terno completo, com direito a colete, foi o primeiro a dizer. Este, para diferenciar, além da mãos dentro dos bolsos da calça de linho bem desenhada — e que, certamente, valia o preço de um carro popular —, tinha uma postura mais séria e elegante, ainda que seu rosto não pudesse ser visto por completo, devido a uma sombra da cortina na soleira onde estavam parados, entre a divisa da sala para a área externa. E o outro, mais baixo e com o rosto um pouco menos fechado em um olhar centrado, tendo o esboço leve de um sorriso enigmático, apenas manteve seu olhar direcionado de forma cortante para , que conseguia ver nitidamente seu rosto.
Apesar da falta de iluminação no outro, sabia que havia sido ele a cumprimentar sua entrada, porque em sua concepção seria completamente impossível de alguém dizer qualquer palavra e manter aquele sorrisinho velado numa face traçada com tanta sociopatia.
Isso exalava dele, assim como a elegância que vinha do outro.
— Boa noite… — respondeu simples, voltando as mãos para seus bolsos também.
— Por um momento achei que não tinha língua. — O mais baixo disse. — Seria uma pena, não gosto de nada incompleto.
O corpo do outro se virou lentamente para ele e Changkuyn conseguiu ver seu rosto de perfil com mais iluminação. Eram traços familiares.
— Não comece, por favor. Você prometeu bons modos — disse, repreendendo-o, e embora pudesse ser interpretado como um pai dando a bronca no filho, aquela cena pareceu ser mais enferrujada que isso.
Com um revirar de olhos a resposta veio.
— Ah, você ainda insiste nisso? Se não fosse meus… péssimos modos, como você gosta de chamar, não estaríamos aqui.
não queria perguntar nenhuma vírgula sobre a história de como as coisas tomaram aquele rumo para eles, assim como não queria continuar apenas como um espectador.
Limpou a garganta, fazendo-se presente. O homem mais alto virou novamente o tronco para sua direção e o sorriso sarcástico do outro tomou uma forma maior. Algo meio aterrorizante. Adicionou uma nota mental sobre não encarar ele por muito tempo.
— Olha só, você assustou nossa visita, .
Com a presença de um nome na sentença, franziu o cenho. Unindo isso ao perfil familiar, como em um quebra-cabeças, algo pareceu se encaixar perfeitamente.
— Mas que merda! Você insiste em falar meu nome antes-
— Bla, bla, bla… — Outro revirar de olhos. — Você fica muito patético com essa cena toda; seu rosto estampa revistas e jornais de empreendedorismo, e você quer fazer cerimônia a cada um que chega. No fim vão todos para a mesma contagem, meu querido amigo.
não se deixou fixar na última parte, para não se preocupar. Tentar saber de qual contagem ele estaria falando o levaria a um papel ridículo de pavor.
Focou na figura de , que saiu da última sombra que o impedia de ser visto por completo, confirmando sua breve constatação: era o CEO magnata de Seul, dono da maior rede imobiliária de quase toda a Ásia. Isso lhe tirou um pouco da sanidade, pois todo aquela postura diante de si era a mesma que ele apresentava em público, sendo aclamado e desejado, mas na verdade escondendo por baixo de todos os flashes o assassino sanguinário que era. Se lembrava que o único, e talvez nem tão grande assim, escândalo que envolvia seu nome era sobre o fim de seu relacionamento com a ex-noiva, uma modelo americana nomeada de Maya Cafrey.
Entretanto, o perfil do outro parecia se encaixar mais, visto que sua sociopatia exalava por si só.
— Você vai querer ficar parado aí? — perguntou, como se a poucos segundos não estivesse em uma discussão paralela diante dele.
— Achei que não iria ser educado hoje. — O comentário veio do outro, em seu tom sarcástico. — Espero que goste de uísque e charuto. — Se direcionou a .
Não parecia como um comentário comum de boas vindas, mas talvez fosse somente a impressão que tinha gerado sobre ele fazendo com que soasse algo ameaçador em um aviso prévio. Ignorou as hipóteses e seguiu os curtos passos para o lado de fora, observando bem o ambiente como um todo.
Sofisticado e nem um pouco entregador da dualidade sanguinária da dupla.
— Sente-se. Embora eu goste de visitas, hoje tenho compromissos a cumprir ainda essa noite.
encarou seu parceiro, conforme ele dizia e puxava a cadeira para o convidado, e apenas se sentou, abrindo o paletó para ser mais confortável, tendo a companhia do outro quase de frente para si, deixando o terceiro entre eles.
— Me chamo . Aceitaria sua mão se não fosse um ato de muito contato.
— Para uma pessoa que não gosta disso, você fala demais. — ousou dizer.
A risada de ecoou, elegante como qualquer coisa que ele fazia, incluindo piscar.
— Um bom comentário. Gosto de pessoas observadoras. — sorriu minimamente, esticando os braços para alcançar a garrafa no centro da mesa e encher os copos, enquanto falava. — São as mais perigosas — encarou em um olhar profundo, como se estivesse atravessando suas orbes para chegar em sua alma.
Jamais diria que sentiu um grande arrepio por aquilo. Talvez poderia mencionar os arrepios gerados por aquele olhar pela beleza incomum de , mas jamais que fora por medo.
Tinha sua reputação a zelar.
A mão enorme de alcançou um copo e puxou para si, sentando-se mais folgado em sua cadeira. Encarou , ainda durante os segundos que ele parecia pensar no que responder, e, bebericando seu uísque, deu o rumo certo da conversa:
— Então, a que devemos a honra da sua presença?
Desviando do olhar de , pegou seu copo, deixando-o parado abaixo de seus dedos.
— Você não me parece com alguém que queira a cabeça de alguém em cima de uma lareira. — complementou.
— Na verdade… — limpou a garganta, olhando de um para o outro. — Não preciso matar ninguém, a não ser quem entre no meio do caminho… Preciso tirar essa pessoa de uma penitenciária.
Os dois, em silêncio, continuaram o encarando na mesma posição que estavam, porém sem nenhuma feição passível de leitura. Ele achou, por bem, que deveria continuar a contar sobre todo o plano.
— Não sei se vocês já ouviram falar sobre , o dono da Odium e de tudo o que envolve os arredores do submundo das lutas clandestinas e apostas em Seul… — mencionou, soando sério e confiante. — A famosa Las Vegas do Sul — completou, achando que isso mudaria alguma coisa.
A primeira impressão que teve sobre a psicopatia de aumentou quando ele abriu um sorriso cheio de dentes, brancos como a luz da lua, levando alguns segundos para gargalhar alto e sem parar por muitos segundos, cerca de três minutos — se ele estivesse, de fato, contando, poderia ser até mais.
E enquanto ele ria, bebia seu uísque.
— Eu falei algo errado? — Ele tentou, mas foi ignorado por ambos: um rindo como se estivesse dentro do circo e o outro parecendo apenas coexistir em uma capacidade absurda de ignorar tudo e todos à sua volta.
Ao movimentar os lábios para tentar intervir novamente, a gargalhada cessou em um rompante, tal qual um rádio ao ter seu botão de liga e desliga pressionado para cessar a energia. O olhar de cruzou com o de por breves segundos antes de se direcionar à porta de entrada, no exato momento que ela fora aberta bruscamente.
— Merda… — foi o que conseguiu proferir em um sussurro ao ver as duas figuras armadas do lado de dentro, bem em sua direção, no mesmo passo que inúmeros outros caras, que ele não sabia de onde vieram, apareceram no ambiente, até mesmo do lado de fora.

🔪💔


As pernas de estavam tremendo, mas ele continuou seguindo para atravessar a rua. Já fazia um tempo que esperavam por , segundo o que o outro havia dito, o que pra ele, que contou apenas meia hora desde que tinham estacionado ali na frente do Park Hyatt, parecia um exagero. Mas fez o que o próprio tinha aconselhado: sabe como e quando agir.
Embora não era o que parecia naquele momento.
— Você tem certeza? São só trinta minutos… Nem é tanto assim. — Pela milésima vez, tentou. Já estavam na porta giratória, saindo para o saguão de recepção e apenas ignorou a voz dele, como já vinha se tornando costumeiro.
A caminhada apressada do garoto continuou adiante, seguindo ele até o balcão.
— Olá, desculpe… Não estamos fazendo reservas hoje. — A moça simpática disse. — Mas pode deixar seu contato e assim que for liberado nós o contatamos.
não aceitou isso muito bem e, espalmando a mão na superfície, aproximou o rosto do dela, não sendo escandaloso, porém bem específico:
— Eu não quero reserva nenhuma. Em qual andar eu vou para encontrar o último cara que entrou aqui?
O olhar dela foi para o homem prostrado ali ao seu lado em silêncio até então. Ele apenas sorriu ladino e deu de ombros e ela suspirou, digitando algo no computador e entregando a o cartão preto em detalhes dourado.
— Obrigado pela cooperação — agradeceu com educação e saiu disparado.
— Desculpem… — murmurou, apressando-se para segui-lo.
Ao chegar no elevador, os dois subiram sozinhos e, quando as portas se fecharam, foi o primeiro a sacar sua arma do cós de sua calça, alinhando a ponta que a silenciava. Encarou o garoto ao seu lado e apenas com o olhar ele entendeu que deveria fazer o mesmo com a que carregava.
Naquele momento não iria perguntar nada ou questionar qualquer ato, estava aprendendo a confiar nos dois novos parceiros naquela missão de resgate a . Parecia loucura porque ambos tinham perfis completamente diferentes, mas era divertido e bom, afinal se fossem três cabeças pensando igual, nenhum plano poderia dar certo.
Quando as portas se abriram para o corredor extenso, não teve tempo ou paciência para observar os detalhes de toda aquela arquitetura, saiu adiante e se manteve em seu encalço, no caminho feito pé por pé. Como um bom protocolo seguido, as armas estavam bem posicionadas em suas mãos, com o apoio de uma e apontadas para baixo; mesmo com a ausência de uma porta além da que estava no final do corredor, cobriu a parte traseira do outro, se mantendo atento. Levou um breve susto ao sentir suas costas baterem contra a dele, mas foi breve, pois logo se virou e viu que tinha parado em frente a madeira de aparência milionária.
— A gente vai bater? — perguntou sussurrado.
— Não sou educado a esse ponto.
— Então está esperando o que? — O sussurro saiu esganiçado.
— Céus, você tem muito o que aprender ainda… — revirou os olhos, levando uma mão para a maçaneta. — Só fica atrás de mim, ok?
assentiu e mirou o olhar para a mão dele que estava para abrir a porta.
O movimento foi rápido: girou a maçaneta e voltou a mão para apoiar a arma, empurrando a madeira para frente com o pé. Seus passos para dentro do ambiente foram rápidos e a mira se tornou alta, mas seria falha.
Assim que entrou atrás dele, sentiu o seco em sua garganta descer como uma bola de espinhos.
Em sua direção, do lado de fora, tinha uma mesa redonda com dois homens sentados um de cada lado de , e um deles, loiro demais e uma feição sórdida, encarava a sua entrada com , assumindo um sorrisinho conforme o cenário todo se montava em volta dos dois recém chegados. Ele não tinha como contar naquele momento, mas a única coisa fácil de se constatar era que, talvez, somente talvez, estava errado sobre o timing de seu parceiro. As diversas armas apontadas para eles dizia isso com muita clareza e não queria nem saber de onde tantos homens de preto haviam saído.
Sua mente somente voltou ao ambiente quando ouviu uma risada melodicamente trágica vindo do lado de fora e seu coração acelerou por ver o outro, que até então pelo seu breve julgamento, era sério e quieto, se levantar e carregar para o parapeito pela gola da camiseta.
— Tem certeza que sou eu que tem muito a aprender ainda? — virou o rosto para , não perdendo sua chance de comentar.
Os olhares trocados entre eles não tinha resposta alguma, até porque não precisava ser muito inteligente para somar o um mais um e ter em resultado as suas chances contadas. Ainda que no outro plano de todo aquele cenário as coisas estivessem tomando um caminho mais complicado, pela situação de , um lapso de arrependimento surgiu em . Em sua defesa diria e afirmaria com afinco que ter inúmeras armas apontadas em sua direção com um plus da feição problemática e arrepiante do loiro que parecia estar, somente com um olhar, consumindo toda sua alma, seria o suficiente para poder viver um resto de vida banhado em privilégios.
Quis afundar a cabeça de em um balde cheio de soju misturado com a cerveja mais barata, mas em primeiro lugar queria pensar em algo muito mais catastrófico para ; não era possível que ele, com tantos anos de uma reputação montada em cima do que ele tinha feito em excelência, teria o enfiado no meio de um cara tão inteligente e, ao mesmo tempo, babaca igual seu parceiro em acreditar que aquilo tudo era uma boa ideia. Se tratava de dois criminosos perigosíssimos procurados pela polícia que não tinham um rosto ou sequer nomes; ressaltando o fato de conseguirem bagunçar mais as investigações a cada passo dado, a cada assassinato.
Ou então, se enfiaria dentro de um congelador para tentar curar a culpa que sentiu naquele momento por todas as suas escolhas tortas. Afinal, ele quem tinha escolhido aquele caminho e se tinha sua vida à prova naquele instante, em um dos hotéis mais caros de toda Seul, foi por seu livre arbítrio e ambições incomuns.
Agora estava ali, diante de uma situação que poderia levá-lo a ter ou sua cabeça degolada com o corpo ainda vivo ou apenas um tiro no meio da testa, e qualquer uma das opções era apavorante com a trilha sonora da risada do cara que, jamais, em hipótese alguma, ele queria ter como amigo.

🔪💔


Foi com apenas um solavanco que pareceu retornar ao que estava acontecendo, porém de uma forma assustadora, porque estava sendo arrastado rapidamente para um lugar que logo reconheceu como o parapeito, já que seu tronco foi curvado para frente, sendo forçado a admirar a vista lá embaixo da cobertura em que estava no prédio de quase trinta andares. Seu peito se apertou em medo, certamente, enquanto sua mente trabalhou sem pausa em qualquer chance que poderia ter de começar a negociar sua vida. E tudo por conta do temperamento ansioso de , como sempre.
Não tinha como não sentir o desejo das férias barra aposentadoria.
Foi uma ação extremamente rápida, mas pelo ângulo que estava, pôde ver mover os lábios para formar seu sorriso ladino, enquanto se levantava lentamente, fechando seu paletó e levando as mãos para dentro dos bolsos, finalmente tendo sua gargalhada cessada. Nessa mesma rota de olhar panorâmico, ele viu o rosto de a poucos centímetros do seu, atrás de si, segurando-o com apenas uma mão em sua gola, enquanto a outra puxou a arma do cós de sua calça com tremenda agilidade.
Poderia ter pensado em coisas sórdidas com o tamanho daquele homem, como, por exemplo, do que aqueles dedos ágeis e compridos tinham a capacidade de fazer. Mas só conseguiu se lembrar do pescoço degolado da mulher que tinha o cartão que ele desvendou. Ainda que parecesse um pouco mais problemático do que imaginar qualquer ato libertino, sentiu seu corpo se arrepiar mesmo assim.
— Ei, ei… Calma! — começou pedindo. — Eu não terminei de falar-
— E nem vai. — Shown vociferou, forçando-o mais contra o parapeito. — Acha que pode armar contra a gente e sair impune? Quer me fazer de palhaço falando sobre resgatar um qualquer de uma penitenciária?
emitiu uma risada nasalada, olhando de para o lado de dentro da cobertura, ao retornar para os dois ali fora, ergueu as mãos em rendição pela forma como o encarou totalmente fulminante.
— Desculpe… — comentou baixo. — Aqueles dois estão com você, certo? — perguntou para .
— Eles… estão. — engoliu a seco, resmungando um som qualquer pela dor de ter seu tórax sendo prensado contra a barra do parapeito. — Mas eu posso explicar… Me deixa explicar-
Não conseguiu finalizar outra vez, se assustando com a feição de a centímetros da sua quando ele se abaixou do seu lado.
— Sinto muito por você ter ofendido meu amigo — disse, sorrindo. — Ele é sempre elegante, mas quando perde a paciência…
— Quieto, . — rosnou, abaixando-se para falar no ouvido de : — Adeus.
— Não! Não! — gritou, usando as mãos para se segurar, sendo forçado continuamente. — Espera, eu realmente posso explicar. foi preso e precisa sair da cadeia para concluir uma interceptação em um leilão! Esse leilão é de Matty Simons.
afastou-se, olhando para com o cenho franzido.
— Que nome você disse? — perguntou, desta vez foi sua mão que tocou em , segurando o rosto dele pelo queixo. — Repete o nome.
— Matty… Simons. — disse pausadamente, receoso.
— Não foi esse picareta que-
Ele teria terminado, mas foi mais rápido e puxou de volta, ainda o segurando firme ao virá-lo para ficar de frente consigo. O mediu de cima a baixo com uma feição muito séria, diferente da que carregava desde que tinham se encontrado.
Parecia que o nome de Simons tinham lhe causado um efeito extremo. Sua mandíbula travada salientava isso. E a julgar pela forma como se afastou em um passo para trás, deveria ser mesmo um assunto muito delicado.
— Sua última chance de se explicar. Aproveite bem, não costumo dar chances a ninguém. — A voz dele saiu grossa, porém calma.
limpou a garganta, engolindo o bolo enorme que se formou, sentindo que seria ouvido e que os dois prestariam total atenção nele.
tem um plano — mentiu, ele ainda não sabia muito bem qual era o planejamento depois de tirá-lo da cadeia. — para interceptar esse leilão de Matty Simons e roubar todas as jóias que ele tem como carga.
— Eu sei uma pessoa que vai odiar saber disso… — sussurrou, deixando a sua marca registrada do riso fraco no final. Novamente, ergueu as mãos em rendição ao receber o olhar cortante do parceiro, que apenas movimentou os olhos e nenhum centímetro do rosto.
— Estamos falando de muito dinheiro.
— Eu sei de quanto estamos falando. — cortou a continuação de , mantendo sua mandíbula travada.
Quis questionar como ele sabia sobre isso, mas resolveu guardar para depois. No momento sua única expectativa estava em cima da resposta.
Durante o silêncio que parecia durar tempo demais, argumentou:
— Tirar da cadeia é só o primeiro passo. Depois temos o leilão e todo o dinheiro irá fazer valer a pena.
Ainda na mesma troca de olhares entre e , a resposta veio do loiro em mais uma de suas marcas registradas: o sarcasmo.
— Se não der certo eu posso colocar a sua cabeça em cima da minha lareira como recompensa? — perguntou.
— Irá contratar seus próprios serviços? — ousou rir fraco e deu de ombros. — A minha não garanto, mas a gente pode usar a do mocinho de jaqueta vermelha como garantia — apontou para a direção de e ele acompanhou, sorrindo abertamente para o garoto.
, mesmo distante, olhou de um lado para o outro, ainda na mesma posição de entrada. Ele e estavam parados como estátuas esperando qualquer movimentação mais desnecessária.
Em um ato nervoso, sua voz saiu esganiçada, notando que deveriam estar falando de si.
— O que? — disse alto.
voltou a encarar e assentiu. Tocou o ombro de e, baixinho, sussurrou algo para ele, que o fez sair da camada violenta imediatamente. Suas mãos enormes se movimentaram para, além de soltá-lo, arrumar sua roupa. Sorriu simples, como um pedido singelo de desculpa, e assentiu, se afastando um pouco, enquanto levava a mão ao pescoço para massagear a região. Seu olhar mirou o parapeito de soslaio e um arrepio percorreu todo seu corpo.
Ao voltar a encarar a situação adiante, viu o movimento que fez para que os homens saíssem dali.
— Porra, ta vendo garoto? É por isso que uso um ônibus escolar, pra você aprender algo que a escola não ensina. — A voz de saiu alta, enquanto ele abaixava a arma e a guardava de volta no cós. — Aprendeu algo hoje, meu bem? — perguntou para , que fazia o mesmo.
— Sim. Jamais confiar em você
se virou de costas para a cena, causando um susto em , mas ele apenas avisou:
— Não seremos amigos. Isso é somente um trabalho.
— Por mim está ótimo! Contanto que não me levem como amuleto depois… — respondeu, voltando a respirar mais tranquilamente.

🔪💔


O vestido verde e solto de não combinava em nada com o programa da noite: comer bungeoppang da barraquinha no parque ao lado da Namsan Tower, que estava ainda mais iluminada pelas comemorações de primavera.
Com o cabelo castanho preso em um belo coque, ela não parecia se importar em deixar que pagasse ao velho do quiosque algumas notas e moedas a mais, garantindo que voltaria depois e que pediria um capricho extra no recheio. O homem riu e desejou felicidades ao casal antes de se retirarem, com as bochechas levemente avermelhadas de constrangimento.
A ideia era maluca, inesperada e descabida.
— É disso que eu estava falando — balbuciou enquanto mastigava, fechando os olhos por um instante pelo prazer da comida — O gosto disso não muda nunca, não importa o tempo.
— É, nosso amigo ali bem que parece estar aqui há muito, muito tempo mesmo. Tipo desde a era Joseon, sabe — ele respondeu, brincalhão. Ela riu, esbarrando em seu ombro propositalmente enquanto andavam devagar em direção ao pequeno riacho decorado com as luzes do templo budista.
— Você consegue passar dois minutos sem fazer uma piada?
— Com você? Jamais, gata — o sorriso dele ficava muito bonito quando o abria singelamente de lado, percebeu. Em contrapartida, ele encarava seus fios soltos caindo pela testa com uma admiração a mais, como se desejasse colocá-los de volta no lugar, o que serviria como desculpa para tocar a região — Você teria saído correndo há muito tempo se me ouvisse falar sobre desmatamento, causas sociais ou corrupção. Essas coisas me tornam alguém entediante, não tá vendo? Só de falar o nome eu já quero me mandar calar a boca — mais uma risada foi arrancada da garota, que andava achando mais interessante uma proximidade pautada em assuntos não relevantes do que o contrário. A vida parecia mais real e leve sem todas essas coisas — Por isso, prefiro te fazer rir, se não se importa. É o mínimo que você pode fazer depois de não me deixar te levar pra jantar em um lugar decente.
— Já falamos sobre isso. Da última vez, você me levou em um restaurante em Itaewon onde só pilotos e celebridades frequentam, isso é um absurdo.
— Era perto de Itaewon, na verdade — corrigiu ele com uma mordida na massa. arqueou as sobrancelhas, muito bonitas e apresentáveis naquela noite.
— Isso já soa muito caro, .
— Tudo bem, tudo bem, posso ter extrapolado daquela vez, mas hoje não te vi fazendo cara feia, não é? Fomos ao cinema, sem nenhuma artimanha, e estamos comendo o que você quer: bolinho de peixe — ele faz uma careta ao levantar os braços e posicionar a massa ao lado do rosto, puxando um bico com as bochechas para imitar o animal.
segurou uma risada e deu de ombros.
— Eu estava com saudade de comer comida de rua, tudo bem? Ultimamente, não ando tendo muito tempo pra isso — disse, diminuindo um pouco a voz — E pelo menos hoje você não tá usando uma daquelas camisetas com frases de Shakespeare ou com sátiras de Romeu e Julieta. Muito maduro.
— Ah, pára com isso, elas fizeram o maior sucesso no clube do livro de Bukchon.
— Claro que sim, você devia ser tipo o carinha mais bonito com menos de 40 anos que pisou lá, sem ser gay ou casado. Pensaram que eu estava apresentando o meu irmão.
Pff. Então é um lugar errado para se flertar.
— Exatamente. Não é o ambiente ideal.
— Mesmo assim, você está aqui — a voz abafada passeou pelo rosto de quando ele se aproximou, descontraído — Culpo Shakespeare, o clube ou o aterro de bestas ofensivas?
ficou em silêncio. Não havia muito que ela não gostasse a respeito de contato. Lidar com pessoas desconhecidas, dia após dias, a colocava em uma posição imprevisível quanto a esse tipo de coisa. Mas era difícil se lembrar da última vez em que alguém chegava perto daquele jeito e o corpo acendia como uma boate, somado com a queimação na boca do estômago, que mais pareciam a pista de um aeroporto do que as borboletas propriamente ditas; um aeroporto com aviões em movimento, fazendo a mesma rota, girando em massas de ar. Borboletas não tinham a habilidade de causar aquele estrago.
Seus olhos piscavam continuamente quando respondeu:
— Culpe a sua habilidade de gravar números. E a sua insistência.
não segurou o sorriso. E sentiu ainda mais aviões.
— É o que faz os vencedores, senhorita Shakespeare. Isso quer dizer que estou no caminho certo?
Mais um passo à frente foi o suficiente para desconcertá-la mais um pouco. Os olhos de pareciam uma janela de vidro grosso, algo muito transparente para alguém totalmente desconhecido. Ficava tão extremamente fixado nela que tomava mais do que o necessário; roubava sem pedir, conhecendo-a cada vez mais sem a devida permissão.
— Não consigo te responder isso agora.
— Mas consegue mostrar isso, não consegue? — agora sua respiração batia de encontro ao seu nariz, e seu hálito inundava o queixo e o lábio inferior. O rapaz se inclinava pacientemente em direção à ela, confiante da investida. sentiu ainda mais calor pela expectativa. A maneira como seu abdome afundou a fez se lembrar de como a viatura a pressionava contra o banco do motorista quando pisava fundo, indo de encontro a uma grande aventura com altas emoções.
Era isso que a iminência dos lábios de se parecia.
Mas antes que chegasse, um apito surgiu no pequeno espaço entre os dois. Um apito característico, o lamento de um toque que soava como produtividade. se desvencilhou rapidamente da bolha recém instalada, puxando o aparelho pequeno e quadrado, apertando os botões até se deparar com a imagem complexa e esverdeada, que mostrava um ponto vermelho gritante que se locomovia devagar por uma linha reta sem destino.
O suspeito estava se mexendo. E a ambição dessa emoção específica pareceu uma alavanca muito maior e eficiente para desnortear-lá do presente.
— Você precisa ir de novo, não é? — A voz dele tomou um tom raso de decepção que não passou batido. Um pouco de curiosidade salpicava seus olhos quando encarou aquele dispositivo nas mãos de sua companhia; pequeno, meio oval, equipado com uma alça superior, muito parecido com um pager ou um Tamagochi. Parecia combinar com ela, no fim. também sabia apreciar o atraso tecnológico das coisas e pessoas.
Ela ergueu a cabeça, se livrando da distração do glóbulo vermelho ambulante e guardando-o de volta na bolsa.
— É. Eu sinto muito — se desculpou enquanto dobrava o pequeno recipiente de papel que guardava o bungeoppang — É coisa do trabalho. Tenho uma meta para alcançar nele, então… Será que podemos marcar de novo na semana que vem?
Sendo mais específica: queria alcançar metas de maneira eficiente. Participar da prisão de Yoo foi uma delas, mas pontas soltas não declamavam eficiência. Não se tratava apenas de fazer um trabalho bem feito, se tratava de fazer o que ninguém está disposto a fazer. E não havia nada mais eficiente do que visar o destino de chegada e impulsionar meios para isso, como faziam os corvos a voar.
Ela estava claramente se esforçando diligentemente para alguma coisa. E, é claro, não deixou de notar isso. Fazia questão de observar e anotar minuciosamente cada detalhe que percebia de , mesmo que já tivesse sua ficha e antecedentes inteiros e detalhados em algum arquivo separado na área de trabalho.
Ele franziu os lábios, encarando-a sem perder o divertimento nos olhos, feliz internamente por já terem um próximo encontro marcado.
— Algum dia vou saber o que é esse seu trabalho tão interessante? — ele apertou um dos olhos, em uma indiscrição convincente — Que faz você sair correndo sempre. Me deixando para trás. Justo quando as coisas iriam ficar boas.
Com as bochechas novamente vermelhas e o estômago girando a mil pés de altura outra vez, suspirou antes de responder.
— É só um trabalho que exige um tempo a mais — tentou, mas fez com que ele apenas erguesse uma sobrancelha, desconfiado.
— Um trabalho que exige tempo… Uma tocaia em um lixão… saídas suspeitas… aparelhos digitalmente modificados… minha nossa, você é mesmo uma vigilante? — a constatação deixou sem ar. segurou uma boa risada do fundo da garganta.
— Claro que não — respondeu, baixando o olhar para a luz avermelhada que dançava abaixo deles, no gramado recém cortado — Mas sou aquela segunda opção.
A superfície da expressão de era claramente surpresa. Não pelo fato da declaração, longe disso. Mas a surpresa por ela ter realmente contado.
— Uau. Você deve ser a policial mais gata que eu já vi — ele caçoou, deixando o rosto dela ainda mais escarlate, fazendo-a desviar para o rio estreito que cortava a relva. Era muito fácil deixá-la embaraçada, e era muito fácil querer fazer isso de novo — O que é? Capitã, tenente, detetive, major? Ou você é daquelas que balança as bandeirinhas laranjas no trânsito? Trabalho brilhante, inclusive. Muito necessário nas áreas escolares.
não se conteve em rir alto desta vez. Era extremamente divertido estar com esse cara, que desmantelava perigosamente sua postura rígida e a fazia parecer tão exposta e transparente, como um espelho para o céu.
— Detetive. Recém promovida. Estou tentando pegar um caso grande.
— Ah é? E que grande aventura seria essa? — perguntou sem rodeios. Os cantos da boca de diminuíram de hesitação. Ele poderia seguir com os olhos todo o curso de seus pensamentos naquele momento: não o conheço. Não o conheço o suficiente para isso. Ele soltou uma alta expiração depois de um tempo, dando de ombros — Eu sou só um fã inocente de CSI Miami, eu juro. Qualquer coisa que envolva sirenes, efeitos fluorescentes e a palavra forense já me deixa empolgado.
morde o canto do lábio inferior. Não havia como duvidar das palavras e intenções de . Agora que estavam ali, isso ficou ainda mais claro.
— Essas coisas dão mais dor de cabeça do que você pensa. A maioria dos casos começam e nunca terminam. É muita preguiça, falta de informação e consequentemente a desistência — a explicação veio com um muxoxo. A parte desanimadora do emprego dos sonhos de a deixava apática e ansiosa na mesma proporção — Descobri que intuição, por melhor que seja, não vale de nada sem provas concretas. É bem diferente de uma série de TV. É isso que eu estou tentando fazer agora: coletar provas de uma intuição, que pode parecer maluca, mas faz muito sentido pra mim. E não costumo desistir das minhas intuições.
engoliu em seco depois de falar, travando-se apenas nisso. Percebeu que não falava disso com muita gente. Percebeu que não falava com ninguém. Os outros igualmente não tinham tempo para isso. Com ali, pareceu uma questão tão urgente e ridícula ao mesmo tempo, agora dita em voz alta, mas extremamente necessária de ser colocada para fora.
— É mesmo? E que intuições seriam essas, senhorita Shakespeare-Nancy Drew? — o garoto brincou, com as sobrancelhas arqueadas. Precisava dizer algo minimamente divertido para que tirasse o vinco da testa, ou relaxasse os ombros retesados diante da possibilidade de ter falado demais. Era bom observar na feição da policial o momento exato em que ela pensava que podia estar exagerando, e se via desarmada logo depois por ele.
— Tem esse cara… Ele é parceiro de um criminoso que prendemos há algumas semanas, dono de um dos maiores clubes de apostas de Seul. O esquema dele era gigantesco, envolvia lutas clandestinas, cassinos, tráfico de drogas e todas essas coisas. Foi uma grande prisão e ajudei a conquistar isso.
— Hum… Você literalmente deu fim ao clube da luta? — Os olhos de faíscaram com a brincadeira. Outro sorriso assaltou os lábios de . Por um instante louco, ele perguntou a si mesmo se ela iria sentir-se melhor ou pior quando visse seu êxito ir por água abaixo quando libertassem .
— Quase isso. Eu e a equipe — deu de ombros, em uma verdadeira modéstia — Mas ele iria cair de qualquer jeito. Era uma investigação que rolava há muito tempo, antes de mim. Só fui paga pra incrementar um pouco na estratégia de ação.
— Assim como todos os seus outros colegas também devem ser pagos para fazer a mesma coisa… — a frase era sugestiva, e não se arrependia dela. Nem mesmo quando a viu abaixar a cabeça, consternada. A mente dela parecia tão aberta diante dele: se eu estivesse na equipe antes, poderíamos ter pegado há tempo. Se tivessem me escutado naquela época…
Pior. certamente se sentiria pior quando visse o chefe de fora das grades.
— E o cara que você disse? Não o prenderam também?
— Não temos provas contra ele. Só a falta de carteira assinada, jóias caras, mas ficha limpa, nada de suspeito além de ser o braço direito do dono. Só disse que não sabia que as atividades eram ilegais e saiu ileso — ela abocanhou o lábio inferior, ligeiramente decepcionada — Mas não tem como ele não saber de nada, você entende? É impossível que esse cara não só sabia, como também participava de tudo isso. Que tá sendo usado estrategicamente aqui fora pra preparar algo muito maior.
trocou o peso de uma perna para outra, prestando total atenção. Pelo código de honra dos disfarces, ele não deveria perguntar tanto sobre o trabalho daquela mulher. Ele sabia o que fazia, já sabia o andamento das investigações sobre , já sabia o que precisava saber sem precisar estar ali, ao lado da Namsan Tower comendo um bolinho que nem gostava tanto assim.
Mas a cisma de que podia não ser tão burra quanto ele gostaria guiava seus passos mais do que a razão. Era interesse ouvi-la falar. Mas também era interessante notar que poderia conseguir mais informações do que as máquinas eram capazes de lhe dar.
— Você acha isso? — perguntou, soando tão indiferente quanto conseguia.
— Você não?
— Posso dizer que faz sentido, senhorita. Você é muito perspicaz. — Essa garota era esperta, terrivelmente esperta. Se ouvisse metade de suas últimas palavras, já estaria morta em cima daquele relvado. podia prometer apenas em não machucá-la com suas palavras, porque de resto, também precisaria fazer o necessário como faria seu parceiro.
Mesmo que, incompreensivelmente, não quisesse sujar as mãos com aquela mulher.
— Obrigada, eu também acho — respondeu ela com um sorriso simplório — E por isso tento convencer meus chefes e meu parceiro, mas eles não querem perder tempo com uma intuição.
Manter a boca fechada seria uma opção mais inteligente para . Ele deveria, simplesmente, deixá-la seguir seu caminho de palpites certeiros e voltar para o bunker, começar a guardar suas coisas e dizer a que teriam de se mudar temporariamente até colocarem o plano em ação e simplesmente desaparecer da vista de .
Mas, quando viu, já estava perguntando de novo:
— Hmm… Era isso que você estava fazendo naquele aterro? Seguindo esse cara? Seu grande presságio de alguma coisa ruim.
— Sim. Tenho certeza que o vi entrando ali, mais de uma vez. Mas fiz algo mais eficiente do que isso: paguei um cara da inteligência para colocar um rastreador de microchip no carro dele, ou no que diz que é. Confesso que é amador, mas agora sei pra onde ele está indo — ela agarrou a bolsa com um pouco mais de força, mostrando onde o pager ainda piscava. quis soltar uma risada, mas sairia engasgada e desacreditada. Lá estava novamente, andando por aí sem o menor cuidado, se deixando ser caçado de perto assim por algo tão estúpido quanto um microchip naquela porra de carro, levando aquela garota e toda a polícia junto até eles sem nem fazer esforço.
Idiota.
— E é pra onde você vai também agora — disse ele, simplesmente.
Os olhos de se dirigiram diretamente para o rapaz, anuindo devagar.
— É. Eu… Sinto muito.
— Tudo bem, não esquenta. Pelo menos soube uma coisa sobre você. Algo bem legal e importante, que não teve nada a ver com medo de helicópteros ou de armas de fogo — ele piscou, referindo-se à imagem desordenada de policiais nos filmes do cinema. Fez com que risse mais uma vez.
— Acha que posso ser uma mulher difícil por causa disso?
— Ah, você com certeza é uma mulher difícil, senhorita Shakespeare. Mas quem disse que isso não é atraente? — ele se aproximou de imediato, abaixando a voz até seu nariz novamente. A respiração de escapou entrecortada da boca e, quando sentiu os dedos dele em sua bochecha, o martelar no peito entupiu seus ouvidos, o que era preocupante, estranho e ainda mais preocupante. Seria ótimo continuar conversando com ele, mesmo diante do ruído incessante de seu coração repentinamente agitado — Posso ligar outra vez e te chamar pra jantar em um lugar coberto e aconchegante?
engoliu em seco, piscando os olhos algumas vezes, sem conseguir se afastar.
— Seria em Itaewon?
— Não. Em um restaurante de kimchi. Bem embaixo da minha casa, na simples Jongno-gu.
— Trabalha em um restaurante de kimchi?
— Eu trabalho em muitas coisas. Mas você só vai saber se me encontrar de novo.
Os olhos de brilharam de excitação. De curiosidade pelo novo que não tinha certeza do que era exatamente. A voz de era melodiosa e atraente o bastante para que se esquecesse do próximo compromisso, e fizesse com que a palavra namorada piscasse uma vez em um milissegundo, desaparecendo totalmente logo depois em completo desespero.
O riso desdenhoso dele mal se fez notar quando se abaixou para o rosto dela, satisfeito consigo mesmo.
— Você tem algemas aí? — sussurrou perto de sua bochecha. o ouviu bem o bastante para piscar os olhos mais uma vez e umedecer a garganta.
— Já disse que isso não é uma série de TV.
— Ótimo.
Ele a beijou rápida e intensamente. Foi um selar duradouro, repetindo-se duas vezes, onde o fogo que ardia nas lanternas vermelhas não passava de uma faísca perto do incêndio que tomou as bochechas de e seu peito, há muito adormecido, muito abandonado. Uma sensação daquelas era desacreditadamente nova.
Ao separar-se, ela ainda levou um tempo para abrir os olhos e erguer o queixo para o cara aparentemente desconhecido logo à frente. Um homem inebriante, magnético e que a fazia se sentir uma completa maluca.
Ele sorriu, por fim, e disse:
— Boa noite, senhorita Shakespeare.
O peito de se inflou de tal maneira que poderia ser visto do satélite mais distante do céu.
— Boa noite, .
Com a cabeça ainda girando, ela limpou a garganta e caminhou até o carro estacionado no meio-fio.
acenou uma última vez quando ela arrancou para longe. E, à medida que os faróis traseiros iam desaparecendo de seu campo de visão, seu sorriso igualmente desaparecia, dando lugar à sua habitual fisionomia de seriedade, somada agora com a raiva e o aborrecimento.
Que ideia de merda foi essa de beijar essa garota? Precisava chegar nesse ponto?
Aí é que estava: não precisava. E fez mesmo assim. Seus passos foram frenéticos e brutos até o Mustang, querendo chutar a grama idiota enquanto puxava o celular dos bolsos, tamanha era a fúria. fizera uma burrice sem nenhuma arma apontada para a sua cabeça e nenhuma situação especialmente emergencial.
Que merda.
Ele apertou os números enquanto abria a porta do motorista, olhando automaticamente para os lados.
— O que foi? — atendeu no terceiro toque, respondendo em tom confuso.
— Onde você está? — rosnou, espiando à esquerda do retrovisor enquanto se inclinava para puxar o cinto. Não gostava de dar brecha para ser observado, mas a imagem patética de alguns minutos atrás era ridícula demais, acertando sua paranoia com vontade. Era como se estivesse nu, exposto, como se Seul inteira soubesse seu nome de repente.
— Como assim? Por que?
— Me diz onde você tá, merda! — disse, em tom emergencial. Ele girou a chave, apoiando o telefone entre o ombro e o pescoço enquanto arrancava e fazia a primeira curva — Quer saber, não importa! Sai daí agora mesmo!
— O que?!
— Se estiver em algum lugar fazendo alguma merda pra porra do seu chefe, vão te pegar em menos de vinte minutos, dá pra me entender?
— Mas… Hã?! — a voz de era a própria confusão. Com um estalar de língua, ele disse logo depois: — Do que você tá falando? Eu só tô indo pra um motel!
diminuiu o peso na embreagem, franzindo o cenho através do retrovisor.
— É o que?
— É, tô dirigindo para um daqueles clubes da Mamacita fora do sul, cheio de acompanhantes gostosas. Por que a polícia se preocuparia com isso? Se me levarem lá, vão ter que levar todo mundo.
— Merda — fechou os olhos com força, reduzindo a velocidade automaticamente. O alívio foi imediato e necessário, antes que ele costurasse carros pela avenida e puxasse a Taurus do porta-luvas.
— O que tá rolando, ? Por que estão atrás de mim? — voltou a perguntar, mais aflito do que antes — Eu só quero gastar alguns milhares de wons em umas garotas, tá legal? Ninguém vai se matar ou se casar por aqui, fala sério, cadê o direito à privacidade? Depois de quase morrer na semana passada e ter minha cabeça de recompensa, eu mereço.
passou uma língua pelos lábios, dirigindo agora pacientemente como qualquer cidadão. não tinha notado o rastreador, e não saber em que data aquilo foi colocado ali deixava ainda mais furioso. Tinha sido desde o primeiro encontro? Tinha sido ontem? Ou desde que se viram a primeira vez?
E contar que tinha visto, conversado ou até mesmo saído com uma policial estava fora de cogitação.
— Tá legal, é o seguinte: depois de comer suas prostitutas, vai até o galpão com o seu carro. Entendido?
— Mas…
— No máximo amanhã à noite! Antes que você atraia a polícia pra cima da gente como um ímã. É uma ordem.
E desligou o telefone, jogando-o de qualquer jeito no banco do carona e preenchendo o carro com um belo tranco de velocidade.

🔪💔


Era vergonhoso perder o sono por causa de um beijo.
Mas não era apenas um beijo. Era o sorriso, a postura, as piadas, o jeito despojado que cabia dentro de um jeans surrado e tênis de coca-cola. Era a atração e a expectativa emanando do completo desconhecido. Era a voz, o cheiro e o cabelo bagunçado. Era o desejo velado que calava toda a parte racional e só dizia para que ela voasse. Que existia muito mais da onde saiu aquele beijo.
Parecia uma tremenda loucura. E não gostava de se sentir louca. Mas gostava menos ainda de se sentir desafiada; ou excluída de alguma situação específica.
O relógio digital em cima da cabeceira marcava quase uma da manhã quando ela cessou os pensamentos e apenas se levantou. Uma única palavra sondava sua mente: Jongno-gu. Restaurante de kimchi. A boca de .
Quando entrou no banco do motorista, pensou em ligar para ele antes de sair. Era uma atitude válida. Ele também a acharia tão louca quanto ela própria estava achando agora? Diria que era melhor que ela permanecesse em casa, que não confundisse as coisas àquele ponto, que deveria esperar por um sinal claro dele…
O celular foi jogado contra o assento ao lado, e ela girou a chave com precisão até arrancar em direção ao bairro tradicional.

🔪💔


— Você já guardou o bagulho? — claramente mastigava alguma coisa mole e gosmenta quando fez a pergunta do outro lado da linha. O tom era mais entediado do que qualquer outra coisa, o que era um alívio, visto toda a gritaria que tinha arrumado há algumas horas atrás quando o carro de estacionou há algumas quadras do galpão.
Depois de extraí-lo, notou que o rastreador não era uma ameaça de verdade. Ele não só não cobria grandes distâncias, como também foi vítima da ilegalidade sinalizada da região, plantada por ele mesmo. Não existia sinal naquela área desolada, não fora das delimitações de seus computadores especiais e modificados. Nem todos os postes de pé significavam funcionamento. O dispositivo não tinha capacidade de funcionar sem o mínimo.
— Claro que não guardei porra de bagulho nenhum, . Eu destruí aquela merda — ele respondeu, agora também fatigado com o assunto. Foi mais difícil do que pensou plantar uma mentira para e ao mesmo tempo, ainda que tenham engolido facilmente a história do rádio da polícia e algoritmos de reconhecimento vocal que filtravam qualquer menção do nome deles pairando entre os inimigos. Não, foi difícil por outro motivo.
Foi difícil porque, verdade seja dita, ele estava mais distraído do que o normal. Porque a verdade era perturbadora demais. Ele não era muito bom em conduzir mentiras tão descaradas.
— De que adianta deixar um monte de grana com aquele paspalho se não paga ninguém competente o bastante para averiguar o carro de vez em quando? Ele está sendo investigado, pelo amor de Deus — continuou, cerrando os dentes.
abriu a geladeira do pequeno apartamento com força, puxando de lá o restante das cervejas de uma caixa que tinha guardado ali há pouco mais de uma semana. Colocou duas para fora e devolveu o restante. O lugar, aparentemente quieto, limpo e minimalista, não era exatamente abandonado. Funcionava como o refúgio de um cara que vivia na bagunça. O paraíso mudo dentro do caos. Ninguém pisava ali, a não ser ele mesmo e, às vezes, .
A voz do parceiro agora era menos embolada quando disse:
— Nós também.
— Nós não somos idiotas — respondeu imediatamente. Não conseguia tirar da cabeça o fato de que deveria ter tido várias aulas de prevenção contra os engravatados da lei com seu temível chefe várias vezes, e ainda assim, caiu em um truque estúpido como aquele — Quer dizer, eu não sou.
— Vai se foder — resmungou — Vai ficar por aí?
— Vou dar um alô pra senhora Kim. Ela acredita demais na minha história de estudante universitário ocupado e sempre quer me fazer perguntas sobre a faculdade. Daqui a pouco vai bater aqui na porta pra me trazer o jantar.
Também tinha a parte de que a doce senhora do restaurante de kimchi parecia não ter a importante capacidade de se orientar verticalmente nem horizontalmente, o que o fazia ajudá-la a limpar e guardar as coisas sempre que tinha a oportunidade. Pelo horário mostrado no relógio de parede, ela já estava perto de fechar.
— Sai dessa, você gosta de conversar com a velha que eu sei.
apenas estalou a língua, bebendo um grande gole da cerveja. sabia apenas o que lhe contava — ou mostrava. Sabia de suas habilidades, de seu histórico com roubos, de suas ambições e desejos relacionados a dinheiro, e sabia de vez em quando um segredo ou outro. Sabia que ele precisava, muitas vezes, ficar sozinho e por isso pagava o aluguel barato de um apartamento de 30m² em cima do restaurante. Sabia que ele era meio estranho e fechado.
Mas não sabia que ali não existia . Que , às vezes, queria ser apenas . E era um garoto divertido, risonho, que gostava da companhia de uma velha senhora enquanto lavava as louças, arrumava as cadeiras e comia uma refeição caseira enquanto iniciavam discussões envolvendo árvores. O tipo de coisa que fazia quando tinha uma avó, ou uma mãe viva. Duas coisas que lhe foram tiradas cedo demais.
— Ela é um pouco sozinha. Você devia ter mais respeito com os mais velhos — ele disse, andando até o armário e passando um dos dedos pela barra dos puxadores. Era uma atitude automática, que o deixava mais tranquilo. Mesmo que reforçasse as portas secretamente, mantivesse câmeras e alarmes, e nenhum objeto minimamente suspeito que o ligasse ao seu outro ofício, ele ainda era e era um criminoso.
E criminosos deveriam ser cuidadosos, extremamente cuidadosos.
Mas hoje em especial, ele se contentava em apenas saber que não tinha nenhum rastreador no seu carro.
— Tá, tá, claro. Vou dar um presente de aniversário pra ela quando for o dia. Mas hoje vou aproveitar sua ausência e me divertir por aqui também com as minhas senhoras, bem menos velhas do que a Kim e com os peitos no lugar.
— Nojento — o garoto murmurou com uma careta, ao mesmo tempo em que ouviu batidas leves na porta — Ela chegou, vou nessa. Amanhã revemos o itinerário do plano.
— É claro. Bom papo tedioso com a sua velha. Pergunte a ela se pode fazer meu kimchi com bastante pimenta da próxima vez.
Com um revirar de olhos, encerrou a ligação e se voltou para a porta. Dando um último gole na bebida, ele coçou os olhos e a abriu, paralisando automaticamente no mesmo lugar.
Ali estava a última pessoa que esperava ver. Não sem um plano. Não sem um roteiro e falas ensaiadas.
? — a voz automaticamente era falha e banhada em choque. não era um cara que se chocava facilmente.
— Oi. — respondeu, meio desconcertada. Seus olhos brilhavam na direção dele, os músculos se retesavam nos braços e pernas, mas agora ela os sentia relaxar. Relaxavam mais a cada minuto que o via.
Ele abriu e fechou a boca várias vezes, procurando palavras que soassem coerentes.
— Que surpresa, eu não esperava… — ele deu de ombros fracamente, uma atitude patética diante do tsunami que tinha se instalado em sua cabeça.
— Sim, eu… Estou te atrapalhando? — ela perguntou, um pouco mais ansiosa.
— Não, claro que não, por que…
A resposta de veio em forma de uma investida contra o corpo de . O segredo era não pensar, não ponderar sobre o certo e o errado. Se ele a mandaria embora depois disso, pelo menos ela iria sabendo o que o tinha levado a essa decisão.
Não era sempre que uma garota enlouquecida vira escrava de seus próprios desejos a ponto de tomar uma atitude, não é mesmo? Era isso? Ou só achava que isso era um absurdo?
No entanto, contra todos os seus pensamentos pessimistas, correspondeu à investida na mesma moeda. Com as bocas coladas uma na outra, ele mesmo entrou em seu próprio estado de euforia, puxando-a para dentro enquanto empurrava a porta com o pé para fechá-la. sentiu as mãos dele se apertarem em torno de seu corpo, enquanto suas costas encontravam a primeira parede ao lado da bancada da cozinha. Em alguns minutos arrastados de beijo, tesão e falta de oxigênio, era como se o presente tivesse se transformado em uma realidade alternativa, onde nenhum detalhe sobre os dois importava de verdade. Nada mais importava.
Quando se viu obrigado a se afastar um pouco para respirar, abriu os olhos para observar a mulher bem de perto, agitada com a libido, agitada com a própria conduta, mas sem mostrar nenhum arrependimento por isso.
— Uau, linda — sua voz era carregada, pesada perto do nariz de . Seu peito arfava para cima e para baixo, os olhos brilhando de devassidão — Que presente foi esse…
Ele a beija de novo, perdido na própria desordem, dependente daquele gosto como não se lembrava antes de ter sido dependente de alguma coisa. Desta vez, se afastou, tão ofegante quanto ele, ao mesmo tempo em que sentia os dedos de Chankyun apertarem sua pele por debaixo da blusa.
— Desculpa vir sem avisar — ela completou a frase com os lábios dele em seu pescoço. Em pouco tempo, suas mãos trabalharam para arrancar casaco e camisa, fazendo a mesma coisa com ele.
— Nunca se desculpe por isso, senhorita Shakespeare — ele respirou na curva de sua clavícula, fazendo-a soltar um arquejo forte antes de ter seus lábios atacados por ele de novo.
não queria pensar no que estava fazendo. Não queria pensar na definição de fodido que toda a situação tinha. Só conseguia pensar em mover os braços para trás de suas costas e desarmar aquele sutiã de renda.
— Gosto muito quando você me chama assim — gemeu, permitindo que ele arrancasse a peça. A brisa fria que vinha da janela não penetrava o meio de seus corpos. beijou o vale de seus seios até voltar para cima de novo, abrindo um sorriso involuntário.
— Gosto muito da sua boca — as palavras saíram arrastadas pelo torpor, e saíram sem nenhum cálculo, totalmente sinceras, totalmente devastadas pela vontade — E gosto muito dessa surpresa.
O próximo beijo veio com anseio e acompanhado de passos até a porta na outra extremidade, abrindo-se em direção ao quarto. Dependente. não queria pensar no termo ridículo, mas não conseguia discordar dele.
E assim, decidiu que não refletiria sobre absolutamente nada pelo restante da noite e bateu a segunda porta.

🔪💔


Na manhã seguinte, a luz pálida que invadiu a janela desprotegida de cortinas acordou primeiro do que o despertador.
Levando um tempo até abrir os olhos por completo, ela já sentia a brisa fresca pelas pernas destampadas, subindo até as costas nuas e pelo rosto virado para a claridade. Tudo era meio embaçado no início. Quando tentou se sentar, foi quando sentiu os braços apoiados em torno de sua cintura e, virando-se em sua direção, a fisionomia do rapaz que dormia profundamente na outra metade da cama, sem se importar em nada com a luz que batia direto em seu rosto.
Ela se lembrou de absolutamente tudo que a tinha colocado ali, agora, deitada ao lado dele, e quis rir. Rir de alegria, desespero, não sabia. Aquele tipo de risada que se vê nos personagens de quadrinhos: ha ha ha! Já tinha se chamado de louca por vezes demais para se importar agora. Já estava feito — e como estava feito. E, avaliando novamente, sem arrependimentos.
Mas a luz era intimidadora e, também, um pouco mandona, fazendo-a se lembrar de que o trabalho a esperava e o mundo real, que precisava de sua presença. Mesmo que hoje, especificamente, eles parecessem tão mínimos e desinteressantes. Suspeitava que fosse o motivo do desânimo, mas jamais diria isso.
Ela levantou devagar, garimpando suas roupas até chegar na porta da frente, penteando os cabelos com os dedos e não se dando brecha para reparar no resto do apartamento. Não que houvesse muita coisa para ver; uma grande mesa de madeira no centro, uma geladeira, um fogão elétrico portátil. Parecia o ambiente de alguém que não ficava muito em casa, e teve, novamente, a noção de que não fazia ideia do que fazia para não ficar em casa.
No entanto, toda aquela postura mostrava alguém que fazia de tudo um pouco. Alguém que não devia ser dependente de outra pessoa desde os dez anos. Uma criança que não tinha ninguém para buscá-la no jardim de infância.
Bom, se for seguir nessa linha, ele também se parecia com alguém que se tornaria um velho com uma quitinete.
Dispensando as reflexões, saiu para o vento frio da manhã, constatando no relógio de pulso que já passavam das 6 horas. As escadas estreitas que levavam para a calçada eram o único ponto quente do prédio antigo e acambetado. As escadas rangiam quando descia mais rápido. Ao sair para a rua, esta também era vazia, carente dos trabalhadores e demais pessoas que entulhavam as avenidas principais em uma pressa exagerada.
Ela olhou na direção do restaurante de kimchi, fechado àquela hora, lembrando-se de quando parou ali na noite passada para perguntar a porta específica do garoto, e de como o sorriso e a voz simpática da velha senhora soaram felizes de início, quando pensou que compraria alguma coisa, mas foram mais felizes ainda quando dissera o nome de .
“Pelo visto, não vou precisar mandar o jantar hoje”, disse ela, com um sorriso imenso. Bom, se for pensar por esse lado…
riu do pensamento enquanto caminhava para o carro estacionado do outro lado, e apenas sorriu de júbilo quando se lembrou da voz dele em seu rosto quando soprou “gostei muito da surpresa”. Ela não esperava que ele a mandasse embora depois de aparecer do nada, mas genuinamente também não esperava que fosse se entregar assim como ela.
A policial também não esperava o que estava prestes a acontecer.
Pronta para colocar a chave na porta do Ford, ela girou o pescoço para trás, a fim de dar uma última olhada para a porta lateral do prédio, de onde tinha acabado de sair, e, de quebra, olhar o restaurante, como se estivesse com medo do dia atarefado de trabalho lhe tirasse a sensação e as lembranças prazerosas da madrugada. No entanto, tomando tal atitude, ela viu outra coisa. Algo que não estava no roteiro esperado, algo que a deixou paralisada por um instante.
No fim da rua, na outra extremidade contrária a sua, alguém caminhava arrogantemente pela calçada. A fumaça do cigarro se misturava com a neblina da manhã — era cedo demais! —, mas também embaçava os óculos aviador e fazia certo reflexo na jaqueta vermelha brilhante.
Aquele era Chae . E vinha andando em sua direção.
Em um estalo, se deslocou até o outro lado do carro, estacionado ao lado de um poste, fincado na frente de uma casa alta e delimitada por outra casa ao lado, separadas por uma abertura estreita que servia como depósito de sacos de lixo. Não era um bom lugar, mas um interruptor de curiosidade e adrenalina tinha sido ligado dentro de . Prendendo a respiração, ela se enfiou no meio das duas casas, puxando o telefone enquanto mantinha os olhos cravados em soslaio para a entrada da rua.
Ela não esperou muito até os passos ficarem mais altos, demonstrando aproximação, e também não esperou muito até vê-lo chegar ao lado do carro e… Curvar na direção do restaurante.
E, em seguida, abrir a mesma porta que ela havia saído há menos de dez minutos e entrar por ela, fazendo ranger as mesmas escadas.
Um alerta vertiginoso tomou conta de . Uma impressão, ou sua chamada intuição, gritava como um estádio de futebol. Não era nada fantasioso quando se sentia por si só. Com a respiração entrecortada, ela discou os números com pressa, ainda com os olhos focados na porta, sem desviá-los.
— O expediente começa daqui há 1 hora ainda, — uma voz sonolenta atendeu, igualmente aborrecida.
— Eu vi ele, Dawon — declarou, com a voz dura e ligeiramente sussurrada.
— Viu quem, porra?
. Ele tá entrando em um restaurante em Jongno-gu, pousou aqui do nada, e eu não…
O resto da frase se perdeu diante do ruído alto de pneus deslizantes misturado com o motor tenebroso de um Jeep Wrangler, invadindo a pequena rua estreita com violência, estacionando tão perto do Ford que o esmagaria se a rua fosse centímetros mais apertada.
No entanto, a mente de foi facilmente triturada quando viu o rosto de quem dirigia aquele carro monstruoso.
saltou da cabine e saiu caminhando a passos largos na direção da entrada do restaurante, exatamente como fizera anteriormente. Com a pose tranquila e descontraída, características de sua rotina, era como se fosse proprietário do lugar, mesmo que uma folha de papel dissesse o contrário. Nada em sua postura indicava que estava em uma área estranha, perdido. Na verdade, nada o dizia que algum lugar era estranho para .
E talvez seja por isso que tenha ficado ainda mais chocada em vê-lo.
! Você tá de brincadeira comigo, não é? — Dawon aumentou o tom de voz do outro lado da linha, e ouviu-o como se estivesse ao seu lado — São 6 da manhã, caralho. E daí se tá entrando em um restaurante? Ninguém pode mais tomar café da manhã…
— Manda reforços agora — soprou, direta, a voz gelada de cautela enquanto acompanhava cada mísero passo de até a porta de entrada.
— O que?!
— Escuta, caramba! — Ela trincou os dentes, encarando a porta aberta como se pudesse desintegrá-la, ou como se, magicamente, a estrutura de ferro sacasse algemas e rendesse aquele homem que nunca era pego — Acabei de ver entrando no mesmo restaurante. Sabe a porra do ladrão de bancos em um ônibus escolar? Dá pra entender?
ouviu Dawon dizer algum nome de Buda antes de sussurrar:
— Não brinca…
— Manda reforços agora, Dawon! Todas as viaturas que você conseguir! Vamos pegar um flagrante dos grandes.
— E-espera, mas e você…
— Agora, Dawon!
E sem mais espera, a ligação foi encerrada.
Como uma policial, se sentia energizada e poderosa. O coração martelava no peito em ansiedade, a adrenalina e curiosidade inatas sendo capazes de matá-la se ficasse parada. Na questão de bom senso, sabia que devia ficar. Devia esperar seu parceiro, esperar os reforços, fazer as coisas com segurança e inteligência, como manda o figurino, mas oportunidades únicas eram chamadas de únicas por um motivo.
Assim, ela correu imediatamente até o carro, ainda com os olhos grudados na porta e no Jeep, em conduta de alerta total a qualquer mísera movimentação estranha. Rapidamente, a pistola Glock já estava em mãos, engatilhada e preparada, junto com as algemas de reserva que ficavam muito bem guardadas no porta-luvas.
se voltou para o prédio, abrindo a porta devagar. Um frio inesperado tomou sua espinha, algo que a fez se lembrar do cara sensacional que tinha deixado na cama há pouco tempo, e em como ele reagiria se ela apertasse um gatilho do outro lado de sua porta. Ela esperava não ter que fazer isso. Por Deus, que não precisasse fazer uma coisa dessas. Mesmo que odiasse o aspecto de rei do castelo de e a arrogância estúpida de , torcia para que conseguisse segurá-los em qualquer parte do lugar até que Dawon chegasse.
No entanto, gostava de acreditar que estava pronta para qualquer coisa.
Com ouvidos e olhos compenetrados, ela refez o caminho para o andar de cima, manejando a arma ao lado do corpo, prendendo a respiração pela necessidade do silêncio. se sentia mais lenta, por mais concentrada que estivesse, e a possibilidade de encontrar uma velha senhora ou, até mesmo , era grande parte disso. Não, que ela não o encontrasse, por tudo que era mais sagrado, que ele não se metesse em uma coisa dessas. Era óbvio que e andavam armados, e que tentariam recorrer a esse tipo de defesa imediata se a encontrassem, e se aparecesse, seria facilmente um efeito colateral desse confronto.
Por uma série de razões, não gostava nada da ideia de vê-lo se machucando. Ainda mais por causa dela.
Contudo, ao pensar no nome dele, foi quando ouviu o primeiro burburinho. Ele vinha há alguns passos à frente, à esquerda, na fila de portas que indicava o apartamento que tinha entrado ontem à noite.
continuou andando, sentindo as pernas um pouco moles à medida que se aproximava. Existiam 3 portas. E o barulho, ficando cada vez mais alto, mais perto, sendo traduzido em risadas e conversas animadas, vinha da última. A última, que tinha o tapete de boas-vindas vermelho escuro, que a tinha feito parar e olhar na noite de antes, perguntando-se se estava tomando a decisão certa, e que também tinha parado e encarado um pouco antes de sair por aquela mesma residência há menos de uma hora.
O tapete de . O apartamento de .
Agora sua mente se tornava um grande vácuo. A boca ficou seca, a garganta se transformou em um nó, as palavras se perderam, mas seus pés continuaram. Silenciosos e prudentes. Os olhos se abriam vagarosamente à medida que viam a porta, sabiam da porta e reconheciam as vozes.
Ele pode ter recebido amigos para o café. Ele parece ter muitos amigos. Muitos não, mas alguns sim. Alguns amigos…
Com o coração frenético no peito, agora de preocupação, parou na frente da entrada e engoliu em seco, inclinando os ouvidos para acompanhar as falas.

🔪💔


O cheiro do chá era maravilhoso.
não gostava tanto de chá. Vivia dizendo que o que colocavam naquelas coisas eram relva e árvores, e folhas de mais alguns lugares, e que tudo isso, culinariamente falando, não poderia render algo bom no paladar.
Mas gostava. Apreciava um bom chá mais do que café, mesmo que não admitisse, e recebia uma embalagem da cafeteria mais próxima de toda vez que estava prestes a escutar algo que precisaria de sua atenção plena.
O chá daquela vez não foi tão bem recebido como das outras.
— 6 da manhã já é demais, vocês não acham? — resmungou, exibindo o rosto sonolento e igualmente desorientado.
Saiu da porta ao mesmo tempo que a abriu, dando uma última vasculhada pelo entorno do lugar, certificando-se de que realmente não estava mais ali. O desgosto por esse fato se transformou em alívio assim que viu os dois homens parados na entrada.
— Eu também achei, mas o seu parceiro não quis esperar — foi o primeiro a entrar, andando direto para a cozinha (já que não era muito difícil de ser vista), e abriu a geladeira em busca de água, muita água.
— Um: faz tempo que eu não venho aqui — disse , depositando o pacote em cima da pequena mesa: um café e um chá — Dois: precisamos discutir nossa posição para o grande dia.
— Não podia me esperar voltar pra sede? — continuou com o mau-humor. Tal coisa não passou despercebido por . A situação costumava ser sempre contrária: quando ia àquele apartamento, era para encontrar um feliz e relaxado, mais do que o normal, porque estar ali era um momento em que o garoto poderia viver bem e feliz. Era privativo, um espaço só dele. E era estranho estar estressado com isso, mesmo que ele e tenham interrompido suas meditações.
— Ouviu a parte que eu disse que faz tempo que eu não venho aqui? — debochou, sentando-se na única cadeira ao seu lado — O que aconteceu? Você está agitado.
— Nada — respondeu imediatamente.
Na outra extremidade, protegia os olhos. A luz pálida de fora entrava com tudo onde quer que houvesse janelas. O rapaz olhou para a porta semi aberta do quarto não muito longe de sua posição. O lençol estava um alvoroço. A claridade entrava forte igualmente ali. A colcha amarronzada estava jogada para o lado, juntamente com o tapete ao pé da cama.
percebeu e fechou a porta automaticamente, franzindo os lábios de irritação.
— Parece que ele teve companhia — abriu um sorrisinho diante da expressão fechada de , e recostou-se na bancada. Ele parecia em casa, exibindo toda a folga do mundo com seus ombros relaxados.
— Olha só, meu garoto! Já não era sem tempo! — se levantou em um pulo, estalando pequenos tapinhas nos ombros nus de — Já estava começando a achar que você não gostava de seres humanos. Aqui, o chá veio na hora certa. É daquelas coisas com leite que você gosta.
revirou os olhos, sem dizer uma palavra. Era muito cedo para que os outros dois refletissem sobre como isso também era estranho: não costumava ser tagarela, mas também não costumava ser tão quieto. Talvez fosse o horário, e a casa também, pensaria .
— Achei que ele se masturbava com uma mão robótica — zombou , bebendo alguns goles de água.
— Idiotas — murmurou, agarrando o chá das mãos de , andando até a bancada perto da janela. Seus cabelos combinavam com o marrom desbotado da bebida. Seus olhos estavam mais distantes do que costumavam ser.
Por que ela foi embora? Por que tão cedo? Não que tenha sido uma escolha ruim agora, afinal…
Algo distinto e fantasioso dentro de sentia-se extremamente frustrado por não ter acordado com o rosto de como a primeira visão do dia.
— É o seguinte — continuou ele, virando-se para a dupla — O plano tá definido. Temos que ver as armas em prontidão que providenciou, os equipamentos de e toda a bugiganga necessária para nos colocar lá dentro. O tempo vai ser bem contabilizado: 10 minutos para entrar e 7 pra sair. É simples se seguirmos passo a passo.
— Você já verificou com ? — perguntou, sentando-se novamente, erguendo os pés para a mesa.
— Vou ligar pra ele hoje.
— Eu tenho arrepios só de chegar perto daqueles dois de novo. Não sei como você fica tão tranquilo — disse , com uma careta — Sabe, ele tentou te jogar de um parapeito.
— Já tentaram me matar antes, paspalho. A única coisa que muda é o método, mas morrer é a mesma coisa.
— Tá bem. Já preparei o carro — uma chave sobrevoou o tampo da mesa até ir parar nas mãos de — Tanque cheio, 200 cavalos a mais, turbo nos aerofólios e espaços fantasma no porta malas. Vamos transformar a pista de Seul na pista de Mônaco.
O sorriso de foi devasso. também se autorizou a retribuí-lo. Pensar em uma beleza daquelas implantava a prazerosa adrenalina que fazia parte de seu ser. A sensação aprazível da velocidade parecia fazer mais sentido a cada vez que se lembrava.
— Mandou bem. E você? — ele virou-se para — Conversou com seus minions sobre o acidente proposital?
— Sim, eles vão causar o acidente no cruzamento e congestionar todo o trânsito. Vai dar pra passar antes que a polícia ou o corpo de bombeiros percebam que é cilada.
— Bom. deve estar orgulhoso do pupilo.
ergueu uma sobrancelha, internamente satisfeito.
— E então? Qual a hora exata? — perguntou , dando de ombros.
se preparou para mais uma resposta curta e objetiva. No entanto, não teve sequer a chance de abrir a boca.
A porta se abriu repentinamente. Uma pessoa entrou com o cano de uma Glock em prontidão. As palavras vieram na forma de um grito seco:
, no chão! Você está preso.
A mulher tinha os olhos focados diretamente no rosto do homem sentado à mesa. ficou boquiaberto, tomado de puro susto. sentiu a garganta ser atada com uma foice.
O silêncio percorreu os ossos de todos os presentes na forma de um vento gelado.
? — se viu falando em um sussurro, um que soou alto o suficiente para atravessar o cômodo inteiro.
continuou olhando para , que a observava de volta sem reação, sem nada na expressão. As mãos da mulher tremiam um pouco, as mesmas mãos que havia tomado, as mesmas que — agora pensava — tinham sido tão tolas e estúpidas ao ponto de…
— Que porra é essa, quem é você? — levantou a voz junto com seu corpo, colocando-se de pé em frente a garota, que recuou a um passo pelo sobressalto. O homem observou o emblema preso na camiseta dela, abrindo novamente o sorriso maléfico — Uma policial? Acho que você está um pouco perdida, hein, meu amor — uma gargalhada brutal escapou de sua garganta. Ele prontamente deu um passo à frente, sem se intimidar em nenhum momento pelo cano da arma apontada para seu peito — Melhor largar essa coisa antes que se machuque com ela.
— Pra trás! — trincou os dentes, falando no tom mais firme que conseguiu. diminuiu vagarosamente o sorriso. Ela se apressou em olhar para — Quem é você?

— Ele é , este é , então… você só pode ser o — concluiu, baixando a voz gradativamente. Algo em seus olhos gritava para que ele negasse. Para que ela tivesse escutado errado, que ele poderia até conhecer criminosos, mas que ele não fosse um deles. Por favor, não seja um deles.
Mas o silêncio de sempre foi muito auto explicativo.
— Você é o , é isso mesmo? — desta vez, ela sussurrou. As mãos tremeram de novo por um instante.
O outro não respondeu de imediato. O nó na faringe tinha voltado com toda a força, e grande parte do motivo era e aqueles olhos tristes, aquela fisionomia de medo e decepção, e todas essas coisas doíam abruptamente dentro de .
Com alguma surpresa, soltou uma risada sarcástica. Seus antebraços estavam erguidos até a altura do peito em sinal de rendição, agora aparentando estar bem menos amedrontado.
— Claro que ele é o , você não conhecia o ? Que nome achou que o melhor hacker do país teria? — disse, constatando o óbvio com zombaria — Inclusive, por que nunca me disse seu nome verdadeiro, ? parece ser um nome legal. Me lembra um primo…
, abaixa essa arma — quando finalmente falou, seus passos seguiram automaticamente adiante, na direção da garota. Seu rosto era duro como pedra. Em contrapartida, o rosto de exibia linhas de tristeza, raiva, frustração e agonia que eram muito difíceis de se ver normalmente.
— Cala a sua boca! — o interrompeu, fazendo-o parar no meio do caminho — Eu confiei em você! Confiei como uma idiota e você mentiu pra mim, traiu a minha confiança! Você é um canalha… — a voz embargou pateticamente no final. Todos os presentes notaram a pequena poça se formando abaixo dos olhos, o qual piscou várias vezes para se recompor. Nada seria mais humilhante do que chorar nesse momento. Era a última coisa que podia fazer, a última que deixaria que vissem.
Mas não precisou contemplar nada disso para entender tudo.
— Mas puta que pariu, ! — o grito de constatação veio em um estrondo. ainda tinha a pistola apontada para si, mas nem por isso deixou de virar-se para o parceiro, com os olhos esbugalhados — É sério essa porra? De todas as gostosas do mundo, foi pegar justo uma policial?
— Espera, ela era sua companhia? — exclamou, olhando agora da mulher para a porta fechada do quarto, e em como, categoricamente, seu cabelo parecia um pouco bagunçado e as roupas não eram muito formais — É por isso que você sabia do GPS no meu carro?! Você colocou um GPS no meu carro?
se manteve imóvel, absolutamente chocada. não esboçou nenhum reflexo pelas reações dos amigos. Seus olhos só sabiam ver , em focar no rosto dela, em pedir para que ela abaixasse aquela coisa e o ouvisse, mesmo que, tecnicamente, não tivesse nada a dizer. Ela estava certa, é claro, ele era um criminoso. Mas a noite de ontem, e tudo que veio antes…
, agora não é hora pra isso, mas posso te explicar depois… — ele tentou dizer, andando mais um pouco.
— Não se aproxima de mim — ela o parou novamente, agora virando o cano para ele. parou imediatamente, franzindo os lábios de indignação pela situação no geral. Um desespero vazio tomou seu peito. Apesar de tê-la conhecido bem pouco tempo atrás, sabia que ela não hesitaria em atirar. Se não fosse nele, seria em qualquer um dos outros dois na sala. E sabia, mais do que ninguém, que eles, em especial , também não teriam qualquer escrúpulo para se livrarem dela.
— Você perdeu o juízo?! — pousou ao lado do parceiro, agarrando-o pelo ombro com força e aborrecimento, tirando sua atenção hipnotizada da policial — Logo você, porra?! Que ideia foi essa de se meter com a bastardinha da polícia? Tá querendo foder a gente?
— Ela estava rodeando esse idiota na frente do galpão por dois dias seguidos, o que queria que eu fizesse? Eu tinha que afastá-la, eu tinha… — não sabia mais o que tinha. Tinha que ter feito tantas coisas, tomado tantas outras decisões, mas no fim, não fez. Com raiva, ele se soltou do aperto de , bufando pelo nariz, retribuindo o olhar agressivo do parceiro, desafiando-o a tentar fazer o que estava pretendendo fazer. Qualquer traço de dor que o semblante de demonstrava tinha se escondido. Agora, ele era e puxaria qualquer arma a seu alcance se resolvesse puxar a dele.
Em vez disso, o homem resmungou alguns palavrões e andou até a porta, pensando debilmente que não valia a pena atirar em seu parceiro quando ouviu o gatilho ativado da Glock em suas costas, fazendo-o parar repentinamente.
— Estou avisando, falou em suas costas, determinada a agir. O ladrão esperou alguns segundos para se virar novamente, transportando o alvo das costas para o peito.
— Você não tem um mandado docinho — anunciou em um tom escarnecidamente doce — Não é assim que vocês agem? Então pode guardar esse brinquedinho antes que eu…
Um outro barulho externo encheu o pequeno apartamento em cima do restaurante. Uma junção de bramidos, vindo diretamente do lado de fora, bem característico para os ouvidos de três malfeitores: a sequência de sirenes que indicavam perigo.
— Pessoal, se isso é o que eu tô pensando… — falou primeiro, correndo para observar da janela. As luzes vermelhas e azuis se alastravam pela neblina da manhã. A cabeça dele se virou instintivamente para dentro, com o semblante abismado e pálido.
Ele ainda odiava a ideia de ir parar em um camburão, apesar de todas as sujeiras a que tinha se submetido.
Do outro lado, enrijeceu a postura completamente. Com um olhar de ódio, ele encarou a mulher alguns centímetros mais baixa, que o vigiava em cada mísero movimento, mesmo que parecesse que ia desabar.
— Filha da puta — ele avançou em sua direção ao mesmo tempo que , e um confronto muito sério poderia ter acontecido se não reconsiderasse no último segundo, detendo-se apenas em puxar a arma das mãos de , agarrando em um de seus ombros para aproximá-la de seu rosto — Depois a gente conversa, bonitinha.
E então, com um olhar autoritário para os demais, guardou a pistola no bolso e saiu porta afora. , ainda parada, com o espanto percorrendo cada célula de seu corpo com a possibilidade do que poderia ter feito, não conseguiu mover um músculo ao ver também desaparecendo diante de seus olhos.
O que restou foi , movendo os braços rapidamente em busca de uma camiseta, encarando a garota com dor pela partida abrupta, com dor por todas as circunstâncias.
… Desculpe pelo … Por favor…
— Cala a boca — ela respondeu com os dentes trincados. Com o peito mais apertado do que jamais ficou. Com ódio por sua própria pessoa ao se ver sem arma, sem testemunhas, sem réus e sem sua própria verdade — Da próxima vez que eu te encontrar, você não vai conseguir escapar.
Finalmente ela o olhou nos olhos. E disse com tamanha firmeza que fez engolir em seco, absorvendo cada palavra com verdade.
Anda logo, !, ele ouviu chamar e, com um último olhar de desculpas, fugiu para bem longe dali.


Arquivo 3

Uma vez, disse: pense como Ned Kelly.
Ele era um babaca, ou, pelo menos, era como a sociedade da Austrália colonial o via. Um ladrão, criminoso nato que era protagonista das piores narrativas em jornais, revistas e o boca a boca das ruas. O ídolo do famoso ladrão do ônibus escolar, que chegava sob os holofotes e sumia mais rápido do que um raio.
Por muito tempo, procurou o significado dessa frase tão vaga. Pense como Ned Kelly. proferiu o disparate de modo tão factual que ele se sentiu, várias vezes, burro o bastante por não entender alguma coisa vinda daquele cérebro néscio e impulsivo.
Mas talvez, hoje, o garoto tenha entendido alguma parte desse enigma de merda. E, no fim, ele não significava porcaria nenhuma.
Ned Kelly era o inimigo público número 1 porque desafiava as autoridades. Ladrão de primeira, se viu tão encurralado pela bola de neve de atitudes precipitadas que começou a precisar matar pessoas. Um ladrão e assassino. Só isso. Sem um propósito maior, sem um legado significativo para ser levado em conta neste século, nada disso. Existia apenas a trajetória de um patife mistificado, e o território desconhecido que era a cabeça de só poderia estar devendo alguma coisa no quesito de moralidade pública se achava que isso ensinava alguma coisa.
Pense como Ned Kelly. Fala sério. Se pensassem como um cara daqueles, seriam igualmente perseguidos e executados, mesmo que estivessem 200 anos à frente.
parecia estar remoendo a mesma coisa quando escancarou a porta do bunker, avançando para dentro a passos firmes e bufando pelo nariz como um touro raivoso.
— Merda, merda… — os passos trotavam com força no piso de cimento. Uma agitação fora do normal tomava conta de si. Algo nunca antes experimentado: a iminência concreta de ser pego — Merda de polícia…
— O que a gente faz agora? — arfou, ainda com os olhos arregalados do choque de toda a correria até ali. Os próximos passos depois do apartamento em Jongno-gu eram um completo borrão. Gritos, pés rápidos, dentes trincando, colunas abaixadas e o som de pneus cantando enquanto as sirenes surgiam de todas as direções. Muitas sirenes.
Ela tinha convocado o departamento policial inteiro sem nem piscar.
Então disse:
— Temos que sair daqui.
A voz dele saiu de forma automática, robótica. Não parecia viva, ou muito presente. Seu rosto era carrancudo e os olhos se mexiam junto com os pés para o próximo cômodo, concentrando-se apenas em agir e nada mais além disso.
Com um rápido olhar para a janela, resmungou:
— Você jura, gênio? Não descobriu uma forma de afastar sua namorada do nosso covil? — o veneno escorreu de cada palavra dita. não se virou para o parceiro, ainda que seus músculos tenham se retesado com a mera menção de . O sangue quente não o permitia se concentrar em nada que não fosse as urgência do aqui e agora — Ainda não acredito nas preferências bizarras do seu pau, caralho, fala sério, você…
— Estou tentando salvar a nossa vida, nossa liberdade e o nosso plano, imbecil — bateu os dedos em um dos teclados, digitando tão rápido como se fosse a própria máquina e puxou uma das grandes bolsas debaixo de um fundo falso da mesa, atirando algo para — Você vai ligar pro e avisá-lo que vamos precisar nos adiantar enquanto vou juntar o essencial de emergência até que o sistema de auto destruição entre em ação.
— Nós temos um sistema de auto destruição? — segurou firme no telefone flip desbloqueado. revirou os olhos, movendo os braços com pressa pela soleira do piso enquanto a contagem em vermelho começava no computador — Caralho, que merda é essa?
É claro que temos um sistema de auto destruição, idiota. Não vou deixar nenhum rastro para aqueles imbecis — se levantou em um jato, correndo até um armário vazio e planejado ao lado da pequena pia, deslizando um braço por baixo de sua estrutura até puxar uma chave pequena e jogá-la para — Você vai correr até os fundos e pegar a caminhonete debaixo da lona verde no meio da propriedade, perto dos pântanos. Temos 10 minutos ou menos até eles chegarem e esse lugar explodir, então não tenha pena do acelerador. Se vamos pensar como Ned Kelly, vamos também correr como ele.
O rosto de era duro e pálido. Era como se falasse, mas as palavras chegassem pela metade. O garoto não conseguia assimilar tudo, seus pés ainda estavam presos na saída do prédio lá atrás.
Quando finalmente conseguiu falar, quase um minuto depois, tudo que conseguiu dizer foi:
— Quem é Ned Kelly?
revirou os olhos. cruzou os braços, aparentando estar com ainda mais raiva do que há alguns minutos atrás.
— Que tipo de pergunta é essa?
— Tinha esquecido que ninguém sabe quem é Ned Kelly — o garoto desistiu da abordagem, inclinando o queixo para a porta com pressa — Vai rápido. Agora temos exatamente 8 minutos.
não demorou muito para obedecer. De alguma forma, ele já estava acostumado com situações amplamente emergenciais quando a polícia se aproximava demais dos segredos da Odium e saía gritando ordens para que as aparências fossem mantidas e, acima de tudo, a calma.
Mesmo assim, a polícia nunca tinha chegado tão perto daquele jeito, a ponto de ter uma garota entrando subitamente pela porta da frente com uma Glock.
— Sério isso? — Foi a vez de murmurar enquanto observava o parceiro andar rapidamente de um lado a outro enquanto puxava e fechava coisas, totalmente concentrado — Você manda o paspalho fazer o trabalho mais fácil e eu que preciso falar com aquela aberração? — perguntou ele, e jamais admitiria como o simples timbre da voz de o causava um misto de coisas desconfortáveis: medo, repulsa, raiva.
reparou no amigo, tão inocentemente sobressaltado pelo acúmulo de merdas que vinham acontecendo naquela manhã como se não entendesse onde tinham errado. A sequência de revelações deram-no 5 anos de cansaço. Mas não era hora para que brigasse por coisas que os dois sabiam que precisavam: escapar o quanto antes. E também não era hora de se explicar e pedir desculpas por ter escondido tanto por um tempo considerável — porque sim, na hora certa, ele pediria. não se importava com os rótulos e a fama que os becos o davam, mas nunca tinha intenção de ser arrogante com quando a situação se tornava séria.
— Você consegue, — o garoto falou em tom baixo, paciente. Trouxe toda uma melancolia anormal nos olhos, mas a mesma aura de carinho de quando queria motivar o amigo — Lembre-se: nós trabalhamos junto com eles, mas não estamos juntos. Conseguimos lidar com esses caras. Vai dar tudo certo — ele deu de ombros levemente, voltando a correr os olhos pelo lugar em busca de mais um fundo falso ou coisas importantes que estavam escondidas — Imite o seu ídolo fora-da-lei australiano e vamos despistar aqueles manés de uma vez por todas. Depressa.
Foi a última coisa que disse antes de agarrar outra mochila e sumir por uma porta, emitindo barulhos muito parecidos com o arrastar de móveis sem qualquer cuidado e com a pressa que pediu ao aliado.
ainda ficou parado por quase um minuto inteiro até acordar com a passagem do tempo barulhenta que vinha do computador. 6 minutos. 6 minutos e tudo explodiria.
Quando pegou o celular novamente, a raiva era borbulhante e tenebrosa nas veias. Os dedos correram pelo teclado, sem pensar muito no quê e com quem falaria no tempo cronometrado de 60 segundos. Não queria pensar em como ficaria. Muito menos seu colega psicótico, . Não queria nem imaginar as consequências de se fugir de uma dupla daquelas, caso tudo desse errado. Eles certamente fariam coisas terríveis com seu corpo. Até mesmo aquela policial pediria sua cabeça para usar de peso de papel por um tempo.
atendeu no terceiro toque:
— Posso ajudar?
não respondeu imediatamente. Imagine o que ele faria se nós fugíssemos agora, ele e aquele maníaco! Os dois nos achariam em dois tempos, mesmo que seja bom em se esconder…
— Tá ocupado? — soltou, olhando ao redor para conferir a correria de .
— Eu sou ocupado. Mas se o atendi nesse número, quer dizer que tem 45 segundos para dizer o que quer antes que eu desligue.
— Tivemos imprevistos — não esperou. E o meio segundo de silêncio de demonstrou que o tempo estava correndo para que recebesse mais explicações — A execução do plano vai ter que ser adiantada.
Uma respiração pesada esquentou as orelhas de . Logo depois, a voz grave de respondeu:
— Quando?
— Amanhã seria uma boa.
Agora ele ouviu claramente um grunhido, algo muito feroz nascido da garganta do assassino, que causou em a sensação que evitava ao evitar o próprio cara: arrepios; medo.
— Vocês atraíram a polícia, não é? — a voz tinha subido várias oitavas a mais. olhou para trás em busca de automaticamente, sentindo-se ridículo logo depois — Responde, seu merda! Atraíram a polícia, não foi?
— É, é, foi mais ou menos isso, cacete! — ele trincou os dentes com o desgosto. A raiva por toda a situação de voltou com toda a força. O assunto ainda era tão novo que era difícil quantificar os estragos daquela porcaria, mas eles transbordariam mais cedo ou mais tarde — Como eu disse: aconteceram imprevistos. E se quisermos ter uma chance de ressuscitar esse plano, precisamos adiantá-lo o quanto antes. Fazer e sumir, se é que você me entende.
— Seus babacas do caralho… — começou e se calou, e quase podia vê-lo desafrouxar a gravata e tentar manter a pose elegante da que tinha se acostumado para o que quer que fizesse no tempo livre — Eu devia imaginar que vocês não seriam capazes de manter um cronograma intacto. Tem ideia de como é difícil resolver as coisas com mudanças tão bruscas?
— Eu imagino que sim, mademoiselle, mas agora temos problemas bem mais urgentes — ele olhou novamente para o relógio na tela. 5 minutos — Um: precisamos de um ponto de encontro. E precisamos agora. Estamos destruindo provas.
— Acha que as coisas funcionam assim?
— As coisas vão ter que funcionar assim hoje, camarada. Dá pra entender?! — trincou os dentes levianamente. Não importava o quanto aquele homem o dava vontade de fugir para as montanhas, ele estava desesperado e sem paciência — Arruma um quarto de hotel, um buraco no parque ou uma casa na árvore, mas me diga um lugar pra nos encontrarmos agora ou podemos dar adeus aos nossos diamantes. Fui claro?
Foi um ponto final. não era um cara de insistir. Ouviu um suspiro alto que demorou tempo demais do outro lado da linha até o comparsa responder:
— Tenho um contêiner alugado perto da costa. 2046, ele transporta armas dentro de sacos de arroz, um negócio extracurricular. Estarei lá em 15 minutos.
— Perf… — ele começou a dizer, mas a linha já tinha desligado. E isso pareceu tê-lo lembrado do que tanto odiava em e seu parceiro.
No momento oportuno, surgiu com os pés rápidos atrás do parceiro, puxando seus ombros em sua direção e jogando-o uma mochila grande e pesada.
— Vamos nessa, grandão. Hora da grande aventura.

🔪💔


Havia algo em chamadas não atendidas que sempre perturbam , porque em um dado momento de sua vida elas se tornaram restritas apenas à seu fiel parceiro ; geralmente ele não tinha a quem ligar incessantemente até que fosse atendido, sequer havia uma pessoa dona de sua ansiedade. Sua preocupação com o amigo era por todo o contexto do trabalho que executavam em conjunto, quando ele não retornava no tempo estipulado e passava algum tempo sem dar qualquer sinal de vida útil. Mas isso tudo foi antes de conhecer . E tinha a impressão de ser muito antes de tudo ser guiado para a situação da qual estava enfrentando no momento.
Uma situação em que tanto quanto se viam de mãos atadas.
Não tinha como ele controlar o que ela iria fazer, tampouco poderia assumir que em uma das diversas partículas que compunham o seu ser, havia a preocupação muito mais do que iminente sobre assumir que ao se tratar dela talvez fosse possível que não existisse qualquer contrarreação de seu corpo, sua mente e, principalmente, seu coração. Por isso, sem saber exatamente como prosseguir e sem explanar em palavras, pela falta de coragem camuflada, agiu sem pensar tentando ligar para enquanto dirigia em alta velocidade.
Sua sorte era que pilotava uma Kawasaki Ninja, porque, em suas palavras, “ele não estava disposto a estar por muito tempo no mesmo espaço que por aquele momento”. Tinham dado um tempo na relação — e essas foram as palavras de , no caso, tentando não ficar no meio de um conflito desconfortável entre os dois por ora. De qualquer forma, sortudo foi por ter somente o mais novo ao seu lado, quieto, mudo como jamais poderia ter estado antes em sua vida, e não lhe disse ou diria nada sobre suas tentativas de falar com .
Ou talvez ele não fosse tão sortudo assim, a caixa postal dela poderia lhe afirmar isso.
Desistiu de tentar, jogando o celular para o próprio colo e fazendo com que soltasse a respiração que prendia há alguns quilômetros por tê-lo um tanto desfocado do trânsito, o que não seria nada seguro para ele — mas se fosse contestar isso, ele abriria um leque imenso e, bem provavelmente, impossível de refutar, visto que sua vida não beirava tanto à segurança assim. O velocímetro do carro apontava uma velocidade nem um pouco perto da indicada pelas placas de sinalizações. Ainda que , indo na frente, tenha reduzido sua velocidade, não o fez, passando pelo portal de entrada do galpão à costa cheio dos contêineres que havia mencionado com o carro quase desgovernado.
Sua parada, porém, foi nada sutil como todo o seu perfil desconhecido de criminoso. Os pneus só não cantaram por não ser um local pavimentado, mas o barulho do veículo derrapando sobre os pedregulhos foi alto para quem estivesse do lado de fora. Por um verdadeiro e amplo leque de sorte, não tinha ninguém por ali, pelo menos não à vista — e talvez não tivesse mesmo, considerando que era um domingo. E assim que localizou, totalmente distante da entrada, o container certo, freou bruscamente, puxando o freio de mão.
Sem delongas, abriu a porta do carro com muita rapidez, a ponto de quase se confundir na ordem de seus movimentos, e saiu às pressas, correndo para o pequeno muro de meio metro que delimitava a costa com o pequeno morro de caída para o mar. Ajoelhando no chão e se curvando para frente, ele botou para fora tudo o que seu estômago tinha e também não tinha.
, por sua vez, ficou no carro, tentando falar com , certamente. Porém, logo teve a sua porta aberta com brutalidade e o telefone arrancado de sua mão na mesma medida. arremessou o aparelho para longe tão rápido, que não teve tempo para pensar. Em seguida, as mãos do parceiro seguraram em sua gola, puxando-o do banco para fora.
— Você tem ideia da onde essa sua brincadeira vai enfiar a gente? — vociferou, prensando-o contra a lataria do carro. — Coloca na sua cabeça uma coisa: você vai ter que escolher entre dois lados. E, acredite, se sua escolha fugir do óbvio, eu não vou poder me culpar depois pela consequência, porque do contrário dessa sua recaída, eu consigo manter meu personagem. Principalmente pelo bem da minha cabeça.
O olhar de se estreitou para o outro e suas mãos foram firmes para se esquivar daquela posição, empurrando-o para ter distância. cambaleou em cima dos pedregulhos, mas não diminuiu nem um pouco seu olhar furioso.
— Sério, eu achei que você não ia se submeter a isso. — Ele disse, desacreditado. — Mesmo sabendo quem ela é e o que pode fazer com a gente, seu pau não pode dizer adeus?
— Não se trata disso.
— Então é sobre o que? Vai me dizer que se apaixonou? — riu debochado. — Pessoas como nós não se apaixonam. Nem e muito menos o podem ter qualquer paixão. Esse seria o maior crime.
Desta vez foi a risada de que foi ouvida.
Ele realmente acreditou, mesmo inconsciente, que não iria render mais aquele assunto. Não de forma tão agressiva.
— Eu não estou apaixonado por ela. — Sua voz saiu trepidada, mas ele continuou: — Não sou burro.
— Não é o que parece. Você veio o caminho todo tentando ligar pra ela, mal se deu conta do trânsito e a forma como colocou a gente em evidência. Podíamos ter sido pegos pela polícia já no meio do caminho pela sua direção nada inteligente.
suspirou, olhando para o céu.
— Você vai render isso até quando? Nosso foco deveria estar no plano.
— Que se foda a porra do plano, caralho! — ergueu os braços, quase gritando. Deu um passo a frente, apontando para o amigo. — Eu tô preocupa-
— Em não ser pego pela polícia, eu sei, tá legal? — o cortou. — Eu sei o quanto isso é preocupante e importante para você, e embora você não acredite, eu jamais deixaria que qualquer coisa acontecesse, não só comigo, mas principalmente com você.
deu um passo para trás, recolhendo seu dedo e levando as mãos à cintura.
— Ia dizer que estou preocupado com a gente. Eu podia muito bem ser um filho da puta com você e sumir do mapa. Você sabe que eu poderia — fez uma pausa. — Mas isso aqui — gesticulou, mencionando os dois — é muito mais do que qualquer putaria milionária, . Não somos apenas parceiros literais de crime. E é uma merda pensar que por um deslize seu, pensando com a cabeça de baixo, me levaria a cogitar te apagar e toda essa baboseira que não preciso citar.
— Você fala do meu pau, mas esquece que a sua cabeça funcional é a de baixo.
Por mais que pudesse ser um assunto para render, apenas ficou quieto, encarando o olhar fixo do parceiro. Mordeu as bochechas internamente, mas, no fim, nada que passasse com raiva em sua cabeça naquele momento seria mais intenso e maior que tudo o que já tinham vivido. Provavelmente ele teria uma pulga atrás da orelha com , porém, ainda assim, ele não poderia culpar a pessoa que jamais tinha lhe deixado na mão.
Era uma merda de situação cruzada em um momento delicado demais.
— Não me olha assim — disse tentando soar sério, mas os lábios de tremeram, com as pontas se puxando em um sorriso singelo. — Que merda hein, para!
— Vem cá — o puxou pelos ombros em um abraço. — Eu te deixo ganhar de mim na próxima corrid-
— Vai a merda!
não o deixou finalizar, seu joelho subiu um tanto e com força o suficiente para acertar o meio das pernas de , fazendo-o se contorcer para frente.
E foi nesse exato momento que o carro preto, blindado e todo escuro, chegou.
e , obviamente.
— Ai, princesa. Depois a gente compra um teste de farmácia pra você, agora vamos entrar em reunião — gritou para , se afastando de e indo pegar o capacete que tinha deixado cair no chão quando parou a moto de qualquer jeito e desceu furioso, pronto para descontar em tudo o que seu cérebro tinha digerido durante aquela viagem para a costa.
— Vai se foder! — respondeu de longe, levantando-se e caminhando para perto deles. Estava pálido demais.
A dupla assassina já estava fora do carro em que haviam chegado e se recompunha, um tanto ansioso ainda por falar com . Nunca foi tão feliz em ser o tipo de pessoa com memória excepcional para se lembrar do número dela; seria importante quando conseguisse um novo aparelho de celular.
Como sempre tão bem vestidos e com aquele ar superior, e caminharam a passos despretensiosos para a direção do container. Embora sua sociopatia falasse mais alto em seus traços de personalidade, nos seus trejeitos, ainda era o mais “simpático”, enquanto não fazia questão nem mesmo de tirar o óculos preto que usava para cobrir seus olhos — o sol estava muito escondido por entre as nuvens, não era necessário qualquer proteção contra seus raios; mas ele não fazia questão.
Seus passos, inclusive, foram mais firmes e diretos para o container.
— Bom dia, senhores. Que problemão, hein… — fez uma careta, curvando os lábios para baixo, enquanto enfiava as mãos dentro dos bolsos de sua calça muito bem passada, olhando de um a um.
não deu sequer um aceno, logo ele estava diante da porta, abrindo um cadeado de senha e puxando-a para cima com uma mão só.
Observando isso, fechou uma mão em seu pescoço, lembrando-se do primeiro encontro com eles, quando quase foi jogado da cobertura e ele teve sua cabeça como premiação. Sentiu o arrepio percorrer por sua espinha e o estômago se embrulhar novamente.
— O que estão esperando? A gente tem todo esse tempo mesmo? — se virou para eles, perguntando com a sua voz grossa antes de voltar-se novamente com o tronco para a frente e entrar no container.
— Bom, senhores, hoje não é um dia muito bom para ele… Datas comemorativas não são o forte do bonitão.
apenas alertou e apontou com a mão para que fossem na frente.
bufou irritado, impaciente, e foi o primeiro a entrar. Parecia por fora que era um cubículo, mas ele se surpreendeu. O container tinha apenas uma escada que levava para baixo, um subsolo.
E era gigante, porém tinha somente armários embutidos e uma mesa com uma luminária no “teto”, muito bem centralizada. Algo simples a qualquer olhar leigo, pois do contrário, sob óticas iguais às dele, seria muito fácil imaginar o que tinha dentro de todas aquelas portas, guardadas com todo cuidado e um possível carinho. Julgou que, talvez, tivesse diversos itens que nem mesmo ele conhecia ainda.
Também não era como se quisesse conhecer, claro. Ele tinha sua zona de conforto muito bem estabelecida.
— Uau. Por que de repente eu senti uma sensação de quase morte? — disse, cortando o silêncio descomunal e seus pensamentos.
, parado atrás dele, se aproximou mais e disse baixo em seu ouvido:
— Será que é quase mesmo?
A voz rouca propositalmente acabou ecoando pelo ambiente, chamando a atenção dos demais, que também estavam em um tipo de mundo particular. O olhar de , já posicionado diante da ponta da mesa, de frente com a escada, foi sério para o parceiro e continuou sentindo o mesmo arrepio em sua espinha, se afastando e arrumando seu espaço em volta do móvel o mais longe dos dois que ele poderia — o que seria quase nada diante do espaço, ele ainda estava bem na linha do olhar de .
— Vocês vão contar ou vamos trabalhar com adivinhações? — trouxe seu tom exigente, tirando o óculos preto e abrindo os braços na mesa, ficando com seu corpo curvado e olhando para os três.
— Roleta russa? Eu adoro! — riu. o encarou por segundos e ele olhou para o chão, com as mãos dentro dos bolsos se fechando em punhos. — Tá bom… — proferiu baixo.
— Então?
Vendo a hesitação incomum de , também espalmou as mãos na mesa, ele estava na outra ponta, bem de frente com . Em um de seus lapsos de coragem, sendo banhada por toda a atmosfera das intercorrências que os guiaram até aquele momento, ele achou que toda a cena sendo exibida sob seu olhar estava começando a se tornar importuna demais.
Sabia sobre dramas mexicanos, mas não gostava muito desse estilo não, então tomou a frente.
— Eu vou pular para a parte principal — cerrou a mandíbula. — Precisamos adiantar o resgate da Fiona na torre, de alguma forma temos a polícia na nossa cola agora e-
— Vamos ter que mudar todo o plano. Precisamos agir até amanhã, ainda contando um gap muito alto de que estaremos seguros por hoje.
seguiu o olhar para , prestando atenção nele.
— E qual é o plano? — esperou com expectativa, mas ninguém respondeu. Ele riu. — Estão brincando, não é? Vocês não tem um plano.
— Nós não tivemos tempo para pensar em nada desde mais cedo. — se posicionou mais adiante. — Vocês dois também são da equipe, podem cumprir com esse papel.
Um silêncio se instalou entre eles, até estalar a língua no céu da boca e mencionar:
— A gente precisa mesmo do para isso tudo?
— Bem, o plano é dele… — deu de ombros, tentando soar convincente e não tão "fanboy" do outro mencionado.
— Mas ele passou tudo para você. Então por que é que ele é necessariamente importante nisso? A gente pode simplificar: primeiro o leilão e depois tiramos a donzela da cadeia com um advogado fodidamente bom.
O plano prático de pareceu ser uma excelente saída, mais funcional e segura, mas não era assim que tudo iria funcionar. Já haviam caminhado com muitas fases do que tinham planejado. Como iriam fazer, andar ou correr, se tornaria uma questão de estratégia rápida a partir de agora.
— Certo, então eu penso por vocês pra consertar essa cagada. — encarou , tendo certeza de que sabia o que se passava na cabeça dele. — É hora de você fazer uma ligação, bonitão.
olhou de para um tanto confuso, ligando um ponto a outro. A parte de toda a história que eles pouco conversaram sobre.
— Espera — apontou sem direção —, você disse ligação… Então é só isso? Era só isso o tempo todo? Você poderia ter pegado a merda do seu celular e feito a porra de uma ligação para tirar do caralho da cadeia em que ele está… Eu não precisaria ter passado por nada disso que passei até agora!
— Vamos com calma, garoto. — se endireitou em sua postura. — Ligar meu nome ao seu chefe para livrar a barra dele é uma coisa, agora… Foder com ele, é outra melhor ainda.
— O que você vai fazer? — questionou, um tanto preocupado.
— Ligar para um amigo que pode adiantar o processo de e colocar o julgamento dele para amanhã. Faremos a interceptação do transporte dele quando estiver indo para o local de julgamento.
— Isso é arriscado demais.
— E envolver a polícia na nossa cola nos deu qual vantagem? — rebateu a reclamação e ignorou a encarada fria do amigo, voltando-se para . — Como você vai fazer isso? Não vai se tornar suspeito? De repente alguém pedindo por isso e de repente ele é resgatado.
assobiou com um tom sarcástico.
— O quê? Conta pra eles. — Sua fala foi direcionada para , que não reagiu. — Ok, eu conto. e já se conhecem de outras ocasiões.
— O quê? — soltou quase como um relinchar.
— Esse leilão do qual vocês estão ávidos para roubar é de um dos caras mais influentes do ramo no mundo todo. Eu já tive negócios com ele no passado, mas interrompi quando notei a real intenção dele comigo.
— Certo, ele queria comer você e ainda assim ficou vivo? Como? — interrompeu um tanto nervoso em sua fala.
— O interesse dele era em Maya.
Um nome solto no meio da explicação sem qualquer adendo, mas que soou um pouco familiar. Pelo menos para e seu pensamento inferior.
, porém, conhecia mais sobre.
— Espera… Maya… Sua noiva? — perguntou.
— Ex. — disse como um despertador alertando o timing exato. — Ex-noiva.
— Maya Cafrey é a mulher mais influente em como adquirir joias.— acrescentou.
Roubar, você diz. — riu nasalado, tentando não encará-lo ao falar da mulher. Ele conhecia a história dela com até um certo ponto e vírgula, mas o que já sabia era o suficiente para não querer encontrar com a mulher, nem mesmo pintada de ouro.
A verdade era que tinha um tremendo carinho por para aceitar que ele fosse tão apaixonado por ela, uma pessoa tão egoísta — em sua concepção de alguém alheio. E no momento que ouviu o nome dela, sua mente se acendeu como se a Times Square em período de ano novo estivesse celebrando essa data junto com a independência estadunidense.
nunca quis falar para ele a origem de seu plano.
mudava até seus movimentos corporais quando ouvia o nome dela.
sempre dizia que caras como jamais entrariam na Odium. Agora isso tinha outro sentido para ele: não era porque o CEO tinha um requinte forte demais para ser certinho e andar na linha, não frequentando lugares ilegais; na verdade, ele não iria frequentar um lugar que era do cara que a ex-noiva dele teve uma relação completamente passional — e por mais que ele odiasse admitir, ainda no seu ponto de vista, Maya podia ser uma egoísta, mas com ela havia vivido uma relação de romance, não à toa ele a amava e parecia não superar.
não diria em voz alta, mas quanto mais isso foi se remoendo em sua cabeça, mais preocupado ele ficou. Se sua mente estivesse trabalhando no rumo certo, havia manipulado a ele para que pudesse manipular os outros em uma cadeia, assim então pregando em Maya uma vingança movida por seu ego ferido. E no meio disso, esbarraram em , que claramente era a outra parte da história que parecia não superar Maya Cafrey.
Segurou o máximo para não explanar ou demonstrar o quão cheia sua cabeça estava naquele momento, repetindo um mantra para si mesmo sobre manter a calma e não ser precipitado. Era ridículo, mas estava se sentindo extremamente usado. Levou em consideração sua posição no meio dos outros quatro: dentre todos, era o menos esquentado; se ele estava se sentindo de tal forma, chateado, como os outros iriam reagir ao chegarem nessa conclusão?
Talvez seria melhor não querer essa resposta por ora.
— Ela é um tipo de estelionatária de jóias… Vamos dizer assim. — outra vez soou como alerta, trazendo de volta para a conversa. Havia ido muito longe com seus pensamentos em tão pouco tempo. — Ela é esperta demais, ardilosa demais, pilantra demais e-
— Chega. — o cortou. — O que vocês precisam saber é que agora a decisão será minha.
— Não é assim que funciona. — estufou o peito. — A decisão precisa ser em conjunto.
— E você tem uma ideia melhor?
O olhar de estava carregado, sombrio. Ele não era naturalmente simpático e podia-se dizer que se não fosse claramente o psicopata, os dois não teriam nada em comum, mas tinha algo em seu semblante naquele dia e não tinha muito a ver com o fato de ter feito merda. Pessoas que “trabalham” com o crime sempre estão acostumadas com curvas fora do planejado e é de suma importância que exista um alfabeto inteiro de opções para o caso necessário.
De qualquer forma, não seria naquele momento que eles iriam entrar no mérito sobre a mulher que não estava ali e de alguma forma dava alguma ligação aos caminhos de e , dois criminosos de primeira linha. Porém, ele entrou em uma linha de pensamento que o fez questionar:
— Se você não tem estrutura ainda para lidar com esse seu passado que não conhecemos, por que aceitou ajudar ? Você não vai me convencer que é pelo dinheiro, quando sua conta no banco deve ser o suficiente para suprir as inflações até do país mais caro do mundo por incontáveis gerações.
— Você já tem a sua resposta na próxima fala. Não conhecem o meu passado. — apenas sacou o telefone do bolso e se afastou um tanto da mesa, suficiente para que a luz não o iluminasse mais e suas costas fosse a visão no “escuro” que tinha do lugar em que estava.
Changyun e trocaram um breve olhar, enquanto se virou para o armário atrás dele, abrindo-o e revelando um frigobar e uma prateleira cheia de snacks. Em silêncio, ele jogou latinhas de energético para os outros três, pegando uma de café para consumo próprio.
Com um pacote de qualquer salgadinho, se voltou para a mesa e jogou suas coisas na superfície, puxando o banco ali embaixo e ignorando a saída repentina de para o outro lado não explorado pelas visitas.
— Vão ficar em pé ou sentar e comer? Depois eu e o garoto vamos comprar um almoço decente — apontou para eles, sentando-se à mesa.

🔪💔


O primeiro toque na porta foi fraco.
— Droga! — sussurrou ao encostar a testa nela, sentindo o gelado em sua pele.
Seu relógio estava completamente regulado, fazendo-o se sentir um completo idiota por estar ali àquela hora. Era um senso comum que às duas da manhã não fosse uma hora tão propícia para visitas, mas não era só isso que o deixava patético. Sua falta de coragem em bater com a vontade que sentia naquele matéria que compunha a camada fechada da entrada da casa de falava mais alto. Fazendo um retrospecto de sua vida, não conseguia encontrar em lugar nenhum qualquer momento específico ou simples em que tenha sofrido por não ser corajoso, e naquela madrugada tudo o que ele queria era entrar e esvaziar seu peito com o que vinha lhe consumindo desde o exato segundo que precisou dar as costas para ela.
Nenhuma explicação seria boa o suficiente, ele reconhecia, e ainda assim parecia querer tudo, exceto se distanciar de . Deixou que tudo fosse longe demais pelo simples prazer de seu coração ter se ligado à ela de alguma forma, sempre análogo a um imã puxando o metal — não teria nada tão ou mais clichê e complexo para explicar. Contudo, por que ainda tinha que ser tão difícil? Por que não poderia simplesmente ser como nos filmes? Seria exigir demais que ela cedesse do outro lado para que desse certo? Afinal, se fosse ele a soltar a corda primeiro, não teria um fim tão favorável.
Na sua história já era traçado uma linha bem específica do “correr ou morrer” e a partir do momento que descobriu a sua face desnivelada por baixo do que ele vinha a entregando, não havia mais nenhuma rota de fuga; ou ele continuava adiante ou poderia esquecer qualquer momento possível de férias. Trazendo de seu inconsciente ele decidiu ceder, mas para chegar nessa camada ele precisaria abdicar do dinheiro, sua liberdade e, o principal, seu melhor amigo e parceiro de uma vida.
Se afastou da porta, com os braços esticados e as mãos espalmadas nas laterais, não conseguindo fixar seu olhar num único ponto. Estranhamente, como uma novidade sem precedentes, sentiu doer alguma coisa, principalmente a dúvida primordial: o que estava, de fato, fazendo? Podia assumir então que tinha se apaixonado pelo proibido?
Sem querer respostas, decidiu que deveria ir embora. Ajeitou sua jaqueta e se virou, rumando para o caminho que havia vindo, mas sem conseguir prosseguir. Seus pés não quiseram funcionar e, em um lapso tão estranho quanto todo o resto, girou sobre os próprios calcanhares, voltando para bater na porta, desta vez decentemente mais forte.
Uma batida, cinco segundos de espera.
Mais outra batida, três segundos de intervalo e sua respiração ficando descompassada.
Mais uma vez, sem nenhuma pausa dramática, a respiração ofegante e sua voz insistente para completar:
, abre essa porta, eu vi seu carro lá embaixo!
Como sua vida não era um filme, ela abriu, armada o suficiente para recebê-lo. E não se tratava de palavras.
Poderia ser intimidador uma arma apontada em sua direção, sendo segurada por uma policial treinada para isso. , porém, só se sentia intimidado por uma coisa e não chegava aos pés de uma arma de fogo.
— O que você quer aqui? — A voz dela saiu limpa e ele não conseguiu deixar de analisar as vestes caseiras por baixo do roupão de microfibra aberto. Uma breve olhada no corpo dela que lhe fez reviver uma memória recente (em uma outra ocasião feliz, ele poderia estar na porta dela para revidar o que lhe foi feito).
— Eu precisava te ver. — Ele disse, erguendo as mãos em rendição. — E me desculpar. Sei que só tenho alguns segundos antes da polícia romper esse prédio.
— Você acha que eu não consigo lidar com você sozinha? — riu fraco. — Me subestimou assim todo esse tempo, ? Como devo te chamar?
… Por favor. Me escuta. — deu passos curtos, que o levaram para dentro, engolindo o nó na garganta ao vê-la sustentar a postura e levar o dedo ao gatilho. — Eu nunca subestimei você, pelo contrário, subestimei a mim. Nunca achei que fosse provável me apaixonar, encontrar alguém que fizesse meu mundo parecer ter espaço suficiente para encaixá-la. Até você aparecer… Sim, foi intencional me aproximar, eu já sabia quem você era antes de me contar, e podia muito bem ter dado um fim quando foi a hora certa. Mas essa hora passou e eu não percebi, estava ocupado demais me subestimando.
Ele estava perto demais, sentindo a ponta do cano da glock em seu peito, encarando os olhos atentos dela. Os dois se mantinham fixados um no outro e , ainda mantendo sua postura, pôde ouvir o barulho da fechadura vizinha, fazendo-a acordar em um estalo.
foi mais rápido.
Em um movimento ligeiro ele bateu no cano da arma com a mão esquerda, tomando-a com a outra, desarmando . Removeu o cartucho, deixando os projéteis caírem no chão e a jogou longe. Entretanto, ela também teve seu reflexo, querendo esconder o que acontecia, haja visto que sua vizinhança era muito fofoqueira. Em um único movimento, levou o antebraço para o pescoço de , jogando toda a força de seu corpo contra ele, direcionando para a parede lateral à porta, que ela fechou no mesmo instante que ele se chocou contra a estrutura.
— Você só é mais um cara idiota que surgiu no meu caminho. Mentiroso como todos. — Ela disse cerrando seu maxilar.
Sua pose durou, claro, até diminuir a voz.
— E você foi alguém que eu jamais quero esquecer.
As palavras dele não eram tão originais, parecia que tinham sido ensaiadas ou tiradas de alguma cena favorita de um drama coreano qualquer. Ela só não estava se aguentando, em contrapartida, por estar diante dele, um alguém que tinha mexido demais com sua cabeça.
E o que dizem sobre a mente é que ela comanda todo o corpo.
Pois bem.
Notando a falta de resposta de , ele decidiu se mover, tocando o rosto dela.
— Acredite em mim — pediu.
— Você acreditaria? — Ela devolveu. — Pessoas como você não pensariam duas vezes antes de arrancar a cabeça de alguém como eu. Ou melhor, seu amigo não pensaria duas vezes. Ele não iria pensar, apenas fazer.
— Eu não deixaria.
— Ah, cale a boca! — revirou os olhos, se afastando enquanto ria amarga. — Entenda, , eu não sou idiota. Não como pôde parecer. Acha que eu não sei que sua vinda aqui é uma distração? Que não estou preparada?
Bingo, uma confissão. Não estar preparada significava que tinha policiais de tocaia? Ela tinha contado sobre seu envolvimento com ele? Ou seriam câmeras e escutas por sua residência?
Ele não havia visto carros do lado de fora, nada suspeito. Também não foi seguido.
Talvez tivesse mencionado, mas isso seria incerto.
Resolveu buscar pela última dúvida. Seus olhos seriam um raio-x perfeito, como sempre fora.
— É óbvio que você está. — Ele deu outro passo a frente, sem vacilar, analisando cada centímetro daquele metro quadrado. — E eu só vim para me desculpar, por favor, acredite em mim!
Agora, com isso tudo lhe movimentando como uma ameaça, também começou a atuar. Já tinha dito o que queria que ela escutasse, sua despedida havia se iniciado. Não como queria, mas nada na vida funciona desta forma e ele já sabia muito bem sobre isso.
E de duas opções, uma: ou ele era inteligente demais e tinha o cérebro pensante de um agente, como sempre foi incentivado, ou realmente deveria ser subestimada. Pela anatomia comum de um abajur, ele diria que o fio de energia faz o caminho inferior para chegar na tomada e não o contrário. Talvez ela tivesse instalado com pressa e deixado para trás a sutileza. Mas ele não analisou o trabalho dela, o que queria fazer e saber já tinha sido alcançado.
Era hora do mais difícil: partir. E ele gostaria que a parte dificultosa fosse encontrar a escuta gravando sua voz.
— Você já disse o que queria, agor-
Não a deixou finalizar, avançou em direção de , beijando-a imediatamente, sem qualquer pedido por permissão. Foi invasivo, egoísta, um canalha e puramente por necessidade. Sua culpa diminuiu ao sentir ela corresponder depois de algumas tentativas falhas para se esquivar. Era um beijo passional, ele sentia, mas também tinha muita raiva misturada com saudade.
E a merda da despedida.
Então era isso, não tinha mais jeito. Boa sorte para os dois lados.
— Me deixa ir. — Ele pediu contra os lábios dela. — Só essa última vez. Você não vai querer me ver naquele carro, algemado.
— Acredite, isso começou a me dar o maior tesão. — o empurrou com muita força. — Mas eu vou deixar você ir, porque sei que vai ser mais prazeroso pegar vocês todos de uma vez só. Se tornou meu motivo de maior comoção. Então não espere eu contar até três. Vai.
O olhar cerrado de foi como um apito de largada. não aguentou encarar por mais tempo aquela escuridão e dar as costas a ela foi sua decisão mais fácil em instantes. Totalmente cortado, perfurado profundamente, ele seguiu cego pelo corredor, esquecendo da facilidade do elevador e foi pelas escadas, tropeçando pelos próprios pés. Era um turbilhão de pensamentos que o alcançavam, brigando entre si para o qual iria se sobressair em seu cérebro trabalhador. E, como num sistema automatizado, ele precisou de um tempo para atualização.
O sistema tinha entrado em stand by por um tempo e se sobrecarregou.
Assim que saiu na rua, se sentiu mais leve ao ver que estava do mesmo jeito quando chegou, e por pura negligência ficou parado um tempo na calçada, aproveitando as gotas da chuva encorpada que começava a cair. Quando seu corpo pareceu parar de tremer, vestiu o capuz de seu moletom, correndo para o carro e entrou nele o mais rápido que conseguiu, arrancando dali diretamente para o mesmo lugar onde ia para descartar veículos e trocar por outro. Certamente as ideias em sua mente, que continuavam rodando como uma pista de Fórmula 1, foram lhe dando o gás necessário para raciocinar.
não era burra. Ele foi até ela e com certeza ela já sabia que o julgamento de tinha sido magicamente adiantado.
Estava a dois quarteirões longe quando fez o retorno, voltando para a rua dela a tempo de vê-la sair do estacionamento com o carro que ele já até tinha memorizado a placa.
Ela estava indo para a delegacia, alguma coisa iria fazer e se ele fosse pensar igual a um policial, com certeza iria agir naquela noite, talvez tirar da penitenciária que estava e colocar numa provisória, escondido, com um caminho totalmente diferente para o local da audiência. Resolveu testar sua inteligência e ligou para o telefone de , no primeiro toque já tinha a voz do outro.
— Ah, ainda bem que deu sinal de vida! — deu graças do outro lado.
— Está no viva-voz? — perguntou.
— Sim. Onde você está?
— Vamos ter que adiantar o plano para hoje. — ignorou a pergunta. — Eu tenho certeza de que irão transferir o agora para alguma provisória, pra ele aguardar o julgamento de amanhã.
Sua pressa transpassou da voz para sua velocidade imposta no velocímetro do carro.
— Como você sabe? — A fala veio de .
— Não importa. — Outra vez ele desviou do ponto.
— Onde você está, caralho? — insistiu. — Quer saber? Foda-se. Você tem certeza?
— Chego aí em quinze minutos. Arrumem tudo, vou localizar a movimentação deles.
— Se ele tiver razão, será melhor. — se fez presente. — Estão contando que algo será feito amanhã, não hoje.
— A gente não tem uma equipe! — tremulou ao dizer na chamada.
— Nós somos a equipe. — Ele disse por fim, encerrando.

🔪💔


— Toma.
O pequeno gravador foi jogado em cima da mesa com brutalidade por . Ela estava carregada de fúria e Dawon, por mais que tenha tentado, não conseguiu impedi-la de romper a sala do delegado àquela hora da madrugada. A mulher havia chegado como um furacão na unidade, mal cumprimentou qualquer pessoa fazendo plantão e foi diretamente para a principal repartição, ávida por algo que ele já poderia ter qualquer ideia do que seria. Era óbvio que se tratava de e cia.
Ela foi observada pela autoridade maior dali de cima a baixo e sem dizer nada ele ligou o gravador, ouvindo a conversa que teve com .
— Certo, aqui ele não diz nada comprometedor, . — O homem suspirou. — Apenas coloca você numa posição constrangedora aqui dentro para sua ética.
estreitou o olhar, não existia ninguém a ter culhão suficiente para impedi-la de mostrar que falava sério e tinha sua palavra intacta: a partir do momento que teve sua real face revelada, o encanto tinha caído junto. Não tinha trabalhado uma vida para conseguir estar onde estava, para simplesmente jogar fora por um homem. Isso ela conseguiria encontrar em qualquer esquina, afinal não é muito difícil esbarrar com o mesmo tipo por aí.
Espalmou a mão na mesa e encarou os olhos de seu chefe.
— Eles irão agir amanhã na transferência de . Por que você acha que o julgamento foi adiantado? Precisamos fazer isso hoje, agora, essa madrugada. Colocar ele numa provisória vai ser a melhor estratégia e amanhã colocamos algumas crianças num ônibus para tomar sol em outro pátio… Estaremos preparados para intervir na intervenção deles.
Ele não a respondeu. Ela se irritou mais.
— Eu não vou pedir por uma chance para provar minha palavra. Estar aqui é uma prova suficiente e se você está sentindo essa insegurança infantil por eu ser uma mulher e não abaixar a cabeça para você… — riu nasalado em deboche. — Não posso fazer nada a não ser sentir muito.
— Chefe — Dawon iniciou, não dando tempo do outro pensar e reagir. —, ela pode estar certa.
O delegado continuou com sua pose intocável, mas era possível perceber que dentro de sua cabeça encontrariam um turbilhão de pensamentos cruzados. Não era comum uma mulher bater de frente ou até mesmo alguém de uma hierarquia abaixo se impor de tal forma em termos gerais na cultura. Mas não era dali, sua cultura vinha de um lugar em que ela poderia ser ela e ter a sua própria voz; não era um fantoche.
Em sua narrativa, acreditava muito mais na benfeitoria da criação de Lilith do que em Eva e sua dependência frágil masculina. Não era um complemento de homem algum e não via sentido em se sentir inferior, até mesmo porque ela se conhecia e confiava na própria palavra.
— Se você estiver errada, , será sua cabeça na guilhotina e eu vou colocar ela naquela parede com muito gosto. — Ele disse, por fim, se levantando e ajeitando sua roupa.
— Eu vou fazer questão de dar o meu melhor sorriso para o senhor.
Os dois trocaram um olhar intenso, uma briga silenciosa de quem poderia estar certo.
— Dawon, localize a melhor unidade para colocarmos , vou fazer a minha ligação para o ministro da segurança. — O delegado coordenou, olhando para ele e o esperando sair.
— Ah! Sim… — Ele saiu, notando que ela ficou. Queria ouvir o que seria discutido entre os dois, mas as paredes não permitiram.
Ficou no corredor esperando por e quando ela apareceu, fechando a porta, não escondeu sua expectativa.
— O que foi? — Ela o perguntou, arqueando uma sobrancelha.
— Você tem certeza de que está tudo bem? — Dawon tentou o seu melhor para soar compreensivo e não tão intrometido.
Ela tocou seu ombro, sorrindo simples.
— Tenho. Acredite, eu quero a cabeça deles mais do que qualquer lei pode prever. Vamos correr contra o tempo e… Amanhã estaremos prontos para recebê-los.

🔪💔


Não estava tão frio, apesar da chuva, mas sabia que o clima poderia influenciar diretamente nos acontecimentos. Era óbvio que alguma coisa havia acontecido para que ele fosse acordado sem qualquer respeito no meio da noite e retirado de sua cela, obrigado a entrar num furgão blindado com as mãos algemadas e aguardar chegar no lugar que teria como destino final — do qual ele não sabia e ninguém foi educado o suficiente para lhe contar. Partindo disso, sim, não estava frio, mas ele sentia o corpo tremer porque a forma como foi tirado de seu descanso o fez demorar a se acostumar com a brisa trazida pela água que corria do céu: o clima influenciou e muito o seu humor naquele período.
A julgar pela demora em que ficou parado, dentro daquela caixa fedida e sem conforto, ele apostaria com qualquer bêbado que tentaram colocar na sua cela que teria feito alguma merda, pois não suportaria sair da linha e criar qualquer caos, e as autoridades estavam tentando se organizar para que nada desse errado. Mas ele sabia muito bem que todo sistema tem suas falhas e não seria diferente agora; se eles não conseguiam encontrar os responsáveis por colocar na ficha do país assassinatos horrendos, como iriam lidar perfeitamente com qualquer intercorrência envolvendo um grande magnata da zona ilícita? Era um raciocínio lógico.
Porém, tudo isso, a espera principalmente, começou a lhe fazer acessar as camadas de sua memória que ele jamais pensou ter paciência para reviver. Não admitiria jamais que o passado deveria ser somente passado porque odiava lembrar de Maya em diversas fases de sua vida pelo simples fato de doer a ausência dela. Também não diria nem mesmo para sua própria sombra que seu atual momento era uma consequência da causa que levava o nome dela. O faria carregar uma imagem patética de quem não tinha superado, levaria a não acreditar mais nele, poderia fazer com que o garoto fosse cassado e os demais usassem a sua cabeça acima de qualquer lareira. Afinal, aonde ele tinha chegado por um plano fundado em sua saudade de Maya?
O que ele tinha feito da própria vida por querer atingir ela por não ter o escolhido?
Quanto mais pensava sobre isso, maior era o seu fracasso.
E era por isso que ele odiava a forma como o clima podia influenciar em tudo, mesmo que não fosse um frio de graus negativos, em dias ensolarados e noites estreladas nenhum pensamento negativo é gerado. Pelo menos para ele era assim.
Remoer as próprias mentiras lhe mostrava uma falha que odiava admitir.
Iria sair dali, roubar um leilão para mostrar que poderia ser maior do que qualquer escolha de Maya e depois voltaria para um vida de fuga. Teria que fugir pro resto da vida e ainda não teria ela de volta, até porque ela jamais o perdoaria por ter se intrometido num trabalho dela. Ele até conseguia ver o olhar fulminante que ela carregava e sua fúria por vê-lo lá, porque com toda certeza do mundo Maya estaria no evento, ela era a celebridade e responsável por toda a mercadoria.
Sua mente teria ido mais longe, chegando no arrependimento de ter enfiado no meio de tudo, mas seu corpo sofreu um chacoalhão e ele foi direto para o outro lado, batendo contra a parede. caiu no chão de mau jeito, mas seu reflexo ainda era bom e foi o suficiente para que ele conseguisse levar as duas mãos para frente, a fim de evitar uma pancada na cabeça, caindo sentado e batendo a costela na altura do banco.
Só então notou que estavam em movimento.
— Merda! — reclamou tentando se levantar, mas a pontada que sentiu pela pancada o impediu. Era desesperador não conseguir ouvir nada.
O silêncio, porém, não durou muito tempo.
Rompendo seu momento de dúvidas, um barulho estrondoso ecoou, seguido do movimento do furgão, como se algo pesado tivesse sido lançado em sua lataria, chacoalhando bastante. Isso fez com que caísse deitado no chão, no espaço entre os dois bancos; se ele não tinha batido sua cabeça ainda, evitado no primeiro choque, agora ele o fez e teve uma breve confusão mental, sentindo que iria desmaiar. Ficou apenas zonzo, tendo um mínimo de consciência sobre seu corpo.
Sentiu que foi puxado pelos tornozelos para fora do furgão e colocado em pé.
Devagar sua noção de tempo e espaço voltou e ele encarou o olhar frio que o mirava, que era a única coisa possível de ser vista no rosto da pessoa mascarada em sua frente. Seu coração errou uma batida, mas não teve tempo para nada, recebeu apenas uma pistola carregada e foi vestido com um colete a prova de balas, sendo deixado para trás.
Se seu estado de zonzeira pela pancada tinha se ido rapidamente, com a confusão que se instalou em sua mente naquele momento, foi diferente.
Ao redor tinham viaturas tombadas, policiais caídos ao chão e uma cena horrenda de destruição. Estava bem à beira de um precipício e isso lhe causou uma grande falta de ar ao notar o quão perto estava, se não tivesse recobrado seus sentidos, poderia ter facilmente caído. Não tinha nada muito didático sobre todo aquele cenário, pelo menos não para o estado em que ele estava, mas logo que sua audição ficou aguçada e ele pôde ouvir os barulhos de disparos e mais sirenes. Seguiu para a direção que julgou ser contrária ao caos, mantendo firme a mão algemada segurando a pistola.
foi seguindo a passos apressados, ficando incrédulo em como a proporção daquilo tudo era gigante e tinha muito mais sangue do que ele poderia imaginar. Pelo o que tinha noção, havia saído da penitenciária com um comboio de quatro viaturas, que deveriam ser suficientes para fazer a “segurança” da sua transferência.
Mas o sistema era falho.
E não pôde conter o sorriso ao ver , mais a frente na estrada, descendo de uma BMW armado até o pescoço, tirando o capuz para que fosse reconhecido.
Ao se aproximar mais, ele ouviu do garoto:
— Fiona resgatada, nos encontramos no ponto de coleta em dois minutos.
— Que merda é essa? — perguntou, abaixando a pistola. Não estava mencionando o fato dele parecer falar sozinho, mas sim o código.
— Estou avisando que cheguei até você no meu mini ponto. — Ele revirou os olhos. — Vou tirar isso de você e precisamos ser rápidos para pegar e está subindo.
estendeu os braços, vendo que ele tinha uma chave.
— Você vai me explicar tudo.
— Quando estivermos dentro do avião saindo dessa merda? Você é quem vai explicar tudo primeiro enquanto eu folheio uma revista antiga com a Cafrey na capa. — não foi nada delicado, soltando os braços de com brutalidade. Ele removeu seu ponto e jogou no chão, pisoteando. — Eu já entendi a sua, . E, vai por mim, você não conhece e . Meu único interesse agora é que tudo dê certo para colocar as minhas mãos na minha parte e depois disso eu espero que você se fo-
Ele teria continuado se não tivesse sido cortado.
— É assim que seu subordinado fala com você? — apareceu, saindo do meio fio da estrada. Não precisava que ele tirasse a touca que o cobria, reconhecê-lo não era difícil.
A espinha de esfriou, mas não de medo. Repulsa. Ódio. Sentimentos que ele manteve guardado para si há tempos. E o quão irônico seria que justo ele iria se arriscar para aquele plano desde o início?
Só poderia rir, e foi o que fez. Sua risada saiu fria.
— Então nos encontramos definitivamente. — proferiu, levando as mãos para dentro dos bolsos de sua calça do uniforme de presidiário.
— Interessante você lembrar disso, quer viver um momento nostalgia exatamente no momento em que precisamos meter o pé daqui? — continuou se aproximando, agora já com a touca erguida. — Bom trabalho na retaguarda, garoto — virou-se brevemente para .
E , no meio dos dois, só fez engolir a seco, olhando de um para o outro.
— Vocês nunca se encontraram antes? — perguntou baixo.
— Por incrível que possa parecer, ele só é mais um fã que soube sobre mim pelo meu nome na boca dos outros… — tinha o esboço de um sorriso soberbo nos lábios. — Ou devo dizer a-
— Se você acha que Maya mencionava seu nome, está completamente enganado. Nosso tempo juntos era gasto de outras formas, com outros assuntos… Outras melodias da voz dela… — O corte de veio sereno. — Nós já somos grandinhos demais para você querer usar esse golpe contra mim, qual é.
Outra vez uma chegada inesperada que os fez não continuar um assunto — para a felicidade de ; ele, inclusive, estava matutando se tinha escutado tudo, e, se tivesse, como a sua cabeça ainda poderia estar grudada ao pescoço?
e surgiram apressados.
— Cadê a merda do ponto de vocês? — berrou.
— Achei um. — , já próximo de , sentiu um “crack” em seu pé e deduziu. Mirou e respirou fundo: — Não vou nem cogitar a ideia de você ter tentado outra vez o "modus operandi sozinho”.
— Você sabe que eu odeio falação na minha cabeça.
— Qual o problema? — questionou, medindo e sendo analisado de volta.
— O problema, Fiona, é que tem federais fechando os dois lados da porra da estrada! — respondeu, colocando as mãos na cintura. Ninguém tinha tempo para cumprimentos. — Sua chance, tic tac, qual a nossa saída agora?
tomou segundos, mirando sua volta, virou direto o rosto para o lado do precipício ao notar um galho se movendo na pequena e única árvore. Não estava ventando, embora o clima fosse úmido.
Não estavam sozinhos.
— Esqueça. — entendeu o olhar dele de forma errada. — Eu não vou pular-
— Shh! — o calou. Entendendo o que havia acontecido. — Não estamos sozinhos — ajeitou a touca novamente e pegou na arma presa em seu corpo pela alça transversal.
Sem tempo de reação, uma bomba de gás lacrimogêneo parou aos pés de e o garoto olhou de baixo para os olhos de , antes de tudo ficar tomado pela fumaça. O próximo passo era sentir a irritação nos olhos, eles já sabiam, mas o primeiro ponto foi notarem as diversas miras a laser em cada um.
— Por que vocês ficaram quietos? — A voz de ecoou no rádio que estava na mão de . — ?
— Eu não sei, caralho! — Ele respondeu nervoso, tentando tampar os olhos e observar ao redor, mas tudo estava tomado.
— Se separem… É uma emboscada; mandaram distrações antes dos federais. Esses filhos da puta fecharam tudo e vocês estão encurralados.
O nervosismo de era palpável, porém não tinha mais para onde correr, ele sabia disso e podia ver por suas telas.
sentiu o rádio ser tomado de sua mão, enquanto por outro lado foi puxado com brutalidade e desarmado. Ouviu uma voz feminina, abafada pois deveria estar usando alguma máscara para se proteger do gás.
— Creio eu que não vai ser possível. Não por hoje, querido. Câmbio, desligo.
.
Só poderia ser ela e ele teve sua confirmação quando a visão começou a ficar menos crítica pela fumaça diminuindo, mas ainda assim turva pelos efeitos colaterais. Os demais também eram mobilizados, recebendo algemas em seus braços.
Ele sorriu, dando a ela uma careta um tanto feia, parecendo embriagado. Mas conseguiu proferir, enquanto a via tirar a bateria do rádio:
— Então você tem o seu mandado dessa vez.
Agora ela podia tirar sua máscara e mostrar seu sorriso vitorioso, ou pelo menos o esboço dele.
— Tenho uma coisa melhor: um flagrante — deu uma pausa, mas ele não respondeu, apenas a encarou ainda com a mesma superioridade. Tirou o distintivo do bolso para mostrar a ele enquanto dizia o que queria há muito tempo: — Lee , você está preso por formação de quadrilha e outros inúmeros crimes relacionados ao seu nome. Tudo o que disser poderá e será usado contra você. E você tem direito a uma ligação e um advogado.

🔪💔


Ele estava rindo de novo.
Rindo pelo telefone.
Era o que estava acontecendo em todas as malditas vezes que passava pela sua porta: risadinhas de júbilo, agradecimentos, falsa modéstia e a voz prensada de quem tinha a porra do peito inflado de orgulho.
E ele só tinha chegado depois da ação. Patético.
A mulher ainda encarou a maçaneta por mais um tempo, pensando e repensando repetidamente sobre a decisão maluca que estava prestes a anunciar. Anunciar, sim, porque não tinha mais volta. As possibilidades de desistir daquela ideia foram todas ponderadas, analisadas e calculadas durante toda a última semana que se passou, mas não chegaram a vingar. estava determinada. E teria notificado seu veredicto bem mais cedo, se não fossem as coletivas de imprensa e os malditos jornalistas que não deixavam a delegacia até arrancarem mais algumas palavras bonitas do pateta sentado atrás daquela porta.
Eram 6 da manhã. Pelo menos nisso o palerma fazia certo: chegava no horário. O dela ainda estava prestes a começar, assim como o de Dawon, mas não importava: se não falasse agora, dificilmente seria capaz de fazer isso depois. Não com promessas de promoção empilhadas em sua mesa. Não quando o seu nome e rosto estampavam os principais noticiários do país como a ilustre responsável pela prisão de uma quadrilha insana prestes a cometer uma fuga histórica; a grande heroína da justiça: — mesmo que ela tenha pedido explicitamente para não a colocarem dessa forma.
Mas parece que prender 6 criminosos de uma só vez não era um escândalo que se esquecia em 1 semana.
Apesar de todos os elogios e todos os votos de um futuro promissor, o que aconteceu foi que dirigiu até o departamento de polícia de Seul e estacionou o Ford entre um Audi e um Lexus — um presentinho para o seu superior, talvez —, reconsiderou o máximo que sua mente insone permitia e, finalmente, bateu naquela maldita porta.
Até o trânsito do lado de fora era ameno àquela primeira hora do dia, então não demorou muito para que escutasse a diminuição da voz do homem e a cadeira rangendo. Ele devia estar com os pés pra cima da mesa, claro, como andava fazendo nos últimos dias; vivendo como um rei. Depois de alguns segundos, com a pele de ficando quente e sua garganta fechando-se em ansiedade, ela ouviu um:
— Entre.
Prendendo a respiração, abriu a porta antes que ele proferisse a última letra.
O chefe acabava de colocar o telefone no gancho, encerrando tanto a ligação quanto seu sorriso animado. Quer dizer, não totalmente. Demoraria um tempo absurdamente longo para que as pessoas deixassem de ver a arcada dentária exposta do senhor Choi Chi-su por aí. Diziam que ele estava se preparando para aparecer em algum programa de TV. Havia tantas flores e recados naquela sala que a mesa não tinha espaço para mais nada.
. Que surpresa em vê-la — ele automaticamente olhou para o relógio de pulso. Também era novo, bem mais moderno — Acho que você está um pouco adiantada.
— Só vim dizer uma coisa ao senhor — limpou a garganta, tentando não soar como alguém que tinha noites inteiras em claro acumuladas.
— Que coincidência. Eu também preciso falar com você — Choi pareceu ainda mais animado — Você vai adorar. É uma…
— Com todo respeito, senhor, preciso falar primeiro — ela o interrompeu, levando as mãos para trás das costas. Não queria ouvir que ele tinha convencido a superintendência a aumentar o volume de seu salário (e, de quebra, o dela também).
O major ergueu uma sobrancelha, recostando-se relaxadamente na poltrona e fazendo um sinal para que ela continuasse.
o olhou no fundo dos olhos e não pensou. Rapidamente, puxou o envelope do bolso de trás dos jeans e depositou o pedaço de papel na mesa bagunçada.
— Estou pedindo demissão.
A palavra pareceu mais alta do que todas as gargalhadas que ele emitiu daquela sala. Mais alta do que todos os gritos de jornalistas somados em uma semana. Era mais alta do que as sirenes daquela noite, e mais clara que todas as palavras que já disse na vida.
No entanto, foi a primeira vez que viu o senhor Choi rir de alguma coisa que ela disse — ou rir longe dos repórteres, ministros ou de qualquer grupo barulhento e triunfante que se intitulavam como reis de Seul.
, que isso… — o riso era frouxo enquanto ele apanhava a carta em cima do tampo, mas, à medida que levantava o rosto para olhar a expressão dura e estável de , esse mesmo sorriso foi sendo exterminado pela segunda vez na manhã — O que você está dizendo?
— É o que você ouviu, senhor.
— Você não pode se demitir — ele disse em um tom óbvio. Como se tivesse lhe dito que o céu, na verdade, era rosa e não azul (ou qualquer petulância que discordava dos conhecimentos empíricos da sociedade). A garota permaneceu na mesma posição, reiterando a austeridade do assunto, e o homem se colocou de pé rapidamente, arregalando os olhos gradativamente — , você não pode se demitir. Tem noção do que fizemos na semana passada?
— Senhor…
— Prendemos e . Os maiores criminosos dessa cidade. Aliás, não, os maiores criminosos dessa cidade nem sequer tinham nomes, e até isso conseguimos! e , assassinos em série, duas bestas perigosas que estão atrás das grades e vão pegar prisão perpétua. Você é o grande motivo disso!
baixou o queixo. Choi provavelmente não disse por mal, e muito menos lhe interessava tocar em alguma ferida alheia. O sentido de sua frase desesperada era muito claro: você é grande parte disso porque sua intuição era verdadeira, sempre foi. Fomos idiotas por não te dar ouvidos. Mas em compensação, fizemos isso na hora certa.
Era isso. Mas doeu da mesma forma. Doeu porque se tornou a grande estrela do noticiário noturno por um motivo peculiar, lamentoso e, quem sabe, um pouco vergonhoso.
Ser parte daquilo porque tinha se apaixonado por um daqueles condenados não era algo a se gabar.
— Eu preciso de um tempo — falou de novo, com a voz mais trêmula.
— Por quê?! — Choi continuava exasperado, até um tanto escandalizado.
— Porque já encontramos os assassinos, e não tenho mais nada a fazer aqui — ela o cortou antes que despejasse mais argumentos. Relaxou os ombros logo depois, temendo demonstrar atitudes insubordinadas diante de uma autoridade, por mais ridícula que fosse — Trabalhamos todos juntos, conseguimos impedir a interceptação, os culpados serão punidos e é isso. Algo está começando, e tenho certeza que vocês podem lidar com isso sozinhos.
O homem abriu e fechou a boca várias vezes, sem saber o que responder.
Tudo está começando, . Prendemos os maiores criminosos da história da Coreia! Todos juntos, como um milagre de Deus ou da sua intuição, passei a considerar as duas coisas como sagradas. Você não pode simplesmente ir embora — agora ele largou o papel em cima do tampo com certa brutalidade, os olhos faiscando de frustração enquanto saía de trás da mesa — Você não ouviu sobre a sua promoção? Tenente, . Capitã, se estiver disposta a um treinamento mais rigoroso. Um aumento gordo, um plano de aposentadoria dos deuses e, claro, a novidade que eu tenho a te contar. Uma proposta irrecusável, uma que vai alavancar a sua carreira pra sempre.
Ele parecia excessivamente energizado, desesperado, olhando-a com certezas e alternativas irrecusáveis. mordeu o lábio inferior e voltou a desviar os olhos para a janela. Não era tão simples assim. Mesmo que as palavras do senhor Choi cantassem todas as vitórias e todos os sonhos realizados que ela buscou até ali, não era tão simples assim.
— Senhor… — começou, prestes a completar “que proposta?”, mas não precisou de muito tempo para se tocar. Propostas irrecusáveis em momentos de altas comemorações sempre tinham a ver com o motivo inicial da festança. Ele a mandaria executar tarefas relacionadas à e companhia em sabe-se lá quantas semanas que se seguiriam, e não queria isso. Não merecia isso. Não merecia se sentir ainda mais culpada do que já estava — Não quero ouvir, senhor. Sinto muito. A decisão está tomada.
E, para sua própria surpresa, curvou-se depressa e se levantou mais rápido ainda, girando para a porta de saída.
! — Choi grunhiu, pensando em agarrá-la pelos pulsos, sacudi-la, fazer de tudo para que ela entendesse o que estava acontecendo. Era como jogar bilhões de wons pela janela, e isso era intolerável só de imaginar — , qual é…
A mulher não tratou de olhar para trás e enxergar a última expressão de Choi. Sabia que ele estava afoito porque não conseguiria fazer nada sozinho. Estava atônito por perder a responsável pelo seu sucesso e, assim, lá se foram os planos para saber dar um jeito nos resultados sozinho.
não soltou a respiração até andar a passos largos para o céu nublado, segurando tudo que podia segurar. Quando bateu a porta do carro, foi como se finalmente desatasse uma cinta no abdômen. Os dedos apertaram o volante com força, a visão embaçou um pouco e tudo que queria fazer era ir pra bem longe daquele lugar, ainda que sentisse que merecia se despedir dele com mais dignidade.
Mas não dava. Ela estava quebrada, exausta de si mesma e de uma semana inteira onde foi apontada como a maioral enquanto por dentro se sentia a maior filha da puta do que todos aqueles criminosos juntos.
Tampouco importava aquele sucesso, os resultados, o dinheiro e tudo isso. Ela não tinha se tornado uma policial por causa dessas besteiras. Tinha se tornado porque amava a verdade e a justiça. E, no momento em que se perdeu no meio disso tudo, envolvendo-se com a mentira e sentindo o peito corroer por colocar algemas em alguém que merecia, nada mais fazia sentido. O propósito tinha se perdido, ou se desviado para muito, muito longe.
Apesar de nunca ter chegado a dizer isso, também se apaixonou por . E se odiava por isso. Odiava não entender porquê sentia o que sentia. Odiava comemorar sua ruína, odiava se preocupar com seu bem-estar em um lugar onde ninguém se importava com nada e odiava pensar que faria alguma coisa, alguma mísera coisa, para que pudesse vê-lo de novo.
Que merda. O que seu pai diria sobre isso?
não era boa em manter segredos, nunca foi. Os sapos engolidos durante a semana lutaram muito para não serem despejados de uma vez na cara do senhor Choi, que era o felizardo da situação enquanto a outra autora não conseguia esboçar um sorriso sequer. As outras pessoas não entendiam, e estava tudo bem. Não teriam que lidar mais com isso. E nem ela.
Girando a chave na ignição, ela olhou para a entrada do prédio com uma dor brusca no peito, mas com um pouco mais de paz. Tinha dado uma rasteira em si mesma e não fazia ideia do que faria a partir de agora, mas tinha um ponto de partida: recuperar o propósito — o que restou dele. Ou, simplesmente, aprender a viver sem isso e começar a ser . Apenas .
Uma mulher que cometia erros banais e não era tão justa quanto pensava que era.


Licitação

As paredes de concreto pareciam absorver todo o frio do lado de fora.
entrou primeiro, resmungando abertamente sobre a falta de cuidado com seus cotovelos, que eram agarrados sem dó pelos homens fardados enquanto seus pulsos eram atados por algemas que pareciam propositalmente apertadas. Especialmente para ele, o maior ladrão de bancos de Seul, um animal raivoso que agora estava devidamente enjaulado.
— Seus pedaços de merda — ele resmungou quando sentiu outra pressão, fazendo uma careta para ninguém em especial — Já falei que a porra das algemas são o suficiente. Estão com tanto medo assim de serem atacados por elas?
A única reação da dupla uniformizada foi reforçar os dedos sobre a pele do criminoso, fazendo-o resmungar ainda mais enquanto curvavam em um corredor largo e sem janelas, que descia eternamente sem qualquer impressão disso.
Com mais algumas voltas, começaria a finalmente pensar que aqueles idiotas estavam andando em círculos para confundi-lo, para que não se lembrasse do local, como se fosse possível guardar na memória tantas paredes iguais. Em alguns minutos, finalmente, chegaram a uma única porta no fim de um corredor estreito que, agora sim, parecia minimamente íngreme, o que era estranho porque, da última vez que se lembrava, estava preso em uma cela no alto do prédio.
E, em uma concepção generalista, quem sai de tão alto para tão baixo, não tinha algo legal para contar depois.
— Onde estamos? — perguntou automaticamente ao ver um deles colocar uma palma da mão em frente a uma caixa retangular grudada à parede ao lado da porta. O laser vermelho escaneou a superfície exibida e, em um segundo, tornou-se verde ao passo em que soou o barulho da tranca sendo aberta. foi, novamente, arrastado na direção dela — Ei, calma, calma, somos todos amigos, o que significa…
Ele parou ao se ver dentro da sala branca. Antes que visse o que realmente viu, seus dedos tremeram levemente com a absurda ideia de morrer de repente. Não que ele acreditasse antes que alguém ali dentro tinha algum interesse remoto na sua vida, mas bem, ele era , o ladrão de bancos do ônibus escolar, que já dera um prejuízo nada raso àquela cidade e que, com certeza, seria entregue aos carniceiros do governo como um pedaço de frango frito.
Merda!, foi a primeira coisa que pensou quando teve sua pergunta ignorada e os pés puxados para além do limiar da porta. Acabou, acabou tudo. Vou morrer. Vou morrer pela porra de policiais, vou morrer de um jeito humilhante, morrer do jeito que disse a que não queria morrer.
.
Foi só pensar no nome de seu parceiro que sua imagem apareceu bem ali, trajada de serenidade, parecida com ele na questão dos pulsos e tornozelos atados, exibindo sua melhor feição de contentamento. Com as mãos juntas em cima da mesa grande e redonda, olhava para a planície do tampo como se fosse uma máquina em estado de stand-by.
Ele voltou o queixo para cima com o barulho dos resmungos e dos passos arrastados de , que emitiam a balbúrdia metálica de um prisioneiro nada comum.
Quando os dois se olharam, ainda levaram um tempo até soltarem a respiração e abrirem um sorriso sacana.
— Desgraçado — foi a forma que achou de cumprimentar o amigo sem mais formalidades. A única coisa que pensou era: se ele está aqui, quer dizer que vão nos matar juntos? E morrer com parecia ser mil vezes melhor do que morrer sozinho.
Ele teve o corpo arrastado para perto do garoto, sendo jogado na cadeira ao lado com brutalidade, e os guardas rapidamente se retiraram para as portas. Haviam outros dois na extremidade contrária da sala, provavelmente os que trouxeram , o que deve ter sido uma perfeita caminhada silenciosa e tediosa.
Quando varreu os olhos pelo parceiro, viu que seus músculos estavam rígidos sob a manga longa do uniforme penitenciário, de forma sutil e quase imperceptível.
— Bom te ver — murmurou ele, recostando-se na cadeira para olhar para a frente, sentindo-se instantaneamente mais aliviado por não ser o único com medo.
— Como você está? — perguntou em voz branda. não estava vendo, mas os olhos do garoto passeavam discretamente por cada canto da parede.
O outro deu de ombros, indiferente.
— Bem. Entediado. Mas é o que mostram nos filmes, não é? Um cara na solitária não tem muita opção a não ser conversar sozinho — ele deu uma risada seca — Que humilhante.
não respondeu. Apenas encarou o amigo pelo canto do olho, reforçando a informação não verbalizada: estou na mesma. Estou bem.
Ou, como diziam seus dedos pressionados no metal, talvez estivesse a um passo de mudar esse status.
observou novamente os dois pares de guardas estatelados um do lado do outro. Estavam parados a uma distância segura dos dois, sem sequer encará-los diretamente nos olhos, mas o rapaz sabia que estavam escutando. Escutando apenas, sem demonstrar o mínimo mover de sobrancelhas.
Uma sala esquálida e mórbida sem quaisquer objetos além daquela mesa e guardas sem qualquer preocupação de vê-los tentar fugir ou não já adiantava o possível nível da coisa.
Merda.
— Acha que vão nos matar? — fez a pergunta com o amargo na boca. Engoliu em seco, encarando concentradamente a parede branca à frente.
ouviu a pergunta com pesar, bateu em seus ouvidos e depois se chocou contra a parede, rebobinando como se a voz de tivesse saído em eco. Aquela era apenas uma de suas teorias quando foi arrancado da cela mais cedo, e se tornou a única alternativa quando entrou naquela caixa branca e gelada.
E ele odiava em como sua mente estava tão vazia quanto aquela sala. Nenhum plano vinha. Seus olhos não captavam nenhuma abertura. Pela primeira vez na vida, podia-se dizer que não tinha nenhum plano de fuga.
E assim, seus dedos se contorciam ainda mais.
— Morrer não é o problema — balbuciou, com a voz tão baixa que apenas era capaz de ouvir — Mas não quero morrer na mão desses imbecis.
E percebeu que pensava a mesma coisa.
Com a tensão espalhada pelo corpo, ele soltou mais uma risada seca pelo nariz, subindo os cantos da boca para um sorriso sem mostrar os dentes.
— Será que pelo menos comprariam umas batatas fritas pra gente se despedir? Como fazem com aqueles caras no corredor da morte.
— Seu último dia na Terra e queria comer batata frita? — revirou os olhos, recostando-se para trás.
— Batatas fritas e prostitutas. Mas reconheço que pode ser um lance bem caro pra eles.
— Que poético — suspirou, segurando uma risada. virou a cabeça para encará-lo.
— E você? O que queria no seu último dia?
Foi quando cravou os olhos nos próprios pés embaixo da mesa e virou o rosto devagar para o amigo.
A resposta estava bem ali naquele olhar desamparado, que não aguentou fitar por muito tempo.
Maldita paixão. Era lógico que tudo que aquele bosta queria era ver aquela mulher mais uma vez, mesmo que fosse ela a estar com os dedos fincados em seu braço enquanto o arrastava para aquela sala da morte. Que patético.
Não dava pra sentir orgulho dessa versão de apaixonado, mas era inevitável que não tivesse certa empatia.
Outro ruído além de suas respirações veio direto da única porta do lugar. e enrijeceram a postura imediatamente ao ver mais um par de guardas entrando no local, desta vez trazendo ninguém mais, ninguém menos do que .
Ele estava mais pálido do que quando o conheceram naquele primeiro dia, e certamente também exibia uma cor meio verde de náusea, que se dissipou um pouco quando viu os outros dois na mesma mesa a que foi arrastado. Bom, ótimo. Além de morrer pelos imbecis da polícia, morreriam ao lado do paspalho.
— Pessoal! — , em contrapartida, parecia bem feliz ao ver os dois, mesmo que estivesse explicitamente com os dedos trêmulos — O que está havendo?
olhou para de soslaio, e em seguida para com uma expressão de neutralidade absoluta. Era como se dissesse claramente: eu não sei, e isso é bem preocupante. O mísero sorriso que tinha aberto pelo reencontro foi se fechando aos poucos.
Bem, ele não queria morrer, seja de qual forma fosse. Morrer era o fim de tudo e ainda tinha muito o que viver.
Antes que dissesse qualquer outra coisa, mais um barulho vindo da mesma direção da entrada. Desta vez, entrou por ela, aglomerando mais uma dupla de guardas e com o maxilar cerrado de raiva. Com certeza, deve ter imitado a mesma postura de e feito perguntas durante todo o percurso.
Perguntas muito irritadas, como mostrava sua expressão.
— Ora, ora — ele disse ao se sentar, encarando o rosto dos outros companheiros — Se não são minhas cartas na manga que foram detonadas.
— Se não é o grande motivo de toda essa merda… — arqueou o corpo para a frente, falando entre os dentes.
— Para com isso. Não aumenta o ego dele — estalou a língua, murmurando com tédio para — Fizemos isso pelos diamantes.
O ladrão voltou o corpo para trás devagar, sustentando o olhar desafiador de , que o provocava a continuar, mesmo que tais atitudes tomadas de cabeça quente pudessem ser extremamente maléficas para a situação em que já se encontravam.
Mas, bem, não é como se tivessem tido a oportunidade de conversar depois de toda aquela confusão.
— Então você é o ainda mantinha o olhar no lugar, encarando o homem de cabelos loiros com os lábios franzidos — Quando foi com vocês, a situação toda me agradava. Parecia a chance perfeita de finalmente sair daqui. Mas parece que vocês são menos do que se esperava, não é mesmo?
virou o rosto rápido em sua direção.
! — trincou os dentes em repreensão. Sem mais “chefe” ou “senhor”, porque agora isso não parecia mais fazer sentido — Isso foi muito babaca.
— Vocês se deram tão bem assim pra você sair exigindo respeito pelos ladrões?
— Eu não estou exigi…
— Você nunca foi um bom indicador pra se avaliar pessoas, .
falou com mais uma dose de amargo na boca, deixando o ex capataz com uma careta de raiva, mas não durou por muito tempo. Antes que pudesse retrucar, as portas trouxeram mais uma leva de prisioneiros, e e tiveram uma diferença de tempo de pelo menos 8 segundos entre um e outro para se reunirem na entrada.
— Senhores cavalheiros, já perdi as contas de quantas vezes falei pra não me tocarem — a voz de era doce e esguia. Seu sorriso venenoso indicava que tinha classe, mas que também era doentio — Não sabem como seria divertido usar essas coisinhas em vocês?
revirou os olhos, deixando-se ser guiado até a mesa, exibindo nada além de nada ao ver os demais colegas sentados no mesmo lugar.
— Não me diga que vamos todos ficar na mesma cela — ao contrário de , o tom de era seco e direto, nada tímido.
— Isso não seria bom — engoliu em seco. A mera presença da dupla de assassinos ainda o causava certo calafrio.
— O bolão ainda está rolando, queridos S e M — provocou, olhando de um para outro, sentados bem à sua frente — Na pior das hipóteses, vão nos colocar numa salinha pequena e fazerem um tributo a Adolf Hitler e seus gases.
encarou com as sobrancelhas totalmente arqueadas em pavor, enquanto a díade assassina não esboçou reação alguma. Morrer nunca era o medo principal de quem matava, ainda mais quando gostavam disso. suspirou pesadamente, como se dissesse “mais uma quinta-feira”.
— Vocês são malucos? — , em contrapartida, parecia ligeiramente desacreditado — Eles não vão nos matar.
— Eles te disseram isso? — perguntou .
— Não, mas não faz sentido. Por que fariam isso? Não armamos um ataque terrorista ou coisa parecida.
— Montar uma gangue pra resgatar o dono da Odium parece ser coisa grande o bastante.
— Por favor, não diga a palavra gangue.
— Matilha funciona melhor? — zombou.
— Não somos tão íntimos.
se preparou para retrucar — ou apenas rir —, mas falou na frente:
— Ficar com vocês em uma cela é pior do que qualquer plano de morte que aqueles babacas tenham.
O comentário pairou no ar por alguns segundos até que a porta se abrisse novamente.
Cada um ali dentro esperava por alguém diferente, porém, no fundo, todos acreditavam na possível surpresa de ver , assim como e sua esperança. Em particular, ele tinha os motivos próprios de querer vê-la novamente, mesmo que pudesse ser humilhante estar diante dela naquela posição, tendo-a lhe encarando com a decepção velada nos olhos pelo nojo e repugnação. Sabia que jamais poderia mensurar como ela se sentiu ao final de tudo, após o resultado de toda a verdade, mas jamais deixaria de reconhecer a própria mentira e o direito dela de sentir todas as coisas negativas possíveis perante a ele.
Porém, não tinha como a decepção dele ser menor que a dos outros ao ver quem entrou logo após os três agentes visivelmente de patentes baixas, escoltando a grande figura por trás de tudo: o Ministro do Interior e Segurança, Lee Chang-Mo. Logo atrás dele, Park Yun-Oh, o Comissário Geral da Agência Nacional de Polícia, entrou sendo escoltado por mais dois agentes, que, ao entrarem, fecharam a porta e postaram-se ali, parados.
— Uh, que decepção. Sua princesa desistiu de você — zombou de sem qualquer sutileza, em um volume médio de voz, ao vê-lo abaixar a cabeça quando a porta foi fechada. — É, eu sei. Decepcionante estar numa sala somente com homens.
— Eu diria repugnante. — interveio, tomando a atenção.
— Tendo você como companhia, eu concordo.
Todos olharam para e seu tom sempre objetivo. O sorrisinho de , porém, fez com que desviassem o olhar. Era um tanto macabro a mesma feição doentia que ele carregava embaixo de tanta beleza e serenidade.
— Vocês já terminaram? — Max, o diretor da penitenciária, perguntou totalmente impaciente, se fazendo presente no meio dos outros.
— Ah, você está aí… Tão relevante que nem notei. Eu faria uma reverência educada pra você, mas sabe… Com os braços algemados eu posso perder o equilíbrio. — encenou com cinismo. — E isso tomaria muito tempo desse evento. Afinal, qual o motivo disso aqui mesmo?
Como uma resposta assertiva, a pasta embaixo dos braços de Chang-Mo foi colocada com força em cima da mesa. Na verdade, o ministro bateu ela contra a superfície.
— Certo, uma rodada de histórias. — resmungou.
— Não sei se o senhor sabe, mas com as mãos presas não tem como ler…
se encolheu no lugar com a encarada que recebeu tanto do ministro quanto do comissário.
— Essa é a pena de vocês. A máxima para cada um. — Park começou. — O juiz irá dar o veredito amanhã em TV nacional.
— Uau, somos celebridades. — riu brevemente, cessando tão rápido quanto começou para encarar o homem. — Corta essa entrada. O que vocês querem?
— O que eles vão querer de você? Da gente? Olha sua situação, cara — reclamando com um revirar de olhos, bufou impaciente.
— Você é tão burro assim mesmo ou é um personagem?
— Cara, mas você é muito irritante. Puta merda, a sua sorte é que eu tô impossibilitado de socar a sua cara, que é uma coisa que eu tô querendo fazer há dias.
— Nem se estivesse com as mãos livres você conseguiria. Se nem o assassino ali conseguiu a minha cabeça, um mané como você conseguiria? — O tom de desprezo de arrancou uma gargalhada vazia de .
— Você se acha a última gota de água no universo, não é?
, extremamente irritado, falou por cima, virando o corpo na cadeira para ficar na direção de , sequer notando o equilíbrio de para se levantar e ir até a pasta, o que foi repetido por também.
Em plano de fundo: continuava encarando o vazio com a mesma feição e , entediado e assustado, tentava se concentrar em tudo o que sua visão alcançava, inclusive a possível existência de uma única saída. Podia até morrer ali, não ligaria, mas queria pelo menos o mínimo de dignidade e poder ter uma morte tranquila, sem os berros e palavrões do ladrão – que eram repetitivos para desde que haviam sido pegos –, aceitaria uma morte tranquila para ir em paz, até arriscaria pedir incensos e algum mantra para amenizar a perturbação que tinha sido viver no meio daquele grupo.
disse algo que ele não conseguiu captar, mas a resposta de voltou tão afiada como sempre.
— Qual é, empresário da Disney falida… só não arrancou a sua cabeça porque ele não quis.
E antes que a incontável tréplica viesse, falou primeiro:
— Dá pra vocês calarem a boca?
— Ah, obrigado pelo chamado de silêncio. — suspirou, tentando se levantar sem cair.
Quando ele se colocou ao lado de , seus olhos bateram na folha solta e espalhada com seu nome em caixa alta e destacado com a fonte mais grossa. Uma pena de 78 anos. Ele não sabia se conseguiria viver para tudo isso.
Do lado dele, também viu a própria folha, 95 anos e diversos crimes em sua conta.
, olhando para , recebeu a negativa do amigo, mas olhou para o seu nome mesmo assim, engolindo a saliva amarga ao ver os 99 anos que lhe foram direcionados.
— A Unidade de Operações especiais tem uma proposta a vocês. — O ministro tomou a atenção deles.
— É claro que tem. — disse baixo com um riso nasalado, agora ele não tinha mais o sorriso nos lábios, e ainda era o único sentado, parecendo desinteressado.
— E o que a unidade especializada em operações perigosas tem a nos oferecer? — foi o único a não virar o rosto para o companheiro. — Uma missão suicida?
— Querem nos usar numa operação que seus homens não tem chances de voltar para casa? — salientou, ficando em sua postura séria.
— Graças a vocês e o esquema falho, chegamos à Matt Simons e temos tudo o que precisamos agora para pegar ele e — Chang-Mo se virou para o comissário, no exato momento que ele tirou debaixo do braço a outra pasta, tirando dela uma foto que estava um rosto feminino. De soslaio, e se olharam. — ela.
— A proposta é bem simples. Vocês não podem ser absolvidos, isso não é nada palpável, mas conseguimos reduzir para 10 anos de reclusão e depois, sem conhecimento de ninguém, garantimos passaportes novos com tudo o que precisam para recomeçar fora daqui, em outro continente. — O comissário explicou, por fim.
— O motivo não é porque corremos riscos. É porque ninguém conhece melhor a mente de um fantasma do que um outro fantasma. — O olhar do ministro recaiu primeiro em e depois em . — E ninguém jamais vai saber sobre Maya Cafrey sem ser a única pessoa que esteve com ela desde o início.
— Estamos em cima dela há anos, a interpol também faz parte do esquema. Então agora temos tudo a nosso favor e esse leilão é nossa chance de deter não só Simons, mas a maior estelionatária e ladra de jóias em atividade.
riu extremamente alto. Mas uma risada que veio de fundo, bem fundo, levando , e junto, um a um, com diferença de segundos.
— Sério, só pode ser uma piada de muito mal gosto — disse, olhando para as duas autoridades à sua frente. — Não? Não é piada? — foi cessando a risada aos poucos, com os olhos lacrimejando. — Então você está me dizendo que a mesma pessoa que serviu de motivo pra me enfiar nessa merda é a pessoa que vai garantir a redução da minha pena de uma vida inteira e me dar a chance de recomeçar em outro continente?
O ministro e o comissário trocaram olhares, confusos.
— Sério, eu não sei se quero socar a sua cara agora, , e dizer que prefiro a morte ou fazer esse caralho de operação e daqui dez anos passar com um carro por cima de você. — encarou .
Com um clima nada ameno na tensão entre e , os outros três continuaram a rirem da ironia de toda a situação, só parando quando, surpresos, colocou uma mão no ombro de e a outra na de , ficando entre os dois e assustando a ambos, assim como todo o resto dali de de dentro, que não conseguiam entender como ele havia conseguido se livrar as algemas – o que resultou, é claro, em armas sendo puxadas dos coldres e apontadas para eles.
— Eu tenho uma sugestão melhor — disse, abrindo um sorriso de causar arrepios em e tédio em . — Podemos aceitar a proposta e bancar os power rangers da nova era, aí depois acertamos contas com a Cafrey. Há muito tempo que eu quero ver de pertinho aquele cérebro miraculoso e desvendar se é mesmo tudo isso que parece ser. O que me dizem? — finalizou, olhando para os outros e sendo, agora, o único a rir com gosto do revés.
respondeu com o corpo, porque ele sabia muito bem que não era um comentário qualquer, sem objetivo e fundo real. não brincava, esse era o problema, ele era bem verdadeiro. Mas moveu a perna para que ele ficasse quieto no lugar e negou com a cabeça em um aviso silencioso para ignorar. A troca de olhares de ambos foi interrompida por , que perguntava a eles o que deveriam fazer.
Apenas um aceno positivo de cada um valeu.
— Nós aceitamos. — A resposta veio de . — O que será da Cafrey depois não importa e isso será documentado e assinado. Queremos provas de que estão falando a verdade.
Ninguém do sexteto refutou, eles sabiam que a exigência de era o primeiro passo para a liberdade.
Liberdade esta que viria mais cedo do que 10 anos.


FIM!


Nota da autora: Sem nota.


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