Abyssus Memoriae


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Última atualização: fevereiro/2024

Capítulo 1


Seus dedos se entrelaçam aos meus, apertando minhas mãos ainda mais sobre o colchão. Minhas pálpebras estão pesadas, então as fecho brevemente. Consigo sentir quando ele se afunda dentro de mim mais uma vez e entrelaço minhas pernas no seu quadril para que vá mais fundo. Ele gosta quando faço isso.
Começo a gemer com a voz baixa e levanto um pouco a cabeça, apenas o suficiente para alcançar seu ombro e deixar uma mordida na região. Ele para os movimentos com uma única estocada, se enfiando por completo em minha boceta, e leva a mão direita até meu pescoço, mas não aperta. espera até que eu abra os olhos, só então ele pressiona os dedos e passa a me penetrar com mais força. Se arrancando por inteiro apenas para meter novamente. Consigo sentir a dor cada vez que vai mais fundo, mas é isso que eu tanto gosto no nosso sexo. A dor.
Gosto da dor porque quando ele está dentro de mim, eu me lembro dela. A dor faz com que eu esqueça um pouco disso.
— Está com medo de me machucar? — provoco, rebolando contra o seu pau, que permanece duro e firme dentro de mim. A mão dele agarra meu seio e ele belisca o mamilo enrijecido.
— Cale a boca, — ele pede, antes de deixar um tapa em meu rosto, mas é leve. Mais leve do que eu gostaria. me vira, coloca-me de bruços e aperta meu quadril com tanta força que preciso gemer para aliviar a dor. Os movimentos se tornam frenéticos e consigo sentir a ardência em minha pele com os tapas que ele começa a distribuir sobre minha bunda. — Porra! — ele geme, estocando mais algumas vezes antes de gozar.
Consigo ouvir sua respiração quente enquanto ele enterra seu rosto em meu cabelo. Ele demora alguns segundos assim, mas logo se levanta, saindo de dentro de mim. Quando está em pé, ele olha para o meu corpo com um sorriso presunçoso nos lábios.
— Você é tão gostosa.
Sorrio de lado porque não consigo falar mais nada. Nosso sexo é bom, tem dias que é muito bom, mas no geral nunca foi ruim. Me sento na cama, ainda despida, e procuro pelo chão a minha calcinha e o meu sutiã; quando acho, visto as peças.
A culpa começa a se fazer presente enquanto observo a janela do prédio em que meu apartamento está localizado. Ele se aproxima, encostando os seus lábios em meus ombros numa tentativa de suavizar a forma que eu sentia depois que gozávamos.
— Como você está se sentindo? — Sua voz é suave, mas consigo sentir a preocupação iminente.
— Culpada, mas estranhamente confortável. — Minha confissão era carregada de contradições. Eu me perdia nos meus próprios sentimentos porque, de certa forma, queria deixar confortável. Sabia que também não era fácil para ele.
Ele precisou abrir mão de mais coisas que eu para estar aqui. E ele me ama. Eu estaria mentindo se dissesse que não o amo também.
— E o exame de gravidez?
— Ainda não fiz — murmuro. Ele me olha por alguns segundos e, embora eu não corresponda, consigo ver a frustração em seu rosto pela minha visão periférica.
— Estamos nos afundando em um abismo, não é? — ele resmunga, sua expressão refletia uma mistura de desejo e tormento. Meus olhos encontram os dele por um momento. As palavras ficaram presas em minha garganta com uma facilidade impressionante, presas na culpa e no desejo de continuar compartilhando a minha cama com ele. — O que faremos se o exame confirmar?
— Eu não sei, não sei o que fazer — admito com um sorriso torto repleto de incerteza. Eu não queria ser mãe, não agora, não assim, não com o marido da minha falecida irmã. — Mas eu sei como será. Condenação, olhares de decepção. Você sabe como meus pais são, foi genro deles por quase dez anos.
Havia três anos que tinha partido em um acidente de carro. Nos últimos seis meses, eu havia compartilhado mais do que deveria com o homem que ainda era legalmente considerado o marido dela. E, agora, paira sobre nós a angustiante possibilidade de eu estar compartilhando não apenas momentos ou a cama, mas também um filho dele.
Não lembro exatamente o dia em que eu e começamos a nos relacionar, mas lembro como começou. Inicialmente nossas conversas eram uma tentativa de preservar a memória dela. Trocávamos histórias, compartilhávamos lembranças e buscávamos algum consolo na ausência dela. Ele contava algo sobre a vida adulta dela e eu trazia algo sobre a infância. Foi assim por alguns meses. À medida que os dias se desdobravam, essas conversas se tornaram mais frequentes, mais profundas e mais pessoais também. O que começou como uma muleta emocional para enfrentar a dor transformou-se numa amizade que, sem que eu percebesse, se tornou um refúgio constante.
Após cerca de três meses de trocas diárias, percebi que não apenas buscava consolo nas palavras de , mas ansiava por sua presença. A proximidade que desenvolvemos foi uma resposta instintiva ao desejo comum de amenizar a dor da perda. Cada palavra compartilhada, cada abraço trocado, era uma tentativa de preencher o buraco deixado pela partida dela.
Tonou-se evidente que estávamos construindo mais do que apenas uma amizade. Lentamente, percebemos que nossos sentimentos ultrapassavam os limites do que inicialmente seriam apenas um conforto para o luto. Decidimos nos afastar, quase que de forma inconsciente, mas a resistência que mantínhamos aos encontros começou a ceder. O calor reconfortante da companhia um do outro tornou-se irresistível.
Foi dois anos depois, em uma noite em que o silêncio pesava mais do que as palavras que compartilhamos a mesma cama pela primeira vez. De alguma forma torta, o conforto mútuo que encontrávamos nos braços um do outro parecia ser a única resposta para a dor que carregávamos.
Eu já me sentia mal o suficiente por ainda estar com o marido dela, mas estar grávida dele parecia ser ainda pior. Seria como trair com o dobro de intensidade, e isso me sufocava. Cheguei a me perguntar se o descuido não havia sido proposital, uma maneira inconsciente de buscar um novo começo, mas a dor que isso que causava me deu a certeza de que não. Nem de forma inconsciente eu desejaria ter o filho com que sempre quis.
— Se você estiver grávida, teremos que lidar com isso juntos, e talvez seja hora de pararmos de esconder o que temos. Já devíamos ter colocado tudo às claras há muito tempo. Esconder nossos sentimentos e escolhas foi como adiar o inevitável. Não podemos mais adiar isso. Seja qual for o resultado do exame, não podemos continuar negando o que sentimos um pelo outro.
— Eu sei que não deveríamos ter escondido isso por tanto tempo, mas... — minhas palavras são interrompidas por um suspiro pesado, um reconhecimento tardio de que a verdade, por mais dolorosa, agora é inevitável. permanece em silêncio, seus olhos buscando os meus como se esperasse uma resposta que eu mesma não tinha certeza de poder fornecer.
— Nós enfrentaremos isso juntos, não importa o que aconteça. Não podemos mais esconder a verdade, nem do mundo, nem dos seus pais e nem de nós mesmos.
Um suspiro profundo escapa de mim, vestindo-me na mesma roupa que já carregava nossos segredos. Ele permanece ali, olhando-me com compreensão e preocupação. Nossos olhares se encontram, revelando o nó apertado na minha garganta.
— Vou dar uma volta, só para respirar um pouco — digo baixinho, precisando de um breve alívio das expectativas que nos envolviam.
se aproxima e beija minha testa com carinho, então sua mão repousa na minha barriga.
— Vai dar certo, você vai ver — sua voz transmite tranquilidade, contrastando com a confusão que eu sentia.
Um nó aperta ainda mais minha garganta. Quero acreditar nele, mas o futuro é incerto demais para eu conseguir achar que as coisas ficariam realmente bem. Ele dá um selinho leve nos meus lábios, misturando consolo com despedida.

O elevador subia silenciosamente, como se respeitasse a carga emocional que eu carregava. Ao chegar ao terraço, sou saudada pelas luzes cintilantes da cidade, um espetáculo noturno que parecia alheio aos conflitos que fervilhavam dentro de mim. Caminho em direção ao parapeito e me sento ali mesmo. A brisa noturna parece me envolver em um abraço frágil, mas isso não amenizava nada dos sentimentos que me afogavam dentro de mim mesma. A dor da perda da minha irmã, o peso da culpa por buscar consolo nos braços do marido dela, as lembranças de momentos que poderiam ter sido diferentes... Todos esses sentimentos faziam com que eu estivesse mais disposta a me jogar de lá de cima.
A cidade se estende diante de mim e eu me movo mais para a ponta do parapeito, desafiando não apenas a gravidade, mas a própria morte. À beira do prédio, quase consigo ouvir o convite à queda. Me sinto suspensa entre as luzes da cidade e as sombras da minha própria alma. A morte tinha levado por muito menos, seria fácil me levar agora também. Ela podia me pegar se quisesse, eu queria que pegasse.
Foi então que uma voz masculina, delicada como um sussurro, cortou o silêncio da noite:
— Não faça isso.
O impacto das palavras me atinge de imediato. Meus dedos escorregam no parapeito e, por um momento, o abismo parece mais próximo do que nunca. O instinto de sobrevivência toma conta de mim, e minhas mãos se agarram ao metal frio.
O coração martela no peito enquanto eu me viro para ver quem me impedira de cruzar a linha tênue entre a vida e o desconhecido. Uma figura masculina, delineada apenas pelas sombras da noite, está ali, seu olhar está desconfortavelmente fixo em mim.
— Desculpe assustá-la. Eu só queria ajudar — sua voz é calma, mas ainda assim, carregada de preocupação.
Meus olhos, ainda dilatados pelo susto, encontram os dele. Na penumbra, seus traços físicos permanecem indistintos, mas o cuidado em suas palavras é palpável. O abismo, antes tão convidativo, agora recua diante da presença do desconhecido.
— Quem é você? — sussurro, minha voz embargada pela mistura de medo e curiosidade.
Ele dá um passo à frente, emergindo das sombras. O desconhecido, que se tornara meu inesperado guardião na beira do precipício, parece tão perdido quanto eu.
— Não precisa agradecer — ele dá um passo mais próximo com a expressão suavizando-se em um sorriso. — Eu só não podia ficar aí e ver alguém se machucar.
O constrangimento se espalha por mim como um arrepio. Murmuro um agradecimento, sem saber exatamente como responder.
— Sei que você iria, mesmo que diga o contrário — ele ri suavemente, como se a leveza de sua risada pudesse dissipar as sombras que pairavam sobre nós.
Aproveito sua fala para observá-lo. Ele tem o cabelo escuro e bagunçado de forma casual, um rosto com traços fortes, e não devia ter mais que trinta anos. Os olhos são intensos, mas o sorriso é leve. O corpo está em forma, numa mistura de elegância e descontração. E ele é alto, bastante alto, mas não de um jeito assustador. A luz das estrelas destaca tudo, e cada detalhe dele parece magnético. O jeito como se move é suave, meio que chamando atenção sem esforço. Ele está ali como se fosse esculpido pela própria noite.
Ele estende a mão, um gesto que transmite mais compreensão do que as palavras poderiam expressar. Aceito a ajuda, desço do parapeito e sento-me ao seu lado no chão frio do terraço. Nossas costas encontram o suporte da parede. Enquanto nos acomodamos, ele quebra o silêncio:
— Por que faria isso?
Engulo em seco antes de responder, as palavras saindo como um sussurro frágil.
— Acho que, às vezes, o peso das coisas é demais para suportar.
A cidade lá embaixo continua sua agitação noturna enquanto eu me acomodo ao lado dele. A brisa suave traz consigo uma curiosidade compartilhada, e o silêncio é quebrado por suas palavras:
— Você parecia estar brincando com a morte — ele murmura, e posso detectar certo divertimento em sua voz. Dou de ombros, como se aquela fosse a coisa mais natural do mundo. Talvez, de alguma forma, fosse.
— Talvez ela mereça alguém que escolha por ela, às vezes — respondo, tentando expressar algo que mal compreendo por completo.
Seus olhos, intensos, encontram os meus em um momento de curiosidade silenciosa.
— Ela? A morte não pode ser homem? — ele questiona, o tom descontraído da pergunta indicando uma linha de pensamento que eu ainda não havia considerado.
— Acho que sempre pensei nela como algo mais suave, mais feminino. Como se a morte tivesse o poder de criar um tipo diferente de renascimento — minha resposta sai quase automaticamente, uma reflexão que talvez nunca tivesse compartilhado antes. — Claramente estava errada sobre a suavidade ou o renascimento. Ele pondera minhas palavras, seus olhos escuros refletem compreensão.
— Às vezes, acho que as pessoas vêem a morte como um fim, mas e se for só uma mudança?
— Mudança ou não, não consigo deixar de sentir raiva — confesso, minha voz carregada de uma emoção que muitas vezes tento esconder. Eu me permitia estar, falar e demonstrar tristeza, mas até aquele momento não tinha percebido a raiva que eu tinha acumulada.
Ele me olha com seriedade, como se compreendesse a dor que eu carregava, mesmo eu mal sabendo como lidar.
— Acho que é normal sentir raiva quando perdemos alguém que amamos. — ele responde com empatia, mas há algo mais em seus olhos.
— Você parece ter uma relação diferente com a morte — comento, curiosa sobre o que poderia motivar alguém a agir como meu improvável salvador naquela noite.
Ele sorri de maneira misteriosa, como se estivesse prestes a compartilhar um segredo profundo.
— Talvez porque eu tenha visto de perto como ela pode ser gentil. Às vezes é só um suspiro, uma transição suave para algo que não entendemos completamente.
— É difícil entender isso quando você perde alguém — admito, olhando para as estrelas como se buscasse respostas no vasto céu noturno.
O silêncio paira entre nós, as palavras ditas já são suficientes para preencher o espaço.
— Às vezes, a raiva nos ajuda a lidar com o vazio deixado pela perda — ele quebra o silêncio. Sua voz não é reflexiva, mas há um certo peso em seu tom.
Reflito sobre suas palavras, buscando algum consolo na ideia de que a raiva poderia ser uma ferramenta para lidar com o vazio. No entanto, a complexidade de minhas próprias emoções permanece como um quebra-cabeça não resolvido.
— Acho que todos tentamos encontrar maneiras de lidar com a dor, mesmo que seja difícil entender completamente — ele continua, como se estivesse compartilhando não apenas suas palavras, mas também um pedaço de sua própria jornada. Sinto a ironia daquilo me atingir.
— Dormir com o marido da minha irmã morta e, quem sabe, estar grávida dele é uma das formas de lidar com a dor, é? — rio com uma ironia que mal consegue esconder o tom depreciativo. A amargura se mistura às palavras. Mais uma vez a culpa aumenta a dor.
Ele permanece em silêncio, talvez reconhecendo a autenticidade crua da minha resposta.
— Fazemos escolhas questionáveis quando a dor parece insuportável — ele finalmente responde. Olho para ele, buscando algum sinal de julgamento em seu olhar. No entanto, encontro apenas uma compaixão silenciosa. — Você não está grávida — ele diz, sua voz soando com uma certeza que desafiava a incerteza que eu carregava.
Encolho-me diante da afirmação, uma mistura de alívio e desconforto se entrelaçando dentro de mim. O fato de ele afirmar com tanta convicção me traz uma certa esperança de que aquilo fosse verdade. Eu desejava que fosse.
— Como você pode ter tanta certeza? — pergunto com minha voz carregada de curiosidade e uma ponta de vulnerabilidade. Ele ri, um riso divertido que reverbera na noite.
— Digamos que eu tenha uma visão mais clara do que a maioria das pessoas. — Olho-o com certo desdém e ele dá de ombros, mantendo um sorriso torto. — Tudo bem, é só intuição. Além disso, você tem aquela expressão que já passou por testes de gravidez antes.
— Bom, somente uma vez, e nunca fiz um teste de gravidez do meu cunhado antes. Normalmente, costumo me limitar a ex-namorados.
Ele ri novamente, como se estivesse apreciando a minha abordagem sarcástica
— Você quer estar grávida? — ele perguntou, seus olhos procurando os meus em busca de uma resposta sincera. Penso um pouco, ponderando minha própria resposta, porque nunca pensei seriamente nisso.
— Já quis ser mãe. Já imaginei isso algumas vezes, mas nunca, em nenhum momento, me vi nessa situação. — As palavras saem com sinceridade, revelando uma verdade que eu também estava descobrindo naquele momento.
— Ainda bem que você não está grávida, então.
Solto uma risada meio amarga, meio libertadora, como se a simples possibilidade daquela situação já fosse um peso sobre meus ombros.
— Vamos descobrir amanhã, se eu tiver coragem para encarar o resultado — respondo, um toque de nervosismo ecoando na minha voz.
Ele olha para o relógio em seu pulso e levanta-se logo em seguida.
— Acho que preciso ir. Posso te acompanhar com segurança até longe do parapeito?
Agradeço pela gentileza dele e permito que ele me acompanhe até o meu andar. Não pergunto seu nome ou se ele é morador do prédio, não consigo me lembrar disso. De alguma forma me sinto tão aliviada que esses detalhes são totalmente ignorados pelo meu consciente. Não sei quem ele é, mas quem quer que seja, é alguém a quem eu devo a minha vida.


Capítulo 2

Negativo.
A palavra é um veredito que reverbera em minha mente. O laboratório, com suas paredes impessoais e a luz fluorescente, transforma o momento em algo quase clínico. Encaro o papel, sinto um alívio profundo, como se um peso tivesse sido retirado dos meus ombros. Mas, paradoxalmente, a palavra “negativo” também traz consigo uma sensação estranha de perda, uma espécie de despedida silenciosa de um futuro que eu sequer queria desenhar, mas que ainda assim tinha me apegado um pouco a ele.
Com o celular nas mãos, digito a mensagem para , compartilhando o resultado do exame de gravidez que havia acabado de receber. O clique suave das teclas ecoa na quietude da recepção.

“Exame feito. Negativo.”

Envio a mensagem, sentindo uma mistura de alívio por compartilhar a notícia e ansiedade pela resposta que viria. O silêncio que se segue parece esticar o tempo, e meu celular permanece obstinadamente silencioso.

Visualizado.

A mensagem tinha sido visualizada por , mas as palavras que eu esperava não chegavam. O desconforto começa a se infiltrar, uma sensação de confusão e vulnerabilidade.
A recepcionista sorri quando agradeço pela eficiência, em seguida pego o papel do exame de gravidez e o dobro com cuidado, devolvendo-o ao envelope branco que o abrigou durante a espera angustiante. Com a bolsa a tiracolo, seguro o envelope firmemente em uma mão.
Ao sair do laboratório, a luz do sol acaricia meu rosto, dissipando parte da atmosfera carregada. A cidade, com seus sons urbanos e movimentação cotidiana, começa a envolver-me novamente. Decido rumar para o café onde trabalho como garçonete, rezando para que a rotina seja o meu refúgio temporário do dia.
Chegando ao café, entro com a confiança de quem conhece cada canto do lugar. Cumprimento os colegas de trabalho, deixo a bolsa em um canto do vestiário e, com o envelope ainda em mãos, me preparo para enfrentar mais um dia de mesas a atender e pedidos para anotar.
Enquanto eu equilibro a bandeja com xícaras de café, meu celular vibra com uma mensagem de . O coração acelera, mantendo em mim uma mistura de nervosismo e curiosidade, enquanto eu deslizo o dedo pela tela para ler suas palavras.

“Onde você está?”

A resposta forma-se em meus dedos, digitada com uma certa urgência.

“Estou no trabalho.”
Enviada.

O celular permanece em minha mão por um instante, como se o dispositivo entendesse a urgência da minha espera, no entanto, é nítido que ele não entende.
O café pulsa com a energia cotidiana, as conversas misturando-se com o tilintar de talheres e a música ambiente. Mais tarde, quando a agitação do trabalho diminui, posso dedicar alguns minutos para ler a resposta de .

“Podemos conversar depois do seu expediente?”
“Sim, podemos conversar.”

A resposta, concisa e carregada de expectativa, desliza da ponta dos meus dedos para a tela do celular. Antes de tomar a decisão de fechar o café, respondo:

“Vou fechar o café. Te espero na porta.”
Enviada.

Ao guardar as últimas mesas e cadeiras, me dirijo à porta do café, pronta para fechar e enfrentar a conversa que se desenrolaria com . Contudo, ao abrir a porta, me deparo com o homem que havia cruzado meu caminho no parapeito na noite anterior. Ele vinha apressado de algum lugar, e nossos corpos se chocam em um esbarrão acidental.
— Desculpe! — ele exclama, surpreso, enquanto nossos olhares se encontram por um breve instante.
— Sem problema — respondo com um sorriso, tão intrigada quanto ele. — Sabe, você estava certo. Não estou grávida. — As palavras escapam de forma tão inesperada que eu sinto a surpresa invadir minhas veias.
— E como se sentiu com o negativo?
Penso em todos os motivos que tenho para não falar sobre minha vida com um cara que conheci ontem, mas algo me impelia a confiar nele. Talvez fosse sua altura. Dentro dos quase 1,90 devia ter 10cm reservados para a confiança de outros.
— Qual é o seu nome?
Seus olhos, profundos como o oceano, encontraram os meus, e ele responde com serenidade após alguns segundos de avaliação.
.
Rio involuntariamente, surpresa pela coincidência.
— Como o anjo da morte? — indago, pensando que ele estava brincando.
— Exatamente como o anjo
— Bom, , eu me senti... confusa. Foi um alívio, mas ao mesmo tempo, estranho. Havia uma tensão que se dissipou, mas também uma sensação de perda, de algo que nunca chegou a existir. Acho que não faz sentido, né? — Murmuro, me encolhendo um pouco em minha própria timidez.
Ele dá de ombros, encara-me com atenção e sorri. Não o sorriso cheio, um sorriso quase que perspicaz.
— Às vezes, o que não acontece é tão significativo quanto o que acontece. Não deixa de fazer sentido só porque não aconteceu.
Os faróis de um carro cortam a penumbra, ilumina o caminho e revela a silhueta familiar de se aproximando. Uma camada de nervosismo me atinge, mas permanece ao meu lado, me dando a estranha confiança que ele trazia para mim sempre que ele estava perto.
está vindo. Quero que vocês se conheçam — anuncio, virando-me para apresentar os dois. — , esse é... — começo, mas hesito ao perceber que o homem havia desaparecido, como se fosse uma sombra que se dissipa na escuridão.
— Quem? — pergunta , franzindo o cenho enquanto olha ao redor.
— Ele estava aqui... há um momento — murmuro, mais para mim mesma do que para .
Ao meu lado ele suspira, percebendo minha inquietação, e coloca gentilmente o braço ao redor dos meus ombros.
— Você parece cansada — ele comenta, beijando delicadamente o topo da minha cabeça.
Sinto a familiaridade do gesto, mas a estranheza da noite ainda pairava. pega minha bolsa, o envelope e abre a porta do carro para mim. Eu entro, lançando um último olhar para o local onde estivera momentos antes.

— O que aconteceu? — pergunta , buscando entender o que escapava à sua visão.
— Eu não sei. Ele estava aqui, conversando comigo, e então... sumiu. — Minha voz revela a perplexidade que ainda ecoava em mim.
assente, compreensivo, mas a expressão em seu rosto denota uma mistura de dúvida e incerteza.
— Talvez tenha sido só um estranho passando, querida. Não se preocupe com isso agora — ele sugere, fechando a porta do carro. O termo “querida” escapa de seus lábios, e um nó se forma em minha garganta ao recordar que era assim que chamava minha irmã.
O trajeto de volta para casa transcorre em um silêncio permeado por pensamentos não ditos, principalmente de minha parte. , percebendo minha exaustão, dirigia com uma cautela que contrastava com a tempestade de emoções que se desenrolava em meu interior.
Ao chegarmos ao destino, ele desliga o motor, e a quietude do carro se torna o cenário para uma conversa pendente.
— Sabe, quando você me mandou mensagem, percebei que eu queria muito esse bebê — confessa , desviando o olhar para a janela do carro. Meu coração aperta diante da sinceridade de suas palavras. Eu sabia que, de alguma maneira, a notícia do exame negativo o afetaria, mas ouvir a confissão de seu desejo por um filho traz à tona emoções mais fortes do que eu conseguia lidar. — Eu sei que seria estranho, especialmente por tudo o que aconteceu, mas pensei que... Bem, poderia ser uma nova chance, algo para olharmos para o futuro juntos — confessa ele, desviando o olhar para a escuridão lá fora.
... — minha voz sai num sussurro, chamando-o, mas sem conseguir emitir uma reação clara.
Ele olha para mim, capturando a angústia pintada em meu rosto.
— Talvez... talvez seja hora de parar com os remédios. Eu sei que é um passo grande, mas... acho que podemos enfrentar isso juntos.
— Também me senti um pouco triste pelo resultado negativo, mas no fundo acho que foi melhor assim. Não sei se é uma boa ideia — admito, buscando uma maneira sensível de falar que aquele pedido é uma loucura.
franze o cenho.
— Melhor assim? — repete ele, incerto.
— Sim. Quero dizer, temos nossas vidas, nossas escolhas. Não sei se trazer uma criança para esse cenário seria justo — explico, lutando para articular as razões que eu tenho de forma nítida em minha mente.
suspira, como se a discordância o afligisse.
— Não acho que seria injusto. Poderíamos ser bons pais.
— Poderíamos, sim, mas você é o marido da minha irmã. Como a gente explicaria isso para... — começo, mas ele me corta com impaciência.
— Eu não sou mais o marido dela porque ela morreu, . Ela morreu há três anos — repete, a urgência em sua voz transparecendo.
Fico parada, em completo choque, sentindo um nó se formar na minha garganta. A realidade que ele me lembra é uma que eu, de certa forma, ainda tento evitar.
— Eu sei que ela morreu, . — Minha voz sai num sussurro, uma admissão silenciosa da dor que ainda ecoa em mim.
— Então pare de viver como se ela ainda estivesse aqui. está morta, e ninguém a trará de volta. Você precisa superar isso.
Ele tenta se aproximar, talvez para oferecer consolo ou pedir desculpas, mas minha dor é como uma barreira que me impede de aceitar qualquer gesto de conforto.
, eu... — suas palavras são cortadas pelo meu pedido brusco.
— Vai embora, . — Minha voz, embora firme, carrega a intensidade da dor que eu sinto.
Ele hesita por um instante, como se quisesse dizer algo mais, mas acaba cedendo. Saio do carro dele sentindo o frio da noite acariciar meu rosto molhado pelas lágrimas.
— Não posso te deixar sozinha assim — ele insiste, sua voz ecoando na quietude da noite. — , eu amo você. Só quero que possamos ser felizes agora, no presente, sem viver para o passado — ele diz, sua voz carregada de sinceridade. — Por favor, não deixe que a morte dela defina o que poderíamos ter.
— Vai embora, .
Ele me observa por um momento, como se buscasse uma brecha em minha determinação. Contudo, ao perceber que eu não recuaria, dá partida no carro e se afasta, deixando-me ali, envolta em lágrimas e verdades incontestáveis.


Capítulo 3

Havia se passado um ciclo completo de vinte e quatro horas desde que me permiti afastar, ignorar e evitar a presença de . Desde nossa pequena discussão, eu vivia no dia em que tentava apagar, ao menos temporariamente, a existência do nosso relacionamento da minha mente.
O dia no café, que normalmente trazia uma rotina movimentada e cheia de interações, havia sido tediosamente chato. Clientes vinham apenas para puxar assunto, perguntando sobre os vizinhos e interrompendo meu trabalho a cada dois segundos. Em momentos como esse, eu me questionava por que não voltava para o hospital e abraçava a carreira que tanto me preparei para seguir. No entanto, eu já conhecia a resposta. De que adiantava ser médica se nem mesmo pude salvar minha própria irmã?
Enquanto limpo as mesas e atendo os clientes com um sorriso forçado, minha mente vagueia por caminhos dolorosos. As lembranças de , os momentos perdidos e a sensação de impotência preenchiam meus pensamentos. Eu me perguntava se havia algo que pudesse ter feito diferente, se alguma escolha poderia ter alterado o destino trágico que nos separou.
Esse é o problema do luto, ele é uma sombra que nunca some completamente. Muita gente diz que com o tempo a gente supera, mas na prática, não é bem assim. O luto é como uma marca permanente, uma tatuagem invisível que você não vê, mas está lá.
A dor não some com o tempo, mas ela muda. Fica mais forte. A falta não tem um prazo de validade; ela está em cada lembrança, em cada canto da cidade que lembra os tempos felizes. Ela está não só no que você lembra, mas no que você imagina. A dor da ausência grita num tom de voz que você já não lembra mais o timbre, nas lembranças felizes e nas tristes, no cheiro do perfume favorito da pessoa e nas feições inesquecíveis de seu rosto. A dor é mais forte em alguns dias do que em outros, mas nunca some.
Essas são as coisas que sei sobre perder alguém que você ama: não melhora, nunca, você só se acostuma e eu não saberia explicar como. Você nunca deixa de sentir saudade, de imaginar como seria no seu dia ou de pensar no seu passado com essa pessoa. E para uma pessoa que não está mais aqui, pesa uma tonelada.
A perda da é tão grande que eu sinto que estou carregando o mundo inteiro às vezes. Imagino o que uma mãe não deve sentir quando perde um filho. Se eu sentia meu mundo acabando com a falta da minha irmã, o que um filho sente quando perde a mãe? Ou o que uma mãe sente ao perder seu filho? Deve doer ainda mais, se é que dá pra doer ainda mais. Talvez não seja sobre parentesco, talvez seja sobre a conexão que se tem com essa pessoa.
Quando minha irmã morreu, acabei ficando com um vício no café e na comida preferida dela. Para quem carregava o mundo, alguns quilos a mais não fariam diferença, mas fizeram. Às vezes precisamos largar algumas coisas, não dá pra carregar tudo sempre. Então parei de comer, não de forma saudável. Quando vi que me encher de comida não resolvia e não diminuía o peso do que sentia, eu parei de comer na esperança que a falta de comida aliviasse.
Se eu me sentia tão mal pela sua perda, era natural que me sentisse pior com o fato de ter um relacionamento com . Acho que eu me sentia ainda pior porque, antes de eles casarem, eu gostei dele. Eu o notei porque ele era esse tipo de cara. As pessoas o notavam.
Mas eu não era o tipo de garota que vê o cara e vai até ele. Eu era o tipo de garota que vê um cara e logo depois vê a primeira lojinha ao lado dele. iria para o cara, eu iria para qualquer loja de sorvete ao lado. Depois que eles dois começaram a namorar, nunca mais vi com os mesmos olhos. Pelo menos até o primeiro aniversário de morte dela.
Eu devia saber que estava na cama errada no minuto em que minha cabeça encostou o travesseiro com cheiro amadeirado de colônia cara, mas meu corpo relaxou ali. Eles disseram que seria “melhor” não estar sozinha naquela noite, então eu fui para um memorial em nome dela e acabei dormindo no hotel ao lado. Repleta de desconhecidos.
? — Ouço a voz rouca de e desperto. Minha mente ainda está alarmada, mas meu corpo continua relaxado.
— murmuro, abrindo os olhos que agora são inundados com a presença do meu cunhado. — O que está fazendo no meu quarto?
— Na verdade, eu que te pergunto — ele ri. Olho ao redor e pego a chave, vendo que tinha a trocado. Eu estava no 17, não no 71.
— Merda — xingo baixo enquanto tento ignorar os móveis girando ao meu redor, graças a vodca do dia anterior. — Eu vou para o meu quarto, desculpa. Ainda bem que foi você e não outro estranho maluco.
Ele olha para a porta e posso ver a confusão em suas expressões.
— Não vá — ele pede. Lembro que o olhei confusa quando ele se sentou na cama. — Eu também não quero ficar sozinho hoje.
Seus ombros caem, como se ele tivesse perdido a pequena luta mental que travava em silêncio. Ele se afunda na cama e olha para mim, deitado de lado. Aproximo-me, espelhando-o para que nós nos olhássemos.
— Consegue dormir?
— Tomei bebida alcoólica o suficiente para o sono não ser um problema.
ri de forma divertida, mas acho que ele não daria esse sorriso se soubesse o quão sincera eu fui naquele dia. Eu não dormia sem ajuda desde o acidente dela.
Minha resposta parece ser o suficiente para ele. Ele fecha os olhos e uma expressão serena ocupa seu rosto. Encaro com uma atenção que nunca tive para ele antes. Observo sua boca, os contornos dos seus lábios, as sardas quase inexistentes em sua pele branca, a barba por fazer e os fios grisalhos que faziam companhia ao loiro escuro de seu cabelo. Os olhos azuis estão fechados, mas apesar disso, a serenidade em seu rosto demonstra que ele sentia paz. Eu sabia que era mentira. Não havia paz. Não mais. No entanto, vê-lo e estar perto dele assim foi a única vez que consegui encontrar um sentimento próximo de paz. Mesmo que de mentira. Mesmo que temporário.
— Ei, — ele murmura um minuto depois.
— Hm?
— Feliz aniversário.
Essa é a primeira vez que ouço um “feliz aniversário” desde a morte de . Quando ela morreu já era meia-noite. Quando ela foi embora pra sempre, eu completava mais um ano. Quando eu devia comemorar, eu a perdi, e por isso nunca mais comemorei novamente.
Pego o telefone para verificar que horas são, talvez já são mais de meia-noite, porque tudo já está escuro. Assim que ligo a tela, me deparo com uma mensagem de .

, eu sinto muito se passei dos limites ontem. Não era minha intenção magoar você, mas a verdade é que precisamos parar de agir como se estivéssemos traindo a . Ela não está mais aqui e merecemos ser felizes. Desculpe se fui duro demais. Vamos conversando quando estiver pronta, amo você.”

Absorvo cada palavra, deixando a mensagem ecoar em minha mente. No fundo, embora não quisesse acreditar, eu sabia que ele estava certo. Meus dedos tocam as teclas do telefone enquanto eu formulo uma resposta.

“Não precisa se desculpar. O que você disse foi difícil de ouvir, mas sei que é a verdade. Obrigada por ser honesto, paciente e por acreditar que podemos ser felizes. Você pode vir aqui?”

Após enviar a mensagem, levanto-me da cama ainda sentindo o peso do passado sobre meus ombros. Uma hora depois ele estava em casa, mesmo sendo 01:44 da manhã. Às vezes minha mente colapsava um pouco, por isso eu perdia alguns minutos do dia. Muitos. Minutos suficientes para não saber dizer quantos minutos demorou para ele ir da porta até a minha cama após chegar.
— Enquanto eu tomava banho e preparava o café, pensei muito. Sobre nós, sobre o futuro — admito, deixando a sinceridade guiar minhas palavras. — Eu... eu prometo que vou considerar a ideia de termos um filho, mas antes disso, acho que estou pronta para assumir o que temos agora — afirmo, encarando-o diretamente.
A hesitação brilha nos olhos dele, mas há uma felicidade gritante também.
— Tem certeza, ?
Meu coração acelera. Eu não tenho tanta certeza quando afirmo, mas respiro fundo antes de responder:
— Sim. Tenho certeza.
No entanto, não sei mesmo se tenho certeza.
Seus lábios encontram os meus em um beijo lento e apaixonado. Em um gesto inesperado, ele pula em cima de mim, num breve ataque de cócegas que me fez gargalhar, uma risada que vinha de um lugar profundo, há muito adormecido. Uma risada que eu não lembrava que podia dar. Ao parar, para que eu possa respirar, seus olhos encontram os meus, e posso ver uma expressão de alegria e surpresa pintada em seu rosto.
— Essa é a primeira vez que te vejo rir assim — ele observa, fazendo a ficha cair para ambos.
Mordo levemente o lábio inferior, sentindo a emoção transbordar. Um segundo beijo selou nossos sentimentos, e eu sussurro as palavras que estavam em meu coração:
— Obrigada por não desistir de mim. — A gratidão flui em cada palavra, expressando a profundidade do que eu sentia. — Eu amo você.
Os olhares permanecem conectados, e a alegria compartilhada parece tingir o ambiente ao nosso redor. Contudo, a realidade logo nos chama de volta.
— Quer contar aos seus pais primeiro? — indaga, a preocupação marcando sua expressão. Suspiro, pensando nas reações que poderiam surgir.
— Eles não vão aceitar isso bem, tenho certeza. Não após tudo o que aconteceu.
Ele aperta minha mão, oferecendo apoio silencioso.
— E se déssemos a notícia em um jantar? Algo mais formal, onde poderíamos explicar tudo calmamente. Não podemos evitar a reação deles, mas pelo menos teríamos a chance de explicar.
— Acho que é uma boa ideia. Eles gostam de você, o problema deles sempre foi comigo — concordo, considerando as palavras que compartilharíamos com eles. — Precisamos enfrentar isso juntos, não é?
Ele concorda, um brilho de determinação em seus olhos.
— Juntos, sempre.
A pressão de seus braços em meu corpo aumenta, como se fosse fundir nossos corpos em um só. Eu, por minha vez, contemplo o teto, perdida em pensamentos.
— Você acha que nos perdoaria?
Nossos olhares se encontraram, buscando respostas no abraço que compartilhamos.
— Acredito que sim — ele responde. A convicção em sua voz é o único fator pelo qual eu me sinto confortável assim. — No início, provavelmente ela surtaria, quebraria uma jarra em mim e ficaria um ano sem falar com você, mas acho que com o tempo ela entenderia.
O riso escapa dos meus lábios como uma resposta natural à imagem vívida que ele pinta. Por mais que eu tente, é inevitável não pensar na sua reação, no que ela está pensando daquilo tudo e se ela me odeia do céu. Eu amava , ela era a pessoa mais importante da minha vida. A simples ideia de ela me odiar, nesse plano ou em qualquer outro, me destruía em pequenos pedaços que jamais seriam colados.
— Talvez uma jarra não fosse suficiente para ela. Talvez um vaso também entraria na equação — brinco, procurando aliviar ainda mais o clima. — Eu sei que te incomoda, mas não consigo evitar de pensar na .
— Não quero que você esqueça a , . Ela sempre fará parte de quem você é, de quem nós fomos, mas não quero que você viva em prol disso. Só preciso que você também esteja presente, aqui e agora. Eu sei que você anda tomando remédios para dormir. Vi no banheiro.
A confissão dele, embora feita com serenidade, me pega desprevenida, causando-me muitos níveis de desconforto. Mas antes que eu possa formular uma resposta, seus lábios encontram meu rosto em um beijo suave, misturando carinho e preocupação. A suavidade do gesto me envolve como um abraço reconfortante, me mostrando que não é um ataque; eu podia baixar a guarda com ele, às vezes.
— É meio óbvio que eu não quero perdê-la, mas também não quero que você se perca.
— Eu tenho pesadelos quando não tomo os remédios. — A confissão escapa de meus lábios. — Vejo o carro virando conosco dentro até que eu fique tonta. Sinto o cheiro da gasolina impregnando o ar, ouço os barulhos metálicos que eu nem sempre consigo reconhecer do que são. Sinto o vidro pular em minha pele e cortar. Consigo sentir a dor da queimadura em meu quadril com uma parte do carro que nem sei identificar do que é. E há momentos que simplesmente se apagaram da minha memória. Não lembro quando percebi o que tinha acontecido. Acho que senti alguma coisa, porque depois me contaram que eu entrei em choque. Meu corpo desligou. Eles disseram que era normal devido ao evento traumático, mas tudo que eu lembro é que acordei com os olhos dela abertos, me encarando, com sangue em todo o seu rosto. Eu revivo isso toda vez que tento dormir. Revivo quando nos tiraram do carro e ela saiu em um saco preto. Lembro da minha mão cobrindo a minha boca e meus ombros estremecendo como se eu fosse vomitar. — Minha voz tremia enquanto me esforçava para dar vida aos fantasmas que habitavam meus sonhos noturnos. — E então eu volto para o carro. Eu a sacudo, tento acordá-la, eu sinto o sangue quente em minhas mãos. — Meus olhos descem até as minhas mãos; era como se eu conseguisse voltar no tempo e sentir tudo de novo, como se fosse horas atrás, não há três anos. — Sangue deveria ser leve, mas era pesado. Deveria ser diferente, porque ele era o sangue da , deveria parecer perfeito como ela era. Eu lembro que comecei a chorar, sem parar. É quando ouço as sirenes que meus sentidos voltam ao corpo, pelo menos é o que parece nessa droga de pesadelo. Eu sabia que ela já tinha ido. Seus olhos estavam vagos, estavam mortos, não tinham mais a vida que sempre teve neles, mas eu precisava de mais um momento, então me deito perto dela. Minha irmã e eu. — Minha respiração some aos poucos enquanto acelero tudo que lembro do acidente, dos pesadelos. — Eu me deitei perto dela, , e virei meu rosto para encarar o dela. Eu tentei limpar o sangue do rosto dela. Eu cuidei da minha irmã uma última vez. Quando noto as sirenes, o flash do vermelho e branco do lado de fora da janela, eu seguro a mão dela, mas ela não segura mais a minha. Não consegue. Ela não gritou quando morreu, mas toda noite eu acordo com os gritos dela. Com o pedido de socorro dela.
Os braços de envolvem-me com ternura. Ele ajusta seu abraço como se pudesse proteger-me das memórias traumáticas. Sinto seu calor irradiando segurança, como se o simples ato de estar nos braços dele fosse capaz de afastar os fantasmas que assombravam meu sono.
Quando me aproximo de pela primeira vez, naquela cama de hotel um ano após o falecimento de , eu achei que não tinha sentido nada, mas percebo, assim que nos despedimos no dia seguinte, que isso era mentira. Eu tinha sentido alguma coisa. Senti alguma paz em torno dele por algum motivo. Talvez fosse porque ele me lembrasse ela, talvez fosse porque tínhamos a mesma dor e parecia confortável.
Não percebo quando minha respiração fica descontrolada, e o ofegar descompassado passa a roubar todo o meu ar. Mas sinto quando sua mão gentil pousa sobre o meu peito.
— Respire comigo, .
Tento sincronizar o meu respirar com o dele. Inspiro profundamente, procurando seguir o compasso sereno que ele ditava. A cada expiração, nossas respirações tornava-se quase como uma só, como se juntos pudéssemos criar uma melodia de calma em meio à tempestade.
Ele tornou-se o alicerce que sustenta a minha frágil paz. é, inadvertidamente, a luz que ilumina os recantos mais sombrios da minha dor.


Capítulo 4

liga para os meus pais e, por ser , eles aceitam de bom grado vir ao meu apartamento. Mesmo não gostando, não querendo ou não aceitando muito bem o fato de eu ter largado a carreira médica para me tornar uma garçonete. Não que esse seja o único problema deles comigo, mas é um dos maiores atualmente.
— Viemos assim que conseguimos. Seu pai, como sempre, é um desastre com o relógio e obviamente perdeu o horário. Isso porque nem moramos mais juntos.
— Olá, mãe.
Ela me olha com um ar de decepção já pairando em seu rosto. Eu não fui rude, mas não respondi a ela do jeito que ela queria. Esse era o papel de . Ela era a social, a envolvente, a filha que a minha mãe queria. A perfeita.
Meu pai se aproxima de mim e beija a minha testa com carinho. Sorrio para ele.
— A comida ainda está quente. — Foi a vez de sussurrar. Ele me toca no quadril, pelas costas, e sinto um arrepio intenso percorrer minha espinha. O simples toque me faz pensar se eu realmente estou pronta para aquela conversa, mas é tarde demais para mudar de ideia. Apesar do meu nervosismo, ninguém parece observar a mão de .
Caminhamos até a mesa preparada pelo loiro, ele puxa a cadeira para mim e se senta ao meu lado. Mordo o meu lábio inferior sentindo o nervosismo voltar e fazer morada em meu corpo.
— E então? Para nos chamar, deve ser algo grande — minha mãe começa com a acidez cotidiana quando se trata de mim. — Por favor, não me diga que está grávida com esse seu empregozinho de garçonete.
— Bertha... — Meu pai fala com um tom um pouco mais rígido.
— Não, ainda não estamos esperando um bebê, mas talvez isso aconteça em breve — diz de forma direta enquanto se coloca ao meu lado, demonstrando que está ali comigo, para mim. Sinto os olhos lacrimejarem.
—Vocês estão juntos? Por Deus! Isso é ridículo. Você sempre quis ser ela, não é? Sempre! E agora está tentando substituí-la. Você está arruinando a memória da . Está querendo construir com ele a família dela. Não percebe isso?
Piscar. Piscar. Virar. Eu não vou chorar.
Levante a cabeça.
Você consegue fazer isso.
Cabeça erguida, .
é uma pessoa única e não uma substituta, Bertha. Nosso relacionamento não diminui a memória de . Não estamos aqui para roubar nada, mas sim para construir um futuro juntos. Ela não está roubando a família da , porque a está morta — afirma ele, a voz impregnada de determinação e indignação. — Vocês perderam uma filha e eu entendo, mas ainda tem uma aqui e espero que não vejam isso tarde demais. quis fazer esse jantar em honra a vocês e a , para oficializar, mesmo sabendo que seria difícil, mas não estamos pedindo permissão. Se falarem assim dela mais uma vez, vou precisar pedir que se retirem da casa dela, da minha empresa, dos meus negócios e da vida do neto que venham a ter. Fui claro?
— Tudo bem — minha mãe responde visivelmente contrariada.
Mas não está. Nada mais estava bem.
Uma sensação estranha percorre todo o meu corpo. Seguro o copo em minhas mãos e olho para o teto.
Você está aí em cima, ? Você está ao meu lado? Está aqui em uma dessas cadeiras vazias na mesa?
Eu a odiava. Ela não devia estar em nenhum desses lugares, ela devia estar aqui, ela devia estar nesse jantar. Ela devia estar com , sendo adorados como um casal perfeito porque minha mãe os via assim. Ela devia estar se estressando com os comentários desnecessários da mamãe. Ela devia estar sendo a cola dessa família, não eu. Porque ela sabia o que fazer, mas eu sou perdida pra caralho.
Estou quase caindo, o choro, o desespero, a respiração ofegante e a falta de ar. Tudo vem até que as mãos de encontram as minhas debaixo da mesa. O gesto me conforta e me mata um pouco também, porque era o que ela fazia quando queria me confortar das brigas com os nossos pais.
Nenhum cara deveria me fazer sentir como se eu precisasse do toque dele para ficar bem. Nenhum cara deveria fazer com que eu quisesse que sua mão fosse ancorada em meu corpo, mas aconteceu. De alguma forma, querendo ou não, se tornou essa âncora. Eu me apeguei a ele e passei a amá-lo. Ele era um curativo sobre minhas feridas, cobrindo-as, mas não realmente as curando.


»»—— - ⚜ - ——««


O jeito protetor de me traz mais lembranças, dessa vez não sobre , mas sobre nós. Sobre mim, ele e sobre como fomos indo aos poucos de uma amizade para pessoas que perderam a mesma pessoa e fodem para aliviar a dor. Minha mente viaja ao passado, revisitando a primeira vez que trocamos mensagens depois do aniversário de morte dela.

?”

Olho a mensagem no visor do meu celular e mordo o lábio inferior ao ver o nome de no visor. Respiro fundo, sentando-me na cama.

“Estou acordada.”

É só o que consigo responder naquele dia. Eu tinha chorado a madrugada inteira porque vi uma rosquinha e lembrei que eram as favoritas dela.

“Eu posso ir pra sua casa? Não estou aguentando ficar aqui hoje.”

Fico surpresa com o pedido, mas não nego que ele venha. Eu não morava com a minha irmã, mas mesmo nunca tendo dividido o mesmo teto, era difícil não vê-la nos cantos do meu apartamento às vezes. Imagino o quanto ele precisava ignorar isso.
Arrumo a sala para vermos um filme e coloco o colchão ali; pelo menos parece menos íntimo do que levá-lo ao meu quarto. Quando ele chega, é um pouco desconfortável, mas ele me abraça. E chora. E eu choro. Acho que isso acaba dando uma vulnerabilidade entre nós, e o desconfortável se torna tão confortável que aquece.
É nosso segundo filme da noite, mas eu não lembro de nenhum. Provavelmente porque adormeci durante o filme. Em algum momento percebo quando ele se levanta e, alguns minutos depois, sinto um cobertor quente em minha pele. Me agarro mais a coberta e durmo.
Horas depois, quando acordo para beber água, está de frente para mim e a sua mão está em volta do meu corpo, como se, de alguma forma, ele tivesse utilizando-a como um escudo. Ele tinha adormecido assim, como se estivesse tentando me proteger.
Fico o observando por alguns minutos e só quando ele se mexe, esboçando um bocejo preguiçoso, que me permito desviar os olhos. Ele não tira a mão do meu corpo, ao invés disso, me puxa para mais perto. Mordo levemente meu lábio inferior, não porque estou desconfortável, mas porque me dou conta que queria que ele fizesse isso.
Estávamos conversando por telefone com frequência, era comum falarmos sobre e vermos as semelhanças da ausência dela em nossas vidas. Havíamos nos aproximado, nos tornado amigos, sentido e ouvido um ao outro em nosso momento de dor, mas é a primeira vez que nos tocamos.
— Que horas são? — ele pergunta, quebrando o silêncio. Dou de ombros sem saber a resposta para isso, mas quando a companhia toca, indica que o que achei que foram horas, na verdade foram apenas minutos.
se levanta e caminha em direção a porta, o ouço dizer um obrigado e logo a caixa de pizza em suas mãos é colocado no centro, que agora está mais para uma mesinha de canto.
— Chegou a pizza — ele diz, um pouco óbvio demais, e eu sorrio em resposta. — Não sei se estou com fome de pizza.
Ele se senta na cama e eu sei que não faria nada sem que eu desse abertura, então aproximo minhas pernas o suficiente das dele. Não penso quando faço isso, não de forma coesa. Ele coloca a mão em minha perna e posso ouvir tanto eu quanto ele travando uma luta interna do que faríamos a seguir.
— Foda-se essa merda. — É o que ele diz antes de tirar as mãos das minhas pernas e colocá-las ao meu quadril, agarrando enquanto me puxa para o seu colo.
Eu gemo e engasgo quando suas mãos vão para a minha bunda. Sua boca fica próxima demais da minha, mas ele não me beija; ao invés disso, encara meus lábios como se tentasse resistir à tentação. Eu também tenho que resistir, mas não estou tão disposta. Não ainda.
Agarro o seu colarinho e colo minha boca na dele com uma certa urgência. Eu agarro seus fios de cabelos loiros e os puxo com pressa. me puxa para perto, acabando com todo centímetro que nos mantinha longe.
Sinto a excitação quando cada parte dele se cola na minha.
Deus.
Estou sem fôlego quando sua boca se abre mais sobre a minha. Seus toques são rápidos, firmes e precisos, como se ele soubesse exatamente o que tocar e como tocar. Sua mão vai para a minha cintura e desliza por baixo da minha blusa em direção aos meus seios, mas ele não prossegue. Ele para ali e me olha, esperando a permissão para seguir ou que eu me afaste dele.
Eu não apenas permito, como dou um jeito eu mesma de me livrar da minha blusa.
— Tem certeza?
Balanço a cabeça, buscando novamente a boca dele. Eu não conseguia parar de beijá-lo, não conseguia parar de tocá-lo, não conseguia parar de sentir o sabor dele. Suas mãos percorrem pela minha barriga desnuda e logo ele volta a agarrar a minha bunda, me puxando mais para ele. Não há espaço entre nossos corpos, mas ainda assim precisamos de mais.
Só então me dou conta de que não estou mais sendo a fantasma que a deixou. Pela primeira vez eu sinto alguma coisa, mas ainda não consigo sentir o suficiente. Preciso sentir mais.
Eu preciso sentir ele.
Eu preciso sentir qualquer coisa que me faça esquecer a dor da porcaria do luto. Qualquer coisa que me faça esquecer que eu não tenho mais a minha irmã.
Quando começa a tirar a roupa, me afasto para fazer o mesmo. Quase consigo ouvir a recriminação e a risada de . Eu sempre a sentia nos lugares, mas com ele, a presença dela conseguia ser ainda mais forte.

Use camisinha, irmã. Você não vai querer bebês para que nossos pais os ignorem também.

Sinto vontade de rir, mas assim que aperta minha pele com força, o riso é substituído por um gemido. Acho que falo um pouco mais, porque ele me olha estranhamente surpreso.
— Você quer que doa?
— Sim, por favor, . Por favor, faça doer.
Eu o agarro com mais força e, enquanto latejo de tesão a cada mordida e chupão que ele dá em meu pescoço, percebo que ele é a única pessoa capaz de me aproximar e afastar da minha irmã ao mesmo tempo. E, naquela noite, eu não me importava o quão longe tínhamos que ir para que isso acontecesse. Eu o queria.
— Porra, — ele resmunga baixo, me empurrando para baixo e pairando sobre mim. Ele está ofegante, mas se encaixa entre minhas pernas.
Sim, isso está ajudando.
Ela está indo embora da minha mente, eu posso senti-la partir.
Eu o sinto duro, mas ainda não tinha me penetrado. Seu pau roça entre minhas coxas e eu me esfrego mais sobre ele, rebolando em seu colo, o provocando para que ele não desista. Ele não podia parar, eu não podia parar, não mais.
Afasto a cueca dele, coloco minha calcinha para o lado e me encaixo em seu colo. Consigo sentir a cabeça inchada do seu pau começar a me preencher.
— Tem mesmo certeza? — A boca dele para sobre a minha com a respiração falha e quente. Eu sento, o engolindo por inteiro. Sentindo a extensão do seu pau me preencher com a grossura que ele tem.
— Sim — sussurro, beijando a boca dele. Sentindo seus lábios. Voltando a sentir seu gosto. E então começo a cavalgar, subindo e descendo, rebolando, o agarrando e beijando. Tapando todos os traumas em minha mente.

Sim, .
Sim.


Continua...



Nota da autora: Obrigada por cada leitura, carinho e participação de vocês. Comentem pra que eu fique super inspirada e faça muitos capítulos e participem do grupo do whatsapp. Lá eu sempre posto quando vai ter atualização e dou spoiler, além de liberar pequenos jogos com temática da fic. Vocês são divines.



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