Capítulo 1 — Who are you?
Estava em tempo de abrir o chão, havia perdido a conta de quantas voltas já havia dado em meu quarto pensando no que fazer. Eu tinha que arranjar a desculpa perfeita para atrair a polícia de uma forma que eles quisessem ficar próximos a mim a qualquer custo. O plano já estava todo armado: eles receberiam um chamado anônimo de um suposto vizinho dizendo que uma garota havia sofrido um atentando em sua casa, a policia viria até mim e eu só precisava dizer que foi a máfia com a qual meu irmão estava envolvido, só. Isso faria uma trupe de policiais ficarem na cola de qualquer pessoa, porém, essa era a parte fácil da coisa toda. Eu precisava me causar ferimentos de tal forma que nem o melhor legista do mundo pudesse identificar que eles foram feitos por mim. Mas como diabos eu iria fazer isso? Não poderia envolver ninguém nisso, era arriscado demais, um fio de cabelo de outra pessoa com meu sangue e ela estaria perdida, assim como a minha parte da missão e meu emprego.
Parei no centro do quarto e olhei os moveis a minha volta, teriam que servir.
Corri até a penteadeira tentando o máximo possível acertar a minha cabeça na quina do móvel.
- Merda.
Senti minha cabeça latejar na hora e me xinguei imediatamente, uma puta de uma dor de cabeça para nenhum filete de sangue. Teria que ser em outro lugar. Encarei o espelho acima da penteadeira e juntei toda minha coragem pra jogar minha cabeça contra ele. Fechei os olhos assim que senti os estilhaços se partirem contra meu crânio, a ardência no canto de minha testa veio logo depois, trazendo pequenos cortes consigo. A pancada havia sido tão forte que mal consegui conter o grito de dor. Ótimo, os verdadeiros vizinhos não poderiam negar que tinham escutado algo.
Notei uma gota de sangue pingar em um dos meus perfumes e decidi aproveitar aquela deixa, empurrando tudo que havia ali para o chão só para depois golpear a minha cabeça ao menos três vezes naquela superfície plana e branca, deixando um rastro de sangue notável.
Caminhei até o outro espelho querendo ver os meus resultados e instantaneamente senti que faltava algo: meu cabelo estava quase impecável, mas eu soube como resolver assim que meus olhos encontraram o banheiro. Fechei o ralo da banheira e abri a torneira deixando que ela fizesse seu trabalho enquanto eu terminava o meu. Usei o secador para deixar o meu cabelo o mais bagunçado possível e arranquei alguns bons fios de cabelo somente de um lado da minha cabeça, descartando os no vaso sanitário logo depois. Havia tomado o máximo de cuidado possível para não encostar minhas unhas em meu couro cabeludo, não poderia haver nenhum vestígio nelas.
Olhei-me mais uma vez no espelho e sorri feito uma psicopata admirada com meu trabalho. O meu rosto estava perfeito para o meu objetivo. Eu só tinha que dar um jeito no meu corpo e estaria tudo pronto.
A banheira estava quase cheia e eu tinha pouco tempo. Juntei toda a coragem que eu ainda não tinha usado e me afastei com o secador em minhas mãos, ainda ligado na tomada, se aquilo não desse certo e a polícia não chegasse a tempo eu iria parar no necrotério. Puxei tudo o que havia de fio no aparelho tomando distância da entrada do banheiro, quando senti que não dava mais parei no lugar e implorei a Deus que aquilo desse certo, eu não queria morrer, principalmente daquela forma. Olhei para o relógio em minha parede em minha parede, a polícia já havia sido acionada pela equipe, era hora do truque final.
Fechei meus olhos e arremessei o secador na banheira que já transbordava e espalhava água pelo quarto, mal pude o ver cair na água, o curto foi certeiro, tudo ficou escuro em questão de segundos. Tratei de me jogar contra todas as paredes do quarto o mais rápido possível, evitando somente a que dava para o banheiro - a água da banheira já escorria por ali e o secador continuava estralando, soltando faíscas vez ou outra. Tamanha era força que eu jogava que perdia até a capacidade de gritar, tudo que saia de minha boca eram pequenos grunhidos de dor. Se eu soubesse que era mais fácil me machucar no escuro teria apagados as luzes antes. Eu sentia dores pelo corpo todo, acho que a única coisa a salvo eram meus pés, ou pelo menos a sola deles.
O secador deu outro estouro, soltando faíscas por segundos suficientes para que eu pudesse ver meu reflexo no grande espelho. A minha dor não havia me enganado, havia hematomas por toda a parte e eu mal havia me dado conta do momento que perdi a minha toalha. A lingerie branca destacava ainda mais os machucados.
Escutei sirenes ao longe e vi que estava na hora do truque final, eu não tinha mais do que alguns minutos. Dei alguns passos para trás tomando distância do espelho, tentando ao máximo não pensar no que faria a seguir.
Coloquei todas minhas forças naquilo, os pedaços de vidro estavam por toda parte, assim como o meu sangue muito provavelmente. O estalo do meu corpo se chocando contra o chão foi inconfundível, eu havia quebrado uma costela e choviam vidros em mim, eu não tinha mais forças. Sentindo meus cabelos empapados de sangue e ouvindo passos ao longe, eu deixei a escuridão me dominar como uma velha amiga.
POV. Nicolas
Eu sentia meu coração disparar a cada passo que eu dava, disparava tanto que por vezes eu pensei que ele iria parar de bater. Metade da casa havia sido vasculhada e nada parecia fora de seu lugar, parte de mim dizia que aquilo poderia ser uma armadilha, mas outra parte me incentivava a continuar, eu só não entendia por que diabos meu coração estava daquele jeito, era como se ele estivesse pressentindo algo. A casa estava totalmente escura, nenhuma luz funcionava, que merda havia acontecido ali?
Subi as escadas em direção ao segundo andar pestanejando por aquela porcaria de escuridão, o lugar era enorme e as lanternas embutidas nas armas eram uma porcaria maior ainda. Estava quase abrindo uma porta quando escutei um estouro vindo da outra direção, o barulho foi tão grande que eu quase disparei a minha arma por reflexo, um ato burro. Corri na direção oposta e um odor de algo queimando invadiu minhas narinas, uma das portas exalava fumaça. Por algum motivo eu temi o que encontraria ali, meu coração disparou mais ainda.
Cobri o meu rosto e abandonei minha arma, algo me dizia que eu precisaria da minha mão livre quando entrasse ali. Dei sinal para que três dos meus homens me acompanhassem e me empenhei em derrubar a porta. A fumaça era absurda, se já era difícil enxergar no escuro, naquele quarto era praticamente possível. Estava a ponto de adentrar um ambiente quando algo chamou minha atenção, tinha água correndo no quarto. Água, estouro, fumaça. Senti meu coração parar por dois segundos.
Peguei a lanterna da mão de e apontei para o quarto. Não era uma armadilha, havia uma pessoa lá, provavelmente morta. Mas algo me dizia que ainda havia esperança para aquela pessoa, que talvez a sua vida pudesse ser salva. Não pensei duas vezes antes de entrar no quarto, apontava a lanterna para o chão na tentativa de evitar a água, eu não queria ser eletrocutado. A cada passo que eu dava em sua direção eu sentia meu coração acelerar mais, foi absurdo o modo como ele disparou quando eu a encontrei. Segurei seu rosto em minhas e achei que fosse descobrir como era ter um infarto. O seu rosto tinha traços tão familiares que eu me senti assombrado, a semelhança era assustadora. Não era a toa que diziam que para uma pessoa existem mais 7 parecidas.
Eu teria ficado naquele devaneio por horas se não tivesse escutado outro estouro e não tivesse me chamado. Olhei novamente para a garota em meus braços e desejei com todas as minhas forças que ela estivesse viva. Levei meus dedos ao seu pescoço e quando pude sentir sua pulsação irregular meu coração pareceu se acalmar instantaneamente.
- - chamei entrando em desespero, a água estava se espalhando cada vez mais. - Joga a sua jaqueta, rápido.
estava quase entrando no quarto e eu quis mata-lo, ele não tinha notado a água?
- NÃO ENTRA AQUI - gritei - Só joga a sua jaqueta, faz o que eu to mandando antes que a gente a perca.
O tecido foi arremessado em minha direção de forma tão rápida que eu quase não consegui pegar. Cobri depressa a garota que estava praticamente nua com a jaqueta e me levantei da forma mais rápida possível com ela em meus braços. Coloquei a lanterna na boca e fiz o caminho de volta ao corredor.
Meus olhos continham uma umidade indescritível, e eu sabia que não era pela fumaça.
Capítulo 2 — Problem
Olhava para a garota repousada na cama branca e não conseguia encontrar nenhuma outra resposta – além da mais óbvia – para aquela tentativa de homicídio. Certamente aquilo era uma cobrança de dívida, mas de que tipo? Drogas? Dinheiro de jogo? Eu apostaria em drogas. O que levava uma garota como aquela a se envolver com coisas do tipo? Ela estava em um estado lastimável, havia uma serie de hematomas em seu rosto, mas ainda sim, parecia muito bonita.
Fazia dois dias que ela estava no hospital, em coma. Não conseguimos contato com ninguém da família, o mais perto que chegamos foi encontrar sua melhor amiga, que por sinal era sua vizinha – a ligação anônima não tinha vindo dela. Os pais dela se encontravam no Egito, totalmente incomunicáveis, e seu irmão, que morava junto com ela, não foi encontrado de forma alguma.
A pior parte (depois da garota quase ter morrido) era a falta de pistas no caso. Depois que ela foi resgatada o departamento de homicídios tomou conta da casa junto com a perícia, e nada foi encontrado, nenhum fio de cabelo, nenhuma pegada e nenhuma digital. Quem fez isso era extremamente profissional, provavelmente um assassino de aluguel. Eu tinha até cogitado que ela pudesse ser esquizofrenia e ter feito tudo aquilo sozinha, por mais insano que soasse, mas os exames não detectaram nada, ela era perfeitamente normal. O que nos levava de novo à estaca zero. Só teríamos resposta quando ela acordasse.
Outra coisa que estava me incomodando ao extremo era Nicolas. Ele andava um tanto quanto perturbado desde que saiu da casa com a garota nos braços. Murmurava coisas sem sentido toda vez que olhava para ela, fora o fato de eu ter certeza que ele chorou quando tirou ela do quarto – mesmo ele tendo negado e botado a culpa na fumaça. No começo eu achei que era só emoção por ter salvo uma vida, mas tinha algo a mais que isso, algo que ele não queria me contar. Estávamos revezando a segurança no quarto do hospital onde ela estava, caso alguém tentasse ataca lá outra vez, e Nicolas assumia uma postura estranha toda vez que entrava no ambiente. Era como se ele tivesse medo dela e ao mesmo tempo sentisse uma preocupação absurda com seu estado, e era mais que uma preocupação de um policial com um caso.
Fui tirado de meus pensamentos por uma tosse baixa, vinda da cama em minha frente. Ela estava acordando. Pensei em apertar o botão de emergência perto da cama, mas achei melhor não. Levantei da cadeira e fui em direção a porta, chamando a primeira enfermeira que vi assim que abri a mesma. Encostei-me ao batente da porta, observando a enfermeira tomar notas sobre a paciente, que ainda não tinha aberto os olhos por completo, só para sair logo depois dizendo que iria chamar um médico.
Aproximei-me da cama com as mãos no bolso da calça.
- ? – Chamei por seu nome, vendo seus olhos se abrirem por completo. Eles eram tão verdes, tão brilhantes. Faziam uma sincronia perfeita com seus cabelos levemente acastanhados.
- Eu não morri? – Perguntou mais para si mesmo do que para mim, com a voz fraca.
- Não, você não morreu. – Respondi rindo, voltando a me sentar na cadeira. Por que todo mundo que acorda num quarto de hospital depois de um acidente acha que morreu? Seria pelas paredes brancas e a claridade gritante? – Você sofreu uma tentativa de homicídio, mas graças a uma ligação anônima e a ação rápida da polícia, se salvou. – Ela me olhava atentamente enquanto eu relatava a situação – Você ficou em coma dois dias.
Eu esperava qualquer reação, menos uma risada.
- Desculpe, eu disse alguma coisa engraçada? Está tudo bem com você? –perguntei, me sentindo perdido.
- Eu to numa cama de hospital, é claro que eu não estou bem. – respondeu, num tom grosseiro, mas sua voz voltou ao que parecia ser o seu normal logo depois – Eu só estou feliz por estar viva.
Senti-me constrangido na mesma hora.
- Certo, me desculpe. Eu só não esperava esse tipo de reação, uma pessoa normal teria ficado assustada.
- É – ela concordou – e só uma sádica daria risada não? – Irônica
Ri baixo, me sentindo completamente envergonhado. Baixei minha cabeça tentando pensar em uma resposta para aquilo. Não havia. Decidi mudar de assunto então. Voltei a olhar para ela, que ainda tinha seus olhos em mim.
- Quer saber quem eu sou?
- É meio obvio, eu não preciso de explicações. – retrucou, apontando a cabeça para bracelete da polícia que estava quase em meu ombro, por cima do blazer preto.
Irônica, grosseira, esquisita e provavelmente masoquista. Que tipo de garota era aquela? Eu estava tentando ser cuidadoso devido a seu estado, mas já que ela parecia não se importar, eu também não me importaria.
- Certo, você não precisa, mas a polícia sim. – disse sério, já de pé – Assim que o médico chegar eu irei pedir uma autorização pra recolherem seu depoimento, já que você parece em perfeitas condições, mesmo no seu estado.
- Faça o quiser, eu não tenho nada a esconder – ela fez uma pausa, olhando para a etiqueta do hospital no meu blazer – Policial Green.
- Eu não disse que você tinha – respondi rápido, me sentindo surpreendido com suas palavras. Ela tinha algo a esconder, havia se entregado sozinha, assim que ela ouviu minhas palavras ficou quieta, seu sorriso irônico sumiu, ela abriu a boca duas vezes para falar algo, mas acabou desistindo.
O médico entrou no quarto, me tirando a chance de fazer-lhe qualquer pergunta. Não havia problema. Mais cedo ou mais tarde, eu iria descobrir o que escondia Jude.
POV.
O meu plano havia dado certo. Na verdade, tinha saído melhor do que eu esperava, eu não pretendia entrar em coma, mas como aconteceu, era algo mais ao meu favor. Pobre .
Eu não parecia ser suspeita do crime, então decidi melhorar meu plano, só para me assegurar de que a polícia iria mesmo querer ficar perto de mim, então em vez de apenas dizer que meu irmão pertencia à máfia, eu daria a entender que estava escondendo algo, e pareceu funcionar. O tal havia ficado um tanto quanto inquieto quando eu supostamente me entreguei sozinha. Não deixou de me olhar estranho desde então. Quando o médico entrou pra me analisar ele pegou um celular e foi para o corredor, me tirando a chance de observa-lo melhor. Já sabia que ele estava intrigado comigo – mas não era esse tipo de observação que eu queria fazer, eu queria observar seu físico.
Ele parecia ter saído de um filme policial, tinha um ar de mocinho de trama romântica e era o típico galã que faria a protagonista suspirar. Seus cabelos eram castanhos e seus olhos eram cor perfeição, sua pele era clara e a boca perfeitamente desenhada, contendo um tom levemente rosado. Vestia calças skinny na cor preta e seu peito estava coberto por uma blusa branca, com um blazer, também preto, por cima. Típico.
Sai de meus devaneios quando o médico me disse que eu era uma garota de sorte por ter sobrevivido, agradeci mentalmente a Deus por me ajudar a sair viva daquele quarto, apesar da minha loucura – que no final, era por um bom motivo. O doutor também disse que minha alta viria de acordo com minha evolução. Ele saiu logo depois, mas não sem antes me dizer para agradecer ao policial que havia salvado a minha vida.
Então havia sido quem me tirou do quarto antes que a água chegasse até mim? Eu teria que agradecê-lo. Vi minha chance quando ele entrou no quarto novamente. caminhou até perto de minha cama e se sentou na cadeira, sem me dizer uma palavra, em seu rosto só havia um sorrisinho cínico. Certamente eu o tinha desconcertado.
- Então – comecei – você foi o policial que salvou minha vida?
Ele riu.
- Não – respondeu mudando de posição na cadeira, seu cotovelo estava apoiado no braço do móvel, e ele despenteava o próprio cabelo, enquanto a outra mão repousava em seu colo, segurando seu celular. – Foi Nicolas.
- Nicolas? – quem era Nicolas?
- Meu parceiro, ele quase morreu eletrocutado tentando te salvar. – me respondeu, com certa má vontade na voz.
- Então onde está meu salvador? – perguntei erguendo uma sobrancelha e abrindo um sorriso irônico. – Você o espantou com esse seu mau humor?
Ele bufou, irritado, e por dois segundos eu achei que ele iria me sufocar com o travesseiro.
- Ocupado com coisas mais importantes. Aliás – fez uma pausa cruzando os braços e assumindo uma postura mais séria – eu preferia estar no lugar dele a ter que ficar cuidando de uma garotinha mimada, grosseira e sem educação. E eu não deveria nem ter que te lembrar de que eu represento a lei, e você deveria ter um pouco mais de respeito comigo.
- Essa é a sua análise sobre mim? – questionei irônica, me ajeitando na cama – Excelente, . - Frisei seu nome, o pirraçando de propósito.
- Acredito que você já esteja metida em encrenca demais, e não gostaria de ser presa por desacato. E pra você é Policial Green.
Eu não sei por que, mas por algum motivo eu estava gostando de irritar aquele Policial, então decidi provocar mais um pouco.
- Você não é o Shrek, não é nem verde, por que eu deveria te chamar de Green? – Cutuquei debochando de seu nome, só para depois rir de minha própria piada, mesmo que fosse sem graça.
- Já chega – ele disse se levantando – Eu vou pedir uma autorização pra te levar pra delegacia assim que você tiver alta.
Ele estava brincando, eu tinha certeza.
- Olha você tem um sério problema de mau humor – disse, atraindo de volta sua atenção para mim – Além do mais, a única situação em que eu deixaria você me prender – fiz uma pausa, mudando o meu tom de voz para um tom sexy e diminuindo em um sussurro quase inaudível – seria em uma cama.
Ele me olhou incrédulo por quase um minuto. Estava quase rindo da cara dele quando ele pegou um rádio no bolso de seu blazer e chamou uma viatura.
Me Fodi.
Formulei uma desculpa o mais rápido que pude, eu queria a policia na minha cola, mas não isso não poderia ser na cadeia. Estava prestes a falar quando a porta do quarto foi aberta. Revelando um moço de aparência jovial.
parou onde estava e se dirigiu ao rapaz, que mantinha os olhos em mim. Olhei o bracelete em seu braço.
- Você chegou na melhor hora, Nicolas.
Então aquele ele era meu salvador. Seria meu suspeito também?
Seus olhos estavam em mim, ele sorria ignorando completamente o seu parceiro.
- Você acordou! – Disse contente ainda sorrindo. Sorri de volta, quase de imediato, foi quase automático aquilo.
- Eu vou levar ela para a delegacia. – Disse , tomando atenção do rapaz parado na porta.
- Não – respondeu, sem entender o outro policial direito – Ela acabou de sair do coma, você não deve ter autorização pra tirar ela daqui, sem falar que depois ela pode dar o depoimento sem sair do hospital.
bufou.
- Ela tá presa. – Nicolas o olhou completamente perdido, quando ia perguntar o porquê, se apressou em responder – Por desacato – explicou, vendo que seu parceiro não entendia a situação.
- Eu não fiz nada. – me intrometi, fazendo-me de inocente. – Sua presença tava me incomodando, eu só queria te irritar pra que você saísse do quarto. – Menti.
- Se era só isso, por que não me pediu? Eu teria ficado do lado de fora do quarto.
Fiquei sem ter o que responder. O quarto ficou em silêncio por segundos que pareceram uma eternidade, até o outro policial começar a falar.
- Ela só está com medo – disse se dirigindo a , e depois caminhou até minha cama – Não precisa ter medo, nenhum de nós vai te machucar.
Eu tinha minhas dúvidas quanto aquilo.
Quando ele chegou mais perto pude olhar seu rosto melhor. Seus olhos eram azuis e oscilavam para o verde cada vez que a luz que entrava pela janela batia em seu rosto. Seus cabelos eram um pouco mais castanhos que o meu. Ele não parava de sorrir.
- Obrigada – disse baixo.
Ele assentiu, sentando na cadeira e colocando uma caixa marrom em seu colo. Ia começar a falar quando foi interrompido pela porta batendo.
tinha saído.
- Nervosinho – disse Nicolas, e eu ri, mas ainda queria perguntar algo, então me recompus.
- Eu ainda vou presa? – mordi meu lábio com medo da resposta.
- Não – Nicolas respondeu com um risinho e eu senti um alivio. – Ele não vai fazer nada, você pode ficar tranquila, eu não vou deixar.
Ok, esse policial era mais legal, e ele parecia preocupado o suficiente comigo, eu não precisava fazer mais nada, então procurei saber mais sobre seu parceiro.
- Ele é sempre assim? – perguntei.
- Não, ele só anda estressado nos últimos dias. Não é fácil ser filho do chefe. – Sorriu.
- Ele é filho do chefe? – Aquilo era interessante. Se eu conseguisse que ele ficasse na minha cola eu poderia conseguir informações mais fácil ainda.
- Sim, por quê? – Quis saber Nicolas, erguendo sua sobrancelha.
- Nada, só sou curiosa. – dei de ombros, mentindo, eu era curiosa, mas não era só por isso que eu havia perguntando.
- Então temos uma coisa em comum. – disse sorrindo outra vez, seus dentes eram perfeitamente brancos – E no momento eu estou curioso pra saber como você está.
- Minha cabeça ainda dói, e minha cintura fica latejando. – Respondi, parando pela primeira vez, desde que acordei, para analisar minha dor.
- É normal, você sofreu pancadas fortes e quebrou duas costelas.
- Duas? – eu pensei que fosse só uma.
- Sim.
Superou-se, .
Olhava pela janela do quarto apreciando o pouco de sol que entrava e batia em minha pele. O ambiente tinha ficado em silêncio pelo que eu supus ser quase cinco minutos. Eu não me importava, Nicolas parecia agradável, mesmo quando não dizia nada. Estava me lembrando de que não deveria me sentir confortável assim – mesmo que ele tenha me salvado da minha própria armadilha – afinal ele poderia ser um dos meus suspeitos. Ele começou a falar novamente.
- Eu fico muito feliz que você tenha acordado. – Disse, parecendo sincero. – Eu fiquei com tanto medo quando vi você naquele quarto – ele fez uma pausa, parecendo perdido no tempo, e fez uma expressão que eu não consegui interpretar – eu achei que você estivesse...
Ele parou de falar, sem conseguir completar a frase, sua cara amarga me fez ter a impressão de que seu estomago estava embrulhado. Seria ele tão bom policial que sentiria remorso por não poder salvar uma vida?
- Morta – completei sua frase e ele assentiu.
Decidi mudar de assunto.
- Você pode me dar um copo da água? – pedi olhando para o filtro no canto do quarto.
- Claro.
Ele se levantou e deixou a caixinha marrom na cadeira, voltando logo depois para ajeitar a cama de modo que eu pudesse me sentar, logo me estendeu o copo de plástico, cheio. Vi ele pegando novamente a caixinha marrom nas mãos.
- Ninguém merece comida de hospital. – disse, e a colocou no meu colo, sorrindo novamente.
Olhei para ele sem entender, mas Nicolas nada disse. Coloquei o copo já vazio na mesinha ao lado da cama e abri a caixa. Senti-me uma criança.
- Doces. – disse empolgada, olhando o conteúdo que tinha ali dentro, havia muffins, cookies, rosquinha cobertas de chocolate e até cupcakes. Foi inevitável sorrir abertamente.
- Shhh – ele levou um dedo ao lado da boca me pedindo silêncio, e eu mordi os lábios travessa. – As enfermeiras não podem saber.
- Certo.
Meus olhos brilhavam enquanto eu pegava um muffin com gotas de chocolate, era meu favorito, ofereci a caixa a ele, que agora se encontrava sentado novamente. Nicolas pegou um cupcake, fazendo sujeira em seu nariz ao dar a primeira mordida. Eu comecei a rir e ele me acompanhou, limpando a cobertura com as costas de sua mão. Estava prestes a pegar uma rosquinha quando a maçaneta da porta fez barulho. Nicolás pegou a caixa de meu colo na velocidade da luz, para nossa sorte, pois era uma enfermeira, a mesma de mais cedo.
- Como a senhorita se sente? – perguntou ela, com um olhar terno.
- Tenho um pouco de dor na cabeça e na cintura, mas não está mais tão ruim.
Aquilo não era mentira, eu tinha certa resistência a dor, e só estava realmente doendo quando eu ria.
- Certo. – Assentiu me olhando, seus olhos pararam no fino cobertor que estava em cima de mim. – Isso por acaso é farelo de bolinho?
Ela não estava brava, pelo contrário, segurava um riso. Nicolás e eu tínhamos a mesma expressão.
- Você andou dando bolinhos para a minha paciente que acabou de sair do coma, Sr. Nicolás? – ela tinha se virado para ele.
- Ah qual é, Annie. Comida de hospital é horrível. - Tentou se defender.
Eles se conheciam?
- Só hoje. Ok? – ela disse rindo e Nicolás concordou com a cabeça, fazendo uma cara traquina.
Assim que ela saiu nós voltamos a comer, conversando sobre coisas aleatórias, rindo por besteiras, me permiti esquecer o porquê de estar ali, só aconteceu. Nicolás me perguntou se eu me incomodaria se ele me tratasse pelo primeiro nome, deixando de lado a formalidade, eu disse que não, estava realmente a vontade com ele. Em momento algum ele quis me interrogar, ele parecia mais preocupado comigo do que com a sua investigação, mais preocupado do que qualquer outra pessoa já demonstrou estar – eu não conseguia ver mentiras em seu olhar, e por esse motivo, quando estava prestes a cair no sono novamente, eu desejei que ele não fosse quem eu procurava, não queria que aquela história acabasse comigo colocado Nicolás atrás das grades.
Capítulo 3 — Meet Clarice
- , acorde – alguém me cutucava de leve pela quarta ou talvez quinta vez.
Murmurei algo sem sentindo e me ajeitei mais na cama, tentando voltar ao sono profundo, mas seja lá quem fosse tentando me acordar não iria desistir tão cedo.
- – dessa vez foi um chacoalhão. Bufei irritada abrindo meus olhos, os coçando logo depois tentando deixa-los em foco. Era Nícolas. – Desculpa, não queria te acordar assim.
- Então por que acordou? – Ele me olhou constrangido, colocando as mãos no bolso da calça. Eu estava fula da vida, odiava que me acordassem. Virei para o outro lado querendo dormir de novo, mas quando fechei os olhos me lembrei da conversa com Nícolas mais cedo, ele não merecia meu mau humor. Passei um bom tempo refletindo e com toda a certeza aquele policial não era um suspeito meu, eu sabia reconhecer um mentiroso, ele era sincero demais e estava longe de ser um enganador. Nícolas parecia ser feito de algodão doce e unicórnios. Eu riscaria seu nome da lista de suspeito, mas não baixaria a guarda.
Virei-me para ele de novo e sorri amarelo, quis me sufocar com o travesseiro na mesma hora. O olhar constrangido ainda estava ali.
- Desculpa – pedi fazendo um biquinho – Eu não gosto que me acordem, é um convite pra um homicídio.
Ele riu da minha piada horrível – como todas as outras – e se aproximou de novo da cama.
- Tudo bem. - Respondeu, já mais tranquilo.
- Por que me acordou? Aconteceu algo? – perguntei curiosa.
Ele cruzou os braços e apoiou o corpo de lado na cama, mordendo os lábios sem parar. Não era coisa boa.
- Hm.. chamou a policia pra você – meus olhos se arregalaram na mesma hora – Se sua intenção era tirar ele do sério, você conseguiu. Ele estava rindo e eu continuava incrédula.
- Você tá rindo do que? Você me disse que eu não iria ser presa.
Levei as mãos para minha cabeça num sinal nítido desespero, eu estava fodida e Nícolas continuava rindo.
- E você não vai, fica calma. – Ele tirou minhas mãos de meus cabelos e as repousou na cama. Fiz cara de perdida e ele se apressou em explicar. – Ele te achou suspeita. Alegou que você parecia muito bem e tinha condições de dar o depoimento aqui mesmo. Eu sinto muito, como eu passei a noite aqui só fiquei sabendo agora, não pude fazer nada pra adiar isso um pouco.
- Como assim você ficou aqui a noite toda? – eu não havia dormido nem meia hora.
- Você dormiu ontem um pouco depois que a enfermeira Annie entrou aqui, e não acordou mais. – explicou.
Cocei a cabeça tentando ajeitar minhas ideias, eu me sentia um pouco lesada pelos remédios de dor, era verdade. Talvez por isso eu não percebesse o espaço de tempo. Assenti para Nícolas.
Ficamos em silencio por alguns minutos quando eu senti uma vontade louca de fazer xixi.
- Me ajude a levantar?
- Você vai querer fugir do depoimento? – questionou rindo, mas já se movimentava para me ajudar.
- Não me tente. – ri – Por enquanto só quero ir ao banheiro.
Ele puxou a fina coberta de cima de mim. Apoiei a mão em seu ombro e me ajeitei para pôr os pés no chão, mas antes mesmo que eu me sentasse direito eu já estava sendo carregada feito uma noiva. Só fui colocada no chão de novo quando chegamos á porta do banheiro que ficava no quarto. Meus pés tocaram o chão e eu senti uma pontada abaixo do peito na mesma hora, levei minhas mãos até lá, arfando com a dor. Mal as mãos de Nícolas tinham me abandonado e já estavam de volta, tentando me manter em pé. Senti outra pontada mais forte, que atrapalhava a minha respiração, tentei puxar o ar e só doeu mais ainda. Eu havia extrapolado, não era uma gênia, era burra, iam arrancar minha cabeça. O estrago havia sido exageradamente maior do que eu previ, nem os remédios que me deixavam lesadas pareciam o suficiente para que eu pudesse me levantar, eu só ficaria bem deitada ao que parecia, e isso seria por um bom tempo. Quando dei por mim estava chorando aos gritos de dor, tinha uma das mãos apoiada no ombro de Nícolas, que parecia desesperado. Ele tinha uma mão em minha cintura e a outra em minhas costas. Era nítido que ele estava com medo de me machucar mais ainda. Murmurava para eu ter calma enquanto eu só me desesperava mais. Eu estava começando a ficar com falta de ar e a cada esforço para respirar só aumentava mais a dor. A porta abriu e eu implorei por socorro, mas não era uma enfermeira.
correu até nós dois, deixando a porta aberta, meus olhos suplicavam ajuda, eu não me importava com quem ele era naquele momento, eu só queria que alguém fizesse aquela dor parar. Ele passou uma de suas mãos por debaixo de minhas pernas e levou a outra até minha cintura, onde estava a de Nícolas antes, quando me pegou no colo minha cabeça já rodava devido à falta de ar e o choro. Eu desmaiei em seus braços antes mesmo de chegar à cama, a última coisa que vi foi um policial gritando em direção ao corredor.
Acordei na manhã seguinte após o incidente na porta do banheiro, meu corpo estava tão leve que mais uma vez tive a sensação de que havia morrido, teria realmente acreditado nisso se não tivesse escutado o bip do monitor cardíaco. Abri os olhos lentamente para checar o aparelho, mas meu raciocínio foi interrompido quando meus olhos encontraram um rosto familiar.
- Oi - comecei com a voz fraca - Eu fui demitida?
Clarice levantou da cadeira bufando e marchou até a porta, achei que iria derrubar a estrutura de madeira pela cara que fazia, mas parece ter se lembrado que estávamos em um hospital.
- Eu não acredito que você fez isso, - começou brava, enquanto voltava para perto da cama - Qual o seu problema? Por acaso tava tentando comprar uma passagem só de ida pro inferno?
Respirei fundo, pensando em como explicar o que na teoria nem precisaria de uma explicação. Clarice sabia muito bem porque eu havia feito o que fiz, eu tinha noção de que havia extrapolado, mas em momento algum pensei que chegaria a tanto, mas acho que ela deveria entender que eu fiz o que era necessário para cumprir meu objetivo. Entendia a sua preocupação, ela não era só uma colega de trabalho mas também era minha melhor amiga e logo seria parte da minha família. Quando eu ia começar a falar ela se debruçou sobre mim e me abraçou.
- Você não sabe como eu fiquei desperada quando eu recebi a ligação. - Sua voz tremia um pouco, era uma mescla de preocupação, emoção e raiva.
- Clarice, eu não vou me desculpar porque sei muito bem onde você mandaria eu enfiar minhas desculpas - comecei - Mas estou feliz por estar viva e agradeço sua preocupação.
Ela revirou os olhos e se sentou novamente na cadeira, ela sabia como eu era. Ri baixinho do nosso modo, Clarice tinha 27 anos e eu 24, mas as vezes agíamos como duas crianças birrentas. Ela acabou rindo também, eu estava bem dentro do possível e não adiantaria ela me dar mais broncas, só havia uma pessoa pra quem eu abaixava a guarda e ela sabia que essa pessoa não era ela. Corri os olhos pelo quarto e me deparei com uma bolsa preta perto da minha cama, eu conhecia aquela bolsa muito bem. Apertei o botão pra ajustar a cama, seria mais fácil de alcançar se eu estivesse sentada. Consegui pegar a bolsa com um pouquinho de dificuldade, só para ouvir Clarice começar a reclamar logo depois.
- Que mania insuportável - ela tentou pegar a bolsa de volta, mas desistiu quando fiz cara feia e dei um tapa em sua mão. - Você não cansa de mexer nas coisas dos outros?
- Disse a Hacker - debochei - Que ironia vindo de alguém que invade sistemas e descobre até quantos centavos alguém tem no bolso.
- O nome disse é trabalho, VOCÊ é xereta e folgada.
Revirei a bolsa dela até encontrar o que procurava, ignorando as ofensas e tirando sarro do modo como falava. Peguei a pequena necessaire e deixei a bolsa de canto, revirando suas maquiagens atrás de um espelho.
- Por que ao invés de falar mal de mim você não me conta o que o médico disse depois que eu desmaiei e todo o resto.
- Pff, agora você quer saber da sua saúde? Você quebrou duas costelas - seu tom de voz voltou a ficar sério - não podia ter levantado da cama sem ajuda de um enfermeiro e muito menos ter tentado andar. Muito me espanta um policial ter sido tão imprudente.
Parei de mexer na necessaire e olhei séria pra ela.
- O policial imprudente foi quem salvou minha vida - voltei a mexer na bolsinha, já sem paciência. - Que droga, Clarice, não tem a porcaria de um espelho nessa coisa.
Ela se levantou e pegou sua bolsa, tirando um espelho do bolso lateral.
- Tem certeza que quer ver?
- A coisa tá tão ruim assim? - Ok, agora eu estava realmente preocupada. Peguei o espelho da sua mão e me arrependi assim que abri e vi meu reflexo, eu tinha um dos olhos roxos, minha bochecha esquerda tinha um corte enorme, meus lábios estavam inchados e cortados e haviam diversos curativos perto da minha sobrancelha, isso sem contar a faixa enorme que estava em volta da minha cabeça amassando meu cabelo, que por sinal estava um lixo ainda pior. Apertei os lábios em uma linha reta, não queria chorar por me ver naquele estado. Respirei fundo e peguei a necessaire novamente, a maquiagem poderia ajudar um pouco a melhor meu rosto e haviam coisas mais importantes.
- Clarice, eu precise que você me conte o que aconteceu depois que a polícia me trouxe pra cá. Quem conversou com eles?
Eu amava o fato da minha melhor amiga entender quando eu não queria mais tocar em assunto e partir pra outro quando eu simplesmente mudava o rumo da conversa. Compreensiva como era, ela se sentou na cama e começou a me ajudar com a maquiagem, enquanto começava a falar.
- Eles me ligaram assim que te trouxeram pra cá, mas como eu supostamente teria que estar longe na hora do atentado, não pude vir pra cá na hora. Falei com eles por telefone e fiquei em choque quando me falaram do seu estado - sua voz voltou a ficar tremula - não era pra ter chegado a tanto. Eu queria correr pra cá, mas não me deixaram.
Clarice passava a maquiagem bem devagar, tentando não piorar os machucados, mas foi inevitável soltar um gemido de dor quando o pincel passou pelo corte em minha bochecha.
- Continua - pedi quando ela abaixou o pincel e me olhou triste. Ela ia começar a falar, mas interrompi, levando sua mão com o pincel de base novamente ao meu rosto, dando a entender que deveria continuar com a maquiagem - Os dois.
Ela assentiu e voltou a trabalhar no meu rosto, com a mão mais leve ainda.
- Eu cheguei aqui ontem a noite, me contaram o que aconteceu e logo depois me encheram de perguntas. Um policial chamado Green, na verdade, fiquei com vontade de socar a dele. Um grosso.
- Não foi a única. - Ri baixinho. - Ele queria me prender por desacato.
Clarice se afastou pra me olhar.
- Inacreditável - disse chacoalhando a cabeça. - Eu não sei o que aconteceu, mas tenho certeza de que você provocou.
- Talvez, mas continua.
- Enfim, me perguntaram se alguém teria algum motivo pra te atacar - continuou contando, enquanto passava o gloss em mim - e eu disse o combinado. Você era uma pessoa sem inimigos, mas seu irmão vendia drogas e tinha envolvimento com a máfia italiana. Aquele grosso ficou bem intrigado e acho que ele vai ficar no seu pé, como a gente tinha planejado, mas acho que você vai ter problemas.
- Por que? - Perguntei sem entender.
- Porque a ideia era que você tivesse um só policial na sua cola - explicou enquanto passava o rímel nos meus cílios - mas parece que vão ser dois. Aquele irresponsável que te tirou da cama.
- Nicolas - interrompi.
- Tanto faz, ele me deixou um pouco intrigada. Enquanto o outro parecia mais preocupado com a situação em si, ele parecia mais preocupado com você.
Fiquei pensando naquilo, eu também havia notado a preocupação do policial Hans comigo, mas meu instinto não apontava nada pra ele, e eu confiava muito no meu instinto. Meus pensamentos foram interrompidos por batidinhas na porta, meu visitando, porém não esperou resposta para entrar.
- Tudo bem por aqui? - era Green, estava sério - Eu ouvi vozes enquanto fazia a ronda - ele já estava me vigiando? Perfeito. - Imaginei que tivesse acordado, acho melhor chamar uma enfermeira? - Sua última palavra saiu mais como uma pergunta, ele reparou que minha miga me pintava e pareceu um pouco intrigado.
Eu iria responder, mas Clarice não me deu chance. Ela apertou o botom pra chamar a enfermeira sem tirar os olhos de mim, ignorando completamente a presença do policial no quarto.
- Já chamei - sua voz era firme e não deixava brechas para qualquer conversa. Ele havia mesmo irritado ela, até mais do que a mim pelo jeito. - Pode sair, fecha a porta.
Ele saiu sem dizer nada, sem sequer fazer uma cara feia. Era só eu que recebia deboche e careta?
- Não suporto homens grosseiros. Acabei.
Peguei o espelho novamente, ela havia feito um bom trabalho. Não dava pra dizer que eu estava linda, mas também não estava tão horrorosa como antes.
- Obrigada.
- Você vai conseguir fazer seu trabalho com dois policiais na sua cola? A gente pode tentar dar um jeito pra ser só um, eu não sei.
- Vou - respondi, ajudando ela a arrumar a bagunça de volta em sua bolsa. - Nicolas parece ser mais tranquilo, vai ser interessante porque ele trabalha com o Green e pode me dar mais informações. Green parece ter sido um ótimo acerto, ele é filho do chefe.
- O pai daquele grosso é um delegado? - ela parou de mexer na bolsa e me olhou séria.
- Sim, eu ia tocar nesse assunto com você. Você já sabe o que fazer, o nome dele é Green, procure toda a informação que puder.
- Só dele? - sua sobrancelha estava erguida, questionando algo que eu não queria entregar - Você chamou o outro policial duas vezes pelo nome e ele não te tratou por Jude também enquanto falava comigo. O que tá rolando? Vocês já se conheciam? Ele é um ex seu ou algo assim?
De onde ela tirou isso? Meu Deus.
- Você tá maluca? Clarice, você sabe onde eu esconderia um cadáver. Por que eu esconderia algo de você?
- Não é algo, é alguém. Você sabe o que eu quero dizer.
Ela tocou num assunto que eu estava tentando evitar, pois envolvia muitas coisas, não só do trabalho, mas também pessoais, e uma coisa sempre acabava envolvendo a outra.
- Eu juro pra você que eu nunca tinha visto esse policial até eu acordar nessa cama ontem - ela cedeu, sabendo que eu não mentiria sobre esse assunto, e voltou a sentar do meu lado. - O nome dele é Nicolas Hans, ele tem 24 anos e é policial a 5, fica à vontade pra investigar. Mas o meu instinto não falha, e não tem nada perigoso nele.
Ela assentiu, não tinha a mínima ideia do que se passava na cabeça dela agora, mas eu me vi obrigada a voltar no assunto que não queria tocar, com medo da resposta, mas com a curiosidade falando mais alto.
- E ele? - perguntei baixinho.
Clarice coçou os olhos e respirou fundo, só por esse gesto já entendi que a coisa iria piorar.
- Ele tá furioso, sinceramente eu acho que se você tivesse morrido ele não iria se perdoar nunca e acabaria morrendo também. Eu não entendo, tenho a impressão de que ele daria a vida por você, mas ele não...
- Não quero falar mais disso. - interrompi. - E o meu irmão?
- Ok. Lucas está bem, preocupado com você mas bem. Ele vai ficar escondido pra nenhum policial ir atrás dele, como a gente já tinha acertado.
Assenti. Meu irmão era tudo pra mim, desde que toda aquela loucura começou foi a primeira vez que senti culpa, quando pensei em Lucas. Meus pais passavam o tempo todo viajando, eram carinhosos, mas ao mesmo tempo eram ausentes, por um lado era bom porque facilitava o nosso trabalho, mas por outro eu sentia falta deles. Durante a maior parte do tempo, eu só tinha o meu irmão e éramos muito unidos. Quando eu quis entrar no meio disso tudo ele relutou muito, afinal um de nós em perigo já era o suficiente, mas quando eu me encontrei no meio das investigações e ele viu que eu realmente amava fazer isso, não pode mais me impedir. E assim chegamos até aqui, Lucas estava a 5 anos no FBI e eu a 2, era esperta demais para fazer somente trabalho de escritório, com menos de um ano já tinha virado a gente de campo. Eu amava aquilo.
Olhei pra Clarice e sorri, as vezes eu me perdia pensando nessas coisas. Ela namorava com meu irmão desde a adolescência. Nós éramos vizinhas e crescemos juntos, naquela época mal sabíamos que terminaríamos todos metidos na mesma equipe trabalhando no FBI. Ela odiava o trabalho de campo, era uma hacker extraordinária e uma das pessoas mais inteligentes que já conheci. Clarice vinha de uma família que exercia a lei, seus avós serviram a marinha e seus pais serviram no exército e morreram em batalha, eram heróis. Ela seguiu no caminho a favor da lei, embora de outra maneira. Sua escolha era completamente diferente da de seu irmão, ele era...
Tive meus pensamentos interrompidos pelo barulho da porta, minha amiga que quase cochilava na cadeira se virou para olhar, assim como eu. Quando a porta abriu de vez meu sorriso foi inevitável. Seu nome escapou pela minha boca antes mesmo que eu pudesse pensar.
- Aaron.
Capítulo 4 — The Neighbors
Meu sorriso se desfez assim que vi a expressão nada amigável de Aaron, sua cara fechada me dava um leve sinal do que eu poderia esperar nos próximos instantes.
- Clarice - ele chamou a irmã, apontando a cabeça na direção da porta, ainda sem me olhar nos olhos.
- Ok - ela se levantou sem a menor cerimônia, entendendo que ele queria que ela deixasse o quarto.
Isso não era bom, eu levaria uma bronca ainda maior do que a de Clarice e eu não suportaria aquilo vindo dele, principalmente se ele quisesse me demitir. Eu quase nunca tinha forças suficientes pra me impor a Aaron, fosse no trabalho ou em qualquer outra questão.
Segurei o braço da minha melhor amiga, em um pedido silencioso para que ela ficasse até eu ter certeza de que as coisas não fossem seguir um rumo muito ruim, mas sabia que não adiantaria. Ela deu um beijo na minha testa e saiu a passos lentos do quarto, pude perceber ela murmurando um "pega leve" para Aaron antes de fechar a porta.
Me ajeitei na cama, tentando ficar o mais ereta possível enquanto Aaron caminhava em minha direção finalmente me olhando. Seus olhos queimavam de fúria, eram raras as vezes em que eu conseguia tirar ele do sério, normalmente nos dávamos bem em 90% do tempo, mas daquela vez ele parecia estar com raiva de um jeito que eu nunca tinha visto.
Só notei que estava prendendo o ar quando precisei fazer força para respirar, o monitor cardíaco disparou como louco quando ele estava a apenas alguns passos da cama. Me preparei para começar a me justificar quando Aaron tomou a atitude que eu menos esperava, eliminando qualquer espaço entre nós.
Não sei como aquilo aconteceu tão rápido, eu mal pude me dar conta de quando fui tomada pelos seu lábios que me beijavam com fúria, não sei quando ele se sentou na cama e eu cedi ao seu beijo, mas já o agarrava com a mesma intensidade. Embrenhei meus dedos em seu cabelo e retribui o beijo com mais vontade ainda, não costumávamos ficar muito tempo longe um do outro, não tinha percebido o quanto havia sentido falta do seu toque até o momento em que ele me beijou.
Uma de suas mãos passeava pela minha cintura enquanto a outra permanecia agarrada aos meus cabelos, mantendo meu rosto colado ao seu. Eu sabia que aquilo era errado, sabia o quão arriscado era estar com ele em um lugar onde a porta não estava fechada e qualquer um poderia entrar, mas não conseguia me afastar, nem mesmo Aaron que era sempre tão cuidadoso com a nossa relação parecia se importar com isso naquele momento. Eu entendia o desespero, pelo menos uma vez durante os últimos dias deve ter passado pela sua cabeça que ele poderia me perder, que nunca mais sentiria os meus lábios no seu outra vez. Queria sentir que eu ainda estava ali, que era real e ainda era dele.
Mordi seu lábio inferior e senti sua mão apertar minha cintura com um pouco mais de força do que deveria, não queria que ele parasse de me beijar, mas assim que ele me ouviu arfar de dor partiu o beijo. Não demorou muito pra que ele se afastasse, estava ofegante mas tentava sustentar uma expressão mais séria do que de surpresa pela suas ações, porém não estava dando muito certo, eu o conhecia muito bem.
Com Aaron afastado de mim pude finalmente reparar no monitor cardíaco de novo, lá estava ele disparando como louco novamente, era esse o efeito que aquele homem tinha sobre mim. Coloquei a mão no peito tentando controlar a minha respiração e acabei rindo involuntariamente de tudo aquilo, embora eu não tivesse condição nenhuma, se aquele beijo tivesse durado mais alguns segundos eu logo estaria em cima dele tratando de tirar sua camisa, era incrível como ele me fazia perder o controle. Eu ainda ria quando Aaron se levantou e apertou o botão para silenciar o aparelho, atitude inteligente, pois se aquela coisa não parasse de fazer barulho logo uma enfermeira viria até o quarto e o colocaria para fora dizendo que ele estava me agitando e eu precisava de repouso, o que de certa forma não era mentira.
Ao invés de se sentar novamente, vi o homem de olhos castanhos se dirigir até o outro lado do quarto e encher um copo de água no filtro que ficava ali. Aproveitei o momento para admirar a visão, ele usava terno e eu ficava completamente apaixonada por ele daquele jeito, se tornava ainda mais homem e ainda mais sexy quando tinha uma gravata em seu pescoço. Era uma sacanagem ele ir me vestido daquela forma e me beijar assim quando eu não poderia fazer mais nada depois. Filho da mãe.
Não sei se era resultado das pancadas ou dos últimos acontecimentos, mas eu andava muito perdida nos meus pensamentos desde que havia acordado do acidente, não vi quando ele voltou para perto de mim, quando voltei pra Terra ele já estava sentado na cama novamente, me estendendo um copo de água.
Bebi aquilo o mais devagar possível, sabendo que assim que acabasse ele arrancaria a minha alma do corpo e tentaria me demitir, mas infelizmente o copo não era tão grande. Não havia mais como adiar aquela conversa.
- Vai, pode começar. Clarice já me passou um sermão, é a sua vez.
- Eu não sei o que dizer pra você. - Oi? Eu ouvi direito? Não consegui decifrar sua expressão.
- Você entrou com uma das piores caras que já te vi fazendo e agora me diz que não sabe o que dizer?
- Você é uma filha da puta, - disparou enquanto esfregava a testa - Eu entrei aqui pronto pra brigar com você e dizer umas boas verdades que você com certeza tá merecendo escutar, mas você me desarmou completamente quando eu te vi. - Sua voz continha um tom de raiva e ele parecia se controlar pra não botar tudo aquilo pra fora de uma vez, de uma forma que me magoasse. - Você é cheia de dizer que eu mando nessa relação, mas você me manipula só com o olhar, você merecia um belo de um esporro pela sua estupidez e eu simplesmente não consigo falar nada do que eu queria. Você por acaso parou pra pensar em mim enquanto quase se matava naquele quarto? - Seu tom de voz diminuiu, puder notar uma lágrima escorrendo pelo canto de seu olho. - Como eu iria ficar se não te salvassem a tempo, como?
Ás vezes eu não sabia lidar com a nossa relação, Aaron sentia que eu o manipulava mas era a única pessoa pra quem eu baixava a cabeça e de quem aceitava ordens. Eu era impossível e só ele parecia dar conta de mim, como se eu fosse um leão e ele o meu domador. Mas ele não se via naquela posição, e não era difícil entender o porquê, ás vezes eu mandava mesmo nele, mas não era como se ele fosse meu cachorrinho ou algo assim. Era uma relação complicada demais, mas não sabíamos viver um sem o outro.
- Me perdoa - disse baixinho, enquanto esticava a mão pra fazer carinho em seu rosto. Vi ele fechar os olhos e derrubar mais algumas lágrimas quando a pele quentinha da minha mão encontrou sua bochecha e ele se aninhou ali.
- Você sabe que eu sempre perdoo.
Ele permaneceu de olhos fechados, mas colocou sua mão em volta da minha. Procurei sua outra mão livre e entrelacei meus dedos nela.
- Eu sei que passei dos limites, mas nunca pensei que fosse me machucar tanto. Não queria me matar. - disse sincera.
Aaron soltou a sua mão que estava em volta da minha, pousando a minha na coberta logo depois. Vi ele se ajeitar e assentir com a cabeça.
- Eu sei. Quero deixar bem claro pra você também que esse é o único motivo de você ainda ter um distintivo. Você arriscou sua vida pra conseguir chegar ao fundo de um caso e não seria justo afastar você agora. Mas saiba que foi a última vez que eu te designei pra fazer algo assim. Você não tem juízo.
Concordei com a cabeça, eu já esperava aquilo. Mas pelo menos ainda tinha o meu emprego e continuava naquela missão.
- Eu já imaginava. Obrigada por reconhecer meu sacrifício. - ri enquanto ele permanecia sério.
- Não tem graça, . Você poderia ter morrido.
- Aaron - falei séria - EU - JÁ - SEI. - estava perdendo a paciência com aquilo - Todo mundo vem aqui e me fala isso, eu já sei que poderia ter morrido. Por quê ao invés de bater na mesma tecla você não muda o disco.
- Você não tem jeito mesmo. - Aaron disse bufando e rolou os olhos. Hoje os irmãos Smith decidiram testar a minha paciência, só faltava entrar naquele quarto de novo pra que eu explodisse de vez.
Respirei fundo tentando me manter calma, eu não queria brigar. Brinquei com nossa mão que ainda estava entrelaçada até atrair sua atenção, ele olhou o que eu fazia e balançou a cabeça rindo baixinho. Me inclinei em sua direção e encostei meus lábios nos seus, dessa vez o beijo foi mais calmo, nos permitindo respirar, ele me deu vários selinhos e encostou sua testa na minha.
- Eu amo você - sussurrou - Não me assusta mais assim.
- Eu prometo.
Ouvimos um barulho na porta e tratamos de nos afastar rapidamente. Era Annie, com seu sorriso amigável.
- Por que isso está mudo? - questionou mexendo no monitor e ligando o som novamente.
- Desculpa, eu pedi para minha amiga desligar antes de sair. O barulho estava me dando dor de cabeça.
Vi Aaron dar um sorriso sapeca com a minha mentira, eu era rápida naquilo. Annie no entanto, não pareceu notar, apenas assentiu.
- Preciso que o som fique ligado, do contrário se ocorrer algo ninguém virá te socorrer. Sua cabeça ainda dói?
- Um pouco, mas tudo bem. Se puder me dar um analgésico, estou com um pouco de dor na cintura também, nas costelas. - aquilo era verdade.
- Tudo bem.
Vi Annie mexer no armário que permanecia trancado e tirar de lá o que supus ser um analgésico. Tomei assim que ela me entregou o comprido junto com um copo de água. Depois de checar que estava tudo certo, ela se retirou do quarto.
- Desculpa, eu esqueci do seu estado e acabei passando dos limites - demorei um pouco pra entender que ele se referia ao apertão na minha cintura um pouco antes. - Te machuquei?
- Não, eu só não posso fazer nada muito brusco, as vezes até rir dói.
Ele assentiu e ficou em silêncio por alguns minutos. Aaron havia se sentado na cadeira em frete a cama quando Annie quis me examinar. Ele fez aquela expressão de quando queria me dizer algo e não sabia como, se inclinou uma quarta vezes pra frente e desistiu. Não era nada agradável pelo jeito.
- Fala.
- Não dá pra esconder nada de você mesmo, né? - ele riu sem humor - Olivia quer te ver.
- Não.
- , ela não sabe de nada. Pra ela você foi realmente atacada, ela ficou preocupada. Ela nem sabe que você trabalha comigo, imagina o susto que ela tomou quando a Clarice chegou e disse que você tinha levado uma surra e ficou em coma.
Aquilo estava fora de cogitação, eu era sim forte e uma bela mentirosa, mas também não tinha sangue de barata. Evitava qualquer contato próximo com Olivia, eu sabia que estava sendo uma bela de uma filha da puta com ela e quanto mais longe eu me mantivesse dela, menos pior eu conseguiria me sentir comigo mesma.
- Aaron você não tem vergonha de me pedir isso? - Sério, eu me recusava a acreditar que ele achava aquilo uma coisa boa a ser feita. - Em que momento passou pela sua cabeça que eu me sentiria confortável com ela aqui me paparicando e fazendo carinho na minha cabeça enquanto diz que ficou feliz por eu estar bem?
- Você quer que eu diga o que pra ela? - ele parou me encarando sério. - "Olha Olivia, ela não quer te ver porque se sente mal toda vez que olha pra você porquê ela está transando com seu marido." É isso que você quer que eu fale?
- Cala a boca, Aaron.
Eu odiava aquela situação, amava a Aaron mais do que acreditava amar a mim, mas ele não era meu, pertencia a outra pessoa. Ele havia se casado com Olivia a 7 anos atrás, mas mantinha um relacionamento comigo a 3.
Nossa relação começou graças a uma brincadeira idiota na sala de Clarice, eu nunca esqueceria aquele dia.
Flashback - 3 anos atrás.
Estávamos comemorando com um grupo de amigos que havíamos terminado a faculdade e decidimos jogar o jogo da garrafa. Metade do nosso grupo já se encontrava ligeiramente bêbado, exceto por mim e minha melhor amiga, mas pela garrafa que ela acabava de virar, acho que não pretendia ficar sóbria por muito tempo também.
A garrafa girou novamente e terminou apontada pra mim.
- Vamos lá - começou Kyle, que havia girado a garrada - Com quem Jude perdeu a virgindade?
Ok, por aquela eu não estava esperando. Eu não queria contar ali no meio de todo mundo que ainda era virgem, havia umas quinze pessoas naquela sala e nem todos eram tão próximos de mim.
- Desafio.
- Ok, vai lá no quarto do irmão da Clarice e da mulher dele só de lingerie e chama eles pra um ménage.
O QUE?
Olhei pra Clarice com os olhos arregalados e ela ria sem parar, já estava bêbada. Não ia ter jeito. Kyle imbecil. Em um ato de imbecilidade maior ainda, eu aceitei o desafio e tirei minhas roupas na sala, fazendo a alegria dos meus colegas e amigos bêbados.
Corri seminua em direção aos quartos, tentando me esconder em minha própria lingerie enquanto eles voltam a girar a garrafa. Minha ideia era bater na porta e chamar só Olivia pra que ela mentisse que eu cumpri o desafio, o problema foi que quando eu chamei por ela, Aaron foi quem abriu a porta e estava só de cueca.
Abri a boca várias vezes mas não consegui dizer nada, estava constrangida por estar seminua e não conseguia tirar os olhos do corpo praticamente nu de Aaron. Seus olhos passeavam descaradamente pelas minhas curvas e ficaram um bom tempo parados nos meus peitos parcialmente cobertos pelo sutiã que eu tentava tampar sem sucesso.
- O- Olivia n- ão está - ele gaguejou, provavelmente tão constrangido quanto eu. Ele pigarreou umas duas vezes e virou a cabeça pro lado, tentando desviar o foco do meu corpo. - Ela teve que viajar por um problema fa-familiar, foi de última hora.
Assenti. Porque eu ainda estava ali?
- Tá tudo bem lá em baixo? - perguntou voltando a me olhar - Você sujou sua roupa e queria algo de Olivia emprestado?
Se eu dissesse que nunca me senti atraída por ele seria mentira, homens mais velhos me chamavam atenção e ele era maravilhoso, digamos também que eu tinha uma espécie de atração por ele desde a adolescência, mas era ridículo, ele tinha 6 anos a mais que eu e nunca me deu bola. E eu sempre mantive o respeito pelo fato dele ter namorada e agora era um homem casado. Naquele dia, porém, o destino parecia ter brincado comigo.
- ? - ele chamou novamente.
Chacoalhei a cabeça saindo dos meus devaneios e tirando olho das suas entradas.
- Eu... eu
- Você...? - não dava, eu voltei a encarar seu corpo perfeitamente definido, ele tinha os músculos certos nos lugares certos sem ser de uma forma exagerada. Vendo que eu não respondia ele me chamou de novo. - ? Acho melhor você entrar e se vestir.
Ele se afastou dando passagem para que eu entrasse no quarto, mas eu não sabia se aquilo era uma boa ideia, ainda mais comigo babando daquele jeito pelo corpo dele. Agora Aaron não era só um rosto bonito, era um corpo extremamente gostoso e convidativo. Eu permaneci travada na porta até ver ele esticar a mão na minha direção com uma camisa, sua camisa. Merda.
Entrei no quarto aceitando a camisa e a vesti o mais rápido possível. Aaron era muito mais alto do que eu, logo a peça cobriu meu corpo até quase o joelho, o que era um alívio. Não tive coordenação motora pra fechar os botões, então só cruzei os braços tentando tampar o máximo possível. O maior problema foi que a blusa estava infestada com o seu cheiro que era delicioso. A coisa ficava cada vez mais dificil, por sorte ele parecia mais calmo e tentava não piorar tudo, vi ele vestir uma calça de moletom e sentar no pé da cama, perto de onde eu estava. Droga, não dá pra elogiar a situação mesmo.
- Quer me contar porque subiu aqui assim? - Sua voz estava séria, mas eu ainda podia perceber seu olhar sobre meu corpo, ainda que mais discreto.
Ele estava gostando da situação? Eu estava gostando da situação? Que merda era aquela.
- Eu... - respirei fundo e olhei pra cabeceira da cama, tentando não me perder nas sua entradas de novo - eu não quis responder a uma pergunta e me desafiaram a vir aqui só de lingerie chamar vocês pra um ménage.
Aaron começou a rir, uma risada extremamente sexy. Ele sempre riu daquele jeito e eu nunca percebi?
- Você ia mesmo fazer isso? - ele ainda ria e eu novamente desviei meus olhos pra não perder o juízo.
- Não, por isso eu chamei a Olivia. Minha ideia era contar pra ela e depois pedir que ela descesse comigo pra dizer que eu cumpri o desafio.
Aaron umedeceu os lábios, tentando esconder um sorriso e eu vi que realmente precisava sair dali ou eu iria voar em cima dele a qualquer minuto. Parece que todos os meus hormônios decidiram se manifestar naquele dia.
- Acho melhor eu ir - comecei a falar e dei um passo em direção a porta. Por ironia do destino, eu tropecei em um cinto que estava no chão e cai pra frente, fechei os olhos pra evitar medir o tombo que ia levar, mas Aaron foi mais rápido e me segurou pra que eu não me esborrachasse contra a madeira da cama, o problema foi que acabou me puxando pro seu colo.
(n/a: coloque Body Party da Ciara para tocar.)
Droga, droga, droga, droga.
Eu estava sentada em seu colo seminua. A adolescente que ainda habitava em mim fez a adulta arfar quando sentiu o delicioso cheiro de sabonete exalar do corpo de Aaron. Me permiti abrir os olhos e logo me arrependi, ele me olhava cheio de luxúria, com os lábios entre abertos e parecendo tão cheio de desejo quanto eu. Seus cabelos molhados pingando água em seu peito deixavam a situação ainda mais sexy.
Não dava mais.
Soltei o peso do meu corpo sentando de vez em seu colo, sentindo um certo volume no lugar. Uma de suas mãos escorregou pelas minhas costas enquanto a outra subiu pelo braço até chegar no meu pescoço.
Toquei seu rosto com as duas mãos e me aproximei de seus lábios, quando estava a ponto de beijar ele escutei- o sussurrar baixinho:
- Você bebeu?
Não sei se ele estava fazendo de propósito, mas sua voz saiu rouca e ainda mais sensual, o que fez meus hormônios gritarem dentro de mim, acabei me movimento em seu colo involuntariamente.
- Dois copos de tequila - respondi, no mesmo tom.
- Você não tá bêbada, né? - sua boca subiu até meu ouvido, enquanto a mão que estava em meu pescoço parou na gola da blusa. Fiz que não com a cabeça, respondendo a sua pergunta.
Deslizei meus braços pelo seu pescoço e senti seu olhar queimar novamente nos meus.
- Me diz seu nome - sussurrou novamente - e quantos anos você tem.
Seu nariz passou pelo meu pescoço, me provocando arrepios de cima a baixo.
- Meu nome é Jude - devolvi o sussurro, pressionando minha intimidade contra sua ereção que crescia cada vez mais. - Tenho 21 anos e não sei o que você está esperando pra terminar de tirar a minha roupa. - respondi, mordendo o lóbulo de sua orelha.
Foi o suficiente para que ele terminasse de perder o juízo e me fizesse perder o que ainda restava do meu logo depois.
Aaron colou seus lábios no meu, eu ri durante o beijo sem acreditar que aquilo estava mesmo acontecendo. Sua boca era tão gostosa quanto eu havia imaginado, sua língua se entrelaçava a minha sem pudor e sua mão em minhas costas me puxava cada vez mais para si.
Entrelacei minhas pernas em sua cintura terminando com qualquer espaço entre nós. Sua mão que estava em minha nuca desceu até a gola da camisa e começou a puxar ela para baixo, soltei seu pescoço para me livrar de vez da peça, minha ideia era arrancar aquilo sem cerimônias e sem partir o beijo, mas Aaron desgrudou sua boca da minha e começou a deslizar o tecido pelo meu corpo da forma mais lenta possível, acompanhando cada parte com o olhar.
Quando a camiseta já estava no chão ele me puxou para perto de novo, voltando a explorar meu corpo com as mãos.
- Isso é tão errado - disse baixinho, me olhando nos olhos.
Por um momento eu achei que ele iria desistir de continuar aquilo, mas mal tive tempo de responder e sua língua já me pedia passagem novamente. Já havíamos passado dos limites, não era hora de voltar atrás.
Meu corpo queimava, eu nunca havia sentido aquilo, era assim que você se sentia quando estava com alguém que desejava? Aaron passou a beijar meu pescoço e institivamente eu comecei a rebolar em seu colo, eu sentia minha intimidade cada vez mais úmida, acho que eu nunca tinha ficado tão excitada em toda minha vida, claro tampouco tinha ficado seminua no colo de algum homem alguma vez.
Passei minhas mãos pelo seu peito, descendo devagar e arranhando levemente suas entradas enquanto seus lábios iam em direção aos meus seios ainda cobertos pelo sutiã.
Encontrei o elástico de sua calça e puxei para baixo, entendendo o que eu queria ele puxou a peça de uma vez, sem desgrudar seu lábios do meu corpo.
Procurei sua boca novamente, cada vez mais excitada com sua ereção raspando em minha intimidade através da calcinha. Senti sua mão abaixar a alça do meu sutiã e rebolei mais em seu colo, incentivando para que ele eliminasse qualquer peça de roupa logo.
Para a minha surpresa ele se levantou comigo no colo, só pra me jogar na cama logo depois. Ainda de pé ele encarou meu corpo de cima a baixo, passando a mão nos cabelos e puxando pra trás, ele riu sem emitir som nenhum e eu logo o acompanhei.
Vi Aaron fechar a porta que eu havia me esquecido completamente que estava aberta, escutei o barulho da chave logo depois. Aquilo ia mesmo acontecer.
Quando ele se virou ainda sorrindo eu decidi acelerar as coisas, me ajeitei na cama pra abrir o sutiã e me livrei daquela parte da lingerie o mais rápido possível.
Aaron parou na metade do caminho, admirando a visão, e eu fui pega completamente desprevenida quando ele decidiu tirar a única peça de roupa que ainda lhe restava no meio do caminho, infelizmente não tive muito tempo pra contemplar a visão, eu mal pisquei e ele já estava em cima de mim distribuindo beijos por todas as partes.
Eu não sei se eram os dois copos de tequila (o que achava impossível) ou a adolescente que estava muito feliz (opção mais provável), mas eu não conseguia para de rir, eu estava muito feliz com a situação e nunca mais xingaria Kyle de imbecil por qualquer coisa que fosse, sua pergunta idiota havia me levado até ali. A essa altura todo mundo já deveria estar tão bêbado que nem se lembrava mais do que eu tinha ido fazer.
- Do que você tá rindo? - Aaron perguntou, alargando o sorriso contagiado pela minha risada.
- Eu vim parar aqui porquê eu não quis responder uma pergunta e a minha eu de 16 tá muito feliz. Então ela quis que eu comemorasse.
Eu ri mais ainda quando Aaron jogou a cabeça pra traz e riu junto comigo. Aproveitei sua distração pra enroscar uma das minhas pernas em sua cintura, mas ele parou de rir e ficou sério. Achei que era por causa do que tinha feito, ia mover minha perna novamente, mas ele deslizou sua mão até minha coxa e segurou ela ali.
- Sua eu de 16 anos? Tá dizendo que...? - Ele perguntou um pouco confuso.
Assenti com uma expressão um pouco constrangida, mas Aaron logo sorriu e me beijou de novo. Sua mão que estava em minha coxa subiu um pouco e se enroscou em minha calcinha, torcendo o tecido na lateral.
- Eu tenho duas perguntas antes da gente continuar isso. - Disse com o rosto próximo ao meu, ainda sorrindo.
- Eu já falei que não estou bêbada -. Ri
- Não é isso, o que te perguntaram de tão ruim que você preferiu correr pra cá só de calcinha e sutiã?
Cogitei falar a verdade, mas fiquei com medo de que ele repetisse a mesma pergunta de Kyle, eu acabaria soltando que era virgem e não sabia como ele reagiria com aquilo. Se ele decidisse que não era uma boa ideia continuar por conta disso eu ficaria frustrada pelo resto da vida.
- Nada que seja do interesse de um homem de 27 anos.
Sua mão soltou um pouco a lateral da minha calcinha.
- Tem certeza? - um sorriso sapeca dançava em seu rosto.
Coloquei a minha mão em cima da sua, fazendo ele segurar novamente o tecido como antes.
- Tenho. Qual a segunda pergunta?
Eu ainda ria, mas vi seu rosto assumir uma expressão um pouco mais séria.
- Tem certeza de que quer fazer isso?
- Você não quer? - arqueei as sobrancelhas, um pouco confusa.
- Eu to perguntando se VOCÊ quer.
Assenti, puxando ele pra mais um beijo. Eu não havia chegado até ali pra desistir na hora h, não me importava mais se aquilo era errado ou não.
Aaron tirou a minha calcinha da mesma forma que havia feito com a camiseta antes, eu sentia meu corpo se arrepiar cada vez que sua mão encostava em minha pele. Quando ele se afastou pra procurar uma camisinha na mesa de cabeceira eu finalmente tive tempo pra admirar o que ele não me deixou fazer antes.
Se Aaron já era um dos caras mais gostosos que eu conhecia, ele sem roupa iria parar no topo da lista. Mordi os lábios com a visão, gravando cada detalhe do seu corpo, e tentei relaxar o máximo possível para o que viria logo depois.
Perdi o ar quando seu corpo se encaixou novamente no meu e ele buscou espaço entre minhas pernas. Totalmente inconsciente de que aquela era minha primeira vez, Aaron me penetrou de uma vez só, me fazendo soltar um grito que era mais de dor do que prazer. Ele me olhou assustado e fez menção de sair de dentro de mim, mas o impedi fincando as unhas em seus ombros e beijando sua boca do jeito mais apressado possível.
Ele começou a se movimentar devagarinho enquanto eu fazia o máximo pra disfarçar a careta de desconforto até me acostumar com o entra e sai na minha intimidade. Não percebi em que momento eu deixei de sentir tanta dor e passei a gemer baixinho na boca dele, mas ele fazia o mesmo, soltava gemidos e palavras sem sentido, mas sem descolar sua boca da minha.
Voltei a colocar uma das minhas pernas em sua cintura e ele pareceu gostar, apertando a minha coxa bem ali. Parecia uma posição mais confortável também, senti ele intensificar os movimentos e gemer um pouco mais alto. Sentia o suor escorrer pela minha nuca. Eu nunca havia sonhado com a minha primeira vez, mas tinha certeza que aquilo era muito melhor do que qualquer coisa que eu poderia ter imaginado.
Senti algumas espasmos seguidos por uma sensação que no momento eu não saberia descrever, um prazer tão gostoso que não poderia ser igualado a nada que eu já havia sentindo. Aaron havia me dado o meu primeiro orgasmo. Sorri igual idiota voltando a beija-lo enquanto ele me penetrava mais algumas vezes. Achei que fosse gozar de novo quando vi a cara dele tendo um orgasmo e gemendo, sério ele parecia ficar mais gostoso a cada vez que eu olhava pra ele.
Ele investiu mais algumas vezes e depois saiu por completo, se afastando de mim com selinhos para ir se livrar do preservativo.
Aquilo havia mesmo acontecido? Eu me sentia nas nuvens. Aaron era maravilhoso em todos os aspectos.
Não percebi quando ele voltou pra cama, mas ele já estava grudadinho em mim novamente, deitou no mesmo travesseiro e pouso a mão em minha cintura descoberta.
- Porque não me contou? - sua voz era calma e ele tinha um sorrisinho tímido no rosto.
- O que? - perguntei confusa.
- Que você era virgem.
Ah, ele havia percebido. Pensei em procurar algum rastro de sangue na cama, mas não queria ser mais óbvia ainda.
- Qual era a chance de você continuar se eu tivesse contado?
- Todas - ele respondeu rindo, não acreditei quando ele falou, o pior é que parecia que ele falava a verdade - Eu só iria parar se você me dissesse que não queria continuar, mas se tivesse me contado eu poderia ter tomado mais cuidado.
Mordi os lábios desviando o olhar do seu, rindo baixinho. Fiquei ali brincando com a ponta da fronha.
- É melhor eu voltar pra sala.
- Fica, se ninguém deu sua falta até agora é porquê já devem estar desmaiando de tanto beber.
- Você sabe que sua irmã tá no meio desses bêbados, né? - disse rindo.
Aaron por sua vez puxou os cabelos pra trás e soltou o ar pesadamente, pensando na minha melhor amiga que a essa hora poderia estar vomitando no tapete.
- Ai Clarice, Clarice. Só me dá trabalho. Se o Lucas estivesse por perto ela .... - ele parou de falar, ficando sério de repente - Meu Deus. Lucas. Seu irmão não pode saber disso, ele não pode nem sonhar que você dormiu comigo.
Eu comecei a dar risada. Ele estava pensando o que? Que eu pretendia anunciar pros mais chegados que havia passado a noite com ele?
- Aaron pelo amor de Deus - comecei ainda rindo - você acha que eu vou chegar no meu irmão durante o chá da tarde e falar "Boa tarde, Lucas. Eu transei com seu melhor amigo casado ontem, mas tá tudo bem porque eu seduzi ele"? Eu não pretendo falar disso nem mesmo com a Clarice.
Ele riu, vendo que eu dizia o óbvio e se aproximou pra me beijar de novo.
- Dorme aqui. Antes da Clarice subir você vai pro quarto dela e diz que passou a noite lá.
Concordei, pensando em desfrutar mais um pouquinho da companhia (e do corpo) de Aaron.
E eu desfrutei, a noite inteira uma vez após a outra até o amanhecer.
Flashback off
Depois que eu sai do quarto de Aaron naquele dia, nós não tocamos no assunto por um semana. Até o belo final de semana que sua irmã me pediu para dormir em sua casa porque meu irmão continuava fora. Olivia ainda estava com sua família também.
Me lembro de ter descido atrás de um copo de água e ter encontrado Aaron lá sem camisa. Não precisou de muita coisa pra que meu corpo já estivesse preso ao seu de forma nada descente, o problema foi que minha melhor amiga parece ter sentido sede também e acendeu a luz da cozinha, encontrando a gente no maior amasso. Não teve muito o que fazer se não contar a verdade, fiz ela prometer que não contaria nada a Lucas e que levaria aquilo pro túmulo junto com ela, e depois de muita insistência (mais da parte de Aaron do que minha), ela acabou concordando. Se guardar um segredo do namorado era difícil pra ela, esconder aquilo da cunhada era o oposto, Clarice não suportava Olivia. Eu nunca entendi o porquê, ela sempre me pareceu boa pessoa, mas ela dizia que Olivia era insuportável com suas regras e Aaron a deixava mandar na casa e em todo o resto, imaginei então que a convivência era outra coisa.
Depois daquilo nós passamos a ter um caso, não era algo bonito a se dizer mas foi o que aconteceu. Quando eu entrei pro FBI a coisa foi ficando cada vez mais séria, até que 3 meses depois ele decidiu que ia pedir o divórcio para sua esposa, mas não o fez. E o principal motivo dele não ter feito isso era eu, não queria que ele deixasse Olivia.
Parece ridículo da minha parte, mas eu tenho um bom motivo pra isso. Um pouco depois que ela voltou da viagem me pediu que eu a acompanhasse ao médico para uma bateria de exames, sem ter uma boa desculpa para negar eu acabei indo junto. Pra piorar a situação chegando lá ela teve uma crise e ficou com medo dizendo que não queria fazer os exames porque tinha certeza que achariam algo errado, e o médico teve a ideia de gênio de me pedir que eu fizesse os exames também pra incentivar ela a fazer os seus. Por pura culpa eu acabei aceitando, mas as coisas só acabaram piorando quando pegamos os resultados algumas semanas depois. Enquanto eu era uma pessoa extremamente saudável, Olivia tinha uma condição gravíssima no coração e o médico disse que pequenas situações de estresse e nervoso poderiam levá-la a morte.
Eu quis terminar com Aaron diversas vezes depois de descobrimos aquilo, mas não conseguia, meu corpo era como uma imã que era atraído pelo seu. Quando ele quis pedir o divórcio eu levei semanas pra tirar aquela ideia da cabeça dele, pensando no que aquilo poderia acarretar para Olivia, e ele sabia de sua condição também. Então continuamos assim, às escondidas e eu me afastei dela o máximo que pude, isso fazia com que eu me sentisse menos pior.
Fui tirada de meus devaneios pelo celular dele que começou a tocar, ele permanecia sério, ainda sentado na cadeira.
- Oi Oli. - era ela - Ela tá bem dentro do possível, mas não quer receber visitas, me botou pra fora do quarto assim que eu entrei - mentiu, me encarando - Eu não sei, ela tá muita machucada e você sabe como ela é, nem a Clarice ela deixou ficar muito tempo no quarto com ela.
Aaron comentou mais um pouco sobre meu estado com a esposa, até que ela finalmente pareceu desistir da ideia de me visitar e ele desligou o telefone.
- Desculpa - começou - sei que a situação é horrível pra você, não quis te constranger mais. O menos afetado nessa história sou eu e às vezes eu esqueço disso.
Concordei com a cabeça, não tinha muito o que dizer sobre.
- , você sabe que agora as coisas vão ficar mais difíceis pra gente, né?
- Eu sei.
Se antes era complicado sair com ele escondido da esposa, agora ficaria mais difícil ainda com dois policiais em meu encalço. Como eu justificaria qualquer saída que precisasse fazer sozinha?
- Quando você estiver melhor a gente volta a pensar nisso, tá? - mal tive tempo de concordar e ele já emendou em outro assunto, que por sinal era muito mais sério - Sobre o que trouxe a gente até aqui, o depoimento da Clarice foi o suficiente pra deixar os dois policiais que estão à frente do caso intrigados e continuar a investigação, os dois vão vigiar você e vão fazer sua segurança também. Eles têm certeza que seu irmão é um peixe grande e vai acabar vindo até você, também temem outro ataque, o que não vai acontecer, mas eles não precisam saber disso.
- Você precisa ser muito convincente com o seu depoimento, precisa deixar eles mais intrigados ainda. Depois você vai precisar se aproximar aos poucos e conseguir o máximo de informação possível. Tem alguém ali muito grande dentro dessa organização criminosa e essa é a nossa última chance de descobrir quem é. Se a gente conseguir chegar até essa pessoa nós podemos acabar com tudo, um cartel inteiro. Se essa conversa fosse a alguns dias atrás eu nem precisaria falar isso, mas como você parece não ter mais um pingo de juízo, estou te pedindo por favor pra você tomar muito cuidado, pois poder ser um desses também.
Pensei em Nicolás, tinha certeza que ele não estava metido em nada disso. Já era uma incógnita e ia ser muito difícil me aproximar pra arrancar informações. Não comentei nada com Aaron sobre Nicolás, ele vivia me dizendo pra não me deixar enganar pelo meu instinto porque uma hora ele poderia falhar, então preferi guardar minhas certezas só para mim, já tinha o suficiente com os questionamentos de Clarice.
Escutei batidinhas na porta e depois de autorizar a entrada vi Nicolás adentrar o ambiente.
- Com licença. - ele definitivamente precisava ensinar seu bons modos para . Ri baixinho quando ele cumprimentou Aaron com um aceno da cabeça, lembrando dos comentários de Clarice um pouco mais cedo. Ele caminhou até perto do monitor. - Você precisa dar seu depoimento. Eu tentei segurar mais um pouco, mas é ...
- Insuportável - interrompi, rindo.
- Eu ia dizer impossível, mas as vezes insuportável também serve.
Ele me acompanhou rindo, e eu não pude deixar de perceber o olhar intrigado de Aaron, questionando tanta intimidade.
- Posso chamar a investigadora que vai colher seu depoimento?
- Sim, quanto antes a gente fizer isso melhor pra eu poder ficar em paz.
Vi ele olhar pro homem de terno sentado ali e depois voltar o olhar pra mim, com uma pergunta silenciosa.
- Tudo bem, ele pode ficar.
- Ok. Antes de eu sair, alguém já conversou com você sobre como as coisas vão ficar depois que você sair do hospital?
Aaron ergueu a sobrancelha mais uma vez, questionando o porquê de Nicolás se dirigir a mim por "você" e não por "senhorita. Ia responder à pergunta do policial, mas ele foi mais rápido.
- Eu contei a ela - disse ajeitando o paletó - não se preocupe. E eu também pretendo ficar de olho nela. - sua voz era firme e ele falava cada vez mais sério - é alguém por quem eu tenho muito apreço e seu irmão era meu melhor amigo antes de se meter com coisas erradas. Ela não está sozinha.
Que ceninha de ciúmes era aquela? Aaron estava sendo ridículo sem motivo algum. Qual era o problema dos Smith com aquele policial?
- Não temos a intenção de deixar ela isolada de ninguém - Nicolás respondeu no mesmo tom - Mas a segurança dela é assunto da polícia, pode ficar perto o quanto quiser desde que não atrapalhe nosso trabalho. Com licença.
Ele deixou o quarto logo depois. Aaron estava pronto para começar seu interrogatório, mas já havia sido demais por um dia, que aliás ainda estava na metade.
- Nem começa.
Não deu tempo nem dele abrir a boca, uma morena alta bateu a porta para colher meu depoimento. Repeti todo o combinado, reforçando o depoimento de Clarice e me fiz de coitada o máximo possível. Estava feito.
Depois que a mulher saiu Aaron continuou me encarando com aquela cara de quem quer saber o que está acontecendo, mas o problema era que não estava acontecendo nada. Eu não tinha mais nada pra falar, então deixei o cansaço tomar conta de mim. Não percebi quando cochilei.
Capítulo 5 — Trouble
Já faziam duas semanas e meia que eu estava no hospital, passei a me xingar mentalmente todos os dias por aquilo, não aguentava mais ficar presa a quatro paredes. Eu já conseguia ficar de pé sozinha e caminhar um pouco, não entendia porque não podia ir para casa.
A única pessoa mais sem paciência do que eu naquele hospital, era . A convivência era insuportável (assim como ele), ele deixava bem claro que estava ali contra a sua vontade e trocava o mínimo de palavras possíveis comigo. Nicolás andava muito ausente por algum motivo que eu não sabia e o outro policial ficava responsável pela minha segurança na maior parte do tempo. Toda vez que eu pensava que teria que conviver com e sua ignorância dentro da minha própria casa eu tinha vontade de estourar meus miolos, e isso sem falar que ainda teria que dar um jeito de me aproximar dele e ganhar sua confiança. Não sei porquê, mas gostava mais de irritar o cara do que de manter uma conversa normal com ele, talvez porque desde o começo meu santo não havia batido com o seu, não sei. Eu odiava pessoas com aquele ar arrogante.
Nesse momento eu estava sentada na cama com um dos livros que Clarice havia me trazido, enquanto o digníssimo policial permanecia sentado na cadeira perto da porta. Aliás, essa cadeira era a mesma que ficava ao lado da minha cama, mas que ele fazia questão de arrastar pra bem longe de mim toda vez que ficava de guarda, ridículo.
Voltei a atenção para o meu livro, mas acabei desistindo da leitura quando vi que havia lido 4 vezes seguidas o mesmo parágrafo e as palavras continuavam sem sentido algum para mim.
Fechei o livro e comecei a tamborilar os dedos na capa, pensando em algo que me ajudasse a sair do tédio, fiquei quase quinze minutos assim, até que algo passou pela minha cabeça. Se funcionasse eu poderia ganhar duas coisas de uma vez só.
- - chamei, fazendo com que ele passasse a atenção de seu celular para mim, a habitual cara de merda que sempre fazia quando me olhava estava de novo ali - Tenho uma proposta pra te fa..
- Não - me interrompeu antes que eu pudesse terminar, voltando a mexer no celular.
- Você nem sabe o que eu ia falar. - retruquei indignada.
Sério, aquele cara era detestável, como Nicolás conseguia trabalhar com ele era uma incógnita que meu cérebro parecia não ser capaz de decifrar. E meu cérebro deu um nó maior ainda quando ele me contou que havia conhecido na faculdade e que eles eram melhores amigos desde então, sério, isso não entrava na minha cabeça.
- Não faço tratos com gente problemática. - falou com um sorrisinho cínico sem desgrudar os olhos do aparelho em sua mão.
Ah não, agora ele passou dos limites.
- Do que é que você me chamou?
- Você não é surda, ouviu muito bem.
Imbecíl, ele ia ver quem era a problemática.
Sentei com os pés pra fora da cama e arremessei o objeto que estava em minha mão na sua direção. Eu tinha uma ótima mira, sorri debochada quando o livro de 500 páginas acertou seu rosto em cheio.
- Argh, FILHA DA PUTA.
O celular que estava em sua mão havia caído no chão. Vi cobrir o rosto e massagear o nariz, com certeza tinha doído.
- QUAL É O SEU PROBLEMA GAROTA. - esbravejou já de pé, com o livro na mão.
- O meu problema é você, eu pretendia ficar numa boa mas você é um grosso insuportável.
- PRO - BLE - MÁ - TI - CA - me insultou outra vez, me deixando mais irritada.
Olhei pra mesinha do lado da cama e peguei outro livro para jogar nele, que acabou desviando, quando eu ia jogar o terceiro infelizmente ele foi mais rápido que eu e segurou meu braço, me fazendo soltar o objeto no chão.
Olhei pra ele irritada e fiz questão de que minha expressão mostrasse o quanto ele me deixava puta. Meu Deus aquele cara me tirava do sério, eu não era assim.
Ele soltou meu braço e ia falar alguma coisa, mas acabou desistindo quando sentiu algo escorrer pelo seu nariz. Sangue.
- Ai meu Deus...
Tampei minha boca numa tentativa boba de esconder minha cara de espanto, eu havia quebrado seu nariz, até o momento não havia reparado que ele também estava torto. Que merda, eu estava pedindo pra ser presa. Mas a culpa era dele, com que direito ele falava daquela forma comigo? Totalmente culpado. Droga, como eu ia me aproximar pra arrancar informações dele depois daquilo?
- , me desculpa eu não achei que ia machucar - levantei da cama e fiz menção de me aproximar, mas ele logo me afastou com a mão que estava livre.
- Não chegue perto de mim - ele estava furioso - Você é louca.
- Tá vendo, é por isso que eu joguei o livro em você, idiota.
Sai de perto dele revirando os olhos, ele era mesmo um ridículo. Fui até o banheiro e procurei pela bolsinha de primeiros socorros que havia visto ali a alguns dias atrás e voltei com ela pro quarto.
- Senta - disse apontando pra cama.
olhou pra bolsinha na minha mão e começou a rir.
- Você realmente deve ser maluca pra achar que eu vou deixar você chegar perto do meu rosto depois de quebrar o meu nariz.
Coloquei a necessaire na cama já sem paciência alguma, eu não deixaria ele sair dali com o nariz daquele jeito, era tudo o que ele precisava pra me prender por desacato e acabar com meus planos. Ele iria conhecer meu lado autoritário mais cedo ou mais tarde, então que fosse naquele momento.
- Você vai sentar nessa droga de cama agora e vai me deixar consertar essa porcaria que chama de nariz antes que eu decida quebrar outro osso seu.
- Já disse que não. E como se uma garota como você soubesse colocar o nariz de alguém no lugar, faça-me o favor.
Ok, seja feita a minha vontade. Ia ser na marra.
Me aproximei de com a cara mais cínica que consegui fazer, tentando disfarçar a raiva, ele nem se moveu, provavelmente achando que eu só iria insultá-lo mais de perto. Fiquei cara a cara com ele e com um puxão rápido eu afastei a mão ensanguentada que cobria seu nariz e coloquei minhas duas mãos ali, seus braços tentaram segurar os meus, mas já era tarde, minhas mãos empurravam uma de cada lado o osso do seu nariz em direções opostas, fazendo com que ele se encontrasse novamente. Não era o modo correto, muito pelo contrário, mas quando você vive metida em situações que podem acabar em conflito, você aprende a consertar algumas coisas de modo rápido e bruto. Ele poderia consultar um médico depois.
Ouvi ele gritar de dor e me afastei logo depois, ele havia agachado e arfava com as mãos no rosto. Colocar o nariz no lugar de fato doía muito mais do que quebrar o nariz. Dei espaço para que ele se recuperasse e fui até o banheiro limpar o meu braço que ele havia sujado de sangue quando tentou afastar minhas mãos do seu rosto.
Coloquei meu braço embaixo da água e deixei ela correr ali levando todo o sangue consigo. Me sequei com as toalhas de papel e peguei mais algumas para levar para o quarto, sabia que iria precisar.
Aproveitei para jogar uma água no rosto e prender o cabelo em um rabo de cavalo. Encarei meu reflexo no espelho, já não estava com aparência tão detonada quanto antes, o que pra mim era um alívio.
Quando voltei ainda estava na mesma posição, mas já respirava de forma mais calma e havia parado de urrar de dor. Coloquei as toalhas de papel junto com a bolsa de primeiros socorros. Encostei na cama e fiquei ali com os braços cruzados.
- Vai me deixar olhar seu nariz agora ou quer me chamar de maluca de novo?
levantou o olhar pra mim, estava incrédulo.
- Como demônios você saber fazer isso?
- Meu irmão me ensinou. - respondi direta, não tinha muito como explicar aquilo sem levantar muitos questionamentos. Tratei logo de mudar de assunto - Levanta, vai ficar sangrando no chão até que horas?
chacoalhou a cabeça em negação, mas acabou levantando e andando até a cama. Dei espaço pra que ele sentasse e coloquei uma das toalhas de papel em sua mão limpa para que ele estancasse o sangue no nariz, enquanto eu limpava a que estava ensanguentada com as outras folhas.
Abri a necessaire pegando o necessário para terminar de dar um jeito naquela bagunça. Segurei seu queixo enquanto passava o antisséptico com um algodão em seu nariz, que aos poucos parava de sangrar. Não era enfermeira, mas tinha conhecimentos básicos em primeiros socorros, foi uma das primeiras coisas que aprendi quando entrei no FBI. Fiz o melhor que pude ali, finalizando com um curativo na parte de cima.
- Obrigada - disse e eu me surpreendi - obrigada por consertar a merda que você mesma fez. - claro que ele não estava sendo educado à toa.
Bufei revirando os olhos, tentada a quebrar seu nariz de novo.
- Você bem que mereceu.
- Claro - ele riu sem humor - você é uma ogra, garota.
- De novo, você mereceu. Eu fui te fazer uma proposta e você foi grosso sem motivo algum.
- Você me dá motivos para ser grosso desde quando acordou - seus braços estavam cruzados na altura do peito, ele falava sem desgrudar os olhos de mim, eu continuava parada na sua frente com a mesma pose que ele.
- A Princesa já acabou?
- O que você quer? - seu tom grosseiro estava lá de novo.
- Você me leva pra ficar um pouco no jardim do hospital e eu vou te deixar em paz quando você estiver fazendo a segurança na minha casa, vou ficar quietinha e vou te incomodar o menos possível. Ah sim, tem mais uma coisa - falei rápido antes que ele abrisse a boca - o que acabou de acontecer aqui, você não vai contar pra ninguém.
- Tentador, Jude. Seria uma paz você de boca fechada - ele riu, chacoalhando a cabeça - Mas eu não posso levar você no jardim.
- Por quê? Nicolás me leva quase sempre quando está aqui.
- Por que eu não tenho autorização pra fazer isso. - ele ainda ria - Nicolás consegue te tirar daqui porque sua ex tem coração mole e sempre acaba cedendo a qualquer pedido dele.
Ex? Ele estava falando da...
- Annie?
assentiu. Interessante, isso explicava muita coisa. Nicolás sempre ficava meio bobo com ela por perto, e ela sempre encobria as coisas erradas que ele fazia no hospital.
Fiz um beicinho quando percebi que meu plano havia ido por água abaixo antes mesmo de começar. Sentei de novo na cama igual uma criança emburrada, ainda estava lá, empurrei seu ombro com o meu.
- Vai limpar o chão. - falei com a voz xoxa olhando os respingos no chão.
- Vai você.
- O sangue é seu. - devolvi, empurrando seu ombro outra vez.
Ele se levantou rindo baixinho, vi ele pegar as toalhas de papel que estavam na cama e passar no chão, assim que terminou juntou tudo e levou pro banheiro junto com a necessaire. Quando ele voltou recolheu os meus livros que ainda estavam no chão, colocando-os de volta na mesinha ao lado da cama.
- Sua amiga sabe que você pede livros emprestados para jogar nos outros?
- Os livros são meus, ela só trouxe pra mim.
arqueou as sobrancelhas, enquanto ainda segura o último livro.
- Você gosta de Agatha Christie? - fiz que sim com a cabeça - Achei que garotas como você só gostassem de Crepúsculo.
Ri internamente, ele não precisava saber que eu tinha um fraco por Edward Cullen.
"Ele não precisava saber", uma ideia se passou pela minha cabeça assim que essas palavras vieram.
Annie não precisava saber. Apertei o botão para chamar uma enfermeira.
- O que você está fazendo? Tá passando mal?
Neguei, sorrindo.
- Fica quietinho, se concordar comigo nós dois saímos ganhando. Sshh.
não entendeu mas ficou quieto observando o que eu iria fazer.
Uma enfermeira que não era Annie apareceu, perguntei se ela poderia chamar a outra enfermeira pois eu já estava acostumada com seus cuidados, ela concordou. Dez minutos depois Annie estava na porta do quarto, seus olhos foram direto no nariz de .
- O seu nariz não estava assim quando eu vim aqui mais cedo...
Olhei pra ele, esperando que ele não me entregasse.
- Eu fui abrir a porta ao mesmo tempo que ela e acabou pegando no meu rosto. Mas tá tudo bem.
Bom menino.
- Annie - chamei sua atenção pra mim, antes que ela perguntasse outra coisa - Nicolás falou com você?
- Sobre o que? - perguntou, um pouco perdida.
tinha a mesma expressão.
- Ele me disse que conversaria com você para que deixasse me levar ao jardim quando ele não pudesse vir.
O policial do outro lado riu em silêncio, mas não disse nada. Já que ele não me suportava, o melhor era aceitar minha proposta.
Annie me olhou triste, negando.
- Eu sinto muito, . Ele não falou comigo. E acho que também não é uma boa idéia você sair sem ele - parecia que não era segredo que não me suportava e odiava me vigiar.
- Por favor, Annie - disse fazendo biquinho - Ele deve ter esquecido. Você sabe que é de confiança, só um pouquinho.
Ela olhou pro rapaz na porta.
- Tudo bem, eu fico de olho nela.
- Ok, mas só 30 minutos e ela não pode ficar muito tempo de pé.
- Obrigada - agradeci sorrindo.
- Vou pegar uma cadeira de rodas, me esperem aqui.
- Não precisa - interrompi - pode me levar, eu quero sentar na grama.
Annie não viu o policial me fuzilar com os olhos, mas eu vi. Ainda sorria quando ele me pegou no colo para me carregar até o jardim.
- Você é detestável - sussurrou pra mim enquanto passávamos pelo corredor.
Dei um sorriso vitorioso e pude observar um sorrisinho de canto em seu rosto.
Annie não precisava saber que eu menti, e no final nós dois saímos ganhando.
Capítulo 6 — Bet
me colocou no gramado perto de um banco vazio, ali batia sol e havia pouquíssimas pessoas. Só soltei seu pescoço quando senti que realmente havia encostado no chão, porque ele era bem capaz de me jogar no chão.
Tirei as sapatilhas e estiquei minhas pernas enquanto permanecia sentada, me apoiando com os braços para trás. O sol estava uma delícia, como a camisola do hospital era de um tecido leve dava para curtir o tempo sem derreter.
O policial tirou o blazer preto e se sentou ao meu lado, vi ele pegar os óculos que estavam presos a sua camisa e colocar no rosto para evitar o contato direto com os raios solares. Quando ele apoiou o braço em seu joelho, pude reparar em uma cicatriz um pouco abaixo da manga da camisa branca. Era uma cicatriz de bala.
- Perdeu alguma coisa aqui, Jude? - disse sem me olhar.
- Bonita cicatriz - provoquei.
- Não precisa ficar com inveja, você agora vai ter várias também.
Olhei espantada, ele não tinha limites? Tudo bem que eu mesma havia provocado elas, mas ele não sabia disso. Um policial deveria demonstrar um pouco mais de compaixão.
- Você é muito abusado - acabei rindo, eu não conseguia acreditar em certos absurdos.
- Falou a lutadora de MMA que quebrou o nariz de um policial e pediu pra ele algemar ela na cama..
- EU NÃO PEDI.
tirou os óculos e virou pra mim, seus lábios sustentavam um sorrisinho debochado que me fez ter vontade de lhe dar um soco. Ia começar a falar de novo, mas me lembrei de uma coisa.
- Ei, você queria me prender por desacato só porque eu fiz uma piada mas não fez nem menção sobre isso quando eu quebrei seu nariz.
Será que...?
- Você é mais útil pra mim fora da cadeia - fiz cara de quem não entendeu (mesmo tento entendido), esperando que ele explicasse. - Seu irmão com certeza tá preocupado com você, quem te atacou queria deixar um recado pra ele, - explicou - em algum momento ele vai tentar te ver e isso não vai acontecer se você estiver numa cela.
Perfeito, eles haviam mordido a isca tal qual imaginamos. Decidi dar corda.
- Tá esperando pra prender ele, não é? - fiz uma cara triste.
Sua expressão vacilou um pouco, mas acabou assentindo. Engraçado, parecia até ter um pouco de pena.
- Só to fazendo meu trabalho. Você sabe que seu irmão trabalha para uma uma máfia e é envolvido com o narcotráfico, você mesma contou.
- Eu sei.
- Não sabe mesmo onde ele está? - balancei a cabeça em negação, fitando a árvore na minha frente - Não ia dizer mesmo que soubesse, tenho certeza.
- Errou - virei pra ele novamente - Lucas é meu irmão e eu o amo, sei que ele cometeu erros e tem que pagar por isso. E prefiro ele preso numa cela do que correndo perigo e se metendo em encrenca.
Era engraçado falar sobre Lucas daquele jeito quando ele era o total oposto, meu irmão era provavelmente a pessoa mais correta do planeta.
Não sei se acreditou, ele apenas assentiu e começou a morder a ponta do óculos. As coisas estavam calmas, deveria aproveitar o momento pra tentar me aproximar e mais pra frente poder arrancar informações, mas toda vez que eu olhava pra ele tinha vontade de dar um cutucada. Eu sempre gostei de perturbar as pessoas, mas com ele era além da conta.
- Qual desculpa vai dar para Annie quando ela descobrir que você inventou essa palhaçada toda sobre o Nicolás? - disse interrompendo meus pensamentos, impressão minha ou ele decidiu ficar mais falante depois do incidente com o livro?
- Nenhuma, porque ela não vai descobrir.
Ele riu.
- Claro que ela vai descobrir, assim que ela conversar com ele isso vai ser descoberto.
- Não vai não, Nicolás não vai me entregar - ouvi ele bufar e voltei a olhar para ele - O que é?
- O que vocês dois estão escondendo?
Não entendi sua pergunta.
- Não se faz de idiota, você e o Nicolás já se conheciam.
De onde ele havia tirado aquilo? Eu nunca havia visto ele antes na minha vida. Primeiro Clarice, depois Aaron e agora ele.
- Por que você acha isso? - eu realmente queria entender.
- Nunca vi ele agir assim com ninguém, trata você como se fosse de porcelana e tem me parecido um pouco perturbado também desde o seu resgate, mas esse último talvez seja por conta da convivência com você.
- Ridículo - disse rindo e ele me acompanhou.
- Eu sei que tem alguma coisa, não sei porque vocês agem assim.
- Quando descobrir me conta.
Ele fez uma careta, como quem não compra uma história, mas dessa vez eu falava a verdade. No começo eu estranhei a gentileza dele também, mas não durou muito o estranhamento, não sabia explicar por que e tampouco sentia vontade de perguntar a ele porque agia daquela forma comigo, pra mim parecia algo muito natural, embora não fosse o comportamento comum para alguém que acaba de te conhecer.
POV.
Jude era o verdadeiro significado da palavra problema, meu Deus como ela era irritante. Era petulante, debochada, grosseira e não perdia a oportunidade de me tirar do sério. Eu me recusava a acreditar que ela tinha me jogado um livro e quebrado meu nariz. Estava até agora tentando entender como ela tinha colocado ele de volta no lugar e ainda do jeito que os militares faziam. Parece que seu irmão traficante estava andando com alguns de nós, não era possível ele ter aprendido aquilo sozinho.
O que me espantou mais ainda foi a força que usou pra me conter, ela definitivamente não era normal. Em uma briga corpo a corpo ela com certeza poderia acabar com a minha raça se quisesse, mesmo sendo menor que eu. Mas claro, eu não deixaria ela saber daquilo.
Também tentava entender a relação de Nicolás com ela, o questionei diversas vezes sobre o porquê de tanto cuidado com aquele caso (era isso que ela era pra mim) e ele sempre desconversava. Perguntei mais de uma vez se ela era sua ex ou algo do tipo e ele negou em todas às vezes, mostrando extremo desconforto com aquela situação. Por mais que ele negasse, nada me tirava da cabeça que eles já se conheciam, tentei arrancar alguma coisa dela mas continuei sem respostas.
Aquilo tudo era um saco, a parte do meu trabalho que eu mais odiava era quando eu tinha que bancar a babá de alguém, e por mais que Jude tenha dito que ficaria quieta sem me incomodar caso eu aceitasse seu trato, eu duvidava muito que aquilo fosse acontecer.
Havia decidido que o melhor a se fazer era levar as coisas pelo caminho da paz (dentro do possível), caso contrário a convivência iria ser ainda pior, ela não parecia disposta a dar uma trégua nem mesmo quando eu a ignorava, então teria que pôr da minha parte também, só esperava que ela colaborasse.
O único problema é que depois do primeiro contato eu não conseguia mais manter uma conversa normal com ela, o fato dela ser totalmente abusada comigo me fez perder o filtro e qualquer delicadeza que eu deveria ter com alguém no estado em que ela se encontrava.
Fiquei na mesma posição que ela e chutei sua perna de leve fazendo com que ela me olhasse feio.
- Você quer que eu quebre seu pé também?
Um poço de delicadeza. Ri da sua cara emburrada e afastei meu pé, não duvidava de mais nada vindo dela.
- Não abusa, . Eu posso te colocar em prisão domiciliar também - ameacei enquanto ela revirava os olhos.
Ela se inclinou pra perto de mim sorrindo, achei que ela queria me xingar de perto, mas ao invés disso puxou o óculos de sol que eu havia prendido novamente na gola da camisa. Ia segurar sua mão e pegar de volta, mas me lembrei que estava tentando manter a paz, então deixei que ela colocasse as lentes.
- Educação é bom e todo mundo gosta.
- Engraçado, eu poderia dizer o mesmo para você - retrucou sorrindo. - Fica melhor em mim do que em você.
Realmente, os óculos de aviador pareciam ter sido feitos para ela. Era insuportável, mas era bonita.
- Além de mentirosa e louca, também é convencida.
- É assim que você fala com as mulheres, Mr. Darcy? - Brincou
Ri da sua comparação, no final fazia até sentindo quando o assunto era ela.
- Você não é uma mulher, é um ogro de sapatilhas - esperei que ela me desse um tapa, mas ela riu então continuei. - Nunca vi uma mulher tão bruta em toda a minha a vida.
- Eu também nunca vi um policial tão indelicado.
- Você começou.
- Talvez.
Ela estava concordando? Que progresso. Parece que os raios de sol tinham melhorado nosso humor. Ri enquanto olhava a árvore que estava à nossa frente, não sei se foi da minha risada ou do rumo da conversa, mas ela acabou me acompanhando.
- Você é bruta assim também com outras mulheres?
- Como assim? - perguntou confusa.
- Tenho a impressão de que você não briga com as unhas.
- Não faz sentido nenhum unhar a cara de alguém se eu posso simplesmente dar um soco - disse séria enquanto eu ria da sua resposta, já esperava aquilo. - Além do que, guardo minhas unhas para outras coisas.
A lente do óculos era clara, pude ver ela olhando para os meus ombros. Cocei os olhos sem acreditar, já era a segunda vez que ela fazia aquilo.
- Por quê você sempre solta alguma coisa com conotação sexual? Primeiro a história da algema e agora isso. Pervertida - finalizei, com um tom descontraído.
Ela deu de ombros e riu.
- Pode acrescentar na lista também.
Voltei a olhar pro gramado e vi um rosto familiar se aproximando, era Annie. Comecei a rir já imaginando o que ela falaria.
- Agora sim você se ferrou, Jude.
- Quer apostar que não? - ela sorria.
- Se ela tiver descoberto a sua mentira você me deve uma plástica no nariz.
- Ok - concordou rindo - Se ela não souber que eu menti você vai me convidar pra um jantar na sua casa quando eu sair do hospital. E eu fico com seus óculos.
Um jantar na minha casa? Comecei a rir descontroladamente, ela era mesmo maluca. O que ela queria com aquilo? Fincar as unhas no meu ombro depois do jantar?
- Lugar de gente louca é no hospício - provoquei - não na minha casa. Mas você pode ficar com os óculos. E - acrescentei - eu pago uma cirurgia plástica pra você não ficar parecendo o Chucky.
Ri da sua cara, ela nem tinha ficado com tantas marcas assim e as que ficaram provavelmente sumiriam com o tempo.
- Você é um ridículo - disse dando um tapa na minha perna - E eu não preciso de plástica. Os dois ou nada.
- Por que tá pedindo isso? - questionei sem entender a insistência - Eu não vou transar com você depois do jantar, se é o que você tá esperando.
Ela empurrou meu ombro com a mão, escutei Jude murmurar a palavra "imbecil".
- A melhor maneira de conhecer alguém é conhecendo sua casa. Se você vai ficar metido na minha casa nada mais justo do que eu conhecer a sua também. E saber que você não é um psicopata que esconde cérebros no freezer da cozinha vai me deixar mais tranquila.
Chacoalhei a cabeça indignado com aquilo, ela realmente não era normal.
Tinha certeza que era mais do que ela dizia, mas eu não tinha nada a esconder e também duvidava que Annie não fosse descobrir da mentira, então acabei aceitando. No mais, queria ver a cara de tacho de quando ela perdesse.
- Fechado - estiquei a mão pra ela, que a apertou com firmeza.
Capítulo 7 — I'm Alone
sorria debochadamente enquanto eu a levava de volta para o quarto.
Nicolas havia comprado sua mentira.
Annie veio avisar que o meu suposto melhor amigo ligou para ela para saber notícias da endemoniada, já que eu não atendia o celular. O que ele não sabia é que eu já não tinha mais um celular justamente graças a ela.
Para minha tristeza, ela também disse que comentou com Nicolás que eu estava no jardim com Jude a pedido dele, e ele prontamente disse que realmente havia esquecido de pedir a ela. Meu melhor amigo estava de complô com a mentirosa, inacreditável. Eu duvidava cada vez mais que eles tinham acabado de se conhecer.
A pior parte, entretanto, agora era a aposta.
era folgada e curiosa, e eu tenho certeza de que ela fuçaria o meu apartamento todo, aquilo não me agradava nenhum pouco mesmo não sendo o tipo de pessoa que esconde algo. Enrolaria o máximo possível para cumprir com a minha parte da aposta.
Annie tinha ido prioritariamente até nós não para falar de Nicolás, mas sim porque o médico queria ver a paciente para lhe dar alta.
Ela se agitava feito criança em meus braços durante o trajeto, feliz por ter ganhado a aposta e finalmente poder voltar para casa, enquanto eu lutava contra a vontade de solta lá no chão ali mesmo e sair correndo.
Andei o mais rápido possível até o quarto, colocando ela na ponta da cama assim que cheguei lá.
- Espera - ela disse, mais pra si do que pra mim - quem vai me levar pra casa?
- Não sei, algum dos seus amigos que esteve aqui? - Questionei, sem entender a preocupação repentina.
- Não é isso, Clarice não encontrou meu telefone depois do ataque, alguém levou. Como eu vou avisar qualquer um deles que eu tive alta e quero ir embora?
Era meio óbvio que quem quer que a tenha atacado, levou o aparelho na esperança de que ela recebesse uma ligação de seu irmão.
- Há quanto tempo sabe disso? - ela me olhou com uma expressão um pouco confusa - Que levaram o seu celular - completei.
- Ah sim, faz alguns dias - observei ela coçar a cabeça enquanto levantava da cama. Eu pedi pra ela trazer junto com os livros, mas ela não encontrou. Imagino que tenham levado, perguntei ao Nicolás se a polícia tinha levado como evidência, mas ele disse que não encontraram nenhum celular - ela voltou a sentar na cama. - Por quê a curiosidade?
- Não sei, pensei que talvez você tivesse visto quem te atacou levando o aparelho - ela negou com a cabeça. - Enfim, eu deixaria você usar o meu por sei lá, dois minutos. Mas não vai ser possível porque você quebrou ele - alfinetei, retirando o aparelho estraçalhado do meu bolso e mostrando a ela.
- Engraçado, não me lembro de ter acertado o seu celular.
Preferi não responder ao deboche, com certeza iríamos iniciar outra discussão e eu não estava afim. Decidi que o melhor era sair do quarto, mas parei de andar quando vi ela apertar o botão de emergência.
- Você sabe que isso é só para emergências, não é?
- Ir embora é uma emergência.
- Você parece uma criança birrenta de cinco anos que quer tudo na hora.
Annie apareceu no quarto, tirando a chance dela retrucar. Fiquei boquiaberto quando vi sua expressão mudar de raiva para doçura assim que a enfermeira entrou no quarto, cínica.
Com a voz que fazia justiça a sua feição, pediu o celular de Annie emprestado, que gentilmente lhe disse que sim. Vi ela discar dois números diferentes e tentar repetidas vezes fazer contato com alguém, mas sem sucesso. Parecia que ninguém queria falar com ela hoje, eu também não queria mas no meu caso eu não tinha muita escolha.
Depois de um tempo ela acabou desistindo e devolveu o celular com uma cara triste. Annie guardou o objeto no bolso e olhou em minha direção.
- ?
- Sim?
- não é menor de idade - começou - então ela pode sair do hospital com qualquer pessoa. Inclusive com você.
O que?
Por que eu não saí daquela porcaria de quarto antes da maluca apertar o botão de emergência? Mais de uma hora dentro de um carro só com aquela garota, eu certamente ia querer abrir a porta e jogar ela para fora. Não levaria nem 10 minutos depois que eu fechasse a porta para que ela começasse com alguma gracinha, tinha certeza.
Infelizmente, Annie era tão meiga que eu não conseguia dizer não para ela, ninguém conseguia. Concordei com um aceno de cabeça e ela se retirou do quarto logo depois indo atrás de uma cadeira de rodas.
sorria, ainda encostada na cama.
- Não fui eu que pedi, só pra constar.
- Não adianta fazer essa cara, porque eu tenho certeza que você está rindo por dentro. Vai arrumar suas coisas.
Ela alargou o sorriso e começou a andar pelo quarto juntando seus pertences. Depois de recolher as coisas que estavam no banheiro, vi ela pegar uma muda de roupas antes de fechar a mala por completo.
- Aproveita pra ir pensando no jantar que vai fazer pra mim, na sua casa - disse frisando as últimas palavras, para depois entrar no banheiro e fechar a porta.
Joguei a cabeça para trás soltando o ar pesadamente. No que eu havia me metido? Era óbvio que ela não me deixaria enrolar com aquilo.
Esperei mais alguns minutos até ela sair do banheiro, vestia uma calça e uma jaqueta preta, como uma blusa branca por baixo. Ótimo, agora pareciamos uma dupla sertaneja. Revirei os olhos enquanto ela soltava seu cabelo.
- A Princesa vai ficar me olhando ou já podemos ir?
- Não abusa, garota - já era a segunda vez que ela me chamava de princesa.
Annie não tinha voltado ainda, achei que era melhor ir atrás dela. Deixei no quarto e levei quase vinte minutos pra achar ela, que se desculpou pois teve uma emergência com outro paciente. Me despedi de Annie e voltei para o quarto com a cadeira de rodas.
Encontrei sentada na cama, parecia triste e não notou minha presença nem mesmo quando coloquei a cadeira de rodas na sua frente e pigarrei para chamar sua atenção. Parecia estar fora de órbita. O que tinha acontecido em tão pouco tempo?
Ela apertava o botão de emergência por qualquer coisa, então ela não estava passando mal, do contrário já teria apertado. Não sei se era manha dela ou outra coisa, mas eu definitivamente não aguentava mais aquele hospital. Me aproximei da cama e peguei ela no colo para colocar na cadeira.
Finalmente ela pareceu ter notado minha presença, estranhamente só agradeceu, o que me deixou um pouco mais confuso. Ela estava quieta demais para alguém que tinha acabado de conseguir a chance perfeita de me irritar. Eu deixei uma no quarto e quando voltei, encontrei outra totalmente diferente. Arrisquei um olhar rápido quando fui pegar sua mochila, sua expressão continuava triste e com um olhar perdido, sua cabeça parecia estar longe. Achei melhor não dizer nada, seus pensamentos não eram da minha conta. Coloquei a mochila em meu ombro e comecei a empurrar a cadeira de rodas, indo em direção a saída do hospital.
Assim que chegamos ao meu carro no estacionamento destravei as portas e coloquei sua mala no banco de trás, achei que ela se levantaria e se ajeitaria em um dos bancos enquanto isso, mas não aconteceu. Ela estava com a cabeça baixa mexendo nervosamente em uma gargantilha que estava em seu pescoço.
Não havia nem 30 minutos ela estava me atormentando, não era possível. Talvez o médico tenha se equivocado ao lhe dar alta.
- - chamei.
- Sim? - Respondeu um pouco sobressaltada, por ter sido tirada de seu devaneio.
Apontei com a cabeça em direção ao banco do carona, felizmente ela pareceu voltar de Marte e se levantou para entrar no carro. Fechei a porta assim que ela se ajeitou e me dirigi até o outro lado.
Os 20 primeiros minutos foram silenciosos como eu nunca teria imaginado, continuava com a cabeça em outro planeta, olhava pela janela fechada enquanto agitava seus pés ansiosamente. Nunca pensei que fosse ficar incomodado com seu silêncio, aquilo só ficava mais esquisito.
- Ei - chamei, atraindo sua atenção quando parei no farol.
Ela me encarou, esperando que eu continuasse.
- Tá com fome? Podemos parar em algum lugar - ela negou com a cabeça e voltou a olhar para fora.
Me lembrei de que só havia visto ela comer no café da manhã, se ela desmaiasse de fome Nicolás daria um jeito de botar a culpa em mim. Decidi que era melhor comer uma porcaria do que nada, com certeza ela não recusaria aquilo. Mexi no porta luvas do carro e tirei uma caixa de chocolate, ela só pareceu perceber quando eu coloquei o doce em seu colo.
- O que é isso?
- Come - meus olhos estavam na estrada novamente, mas pelo seu tom estava confusa. - Não vi você comendo mais nada depois do café que Annie te levou
POV.
Aaron só havia ido me visitar uma vez, eu sabia bem como a agenda dele era apertada, não era fácil tomar conta de um departamento todo no FBI, mas esperava que pelo menos ele atendesse a porcaria do telefone.
Clarice deveria estar com Lucas e por motivos óbvios eu não poderia ligar para o meu irmão. Meu pais deveriam estar fotografando alguma pirâmide no Egito e eu estava aqui, sozinha. Eu havia sido esquecida. Eu sei que meus pais não sabiam de nada e que eu havia me metido naquela situação, mas e se fosse um atentado de verdade? Eu ainda continuaria sozinha. Aaron, principalmente, nunca poderia se dedicar completamente a mim.
Aaron. Foi inevitável pensar que a tendência era só piorar, uma vez que seria muito mais difícil nos encontrarmos com e Nicolás na minha cola. Não sabia quanto tempo aquilo iria levar, mas talvez fosse tempo o suficiente para Aaron me esquecer. Me perdi em meus próprios pensamentos e tive que me segurar para não chorar.
Não estava pronta para perder ele.
Em meio aos meus devaneios, devo ter ficado completamente fora da Terra, quando dei por mim estava sendo carregada por e colocada em uma cadeira de rodas.
Agora estávamos em seu carro e eu continuava pensando no quão sozinha eu estava. Apertava os lábios mais uma vez para segurar o choro, quando senti algo encostando nas minhas pernas.
Virei pronta para gritar com , mas me surpreendi ao encontrar uma caixa da Mason X em meu colo.
- O que é isso? - Não era possível, ele não tinha como saber.
- Come, não vi você comendo mais nada depois do café que Annie levou.
- Quem te contou?
- Me contou o que? - Vi ele desviar os olhos da estrada e me encarar por dois segundos, seu rosto era uma interrogação.
- Esses chocolates - disse apontando para a caixa - são meus favoritos. Porquê você tem uma caixa fechada deles no seu carro?
Minha voz acabou saindo um pouco mais alterada do que planejei, mas aquilo era no mínimo esquisito.
não disse nada até parar em um farol, depois me encarou e começou a rir.
- Você tá ficando paranóica, garota. - Ele tentava disfarçar, mas eu sabia ler as pessoas, estava sem graça, suas mãos tamborilavam seguidamente no volante enquanto observava a paisagem a fora - Não é meu, Nicolás come isso o tempo todo, - começou, me olhando aos poucos - às vezes usamos um carro só para fazer algo relacionado ao trabalho e ele sempre larga uma caixa dessas por aqui, nem sempre fechada, mas hoje você deu sorte. Eu odeio essa coisa, tem gosto de sabão.
Ok, Nicolás e eu termos o Mason X como favorito era mais esquisito ainda, tínhamos tanta coisa em comum e éramos praticamente um par de desconhecidos. O problema era que, cada vez que que eu descobria uma nova coincidência entre nós, ao invés de ligar um sinal de alerta com isso e sua atenção excessiva, eu simplesmente me sentia mais confortável ainda com ele.
- Mas bom saber que são seus favoritos - disse interrompendo meus pensamentos - Vou deixar uma dessas com calmante injetado para quando você estiver me enchendo o saco.
Lá estava o sorrisinho debochado de novo, senti vontade de jogar algo nele, mas a única coisa perto era a caixinha de chocolates e seria um desperdício.
Estava tentada a abrir, mas enquanto o meu alarme em relação a Nicolás parecia se desligar, ele ficava em dobro no modo alerta quando o assunto era , talvez porque aos meus olhos ele não era um bom policial, e isso poderia indicar algo. E se ele já soubesse quem eu era? E se tivesse algo nos bombons? Que droga, eu queria comer.
Estava sentada de lado desde que ele colocou a caixa no meu colo, fiquei pensando enquanto observava ele dirigir, era quase impossível ele ter me descoberto em tão pouco tempo e eu nem sabia nada sobre ele ainda para achar que de fato ele era quem eu procurava. Talvez eu estivesse mesmo ficando paranoica, mas para uma pessoa como eu, um pouco de cuidado sempre cai bem. Parecia piada falar isso enquanto eu depositava uma confiança enorme na bondade de Nicolás, eu sei.
Abri a caixinha devagar, esperando que ele parasse o carro novamente enquanto eu escolhia um dos bombons. Tirei um da caixinha e estendi em sua direção.
- Eu não gosto de comer sabão, obrigada. - Ele afastou minha mão, mas eu insisti.
- COME. - Acabei falando alto demais, fazendo ele me olhar assustado. - Eu não vou tocar nisso até você comer, e eu tô com muita vontade, então abre essa porcaria logo e come.
- Eu não acredito nisso - disse chacoalhando a cabeça em negação - Você é patética, acha que eu fiz o que? Coloquei veneno nisso?
- Porque não?
- Você é ridícula, não dá mesmo pra ficar numa boa com você. Pode passar vontade, eu não preciso provar nada pra você.
Ele estava irritado, não pela possibilidade de não conseguir me envenenar ou algo assim, mas porque se sentia ofendido. Talvez até um pouco estupido e irritado consigo mesmo por tentar ser gentil comigo e receber desconfiança em troca.
Realmente não havia nada nos bombons.
- Desculpa - murmurei baixinho, fazendo meu papel de ingênua. - Acho que vou levar um tempo pra ver que nem todo mundo quer me atacar.
Escutei ele rir, não de uma forma feliz, mas sim irônica, quando ele falou pude notar sua voz carregada de raiva.
- Por que eu iria querer machucar você? - Seus olhos se desviaram da estrada para mim por 2 segundos, foi o suficiente para que eu pudesse ver que eles queimavam de raiva. - Meu trabalho não é matar gente.
Decidi que o melhor era não responder, fazer cara de ingênua e perdida era a melhor coisa no momento. Achei melhor me concentrar na caixa de bombons em meu colo. Aquilo era tão maravilhoso que me fazia esquecer dos meus tormentos.
Eu virava uma criança com doces, e aquele em particular era meu paraíso. Sem perceber acabei comendo a caixa toda, o que me renderia uma bela dor de barriga depois, mas no momento aquilo não importava.
Talvez eu tenha me descontrolado um pouco, quando dei por mim estava lambendo os dedos que ficaram com um pouco do chocolate que havia derretido. Só me lembrei que não estava sozinha quando escutei rir. Ok, . Isso foi totalmente constrangedor.
Um sorriso divertido dançava em seus lábios entreabertos, um contraste gritante com a expressão que ele fazia a apenas alguns minutos atrás.
Eu continuei olhando pra estrada, ainda constrangida com a minha atitude infantil, inesperadamente comecei a rir também.
Às vezes eu achava que tinha crescido muito rápido, que deixei o tempo tomar conta de mim antes da hora, não sei se pelo meu trabalho ou pela minha relação com um homem mais velho e comprometido. Mas quando eu parava para pensar, via que deixei de aproveitar muita coisa, não vivia como uma jovem adulta normal, era como se eu tivesse pulado etapas, talvez por isso às vezes eu me comportava como criança ou uma adolescente mimada. Tinha momentos em que eu tinha vontade de jogar tudo pro ar e apenas viver como uma garota normal, mas não podia. Amava meu trabalho e também amava Aaron.
Ainda ria baixinho quando escutei a voz de novamente.
- Tem uma flanela no porta luvas.
Ajeitei os papéis dentro da caixa e coloquei ela no painel, abrindo o porta luvas logo depois. Encontrei o paninho laranja e limpei o que sobrou do chocolate. Me senti tentada a fuçar ali, mas achei que não era uma boa hora, haveria outra oportunidade.
Coloquei a flanela perto da caixa vazia e me ajeitei no banco novamente.
- Sabe - olhei em sua direção quando ele começou, pensando se minha infantilidade teria feito a sua raiva ter passado tão rápido assim - Eu iria gostar de você se você não fosse tão... - eu já sabia o que ele iria dizer.
- Insuportável - completei rindo. Ele assentiu, deixando um riso em seus lábios me acompanhar.
Capítulo 8 — Home
Ela era um perigo. Tinha a impressão de que aquela garota poderia levar alguém do inferno ao céu em questão de segundos, mas também poderia fazer o contrário.
A forma como ela me tirava do sério chegava a me desconcertar, me irritava tanto que trazia uma versão grosseira de mim que eu odiava, uma versão que só uma outra pessoa conseguia trazer. Mas ao mesmo tempo, sem perceber ela trazia de volta o que eu realmente era. Havia feito isso mais cedo no jardim, e agora depois de se comportar igual uma criança quando encontra um bolo de chocolate.
Ela parecia tão leve ali, como se estivesse em um mundo particular onde só existia ela e uma coisa que ela parecia gostar muito. Talvez aquela fosse a melhor versão dela que eu tinha visto até agora, não sei porque a escondia.
Estranhamente, aquilo me faz lembrar de uma outra pessoa.
Arrisquei um olhar rápido na sua direção e vi que ela ainda ria (agora em silêncio), enquanto se afundava no bando do carona. Provavelmente achando graça das nossas palavras.
O trânsito estava um inferno, o trajeto que deveria levar apenas uma hora e meia, já tinha tomado quase o dobro do meu tempo, e parecia que não ia melhorar tão cedo já que agora eu estava preso em um engarrafamento. A noite já começava a cair
Desliguei o carro e encostei a cabeça no banco depois de tirar o cinto, já cansado daquele dia.
Olhei novamente para garota ao meu lado e pensei que depois de tantas coisas, perguntar não ofenderia.
- Por que ficou triste de repente?
Ela sentou novamente de lado no banco e ficou me encarando por um bom tempo, achei que não ia mais responder. Quando começou a falar já olhava para o vidro da frente do carro.
- Meus pais nem sabem o que aconteceu comigo e meu irmão, bom eu não vou nem comentar. Quando Aaron e Clarice não atenderam o telefone eu vi que tô muito sozinha.
Era por isso então? Eu não teria imaginado, a única coisa que passou pela minha cabeça foi que ela estava com medo de voltar pra casa onde foi atacada.
- Por que não ligou pra outras pessoas?
- São os únicos números que eu sei de cabeça - suas palavras vieram acompanhadas de uma leve risada.
- Posso te perguntar outra coisa? - Ela assentiu, voltando a me olhar. - Não tem medo de voltar para casa depois do que aconteceu? Eu pensei que era por isso.
- Não. Para falar a verdade eu mal me lembro do que aconteceu. Eu tava procurando uma roupa e escutei um barulho vindo da porta, quando eu percebi já tava apanhando. Não sei se foi o choque ou a surra que eu levei, mas não me lembro de quase nada. Não sei como vou me sentir quando chegar lá, mas por enquanto não é algo que me preocupe. Você leu o meu depoimento?
Fiz que sim com a cabeça. Quando li eu achei tudo muito vago, achei que ela tinha ocultado coisas, que queria esconder algo. Mas ela parecia tão sincera ali, que já não era mais possível duvidar das suas palavras.
- Achei que você era viciada e tinha apanhado de algum traficante.
Comecei a rir, aquilo parecia muito idiota agora. Conhecia viciados e ela estava muito longe disso.
- Não acredito - ela escondeu o rosto com as mãos, mas pude ver que ria. - Mas tudo bem, talvez a minha aparência não tenha ajudado.
- Talvez, Chucky.
pegou a caixa de chocolates vazia e jogou na minha direção, espalhando papéis por todo lado.
- Acho bom você estar bem disposta amanhã, porque vai limpar meu carro.
- Vai sonhando, .
Fui me ajeitar no banco e senti algo me incomodando. Havia esquecido de tirar a arma da cintura, decidi que era melhor tirar antes que ficasse com a marca dela.
- Vai me ameaçar com um revólver pra eu limpar seu carro? Meio sádico, mas eu gostei. - tinha a voz carregada de ironia.
- Não vou nem te responder.
Ia guardar a arma no porta luvas, mas pensei que seria uma péssima ideia deixar ela tão perto de . Não que ela soubesse atirar, mas era bem capaz de tentar jogar em mim.
Retirei o carregador e o cartucho da arma e coloquei os três no fundo do tapete aos meus pés. Aproveitei para me livrar do blazer também, já que sentia um pouco de calor.
- Você sempre sai jogando as coisas assim nos outros?
- Não, só em quem me irrita demais.
- Me lembra de esconder as facas quando a gente chegar na sua casa - provoquei.
- Fique à vontade, eu ainda tenho um montão de livros para jogar nessa sua cara feia.
Ela riu enquanto inclinava o banco do carona, buscando mais conforto. Em menos de 20 minutos ela já tinha sujado o meu carro e tinha tirado os bancos do lugar. Eu ia mesmo precisar de muita paciência.
Virei pra frente e fechei os olhos fingindo que não estava vendo pra não me estressar novamente. Eu odiava quando Nicolás fazia isso porque ele nunca colocava o banco de volta no lugar, também nunca limpava a sujeira que deixava em meu carro. Eu estava rodeado de gente bagunceira, eu odiava bagunça.
Fiquei naquela posição por um bom tempo, tentando relaxar. Estava funcionando até ouvir o barulho de uma buzina. Abri os olhos e vi que finalmente, os carros à minha frente começaram a se mover novamente. Até que enfim.
Liguei o carro e quando fui me dirigir a vi que ela estava dormindo.
Os carros atrás podiam esperar mais um pouco.
Procurei pela jaqueta do uniforme que sempre deixava no banco de trás e a dobrei, fazendo quase uma almofada. Ela tinha o sono pesado, não acordou quando eu coloquei a jaqueta entre o vidro da janela e seu pescoço, nem mesmo quando prendi seu cinto de volta.
Os sons de buzina já estavam insuportáveis quando eu finalmente dei partida.
O trânsito havia melhorado, mas ainda assim a viagem ainda foi longa. Demorei tanto a chegar na casa dela que parecia que eu estava saindo do interior para a cidade. Quando estacionei na frente da imensa casa, ainda não tinha acordado.
Como Nicolás e eu ficamos responsáveis por ela e por qualquer sinal do seu irmão, tínhamos recebido acesso à entrada da casa, mas não a casa em si. Inseri o cartão na máquina ao lado do portão esperando que ela lesse o código de barras e abrisse o portão da frente.
Estacionei o carro no extenso gramado em frente a entrada principal da casa e desliguei o carro.
A bolsa de estava no banco de trás, com certeza tinha uma chave ali, mas não seria de bom tom mexer nas suas coisas, sem falar que se ela acordasse e me pegasse revirando sua mochila era capaz de me dar um belo soco. E eu também não queria acordá-la.
Me sentia exausto e honestamente, já tinha dormido em lugares piores. Pensando bem, aquilo na verdade era até bom, se acordasse eu teria que ficar de guarda na casa até Nicolás dar o ar da graça, e eu não poderia dormir com ela circulando por tantos cômodos. O carro era seguro, bastava trancar as portas e foi isso que eu fiz. Tirei a chave da ignição e coloquei no meu bolso, apagando a luz do carro logo depois. Finalmente me rendendo ao sono, fechei os olhos.
Não sei por quanto tempo estava dormindo, mas escutava um barulho que embora baixo, parecia muito perto e me tirava do meu sono cada vez mais. Fui abrindo os olhos aos poucos e pude ver que já era noite, parecia estar ainda mais escuro. O barulho de fato vinha de dentro do carro.
Acendi a luz assim que percebi o que era.
- Eu não acredito nisso.
- Não é o que você tá pensando.
- Eu não quis mexer na sua mala pra procurar a chave da casa porque não seria de bom tom e você tá revirando a minha mochila e o porta luvas. - Acusei, vendo o porta luvas aberto e minha mochila em seu colo.
- Já disse que não é o que você está pensando.
Fechei o porta luvas e puxei minha mochila de volta, colocando no banco de trás novamente. Encarei ela com a cara mais irritada que consegui fazer, lutando contra a sonolência.
- Eu só estava procurando um remédio para dor de cabeça - ela bufou enquanto cruzava os braços no peito.
Cocei os olhos enquanto pensava naquilo, era muito difícil saber quando ela mentia ou dizia a verdade. A garrafa de água que eu deixava no carro estava em seu colo, então talvez ela só quisesse o remédio mesmo. Abri o tapa sol e puxei a cartela de analgesico que deixava ali e joguei em seu colo. Ela destacou dois compridos e engoliu logo depois, seguido pela água.
- Porque não me acordou pra perguntar se eu tinha algum remédio?
- Pelo mesmo motivo que não me acordou para perguntar da chave - retrucou.
1, 0.
- Abre o carro, eu quero um banho e a minha cama.
Destravei as portas do carro e peguei minha arma novamente, juntando todas as partes. Sai do carro e tirei a mala dela do banco de trás enquanto esperava ela largar a garrafa e sair também.
Ela simplesmente puxou a mala da minha mão e colocou no capô do carro, jogando uma série de coisas para fora tentando achar a chave. Quando finalmente encontrou o que procurava, voltou a guardar tudo.
Ela ia pegar a mala, mas puxei de volta assim que percebi. Os livros faziam um peso absurdo e o médico fez questão de dizer "sem esforço" pelo menos cem vezes. Se ela tivesse que voltar pro hospital eu mesmo me daria um tiro, odiava hospitais e não aguentava mais fazer guarda lá, sem falar que seu irmão não ousaria tentar ir atrás dela naquele lugar.
não disse nada, apenas se dirigiu à porta da frente enquanto eu a seguia e travava o carro novamente.
Ela acendeu a luz assim que entrou. Eu já havia estado lá algumas vezes depois do ataque, voltei atrás de pistas com outros policiais e alguns peritos, mas só haviam digitais de gente que sempre parecia estar naquela casa. Dessa vez, porém, entrar ali foi estranho. Eu sempre estive com um grupo de pessoas, com uma única companhia ali, a casa parecia ter o dobro de tamanho. Era bonita, por dentro era toda de uma madeira escura, mas parecia ser um lugar muito solitário.
parou na frente da escada, com as mãos no bolso do jeans.
- Não consegue subir sozinha?
Ela se virou para mim.
- Não sei, acho que sim. Mas estava pensando em outra coisa.
Esperei que ela continuasse mas ela não falou mais nada.
- No que?
- Me sinto mais sozinha agora.
POV.
Nunca pensei que me sentiria uma estranha em minha própria casa. Eu nunca ficava sozinha ali, Lucas estava lá na maior parte do tempo e quando não estava, eu tinha Aaron. Eu sei que teria companhia pelos próximos tempos, mas aquilo era trabalho, eu os vigiaria enquanto eles pensavam me vigiar, não era companhia de verdade. Estava começando a ficar irritada com isso, o tempo que eu desperdiçava pensando na minha solidão era o tempo em que eu deveria estar fazendo meu trabalho.
Não havia encontrado nada de interessante no porta luvas de , sua mochila não tinha nada fora do normal também, o que me fez pensar que eu teria que conquistar sua confiança o quanto antes. Precisava focar no meu trabalho.
- - chamei, já no primeiro degrau - Vou cumprir minha parte do trato e vou te deixar em paz. Mas não se esqueça que você perdeu uma aposta e também tem algo a cumprir.
Ele apenas assentiu e me seguiu enquanto eu subia a escada a passos lentos, tentando me lembrar de que ainda não estava 100% recuperada.
Quando cheguei na porta do meu quarto achei que o correto era fazer um pouco de drama, afinal ninguém sofre um ataque e volta ao lugar do ocorrido numa boa.
Coloquei a mão na maçaneta e fui girando bem devagar, para depois fazer o mesmo com a porta. Procurei pelo interruptor logo depois, mas não precisei mais fingir nada, fiquei seriamente espantada em como encontrei meu quarto.
Eu me lembrava de ter feito a maior parte daquilo, mas havia esquecido que em boa parte do que fiz, a luz estava apagada. Claro que eu não medi o estrago.
Eu ainda segurava a maçaneta quando senti a mão de por cima da minha puxando a porta de volta.
- Acho que não é uma boa ideia você ficar aqui.
Soltei a porta deixando que ele fechasse e apagasse a luz.
- A gente pode chamar alguém para cuidar disso amanhã. Imagino que tenha quarto de hóspedes aqui, não? - Assenti, ainda em choque enquanto ia para o quarto ao lado.
Clarice e Aaron disseram que dariam um jeito na bagunça antes que eu voltasse, mas parece que eles tinham se esquecido disso também. Aquilo deveria ter sido arrumado assim que a polícia parou de fuçar.
Abri a porta do outro quarto e voltei a acender a luz. Esperei subir as escadas e me trancar no meu quarto, pensando que lá não me sentiria tão sozinha, já que ele sempre foi meu refúgio, mas não foi o que aconteceu. colocou a mala no canto e saiu dizendo que iria ficar no corredor e me pediu pra não trancar a porta, do contrário ele teria que derrubar caso ouvisse algum barulho.
Eu me sentei na cama e fiquei lá olhando pro nada, me sentia triste e com raiva ao mesmo tempo, nem tanto pelo meu refúgio destruído, mas sim porque mais uma vez a voz dizendo que eu estava sendo esquecida ecoava na minha cabeça.
Depois de meia hora vi que precisava mesmo do meu quarto. andava feito uma barata tonta no corredor e pareceu inquieto quando me viu ir em direção ao cômodo destruído.
- ?
- Vou limpar meu quarto.
- Não, você não vai - disse vindo atrás de mim. - O médico disse repouso e isso inclui não fazer esforço. Eu não quero voltar a ficar te vigiando no hospital. Você já passou muito tempo longe do seu quarto, não vai morrer se dormir mais uma noite em outro lugar
- O hospital não é minha casa, . Você não entenderia - estava sendo sincera, sem falar que me sentia exausta para trocar farpas e teria que parar com isso também se quisesse ganhar sua confiança.
- Realmente, eu não entendo.
- Não quero explicar. Me ajuda a limpar a bagunça então, assim eu não me esforço tanto e você não dorme em pé, porque você tá quase - propus, vendo que ela parecia prestes a desmaiar de sono.
- Se eu falar que não, você vai fazer sozinha não vai?
Concordei com a cabeça.
- Onde vocês guardam o material de limpeza? - Não acredito que ele cedeu tão rápido.
- Embaixo da escada, a porta tá aberta.
desceu para pegar o necessário e eu voltei a entrar no meu quarto.
Decidi começar pelo banheiro que era o lugar menos bagunçado, não fiquei nem 10 minutos ali, uma vez que só precisei colocar alguns frascos de volta no lugar e alguém já havia secado o chão.
Me agradeci mentalmente por não ter passado perto da grande estante de livros que eu tinha lá, felizmente ela estava inteira e tudo parecia em seu lugar.
Retirei toda a roupa de cama e as almofadas do mini sofá, junto com sua capa. entrou enquanto eu ia para o banheiro colocar tudo no cesto. Não precisei falar nada, ele foi até a penteadeira e começou a colocar todos os itens quebrados em um saco de lixo, fazendo o mesmo com os cacos de vidro que estavam no chão.
Achei que era uma boa ideia limpar os móveis depois que ele retirava a bagunça, assim eu não fazia tanto esforço e me livrava logo das manchas de sangue. Eu não sei como aquilo estava saindo, algumas estavam mais difíceis do que as outras, mas foram saindo aos poucos.
Eu já havia estado em muitas cenas de crime, mas nunca tinha limpado uma, principalmente de um falso crime. que já havia varrido o chão, agora enrolava o tapete com o que um dia foi meu sangue para tirar ele do quarto.
Não estávamos conversando, fazíamos tudo em silêncio. Eu já havia limpado todos os móveis e aproveitei a saída dele para arrastar a moldura do espelho quebrado pra fora, mas fui pega na metade do caminho e recebi um olhar feio. Foi até engraçado.
Deixei que ele terminasse de empurrar.
- Só falta passar um pano no chão, vai tomar banho e eu termino. Seus pontos vão abrir se fizer mais alguma coisa e...
- Você não está afim de me vigiar em um hospital - Interrompi, completando o que ele iria dizer. Ele concordou com um leve aceno de cabeça. - Obrigada, .
Era a primeira vez que eu o agradecia por algo sem ironia ou qualquer tipo de fingimento.
- Seu quarto não tem janelas, o único jeito de alguém entrar é pela porta então se quiser pode trancar por dentro quando sair.
Era o que eu planejava. Peguei um pijama leve no closet e fui para o banheiro, parte de mim queria muito deitar naquela banheira, mas a outra parte estava muito cansada e temia cair no sono e se afogar. Decidi que o melhor era um banho de chuveiro.
Deixei que a água e o sabão levassem todo o cheiro de hospital e a sujeira pós limpeza do meu corpo. Devo ter ficado quase trinta minutos lá, a água estava tão quentinha e me fazia relaxar cada vez que escorria pelo meu corpo. Evitei pensar em qualquer coisa naquele meio tempo, precisava cuidar um pouco de mim.
Quando estava prestes a desligar o chuveiro vi que tinha um pouco de sangue no chão, sangue que escorria da minha barriga. Ótimo, um dos pontos parecia ter se aberto um pouco. Parecia até castigo, ou talvez fosse só praga mesmo.
Coloquei a toalha no local e pressionei indo atrás da bolsa de primeiros socorros. Fiz o pior curativo que já havia feito na minha vida, mas pelo menos não sangrava mais.
Quando coloquei o pijama e saí do banheiro já não estava lá, provavelmente tinha voltado para o corredor. A porta estava fechada com a chave pendurada, esperando para ser trancada. E o chão estava tão limpo que eu jamais diria que quase fui encontrada morta ali.
Liguei a tv e deixei praticamente no modo, colocando legendas automáticas. Gostava de fazer as coisas com o aparelho ligado. Agradeci mentalmente a equipe que consertou a energia depois do curto, mesmo que eles tenham arrumado para os policiais e não para mim.
Arrumei o sofá e coloquei uma nova muda de roupas na cama também, enquanto sentia o cheirinho agradável de limpeza. Quando tudo já estava em seu lugar, eu me sentei na cama para pentear meu cabelo molhado. Alguns minutos ali já tinham renovado um pouco da minha saúde mental. Eu queria fazer outras coisas, mas me sentia exausta demais.
Já tinha apagado a luz e me preparava para dormir quando decidi fazer uma boa ação.
Abri a porta do quarto e encontrei o policial no corredor, igualzinho antes.
- - chamei - vem aqui, por favor.
Dei passagem pra que ele entrasse.
- Tudo bem? - Ele parecia meio confuso, mas talvez fosse apenas sono.
Tranquei a porta assim que ele entrou.
- Dorme no sofá. - Disse apontando para o móvel e jogando as chaves em sua direção. - Tá montando guarda desde ontem, não dormiu.
- Eu não posso, mas obrigada - pude notar um pouco de timidez na sua voz.
- Sim, você pode. Tava dormindo no carro e você mesmo disse que o único jeito de entrare,=m no meu quarto era pela porta. A chave tá com você, eu não vou sair e se alguém derrubar para entrar você vai ouvir. Agora dorme.
Ele não tinha argumentos, uma vez que eu usei as próprias palavras dele contra ele. sentou no sofá, um pouco largado.
Eu não acreditava que finalmente poderia dormir na minha cama. Me aninhei no monte de travesseiros que havia colocado lá, desfrutando sorridentemente do aconchego que aquilo me trazia.
Estava de bruços quando coloquei a mão debaixo do travesseiro e senti a arma que havia colocado ali.
- Boa noite, Green.
- Bons sonhos, Jude - escutei sua voz sonolenta, apaguei logo depois.
POV.
Algumas vezes era muito difícil entender o que se passava na cabeça de , já em outras era praticamente impossível.
Jamais pensei que "o dia" terminaria com ela me chamando pra dormir no sofá do quarto, claro tampouco havia pensando que eu passaria quase 2 horas limpando uma cena de crime. Tudo com ela era extremamente imprevisível.
Eu não deveria estar sentado no sofá dela quase dormindo, mas a encrenqueira tinha razão, ela não sairia sem a chave e como o único modo de alguém entrar era pela porta, eu acordaria sem dúvidas.
Eu não dormia a três dias, diferente do que ela pensava. Acho que um pouco de descanso era válido e faria bem para os dois.
Dormi enquanto passava um episódio de CSI na televisão.
Não fazia ideia de quanto tempo tinha dormido, mas quando meus olhos começaram a se abrir eu já não me sentia mais tão cansado. A única luz no ambiente continuava sendo a da tv.
Fiquei ali, observando a grande tela por bom tempo, até o momento em que senti vontade de ir ao banheiro. Cogitei sair e procurar na casa, mas temi que o rangido da porta acordasse ela. Imaginei que não teria problema em usar o seu banheiro particular. Felizmente a porta ali era de deslizar e não faria barulho.
No meio do caminho me distraí com ela dormindo, ela havia feito uma espécie de cercado com vários travesseiros e dormia no meio deles, aquilo parecia estranhamente confortável, mas ainda assim sua expressão não parecia tão relaxada. Às vezes seu corpo dava leves tremores e ela agitava o braço que permanecia debaixo do travesseiro. Imaginei que fosse medo de sofrer outro ataque. Achei melhor ir logo ao banheiro antes que ela acordasse e me visse a observando.
Depois de lavar as mãos fui até o interruptor apagar a luz, quando algo chamou minha atenção. Havia uma toalha com uma mancha vermelha jogada perto da banheira. Um vermelho que se parecia muito com sangue.
Não fiquei muito surpreso quando peguei a toalha molhada e vi que era realmente sangue. Já era de se esperar que aquilo acontecesse, aquela garota era uma teimosa.
Coloquei a toalha em cima do assento da privada e fui procurar uma caixa de primeiros socorros no restante do banheiro. Achei o objeto com certa facilidade dentro do armário, levei comigo de volta para o quarto.
Iria esperar ela acordar sozinha, uma discussão já seria o suficiente.
POV.
Arrumar o meu quarto e descansar naquele lugar tão familiar me trouxe um conforto mais do que necessário. De fato aquele lugar era meu porto seguro.
Fiquei um bom tempo deitada com os olhos fechados, apenas desfrutando do aconchego dos meus travesseiros. Quando finalmente decidi acordar de vez, vi que estava sentado em uma cadeira de frente para cama.
- Se supõe que você deveria estar dormindo - disse ainda deitada.
não disse nada, apenas se levantou e começou a andar na minha direção. Tinha alguma coisa na sua mão, mas como havia pouca luz no quarto, não consegui identificar o que era.
Três segundos foram suficientes pra ele se curvar em cima de mim com os braços apoiados na cama. Minha mão segurou com mais firmeza o revólver embaixo do travesseiro quando ele aproximou ainda mais seu rosto do meu.
- Se supõe que você deveria ficar quieta e fazer repouso - começou. - Levanta a blusa.
se afastou alguns centímetros e pude ver o que tinha na mão, uma bolsa de primeiros socorros. Ele deve ter visto a toalha no banheiro.
- Você não é médico, garoto. Vai dormir.
- E seu irmão te ensinou medicina também enquanto te falava como colocar um nariz no lugar? - Retrucou, já impaciente.
Não podia falar muita coisa, demonstrar que eu entendia o básico de certos assuntos poderia colocar a mente dele pra trabalhar. A coisa não estava tão feia, então ele poderia ver sem encher o saco, mas talvez eu pudesse fazer ele desistir. Revirando os olhos, sentei na cama puxando as cobertas para longe de mim. se sentou na beirada.
- Levanta a blusa.
- Por quê você não levanta? - Provoquei, crente que ele não faria e me deixaria em paz com meu curativo meia boca. O policial fechou os olhos esfregando suas têmporas. Contra todas as minhas expectativas, ele se sentou ainda mais perto e me encarou com firmeza.
Sem dizer uma palavra e sem tirar os olhos dos meus, usou a mão livre para tocar a minha barriga por cima do pijama. Embora ele só estivesse tateando em busca do curativo, não pude deixar de sentir um arrepio imenso quando ele encontrou o que procurava e me segurou com firmeza. Minha mente insana reagiu positivamente quando seus dedos roçaram minha pele enquanto ele levantava lentamente a barra da minha blusa, arrepiando cada parte do meu corpo.
Capítulo 9 — Kyle
aproximou ainda mais o seu rosto do meu, me sentia hipnotizada. Sua mão espalmada pousou sobre o curativo na minha barriga enquanto seu polegar ainda tocava em minha pele. Meu olhar se dividia entre seus olhos e sua boca.
- Cedo demais para ficar empolgadinha, Jude – sussurrou
O que? puxou o curativo de uma vez, fazendo com que o esparadrapo levasse até a minha alma junto consigo. Só tive tempo de gritar.
- Você tá ficando louco, filho da puta? - Eu ia matar aquele idiota.
ria enquanto se levantava para acender a luz.
- Ia me beijar, Jude?
- Nos seus sonhos. Sai do meu quarto agora - disse apontando em direção a porta. , que já tinha colocado um par de luvas, se sentou na cama enquanto ainda ria, me ignorando completamente.
Chutei o seu quadril.
- SAI.
- Com muito prazer, depois que eu dar um jeito nessa merda que você fez. E antes que você diga que não - emendou, molhando um algodão com anti séptico - queria te lembrar que a chave ainda tá comigo e nenhum de nós vai sair daqui até você ceder.
Alguém no FBI me entenderia se eu desse um tiro naquele cara? Eu com certeza pagaria todos os meus pecados depois de conviver com Green, não tinha dúvidas. Levantei a blusa e me joguei nos travesseiros tentando não explodir de ódio. Como eu deixei o meu estúpido corpo se deixar levar pelo toque não intencional daquele idiota? As pancadas com certeza afetaram o meu cérebro, não tinha outra explicação.
havia conseguido dar um nó no ponto solto, evitando que ele abrisse por completo com o decorrer do tempo. Estiquei a mão para que ele me devolvesse a chave assim que ele terminou de colocar o esparadrapo. Quando o objeto encostou na minha mão eu fui até a porta e a abri, dando a entender que ele deveria sair.
Rindo de forma silenciosa, ele devolveu a bolsinha ao banheiro e saiu logo depois. - De na...
Bati a porta na sua cara, sem deixar que ele terminasse. Não pensei duas vezes antes de trancar a porta.
Não tinha mais sono, ainda me sentia um pouco cansada, mas tamanha irritação não me deixaria dormir. Decidi então focar no que era preciso, assim não pensaria na minha estupidez.
Fazendo o mínimo de barulho possível, soltei o piso falso que ficava embaixo da minha cama e peguei uma chave de fenda pequena e uma chave minúscula que estavam lá.
Com muito cuidado subi em cima da cama e logo passei para a mesa de cabeceira, ficando na mesma posição da saída do duto de ar. Não vou mentir que temi abrir outro ponto quando me estiquei para soltar os parafusos, mas eu não tinha muita escolha. Deveria ter deixado eles mais frouxos quando mexi ali para tirar a minha arma, mas não pensei que voltaria a mexer lá tão depressa.
Assim que a tampa se soltou, eu a coloquei em cima da cama e voltei para puxar a caixa cinza de dentro do duto. Ela se camuflava perfeitamente na grade, tinha a mesma cor e era impossível enxergar de longe, teriam que chegar muito perto para ver aquilo.
Me sentei na cama com a caixinha em meu colo, havia coisas que não deveriam estar ali, mas estavam. Abri o cadeado tentando pensar somente no meu trabalho. Por cima de tudo, estavam o meu distintivo, um taser e o meu celular, havia escondido ali para que a polícia não achasse. Em baixo havia uma série de fotos com Aaron que eu precisaria guardar em algum outro lugar.
Claro que a polícia iria grampear meu telefone, qualquer um sabia disso, então aquele aparelho deveria ficar escondido para preservar não só a missão, mas também a minha verdadeira identidade. Eu compraria um celular novo com outro número que eles poderiam grampear à vontade, enquanto meu celular de verdade deveria permanecer escondido e ser usado somente para passar informações referente ao meu trabalho (coisas que claro, a polícia não poderia ter acesso) e assuntos mais pessoais. E obviamente as minhas paranoias não me deixariam em paz quando eu pegasse a caixa e encontrasse minhas fotos com Aaron. Juntei todas elas em uma sacola e enfiei no fundo do closet, onde eu nunca mexia.
Deixei o celular ligado enquanto eu colocava a caixa de volta no duto de ar, lembrando dessa vez de deixar os parafusos bem frouxos. Enfiei o taser em uma gaveta, mas depois colocaria ele em qualquer bolsa que fosse usar.
Achei que o melhor era apagar a luz e ficar na cama enquanto a enxurrada de notícias e mensagens vinha.
Havia uma série de mensagens do meu irmão, algumas em que ele estava totalmente puto e outras em que ele estava feliz por eu estar viva e bem. Não iria me explicar e nem responder mensagem por mensagem, acho que já estávamos todos fartos do ocorrido e ninguém queria outra discussão. Achei melhor ser objetiva e honesta. "Estou bem e em casa, vou ficar tranquila e prometo que não farei outra loucura. Sinto sua falta, amo você."
Reli a mensagem algumas vezes, procurando erros de português, eu odiava quando escrevia errado. Enviei assim que vi que estava tudo certo.
Tinha algumas mensagens dos meus amigos preocupados com o meu ataque, mas eu não deveria responder, todo mundo tinha que pensar que o aparelho foi levado. Depois de ler as mensagens, acabei (com certa tristeza) bloqueando todos eles, exceto um. Daria um jeito de agradecer as mensagens depois.
Agradeci aos meus colegas de trabalho que se dividiam entre me dar bronca e me desejar melhoras, pelo menos com eles não haviam tantos segredos.
Enquanto olhava a conversa com Aaron - sem encontrar nenhuma nova mensagem - vi uma notificação na tela, era Lucas. Fui até a conversa.
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Eu não preciso te dar uma outra bronca, não é? No momento tenho outras preocupações, como você fechada em uma casa com dois suspeitos, por favor mantenha sempre a arma por perto. Você sabe que eu nunca estive de acordo com você se colocando nessa situação, mas não tive como impedir. Às vezes eu penso que Aaron matou alguém e você sabe onde ele escondeu o corpo, porque ele simplesmente deixa você fazer tudo o que quer. Então, faça o mínimo e seja cautelosa. Você já me deu um susto enorme e foi o suficiente, em qualquer sinal de perigo aborte a missão. Quem te levou para casa?
Sim senhor. Clarice tem alguma novidade para mim?
Enviei, ignorando todo o resto.
Enquanto Lucas digitava, uma nova notificação apareceu.
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Porque não me avisou que tinha...
Claro que Clarice correu pra soltar a língua.
Eu sinceramente não queria perder o foco e nem o sossego naquela hora. Fui até a tela inicial do aplicativo e silenciei a conversa, lutando contra a vontade de abrir a mensagem. Voltei a conversa que mais importava no momento.
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Como sabe que ela tá comigo? Ela te enviou agora um e-mail com algumas informações. Nada demais em nenhum dos casos, mas isso não deve ser sinal para que você baixe a guarda. Encontrou algo?
Ela sempre atende o telefone, exceto quando está com você, gênio. Não encontrei nada por enquanto. Nicolás não tem aparecido e andei revirando algumas coisas de , mas não encontrei nada.
Como conseguiu revirar as coisas de um policial assim? Voltou para casa com ele?
É uma longa história, fica para depois, mas foi ele quem me trouxe. Vou olhar o que Clarice me enviou. Depois conversamos, ok?
Ok. Ela disse que tem algo para falar com você depois. Amo você, se cuida.
O assunto de Clarice nada tinha a ver com meu trabalho. Sabendo que ela me falaria algo sobre Aaron, tratei de silenciar e arquivar a conversa antes que ela me mandasse qualquer coisa.
Os e-mails eram na verdade, as fichas de e Nicolás.
Green era um policial de classe alta que aparentemente gostava de viver sem luxos. Ele morava sozinho em um apartamento simples e havia se formado em advocacia (essa parte Nicolás já tinha me contado). Seus pais eram divorciados. Enquanto o seu pai, Carter Green, havia se casado novamente e permanecido na Califórnia onde era delegado, sua mãe vivia no Novo México com a outra filha e sua neta, seu nome era Harmony Green. Me perguntei porque ela não havia retirado o nome do marido quando se divorciou. Observei as fotos da família.
O pai de me passou a impressão de um homem arrogante e soberbo, seu sorriso falso me disse que eu definitivamente não iria com a cara dele, esperava não ter que visitar a delegacia tão cedo. Sua mãe era o oposto, a senhora Harmony parecia gentil e humilde, assim como sua filha. Embora tivesse os olhos e o sorriso da mãe, parecia ser um merda igual ao seu pai.
Passei para a ficha do outro policial e imediatamente me senti mal por ele. Nicolás perdeu os pais quando era criança em um acidente de carro, tinha 3 anos e foi parar em um orfanato. Ninguém adotou ele, nunca nem tentaram. Passou a vida de orfanato em orfanato até os 16 anos, quando teve autorização para trabalhar. Fez isso por anos em uma lanchonete para pagar os estudos, inclusive fez isso na faculdade até a metade do curso, onde depois conseguiu uma bolsa.
Sua vida não tinha sido fácil. Pensei em sua gentileza, na simpatia que estava sempre presente com ele. Como alguém poderia sofrer tanto e ainda ser gentil?
Senti meus olhos marejados. Era sensível demais, esperava ter amadurecido quando entrei no FBI, mas pouca coisa mudou.
Por hora, eu não tinha muito mais o que fazer. Decidi então me dar ao luxo de ter companhia.
Fui até o WhatsApp e busquei o único de meus amigos que não era do trabalho e digitei uma mensagem.
offline
Acordado?
Enquanto esperava, voltei a ler suas mensagens, é claro que ele já desconfiava de tudo.
A resposta não demorou a vir. Já sabia que ele estava acordado, era uma pessoa noturna assim como eu.
online
Acordado?
Tarde demais para eu te fazer uma visita?
Eu ri, adorava como as coisas com ele eram simples. Kyle era o único amigo meu que sabia quem eu realmente era e o que fazia. Quando ele soube do ataque, não demorou para que somasse 2+2 e descobrisse que estava tudo planejado.
online
Acordado?
Tarde demais para eu te fazer uma visita?
Traz seu computador, por favor.
Chego em 15 minutos.
No decorrer dos anos Kyle havia se tornado alguém na minha vida que eu jamais poderia imaginar, ele era a minha Clarice, mas com um pênis. Às vezes eu achava que não dava o devido valor a ele, às vezes eu também achava que deveria namorar Kyle, e não Aaron. Aaron não era nem meu namorado de verdade.
Decidi olhar suas mensagens, enquanto o motivo do único ciúme que ele tinha não chegava.
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Porque não me avisou que tinha recebido alta? Eu teria ido te buscar.
Só podia ser piada.
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Porque não me avisou que tinha recebido alta? Eu teria ido te buscar.
Eu teria avisado se você tivesse atendido, mas acho que você estava ocupado demais para atender sua amante.
Ele odiava quando eu usava a palavra amante, mas era o que eu era mesmo. Só que normalmente eu só usava "amante" quando estava irritada com algo.
Me sentia extremamente confusa, estava com saudade dele, mas não queria ver ou falar com ele. Desde a melancolia no hospital minha mente ia e voltava pensando em 50 possibilidades diferentes.
Estava atada a ele e aquilo não era bom, minha vida iria ser sempre ficar à espera de alguém que talvez não poderia vir? Algumas horas roubadas e um resto de tempo era só o que eu teria? Seria sempre assim? Não conseguia mais deixar de pensar nisso.
Aaron não era para mim, eu desrespeitava outra pessoa toda vez que ficava com ele e ele fazia o mesmo, jogou seus votos no lixo por minha causa, mas nunca seria completamente meu. Eu não tinha coragem de arrancar ele por completo de Olivia, eu nunca ia me perdoar se algo acontecesse a ela por minha culpa, e ela não merecia isso, claro que também não merecia o belo par de chifres que nós colocávamos em sua testa. Como eu era hipócrita.
Eu realmente não estava pronta para abrir mão dele, talvez nunca estivesse, mas no final das contas, nós não teríamos muita escolha já que esse meio tempo poderia acabar nos afastando.
Escutei um barulho de carro se aproximando e olhei para o celular novamente, Aaron digitava uma mensagem.
"Estou cansada, vou dormir e você deveria fazer o mesmo. Boa noite"
Digitei rápido, cortando qualquer outra coisa que ele fosse escrever. Uma parte de mim relutou para não acrescentar um "te amo" ao fim da mensagem. Desliguei o celular e o escondi de baixo do piso solto junto com as chaves.
Vesti um robe e calcei meus chinelos para ir a porta de entrada quando o barulho do carro ficou mais alto. estava no corredor, atento ao barulho também. Assim que eu comecei a andar ele veio atrás de mim, com uma cara esquisita.
- Eu só vou abrir a porta, não precisa ficar grudado em mim. Não é nenhum assassino e eu não vou para lugar nenhum.
Ele não disse nada, só continuou com a mesma cara e parou no início do corredor, enquanto eu descia as escadas a passos de lesma.
Liberei o acesso para Kyle do portão principal e observei enquanto seu Porsche preto estacionou atrás do carro de , não tinha reparado que era uma BMW g02.
Kyle saiu do carro e ajeitou a mochila no ombro, antes de fechar o carro vi ele pegando um saco de papel no banco do carona. Me senti ligeiramente animada quando ele começou a caminhar na minha direção. Achava incrível como ele parecia sorrir com olhos, ele tinha uma energia maravilhosa e acabava passando aquilo para quem quer que estivesse por perto. Parecia incrivelmente enérgico sob a luz da lua que fazia uma perfeita sincronia com seus olhos azuis.
Seus braços me envolveram assim que ele ficou na minha frente, retribui com gosto enquanto ele afagava (e bagunçava) meu cabelo.
- Me fala que isso na sua mão é um lanche de fast food daqueles bem gordurosos que eu não poderia estar comendo.
Ele riu enquanto desfazia o abraço, entregando o pacote para mim.
- Você não obedece a ninguém mesmo, então decidi te mimar um pouco.
Puxei ele para dentro e fechei a porta pensando no quanto eu era idiota.
Kyle me abraçou de lado e subiu as escadas comigo acompanhando meu passo. Ignorei o policial no corredor e fiz questão de bater à porta do quarto.
Me sentei na cama enquanto Kyle tirava os seus sapatos para fazer o mesmo que eu e tratei de ligar a tv novamente, coloquei o volume numa altura exagerada para que um certo policial idiota não pudesse entender nada do que fosse dito no quarto.
Abri o pacote dos lanches e tirei as embalagens para fora.
- Quem é o cão de guarda do lado de fora? - Perguntou, ligando o notebook que havia tirado da mochila.
- Um idiota que pensa que é policial.
- Parece o seu tipo - brincou.
Dei um olhar atravessado enquanto mordia um dos lanches. Aaron não suportava Kyle e eu podia dizer que era mútuo, mas enquanto um perdia as estribeiras, o outro fazia piada e debochava de tudo.
Ajeitei o computador em cima de uma almofada. Enquanto ele se sujava com a maionese do lanche, eu criei um novo perfil no seu sistema e fui colocando tudo o que eu precisava.
- Ninguém vai mexer no seu computador, certo Kyle? - disse, mais em tom de afirmação do que de pergunta.
- Ninguém - vi ele se encostar na cabeceira da cama. - Mas se você quiser pode ficar com ele também.
- Não posso, é arriscado. Vou deixar tudo criptografado como a Clarice me ensinou, uma pessoa leiga não vai conseguir mexer, mas se um deles pegar pode saber o que fazer ou pelo menos conhecer alguém que sabia. Vou deixar algumas coisas e sempre que você vier pra cá eu preciso que você traga, tudo bem?
- Sem problemas.
Enquanto Kyle continuava comendo, aproveitei para comprar dois celulares, pedindo uma entrega expressa. Iria repor o celular quebrado de também, seria o próximo passo para tentar me aproximar.
- Porque tá comprando dois celulares? Você já não tem um escondido?
- Eu quebrei o celular do idiota que tá no corredor - revirei os olhos olhando para a tela do computador enquanto desligava ele.
- Ok. Quer me contar agora o porquê disso tudo? - Perguntou enquanto guardava o aparelho novamente na mochila.
Respirei fundo, pensando em como resumir a situação. Obviamente Kyle não deveria saber nada daquilo, mas eu acabaria soltando a língua pra ele mais cedo ou mais tarde, como eu sempre fazia. E era Kyle, sempre disposto a me ajudar.
- Alguns meses atrás tentamos fazer uma operação contra a máfia, mas assim como das outras vezes eles estavam um passo à frente e saiu tudo errado - comecei, ele prestava atenção como uma criança que escuta uma história, completamente concentrado. - Porém, aconteceu uma outra coisa que a gente não tava esperando. Você sabe, a gente sempre trabalha com alguns policiais nesse tipo de operação - ele assentiu - e nesse dia teve uma interferência nos rádios, eu não sei como aconteceu, mas a gente acabou escutando o rádio de um policial que não tava falando com a gente, como se fosse uma interferência.
- Isso não é comum? Nos filmes sempre quando alguém tá com uma escuta, acaba entrando a frequência da polícia.
Tive que rir.
- Você está vendo muitos filmes. Pode até acontecer, mas não dessa forma e é muito raro, principalmente porque a polícia e o FBI utilizam rádios diferentes. Mas o importante aqui é o que a gente ouviu, ele tava passando informações, Kyle. Informações sobre a nossa operação. Como a gente ia conseguir derrubar essa máfia se alguém estava sempre entregando a operação para eles?
- Isso explica muita coisa - disse pensativo, enquanto brincava com umas das almofadas. - Me lembro de algumas coisas que você me contou. Nunca tinha considerado isso? Que tinha alguém jogando nas duas pontas?
- Sempre tem, não é? Mas a gente sempre trabalha com os melhores para evitar isso, mas parece que não estava dando muito certo.
Me joguei nos travesseiros enquanto pensava naquilo. Naquele dia Aaron ficou furioso, eu estava no carro com ele junto com o agente Adam e Clarice.
- O rádio estava cheio de chiado e ruídos por ser uma interferência, nem se a nossa vida dependesse disso nós poderíamos identificar de quem era a voz. Clarice conseguiu rastrear a ligação e descobrir de qual delegacia vinha, mas não ia adiantar nada chegar com uma acusação dessas no delegado. Então a gente teve que montar um plano para tentar descobrir quem é o infiltrado, isso levou meses.
- Vocês levaram meses para fazer um plano que quase terminou com você no caixão? - Ele ria, alto demais até. Dei um tapa de leve nele.
- Cala a boca. Isso foi só um imprevisto.
- Continua, idiota.
- Tori sugeriu que uma de nós devesse ficar com alguém da delegacia, namorando um policial talvez pudéssemos descobrir algo, mas era muito raso. A ideia era boa, mas um pouco falha, então sugeri deixar um deles na nossa cola. Passei dias pensando em como fazer isso até ter algo que realmente funcionasse e tivesse sentido. Precisaria de um vilão, um culpado e uma vítima. Lucas e eu moramos juntos, pensei que fosse viável a ideia de que ele fosse traficante e tentasse passar a perna em quem lhe fornecia a droga, afinal a gente sabe que isso nunca acaba bem. - Expliquei.
- Lucas seria o culpado - falou enquanto me olhava. - Você ficou com o papel de vítima, não é?
- Sim, a pobre irmã que foi atacada pelas atitudes do irmão. A polícia anda muito em cima com esse tema das drogas ilegais, uma pena que nem todos estejam dispostos a colaborar. Então um traficante com envolvimento com uma máfia qualquer seria o suficiente para atrair alguns policiais. Pense como eles, me diga o que você faria.
Kyle pensou alguns segundos antes de responder.
- Deixaria alguns na sua cola esperando seu irmão aparecer, se eu pegasse ele talvez pudesse fazer um acordo, diminuir a sentença em troca de informações.
Sorri vendo que ele tinha entendido perfeitamente.
- Como alguém que bolou um plano desses quase terminou morta com meia dúzia de móveis e um secador.
Comecei a rir, aquilo tinha certo sentido. Talvez eu pudesse mesmo ter sido menos radical.
- Tem uma coisa que me deixou curioso - começou. - Duas na verdade.
- O que?
- Você disse que sempre trabalham com alguns policiais nessas operações - concordei com a cabeça enquanto ele falava - não tem medo de um deles te reconhecer?
- Não. Acho que nunca entrei em detalhes sobre isso com você, mas lembra que eu te falei que nossas identidades ficam muito bem escondidas já que nosso departamento é voltado para missões mais secretas? Trabalhos infiltrados e tal?
- Sim, eu brinquei que você era da CIA.
- Então, por conta disso, quem negocia o empréstimo de policiais para as missões é outro departamento. Nem Aaron tem contato direto com os delegados. E esse tipo de operação quase sempre acaba em conflito, então além do colete a gente tá sempre de capacete, touca e óculos. Não tem como. - Realmente eu julgava aquilo impossível.
- Tipo os que a SWAT usa? - perguntou rindo.
- Parecido. O que mais quer saber? - Eu adorava falar sobre isso com um leigo no assunto e ele era o único em quem eu confiava.
- Não é meio como achar uma agulha no palheiro isso que vocês estão fazendo? - Achei graça da sua expressão, suas sobrancelhas arqueadas deixavam sua cara fofa e confusa ao mesmo tempo.
- Fala sério, você não conhece Clarice? Ela fez a ligação, deu um jeito para que caísse justamente na delegacia de onde ela rastreou o chamado de rádio.
- Tá me dizendo que o cara na sua porta é suspeito?
- Uhum.
Kyle esfregou os olhos e passou cerca de 5 minutos me encarando. Ele abaixou o volume da TV e fez um "shh" para mim enquanto eu dava risada, pude escutar ele murmurar um "melhor trocarmos de assunto" e ri mais ainda.
- Não sei como você conseguiu pensar em tudo e organizar para não ter falhas. Mas agora eu entendo por que você está onde está. - Disse baixinho, sorrindo.
- As más línguas dizem que é porque eu dormi com o chefe - respondi enquanto ainda ria, Kyle me acompanhou.
- Também é uma opção.
Ficamos ali rindo por um bom tempo.
- Ei - chamei virando a cabeça em sua direção. Kyle já estava jogado em um dos travesseiros ao meu lado. - Obrigada.
- Pela comida ou pelo computador? - Ele riu.
- Por tudo. Às vezes eu acho que eu não te dou o devido valor. Me desculpa, eu sou uma idiota.
Ele me puxou para si e eu me aninhei no seu peito.
-Por que tá falando isso agora? Sabe que eu sempre vou estar aqui. - Sua voz era calma e sincera.
- Não lembrei do seu número no hospital.
Escutei uma risada baixinha escapando de seus lábios. Tive vontade de olhar, mas estava muito confortável naquela posição.
- , nem eu sei o meu número. Não cria paranoia com isso, tá tudo bem.
- Não é só isso, eu...
- Shh, cala a boca vai - acompanhei sua risada leve enquanto ele entrelaçou a mão nos meus cabelos e fazia carinho.
- Quase beijei um dos meus suspeitos e torço todos os dias para que o outro não tenha nada haver com isso - sussurrei desabafando, precisava conversar com alguém sobre aquilo.
Assustado com o que eu disse, Kyle puxou minha cabeça para trás, arrancando um monte de fios juntos e me fazendo soltar um "ai" esganiçado. Aparentemente foi mais alto do que eu pensei, já que abriu a porta.
- Eu escutei você gritando - Seu olhar se perdia sobre o meu corpo colado ao de Kyle que ainda tinha meus cabelos em meio aos seus dedos. Podia imaginar seu cérebro trabalhando para descobrir se éramos um casal. - Tá tudo bem?
Kyle tentava segurar a risada.
- Tu bem, eu só bati a cabeça na cabeceira da cama - menti. - Obrigada.
- Certo.
Ele saiu tão rápido como tinha entrado, fechando a porta novamente.
- Foi ele que você quase beijou, né? - Sua pergunta era mais uma afirmação.
- Como você sabe?
- Você disse que o cara no corredor era um idiota. Você gosta de idiotas, principalmente se usam farda - dei um tapa em seu peito. - Por que ia beijar ele?
- Não sei, eu ando paranóica com algumas coisas e ele tava perto demais. Acho que fiquei hipnotizada pelos olhos bonitos dele - brinquei.
- Eu tenho olhos bonitos e você não aceitou meu pedido de namoro - acusou, em tom brincalhão.
Kyle e eu nos conhecemos desde criança. Ele me pediu em namoro quando tínhamos 13 anos, eu o empurrei no chão e sai correndo. Isso ainda vira piada nas festas de família, nossos pais tinham certeza que um dia seríamos um casal. Sempre riamos quando o assunto vinha à tona.
- E o outro cara? Não quer que ele seja o informante que tá procurando por quê? - disse baixinho.
Talvez pelo carinho constante de Kyle na minha cabeça, comecei a sentir o sono aparecer novamente.
- Pode apagar a luz, por favor? - Vi ele se esticar para apertar o interruptor perto da cabeceira da cama. - Obrigada. Ele se chama Nicolás, vai entender quando conhecer.
- Também tenho algo para me desculpar - sua voz vacilou.
- Você não tem nada para se desculpar - já sabia o que ele iria falar.
- Deveria ter ido ver você no hospital.
- Eu ia amar sua companhia, mas sei porque não foi. Não queria cruzar com Aaron, você é uma pessoa mais sensata que ele, nós dois sabemos que ele não consegue disfarçar os ciúmes que tem de você e o hospital poderia virar uma zona de guerra.
- Tudo bem, eu entendo os ciúmes. Ele sabe que mais cedo ou mais tarde você vai largar ele e fugir comigo - brincou.
- É sempre uma opção - me juntei a ele na piada. - Mas falando sério, algumas coisas precisam mudar na minha vida. Ele tem a vida dele e eu tenho a minha, você é sempre bem vindo na minha e em qualquer situação que me envolva, goste ele ou não. Você chegou aqui antes dele e eu jamais permitiria que ele te afastasse.
Abracei mais o corpo de Kyle enquanto ele puxava as cobertas para cima de nós.
- Tudo isso por conta de um pedido de um namoro que só não foi esquecido por conta dos nossos pais. Faça-me o favor - disse sério. - Clarice tem que aprender a ficar de boca fechada.
- Ah, eu concordo plenamente. - Infelizmente, a língua de Clarice já havia posto vários de nós em problemas.
Estava quase pegando no sono.
- Kyle - chamei com a voz sonolenta, escutei ele responder quase no mesmo tom. - Você tem os olhos mais lindos do mundo.
Capítulo 10 — Smell of Trouble
Estava deitada no jardim observando as formas das nuvens, eu adorava fazer aquilo quando era criança, mas todo mundo cresceu e ninguém mais parecia ter tempo para isso.
Eu sorria feito boba admirando os desenhos que minha imaginação fazia no céu, poderia ter passado horas ali se não tivesse escutado dois homens que pareciam discutir ao longe. Me sentei tentando identificar as vozes, mas tive a minha atenção roubada por um cachorro que pulou em cima de mim e me encheu de lambidas.
Espera, cachorro? Eu não tinha um cachorro.
Claro, aquilo só poderia ser um sonho.
Já que nada ali era real, decidi ignorar as vozes alteradas e voltei a observar as nuvens enquanto fazia carinho no meu cachorro imaginário, mas ele estava mais interessado em arranhar meus ombros do que em receber carinho, o que havia de errado com ele? Céus.
De repente o céu foi ficando distante, assim como o jardim, mas ainda sentia os arranhões do cachorro nos meus ombros, só que agora pareciam mais leves. Percebi então que alguém estava tentando me acordar, de maneira delicada, massageando levemente os meus ombros.
Quando abri os olhos, me deparei com o par de olhos azuis de Kyle que tentava me despertar. Parecia preocupado.
- Acho melhor você se levantar, seus dois namorados estão brigando na porta. - Disse baixinho, se afundando nas cobertas novamente.
Meus namorados? O que ele queria dizer com aquilo?
Só então me dei conta de que os homens discutindo não eram fruto do meu sonho, eram pessoas reais que interferiam na minha fantasia frustrada de ter um animal de estimação. Duas vozes masculinas gritavam no corredor sem o menor pingo de consideração pelo meu sono, duas vozes que infelizmente eu conhecia bem.
Me levantei feito um raio. O que ele estava fazendo lá?
Abri a porta a ponto de derruba-lá, fazendo com que Aaron e se calassem imediatamente.
- Posso saber que merda tá acontecendo aqui? - esbravejei.
Os dois começaram a falar juntos, um por cima do outro e me irritando ainda mais.
- Porque você não cala a boca seu policial de m..
- Não manda ele calar a boca - Interrompi Aaron. - O que você tá fazendo aqui? - Sem esperar por uma reposta, me virei para e emendei outra pergunta. - Por que esse escândalo todo?
- Ele chegou e ia entrar no seu quarto - ele gesticulava enquanto se explicava. - Achei que você não ia gostar porque você estava... - se interrompeu pensando se deveria dizer ou não que eu tinha companhia. Eu assenti, mostrando que tinha entendido.
Cruzei os braços e voltei a olhar para Aaron que parecia incrédulo.
- O que tá fazendo aqui?
Eu me recusava a acreditar que ele estava mesmo fazendo um escândalo com ali, o que ele queria? Entregar nossa relação?
- Lucas ia querer que eu cuidasse de você, sabe que ele faria o mesmo por Clarice no meu lugar. - Ele ajeitava a gravata enquanto dividia seu olhar entre mim e . - Não entendi o porquê disso, eu disse que sempre entrei no seu quarto.
Ele ia mesmo usar aquela desculpa ridícula? Era idiota da minha parte sentir raiva de Aaron pelos acontecimentos recentes, porém eu não podia evitar.
- Vou ficar no jardim - falou enquanto começava a se mover em direção às escadas.
Aquilo não estava certo, Aaron me deixou com toda a bagunça que havia prometido arrumar com Clarice e também me deixou no hospital. , mesmo cansado, passou cerca de duas horas limpando o meu sangue do ambiente. Talvez ele não fosse uma boa pessoa, mas Aaron não tinha direito nenhum de gritar com alguém na minha casa. Eu nunca conseguia me impor a ele, mas aquilo precisava mudar.
- - ele parou de caminhar assim que me ouviu chamar pelo seu nome - você não tem que sair, acho que deveria ficar.
Primeiro ele pareceu um pouco confuso, mas acabou se encostou na parede do corredor. Aquela era provavelmente a primeira vez que eu vi ele sendo profissional.
Me virei para o outro homem perto da porta tentando não olhar diretamente nos olhos dele.
- Eu precisei de você ontem, mas você não fez o mínimo que foi atender essa droga de celular. E ainda por cima eu cheguei aqui e encontrei o meu quarto todo revirado com o meu sangue por toda a parte porque você e a idiota da sua irmã não fizeram nem o que me prometeram.
- A gente não sabia que você ia ter alta - ele tentava se justificar, sem perder o pouco de compostura que lhe restava.
- Não importa, Aaron. - Comecei encontrando certa dificuldade em manter minha voz calma. - A única coisa que eu sei é que vocês poderiam ter limpado isso antes, e principalmente poderia não ter desligado o telefone. Você não tem o direito de chegar aqui e gritar com ninguém. - foi quem me ajudou a limpar a bagunça que vocês não limparam.
Não me importei de dizer nada daquilo na frente do policial, até onde ele sabia Aaron e Clarice eram como da família, ele ia pensar que era só uma discussão entre amigos.
- Eu sei que a gente pisou na bola, mas você não precisa agir assim - ele tentava manter a calma, conhecia ele muito bem, se não estivesse ali ele já estaria levantando mil questionamentos sobre o modo como o estava tratando. - Vai ficar aqui o tempo sozinha porque tá emburrada comigo e a Clarice? Tem certeza?
Escutei a porta atrás de nós abrir.
- Ela não tá sozinha - Kyle apareceu descalço no corredor, parando ao meu lado.
apenas observava a cena, mas eu já começava a me desesperar pensando que Aaron poderia fazer uma cena de ciúmes ali mesmo. Respirei fundo tentando me acalmar enquanto meu pseudo namorado olhava para Kyle com a mandíbula travada, pronto para lhe dar um soco.
- Aaron - chamei tentando manter a voz firme - Se supõe que você deveria cuidar de mim quando Lucas não está por perto - ele assentiu - Eu to bem chateada porque você e sua irmã me esqueceram e me deixaram sozinha com essa merda toda. Vai passar, mas por enquanto eu ainda to com raiva e prefiro que vocês me deixem em paz. Não precisa se preocupar com nada.
Não me referia a nenhum de nós quando disse a última frase, mas sim ao trabalho. Ele sabia que eu separava muito bem o profissional do pessoal e se houvesse necessidade falaria com qualquer um deles mesmo morta de raiva.
Aaron não disse nada, apenas assentiu. Antes de sair, passou os olhos de mim para Kyle e pude ver seu semblante de tristeza e descrença. Eu o havia magoado. Quando ele desceu as escadas sem olhar para trás tive que me segurar para não ir atrás dele. Quando Kyle pigarreou, passei a prestar atenção em novamente. Ele continuava encostado na parede olhando para o nada.
- Green, vou fingir que esqueci o que você fez hoje de madrugada, só porque você deu uma dentro. - Ele sorriu de forma irônica, claro eu estava ignorando todo o resto que ele já tinha feito de bom. - Aaron tem uma irmã mais nova e às vezes ele exagera no cuidado comigo - emendei rápido, inventando mais uma mentira em meio a tantas outras que eu já tinha dito. Tentaria disfarçar aquela situação o máximo possível.
caminhou até onde eu estava com Kyle e concordou com a cabeça, mas estava sério. Quando falou não se dirigiu a mim.
- Preciso me preocupar com você? - Admirei a postura dele, de repente ele falava sério, como eu sempre esperei que ele devesse ser, formal.
- Não - respondemos em uníssono, Kyle deixou escapar uma risadinha.
- Vigia a encrenca que eu a mantenho sob controle - completou.
- Ei.
Escutei uma risadinha vindo do policial.
Kyle esticou a mão para ele fazendo uma cara amigável, o encarou por algum tempo, mas acabou apertando a mão dele e devolvendo o cumprimento.
- Tem algum telefone na casa que eu possa usar? Preciso falar com Nicolás e me reportar no trabalho também.
- Tem um ao lado da porta de entrada, pode usar.
- Obrigada.
Ele desceu e eu puxei Kyle de volta para o quarto, fechando a porta.
- Isso tudo acabou mesmo de acontecer? - Me encostei na porta, refletindo sobre os últimos 15 ou 20 minutos.
Kyle se sentou na cama para colocar seus tênis.
- To orgulhoso de você.
- Porque?
Ele foi até o banheiro com uma escova de dentes na mão, mas parou na porta para me responder.
- Se impôs - disse sorrindo. - E Aaron não manda em você, tem outra pessoa na vida dele e ele não pode querer ser o único na sua vida. Sei muito bem que se não fosse pelo policial lá fora, ele teria partido pra cima de mim - concordei com a cabeça. - Não aconteceu nada ontem aqui, mas se tivesse acontecido, ele não teria o direito de reclamar.
Ele tinha razão. Eu sempre agia como se Aaron fosse meu namorado, apesar de não ser, e ele agia da mesma forma apesar de ser casado com Olívia. Era como se devesse haver um tipo de respeito, mas ele tinha uma excessão
Aproveitei para trocar de roupa e pentear meus cabelos enquanto Kyle estava no banheiro. Tentava não pensar em nada, mas meu cérebro era uma máquina a todo vapor. Peguei as primeiras roupas que vi, sem paciência de escolher algo melhor.
- Tá chateada só porque eles não atenderam o telefone e não limparam o quarto ou tem algo mais? - perguntou quando saiu, se sentando novamente na cama.
- Não sei te explicar - na verdade eu não consegui nem entender meus sentimentos direito.
- Tenta.
- Quando nenhum deles me atendeu, eu senti que não era prioridade de ninguém. Eu sei que não posso cobrar muito dele porque eu sou a outra e ele não pode simplesmente largar a Olívia para correr atrás de mim - gesticulava nervosamente enquanto falava. - Mas eu fiquei pensando, eu vou passar a minha vida toda assim? Em segundo plano? Eu sei que eu sou a errada nessa história, mas não quero viver sempre assim, eu acho que eu mereço...
Não consegui completar a frase, era ridículo dizer que eu merecia mais quando destruia o casamento de Olivia que acreditava ter a vida perfeita. Patético. Eu era a pessoa mais hipócrita da Terra. Me sentei ao lado de Kyle escondendo o rosto com as mãos.
- Você merece mais, era isso que ia dizer, não era? - Concordei com a cabeça, voltando a olhar para ele. - Você com certeza merece, . Você erra sim toda vez que sai com ele, mas não é a única errada nessa história, ele é casado e muito mais errado. Seu problema é que você deixa seu coração falar mais alto.
- Eu sou uma hipócrita, Kyle.
Ele se ajoelhou na minha frente e segurou minhas mãos.
- Sabe o que eu vi hoje? Alguém disposta a mudar e que tá pensando mais nela mesmo do que nesse relacionamento sem pé nem cabeça. - Ele fazia carinho na minha bochecha enquanto sorria levemente. - Você mesmo me disse que algumas coisas precisavam mudar.
- Me acha capaz de abrir mão dele? Por que eu não sei se algum dia eu vou estar pronta para isso - minha voz falhou e eu respirei fundo para segurar o choro que ameaçava sair.
- Acho sim. Faz três anos que você tá nessa, agora você parou pela primeira vez pra pensar na sua situação e isso já é um começo. Você vai ter muito tempo pra pensar nisso já que não vai poder ver ele com tanta frequência, talvez ajude.
Aquela era a parte que me doía, ficar longe.
- Vou fazer algo para a gente comer. Respira um pouco e depois desce.
Tranquei a porta assim que ele saiu e peguei meu celular novamente. Assim que o aparelho ligou, joguei todo o meu progresso no lixo, assim como a fé que Kyle tinha em mim.
"Se você quer saber, eu não dormi com Kyle. Ele só passou a noite aqui e mais nada. Infelizmente eu ainda amo você."
...
Estava apoiada no corrimão na ponta da escada escutando no telefone, ele tentava explicar seu sumiço para alguém que parecia não estar dando a mínima para os seus motivos. Estava nervoso e parecia um pouco irritado, ele dizia a palavra senhor a cada dois segundos enquanto deveria estar ouvindo poucas e boas. Me lembrei que seu superior era nada menos que o seu pai. Coitado.
Quando ele colocou o aparelho de volta no gancho, acabou batendo o telefone. Eu também ficaria puta se trabalhasse para aquele inepto. Ele ficou parado um bom tempo com a mão apoiada na parede e de olhos fechados, imagino que tentando se acalmar.
Eu fiquei um bom tempo de madrugada pensando em como dar o troco pela gracinha que ele me fez, mas teria que deixar qualquer opção de lado, não por sua atitude de manhã, mas também porque precisava me aproximar. Talvez aquela situação me ajudasse.
Dei um tempo e depois acabei soltando uma tosse falsa para chamar sua atenção. Quando se virou, encostou na mesinha do telefone com os braços cruzados.
- Tudo bem?
- Nicolás vai trocar de lugar comigo mais tarde. - Disse sem jeito, enfiando as mãos no bolso do jeans, com certeza estava pensando que eu tinha visto ele bater o telefone.
O melhor era fingir que eu não tinha visto nada.
- Ok. Já ligou para o seu trabalho?
- Já sim, obrigada. - Vi ele relaxar, aliviado por pensar que não foi pego no flagra.
- Ótimo.
Fui até a mesinha e arranquei todos os fios da parede. Não estava afim de ser incomodada naquele dia. Faria o mesmo com o telefone do meu quarto quando voltasse lá.
- Por que fez isso? - Ele me olhava como se eu fosse louca.
- Clarice vai ligar e um Smith já foi o suficiente por hoje - disse enquanto ia em direção a cozinha.
E ela ia mesmo. Clarice conseguiu me deixar ainda mais chateada do que Aaron, ela principalmente poderia ter atendido o telefone. E depois, ao invés de se desculpar pelo descaso, havia corrido para falar de seu irmão.
Kyle colocava açúcar em uma xícara quando eu entrei na cozinha. Eu dava mesmo valor para as pessoas erradas.
- Demorou, tava paquerando o policial de novo? - brincou.
- Ridículo, eu não paquerei ele. - Peguei a xícara que ele me ofereceu enquanto ria.
Me apoiei na bancada abrindo um pote de cookies e espalhando todos eles em um prato.
- Você nem se deu conta, né? - Kyle sorria.
- Do que? - Achei que ele se referia a minha xícara, então cheirei o recipiente para ver se ele não estava me sacaneando e servindo café como da última vez, mas era apenas chá.
Ele parecia achar graça na minha confusão, e eu continuava sem entender do que ele falava. Kyle pegou uma caneca lotada de café e se sentou do meu lado.
- Sentiu atração por outro cara e nem percebeu.
Me engasguei com o farelo do biscoito, ele estava louco?
Kyle dava tapinhas nas minhas costas enquanto ria. Depois de virar quase toda a xícara de chá tentando limpar os vestígios de farelo na minha garganta, virei para ele com os olhos arregalados.
- Ah o que é - começou, enquanto bebia seu café. - Eu sei que você só beija alguém se sentir atraída, por que ia tentar beijar ele se não é isso?
Eu não tinha resposta para aquilo. Na verdade, até tinha carência. Só isso explicava eu ter ficado completamente hipnotizada por seus olhos cor de avelã.
- Achei que a ideia de namorar um deles tinha sido descartada. Acho que não te mandaram se aproximar de um deles para isso - ele ainda debochava.
Ignorando as piadinhas de Kyle, me levantei atrás de uma caneca, pensando mais uma vez em me aproximar de , mas não pelos motivos que meu melhor amigo agora imaginava. Enchi a caneca com café assim como ele havia feito com a sua alguns minutos atrás. E é claro que ele soltou outra piadinha quando percebeu o que eu estava fazendo.
- Se eu escutar mais uma, vou encher a sua caneca com veneno de rato - ameacei, indo atrás do policial.
estava perto da porta de entrada, parecia um tanto quanto entediado.
Tentei fazer a cara mais amigável possível ao lhe oferecer o café.
POV.
- Toma - estava parada na minha frente, me oferecendo uma caneca que parecia cheia de café.
O cheiro estava maravilhoso, eu amava café e era sempre bom para despertar. Já havia dormido em seu quarto, um pouco de café não seria problema. Peguei a caneca de sua mão agradecendo com um aceno de cabeça, mas quando estava prestes a beber, percebi que sorria demais.
- O que colocou aqui? - Claro que ela iria dar o troco pelo que eu fiz a noite.
Diferente do que eu imaginei, ao invés de se irritar, ela começou a rir.
- Veneno de rato, - disse com as mãos na cintura.
- Você não seria tão burra, mas eu tenho certeza que colocou alguma coisa aqui.
- Laxante? - Brincou, ou talvez não. Bem poderia ser.
Me lembrei do que ela havia feito comigo no carro quando eu coloquei os chocolates no seu colo. Estiquei a caneca na sua direção.
- As damas primeiro.
- De jeito nenhum, não vou colocar isso na minha boca - ela deu dois passos pra trás.
- Tá com medo do que? - Provoquei, avançando na sua direção. - Bebe.
Ela afastou a caneca do seu rosto, fazendo uma cara de nojo. O que ela tinha colocado lá de tão horrível?
- Deixo você me dar um soco se beber, sem represálias. - Propus, sabendo que ela não resistiria. - Sua vingança pelo curativo.
Determinada como parecia ser, vi ela juntar toda a sua coragem e pegar a caneca da minha mão, ela ia mesmo beber. Seja lá o que ela tivesse colocado no café, valia a pena só para me dar um soco. Quando ela aproximou a porcelana dos seus lábios, fez uma cara que me deu vontade de rir, seus olhos estavam fechando e ela tentava não respirar pelo nariz. Foi então que percebi o que havia de errado.
Quando ela saiu da cozinha, ela já segurava a caneca longe de seu rosto, na altura de sua cintura. não gostava de café. Me lembrei de nunca ter visto ela tomando no hospital, ela vivia a base de chá.
Tirei o objeto de suas mãos quando ela estava prestes a beber, só conseguia rir enquanto ela ficava confusa.
- Podia ter dito que não gostava de café - disse rindo enquanto ia para o jardim desfrutando da bebida.
Depois daquela manhã, havia percebido que se chateava facilmente, mas não esquecia as coisas na mesma velocidade.
Ela me daria um soco na primeira oportunidade que tivesse.
Capítulo 11 — Strange Feelings
Eu gostava de relaxar e não pensar em nada enquanto tomava café, era um momento de paz. Mas era impossível fazer isso na casa de , principalmente porque sua vida era uma caixinha de surpresas.
Eu investiguei bastante sobre ela, achava que tinha ido a fundo e não tinha nada mais para saber, mas toda hora aparecia uma coisa nova.
Kyle foi minha maior surpresa, tinha descoberto seu nome enquanto investigava a vida pessoal de , antes dela acordar no hospital. Eu me lembrava de ter visto ele em diversas fotos de uma das suas redes sociais e até onde eu percebi, eram apenas amigos. Mas desde que ele chegou aqui de madrugada eu não podia parar de pensar que havia algo a mais, principalmente depois de encontrar os dois abraçados na cama dela.
Passei vários dias com a no hospital e foram poucas as vezes que eu a vi rir como ela ria na companhia dele, um riso cheio de vontade e plena alegria. Na verdade, as únicas vezes que eu a escutei rir daquela forma, fora na presença de Nicolás e uma única vez na minha frente enquanto se lambuzava com uma caixa de chocolates. Clarice, até onde eu havia visto, era sua melhor amiga e nem mesmo ela fazia rir assim. Também me questionava sobre o porquê do rapaz não a ter visitado no hospital se eram tão próximos. Era estranho, assim como ela e todo o resto.
Antes eu achava que escondia sua melhor versão apenas de mim, mas parece que também a escondia de pessoas próximas.
Pessoas próximas... Qual era a de seu vizinho?
Nicolás já havia me dito que tinha cruzado com ele no hospital e que em suas palavras "não fui com a cara dele".
Agora eu entendia o porquê, era um soberbo e com o ego do tamanho do mundo. Mas continuava sem entender por que optou por me defender mesmo depois da brincadeira na noite passada. Afinal, ele parecia parte importante na vida dela, parecia que havia tomado para si o papel de protetor dela.
Continuava perdido em pensamentos quando escutei a porta da casa abrindo.
Era Kyle. Ele parecia uma pessoa tranquila e que não gostava de se meter em problemas, diferente do vizinho Aaron.
— Achei que fosse vindo me dar um soco — disse enquanto bebia o resto do café, que já começava a esfriar.
Ele riu e se encostou no carro ao meu lado.
— não suporta café, não consigo imaginar a raiva que ela tem de você pra ter aceitado um gole em troca de um soco — suas palavras vinham acompanhadas de uma risada baixinha.
— Odeia tanto assim? — Perguntei, querendo medir o tamanho do seu ódio.
O rapaz cruzou os braços, parecendo buscar algo na memória.
— Algum tempo atrás aproveitei que ela tava gripada para sacanear ela, com o nariz entupido ela não sentia cheiro de nada e ela fica meia distraída quando tem gripe. Então eu troquei o chá dela por café, ela só percebeu quando bebeu. Dois meses depois eu tava bebendo e ela me deu um copo de vodka misturado com óleo de cozinha. Passei uma semana vomitando.
O rapaz tinha as mãos na barriga, como se sentisse novamente o estômago revirando pela mistura horrenda.
— Então daqui a dois meses ela vai me dar café com óleo de rícino? — Brinquei.
— Não — ele riu — ela te odeia mesmo. Pode esperar ela invocar um demônio para cuidar de você.
Foi minha vez de rir.
— Fala sério, eu já me sinto com um demônio por perto desde que ela acordou — soltei rápido, enquanto deixava a caneca vazia de lado.
Por dois segundos pensei que ele tomaria partido e se ofenderia por ela, mas ele acabou rindo. Os dois tinham uma energia completamente diferente.
— O que você fez para ela?
— Em qual das vezes? — Ri novamente. Parecia ser uma pessoa leve, se ele fosse passar mais tempo por lá, acho que seria mais fácil lidar com a fera.
Logo comecei a me sentir constrangido. Eu realmente não sabia que ela tinha alguém, mas aparentemente ela tinha e eu passei da conta com a minha brincadeira, embora não tenha acontecido nada.
— Foi mal, cara. Eu não sabia que ela tinha namorado — disse enquanto coçava a nuca — Eu só quis sacanear ela.
Olhei Kyle e vi que ele me olhava de maneira estranha, então percebi que ela não tinha contado. Me apressei em explicar.
— Eu fingi que ia beijar ela ontem, queria dar o troco por todas as vezes que ela me irritou. E eu...
Ele começou a rir, me fazendo perder o fio da meada.
— Ah, então foi essa a história do quase beijo.
Então ela havia contado? Parecia que não tudo, pelo menos.
— Acho que você interpretou as coisas de forma errada — disse descruzando os braços — não tenho nada com ela.
Ele estava sério agora.
— Não?
Ele negou com a cabeça e começou a falar enquanto olhava para o céu ensolarado.
— É o sonho dos nossos pais, não o nosso. Ela é minha melhor amiga e um namoro estaria fora de questão.
Aquilo me pareceu um pouco confuso, não entendi o que ele quis dizer sobre os pais deles, mas preferi não questionar no momento.
— Acho que sou eu quem te deve um pedido de desculpas — começou, voltando a me encarar.
Franzi o cenho, sem entender por que ele deveria se desculpar comigo.
— Ontem quando eu cheguei perguntei para ela quem era o cão de guarda no corredor. Sofia me disse que era um idiota que pensava que era policial e eu disse que era o tipo dela.
Foi a minha vez de rir, é claro que ela não perderia a oportunidade de me alfinetar diante de qualquer pessoa. Kyle se desencostou do carro e começou a caminhar de costas em direção a porta, esperei que ele ainda fosse realmente pedir desculpas por aquela bobagem, mas fui surpreendido por suas palavras mais uma vez.
— Você não me parece um idiota — recomeçou, já pronto para entrar na casa — me parece uma boa pessoa e um bom policial. Pode não ser o tipo que ela gosta, mas talvez seja o tipo que ela precisa.
E ele entrou, me deixando completamente sem reação.
....
Inquieto. Era assim que me sentia desde a conversa com Kyle, tão inquieto que não me atrevi a entrar na casa novamente.
Fazia rondas pelo jardim tentando colocar as minhas ideias no lugar, não estava nem a dois dias naquela casa e já me sentia a ponto de enlouquecer, eram muitas informações.
Que papo foi aquele sobre o tipo certo para ? Só podia ser brincadeira.
Era a garota mais insuportável que eu havia conhecido, tinha tantos defeitos e tantas características que me irritavam que a simples hipótese de imaginar aquela situação já me tirava o pouco humor que eu tinha. Kyle parecia gostar tanto da amiga que não enxergava seus inúmeros defeitos.
Minha repudia a parte, havia mais uma coisa me intrigando. Sem querer, ele acabou me contando que já havia namorado (ou pelo menos saído) com um policial, isso não era algo sobre ela que eu esperava encontrar. Sentia que eu não havia feito meu dever de casa direito.
Depois de circular por horas pelo jardim, voltei para perto do meu carro. Infelizmente escolhi um mau momento.
Ela estava na sacada do que eu me lembrava ser a biblioteca. Não pude deixar de olhar, pensava nas palavras de Kyle e na sua tentativa de ser amigável ao me oferecer o café, considerei que talvez tenha sido sugestão de seu amigo, mas ainda assim ela tentou. Também pensava nas coisas que ele havia me dito. Ela parecia um quebra cabeça de mil peças. Depois de me olhar de cara fechada pelo que pareceram 15 segundos, ela entrou batendo a porta.
Eu não ia pedir desculpas, por nenhuma das coisas, posso ter me equivocado em ambas as ocasiões, mas ela bem que mereceu. Ela não tinha limites, se íamos ter que conviver juntos, ela iria aprender a se comportar.
Bufei irritado enquanto me encostava novamente no capô do carro. Odiava a forma como ela me deixava confuso e me fazia questionar todas as coisas — e inclusive a mim mesmo. Inferno de garota.
....
Já era noite quando eu avistei um rapaz no portão da frente, parecia um entregador, pensei em checar quem realmente era, mas não tive tempo. Alguém havia aberto o portão de dentro da casa, provavelmente . Enquanto o jovem caminhava pelo jardim segurando um pacote, vi ela abrir a porta da frente e caminhar de encontro a ele. Comecei a caminhar devagar atrás dela, mantendo uma certa distância para evitar um chilique de sua parte. O rapaz entregou o pacote na mão dela, que agradeceu de forma gentil, e logo depois se retirou. Caminhei de volta para o meu carro enquanto ela rasgava o papel pardo ainda parada no mesmo lugar.
— Alguém entrou na sua casa — comecei quando ela voltou a caminhar — você não deveria sair abrindo o portão para qualquer um.
— Não enche.
Ela parou na minha frente, me ignorando. Terminou de abrir o pacote e pegou uma pequena caixa de lá. Era um celular, o qual ela colocou batendo no meu carro.
— Não te devo mais nada.
E simplesmente saiu.
Esfreguei as mãos no rosto tentando conter a vontade de gritar. Cada dia mais certo de que eu iria pagar todo os meus pecados vigiando aquela insuportável.
Joguei a caixa no banco do carona, não estava com paciência para aquilo no momento.
Enquanto tentava manter a calma, escutei o barulho do portão se abrindo novamente, nunca agradeci tanto por ver o carro de Nicolás. Eu precisava urgente de um descanso de .
Nick encostou o carro ao lado do meu, mas vi que tinha algo errado assim que ele saiu do carro vestindo a jaqueta do uniforme. Sua cara estava péssima, parecia que não dormia a uma semana.
— O que você tem? — perguntei depois de nos cumprimentarmos.
Ele respirou fundo algumas vezes, olhando para o jardim.
— Nada — parecia não querer muita conversa, mesmo tendo se encostado ao meu lado. — O que aconteceu no seu nariz?
Eu já havia até me esquecido do curativo.
— Nada.
Se ele não ia falar, eu também não iria. Odiava quando Nicolás ficava assim. Desde que nos conhecemos ele tinha esse costume, algo acontecia e ele se fechava. Não falava sobre o ocorrido, não dividia o problema e nem permitia que alguém tentasse ajudar. Eu o conhecia bem demais, e sabia que tinha algo errado. Ele vinha estranho desde o resgate de , mas dessa vez eu não podia dizer que o motivo era ela, uma vez que quem estava lidando a dias com o problema era eu.
— Como ela tá? — Ele mexia os pés, de cabeça baixa. Sua voz estava mais baixa que o normal.
Foi minha vez de respirar fundo. Batia o pulso no carro enquanto pensava se era boa ideia contar tudo, mas me decidi por um resumo na tentativa de não perturbar ele mais.
— Irritada, como sempre quando eu tô por perto — falei, em tom de brincadeira. — Ontem ela abriu um dos pontos — ele levantou a cabeça na hora. — Tá tudo bem, foi só um e eu dei um jeito. Ninguém arrumou a bagunça no quarto dela e ela insistiu que queria dormir lá, não sossegou até a gente limpar tudo.
Ele concordou com um aceno de cabeça, olhando novamente para seus pés.
— Vai pra casa. Já tá com ela a dias e eu sei que você tá trabalhando na força do ódio. Dá pra ver pela sua cara que você não queria estar aqui.
Ele estava me passando um sermão? Embora ele falasse de forma calma, aquilo era sem dúvidas um sermão. Ri sem vontade, me recusava a ouvir aquilo.
— A porcaria da sua protegida quebrou o meu nariz — disparei, já com raiva, fazendo com que ele me olhasse com a expressão séria. — Ela também quebrou meu celular, me fez mentir para uma enfermeira, mexeu nas minhas coisas e eu ainda tive que bancar a babá a noite inteira. Então me desculpe se eu pareço estar com raiva, mas é que eu realmente estou — esbravejei.
Sai de perto dele, antes que eu socasse sua cara. Me preocupava com o meu melhor amigo enquanto ele me detonava por culpa daquela coisa.
— Desencosta do meu carro, porcaria.
Bati a porta com tanta força que pensei que ela havia quebrado. Não dava mesmo para acreditar.
Arranquei o mais rápido que pude, querendo distância de tudo que cercava aquele caso.
POV.
— É feio ouvir a conversa dos outros.
Escutei a voz de Kyle vindo da entrada da biblioteca.
Eu observava Nicolás e no jardim, pareciam discutir. Ignorei Kyle, que se sentou em uma das poltronas, a fim de tentar entender a discussão. Infelizmente não tive muita sorte, a discussão durou poucos minutos porque parecia o único interessado em brigar.
Assim que ele saiu, me apressei em correr (até onde minhas limitações me permitiam) até Nicolás, deixando um par de olhos azuis para trás.
Chegando no jardim, me deparei com uma versão daquele policial que eu nunca tinha visto, perdido, desnorteado e com cara de choro, ele parecia derrotado. Nick deu um leve sobressalto quando a porta se abriu, depois deu apenas um passo e ficou estático enquanto me olhava. A briga com o outro policial tinha sido tão feia assim? Ele estava péssimo, não era possível uma briga de menos de 5 minutos ter deixado ele assim.
Tinha descido pelas informações que eu poderia tirar dele — pelo menos parte de mim — mas lá estava eu, sem saber como reagir diante da forma em que ele estava. Nicolás quebrava todos os meus alarmes.
— O que aconteceu? — O que saiu foi quase um sussurro. Minhas mãos foram parar dentro dos bolsos da jaqueta.
— Nada, a gente discute o tempo todo. — Ele tentou forçar um sorriso.
— Você sabe que eu não tô falando sobre ele.
Nicolás imitou meu gesto, colocando as mãos nos bolsos da jaqueta. Ele assentiu algumas vezes.
— Você não deixa escapar nada né? — Disse cutucando a ponta de seu nariz, suas palavras vieram acompanhadas de uma risada fraca. — Obrigada por se preocupar, mas vou ficar bem.
Ele avançou alguns passos na minha direção, até parar na minha frente. Ele abaixou a cabeça e abriu a boca diversas vezes para falar, mas desistiu em todas. Quando finalmente disse algo, senti que não era realmente aquilo o que ele queria me dizer.
— Seus pontos, está tudo certo?
Assenti. Uma brisa gelada passou por nós, fazendo com que eu me encolhesse em meus próprios braços. Nicolás tirou a jaqueta da polícia e colocou sobre os meus ombros, me agarrei a ela sentindo o frio se aproximar.
Ficamos um bom tempo em silêncio.
Queria investigar algumas coisas, eu tinha perguntas que ele poderia responder sem desconfiar de nada, julgando que seria apenas minha curiosidade. Mas ele parecia péssimo, não me senti capaz de colocar meus interesses acima do que parecia ser sua dor, naquele momento me interessava mais saber o que ele tinha e tentar ajudar, mas não sabia como agir. Também me recusava a invadir sua privacidade.
— Acho melhor você entrar.
— Não precisa ficar aqui fora.
— Pode ir — disse me empurrando gentilmente até a porta. — Não precisa se preocupar — sua voz era calma, mas soava como eu nunca tinha escutado.
Retirei a jaqueta e estendi para que ele tomasse de volta, recebendo um sorrisinho que se esforçava para parecer verdadeiro.
— Boa noite, .
Meu coração estava completamente inquieto, por que eu me sentia tão afetada pelo modo como Nicolás estava? Ali eu sentia uma necessidade imensa de ajudar, não entendia por quê.
Me distrai com meus pensamentos, sem esperar por uma resposta, ele começava a caminhar para o jardim.
— Nicolás — chamei alto, fazendo com que ele me olhasse. Esperei, impaciente, que ele voltasse até a porta.
Quando ele estava perto o suficiente, não dei tempo para que ele dissesse nada. Puxei ele para dentro da casa e assim que ele estava o mais perto possível, me permiti abraça— lo. Empurrei a porta com a mão livre logo depois.
Demorou um pouco até que ele me abraçasse de volta, mas ele fez.
Abraçar ele foi mais um instinto do que qualquer outra coisa. Não sabia o que se passava com ele, mas parecia precisar de conforto. Nick, sem nem me conhecer direito, havia feito eu me encontrar diversas vezes desde o primeiro encontro no hospital, e antes de qualquer coisa eu também era humana, e ele parecia sempre despertar essa parte de mim, então por que não retribuir algo que ele havia feito por mim? Eu tinha certeza de que ele não era quem eu procurava.
Quando os braços do policial envolveram minhas costas, me senti mais confortável para continuar ali. Afaguei seus cabelos, tentando fornecer mais conforto. Abraços eram sempre reconfortantes.
Passaram— se alguns segundos até que o que eu menos esperava aconteceu. Nicolás estava chorando. Senti um aperto no coração imediatamente, quase como se aquela carga também fosse minha. Se alguém me perguntasse, não saberia explicar, nunca havia sentido aquilo. Queria me sentar e pensar, eu fazia isso quando não entendia alguma coisa, mas ele não parecia pronto para quebrar o abraço. Tampouco era o momento.
Permaneci ali, tentando mais uma vez entender o que se passava enquanto continuava afagando seus cabelos. Me perguntei se aquilo teria a ver com seu passado, me lembrando de sua ficha, faria bastante sentido, talvez aquele fosse algum dia marcante para ele.
Por outro lado, poderia não ser nada relacionado a ele diretamente também, Nicolás parecia o tipo de policial que se envolvia muito com os casos, eu mesma era um exemplo, talvez aquilo tivesse haver com outra pessoa e o estivesse afetando.
Seu choro foi cessando, ficando cada vez mais baixo, até que parou. Nick quebrou o abraço devagar, alguns dos meus fios de cabelo ficaram grudados a barba rala dele, mas foram se soltando aos poucos conforme nos afastávamos.
Seu olhar não parecia mais tão perdido. Eu queria dizer algo, mas não sabia o que.
Ele pegou minha mão, fazendo carinho nela com o polegar e depositando um beijo nas costas, antes de soltar, a apertou algumas vezes, sussurrando um "obrigado" quase inaudível.
Quando o jovem policial soltou de vez a minha mãe, uma ideia passou por mim.
Tinha alguém que sempre me fazia me sentir melhor, alguém que sempre tirava o melhor de mim e, que por sorte estava a poucos passos dali. Alguém que talvez também pudesse fazer algo por Nicolás. Kyle sempre tirava o melhor das pessoas.
Me permiti outra vez deixar o trabalho de lado por mais um tempo.
— Pode me dar alguns minutos do seu valioso tempo? — Pedi, esticando a mão para ele novamente, que encarou o gesto de forma confusa.
— Preciso ficar de olho lá fora.
— passou a noite aqui dentro, você pode fazer o mesmo se quiser. Só quero cinco minutos e você vai poder continuar vigiando a casa mesmo enquanto eu roubo seu tempo. — Além do mais, você vai ficar do meu lado — balancei minha mão esticada novamente.
Nicolás me encarou por mais alguns segundos, mas finalmente cedeu, aceitando o meu convite. Senti algo faiscar dentro de mim quando vi um leve sorriso ser formar no seu rosto, parecia que eu estava fazendo as coisas bem, e era bom sentir aquilo as vezes.
Subimos as escadas devagar, eu o levava pela mão, parecia um pouco desconfiado, mas ainda sorria mesmo assim.
Parei na porta da biblioteca e a abri devagar, Kyle estava sentado na mesma poltrona de antes, mas dessa vez tinha um livro em suas mãos, parecia bem concentrado, nem se quer percebeu a minha chegada. Soltei a mão de Nick, pedindo um minuto, pude perceber seu olhar curioso no rapaz de moletom preto.
Bati na porta aberta devagarinho, para chamar sua atenção. Ele tirou seus olhos do livro para me encarar, olhos que logo passaram para o policial atrás de mim.
— Oi?! — sua voz saiu quase como uma pergunta.
— Nicolás — me virei para ele — quero te apresentar a melhor pessoa do mundo — meu rosto se voltou para Kyle, e eu já sorria de novo — Também conhecido como o amor da minha vida.
Capítulo 12 — Sweet Nicolás
Nick fez uma cara confusa e divertida ao mesmo tempo, claro que aquela frase faria ele pensar em outra coisa. Ia explicar, mas não precisou.
— Agora pergunta se ela aceitou meu pedido de namoro — disse Kyle, fechando o livro que deixou sob a mesinha. Ele passava os olhos de mim para Nicolás. — Meu nome é Kyle — sua mão se estendeu na direção de Nicolás quando ele estava mais perto — sou o melhor amigo da encrenqueira.
Dei um pisão em seu pé, enquanto o policial apertava sua mão, sorrindo de forma quase amigável.
— Eu não cruzei com você no hospital, cruzei? — ele perguntou, analisando o rapaz.
— Kyle não gosta de hospitais — menti, antes que Kyle se embolasse ao inventar uma desculpa.
Ele apenas deu um sorrisinho tímido, concordando. Nicolás pareceu acreditar.
— Eu fiquei um pouco confuso — ele gesticulava conforme falava — Vocês são namorados ou...?
Rimos da sua confusão.
— é uma idiota, ela sempre fala isso pras pessoas. É uma brincadeira nossa — explicou — eu pedi ela em namoro quando a gente era criança, ela me empurrou e a nossa família nunca mais deixou a gente esquecer, então a gente faz piada com assunto.
— Vocês se conhecem desde criança? — Não sei se foi impressão, mas talvez eu tenha visto um brilho passar rapidamente sobre seus olhos, um brilho de curiosidade. O que era tão curioso para ele naquela história?
Às vezes Nicolás me deixava inquieta, não de um jeito que me fizesse ter medo, só me sentia desconcertada.
— Infelizmente sim.
Dei outro pisão em seu pé, arrancando risos dos dois.
— Tá vendo, é assim que ela me trata.
— É, já me disseram que ela é um pouquinho bruta — Nick soltou, me olhando com o canto do olho enquanto alisava a barba por fazer.
Ele estava me alfinetando? Nicolás me alfinetando? Claro, .
— Eu não vou nem perguntar — disse, erguendo as mãos em sinal de defesa. Eu já sabia que tinha aberto a boca.
Nicolás assentiu.
— A gente conversa sobre isso depois. — Embora seu tom fosse sério, não senti como se ele quisesse chamar minha atenção.
Foi engraçado pensar naquilo, embora eu tivesse dado uma certa liberdade a ele, Nicolás não era ninguém para me dar bronca, mas mesmo assim eu não me senti incomodada com a possibilidade. A maneira como ele falou comigo me fez lembrar de Lucas, das suas broncas que vinham acompanhadas de cuidado.
Escutei o policial pigarreando, enquanto era observado pelos olhos azuis de Kyle.
Me lembrei do motivo de estarmos ali.
Apoiei minhas mãos na mesa da biblioteca.
— Nick, não parece ser um bom dia para você — fitei seus olhos que encaravam os meus. — Eu sei que você tá aqui pra se certificar de que ninguém vai tentar me matar de novo ou pra pegar o meu irmão caso ele apareça. — O policial ia me interromper, mas fiz um sinal com as mãos indicando que estava tudo bem. — Você tá fazendo seu trabalho, eu sei e tá tudo bem — ele assentiu. — Você tenta fazer o meu dia melhor sempre que fica responsável por mim, eu queria retribuir um pouco do que você tem feito desde que me tirou daquele quarto."
— Você não tem nenhuma obrigação comigo, . Eu só tô fazendo meu...
— Trabalho? — Interrompi — Não, tá fazendo o trabalho dele. Você sabe que tem feito muito mas que isso — ele abaixou a cabeça. — Não era seu trabalho me levar pra passear no jardim, me distrair e nem nada do tipo. Não sei porque faz, mas eu fico feliz — completei, abrindo um leve sorriso.
Embora ele ainda mantivesse a cabeça baixa, pude ver um leve sorriso se formar em seus lábios também.
— Não me sinto na obrigação de fazer nada — expliquei. — Você é tão gentil que semeia o mesmo nas pessoas.
— Obrigada — ele levantou a cabeça, sorrindo tímido.
Mais uma vez tive a certeza de que Nicolás não era uma pessoa ruim. Ele tinha algo, quase como um brilho que não poderia emanar de uma má pessoa, me arriscaria a dizer que ele carregava a mesma luz que Kyle.
— Kyle é a melhor companhia do mundo — sorri, buscando meu melhor amigo que seguia passando os olhos de mim para Nicolás. Neguei com a cabeça, esperando que ele também não inventasse coisas. — Eu já não sou tão boa companhia assim, mas também não sou das piores — ri. — fez o trabalho dele de dentro da casa, não vejo porque você não pode fazer o mesmo. E enquanto você faz o seu trabalho, a gente pode te fazer companhia. Quando a gente fica sozinho é mais fácil abraçar a tristeza.
— , isso é... — ele parou, respirando fundo algumas vezes antes de falar, parecia um pouco emocionado — muito gentil da sua parte. Não é um dia ruim, é um dia difícil, eu não consigo explicar. Mas sua atitude significa muito.
Eu senti muita vontade de abraçá-lo outra vez, mas Kyle estava ali e eu não queria alimentar nada que estivesse passando por sua mente. Me contentei em apenas dar um sorriso.
— Eu vou ativar o sistema de alarme da casa pro nosso policial aqui ficar em paz e poder fazer o trabalho dele de dentro da casa.
Escutei sua risada baixinha enquanto ia até o computador ativar os alarmes.
— Isso não tava ligado ontem a noite, tava?
Ótimo, Kyle boca grande.
Nicolás me olhou sério, com os braços cruzados.
Que tipo de pessoa sofre um ataque e depois esquece de ligar os alarmes? E o medo de ser atacada novamente, onde fica?
Enterrei meus rostos nas mãos, aquilo servia como um gesto de vergonha, mas na realidade estava apenas escondendo a minha vontade de arrancar a cabeça de Kyle.
Fiquei daquela forma por um minuto, até conseguir encarar os dois novamente sem deixar transparecer nada.
— Eu esqueci, aconteceram muitas coisas. Eu me distraio fácil e como tava na porta eu...
— Tudo bem, só não deixa acontecer de novo. Eu imagino que você deveria esquecer com frequência, você mesmo disse no seu depoimento que não se lembrava de ter ligado o sistema de segurança naquela noite — concordei. — Mas agora você tem algo pelo que temer, então deve contar com toda a proteção que puder. Segurança nunca é demais, entende?
Concordei novamente, balançando a cabeça de forma afirmativa.
— O sistema de segurança só pode ser ligado daqui?
— Não, do escritório no andar de baixo também, mas eu quase não vou lá. E tem um tablet com acesso também, normalmente deixo na cozinha.
— Tudo bem.
Nicolás se sentou em uma das cadeiras à minha frente. Em silêncio começou a procurar algo na mesa, observei curiosa quando ele pegou um bloco de post it e uma caneta. Ele rabiscou em várias folhas, uma seguida da outra.
Assim que ele devolveu a caneta ao pote, destacou uma das folhas e grudou na tela do computador.
Segurei a parte solta da folhinha amarela, achei graça na sua atitude fofa. Observei ele se levantar e grudar outra folhinha em uma das estantes e mais uma perto das portas da sacada. Kyle estava perto da porta de entrada com um olhar intrigado, tratei de desmanchar o sorriso.
— Você vai espalhar isso na casa toda?
— Sim, te devo um bloco novo — brincou, se aproximando novamente.
Abri a primeira gaveta e retirei outros dois blocos.
— Eu tenho blocos o suficiente, pode me pagar com doces.
— Combinado.
— Vem ver — convidei enquanto começava a ativar todos os alarmes da casa.
Quando ele se aproximou, anotei o login do computador em outro post it e grudei na tela, abaixo do que ele havia posto.
— Quando quiser você pode olhar o sistema, não precisa me pedir. Ele mostra onde tá cada alarme e também se alguma das portas que dão acesso a casa estão destrancadas.
— Parece ótimo — assentiu.
— Mais tranquilo agora para fazer seu trabalho daqui de dentro?
— Uhum.
— Não parece — questionei, vendo a cara que ele fazia.
— Não seria bom você colocar um sistema com câmeras também?
— Câmeras? — Câmeras ali poderiam me prejudicar, ainda mais depois de permitir que ele tivesse acesso.
— — Kyle chamou, fazendo com que não só eu, mas o policial também olhasse em sua direção. — Não é uma má ideia — travei meus dentes, ele havia perdido o juízo? — Eu sei que você gosta de privacidade, mas uma câmera nos corredores e algumas espalhadas pelo jardim não fariam mal.
Ok, poderia não ser uma ideia tão ruim. Serviria para disfarçar e distrair e Nicolás e eu poderia me manter tranquila para fazer meu trabalho em qualquer cômodo fechado.
— Tudo bem.
— O ideal seria espalhar câmeras em alguns cômodos também, mas já é um começo.
Ignorei aquilo, querendo encerrar o assunto antes que surgisse outra coisa que pudesse me atrapalhar.
Me levantei da cadeira deixando o computador ligado.
— Nicolás, espero que você goste de massa porquê é a única coisa que o Kyle sabe cozinhar quando vem me visitar — alfinetei, enquanto me afastava da mesa do escritório. — E não aceito recusas para o jantar.
Ele concordou, abrindo um sorriso.
— Pelo menos eu sei cozinhar — Kyle retrucou.
Não pensei que fosse passar um tempo tão bom enquanto conversava com Kyle e Nicolás durante o jantar. O clima estava tão agradável que eu mal me lembrava do que a presença do policial significava ali. Ele também parece haver afastado o que quer que o afetasse, se divertia enquanto Kyle contava coisas da nossa infância, escutando tudo atentamente.
Porque não podia ser assim? Meu trabalho seria tão mais fácil.
Enquanto observava os dois conversando, podia sentir Nicolás ficando um pouco mais relaxado, e de certa forma aquilo me deixava tranquila também.
Brincava com a comida em meu prato enquanto pensava em diversas coisas ao mesmo tempo.
— O que você tanto olha? — Escutei a voz de Nick na minha direção.
— São os vinhos — Kyle respondeu, me empurrando a jarra transparente com suco novamente. — Hoje não, gatinha.
Fiz um beicinho enquanto olhava as garrafas, não tinha percebido que meus olhos haviam ido parar lá, eu realmente sentia falta de tomar vinho.
— Bom saber que você está sendo responsável com os medicamentos. Isso me lembrou outra coisa.
Ele tirou o bloco do bolso da jaqueta e grudou um post it no balcão, voltando a comer logo em seguida. Sorri com o gesto dele, ele estava mesmo preocupado com a minha segurança.
— Não ela não tá, se ela estivesse sozinha pode ter certeza que não ia ter um copo de suco aqui.
— Kyle — chamei, com um tom de censura na voz.
Ele continuou mastigando a comida, como se não tivesse dito nada.
— Eu vou precisar ir até o meu apartamento pegar algumas coisas, alguém me chamou para uma visita e agora tá exigindo companhia só pra não morrer de fome porque não sabe cozinhar e queima até água.
— KYLE — Apertei o copo na minha mão, pensando se era uma boa ideia jogar o suco nele.
Nicolás havia deixado a comida de lado e ria da discussão. O imbecial que atendia por Kyle, depois de mais uma garfada, voltava a me alfinetar.
— Você vai precisar ficar sozinho com ela por algumas horas, então mantenha ela longe do vinho, ela gosta de uma taça durante o jantar e às vezes durante a noite também. Vigia, detetive — disse, com uma risadinha enquanto me ignorava completamente. — Não deixa ela mexer no fogão também, uma vez ela tentou fazer hambúrguer e quase incendiou o meu apartamento.
— KYLE, PARA DE CONTAR MEUS PODRES.
Enquanto eu me exaltava, o policial se acabava de rir observando a cena.
— , alguém precisa proteger você de você mesma. A Nina não tá aqui agora.
— Nina? — Nicolás perguntou. Assenti, tomando um gole do suco.
— Ela era minha babá, ela ficou aqui mesmo depois que eu já não precisava mais de uma, eu gostava de ter ela por perto, e como eu nunca aprendi a cozinhar ela foi cumprindo essa função, meus pais raramente cozinhavam e como você pode ver, eles não são de ficar muito em casa.
— E o que aconteceu com ela? Ela...?
— Não, pelo amor de Deus — respondi, deixando o copo na mesa — Ela casou e já não era mais certo pedir que ela ficasse aqui, Nina cuidou de mim a minha vida toda, era hora dela ter a vida dela. Eu tinha 18 anos quando ela concordou em sair do emprego, disse que a condição era Lucas não me deixar morrer de fome — ri com a lembrança. — Ele sabe cozinhar, quem sabe um dia eu aprendo pra não ter que depender da boa vontade dos meus amigos — completei, alfinetando Kyle.
— Vai precisar mesmo, seu irmão não vai conseguir cozinhar pra você da cadeia — falou enquanto limpava a boca com um guardanapo.
Nicolás, que havia voltado a comer enquanto me ouvia falar sobre Nina, largou o talher, provavelmente espantado com a indelicadeza de Kyle. Ele me olhava de forma preocupada, no entanto, apesar da minha cara de indignação, eu não tive outra reação que não fosse rir. Mesmo em assuntos sérios, Kyle e eu dávamos alfinetadas um no outro na esperança de arrancar algo de humor para espantar o que quer que fosse, mesmo que temporariamente. Uma espécie de humor ácido que às vezes só nós dois entendemos.
— Seu cretino. — Joguei o meu guardanapo nele enquanto ainda ria.
Nick permanecia paralisado.
— Tá tudo bem, é nossa forma de lidar com as coisas ruins — expliquei.
Ele apenas assentiu, escondendo o rosto atrás do copo de suco.
Kyle foi o primeiro a terminar seu jantar, pediu licença logo depois e disse que tentaria ser rápido em seu apartamento. Ele desativou o alarme de segurança antes de sair, e Nicolás ativou logo depois, grudando mais um post It no tablet que estava ali.
Depois da brincadeira do meu melhor amigo, ele havia permanecido sério e quieto, tão sério que eu temi ter quebrado toda a harmonia que havíamos construído ao redor dele na última hora.
— Ele estava só brincando.
— Eu sei, é que eu não pensei que você fosse reagir dessa forma, é um assunto...
— Sério — Interrompi, completando sua frase. — Eu sei. Um dia você vai se adaptar ao meu humor e minhas piadas de mau gosto.
Depois de arrancar um risinho dele, terminamos de comer.
Nicolás insistiu em lavar a louça e eu acabei cedendo. Quando ele terminou de enxugar o último prato, se encostou de costas para a pia me encarando.
— Eu conheço uma empresa de segurança que faz instalação 24 horas, ainda são 22:00 horas, o que você acha? Ia me sentir muito mais tranquilo se pudesse ter certeza que não tem ninguém se esgueirando pela casa.
— Você pode cuidar disso? — Ele assentiu. — Não quero câmera em todos os lugares da casa.
— Tudo bem.
Nicolás pegou seu telefone e logo estava falando com alguém, pedindo informações e passando dados para acertar o pedido e a contratação. Em poucos minutos, já havia encerrado a chamada e dito que a companhia chegaria em cerca de 40 minutos para fazer as instalações.
— Então — começou, colocando o pano de prato em um gancho na parede — enquanto a gente espera, que tal a gente ter aquela conversa?
— Vamos para o escritório.
Me sentei no sofá esperando que ele fizesse o mesmo, mas ele ficou parado no canto do escritório. Indiquei o assento com a mão convidando ele a sentar também. Era estranho como em algumas horas ele era completamente normal comigo e em outras demonstrava extrema formalidade.
Comecei a brincar com uma das almofadas enquanto ele se sentava, me virei de lado assim que ele se ajeitou, ficando de frente para ele. Eu sabia que a conversa seria sobre , então esperei que ele dissesse algo, mas como ele ficou em silêncio, achei melhor começar.
— Eu não fiz nada.
— — disse dando uma pausa, enquanto pegava uma almofada e fazia o mesmo que eu — eu sei que não é uma pessoa fácil, mas parece que você também não tem ajudado.
Era verdade, eu sabia. Fui a primeira a irritar o policial e a troco de nada, às vezes eu agia feito uma criança mimada. Eu poderia ter negado, claro, mas Nicolás parecia tão disposto a fazer a paz reinar, que eu não tive coragem de contrariar ele, muito menos mentir para me defender, me pareceu errado.
Percebendo que eu não iria negar, ele continuou.
— Ele me disse que você quebrou o nariz dele, acho que ele não teria motivos pra inventar isso. Teria?
Neguei com a cabeça, erguendo meu olhar até o dele. Não tinha julgamento, parecia tranquilo, como se só quisesse ajudar.
— Quer me contar? — Sua voz era calma e acolhedora assim como os seus olhos.
Deixei a almofada no meu colo enquanto apoiava minha cabeça no sofá, olhando na direção de Nick.
— Meus pais sempre foram meio "distraídos" — fiz aspas com os dedos, dando ênfase na palavra — então eu não tinha muita atenção. Quando eu era adolescente percebi que era mais fácil ter atenção quando irritava eles, e acho que esse jeito de chamar atenção ficou. Mas as vezes mesmo quando eu não quero a atenção de alguém, irrito as pessoas por tédio.
O policial escutava atentamente.
— Eu irritei ele primeiro no hospital, não sei porque eu provoquei, de verdade, não me pergunta porque eu não sei — fui sincera ao contar. — Mas ele agiu com grosseria quando podia ter só me ignorado e acabou me irritando — bufei lembrando do dia em que conheci ele no hospital.
Passava a mão pelos meus cabelos enquanto pensava nos outros acontecimentos.
— Eu quebrei o nariz dele ontem de manhã, mas foi um acidente — me apressei a falar, quando vi a expressão de Nicolás mudando. — Eu fui pedir um favor e ele foi grosso comigo, um tanto desnecessário também, eu fiquei irritada e joguei um livro nele.
— Você fez o que? — Não era uma pergunta, embora parecesse, ele só estava incrédulo mesmo. Nicolas havia apoiado o cotovelo em seus joelhos e agora escondia o rosto com as mãos.
— Foi um acidente — choraminguei — Eu não sabia que o livro ia acertar o rosto dele. Fala sério, ele é um policial, achei que ele tinha bons reflexos.
Eu esperava qualquer coisa, menos uma risada. Esperei imóvel até que ele dissesse algo, mas ele apenas me encarou, a mão cobrindo a boca que ainda deixava um pequeno riso escapar.
— Você quebrou o nariz dele com um livro? — Assenti. — Eu achei que você tinha batido nele, que tinha dado um soco ou algo do tipo.
— Vontade não faltou.
— — chamou, em tom de advertência. Seus braços cruzados depois da cena de 15 segundos atrás me causaram graça.
— Olha, depois a gente ficou numa boa. A gente conversou por um bom tempo, não só no hospital, mas também no caminho até aqui e depois ele ainda me ajudou a limpar toda a bagunça no meu quarto, só que do nada ele...
Me interrompi, expor a brincadeira imbecil de podia o colocar em maus lençóis com o melhor amigo, e se Nicolás fizesse a guerra entre nós acabar, aquilo poderia facilitar meu trabalho, enquanto uma briga entre eles poderia atrapalhar tudo.
— Ele o que? — Perguntando, estranhando a interrupção.
— Voltou a ser um grosso, SIMPLESMENTE assim.
Nicolás olhou desconfiado, eu havia sido muito óbvia. Claro que ele imaginava que tinha algo mais, no entanto eu não ia dizer nada, e duvidava que também fosse. Então ele ficaria no escuro.
— Só o que você precisa saber é que eu tentei ficar numa boa, duas vezes, e na segunda o Kyle estava presente.
— Tudo bem, eu vou falar com ele.
E foi isso, só isso. Eu ainda me surpreendia em como era fácil conversar com Nicolás, parecendo sempre disposto a entender e ajudar, parecia tão compreensível. Ele me escutou, tentou entender o meu lado e faria o mesmo com depois, provavelmente depois ele tentaria resolver esse quebra cabeça, ele realmente queria que ficássemos em paz.
— Você é sempre o mediador?
— Eu tento — sorriu, sentando de lado também — principalmente no meu trabalho.
Não acredito, ele ia mesmo entrar em um assunto do meu total interesse sem que eu precisasse cutucar? Eu sei que havia dito a mim mesma que deixaria o trabalho de lado naquele dia para ajudar o próximo, mas deixar aquilo passar era um desperdício, eu não podia perder a oportunidade.
— Vocês policiais brigam muito? Eu achei que eram todos muito amigos e passavam o dia comendo rosquinhas — comecei, de forma inocente.
— Não, os filmes te enganaram. Tem muita briga dentro da delegacia, a gente discorda o tempo todo sobre qual rumo tomar durante alguma ação, também tem muita discussão sobre quem vai pegar qual caso.
— Porque? As discussões sobre pegar casos, digo.
— Existem casos e casos, alguns são melhores que os outros, e quando você se sai bem em casos melhores, ganha pontos com o delegado.
Bem diferente do FBI, pensei comigo, onde todos os casos são considerados bons e não existe essa coisa de ganhar pontos com chefe.
— Lembra que eu te disse que não era fácil ser o filho do chefe? — Assenti — Você ganha muitos pontos com o chefe se for bem em um bom caso, exceto se você for o .
Podia ver um pouco de pesar em seu olhar ao terminar a frase.
— Ele não valoriza o trabalho do próprio filho? — Nick concordou, balançando a cabeça. — Por isso ele é tão rabugento.
— .
— Me conta mais sobre o seu trabalho. Ta a quanto tempo na polícia? Quer ser delegado um dia também?
Ele negou com a cabeça.
— Fazem três anos, entrei assim que fiz 21, acho que você sabe que é a idade mínima para ter essa posição — concordei enquanto via ele gesticular com as mãos ao mesmo tempo que falava. — Nunca quis ser delegado, na verdade eu estudei advocacia porque queria ser advogado, acabei mudando de ideia durante o curso por causa do .
— Vocês me parecem tão diferentes, é engraçado como se dão bem a tantos anos.
— Os opostos se atraem, e isso não vale só para o amor. Ele é uma das melhores pessoas que conheci — fiz uma careta ouvindo ele dizer isso — sei que pra você é difícil imaginar, mas talvez com o tempo você mesmo possa ver.
— Vou te dar um voto de confiança.
Nick se inclinou na minha direção, levantando o mindinho, foi impossível não rir.
— Promessa de dedinho?
— Promessa de dedinho — ri, enquanto cruzava o meu mindinho com o seu, como duas crianças.
De repente senti uma coisa estranha, uma tontura rápida seguida de uma sensação de déjà vu. Eu nunca havia feito promessa de dedinho com ninguém, só havia visto aquilo na tv, mas naquele momento eu podia jurar que isso já tinha acontecido.
— , tudo bem?
Chacoalhei a cabeça, tentando clarear os pensamentos. O policial me olhava preocupado, senti a sua mão apertar a minha, de forma muito reconfortante.
— Sim, foi só uma pontada na cabeça — menti, levando a mão livre a testa e esfregando ali.
— Tomou seus remédios?
— Sim, não se preocupe. A gente pode continuar conversando? Fico entediada aqui.
Apertei a sua mão, em agradecimento ao seu gesto.
— O que mais quer saber, curiosa? — Brincou, me fazendo rir.
— O que você mais costuma fazer no seu trabalho?
— Ajudar as pessoas, mantê-las seguras. Casos como o seu.
— Casos complicados — retruquei.
Ele assentiu.
— São meus favoritos, é o tipo de trabalho onde me sinto mais útil.Tive que brigar pelo seu caso, inclusive.
— Você?
— Sim, depois do seu depoimento rolou muita briga pelo caso, outros policiais queriam assumir também. Mas eu tinha a prioridade por ter feito o seu resgate, a ironia é que queria sair e o pai dele obrigou ele a ficar.
Ótimo, agora eu sabia que estava ali realmente contra a sua vontade e isso era mais um motivo para me odiar, o que significava mais uma barreira em minhas tentativas de aproximação.
— Se ele não valoriza o próprio filho, porque quer ele num caso considerado bom? — Na minha cabeça aquilo não fazia sentido.
— Pirraça.
— Pirraça?
— Sim, chegou até ele que tinha conflitos com o caso em questão. No caso o conflito era você — explicou — disseram que houve um atrito entre vocês dois e por isso ele não queria o caso. Ele manteve comigo justamente por isso.
— Nem eu seria tão horrível.
— Eu te disse, não é fácil ser filho do chefe.
— Acho que você também não é muito fã dele — cutuquei.
Nicolás brincou um tempo com as cordas da almofada antes de responder.
— Acho ele um pouco injusto, principalmente com .
— De manhã eu escutei ele no telefone, acho que estava passando um relatório do caso ou algo assim, parecia que tinha alguém gritando com ele do outro lado da linha.
— Era o Delegado Green, eu tava na delegacia. Não vi necessidade dele tratar o daquele jeito também.
— Meus pais nunca gritaram comigo, mas imagino que seja uma sensação ruim, e deve piorar quando tem trabalho no meio, acredito que faça você se sentir desvalorizado.
— É exatamente isso. Mas acho que não cabe a mim julgar, principalmente se a gente entrar no quesito família, ele não é o melhor pai do mundo, mas existem piores.
— Você já viu muita coisa, né?
— Coisas horríveis, . Não queira nem imaginar.
Assenti.
— Me fala mais do . Quem sabe você mesmo não muda o meu conceito sobre ele.
— é muito capaz e um excelente policial. Ainda que ela esteja no caso contra a vontade dele, acho que foi um acerto.
— Como assim?
— Nem todos são bons e dedicados como ele. A gente não tá aqui só atrás do seu irmão, parte do nosso trabalho também é te manter segura — ele explicava de forma delicada, como se temesse me machucar com alguma parte da conversa. — E nem todos tomariam cuidado com a sua segurança como eu sei que ele faz.
— Parece que não é só do seu chefe que você não gosta muito — provoquei, gostando do assunto.
Era um bom caminho para tirar informações.
— Eu sinceramente não sei como alguns policiais ainda estão ali.
— São muitos?
— Não muitos, mas se colocados em casos errados podem fazer estrago.
Aquilo já era algo, eu sabia o que fazer com aquelas informações. Decidi voltar o assunto para , me demorar em uma conversa sobre pessoas que eu nem conhecia, podia chamar atenção dele para algo.
— Kyle dormiu aqui ontem, ele tava no meu quarto comigo — Nick me olhou com os olhos semicerrados. — Nós somos só amigos mesmo, com o tempo você vai ver — expliquei, e ele concordou. — Aaron apareceu aqui de manhã, acho que você se lembra dele, no hospital.
Nicolás assentiu com cara de poucos amigos. Como eu imaginei, ele também não tinha ido com a cara de Aaron.
— Ele e Kyle não se dão bem, coisas de família — emendei mentindo, antes que ele perguntasse algo e eu tivesse que formar um bola de neve. — Acho que pensou que Kyle era meu namorado e não deixou Aaron entrar no quarto, eu achei cuidadoso da parte dele.
— Sim, é algo que ele faria. Viu só, ele tem coisas boas também.
Dei um sorriso de lado, sem concordar nem negar.
Escutamos um barulho de carro se aproximando da casa, Nicolás foi o primeiro a se levantar e ir até a sacada do escritório, eu o acompanhei. Era o carro de Kyle, liberei as entradas através do sistema e aguardei até que ele entrasse.
Voltei para a sacada logo depois, onde Nicolás observa o jardim.
— Obrigada, .
— Me senti tranquila com você aqui.
— Fico feliz em saber disso — ele desviou os olhos do jardim, me observando. — A equipe de instalação deve chegar daqui a pouco, se você quiser eu cuido disso, pode dormir.
Assenti, me afastando da grade em que estávamos apoiados. Não sentia sono, mas me sentia cansada, então aceitei sua oferta. Dei um sorriso me despedindo dele, que retribuiu da mesma forma.
Estava quase deixando a sacada quando senti que havia deixado de fazer algo importante.
Voltei até ele, colocando a mão no seu ombro assim que parei ao lado do policial, que me olhou de forma confusa.
— Esqueci de uma coisa.
— O que?
— Disso — falei, jogando os meus braços por cima dos ombros dele e o abraçando. — Boa noite, Nicolás.
Peguei o policial de surpresa, mas não demorou muito para que ele retribuisse o abraço, afagando meus cabelos embolados.
— Boa noite, — disse, com um suspiro.
Antes de me soltar, ele deu um beijo na minha testa e bagunçou meus cabelos de forma carinhosa.
Deixe ele na sacada, me sentindo tranquila como eu não me sentia a muito tempo.
Eu achei que com tantas informações obtidas em um dia só, eu teria dificuldades em dormir, mas não aconteceu.
Assim que deixei Nicolás na sacada, fui tomar um banho quente enquanto Kyle arrumava as nossas coisas no quarto, quando eu saí do banho com o pijama quentinho, me senti pronta para dormir. Temi que as informações ficassem gritando na minha cabeça, pedindo para serem repassadas, mas eu apaguei assim que me aninhei ao corpo de Kyle.
Na manhã seguinte, acordei primeiro que ele, fiz o mínimo de barulho possível para que ele não acordasse. O relógio na cabeceira da cama marcava 7:37, era cedo demais, até para mim.
Foi muito difícil tirar o celular de debaixo do piso sem fazer barulho, o quarto estava silencioso e Kyle tinha o sono leve, eu levei o dobro do tempo para pegar o aparelho.
Se eu dissesse que não havia me sentindo incomodada ao ver que Aaron tinha apenas visualizado a minha mensagem, eu estaria mentindo, fiquei um bom tempo na conversa e me senti uma idiota. Decidi apagar a mensagem, para ele e para mim, mesmo que ele já tivesse visto, faria eu me sentir menos idiota.
Fui até a conversa com Clarice e digitei uma mensagem, passando algumas informações.
"Parece que alguns policiais não cumprem direito suas funções. Comece procurando por agentes com penalidades em seus arquivos, não tenho nomes, mas pode ser um bom caminho. Bons policiais não se vendem e costumam fazer seu trabalho direito, temos que começar pelo oposto."
Guardei o celular logo depois. O tempo parecia não ter passado, e eu não tinha muito o que fazer a aquela hora da manhã, então decidi voltar a dormir. Deixaria Kyle me acordar.
Capítulo 13 — Paying The Bet
POV.
Quando acordei ao que pareciam ser horas mais tarde, notei que estava sozinha no quarto, meu primeiro pensamento foi de que Kyle estivesse no banheiro, mas vi que a porta do ambiente estava aberta e a luz apagada, Kyle nunca ia ao banheiro assim. Se ele tivesse se levantado, deveria ser mais tarde do que eu imaginava. Busquei o meu novo celular na mesinha de cabeceira, o relógio marcava 11:37, quase o horário do almoço, eu realmente havia dormido demais, no entanto ainda me sentia cansada.
Juntei a pouca coragem que eu tinha e me arrastei para o banheiro para fazer minha higiene, tentando afastar a preguiça que tinha decidido me acompanhar. Quando voltei para o quarto decidi que pentear o cabelo estava de bom tamanho, não me importei em ficar de pijama, ele era apresentável e confortável, não havia porque não usar.
Ao descer as escadas, escutei duas vozes familiares vindo de longe, parecia ser da cozinha - não é que conversavam alto demais, mas sim que o resto da casa estava extremamente silenciosa. Ao me aproximar, pude ouvir a conversa com mais clareza, algo bem aleatório, Kyle e Nicolás pareciam conversar sobre um jogo de basquete.
Entrei bem devagarinho, me sentindo animada por ver como os dois pareciam estar se dando bem, o chinelo de quarto fazia com que eu passasse despercebida, tive tempo de observar eles cozinhando juntos antes de notarem minha presença
- Bom dia - disse Nicolás com um sorriso.
Parecia melhor do que na noite anterior, muito melhor. Retribui seu cumprimento com uma piscadinha.
- Bom dia, .
Abracei Kyle de lado enquanto escondia um bocejo com a mão.
- Dois rapazes tão gentis e nenhum foi cavalheiro o suficiente para me levar café na cama, eu tô decepcionada - brinquei, arrancando risadas dos dois. Nicolás me empurrou o pote de Cookies, enquanto Kyle enchia a minha xícara favorita com chá quente.
- O que vocês estão fazendo? - Perguntei, me ajeitando em um dos bancos e abrindo o pote de Cookies, conhecia o cheiro da receita do meu melhor amigo de longe.
- Seu almoço.
- Kyle - chamei em tom de censura - Não acredito que você colocou o Nicolás pra cozinhar. Ele não..
- Ele se ofereceu - disse, me interrompendo - E eu tô ajudando, porque diferente de alguns eu não trato meus amigos como empregada.
Quando ele terminou de falar, colocou a xícara com chá na minha frente, com um sorrisinho debochado. Nicolás apenas observava a situação, com o mesmo brilho de admiração da noite anterior, o que ela via de tão fascinante?
- Obrigada, Nick.
Ele assentiu, voltando a separar uma porção de ingredientes.
- O que você vai fazer? - Perguntei um pouco curiosa, enquanto sentia o aroma delicioso do chá.
- Me contaram que sua comida favorita é ravioli com queijo.
Larguei o cookie que tinha acabado de pegar.
Kyle não sabia fazer ravioles, Lucas achava que eles davam muito trabalho, meus pais não sabiam qual era minha comida favorita. A última vez que eu havia comido aquilo foi no meu aniversário de 22 anos, quando Nina apareceu e trouxe uma porção deles. Ninguém além dela tinha feito a minha comida favorita para mim. Senti os meus olhos marejarem imediatamente.
Eu não sabia nem como reagir, como Nicolás conseguia? Tratei de esconder meu rosto atrás da xícara o mais rápido possível, Kyle que me conhecia muito bem, sabia que eu não era muito boa em expressar meus bons sentimentos, então tratou logo de salvar a situação, uma vez que Nicolás tinha mudado sua expressão para seria quando eu fiquei em silêncio.
- Não acredito que você tá de pijama, - implicou. Isso foi preguiça de achar uma roupa naquele pardieiro que você chama de guarda-roupa?
- Que tal eu te colocar pra arrumar?
- Sonha - ele riu e voltou a ajudar Nick com os ingredientes.
Tomei o meu café da manhã em silêncio enquanto observava os dois, parecia que realmente tinham virado ótimos amigos do dia para noite, aquela cena de alguma forma, me deixava feliz.
Quando terminei meu café, levei tudo o que eu havia sujado para a pia, minha intenção era lavar o que havia sujado, mas escutei um cochicho atrás de mim que me fez parar, entretanto antes que eu pensasse em me virar, Kyle já estava tirando a louça da minha mão e colocando na pia.
- Deixa isso aí, a gente arranjou uma coisa muito mais legal pra você fazer - disse me puxando pela mão e cintura.
- Kyle - chamei, totalmente confusa enquanto ele me arrastava até a bancada onde Nicolás trabalhava em uma massa. Como de costume, ele me ignorou. - O que você tá fazendo, criatura?
Nicolás ria baixinho, sem tirar os olhos do que estava fazendo. Enquanto eu me distraia observando o policial, Kyle tinha ido até o canto da cozinha e já estava voltando com um pedaço de pano na mão. Eu apoiava minhas mãos na bancada sem entender nada, Kyle passou reto atrás de mim e começou a revirar a gaveta mais pŕoxima até encontrar um elástico. Mas que diabos ele estava fazendo?
Quando ele se aproximou de mim, ainda em silêncio, ele passou o pano que carregava na mão pela minha cintura, amarrando na parte de trás, percebi então que era um avental, meu Deus, não.
- Kyle
- Shh.
Antes que eu conseguisse reclamar, ele já estava ajeitando meu cabelo em um rabo de cavalo.
- Ai - reclamei, quando ele prendeu os fios da forma mais desajeitada possível com o elástico arrancando uma série de fios juntos. - Kyle o que você tá fazendo, eu não sei cozinhar.
- Aqui - disse Nicolás, me passando uma tigela de porcelana vazia. - A gente te ajuda.
O policial me sorria de forma tão gentil e amigável, que eu me senti incapaz de recusar sua oferta, não olhei para Kyle mas tinha certeza de que ele estava igual ao outro rapaz. Droga.
Peguei a tigela e coloquei na minha frente na bancada.
- Porque a gente não faz sua sobremesa favorita? - Sugeriu Kyle.
- Você tá brincando né?
- Não, eu to falando sério - respondeu, de forma tranquila. - Se a gente vai começar por quê não fazer a coisa que você mais ama comer no mundo? Acho que vai te motivar.
- Não, não vai porque é uma torta que é a coisa mais complicada do mundo e eu queimo até água.
Me senti frustrada imediatamente, eu odiava quando me sentia incapaz de fazer algo, e infelizmente cozinhar era um bicho de sete cabeças para mim. Eu já havia tentado antes e nas quatro vezes foi um desastre. Ia tirar o avental e ir para o jardim, mas me lembrei que em todas as minhas tentativas eu estava sozinha, e agora estavam lá duas pessoas dispostas a me ensinar e me ajudar. Decidi então me dar outra oportunidade, eu podia tentar mais uma vez.
- O que eu faço? - Perguntei, encarando a tigela a minha frente depois de lavar as mãos.
- A gente começa olhando a receita - Kyle abriu uma gaveta enquanto falava, tirando um livro de lá. - Que tal você me falar o que a gente precisa enquanto eu separo os ingredientes? - Ele me estendeu o livro, já aberto. Assenti, aceitando.
Nicolás sorria para mim enquanto abria uma massa na bancada - cheia de farinha - que eu imaginei ser dos raviolis. Era um sorriso de apoio, mas acabei devolvendo com um sorriso sem graça. Era difícil assumir que eu não sabia fazer algo, eu me sentia tão pequena. Chegava a ser ridículo como eu me frustrava com uma panela mas fazia coisas muito mais difíceis em meu trabalho, como por exemplo atirar em alguém ou carregar uma bomba. Patético.
Comecei a ler os ingredientes para Kyle, que conforme me escutava, ia separando o que era necessário em diversas tigelas diferentes. Depois de aproximadamente quinze minutos, ele havia divido tudo em duas partes, na bancada perto de mim ficaram os ingredientes da massa, já no balcão da pia estava o que seria utilizado no recheio que ele se ofereceu gentilmente para fazer. Achei uma ótima ideia, eu poderia fazer algo sem destruir a cozinha ou queimar tudo e ter que começar do zero. Fazer a massa já estava de bom tamanho, era um começo - contando que ela desse certo, claro.
Comecei a misturar os ingredientes de acordo com a receita, o fato de Kyle já ter deixado tudo nas medidas certas e separadas, estava ajudando muito. Nicolás se desprendia de sua receita vez ou outra para me ajudar em algo, como me ensinar a peneirar a farinha antes de colocar na massa ou despejar algo líquido aos poucos. Depois de misturar tudo e formar algo que não parecia nada bonito, Nicolás me passou uma assadeira e disse que eu deveria moldar a massa ali, que agora ela não parecia bonita mas que depois ficaria. Quando ele viu que eu não tinha entendido nada, pegou um pedaço da massa e começou a ajeitar na forma, entendi então o que eu deveria fazer. Aquela foi de longe a melhor parte da receita - exceto quando eu tinha que por mais farinha para massa não grudar nos meus dedos - era divertido ver que ela estava literalmente tomando forma. Quando terminei de ajeitar a massa, sorri orgulhosa por ver que havia conseguido, provavelmente não teria conseguido sozinha, mas já era algo, eu esperava que ela estivesse tão gostosa quanto estava bonita.
- Conseguiu - Disse Nicolás, com um sorriso que parecia transbordar orgulho.
Kyle, que estava de costas mexendo o recheio em uma panela no fogão, se virou de lado para olhar. Segurei a assadeira mostrando o meu feito para ele e sorrindo feito boba, seu sorriso se abriu na hora, era quase como o do policial ao meu lado. Comecei a rir, contagiada pela animosidade dos dois, quando foi que alguém teve paciência pela última vez pra me ensinar algo fora do trabalho e ficar feliz pelo meu feito?
Quando estava prestes a devolver a assadeira para a bancada, escutei Kyle sussurrando algo a distância, na direção de Nicolás, enquanto eu tentava escutar o policial foi mais rápido, fui atingida por uma nuvem de poeira branca que cobriu todo o meu cabelo e entrou na minha boca. Farinha.
Enquanto eu tossia o pó branco e seco, escutava Kyle se desmontar de rir. Dei um passo a frente sem conseguir abrir os olhos direito e deixei a assadeira no que parecia ser o balcão. Retirei o máximo de farinha que consegui dos meus olhos, Nicolás ao ver que eu estava séria, deu dois passos para trás, segurando uma risada que seu rosto parecia incapaz de esconder.
- Você não fez isso.
- Ritual de iniciação - sua voz era risonha, mas ele continuava dando passos para trás.
- Ritual de iniciação? - Disse irônica, passando a mão pelo balcão da cozinha - Você vai ver o ritual de iniciação a hora que eu estiver te esganando.
Peguei uma tigela cheia de farinha assim que terminei de falar e virei na sua direção, esperava que o pó branco fosse o suficiente para transformar ele em um fantasma, mas acabei acertando o chão quando Nicolás desviou da farinha rindo.
- Uou.
- Corre - disse em tom ameaçador.
Contrariando todas as minhas expectativas, Nicolás parou a minha frente e depois de jogar o pano de prato sobre o ombro, abriu os braços, ainda rindo.
- Vai.
Ele era inacreditável, soltei uma risadinha travessa enquanto escolhia o que jogar nele.
- Sabe - meu dedos passavam por diversas coisas no balcão, minha ideia era distrair Nicolás enquanto eu falava para que ele não visse o que eu ia escolher. - Você é uma gracinha, Nick - disse, quando encontrei o ingrediente perfeito.
- Obrigado, é de família - seu sorriso debochado se alargou.
- Mas sabe o que é ainda mais bonito? - Coloquei a mão com o que havia pegado para trás, enquanto ainda deslizava a outra pelo balcão, foi muito fácil, já que Nicolás não tirava os olhos do meu rosto. Me aproximei dele, levando junto um pouco de farinha conforme deslizava a mão por ali.
- O que? - Perguntou, desviando do meu rosto para a minha mão que estava visível com farinha. Parei à sua frente.
- Seu cabelo é um charme - sorri, jogando a farinha no rosto dele logo depois.
Assim que a nuvem branca tomou conta do seu rosto, abri o ovo cru que havia pegado escondido e abri bem em cima do cabelo ajeitadinho dele, espalhando junto com a farinha. Ele não teve tempo nem de ver.
Enquanto ele tentava limpar o rosto e se livrar da farinha na boca, peguei um pouco do que havia derrubado no chão e joguei em sua direção.
Comecei a rir, vendo o estado em que ele havia ficado.
Infelizmente me distrai mais do que eu gostaria, não percebi quando ele se aproximou e esvaziou um pacote inteiro de farinha no meu cabelo, só tive tempo de fechar a boca.
Em menos de 5 minutos a cozinha já estava um caos, sem perceber havíamos iniciado uma guerra de farinha e o único que ainda permanecia limpo era Kyle. Eu ria enquanto tentava limpar a farinha do meu rosto sem nenhum sucesso, aquilo só sairia com um bom banho, uma vez que Nick também havia me molhado e aquilo estava tudo grudado.
Juntei mais um punhado de farinha e estava prestes a jogar no policial novamente, mas fui interrompida por um pigarreio.
- - Nicolás anunciou, me fazendo olhar.
POV.
Fui para o meu apartamento na esperança de esquecer e ter uma boa noite de sono, queria esquecer seu caso, as frescuras que Nicolás tinha com ela e tudo mais que a envolvia, mas parecia impossível.
Eu nunca havia brigado com Nick antes, éramos melhores amigos a anos e essa foi a primeira discussão que tivemos. Parte de mim queria jogar toda a culpa na , mas a outra parte também sabia que eu tinha culpa no cartório e até mesmo Nicolás com todas as suas incógnitas. Mais uma vez me peguei pensando no momento em que ela me ofereceu um café, eu realmente não entendia o que se passava na sua cabeça.
Entrei no chuveiro pensando que pelo menos a água quente me ajudaria a relaxar, mas outra vez eu estava errado, nem o que costumava ser um momento de paz para mim, parecia me trazer sossego. Me preocupava com Nicolás e com a forma que eu começava a me comportar não só com , mas com ele também. Eu estava mais uma vez espelhando o comportamento estupido do meu pai que eu detestava tanto.
Além de tudo, a pressão que ele fazia sobre mim e a forma como ele criticava meu trabalho, contribuia ainda mais para o meu estresse. Eu me sentia um incompetente.
Desliguei o chuveiro depois de perceber que o máximo que eu conseguiria ali, era colocar a higiene em dia e isso já havia sido feito a 20 minutos atrás. Me sentia cansado, mas incapaz de dormir. Decidi fazer um chá, talvez um específico que me fizesse dormir, mas me peguei pensando em novamente assim que peguei a xícara em minhas mãos, ela e seus chás.
Levei a xícara comigo para o quarto, mesmo sabendo que eu não ia conseguir dormir. Enquanto esperava o chá esfriar, minha mente repassava uma série de situações. O vizinho de , Aarón, era alguém que me deixava muito incomodado. Não só pela soberba, mas pelo seu desespero e indignação naquela manhã ao ver Kyle ali e me defendendo logo depois. Parecia até um pouco descontrolado, com ciúmes. Embora ele fosse casado, por dois minutos cheguei a pensar que tivessem algo. O que logo eu descartei quando saiu em minha defesa, ela tinha motivos para defender Kyle, mas até onde eu sabia ela me detestava tanto que não valeria a pena brigar com um interesse romântico por mim. Aarón talvez tivesse desenvolvido uma espécie de obsessão por ela, era estranho demais seu comportamento. Eu não acreditava que ele realmente queria tomar conta dela no lugar do irmão, eu ficaria de olho nele.
Lucas Jude também permanecia uma incógnita, continuava desaparecido, no entanto essa era a parte mais fácil de lidar, já que era tudo muito recente e não esperávamos ter notícias dele logo de cara. Depois disso meu pensamento voltou para e fico um bom tempo preso nela, me lembrei da forma em como ela falou do irmão, apesar da situação ser uma merda, ela parecia forte e madura.
Ao contrário do que pareceu quando viu seu quarto todo revirado e seu sangue pelo chão. Naquele momento, foi onde eu mais me senti tocado por ela e pelo que havia passado. Eu quase trouxe ela pro meu apartamento, seria imprudente de minha parte, mas não seria a primeira vez que eu era imprudente no meu trabalho quando o assunto era ela
Depois de tudo, havia se preocupado comigo, se importou com meu cansaço, meu café e meu trabalho ao me defender. Não tinha mais dúvidas, eu havia sido um babaca.
Spike pulou na minha cama me arrancando dos meus devaneios. Parecendo notar que eu precisava de conforto, o cachorro deitou próximo ao meu braço e pediu carinho. Imediatamente me senti melhor quando o bulldogue soltou um kilo de baba na minha mão, ele sempre fazia aquilo quando gostava do carinho. Enquanto ria da situação, meus olhos se depararam com a caixinha branca na mesa de cabeceira, era celular que havia reposto.
Peguei o meu celular antigo na gaveta e tirei o chip, que logo foi colocado no aparelho novo. Não sei se foi intencional ou coincidência, mas ela havia pego o mesmo modelo que quebrou por acidente. Depois de configurar o aparelho e instalar as aplicações necessárias, fiz o que minha consciência pediu, mandei uma mensagem para Nicolás.
online
Sinto que você tenha escolhido um melhor amigo tão esquentado quanto eu. Passei da conta, me desculpe
Desliguei a luz do quarto no interruptor perto da cama, se eu não conseguisse dormir, ficaria o mais confortável possível. Enquanto ajeitava Spike na cama, escutei o celular vibrando. Era uma mensagem de Nick.
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Sinto que você tenha escolhido um melhor amigo tão esquentado quanto eu. Passei da conta, me desculpe
Tá tudo bem.
Eu sabia que não estava.
"
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Sinto que você tenha escolhido um melhor amigo tão esquentado quanto eu. Passei da conta, me desculpe
Tá tudo bem.
,tudo certo?
Perguntei, buscando um jeito de selar a paz com ele depois de receber sua mensagem extremamente seca.
Não sei o que mexia tanto com ele nessa história, mas já havia entendido que se eu não quisesse guerra com meu melhor amigo, teria que tentar ficar em paz com ela. Aquela mensagem me pareceu uma boa maneira de começar.
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Sinto que você tenha escolhido um melhor amigo tão esquentado quanto eu. Passei da conta, me desculpe
Tá tudo bem.
,tudo certo?
Dormindo. Você deveria fazer o mesmo.
Ok, ele não queria conversar. Decidi não forçar a barra
era irritante e mimada, às vezes era pior do que uma criança birrenta, normalmente eu evitava me aproximar de pessoas desse tipo, mas já que naquele caso era impossível, eu teria que dar um jeito.
Foram horas olhando para o teto e tomando chá (frio) enquanto fazia carinho em um Spike já adormecido.
Eu sempre fiz o meu trabalho direito, e me recusava a falhar num caso tão importante como esse. Se o meu pai descobrisse como as coisas saíram do controle com ela, se ele sequer imaginasse, não era só minha amizade com Nicolás que estaria em jogo ali, era também o meu emprego.
Por volta das 6:00 da manhã, me lembrei de uma coisa que talvez pudesse ajudar. Algo que queria, a aposta. Eu havia perdido e mais cedo ou mais tarde teria que pagar, sabia que ela não me daria sossego com essa história, então talvez eu pudesse usar isso ao meu favor.
Não percebi quando adormeci.
Enquanto dirigia rumo a casa de , tentava pensar na melhor maneira de - a contragosto - me desculpar. Eu odiava ter que fazer aquilo, mas sabia que havia pisado na bola enquanto ela tentava fazer as coisas bem, então eu teria que fazer. Principalmente se quisesse manter a paz, eu só não sabia como, não é que eu não soubesse como me desculpar, mas me custava muito fazer isso com ela.
Quando um raio de sol quase me cegou, abri o porta luvas em busca dos meus óculos, tive que tirar tudo pra fora para me lembrar de que eu os havia perdido para , peste.
Assim que eu me aproximei do portão da casa, ele acabou abrindo sozinho, não precisei utilizar o cartão como da última vez. Percebi então uma câmera perto do local de acesso, encontrei mais algumas conforme dirigia até a porta de entrada, nada daquilo estava lá antes, só podia ser obra de Nick. Antes que eu pudesse abrir com uma das chaves que ela havia me dado na noite anterior, a porta do hall de entrada se abriu sozinha.
Não tive muito tempo para pensar, uma vez que risadas muito altas chamaram minha atenção. Me lembrei das vezes em que vi ela no hospital se divertindo na companhia de Nicolás, o som de sua risada era inconfundível.
Me deparei com a cena que eu menos esperava, pareciam um casal de filme romântico, pelo jeito se divertiam muito, tanto que nem notaram minha presença. , que parecia mais um fantasma, ria sem parar enquanto Nick lhe sujava com mais farinha. Não me lembrava da última vez que havia visto meu melhor amigo assim, que contraste gigante com o Nick da noite passada.. Ele como sempre, estava pondo em vista o que parecia o melhor lado dela.
Kyle ao fundo, mexia em algo no fogão e em um tablet ao mesmo tempo, notei que reativava os alarmes da casa através da tela. Provavelmente ele me abriu os portões mas não quis estragar o momento dos dois anunciando a minha chegada. O rapaz se virou na minha direção e me cumprimentou com um aceno de cabeça que foi rapidamente devolvido.
Me aproximei um pouco mais tentando ser notado pelos outros. Quando vi que não adiantou, limpei a garganta, finalmente chamando a atenção dos dois.
- - Nicolás falou, parecendo surpreso em me ver ali. Sua voz demonstrava certa mágoa também.
Eu entendia, afinal o turno ali era dele até o dia seguinte, e eu havia saído dali com tanta pressa que era de se esperar que uma volta antes da hora causasse espanto.
Minha voz pareceu sumir, quando eu consegui falar, ela saiu mais baixa e menos firme do que eu gostaria
- Oi.. e-eu - que merda era aquela. Limpei a garganta, tentando firmar a minha voz - Eu vim falar com você, .
Eu olhava na direção dela, mas ela tinha tanta farinha no seu rosto que foi impossível definir sua expressão. Nick, que tinha o rosto um pouco mais limpo, parecia intrigado, mas não disse nada.
- Tá bom - respondeu, sua voz parecia surpresa. caminhava devagar, não sabia se estava com dor ou se não estava enxergando por conta da farinha, mas tive certeza que foi a segunda opção quando ela escorregou atrás do balcão. Corri em sua direção, mas Nicolás que já estava mais perto já ajudava a se levantar. Me surpreendi quando ela riu.
- Acho melhor você limpar esse rosto antes - ele riu junto enquanto a segurava pela cintura.
- Eu posso te ajudar - ofereci, esticando meu braço pra que ela se apoiasse. Não sabia porque fiz aquilo, mas esperava que ela negasse, no entanto ela aceitou assim que Nicolás a soltou. - Fecha o olho, pra não entrar mais farinha.
- Tem um banheiro no corredor, perto da escada - disse, fechando os olhos logo depois.
Conduzi para fora da cozinha, ignorando Nicolás e Kyle.
- O que tá fazendo aqui? - Questionou, quando estávamos na metade do caminho.
- Já te explico - minha voz parecia finalmente ter voltado ao normal.
Ao chegarmos no banheiro, abri a porta e deixei de frente para o espelho, colocando suas mãos apoiadas na pia.
- Pode abrir - disse, me encostando na porta que havia ficado semi aberta.
Assim que viu seu reflexo no espelho, começou a rir. Acabei deixando escapar um sorriso enquanto via a cena.
- Quer ajuda? - ofereci, vendo naquilo uma boa oportunidade de me aproximar.
- Quero, por favor, - aceitou, enquanto ainda ria da própria imagem.
Havia algo de diferente nela, falava mais calma, a voz estava mais tranquila, ela parecia mais leve. Será que ela também queria paz?
Me aproximei da forma mais devagar que consegui. Ao lado do interruptor, havia uma toalha branca. ainda olhava seu reflexo no espelho
- Preciso que você fique de frente para mim.
Ela girou os calcanhares devagar, mantendo uma das mãos apoiada na pia.
Me inclinei na direção dela e comecei a passar a toalha pelo seu rosto. Achei melhor começar pelos olhos, uma vez que ela não parava de piscar e a farinha só estava se espalhando mais. Tirei tudo que estava seco e solto, quando vi que não havia mais espaço limpo na toalha, me sinalizou que haviam mais no armário embaixo da pia. Peguei uma nova e molhei levemente na torneira.
- Que bagunça vocês fizeram? - acabei resmungando, enquanto tinha dificuldade para tirar o que estava grudado.
Esperei que ela retrucasse, me xingasse ou qualquer coisa, mas ela não disse nada. Não sabia se era um sim ou se deveria aguardar sua fúria de sempre chegar. Optei por não falar mais nada enquanto terminava minha tarefa
- O que você veio fazer aqui?
Dessa vez não havia arrogância em sua voz, era pura curiosidade.
- Eu fiquei te devendo uma coisa - falei, enquanto tirava mais camadas de farinha de seu rosto. Por baixo da sujeira, pude notar sua expressão de confusão. - A Aposta, vim te chamar pra um jantar na minha casa. - expliquei, tentando não dar muita importância (ou pelo menos parecer que não estava dando).
segurou a toalha e a afastou do seu rosto.
- Porque? - parecia desconfiada.
Coloquei a toalha em cima do mármore da pia e cruzei meus braços.
- Eu tô cansado, .
- Cansado? - Assenti - Do que?
- De você - soltei, antes que pudesse pensar. Ela estava pronta para abrir a boca, mas emendei a falar antes que ela começasse. - Dos seus chiliques, das suas mudanças de humor, da forma que você afeta meu juízo e principalmente, dos problemas que você tem me trazido com Nicolás. E eu também tô cansado de brigar - enquanto eu falava isso, pareceu ter ficado muda. Aproveitei a deixa para voltar a limpar seu rosto enquanto ainda falava. - Eu tô cansado, e eu tenho certeza que você também. Você me pediu uma coisa e eu vou te dar exatamente o que você me pediu, eu tô tentando selar a paz com você pra que isso seja o menos insuportável possível, então por favor, colabore.
Voltei a umedecer a toalha antes que eu me distraísse e falasse demais. Quando voltei o pano molhado para seu rosto, acabei fazendo um pouco mais de esforço do que deveria, só quando gemeu e se afastou um pouco, eu notei que havia passado a toalha em cima do machucado em sua testa de forma brusca. Me aproximei dela novamente, segurando o seu rosto com mais delicadeza e tomando cuidado ao passar a toalha pelo local novamente.
- Desculpa.
- Eu aceito - disse, olhando pra mim agora. O que ela tinha? Sem outros questionamentos, sem indagações, havia algo errado com ela.
Molhei a toalha uma última vez e retirei o que faltava da farinha. Quando terminei, deixei a toalha na pia e me afastei um pouco para que ela pudesse se olhar no espelho. Observei enquanto ela jogava água no rosto e secava com uma nova toalha.
voltou a abrir os olhos, batendo os pares de cílios na minha direção e exibindo seus olhos verdes.
- Passo pra pegar você às 19:00.
Eu não tinha mais nada pra fazer ali. Sai do banheiro logo depois, praticamente fugindo da casa e ignorando qualquer presença.
POV.
Estava com a toalha na mão enquanto tentava entender o que se passava na cabeça de . Ele havia saído da mesma forma que entrou, do nada.
Não entendi seu convite repentino, mas pareceu uma boa ideia não só para explorar sua casa, mas também para tentar erguer a bandeira da paz, como disse que tentaria fazer a Nicolás. Poderia fazer parte do meu trabalho e ajeitar as coisas com eles também, eu sabia que ele se sentia chateado pela situação e eu me sentia horrível em causar qualquer desconforto nele, droga. Porque Nick tinha que ser tão gentil?
Falando em gentileza, o policial que estava perto da porta e assim que eu saí me perguntou se estava tudo bem, notei que ele estava curioso para saber o que queria comigo, mas era educado demais para perguntar. Gentilmente resumi a história da aposta para ele e disse que aproveitaria o momento para tentar levar a festa em paz com seu parceiro e facilitar o trabalho dos dois. Ele não precisava saber que meu maior interesse era revirar a casa de seu amigo e ver se ele tinha algo a esconder.
Agradeci Nicolás por querer me ajudar com a cozinha e por se propor a fazer meu prato favorito, tentando não deixar meus olhos demonstrarem o que aquilo significava para mim. Logo depois me retirei para tomar um banho e disse que ele poderia fazer no quarto de Lucas e vestir o que quisesse. Pensei que ele fosse recusar, mas não tive que insistir, claro ele não ia passar o dia todo cheio de ovo, farinha e o que mais eu tivesse jogado nele.
Nicolás, como eu havia imaginado, tinha saído do banho muito antes de mim, as roupas de Lucas haviam servido perfeitamente nele, tinham a mesma altura e o mesmo porte físico, diferente de Kyle que era mais alto e não tinha tantos músculos nos braços. Sorri vendo a cena dos dois rapazes pondo os prontos na bancada.
Tudo já se encontrava muito limpo, imaginei que eles tivessem cuidado da bagunça enquanto eu me entendia com , claro que depois deve ter ficado somente por obra de Kyle, uma vez que o policial também precisava limpar sua própria sujeira. Não sei quem finalizou o almoço e a minha torta, mas a cozinha cheirava extremamente bem, um leve aroma de queijo e massa, com um aroma mais delicado de morangos.
- Olá rapazes - cumprimentei, me sentando próxima a bancada onde toda a louça já tinha sido ajeitada.
- Já tava quase indo te resgatar do chuveiro.
- Engraçadinho - retruquei, dando a língua a Kyle.
Nicolás riu da nossa infantilidade. Acompanhei sua risada, lembrando de como estávamos a poucas horas atrás. Mais uma vez estava lá o pensamento de que eu havia me tornado adulta rápido demais, eu não me lembrava de me divertir tanto assim, e foi uma coisa tão boba….
- Nicolas, Kyle - chamei, fazendo os dois olharem na minha direção. - Obrigada, por cuidarem de mim e por me fazerem companhia. Principalmente você, Nicolás, Kyle é meu amigo da vida toda, mas você... tá fazendo muito mais que o seu trabalho.
- Você me cativa, . Eu me sinto bem cuidando de você - seu olhar era muito doce ao me responder.
Kyle me jogou um pano de prato na cara enquanto sorria.
- De nada, bruxa.
- Tem certeza que vocês são só amigos? - Perguntou o policial, rindo mais uma vez.
Acompanhamos sua risada enquanto nos ajeitavamos na bancada e começavamos a nos servir. Os raviolis que Nicolás havia feito estavam divinos, tão deliciosos quanto os de Nina, alimentando a minha criança anterior. Morria por saber o que mais ele cozinhava de tão gostoso.
O almoço foi tranquilo, mais uma vez estávamos jogando conversa fora de forma leve e amigável. Quando Kyle se levantou e voltou com a torta nas mãos, me senti tão empolgada que não havia como esconder minha euforia, não acreditei em como ela havia ficado bonita quando ele colocou o prato no centro da bancada. Sabia que metade do trabalho havia sido dele, mas não podia deixar de admirar a massa, estava linda e ela havia mantido sua estrutura durante o tempo do forno e havia resistido a retirada da assadeira também, o que significava que eu havia feito a receita direito. Senti um quentinho por dentro muito gratificante.
Nicolás me passou uma faca de corte e uma espátula, enquanto Kyle substituía os pratos do almoço por pratos de sobremesa. Acabei soltando um gritinho de empolgação enquanto cortava a torta, coloquei o primeiro pedaço no prato de Nicolás e logo depois no de Kyle, que registrava o momento com seu celular. Não fiz cerimônia na hora de experimentar a torta quando finalmente me servi, não era a de Nina, nem uma 100% feita pelo Kyle, mas estava bonita e saborosa.
Passamos cerca de duas horas ali conversando e saboreando a torta. Nicolás se mantinha atento à nossa conversa, mas não deixava de checar as câmeras de segurança a cada minuto, cumprindo seu trabalho. Quando eu me ofereci para lavar a louça, Kyle aproveitou para ir até sua casa e o policial quis fazer rondas no jardim.
Eu ainda tinha cerca de duas horas até que passasse por mim, como só levaria cerca de uma hora para me arrumar, decidi aproveitar o tempo para ler um pouco.
Usei o mínimo de maquiagem, afinal aquilo não era um encontro e eu já não me sentia mais tão feia quanto antes.
Cogitei levar minha arma comigo, eu não confiava em e eu não sabia o que esperar exatamente dele, o problema era se por acaso ele percebesse o que tinha na minha bolsa, teria que dar explicações e ele com certeza iria querer ver a minha licença, e como eu ia explicar uma arma do FBI no meus pertences? Era melhor um teaser elétrico. Joguei a arma de choque na bolsa junto com meu celular e alguns dos meus documentos e outras coisas que pudessem ser úteis.
Não sei se era por estar andando de um lado para o outro, mas comecei a sentir calor e estava até um pouco ofegante, acabei deixando a jaqueta que tinha separado de lado e fiz um coque de qualquer jeito pra me livrar daquela sensação de "quente", esperava que o grampo não escorregasse até eu me sentir menos esbaforida.
Sentindo necessidade de uma segurança extra, terminei enfiando um canivete dentro do cano da bota.
- Tem certeza que vocês não vao se matar?
Conversa com Nicolás no jardim, que parecia preocupado com a ideia de me deixar sozinha com sem iniciar a 3ª guerra mundial.
- Eu não posso prometer nada - brinquei, recebendo um olhar sério de sua parte que logo foi substituído por um sorrisinho de descrença.
- Tá tudo bem, Nick. Eu te ligo se precisar, tudo bem?
Ele confirmou com a cabeça.
Vi o carro de se aproximando da casa, acompanhamos com o olhar o carro diminuir sua velocidade e parar onde estávamos. Não sei porque eu me espantei quando ele nem sequer desceu do carro, só abriu a porta do carona pelo lado de dentro e ficou esperando que entrasse. Grosso.
Revirei os olhos enquanto tentava manter a minha paciência. Nicolás, que fechou a cara depois de se despedir de mim, se aproximou da janela do motorista e deu leves batidinhas no vidro fechado. Vi ele se apoiando na porta enquanto eu dava a volta no carro, cheguei a tempo de escutar ele mandando se comportar como gente, tive que segurar a risada.
- Boa noite, Jude - ele me comprimentou, com um pouco de ironia na voz.
Joguei a minha bolsa no banco de trás e fiz questão de bater à porta do carro, o olhar feio do motorista veio logo depois. Respondi com um sorriso debochado enquanto colocava o cinto. não esperou muito mais tempo para arrancar com o carro, como ele acabou deixando a sua janela aberta depois da "conversa" com Nick, acabei optando por baixar o meu vidro também. A sensação de calor ainda não havia passado e o ventinho me faria bem.
Quando me cansei de observar a paisagem e voltei meus olhos pra dentro do carro, notei que ele estava limpo e arrumado, sem qualquer vestígio dos papéis de chocolate que eu havia deixado.
- Limpou o carro - comentei.
- Vamos ver se ele vai continuar assim até eu te devolver pra sua casa hoje a noite.
"Devolver", grosso. Ele falava como se eu fosse uma mercadoria.
- Não sei nem se ele vai estar inteiro se você continuar batendo a porta desse jeito.
Ia retrucar, mas percebi que estávamos entrando no estacionamento de um supermercado.
- Vai comprar comida pronta? Eu achei que as pessoas que convidavam outras pra jantar sabiam cozinhar. Na verdade eu achei que você já tinha deixado a comida pronta - tagarelei.
desligou o carro,soltei o meu cinto achando que ele estaria fazendo o mesmo, mas quando peguei minha bolsa atrás do meu celular, notei que ele ainda estava parado suspirando no banco.
- Você achou mesmo que eu ia aguentar outro chilique seu questionando se eu tinha posto veneno na comida? - Questionou enquanto me encarava e soltava seu cinto.
Ok, ele tinha um ponto. Concordei com a cabeça.
- Prefiro você me fiscalizando agora do que enchendo meu saco depois, .
Observei ele sair do carro, queria chamar ele de grosso mas ele tinha razão, eu ia fazer ele provar toda a comida primeira. Quando joguei minha bolsa novamente no banco de trás, abriu a porta do meu lado, comecei a rir enquanto saia do carro.
- Morreu? - ele não respondeu. - Viu só, gentileza não mata, .
- Já parou pra pensar que talvez eu só não seja gentil com você?
O pior é que eu não duvidava mesmo, eu também era legal com todo mundo, menos com ele.
Segui o policial depois dele travar o carro e entrar no supermercado. Eram 19:57, aquele jantar ia demorar horrores, eu precisava de alguma coisa até lá. Me separei de e fui até os corredores de chocolate, se eu ia ter que aguentar ele e ainda esperar até que a comida ficasse pronta, eu iria precisar de pelo menos duas caixas de Mason X, talvez três.
Quando ia procurar por nos corredores, passei por uma parte muito atrativa que sempre chamava a minha atenção, o corredor de vinhos. Eu só queria uma garrafa, era pedir muito? Pelo menos uma taça. Peguei uma garrafa de vinho tinto da Kubani, um dos meus favoritos. Eu duvidava que fosse se importar.
Depois de quase 10 minutos, encontrei o policial no corredor de carnes, pelos outros produtos que ele tinha no carrinho, já sabia o que ele ia cozinhar. Nina dizia que era minha segunda comida favorita, ela estava certa.
- Strogonoff?
- Você gosta? - Perguntou, esperando para colocar no carrinho o ingrediente que segurava.
- Uhum.
- Ok.
- E se minha resposta fosse não? - Questionei, curiosa com o que ele faria como segunda opção.
- Acredite se quiser, eu ia te perguntar o que você preferia então.
Pareceu sincero e, como eu estava tentando manter a paz por vários motivos, decidi ficar quieta ao invés de soltar alguma piadinha ou fala irônica.
Quando chegamos na fila do caixa, parou bem em frente ao que tinha um freezer, pensei então que era uma boa ideia levar um pote de sorvete. Deixei minhas coisas na tampa do freezer ao lado enquanto escolhia entre opções disponíveis. Acabei optando por um sorvete com três sabores, ele tinha que gostar de pelo menos algum.
Quando eu me virei pra pegar minhas coisas, estava encostado no carrinho com os braços cruzados enquanto me encarava.
- O que foi?
Ele não respondeu, só arqueou as sobrancelhas enquanto permanecia sério. Encarei ele de volta fazendo a mesma expressão.
- Você tá brincando comigo, ?
- O que é, seu ogro?
não precisou dar nem 3 passos para chegar perto de mim e tirar a garrafa de vinho da minha mão. Droga.
- Você não é criança, , eu tava junto com você quando o médico te deu alta e disse tudo o que você podia e não podia fazer. Advinha em que lista estava misturar seus remédios com álcool? - Revirava os olhos enquanto ouvia seu sermão rídiculo, eu não ia morrer por uma taça de vinho. - Se você quer ter problemas, por favor faça quando estiver longe de mim, você já trouxe encrenca demais pra minha vida e eu não preciso de mais uma.
Era o suficiente pra ele acabar com o meu humor, me recusava a ficar perto daquele cara, precisava ficar longe nem que fosse por 5 minutos antes que eu arremessasse aquela garrafa na cabeça dele.
- - escutei ele me chamar enquanto eu dava as costas e ia para o caixa mais longe possível, fingindo que não o ouvia.
A minha vontade era pedir um táxi e voltar para minha casa naquele instante, mas eu não podia, quando eu ia ter outra oportunidade de fuçar o apartamento dele de novo e descobrir se ele escondia ou sabia de alguma coisa?
Por sorte, o caixa ficou vazio assim que eu cheguei. Passei minhas compras o mais rápido e fui até o estacionamento, esperaria por ele perto de seu carro.
Não entendi por que se ele já era o próximo da fila quando eu dei as costas, mas levou cerca de 20 minutos para sair do mercado. Desencostei do capô do carro e fiquei ao lado da porta do carona, esperando que ele destravasse o carro.
- Você não deveria ficar sozinha aqui fora.
Ignorei, abrindo a porta do carro assim que escutei o barulho do alarme. Ia deixar as sacolas no meu colo, mas acabei passando elas para o banco de trás quando o sorvete começou a gelar minha perna. fez o mesmo com as suas compras, exceto por uma sacola que ele deixou no chão do carro.
Ele fechou a porta assim que sentou, mas não deu partida.
- Eu sei que não deveria ter falado com você daquele jeito..
- Mas falou - interrompi, sem olhar pra ele
- Eu sei - sua voz estava mais calma que o tom de sempre com o qual eu estava acostumada. - , eu sei que soa horrível, mas você é um caso, meu caso. Eu devo ser responsável com o meu trabalho e nesse caso ele implica tomar conta de você. Enquanto você estiver comigo é minha responsabilidade que você esteja bem. Eu tenho certeza que você não é burra, eu vi a quantidade de remédios que você tá tomando, ainda assim você queria misturar com álcool?
Não ironicamente, aquilo não parecia um sermão, era mais uma simples conversa.
- Era só uma taça, só uma. - Falei, olhando em sua direção.
- A ingestão de álcool com alguns remédios aumenta o risco de coma e insuficiência respiratória. Você não sabia disso?
Eu sabia.
Virei o rosto para a janela novamente.
Quando ele percebeu que não teria mais nenhuma resposta da minha parte, ligou o carro e seguiu até seu apartamento. Não nos falamos mais durante todo o caminho, o único som no carro era o rádio baixinho que tocava Beatles. Pelo menos ele tinha bom gosto.
O trajeto até a casa de levou menos de 15 minutos, seu apartamento ficava no 13º andar, mas como a vaga do seu carro era no estacionamento próximo, só precisamos subir um andar de elevador. Ficamos em silêncio até que ele abriu a porta de entrada.
- Só não revira o meu apartamento igual você fez com meu carro, por favor.
Ele me deu passagem pra entrar assim que terminou de falar. Assenti, mas ele não precisava saber que aquilo era mentira. Meu Deus, essa frase já estava virando rotina.
Para o apartamento de um homem solteiro, era limpo e organizado, mas não fiquei tão surpresa, apesar de não suportar , ele nunca me passou a imagem de ser desleixado.
O policial entrou logo atrás de mim, deixando as sacolas na bancada da cozinha.
- Posso usar o freezer? - Perguntei, me lembrando do sorvete.
- Pode, eu tirei o corpo que tava guardado lá hoje de manhã.
Soltei uma risada nasalada, lembrando do que eu havia dito a ele no hospital.
- Eu já volto - anunciou enquanto jogava a carteira e a chave do carro em cima de uma mesinha próxima ao sofá.
Curiosa como eu era, me aproximei da porta de entrada para ver onde ele iria assim que guardei o sorvete no freezer. Observei até ele parar na frente da última porta do corredor, depois de duas batidas uma garota de óculos que parecia ser mais nova do que eu abriu, eles conversaram por alguns segundos até que ela entrou em sua casa novamente, a porta ficou aberta enquanto ele permanecia parado ali. Senti uma vontade imensa de espirrar e tive que sair de onde estava, o corredor era pequeno e quando ele escutasse ia notar que eu estava espiando. Senti uma pequena pontada na barriga, ridículo o que um espirro podia fazer.
Escutei passos e decidi ficar perto da bancada novamente. Apoiei meus cotovelos no mármore gelado e fingi que apenas observava o ambiente, quando escutei fechar a porta me permiti olhar, como se não estivesse esperando sua chegada.
Não precisei fingir surpresa, uma vez que eu realmente fiquei quando vi a coisinha cinzenta que ele carregava em seus braços. tinha um cachorro.
Não esperei convite nem apresentações, talvez o cachorro não fosse tão amigável e me mordesse, mas eu não podia resistir. Me aproximei do policial e estiquei os braços para pegar o animalzinho, pareceu ficar confuso com a minha atitude, mas deixou que eu pegasse o seu cachorro. Pela cara que ele fez logo depois, eu com certeza estava sorrindo feito idiota, mas não me importei.
O cachorro aceitou meu colo sem nenhum problema, assim que eu ajeitei ele em meus braços, ganhei uma lambida no rosto com direito ao que pareciam 3 litros de baba.
- Ugh - resmunguei, enquanto o cachorro dava outra lambida na minha bochecha.
riu, se divertindo com a situação enquanto trancava a porta.
Limpei a baba no ombro da camisa enquanto me sentava com a pequena criatura cinzenta no sofá. Observei a coleira em seu pescoço, tinha um pingente que dizia Spike.
- Oi amigão - falei, afagando atrás das suas orelhas. Eu amava tanto os cachorros.
Apesar da aparência rabugenta, ele parecia ser muito dócil. Ao contrário do seu dono, que tinha sorriso de anjo e era a pessoa mais rabugenta que eu havia conhecido nos últimos tempos. Spike passou alguns minutos brincando comigo no sofá, até se lembrar de que tinha dono e ir atrás dele.
Observei o cachorro seguindo os passos de até ele dar sua comida atrás do balcão. Resolvi me juntar a eles e observar como o policial preparava a comida. No meio do caminho acabei espirrando outras duas vezes, sentindo mais pontadas.
- Tudo bem? - Perguntou, enquanto separava as compras na bancada próxima a pia.
- Sim, acho que é esse tempo meio esquisito. A mudança de clima.
Me sentei em uma das banquetas pegando uma das caixas de chocolate. Observei o cachorro jogar sua ração para fora da tigela, enquanto mexia em um pequeno controle que eu percebi ser do ar condicionado do apartamento.
Green estava sendo gentil, comigo e de graça.
Assim que ele largou o controle na bancada, empurrou na minha direção o molho de chaves que eu o havia visto utilizar poucos minutos antes.
- Guarda, você me devolve antes da gente sair - a voz calma estava lá de novo.
Fiquei confusa com aquilo.
- Por que você tá me dando isso?
- Pelo mesmo motivo que quis cozinhar na sua frente. Pra você se sentir segura - ele pareceu arrependido logo que falou essas palavras.
- Achei que era pra eu não dar um chilique - brinquei pegando as chaves, relembrando o que ele havia dito mais cedo.
- Também.
Sua resposta veio acompanhada de uma risadinha quase inaudível que ele soltou quando deu as costas e foi até a pia para cortar alguns pedaços de carne.
Eu entendi porque ele me deu as chaves, se eu achasse que ele representava algum perigo, podia simplesmente sair. Ele estava mesmo se esforçando, como havia me dito mais cedo. Eu ia colocar da minha parte então, talvez cedendo um pouco, eu poderia conquistar sua confiança e facilitar a minha vida e meu trabalho.
- - chamei, fazendo com que ele parasse o que estava fazendo. - Vou confiar em você hoje - soltei as chaves na bancada, forçando um sorriso amigável.
O policial me observou por alguns segundos e depois assentiu, voltando para sua tarefa.
Entre observar na cozinha e brincar com Spike, o tempo passou bem rápido. Ele não tentou puxar assunto comigo, as poucas palavras que trocamos foram quando ele me perguntava se eu tinha alergia a algum ingrediente que ele estava colocando na comida (felizmente os cogumelos eram meu único problema e ele não faria tanta falta no prato escolhido para o jantar), e quando eu tentava lhe oferecer os chocolates que segundo ele, tinham gosto de sabão.
Observei em silêncio ele ajeitar a louça no balcão e logo depois o jantar que havia sido posto em travessas transparentes.
Pensei que ele ia se sentar depois de colocar tudo no lugar, mas ele se afastou e foi até o armário perto da geladeira. Parecia pensativo enquanto mexia em uma sacola, inquieto, chegando até a coçar a cabeça algumas vezes. Tive que tirar meus olhos de quando Spike mordeu a barra da minha calça reclamando por atenção, parecia que eu tinha mesmo feito um novo amigo.
Quando ele ganhou um pouco de carinho, voltou a deitar em um tapete no canto da cozinha. Busquei por e ele agora já estava de frente para o balcão, me esticando uma garrafa.
Não podia ser.
- Não foi minha intenção ser grosso com você aquela hora. - Disse, enquanto mexia em em seus cotovelos distraidamente. - Não é o que você queria, mas acho que é a única coisa que você pode no momento - completou me entregando a garrafa.
Era um vinho sem álcool, feito no Brasil. Eu ia morrer sem saber da existência daquilo, quando começaram a fazer vinho daquele jeito? Dei uma analisada rápida na garrafa, não parecia ter sido aberta, o que significava que ele não tinha posto nada dentro e eu poderia tomar.
- Como você descobriu isso? - Estava surpresa não só com o vinho, mas também com sua atitude, porém ele só ficaria sabendo da primeira.
- Minha irmã teve desejo de vinho a gravidez inteira - explicou. - A gente pode jantar? A comida vai esfriar.
Não é que ele estava sendo grosso, milagrosamente ele não estava, parecia mais que ele estava desconfortável com a situação. Não sabia se ele tinha um bloqueio pra ser gentil com as pessoas ou talvez só não fosse gentil comigo mesmo, como havia dito mais cedo.
- Claro - respondi, colocando a garrafa de volta na bancada, com um pequeno sorriso de agradecimento. - Obrigada, Green.
Escutei sua risada anasalada novamente enquanto ele se virava para pegar um copo e uma taça. Depois de mais uma volta na cozinha trazendo consigo uma jarra de suco e um abridor para a garrafa de vinho, se sentou ao meu lado. Quando eu ia pegar o abridor, ele puxou a garrafa e começou a abrir, decidi me servir com a comida então, o cheiro estava bom e era convidativo.
deixou a garrafa aberta do meu lado, então aproveitei para matar minha curiosidade enquanto ele colocava o jantar em seu prato. Servi uma pequena quantidade do vinho na taça, o cheiro era agradável, parecia muito com o de vinho normal, o sabor entretanto era diferente, tinha um gosto mais licoroso, mas não era ruim, acabei enchendo a taça. por sua vez, encheu seu copo com suco, que pelo aroma, parecia ser de abacaxi.
A comida de estava tão boa quanto a que Nicolás havia preparado no almoço, me perguntei se um deles havia ensinado o outro a cozinhar.
Como deu alguns passos no quesito "quero manter a paz com você", eu decidi fazer o mesmo. Ele estava fazendo aquilo pelo trabalho dele, eu faria pelo meu.
- Há quanto tempo você mora sozinho? - perguntei, virando na sua direção entre uma garfada e outra.
- Desde que eu terminei a faculdade. - Disse, sem me olhar.
- Hum.
- Por quê? - Dessa vez ele me olhou, enquanto mantinha seu garfo apoiado no prato.
- Não achei que você soubesse cozinhar - dei de ombros. - Mas sua casa é organizada, limpa e você cozinha bem, não era a impressão que eu tinha. Só curiosidade mesmo - completei.
assentiu, voltando a comer.
- Nick te contou que a gente dividia um apartamento na época da faculdade? - Perguntou, enquanto pegava seu copo de suco.
Fiquei surpresa por ele puxar assunto.
- Algo sim - falei, sem querer dar muitos detalhes das conversas que Nicolás e eu havíamos tido sobre eles.
- Pergunta pra ele quem arrumava a casa - pude ver a risada que ele tentava esconder atrás do copo.
- Tá querendo me dizer o que? - Enchia a minha taça mais uma vez enquanto pensava no que ele havia acabado de me falar. - Ele era o bagunceiro e você o sr. organizado?
- Vai ter que perguntar pra ele, Jude.
Ri, eu ia mesmo perguntar.
Escutei um ronco vindo do canto da cozinha, era Spike enquanto dormia.
- Sabe, acho que seu cachorro veio com defeito.
- Como é que é? - largou o garfo, me olhando atravessado.
- Ele não pede comida, o cachorro de todo mundo pede comida - falei, rindo da cara que ele fazia.
- É porque ele é educado. Mais do que você - cutucou.
- Engraçadinho.
- Eu nunca vi o Spike com a cabeça dentro das minhas mochilas, e olha que ele tá comigo a anos. - Disse, um pouco irônico. Eu sabia exatamente do que ele estava falando.
, que já havia terminado de jantar, brincava com o seu copo quase vazio em cima do balcão. O cheiro do suco começava a chamar atenção do meu estômago. Peguei a jarra e coloquei um pouco da bebida na minha taça, misturando com o restinho do vinho que ainda estava pela metade. tinha sua sobrancelha arqueada enquanto observava a cena.
- O que você tá fazendo? - Ri da sua expressão de nojo.
Se o sorvete era bom, juntar as duas bebidas não deveria ser tão má ideia. Levei a taça até minha boca, sentindo o sabor ácido do abacaxi junto com o do vinho. Eu não estava errada.
ainda me olhava com a mesma cara. Peguei a garrafa de vinho que já estava pela metade e coloquei uma pequena quantidade no copo de enquanto ele ainda o segurava.
- Bebé - incentivei.
Seus olhos iam de mim para o copo, ele fez isso umas três vezes até rir e provar a bebida.
Observei - com atenção demais - enquanto ele passava a língua por seus lábios. Acabei mordendo meu próprio lábio enquanto observava a cena. Ele era tão insuportável que eu me esquecia do quanto era bonito e, momentos como aquele onde ele se mostrava mais tolerável, faziam eu reparar demais.
- Estranhamente bom - constatou, me tirando dos meus pensamentos.
Ri, enchendo seu copo com mais vinho e suco. Enquanto me agradecia, eu me levantei para pegar o sorvete que havia colocado no freezer. Como eu havia levado minha taça junto comigo, tive que deixar ele na bancada antes de procurar por algumas colheres. Vi tampar o rosto e rir quando enquanto eu revirava a gaveta - como se eu fosse de casa - em busca do que eu queria, a mesma gaveta que eu havia visto ele pegar os talheres antes.
Ele balançava a cabeça em negação enquanto eu voltava ao balcão, mas não tinha uma expressão ruim no rosto. Me sentei novamente, colocando uma das colheres na sua frente.
- Você sabe que você é visita, né? - Brincou, pegando a colher.
Ri, abrindo o pote de sorvete.
- Eu não sei cozinhar - confessei, enchendo minha colher. - Desculpa a sobremesa industrializada.
Ri da minha falta de jeito na cozinha. soltou o copo e se rendeu ao sorvete também.
- Você tem 24 anos e não sabe cozinhar? - Questionou, mordendo o lábio novamente.
Assenti, mas por mais que eu estivesse rindo, uma parte de mim estava envergonhada também.
- Já me desculpou pelo que ocorreu mais cedo? - Ele me perguntou de forma distraída enquanto comia o sorvete. No entanto, seu olhar sob mim, era atento.
A verdade é que depois do vinho eu relaxei minha postura com ele. Não tinha esquecido nenhuma das suas grosserias, mas eu sempre me sentia incapaz de ser ruim com quem tinha o mínimo gesto de bondade comigo, e ele tinha acabado de ser legal comigo, duas vezes. Ele não precisava levar o vinho pra me pedir desculpas, mas fez. Então sim, eu já tinha desculpado ele.
- Isso faz diferença pra você? - Perguntei, largando a colher para pegar a taça novamente.
- Faz sim - sua voz estava... preocupada? estava de frente para mim agora, seus pés estavam apoiados na banqueta em que eu estava sentada. Se isso fosse a algumas horas atrás, eu ia ter medo que ele chutasse o banco e me derrubasse. - Você vai passar mal já já se continuar misturando as coisas desse jeito.
- Desculpei, - falei, sem nenhuma ironia na voz.
O policial sorriu sem mostrar os dentes.
Achei graça quando ele tampou a garrafa de vinho e tirou ela de perto de mim, empurrando o pote de sorvete em seu lugar.
Se alguém me descrevesse aquela cena mais cedo e dissesse que e eu estaríamos assim, eu jamais acreditaria. Me perguntei quanto tempo aquilo ia durar.
- Tá pensando no que? - Perguntou enquanto raspava a colher no sabor de coco, praticamente intacto.
- Em quanto tempo a gente vai demorar pra brigar.
riu, riu com vontade. Riu de um jeito que eu nunca tinha visto ele fazer antes. Era muito mais bonito daquele jeito do que com a cara de rabugento que estava sempre. Acompanhei sua risada enquanto engolia o sorvete.
Peguei o meu celular e entrei na conversa com Nicolás para mandar uma foto, tinha três mensagens perguntando se estava tudo bem. Tirei uma selfie sem avisar , que saiu com a colher na boca enquanto eu estava sorrindo, e enviei para o outro policial, escrevi na legenda "Tudo ok, ainda não nos matamos."
- O que você tá fazendo? - Perguntou, olhando para o celular.
Coloquei o aparelho na bancada e empurrei na sua direção. pegou o celular, me olhando de forma confusa.
Nunca foi minha intenção causar problemas entre os dois, eu só queria fazer meu trabalho e se eles fossem inocentes, não havia por que prejudicar nenhum dos dois, nem de forma pessoal. Apesar de não confiar em , eu não tinha nenhuma certeza sobre ele, e o outro policial pelo qual eu havia adquirido alguma consideração via ele como um irmão. Não entendia muito bem a briga dos dois, mas sabia que tinha haver com a implicância de comigo, e eu tinha colaborado para essa implicância acontecer.
- Não sei porque Nicolás gosta tanto de mim - comecei, fazendo com que ele tirasse os olhos da foto e voltasse sua atenção para mim - mas eu sei que você me odeia e que vocês têm desavenças referente a como cuidar desse caso, vulgo eu, e isso acaba gerando algum tipo de atrito entre vocês. Nicolás me contou por cima - expliquei, quando vi que ele ia perguntar como eu sabia disso. Ele assentiu. - Mas eu não sou uma pessoa ruim, talvez a foto ajude a consertar um pouco do problema.
- Talvez eu não te odeie mais tanto assim.
Ele soltou, me deixando curiosa e fazendo com que eu olhasse mais pra ele. Quando eu ia perguntar o que ele queria dizer com aquilo, ouvimos algumas batidas na porta. Antes de se levantar e pegar as chaves, ficou um bom tempo ponderando, me perguntei se era dúvida sobre me explicar o que havia dito ou sobre abrir a porta, mas ele acabou se levantando.
- Melissa? Tudo bem? - Perguntou ao abrir a porta. Era a garota que eu havia visto mais cedo, que estava com o cachorro. Sinceramente, pra sair do seu apartamento com um pijama curto daqueles era melhor sair pelada.
- Eu preciso de um favor - escutei ela falando. De onde ela estava não podia me ver.
Joguei a colher que eu segurava no chão, fazendo um leve barulho e chamando sua atenção para dentro do apartamento. Enquanto me abaixava para pegar o talher, vi olhando na minha direção e a garota esticando seu pescoço para tentar descobrir quem era a companhia do seu vizinho.
- Me dá dois minutos - ele respondeu, mexendo no cabelo.
deixou ela na porta e foi até a pia onde eu colocava a colher.
- Consegue ficar por 5 minutos no meu apartamento sozinha sem mexer em tudo?
- Claro, docinho. - Respondi numa voz mais alta que o normal, com um pouco de deboche.
umedeceu os lábios, ia falar alguma coisa, mas acabou desistindo. Apenas riu e me deu as costas. A vizinha seminua não tirava os olhos de mim. Sorri pra ela, acenando de forma que parecesse gentil. Recebi um aceno de cabeça como cumprimento.
Desmanchei o sorriso falso assim que fechou a porta.
Quando decidi que ele já estava longe o suficiente para não me pegar fuçando suas coisas, comecei a percorrer o apartamento em busca de qualquer coisa que pudesse me ajudar, agendas, caixas, coisas assim. Enquanto olhava a agenda que estava na mesinha, notei que ele havia deixado o molho de chaves na porta, oportunidade perfeita.
Procurei o banheiro dali e encontrei sem nenhuma dificuldade, era a primeira porta do pequeno corredor. Eu só precisava de um sabonete fechado. O banheiro era tão limpo como as outras partes da casa que eu havia visto, tudo extremamente organizado. Procurei por qualquer coisa que parecesse anormal, mas não havia nada. Pra minha sorte havia vários sabonetes fechados, não daria falta de um.
Voltei para sala e abri a embalagem, não sabia quanto tempo ele iria demorar, então deveria ser rápido, aquilo era bem diferente de me ver fuçando as coisas dele. Tirei a chave da porta e pressionei na parte de trás do sabonete, fazendo com que ela ficasse totalmente desenhada ali. Ia ser fácil tirar uma cópia da chave com aquilo, mais tarde alguém do departamento podia olhar a casa de com mais calma enquanto ele não estivesse.
Guardei o sabonete de volta na caixinha e deixei na minha bolsa. Por sorte eu havia deixado uma caixa de lenços lá também, limpei os restos de sabonete que ficaram na chave e atirei os pais dentro da bolsa.
Depois de devolver as chaves à porta, decidi olhar as prateleiras da sala. Se ele chegasse e me pegasse bisbilhotando ali, eu poderia apenas dizer que estava olhando seus livros.
Não fiquei surpresa quando notei que os livros dele estavam mais limpos que os meus, não havia uma única camada de pó naquela estante. Tirei diversos livros do lugar e infelizmente não achei nada de interessante. Enquanto observava as fotos expostas ali, notei que eram todas em família, sua mãe e irmã estavam sempre presentes, mas o engraçado é que seu pai não estava em nenhuma, mas Nicolás aparecia em diversas delas, não errei ao pensar que eles se viam como irmãos. Peguei um porta retrato em que os dois estavam com roupa de formandos, a mãe de sorria orgulhosa abraçando os dois, a foto era linda.
Escutei o barulho da porta, mas não me importei em devolver o porta retrato ao seu lugar, eu não estava fazendo nada demais. Foram poucos segundos do barulho das chaves na porta até os passos de perto de mim.
Ele segurou o porta retrato junto comigo me causando uma sensação estranha. Não ruim, só estranha. Mantive meus olhos na foto mas percebi que sua mão estava molhada, o braço também. Quando decidi me virar pra ele, percebi que ele estava quase todo ensopado.
- O cano da pia estourou - explicou, antes que eu perguntasse. Seus olhos ainda estavam na foto, foto essa que nós ainda seguravamos juntos.
- Foi o dia mais feliz da vida do Nick - continuou, parecendo um pouco nostálgico. - Estranho ele não ter te chamado pra formatura.
De novo aquilo, tive que revirar os olhos. Quantas vezes eu ia ter que repetir que não conhecia ele de lugar nenhum antes do acidente? Puxei o porta retrato da sua mão e coloquei de volta no lugar.
Cruzei meus braços olhando pra ele, que vontade de socar aquele sorrisinho debochado.
- Foi brincar de porno de encanador com sua vizinha e não aguentou nem 5 minutos ?
O policial umedeceu os lábios, sustentando o sorrisinho. Soltou uma risadinha logo depois, chacoalhando a cabeça.
- Eu vou tomar um banho, . Levo você pra casa depois.
Sentei no sofá, observando o policial sumir pelo corredor. Patético.
Escutei o barulho das patinhas de Spike, achei que ele ia atrás do seu dono, mas para a minha surpresa ele subiu no sofá e deitou a cabeça no meu colo. Eu ia roubar aquele cachorro.
Puxei o babão para meu colo e fiquei ali brincando com ele, pelo que pareceram ser 5 minutos, ele começava a apresentar sinais de sonolência quando chamou pelo meu nome.
Levantei com Spike no colo.
- - chamou novamente, praticamente gritando dessa vez. Neandertal, não sabia esperar? Uma mulher não sai correndo.
- Já vai, seu grosso - respondi, em um tom muito parecido com o seu.
Tive que ajeitar Spike no colo três vezes enquanto andava, ele era muito pesado. Felizmente só tinha um cômodo com a luz acesa e não precisei procurar tanto. O quarto (que era uma suíte) era bonito, nem muito grande nem muito pequeno, parecia ter o espaço ideal para ser aconchegante e cômodo. Os móveis quase todos na cor marrom claro, deixavam o ambiente mais bonito ainda, a cama era o único móvel com cor diferente, um tom de grafite, era maior que a minha, parecia muito confortável.
- O que é, Neandertal? - resmunguei,espirrando novamente enquanto ele batia alguma porta de armário no banheiro.
Spike pesava demais e o incômodo que eu sentia depois de espirrar me fizeram optar por soltar o bulldog. O cachorro subiu na cama e se ajeitou no travesseiro assim que eu soltei ele, deveria estar acostumado a dormir naquele lugar.
Quando eu me virei na direção da porta do banheiro, estava saindo. Sem camisa.
Molhado e sem camisa. Acabei sentado na cama, eu nem queria sentar.
Green, o insuportável do Green. Eu nunca tinha visto um neandertal com um corpo tão bonito.
Notei que minhas mãos, que estavam espalmadas na cama, estavam prestes a torcer o edredom. Eu me recusava a perder a compostura para alguém como . Cruzei as pernas e ergui a cabeça.
- O que é? - Questionei com a voz firme.
jogou a toalha - que eu nem havia percebido que estava na sua mão - em cima do ombro.
- - o policial cruzou os braços enquanto falava - você se lembra do que me falou na primeira vez que a gente se viu? - Ele andava na minha direção enquanto falava.
Quando ele parou onde eu estava, achei mais seguro pro meu juízo olhar pra qualquer outro lado.
- Eu te disse muitas coisas - virei meu rosto de volta para ele e logo em seguida para a porta novamente.
O policial se abaixou, colocando as mãos no colchão, perto demais do meu corpo. Tive que olhar pra ele, eu tinha certeza que tinha auto controle pra pelo menos alguns segundos daquilo.
- Lembro de você ter me dito algo sobre, como era mesmo - ele fingiu pensar enquanto eu encarava seu rosto. - Ah sim algo sobre me deixar te algemar na cama.
Antes que pudesse raciocinar, moveu sua mão para baixo do travesseiro e puxou uma algema, fechando ela no meu braço.
- .
Quando eu tentei segurar seu braço, percebi que a outra parte da algema já estava presa na cama, provavelmente já estava lá antes. Desgraçado.
- Desejo realizado, - debochou, se afastando.
- Se cretino, me solta agora - Me levantei, fazendo com que a cama se movesse um pouco.
- Não faz isso, você vai se machucar. - Ele ainda se achava no direito de me repreender com aquele tom sério? - Eu solto você assim que eu sair, o Spike te faz companhia.
Peguei o abajur que estava na mesa de cabeceira, ele se fechou no banheiro assim que o objeto acertou a porta.
- IMBECIL - gritei, me sentando na cama enquanto espumava de ódio.
Ele ia ver só.
Tirei as minhas botas com um pouco mais de dificuldade do que imaginaria, claro, eu não tinha só uma mão imobilizada, mas também tinha as pontadas na barriga que me obrigavam a me mover em um ritmo mais devagar. Assim que eu me livrei dos sapatos, me ajeitei na cama cruzando minhas pernas dobradas, aquela era a posição mais confortável pra me livrar das algemas.
Assim que escutei o barulho do chuveiro sendo aberto, puxei o grampo do meu cabelo, agradecendo por ter levado ele comigo naquela noite.
Abri o objeto todo e depois dobrei a ponta, posicionando ele entre meu polegar e indicador, assim que eu coloquei a chave improvisada na fechadura comecei a procurar pela trava, não era tão difícil quando você tinha pelo menos uma das mãos livres, então não demorou muito para que eu escutasse o click e ela se abrisse.
só não contava com uma coisa, eu não era uma cívil e nem uma pessoa comum, eu sabia fazer mais coisas do que ele imaginava.
Por sorte, Spike havia ido com a minha cara e dormia tranquilamente no travesseiro, seus latidos não seriam um alerta para o seu dono.
Eu não sabia se ia conseguir ficar sozinha na casa de , mas contando com a sorte, havia colocado na minha bolsa algumas coisas que poderiam me ajudar e muito na minha investigação. Não havia me arriscado na primeira oportunidade porque não sabia quanto tempo teria, mas agora que eu já podia ter uma noção melhor de tempo, faria o que desse.
Peguei o canivete que trouxe na minha bota e voltei até a sala sem fazer barulho, na minha bolsa havia duas escutas que seriam muito úteis para descobrir mais sobre a vida de , entretanto eu tinha alguns poréns antes de colocá-las. Obviamente elas deveriam ficar bem escondidas para que ele não as encontrasse, mas eu queria que a pessoa do FBI que fosse revistar sua casa também não achasse as escutas, uma vez que eu não deveria fazer aquilo sem um mandato. Eu sei que qualquer prova que eu descobrisse através delas seria invalidada, mas já serviria de ponte para descobrir outras coisas, isso é, se fosse mesmo quem eu procurava ou se caso soubesse de algo.
Guardei uma das escutas no bolso, colocaria no quarto dele quando voltasse pra lá. Eu queria que a outra ficasse em um lugar onde eu poderia ouvir qualquer pessoa que entrasse na casa, então a sala e a cozinha eram as melhores opções. Ninguém limpava a parte de baixo dos bancos, era uma ótima ideia colocar ali.
Escolhi o banco que eu havia me sentado antes e fiz um pequeno rasgo no tecido que ficava na parte de baixo para empurrar a escuta para dentro, ficaria bem escondido e ninguém ia achar ela ali.
Colocar o grampo com gravador no telefone da sala já foi bem mais difícil, abrir o aparelho com cuidado para não deixar marcas de uma abertura forçada exigia tempo e isso era uma coisa que eu não tinha. Acabei desistindo.
Quando voltei para o quarto notei que o chuveiro ainda estava ligado, Spike também dormia da mesma forma. Eu ainda tinha um tempinho antes dele sair.
Pensei em colocar a escuta atrás da cama, mas pelo brilho da madeira ele deveria limpar ali com frequência e rasgar o colchão para colocar dentro também não era uma opção.
O barulho do chuveiro parou. Droga, porque ele tinha que ser tão organizado.
Quando me sentei de volta na cama para colocar a gema, percebi que a mesa de cabeceira tinha um espaço em baixo, se eu conseguisse colocar a minha mão ali, poderia colocar a escuta lá. Eu imaginava que ainda tinha alguns minutos até ele se secar e se trocar, eu tinha que me arriscar, não sabia quando teria outra oportunidade como essa.
Me abaixei na frente da mesinha, minha mão cabia na parte de baixo e, sobrou um espacinho, o que significava que tinha espaço para escuta entrar. Retirei o adesivo da peça e empurrei ela para baixo, apertei algumas vezes para ter certeza de que havia ficado no lugar, parecia firme.
Levantei rápido demais, esquecendo que eu não deveria fazer movimentos bruscos. Senti o sangue começar a escorrer na hora, merda.
Calcei somente um par da bota e escondi o canivete novamente, ignorando a dor quando me sentei na cama, aquilo era uma coisa que podia ver, diferente do grampo bem ajeitado e algema solta. Desmanchei a chave improvisada e fechei meu braço na algema de novo. Puxei algumas vezes, para que ficasse ao menos uma marca pequena de uso.
Quando escutei o barulho da porta, peguei o grampo e fingi que tentava abrir a algema. Não demorou muito para que eu escutasse a risada de , ele caiu como um patinho.
Ainda sem olhar pra ele, soltei o grampo e me abaixei para pegar a bota que eu não havia calçado. Ele ainda ria quando eu olhei para ele e fechei a cara antes de jogar o calçado.
Não era pra acertar ele, então arremessei na porta, não deveria ficar exibindo a minha boa pontaria, já tinha feito uma vez.
Demonstrando uma paciência que eu não conhecia, ao invés de gritar o policial apenas pegou minha bota e colocou perto de mim.
- Ficou bravinha porque eu saí do banheiro vestido, Jude? - Brincou, enquanto se abaixava para abrir a algema.
- Vai sonhando, - retruquei, tirando o cabelo do rosto.
- Que droga, - Resmungou enquanto jogava a chave na mesinha. - Eu falei pra você ficar quieta. Você viu que você tá sangrando?
Quando ele se sentou ao meu lado, não percebi que era pra tirar a minha bota, o único par que eu tinha calçado. Quando me dei conta e tentei abaixar para impedir, ele já estava tirando o calçado do meu pé, não demorou muito para que ele visse o canivete dentro.
não disse nada, só colocou o canivete na mesinha e deixou minha bota novamente no chão. Fiquei surpresa.
- Deita, vou pegar um curativo.
Engraçado como ele estava se portando das maneiras mais inesperadas possíveis. Achei que ele ia falar do canivete, mas não falou, pensei que ele ia ser grosso pelo machucado, mas apenas pareceu ter ficado chateado comigo. Quando eu achei que ele ia reclamar por ter que fazer um curativo, se portou de maneira calma e tranquila.
Decidi então ignorar a história da algema, no final das contas se não fosse por isso eu não teria conseguido colocar as escutas. Ele estava se comportando, tirando a gracinha que fez, então eu continuaria me comportando também.
Me ajeitei na cama, levantando a blusa já bem empapada de sangue até que o curativo ficasse à mostra, ele estava coberto de sangue, eu sabia que tinha me machucado, mas não esperava que fosse tanto assim.
Quando saiu do banheiro, ficou imóvel olhando pra minha barriga enquanto segurava um pacote de gaze e uma água oxigenada. Se eu não esperava tanto sangue, imagina ele. O policial voltou para o banheiro e quando saiu, trouxe uma caixa de primeiros socorros junto.
Observei mais uma vez ele colocar as luvas e retirar meu curativo, igual a algumas noites atrás.
Quando ele começou a limpar o sangue, vimos que o ponto (o mesmo de antes) tinha se soltado novamente. Esperava que pudesse o ajeitar de novo, mas pra isso eu tinha que parar de sangrar primeiro, o que infelizmente estava demorando pra acontecer. Já tinha uma pilha de compressas ensanguentadas na toalha que havia estendido perto de mim.
- Tem alguma coisa errada - ele estalou a língua no céu da boca, enquanto pressionava mais uma compressa na minha barriga. - Você já deveria ter parado de sangrar - seus olhos passaram da compressa para mim, parecia preocupado.
Quando eu abri a boca para falar, terminei espirrando e gritando de dor.
A compressa de baixo da mão de se encheu de sangue, tingindo até suas luvas de um vermelho muito vivo.
A dor começava a ficar insuportável.
E eu, começava a me desesperar.
Continua...
Pra ficarem por dentro das novidades das minhas fanfics e receber alguns spoilers dos próximos capítulos, me sigam no instagram @maruliteraria.
Nos vemos em breve.❤️
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