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Última atualização: 10/02/2024

Capítulo 01

encarava seu singelo lar pela última vez por um tempo indeterminado.
Durante anos, sonhou em se mudar para a casa da tia-avó Lucila, que visitou algumas vezes quando criança para eventos de família, mas não naquelas condições. Após retornarem de uma visita feita aos antigos amigos, seus pais, Mary e Paul , contraíram uma doença contagiosa e, para prevenção, e sua irmã mais velha, , iriam para a casa da tia.
Doeu não poder se despedir de seus pais, deixando apenas cartas apressadas com o médico da família, que se comprometeu em entregá-las. Não conseguia desprender os olhos de sua querida casa e não estava colaborando nem um pouco o ajudante de sua tia que veio buscá-las.
segurou em seu ombro:
, querida, temos que ir agora. Eles vão ficar bem.
Mas a irmã mais nova não se mexia.
repetiu, mais dura dessa vez, apertando mais seu ombro:
, vamos. Agora.
A jovem finalmente se mexeu e entrou na carruagem.
Achava tão injusto que todos os seus sonhos estivessem se realizando em um momento como aquele. Em outro momento, estaria vibrando e tagarelando sobre tudo que visse no caminho, e faria seu máximo para tentar acompanhá-la. Mas, agora, estava desesperada pensando em seus pais.
... — , sempre responsável, tentava tranquilizá-la. – Lembre-se que o doutor Plínio nos comunicou de que eles estão com sintomas muito primários e isso é mais por nós do que por eles. A chance de recuperação é enorme.
— Mas não cem por centro. — colocou, quebrando seu silêncio, mas se arrependendo na hora.
Das duas, era a mais apegada aos pais e sabia que era quem estava sofrendo mais, só não era tão expressiva.
O resto da viagem foi poupada de novas conversas e apenas ficava vagando de pensamento em pensamento, lembrando de seus pais, martirizando-se pela gafe falada com a irmã e com uma pequena euforia enterrada no coração ao pensar na mansão Louborne. Todavia, esse último era afogado pela culpa e pela tristeza, fazendo-a se sentir extremamente egoísta.

Depois de algumas horas na carruagem, com Summerside já muito distante, fizeram uma rápida parada em Charlottetown. Mais tarde, pararam em Carmody, uma pequena cidade já perto de seu destino.
Por orientação do médico, ambas tiveram diversas vestimentas queimadas para impedir a contaminação da patologia e tinham agora que encomendar novas vestimentas. Lucila, mais do que generosa, cobriu todos os gastos e, assim, as irmãs adentraram a loja da senhora Jeannie Pippett, costureira de renome da região.
— Boa tarde. Em que posso ajudá-las? — Uma senhora, já de idade e com olhos gentis, apareceu para receber as jovens. presumiu corretamente que fosse a senhora Pippett.

Depois de todas as encomendas e algumas dicas sobre a região, as irmãs partiram.
Apesar de terem adorado Jeannie, ambas estavam cansadas depois da viagem e só pensavam em parar um pouco. E quando Linus, o ajudante de Lucila que mandou com a carruagem, conduziu-as para fora do veículo, elas se depararam com a casa da tia-avó e um medo, misturado com êxtase, invadiu o coração de .
A mansão, melhor dizendo, que ficava ao nordeste de Cavendish, possuía um grande jardim à sua frente com uma fonte e a entrada da casa enorme. Parecia um palácio de contos de fadas. Enormes e coloridas janelas com sacadas estavam distribuídas pela casa bege de três andares. Com o céu azul de fundo, a vida da mais jovem já parecia melhor.
A governanta da casa instalou cada uma em um quarto, cada um deles enormes, com penteadeiras, espelhos, quadros e camas grandes e confortáveis, além das lindas sacadas. Essa era, sem dúvida, a melhor parte para . Além, claro, dos quartos individuais, tão diferentes daqueles que as esperavam em casa.
De volta ao enorme hall da casa, as jovens esperaram a chegada de lady Lucila Pency. A senhora, já com seus setenta anos, não aparentava mais de cinquenta, com distinta beleza, porém, certa dureza no olhar.
— Mas que adoráveis jovens as duas se tornaram. — A voz da tia-avó ecoou pelo aposento.
Ambas fizeram uma leve reverência respeitosa para a tia, na qual já cometeu o primeiro deslize e tropeçou de leve, fazendo a senhora acrescentar sem dó:
Talvez não tão adoráveis...
Se fosse dessas jovens que enrubescem, estaria completamente vermelha nesse momento. Por sorte, o constrangimento não transpareceu e apenas , muito observadora, percebeu.
— Pedimos perdão, tia Lucila. Nos encontramos abaladas com os acontecimentos recentes e, por tal razão, não nos portamos perfeitamente. Rogamos sua compreensão.
Os olhos da senhora Pency brilharam ao ouvir as palavras de . Aquela jovem era bonita, jovem, perfeitamente educada e, talvez, uma esperança para sua família e sua herança — contudo, pensaria naquilo mais tarde.
— Acredito que seja , a mais velha. Quantos anos você tem?
— Vinte e um, querida tia. E minha jovem irmã completará os seus dezenove anos daqui há breves dias.
— Sim, sim, recordo-me que uma de vocês aniversariava em maio, junto com o meu falecido marido. Acredito que, futuramente, devemos tomar providências sobre as comemorações.
discretamente cutucou , que ainda estava ofendida. Esta suspirou baixinho e se pronunciou:
— É extrema gentileza sua, tia, oferecer algo assim.
Lucila olhou novamente para , tendo esquecido que ela também falava, tão encantada estava com a sobrinha mais velha. Concordou algumas vezes e dispensou as duas.
— A senhora Taylor, nossa governanta, as convocará para o jantar às seis, portanto, estejam prontas, eu gosto de pontualidade. Caso desejem se banhar, chamem algum criado. Não façam muito barulho e não entrem na biblioteca às quatro, pois faço minha meditação nesses momentos.
, que era considerada barulhenta, atrasada e esquecida, estava logo percebendo que ia se tornar tudo o que a tia não desejava e Lucila, caso irritada, poderia revidar. Sua estadia dos sonhos já não parecia mais tão perfeita.

•••

Um pouco a oeste da desolada , encontrava-se o povoado de Avonlea. Eram poucos moradores, mas todos se conheciam. No entanto, por causa disso, a fofoca era muito constante. E a notícia que todos não paravam de compartilhar era o esperadíssimo noivado de Anne Shirley e Roy Gardner. Todos os moradores estavam felizes.
Ou quase todos.
Em uma fazenda dos arredores, encontrava-se o solitário Gilbert Blythe. Seu melhor amigo, considerado seu irmão, Sebastian, carinhosamente chamado de Bash, estava viajando na sua lua de mel com a antiga professora de Gilbert, a senhora Stacy, agora senhora Muriel Lacroix, depois de se permitirem amar de novo, visto que ambos eram viúvos. A bebê Delphine estava com a mãe de Bash, que aparecia todo fim de semana para visitá-lo, pois insistiu que permanecer ali seria um incômodo.
E quando Blythe mais precisava de amigos e de sua família, todos estavam longe.
Ele sabia que aquele dia ia chegar. Afinal, sua Anne — que, na verdade, era de outro — recusou seu pedido de casamento, namorou com Roy Gardner por dois anos e, para espanto de ninguém, agora estava noiva dele. Mas por tantos anos acreditou que eles iriam ficar juntos, foi difícil vê-la partir.
Nos primeiros dias, não conseguiu se apresentar no consultório para trabalhar, visto que cada pessoa na rua vinha lhe contar as tão belas notícias. Ficou surpreso que justamente Rachel Lynde estava tentando afastá-lo dessas fofocas, pois sabia do seu carinho pela jovem Anne.
Gilbert firmemente tentava a cada dia superar aquela que um dia ele achou ser seu amor. Era difícil responder às cartas raras, mas entusiasmadas de Anne. Afinal, ainda era seu amigo e não iria deixar nenhum sentimento egoísta afastar a boa amizade que tinham.
Mesmo um mês tendo passado do ocorrido, cada dia uma notícia nova do casal chegava.
— O arranjo escolhido foi de lírios selvagens! Imagino se a senhora Gardner concordaria. — Ouviu, um dia, a senhora Allan contar a senhora Barry.
Por isso, foi uma grande surpresa para ele quando a fofoca da cidade mudou seu foco.
Era um dia de maio e Gilbert estava no consultório, atendendo a senhora Pippett, uma das poucas da região que confiava já em suas habilidades médicas. Era muito difícil ganhar seu espaço no mercado quando ninguém da sua família tinha essa formação. Ele tinha poucos clientes, mas a senhora Pippett estava entre eles.
— Você soube da nova notícia, doutor Blythe?
Gilbert adorava quando o chamavam assim, porém, nem o adorado título poderia distraí-lo da pontada de dor, preparando-o para ouvir mais sobre Anne Shirley.
— Não, senhora Pippett, não soube. Foi a escolha do bolo de casamento de Gardner e Shirley dessa vez? — Ele indagou, um pouco impaciente, mas não querendo descontar naquela pobre senhora.
— Oh, não, menino bobinho! Essa notícia é passado.
Gilbert ficou perplexo com isso. Uma sensação de alívio, mas também de perda, passaram por seu corpo.
Jeannie continuou falando:
— Duas jovens se mudaram para a casa de lady Pancy dois dias atrás. Não sou do tipo fofoqueira, mas posso falar isso, pois fui a primeira a ter contato com elas. Moças bonitas e educadas, mas não parecem ser tão ricas quanto lady Pancy. A senhora Lynde me disse que são sobrinhas-netas da lady. Parece que os pais estão doentes e elas tiveram que sair de casa, pois era uma patologia muito contagiosa, pobrezinhas. Talvez o senhor devesse visitá-las, doutor. Talvez lhes dar esperança.
— Vamos esperar um pouco, senhora Pippett. Não sabemos se querem visitas e nem se esses boatos são reais.
— Ah, por mais que eu odeie admitir isso, Rachel Lynde nunca erra, senhor Blythe. Nunca!
Contudo, Gilbert se lembrava de uma vez em que ela errou. Uma vez em que Rachel teve certeza absoluta de que ele e Anne logo estariam noivos.
Mas ela disse “não”.
— Muito bem, senhora, realmente a sua tendinite está mais estável. Mas procure diminuir o ritmo da costura para evitar sentir essas dores muito constantemente. Em casos muito extremos, retorne aqui que eu vejo a necessidade de tomar um pouco de ópio.
— Ah, Gilbert, muito obrigada, querido! Quero dizer, doutor Blythe. — Ela se corrigiu com uma risadinha, fazendo-o corar. Sentia-se como uma criança. — Boa tarde, querido, se quiser um chá ou um café, sabe que pode me procurar!
— Cuide-se, Jeannie, e, ahn, obrigado pelo convite. — Ele disse, ainda meio constrangido.
Era difícil conquistar respeito em uma posição com apenas dezenove anos e com todos de Avonlea e Carmody tendo o visto crescer.
Depois que a senhora Pippett saiu, deixando o consultório vazio, Gilbert se apropriou daqueles instantes para refletir sobre aquele novo boato. Será que todas as notícias de Anne iriam diminuir agora? Isso era bom, certo? Por que, então, sentia que era mais um choque de realidade e que sua querida amiga estava muito mais do que estabelecida com aquele a quem amava?
Não deveria ficar feliz por ela?
Sua cabeça voltou-se um pouco para a notícia das duas jovens, sobrinhas-netas da lady Pancy. Aquela mulher estava sempre sozinha. E com muito dinheiro. O que a chegada daquelas duas jovens ia significar?
“Provavelmente, nada”, pensou. E, em seguida, a senhora Jeannie retornou para novas dúvidas, como sempre.



Capítulo 02

Os primeiros dias na casa de lady Pancy foram melhores do que esperava. Ajudou bastante que sua tia só tivesse olhos para sua irmã.
Durante a vida das duas irmãs, algo sempre foi claro: enquanto era mais cativante e enérgica, era como uma princesa. Linda, educada, sabia o seu lugar e encantar a todos ao seu redor. sempre quis ser igual a ela, porém, um dia ela simplesmente percebeu que nunca seria possível.
Mais de uma vez, a caçula sentiu inveja de sua irmã por ser o perfeito exemplo de como uma moça deveria se portar. Mas, naqueles dias, apesar de claramente querer que a tia também gostasse dela, pelo menos havia conseguido uma liberdade provisória.
Rodou a casa umas três vezes, tentando ver o que lembrava, o que não lembrava e o que mudou. Visitou os cavalos da propriedade que, quando pequena, sonhava em montar. Sentou na fonte e refrescou o rosto no jardim. Avistou um antigo balanço de madeira, que o pai implorou à tia para montar para elas. Para alguém que foi tão resistente a isso, se surpreendeu que Lucila manteve aquele brinquedo.
Os jantares não eram muito interessantes. Se resumiam em:

, você, por acaso, tem algum pretendente em Summerside?
— Não, lady Pancy, tive um pedido, porém, não achei o jovem muito adequado nem muito de meu interesse.
, querida, me chame de tia Lucila. E, para você, o que seria um jovem adequado?
— Um jovem que pensa no futuro, na família e, principalmente, sabe aproveitar oportunidades. Que saiba ser gentil em casa e firme no trabalho. Um homem por quem sua mulher de tudo faria.
... — a tia, às vezes, lhe dirigia, quebrando a aura de esperança. — A comida não irá fugir de seu prato. Poderia, por favor, se comportar?

Não bastassem os jantares, depois de uma semana na casa, lady Pancy lhes informou que elas iriam a Carmody buscar os vestidos que elas encomendaram.
tinha que controlar sua cara sempre que Lucila ia apresentar aos novos vizinhos e sempre se esquecia dela, causando desconforto entre os outros que não sabiam se deviam perguntar da terceira pessoa no canto. Por sorte, ou por azar, não esquecia da irmã, apresentando-a com todo carinho, quebrando um pouco sua irritação. Todavia, isso sempre acabava com todos elogiando a doçura e a educação da mais velha.
Chegando à loja, o humor de piorou quando a tia começou a reclamar dos lindos trabalhos da senhora Pippett.
— Estão muito simples. Como espera que Charlottetown e Canvedish vejam minha querida sobrinha? Ela precisa estar apresentável.
— Acho que a senhora quis dizer “sobrinhas”, madame. — Jeannie colocou, constrangida, ao perceber as caretas de .
— Tanto faz. O que realmente precisamos acertar são esses vestidos. Elas podem levar um do jeito que está para caso precisem de algo muito simples. Mas precisamos da moda atual estampada em cada um deles.
— Tudo bem, lady Pancy. Acredito que esses ajustes levarão mais uma semana.
— Uma semana?! E estará vestindo trapos até lá?
— Sinto muito, lady Pancy, porém. minha ajudante está ocupada com outros projetos e eu estou debilitada, não posso trabalhar muito tempo por dia.
estava já de saco cheio e sussurrou para :
— Vou procurar alguns selos para podermos escrever para papai e mamãe.
A irmã mais velha, compreensiva, assentiu e, enquanto a caçula saía, assumiu a discussão e convenceu a tia a esperar aquele prazo.
estava furiosa. Mesmo com todas as diferenças entre ela e sua irmã perfeita, nunca foi tratada tão mal em sua vida. Seus pais, às vezes, deixavam escapar comparações que a magoavam, mas sempre evitavam fazer isso e a tratavam com muito amor, fazendo-a se sentir especial do jeito que era. Estava com tantas saudades deles e tão irritada com o jeito que estava sendo tratada, e a cena a qual a senhora Pippett foi submetida, que, sem perceber, algumas lágrimas começaram a rolar em seu rosto.
Distraída pelas lágrimas que a pegaram de surpresa e pela angústia que a abatia, a jovem não percebeu que uma carruagem estava vindo em sua direção. E não teria percebido, se alguém não a tivesse puxado no último segundo.
ficou assustada. De repente, estava cercada de pessoas.
— É aquela menina de hoje mais cedo? A outra sobrinha de lady Pancy?
— Será que nunca esteve em uma cidade? Que sorte ela teve de o jovem Blythe estar atento.
— Ei, menina, tome mais cuidado, se minha carruagem quebrasse, já era para você! Isso se não morresse no acidente.
“Morrer?”, pensou, engolindo em seco.
— Com licença a todos, eu vou levar a jovem comigo para ser examinada.
, que parecia prestes a desmaiar, tentou focar o olhar na voz abafada que ouviu, mas tudo estava turvo.
— Eu... — ela se esforçou para dizer. — Não posso... ir com estranhos... minha irmã...
Porém, sem mais forças, desmaiou nos braços do estranho de quem queria fugir.

Gilbert Blythe estava intrigado com aquela menina. Deitada inconsciente no seu consultório há quinze minutos desde o acidente, ele começava a se preocupar.
Tirá-la da rua foi um transtorno, pois, além de ter que carregá-la (por sorte, estava perto do trabalho), as pessoas não saíam de cima. Aparentemente, além de quase ter sofrido um acidente e ter desmaiado, a jovem dama era sobrinha de lady Pancy.
Desde que Mary, antiga esposa de Bash, morreu aos seus cuidados, Gilbert tinha medo de não ser um bom médico. Então, mesmo que tudo indicasse apenas uma queda de pressão por susto, Blythe estava apavorado. Por causa disso, observava a estranha deitada no seu consultório a seus cuidados.
Cabelos caíam em ondas pela almofada do sofá e seu vestido verde claro se estendia pelo móvel. Tinha um rosto adorável e poderia até ser considerada atraente, se não estivesse com a boca ligeiramente aberta e babando.
A cada minuto ansioso, ele analisava as três pintas no lado direito do rosto da jovem.
Estava tão absorto, que levou um pequeno susto quando a jovem abriu os olhos, mas logo já estava analisando o estado da moça, que tentou se levantar rápido, de modo que ficou tonta novamente.
— Senhorita Pency, sente-se, por gentileza. Gostaria de conferir sua pressão.
— Não.
Gilbert franziu as sobrancelhas.
— Mas eu sou médico. Preciso fazer isso. É o procedimento padrão.
— Não. Não sou Pency, sou . Sou . Mas também “não” aos procedimentos. Devo me retirar. Minha irmã deve estar preocupada. — Ela tentou novamente se levantar e, novamente, as pernas fraquejaram. — Droga. Que fique claro que eu não desmaio nunca. E eu estou perfeitamente bem.
— Senhorita...
— O quê? Vai me informar de que eu fui uma completa desatenta e tola, doutor? Esse diagnóstico é extremamente óbvio.
O jovem médico se assustou um pouco com a reação da dama, no entanto, distraiu-se com uma pequena mecha de cabelo que ficou grudada na baba do canto de sua boca. Automaticamente, afastou aqueles fios, roçando de leve no rosto de . Só então percebeu a sua invasão e seu desleixo, corando violentamente e tentando disfarçar.
Ambos ficaram sem reação, o que tornou o momento excelente para a entrada de .
! ! Você está bem? — A irmã estava realmente preocupada, uma pequena quebra da sua geral calma e perfeita compostura.
Gilbert se afastou, enquanto as duas se abraçavam.
— Estou, . Era justamente isso que eu estava explicando ao doutor... Ahn, perdão, e o seu nome seria...?
— Doutor Blythe. Gilbert Blythe.
— Pois bem, ao doutor Blythe que eu estava perfeitamente bem.
— Sem querer soar arrogante, senhorita, mas depois de afirmar isso, a senhorita já quase desmaiou mais duas vezes e continua fraca. Permita-me garantir que você está bem, senhorita .
— Ela não está colaborando? — lançou à um olhar que o jovem médico presumiu ser bem comum. — Vamos, faça logo. Tia Lucila já foi embora de carruagem com os vestidos, então devemos alugar uma carruagem, não podemos voltar tarde. Ah, e creio que não fomos apresentados. Sou , irmã mais velha de , que vai fazer os exames agora.
— Está bem. — Disse, finalmente rendida.

Após alguns momentos de análise, Gilbert pôde conferir que realmente houve uma baixa na pressão, que logo se normalizou. Enquanto isso, a jovem contava à irmã sobre o quase acidente, embora nem , nem Gilbert, tivessem acreditado na desculpa de que ela se distraiu com um pássaro. Afinal, marcas de lágrimas ainda residiam em seu rosto. Porém, depois de se comportar tão mal, ele não comentou nada sobre o assunto.
— Procure ficar de repouso o resto do dia, beber bastante líquido e comer bem, especialmente algo mais salgado. Caso sinta algum mal-estar, pode retornar ou mandar alguém de sua casa me chamar.
— Casa de lady Pancy. — Ela corrigiu, muito formal.
— Exato. Peço perdão se lhe ofendi em algum momento de nossa consulta e espero encarecidamente que preste maior atenção às ruas. — Ele levantou uma sobrancelha, avaliando aquela nova jovem que estava quebrando suas expectativas como sobrinha-neta de uma lady bem afortunada.
Eles trocaram um breve olhar, antes que a mais velha o agradecesse e se despedisse, alegando que logo o sol iria se pôr.
— Tenha uma excelente tarde, doutor Blythe. Sou profundamente grata por salvar a vida da minha irmã e providenciar-lhe conforto durante um momento frágil, além de atendê-la.
— Não há de quê, senhorita . Este é apenas o meu trabalho. E digo apenas que foi um prazer conhecê-las e espero vê-las mais pela região, mas, de preferência, não em meu consultório, sem ofensas.
riu e esboçou um sorriso perante aquela cortesia.
— Obrigada mais uma vez por tudo, embora eu já estivesse bem desde o início, e entenda: eu não desmaio. Mas, de qualquer jeito, obrigada por não me deixar ser esmagada por uma carruagem. — Ela desatou a falar, forçando uma risada no final e saindo apressada, sem dar ao Gilbert tempo de processar aquilo.
Na carruagem, no colo da irmã, , enfim, chorou todo o medo que sentiu naquela tarde, na qual algo sério poderia ter acontecido.
No consultório, Gilbert estava estupefato com o jeito daquela nova moça, um pouco preocupado e curioso. E, pela primeira vez em alguns meses, permitiu-se sorrir sem forçar.



Capítulo 03

A segunda semana na casa da tia estava se aproximando do fim e estava angustiada de saudades dos pais. Não era do tipo que sentia muita saudade, conseguia viver afastada por um tempo sem se desesperar com a ausência dos outros, mas o estado de Mary e Paul, junto com a falta de notícias, deixava-lhe com um gelo no estômago e a garganta apertada.
Além disso, as atitudes de lady Pancy se mantinham as mesmas: colocou para meditar com ela todas as tardes e, de manhã, ficavam meia hora no jardim conversando; e depois, ia estudar com um tutor contratado às pressas. Teoricamente, ele era para ambas as irmãs, mas nem , nem a própria tia, davam a mínima para sua presença na aula, de modo que a jovem só compareceu uma vez e não retornou.
Com isso, cada vez menos ela conseguia ver a irmã. Elas só saíam de casa para ir à igreja aos domingos, no entanto, poucos se dirigiam a elas, visto a posição de respeito de Lucila.
No segundo dia, falaram com uma vizinha rapidamente, que se encantou com , mas logo depois teve sua companhia dispensada pela velha senhora.
Apesar de adorar a liberdade que tinha pela casa, já não via mais novidades ali. Gostava de ir para o jardim — apenas quando a tia lá não se encontrava —, ficar um pouco no balanço, olhar os equinos de vez em quando — mas ainda sem coragem para cavalgar — e, longe dos horários de meditação da tia ou das aulas de , passava na biblioteca e contemplava suas enormes prateleiras, mas sempre confusa sobre que obra escolher.
Depois de dois dias apenas contemplando, escolheu o romance “Emma”.
— Emma, Emma, você não está ajudando ninguém assim! — comentou o livro em voz alta para si própria.
Falar sozinha estava virando um hábito.
“Uma flor? Para mim? Que gentil da sua parte, minha cara ! E, ainda por cima, ofereceste-me uma singela margarida, uma de minhas preferidas!”, falou uma vez com si própria no jardim.
É claro que as notícias chegaram aos ouvidos de lady Pancy, que ficou horrorizada com a sobrinha delirante. Afastou ainda mais da irmã e olhava horrorizada para a jovem em cada jantar.
, distraída, não percebeu o quanto a tia estava assustada com ela e, na verdade, só descobriu sobre os horrores de Lucila, conversando um dia com a senhora Taylor.

— Bom dia, senhora Taylor. — A jovem disse em uma manhã, descendo as escadarias correndo.
— Meu bom Deus, milady! Que susto você me deu! — A governanta, beirando os seus cinquenta anos, ficou pálida com aquela aparição.
— Desculpe-me! Fiquei animada para terminar logo esse livro. Que romance! Vou sentar no balanço para ler agora.
— Atenha-se a guardar seus pensamentos para si, senhorita. — A senhora Taylor não pôde deixar de colocar, apreensiva.
parou por um momento, confusa.
— E qual seria o objetivo desse conselho, senhora?
A governanta ficou envergonhada, porém, não podia mais esconder nada.
Lady Pency anda apreensiva com a senhorita pensando alto por estes cômodos. Preocupada com... sua saúde mental. — Ela completou, quase em um sussurro, trêmula.
A jovem parou para refletir. Então aquela brincadeira inocente estava atormentando verdadeiramente sua tia-avó? Soltou um risinho ao imaginar o que Lucila faria se ela começasse a falar sozinha no jantar.
— Não há graça nenhuma nisso, milady. Ontem mesmo ela estava considerando chamar um médico.
O sorriso de se apagou e ela entendeu a seriedade do assunto.
No resto do dia, ela se conteve para acabar com qualquer brincadeira, não queria ter que envolver nenhum doutor num pequeno passatempo bobo. Ainda mais quando a última vez que encontrou um, estava tão atordoada, que foi uma completa ignorante.

À noite, lady Pancy estava bem menos tensa, embora ainda atenta para qualquer esquisitice da sobrinha. , então, trouxe um assunto que algumas poucas vezes rondou a cabeça de .
— Querida tia, acredito que deveríamos contar a que oficializamos o seu baile de aniversário. Será na próxima quarta e nós duas já escrevemos alguns convites que demorariam a chegar aos seus destinatários. Por que não escreve os restantes destinados à vizinhança, irmã?
ficou um pouco surpresa com aquilo e um pouco entusiasmada. A irmã sabia que ela adorava escrever cartas, embora, de preferência, não modelos prontos. Mas sabia que aquilo seria uma boa distração. Sem contar que nunca teve um baile de aniversário.
— Essa será uma ótima oportunidade. — A tia falou, surpreendendo . — Vocês precisam de uma apresentação digna à sociedade e poderemos receber ilustres convidados. — Lucila lançou alguns olhares para , que a mais jovem irmã não compreendeu.

•••

No dia seguinte, levantou cedo e começou a escrever convites a toda Carmody, Canvedish, Avonlea e Charlottetown. Não conhecia quase nenhum dos nomes, tendo reconhecido apenas a senhora Jeannie Pippett e o doutor Gilbert Blythe.
Ainda se envergonhava toda vez que pensava no jovem médico, mesmo que, com a visão embaçada, nem se lembrasse muito de seu rosto. Ficou indagando como ele realmente seria, se ele viria e, principalmente, bom Deus, que ele tivesse esquecido seu comportamento lastimável naquele consultório!

•••

Depois de passar a semana inteira revezando entre o consultório e trabalhar na fazenda com Elijah, filho da antiga esposa de Bash, Mary, Gilbert precisava de um descanso. Elijah estava morando com sua esposa desde que se casaram, há dois meses, e ia passar o fim de semana com ela, de modo que ficar em casa significaria o mesmo que ficar sozinho.
Decidiu, então, aceitar um convite muito antigo de Moody Spurgeon, seu antigo colega da escola. Por meses, Moody chamou Blythe para um encontro semanal em uma taverna próxima. Apesar de não ser muito seu estilo, sabia que estava afastando os garotos há um tempo e que, apesar de não serem melhores amigos, era uma afinidade que valia a pena manter.
E foi assim que, na noite de sábado, Gilbert acabou encontrando Moody, Charlie Sloane e até mesmo Billy Andrews.
Ele entrou na taverna escura e a surpresa foi tão grande, que Moody derrubou a própria bebida no chão.
— A bebida está me fazendo alucinar ou eu realmente estou vendo Blythe aqui?!
Todos os jovens foram cumprimentar o antigo colega com abraços calorosos, já estando levemente alterados pelo álcool. Gilbert aceitou apenas um gole, nunca tendo sido muito fã.
— E como anda a vida, doutor Blythe? — Charlie zombou dele.
— Pelo menos alguém aqui terminou a faculdade. — Gilbert retrucou com humor, sabendo que Charlie nunca tivera o menor interesse nisso e não se importava com essa questão, já que ia administrar a fazenda de seu pai no futuro.
— E as moças de Carmody? Fingindo muito desmaio apenas para te verem? — Billy caçoou.
— Segura a onda aí, Andrews. — Moody o empurrou de leve.
— O quê? — Gilbert perguntou confuso, levantando uma sobrancelha.
— Ora, Avonlea só comenta das sobrinhas de lady Pancy e de como você socorreu a mais tola delas. Pelo menos era bonita? — Billy continuou.
— Billy, você ‘tá forçando a barra. — Charlie falou, embora um pouco patético, já com um ar bêbado.
— Mas isso não foi semana passada? — Gilbert estava um pouco apreensivo.
— E daí? Você ‘tá fugindo do ponto principal, Blythe. Era bonita?
— Era uma paciente.
— Ah, tenho certeza que era bonita. Pena que ainda não a encontrei. Ainda. — Andrews colocou com uma risada, que deixou Gilbert um pouco desconfortável. — Ah, se eu fosse você, tendo uma moça assim inconsciente aos meus cuidados...
— Billy, é melhor você parar de falar antes que alguém te soque. — Blythe falou com um humor fingido, apenas para não estragar a conversa.
— Ele ‘tá certo, Billy. E por isso precisamos de mais uma rodada! Ao Gilbert Blythe! — Moody tinha ido de animado para completamente bêbado durante aquela conversa.

Mais tarde, Gilbert chegou exausto em casa. Prometeu a todos que se esforçaria mais para aparecer, porém, não sabia dizer se aquela era uma vontade real.

•••

No dia seguinte, voltando da Igreja, o médico percebeu que havia recebido algumas cartas. A primeira, trazia notícias de Bash:

Caro Gilbert,

Quando essa carta chegar até você, já devo estar no meu caminho de volta. E espero não encontrar a casa incendiada. Espero que os vizinhos tenham se compadecido e te alimentado, porque sem a minha mãe, te resta apenas comer maçã todo dia, já que elas nascem prontas.
Você reclamou de falta de notícias na última carta. Você queria que eu passasse a Lua de Mel trocando cartas com um garoto? Você vai matar sua futura esposa de tédio!
Não, não vou escrever mais.

Se cuide,
Sebastian

Gilbert ria e revirava os olhos lendo a carta. Quantas saudades, ele pensava.
A segunda carta trazia um nome que lhe dava alguns arrepios. Piscou algumas vezes para ter certeza que não estava alucinando:

Querido Gilbert,

Como tudo está aí em Avonlea? Como vão os pacientes? Espero que não estejam te dando trabalho! Ou talvez eu deva desejar que estejam, já que você precisa trabalhar, mas me parece simplesmente cruel o menor ato de imaginar este desejo.
Hoje, Dorothy, irmã de Roy, creio que deve se recordar dela de minhas cartas regressas, veio me perguntar o significado de “algésico”, minha palavra da semana. Recordei de seu presente precioso de anos atrás, aquele singelo dicionário de bolso, e procurei para lhe mostrar que significava sofrimento. Para um tamanho tão questionável, ele é esplêndido!
Sinto saudades da época de escola, embora você fosse mais irritante lá. Que reviravolta hoje em dia cultivar tão singular amizade!
Não devo me demorar, pois estou muito cansada. Quem diria que planejar um casamento pudesse ser tão exaustivo?! Uma linda expressão de amor nascida de uma tragédia, porque minha mente está tão cansada, que já prevejo que farei alguma grande besteira.

Um abraço,
Anne

P.S.: Que fique claro que eu já sabia o significado da palavra. Só usei o dicionário para parecer mais formal.

Gilbert não sabia quanto tempo ficou ali, lendo e relendo aquela carta. Todas as emoções possíveis passaram por seu peito ao analisar aquela caligrafia. Anne, por que mesmo depois de tantos anos, não podia simplesmente esquecê-la? Sabia que estava aos poucos melhorando e seguindo em frente, afinal, só nos últimos meses estava realmente se forçando a acreditar que tinha perdido aquela que jurava ser seu amor. No entanto, apesar dos seus progressos, haviam dias em que a dor da lembrança era tanta, que nada parecia haver mudado.
Dias como aquele.
Passou para a terceira e última carta, com uma caligrafia que lhe era nova:

Para o doutor Gilbert Blythe:

Convido você para celebrar o meu baile e jantar de aniversário na mansão Louborne, no dia 25 de maio, às 19 horas. Será uma honra contar com sua presença.

Respeitosamente,

Gilbert precisava de uma distração, não uma taverna com perguntas idiotas e nem mais trabalho que seu corpo não aguentasse. Precisava de uma distração e só havia comparecido a um baile uma vez, na época da faculdade.
Não seria a oportunidade perfeita de aproveitar o tempo?
Aliás, desde que Billy fez suas perguntas desrespeitosas, aquela estranha paciente, às vezes, lhe vinha em mente. E isso era melhor do que ter uma jovem noiva em seus pensamentos.
Estava mais do que decidido. Não adiantava ficar pensando em Anne. Ele tinha que se ocupar! Mas é claro que pensou nela algumas vezes, afinal, no mínimo, tinha que escrever uma carta de volta.
— Malditas convenções sociais. — Ele murmurou para si mesmo.



Capítulo 04

adorava bailes. Quando era criança, sonhava em acompanhar nas várias festas que sua família frequentava, mas, conforme ela foi crescendo, foi entendendo que as pessoas não podiam e nem queriam ficar gastando seu dinheiro em celebrações como essas, de modo que poucos ainda aderiam essa tradição.
A vida para os nunca foi muito difícil, então ela era do tipo que apoiava esses gastos. Afinal, para , apenas serviam para deixar todos felizes.
A mansão Louborne estava deslumbrante. A senhora Taylor passou o dia todo de um lado para o outro, recebendo bebes e comes, ordenando a limpeza do grande salão e posicionando mesas e adereços. A jovem só parou de olhar tudo, quando foi forçada a se arrumar.
Ela e provaram os vestidos novos, animadas como duas crianças na noite de natal. O vestido de era lilás, com detalhes de renda branca contornando os seios e os braços. Já o de era creme, justo até a cintura, onde pairava uma fita preta de seda amarrada em um laço. Ambas fizeram o cabelo e passaram um pouco de maquiagem, ficando, então, satisfeitas com o resultado.
Elas desceram as escadas para se juntarem aos convidados, sentindo-se quase como princesas. estava encantada com o salão, que parecia ainda maior e mais brilhante com aquela decoração. Uma banda estava posicionada no fundo, tocando uma melodia extremamente agradável.
, querida, venha receber os convidados. — Lady Pency chamou da entrada de maneira até gentil e carinhosa. Muito diferente do tom usado para a outra sobrinha.
— Aproveite a noite e o seu aniversário, irmãzinha. — disse, amavelmente.
logo estava sozinha e um pouco da magia se foi. Achou que pelo menos no seu aniversário estaria na presença de sua irmã, mas até isso ela perdeu. No entanto, estava determinada a não deixar sua tia estragar tudo.
Desceu para encontrar alguns convidados no salão, mesmo com um frio na barriga de não conhecer ninguém.
— Boa noite, como vão? — Ela se aproximou de um casal que pareciam estar nos seus cinquenta anos. — Espero que tudo esteja agradável. É um prazer receber vocês aqui.
— Você deve ser a jovem . — Os olhos da senhora que estava falando brilharam quando confirmou. — Parabéns pela linda festa e pelo seu aniversário. Eu sou Eliza Barry, de Avonlea, e esse é meu marido.
Após uma pequena conversa educada, ia se retirar para falar com outros convidados, quando a senhora Barry falou.
— Sabe, eu tenho uma filha da sua idade. Diana é uma ótima menina, acredito que vocês iriam se dar muito bem. Ela está por aí com seu noivo, Fred Wright. Mais tarde eu gostaria de apresentá-las.
— Seria um prazer. — Ela respondeu educadamente e foi para o próximo convidado.

Passou os primeiros quarenta minutos conhecendo vários daqueles que seriam seus vizinhos por tempo indeterminado, moradores de toda a região. Já estava ficando exausta, quando uma apresentação em particular lhe chamou a atenção.
Monroe. — A jovem, que parecia ter a mesma idade de , cumprimentou-a.
Algo nela lhe interessou e, por isso, convidou-a para caminhar pelo salão.
Conversaram brevemente sobre a festa, um pouco sobre a estadia de , seus pais e outros assuntos. estava elogiando os docinhos de chocolate, quando ambas foram abordadas por duas figuras loiras.
, quem é esta com você? Por acaso seria a deslumbrante aniversariante? — A mais velha das moças falou com um sorriso que parecia um tanto forçado demais para a jovem .
— Era só o que me faltava... — a senhorita Monroe murmurou. — Josie, querida, sim, essa é . , essas são Josie e Gertie Pye.
— Prazer. — Ela respondeu.
— Ah, o prazer é nosso. — agora não tinha dúvidas. Aqueles dentes mostravam a mais falsa simpatia e ela nem entendia o porquê. — Embora, devo admitir, você não é... como posso dizer? Tudo aquilo que dizem de você. Mas você me entende, né, ? As fofocas, às vezes, exageram.
— Josie, o que é isso no seu rosto? — disse, agindo de forma genuinamente preocupada que até ficou procurando o que havia de errado. — Você está verde porque está enjoada ou é apenas a inveja? — Ela completou com um sorriso doce, mas fingido.
As irmãs Pye fecharam os olhos com raiva, tão simultaneamente, que deixaram as outras moças com nervoso, até que, para alívio de todos, se retiraram.
soltou a respiração que nem percebeu que estava prendendo. Aquela presença realmente foi perturbadora.
— Acho que devo te agradecer, , embora esteja preocupada com o que elas podem falar de você.
, você vai aprender que, com a família Pye, não importa se você é o humano mais agradável que já pisou em Canvedish, eles vão te criticar. E não há de que. Confrontar uma Pye foi, por enquanto, o ápice da minha noite. Nada contra sua linda celebração. Inclusive, pode me chamar de .
— E você pode me chamar de , . — Ela falou, sorrindo.
Esperava ter feito sua primeira amiga.
Depois de mais algumas palavras trocadas, elas tiveram que se separar para cumprimentar mais pessoas, prometendo manter contato. foi para perto de sua irmã na entrada, porém, parou ao ver que ela estava acompanhada.
— Ah, . — Lady Pency falou, avistando-a. Mais sorrisos forçados. — Devo apresenta-la ao conde Travis Phillips, que veio da Inglaterra a nosso convite. Eu e o pai dele somos velhos amigos.
— Encantado, senhorita . E, devo dizer, que linda festa. — Ele, no entanto, olhava para , que estava corada.
fez uma reverência, enquanto entendia o porquê de sua tia avó ter aceitado fazer o baile. O motivo de elas terem escrito cartas para convidados distantes. A necessidade de um ótimo vestido. Ela entendeu que Lucila estava tentando arranjar um casamento para a irmã. E, para desgosto de , não parecia muito contrariada.
Enquanto ainda assimilava tudo aquilo, ouviu alguém dizer:
— Doutor Blythe, que ótimo te ver essa noite!
A jovem olhou em direção à porta de entrada e seu olhar parou ali. Diversas palavras inapropriadas vieram a sua cabeça quando ela olhou Gilbert Blythe. Como, em sã consciência, ela conseguira esquecer alguém com aquela aparência?
Seus cabelos pretos e encaracolados estavam muito bem ajeitados, embora com alguns fios rebeldes. Ele estava lindo com paletó. E seu rosto... tudo parecia simplesmente combinar. Seu maxilar, sua boca e seus olhos... Olhos cor de avelã...
Olhos cor de avelã que estavam a encarando, confusos, com uma sobrancelha arqueada.
se recompôs rapidamente.
— Boa noite, doutor Blythe. — E saiu para se esconder entre os convidados, tentando esconder seu constrangimento.
Como pôde ficar encarando o homem sem nenhum pudor?! Porém, ela estava atordoada com tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo. E não era culpa dela Gilbert ser tão atraente...
Ai, se sentia tão envergonhada!
Mais uma vez, agradeceu aos céus por não corar.
Ainda intrigada com o doutor, esbarrou, sem querer, em um convidado, derramando metade do conteúdo de seu copo. Clamou milhares de desculpas e se afastou, sem saber se a situação poderia piorar.
Aquela seria uma longa noite!

Era preciso compreender um fator importante sobre corações partidos e superações: assim como existiam dias que a dor parecia infinita, o amor parecia inesquecível e rogava-se aos céus por um milagre — esquecimento ou retorno da pessoa amada —, existiam também os dias médios. Os dias médios eram aqueles que se lembrava da pessoa, mas, uma vez ou outra, conseguia se desprender e viver além daquilo. E, ainda mais, existiam os dias bons. Os dias bons eram os dias que se pensava que os anjos ouviram os pedidos e a superação chegou. Quase não se pensava no antigo amado e não sentia nada ao pensar... claro que no dia seguinte já era possível estar de novo em um dia ruim.
Mas, o que importava, era que Gilbert Blythe estava em um dia bom. Sabia que toda a Avonlea estaria no baile, assim como outras vizinhanças, mas aquilo não o assustou. Uma hora ou outra tinha que encarar as pessoas e estava determinado àquilo.
— Boa noite, senhor e senhora Sloane. Como vão? — Gilbert se aproximou para cumprimentá-los, surpreendendo os vizinhos com seu bem-estar.
— Gilbert, que prazer te ver essa noite. — O senhor Sloane falou. — Charlie estava me contando que esteve com você esses dias. Bom garoto, o meu Charlie. Vai nos deixar ricos administrando a fazenda comigo.
— Certamente, senhor. — Gilbert falou, um pouco arrependido de ter se aproximado e começado a conversa. Esquecia que os Sloane podiam ser bem falantes sobre eles mesmos. — Espero que os senhores tenham uma noite muito agradável. — E se retirou, tentando não desanimar com aquele primeiro encontro.
Festas eram assim, exigiam educação e conversas fiadas.
Quando finalmente adentrou a mansão, ficou encantado. O grande salão estava preenchido com uma melodia incrível, rodeado de pessoas conversando, bebendo e dançando. Tudo parecia brilhar naquela imensidão. Então, alguém o tirou de sua admiração:
— Doutor Blythe, que ótimo te ver essa noite! — Era Prissy Andrews, irmã mais velha de Billy, que estava junto de Jane, irmã mais nova que estudou com Gilbert.
— Prissy, Jane, boa noite! Como estão as duas? Aproveitando a noite, senhoritas? — Ele disse, educadamente.
Continuaram uma conversa curta, até que Gilbert se despediu, sentindo sua nuca arrepiar com uma sensação esquisita.
Quando se virou para trás, encontrou ninguém menos que a própria anfitriã o encarando. E ela não parava.
Ele olhou curioso para ela, arqueando uma sobrancelha. Ela pareceu ter levado um susto e falou:
— Boa noite, doutor Blythe. — E se perdeu no meio dos convidados.
Gilbert ficou um pouco confuso e transtornado, mas compreendeu que a jovem, ao olhar para ele, devia se recordar do acidente traumatizante.
Suspirou, esperando que aquela impressão passasse.
Começou a andar pelo salão para cumprimentar a todos e se servir.
— Gilbert! — Moody se aproximou do jovem. — Que bom te ver aqui!
— Bom te ver também, Moody. — Blythe disse, sorrindo sincero.
O velho amigo, mesmo com seu afastamento, insistiu na amizade deles e perceber as pessoas que o consideravam até nas horas ruins, foi muito importante.
— Esses dias estava vendo alguns tacos de hóquei à venda. Modelos novinhos! Lembra-se, Gilbert, de quando jogávamos entre as aulas? — O jovem Spurgeon comentou, apoiando-se em uma mesa e quase derrubando tudo que estava em cima.
Gilbert levou um susto e o ajudou a colocar tudo de volta no lugar. Aquilo tudo era muito caro para se manter perto daquele garoto desastrado.
— Enfim, bons tempos. Afinal, por que não marcamos um dia para jogarmos uma partida?
— Sabe, Moody, estou um pouco atolado com o trabalho na fazenda. — Ele viu o amigo suspirar e logo completou. — Mas uma tarde jogando não faria mal, certo?
— Esse é o bom e velho Gilbert Blythe! — Moody falou, erguendo sua taça.
Gilbert entrou no clima, erguendo um copo e comemorando também, depois caindo na gargalhada.
Naquele momento, Ruby Gillis passou e o amigo de Blythe começou a se ajeitar no lugar.
— Depois de todos esses anos, ainda é o velho Moody, com medo de agir. — Gilbert provocou, vendo o outro ficar vermelho.
— Eu não tenho medo de falar com uma garota! — Ele completou, envergonhado e irritado.
— Então convide-a para dançar. — O jovem médico falou, empurrando Moody que estava quase tropeçando nos próprios pés.
Ali perto, Ruby olhava corada para o garoto desastrado, achando tudo encantador.
— ‘Tá bom, ‘tá bom, tô indo! — Moody falou, ficando cada vez mais vermelho ao se aproximar de Gillis e lhe chamar para dançar.
Os dois saíram dali como se fossem os únicos na festa.

Gilbert já devia estar há mais de uma hora na festa, quando Rachel Lynde se aproximou.
— Ora, bem, veja se não é Gilbert Blythe. Como você está, garoto? Está mais forte, mas continua magro. Anda trabalhando na fazenda? Está comendo direito?
— Boa noite, senhora Lynde. — Ainda estava digerindo todas as perguntas dirigidas a ele. — Estou bem, obrigado, e bem alimentado também. — Teve que rir perante aquela situação. — O trabalho na fazenda está puxado, mas acho que temos que agradecer por isso. Como está Thomas?
— Aquele velho já está andando por aí e bebendo como se fosse vinte anos mais novo. Não duvido nada que amanhã vai passar a manhã inteira reclamando para mim de dores nas costas. E ele acha que vou escutá-lo? Bom, Deus sabe que só o faço por ser uma boa mulher. E a nova menina? Avonlea não recebe um morador de fora há tempos, desde... Bom, soube que você e Jeannie foram os primeiros a conhecê-la. Vi ela hoje. Jovem bonita, mas precisa engordar, educada, mas parece um pouco atrevida. A irmã parece um excelente partido, mas já parece estar rendida pelo conde. Esses malditos ingleses, Deus me perdoe, roubam nossas terras e, mais tarde, voltam para roubar nossas meninas.
— Se a senhora diz... — Gilbert colocou, embora soubesse que aquilo era mais um monólogo.
Ouvia tudo intrigado, uma das sobrancelhas levantadas e rindo de vez em quando.
— Mas, oh, céus, esqueci do mais importante. Eu vi que Billy Andrews já dançou com ela uma vez, parecia um cachorro velho marcando território. Mesmo assim, ela recusou outro convite. Garota esperta, evitando escândalos. Diferente daquela garota, Ruby Gillis, dançando por aí com Spurgeon três vezes. Três vezes!
Mesmo com o jovem claramente perdido, Rachel não parava de tagarelar.
— De qualquer jeito, a mais jovem pode não parecer perfeita, mas não é bem dispensável.
— Perdoe-me, mas não compreendo o que quer dizer, senhora Lynde. — Gilbert colocou, um pouco incomodado com o jeito que a menina estava sendo avaliada.
— Estou falando, meu bom Deus, que você deve chamá-la para dançar, Gilbert Blythe! Não desperdice boas chances, menino!
Ele continuou a encarando, em choque.
— Garoto, eu não tenho que fazer tudo! Vá logo! — Rachel saiu em seguida, indo conversar com outros convidados, embora ainda estivesse lançando olhares assustadores a Gilbert, movimentando a cabeça em direção à menina.
Ele engoliu em seco e foi em direção à , sabendo que não estaria livre disso se não o fizesse logo. Assim, bem envergonhado, ele se aproximou da jovem, que estava conversando justamente com uma das últimas pessoas que queria ver: Diana Barry.
— Boa noite, senhorita . — Então olhou para o lado e completou, tentando ser simpático e não desanimar. — Diana. — Respirou fundo e continuou. — Meus parabéns, senhorita. E que bela festa você está nos proporcionando. Não temos algo assim há muito tempo.
— Era o que eu estava contando para ela, Gilbert. — Diana falou e lá estava aquele olhar que ele mais do que nunca queria evitar: o olhar de pena. — Bom, eu vou pegar uma bebida. Vejo vocês mais tarde. Foi um prazer conhecê-la, !
— O prazer foi meu, Diana. — sorriu, mas parecia notar que algo estava errado.
No entanto, antes que ela pudesse falar qualquer coisa, ele se apressou:
— Me daria a honra dessa dança?
Ela pareceu um tanto surpresa, mas logo assentiu e sorriu, colocando a mão sob a do rapaz. Ele a conduziu gentilmente até a parte do salão aonde todos estavam dançando.
— Então, Gilbert Blythe, apesar de ser um menino de fazenda, o senhor sabe dançar? — Ela colocou, com humor, enquanto se posicionavam para a próxima dança.
— Pode ser que as faculdades não te ensinem a dançar, mas certamente estar em uma te faz aprender. — Ele falou, começando a andar com a música que começou.
Logo, estavam um pouco distantes para conversar.
— Soube que além de médico, você tem as melhores maçãs. — falou, quando voltaram a se encontrar na dança.
Gilbert não respondeu de imediato, pois os pares haviam sido trocados.
— Soube que você está perguntando muito sobre mim...
Ela congelou sob aquela afirmação, constrangida, mas se recompôs para continuar dançando, sem olhá-lo diretamente.
“Droga”, ele pensou.
Tentando quebrar o constrangimento que causou, completou:
— E falando pouco de si mesma. Está gostando da região?
Ela sorriu, parecendo aliviada.
— É tudo muito lindo. As flores da primavera são excepcionais. O único problema é que é um pouco frio. E que eu saio pouco. — Ela fez uma careta, depois riu, enquanto rodava ao seu redor batendo palmas. — Sempre adorei a região. Só queria que as circunstâncias fossem diferentes... — ela suspirou, depois sorriu tristemente.
— Sinto muito pela situação dos seus pais. Não sei se te conforta, mas pela situação que eu soube, eles bem provavelmente irão se recuperar logo e você e sua irmã poderão retornar. — Ele falou.
— O problema é que são sempre altas probabilidades, porém, não certezas, se o senhor me entende.
— Entendo mais do que imagina. — Ele suspirou sob o olhar curioso dela. — Eu perdi meu pai com catorze anos. Minha mãe faleceu no parto. E, há três anos, perdi uma amiga para uma doença. Eu sei como é. O medo e o desespero. Mas sabe o que todos eles não tiveram que seus pais têm? Um diagnóstico imediato e inicial. Eles vão se recuperar.
parecia tocada com aquela informação e ele percebeu que, com todos aqueles sentimentos sinceros expostos, ela estava linda. Aquele vestido certamente ajudava, ela estava parecendo uma lady. Na verdade, não estava longe disso, visto sua árvore genealógica.
— Sabe, doutor Blythe...
— Pode me chamar de Gilbert. — Ele a interrompeu, fazendo-a sorrir.
— Sabe, Gilbert... — ela se corrigiu. — Você parece um bom rapaz que vai me compreender. Espero não estar presumindo uma falsa amizade, mas sinto certa... confiança em você. Não sei explicar. Mas, enfim. Eu estou... meio confusa. Como... — sua voz foi diminuindo e certo pânico se estampava no seu rosto. — Algo está me perturbando. Entalado na garganta.
— Pode continuar. — Ele a incentivou, mesmo que estivesse um pouco perdido sobre o que fazer.
— Eu sinto que é errado eu estar aqui comemorando, quando meus dois pais podem estar morrendo agora. — Ela colocou firme, depois pequenas lágrimas se formaram no canto de seus olhos.
— A senhorita precisa de um lenço? — Gilbert ofereceu, desconfortável. Não sabia como agir com meninas chorando.
— Não! — Ela respondeu, um pouco alto demais. — Eu não estou chorando. — E completou, em um sussurro. — Eu não choro.
Um silêncio um pouco desconfortável se estabeleceu e Blythe sabia que devia falar algo, depois da maneira com que ela se abriu.
— Sabe, posso não ser, nem de longe, a melhor pessoa para falar isso, mas, pelo pouco que a conheci, você parece ser do tipo... como dizer? Espirituosa. E se eu consigo ver isso, seus pais com certeza enxergam e admiram essa qualidade. Não acredito que eles iriam querer acabar com ela, te trancando em uma casa para sofrer o dia inteiro em nome deles. Na verdade, nesse momento, os dois devem estar esperando muito que você esteja comemorando. Não é errado se divertir nessa situação. Na verdade, acho que é necessário. — Assim que terminou, se calou.
E se tivesse falado a coisa errada? Desde quando era tão tagarela?
“Imbecil”, pensou consigo mesmo.
Até que viu abrir um sincero sorriso.
— Obrigada. — Foi tudo o que ela falou. E foi suficiente.
Quando se deram conta, a dança já havia se encerrado e eles se cumprimentaram, antes de se separarem.
— Gilbert! — Ele a ouviu chamar, indo atrás dele. — Eu esqueci. Se eu posso te chamar pelo seu nome, por favor, me chame de . Ou .
— Tudo bem, . — Ambos sorriram e se separaram, esbarrando-se, às vezes, durante a noite.

Gilbert foi embora duas horas depois. Afinal, tinha que trabalhar no dia seguinte. Mas só pensava que não conseguiu se despedir de , que parecia ter ocupado um espaço na sua cabeça aquela noite. Mal sabia ele o quanto Rachel Lynde estava rezando por isso.



Capítulo 05

O baile de aniversário de parecia ter acontecido em um universo paralelo. Depois que deixou de sentir culpa e se permitiu aproveitar, todos os seus problemas escorreram da cabeça e teve uma das melhores noites de sua vida. Realmente adorou — ou melhor, —, amou os docinhos, se divertiu muito dançando com Billy e Gilbert, e até mesmo conseguiu tolerar o tal conde Phillips que não desgrudou de a noite inteira.
Mas o dia seguinte ao seu aniversário foi um completo balde de água fria. Todas as preocupações com os pais voltaram redobradas. Escreveu mais uma carta naquele dia mesmo para o médico, os pais, os criados, qualquer um que lhe pudesse dar alguma resposta.

Durante os próximos dias, ficou dividida novamente entre ler, escrever aos pais, ouvir as reclamações da tia e raramente ver . A cada dia, descobria um novo cantinho preferido na enorme propriedade, de tanto que ficava rodando seus corredores (lady Pancy uma vez berrou durante seu horário de meditação por causa de seus passos ansiosos), mas, nos últimos dias, um lugar em especial ganhou a sua atenção.
No primeiro piso, nos fundos do grande salão, escondida, havia uma porta que levava a um pequeno corredor, onde a jovem encontrou uma sala apenas com muitas fotos de um casal jovem desconhecido e, ao seu lado, uma porta trancada. Diferente das outras portas da casa, era apenas de madeira e parecia muito velha — talvez mais velha que Lucila.
Por dias, ficou lendo naquele corredor, escrevendo para seus pais e, quando a dor apertava muito, imaginava o que poderia estar escondido por aquelas portas: mais fotos? Algo muito secreto? A fortuna da tia? Uma sala de fotografia?
Enfim, um dia, ao acordar e descer para o café da manhã, viu a senhorita Taylor se espreitar por aquele pequeno corredor. Seu coração palpitou de ansiedade. Será que a governanta iria abrir a misteriosa porta? Poderia se esconder na sala ao lado e pelo menos espiar quando ela entrasse... será que conseguiria ser furtiva o suficiente?
Todos os seus pensamentos e planos foram interrompidos por batidas na porta principal e, logo, a senhorita Taylor parecia ter se teletransportado para a porta, já anunciando:
Lady Pency, é o conde Travis Phillips!
Antes que seu cérebro pudesse processar, estava descendo as escadas perfeitamente arrumada, como sempre, seguida de lady Pancy, mais ansiosa do que jamais a vira.
— Ajeite-se, menina. — A tia a repreendeu baixo, duramente, antes de se virar para o conde. — Ah, Travis, que agradável surpresa tê-lo conosco em minha humilde casa!
“Humilde” seria a última palavra que usaria, mas tinha amor próprio o suficiente para não corrigir a tia-avó.
— A honra é toda minha, Lucila. — Conde Phillips colocou com um sorriso educado. — Jovem , que prazer revê-la.
fez uma pequena referência na menção de seu nome.
— E... ... — sua voz estava repleta de admiração e, constatou com horror, paixão. – Não sei como pude acreditar que qualquer outro dia fora bom, se não tive o prazer de ser alegrado por sua doce presença.
estremeceu diante de tanto flerte exagerado. Manteve-se o mais educada e quieta possível, até poder ser dispensada, quando o jovem casal saiu para passear pelo jardim. Vendo-se livre, foi correndo para aquele corredor que estava se tornando seu maior conforto.
Como aquilo era possível?! Um homem chegava e logo a irmã não conseguia nem se lembrar dela! Ela, que esteve com a irmã por dezenove anos, nas horas boas e ruins, trocada por um cara que ela via pela segunda vez.
Isso era ridículo!
Sabia que se a mãe estivesse ali, ela riria, como se entendesse de coisas que não conseguia nem imaginar e diria algo como: “um dia você vai entender, um dia você vai agir igualzinho!”, Já seu pai, provavelmente do outro lado da sala, lendo jornal, ia apenas resmungar indignado.
Mas não conseguia se imaginar agindo igual uma idiota por ninguém. Uma vez, esteve apaixonada por um amigo seu da escola, mas não ficava corando e rindo por qualquer elogio bobo. Pensando bem, ela provavelmente nunca foi elogiada assim.
“Ainda bem”, ela pensou, imaginando que provavelmente sentiria vontade de rir — ou ânsia de vômito. Seria ridículo.
Mesmo assim, apoiada naquela porta de madeira, talvez por estar meio sonolenta, começou a imaginar alguém a elogiando assim.
“Meus dias não parecem o mesmo sem ver o seu belo rosto.”, disse a voz imaginária da sua cabeça. “Sortudo será aquele que puder ouvir o som de sua risada todos os dias.”, ele continuava, delirante.
Ela realmente estava adormecendo...
“A senhorita está muito bonita, .”, ela viu o doutor Gilbert Blythe dizer.
acordou com um susto.
O que diabos estava sonhando?
Envergonhada demais, ela tentou tirar aquela cena da sua cabeça. Primeiro, ficou a noite do seu baile pensando em Gilbert, tão bonito (ainda se envergonhava de lembrar como ficou o encarando!) e tão gentil. Mas, então, o problema com os pais o tirara da cabeça, justamente.
O que faria agora que ele parecia estar voltando?

Durante todo o jantar, no qual o conde se recusou a ficar pelo horário e nunca agradeceu tanto às regras de etiqueta, Lucila muito distraída com para lhe dirigir comentários sarcásticos, os pensamentos da jovem ficavam se voltando para aqueles cabelos negros e os olhos de avelã. Nunca se sentiu tão boba na vida, mas percebia que uma parte dela parecia gostar daquilo, chocando-a.
Em uma situação normal, naturalmente falaria com a mãe ou, melhor ainda, com . Mas, com a mãe distante e sempre sob os olhares atentos da tia e suas longas tarefas, estava sem ninguém.
Com quem poderia falar sobre isso?
Já estava deitada na cama, desviando-se de pensamentos com Gilbert Blythe, quando uma súbita ideia a invadiu.

Cara Monroe,

Espero que a senhorita se recorde de mim! Apesar de nosso breve contato, senti uma imediata confiança, da qual espero desenvolver uma amizade.
Recorro a você e espero não a assustar com assuntos tão estranhos para uma primeira carta, mas...

achou muito exposto se abrir completamente com , por mais que gostasse dela, então decidiu contar uma pequena mentira:

... minha irmã, , se encontra em uma situação delicada. Ficar pensando constantemente em um garoto, especialmente pensamentos bobos, significa amor ou paixão? Ou poderia ser simples consequência de uma rotina tediosa?

Grata por sua atenção,

•••

Na manhã seguinte, ela buscou o endereço para o qual tinha mandado o convite do seu baile de aniversário e mandou a carta, ansiosa. Quatro dias depois de pensamentos constantes e nervosismo crescente, sua resposta chegava, afinal.

Querida ,

Fico imensamente feliz que tenha me escrito! Acredito, igualmente, que podemos ter uma futura amizade muito boa!
Sobre o outro assunto, avise a “sua irmã” que é possível tais pensamentos acontecerem sem compromisso, mas é preciso avaliar muitos outros fatores, então eu lhe trago uma sugestão: por que você não aparece aqui em casa no sábado, às 15 horas, para me trazer notícias mais detalhadas?
Aguardo sua resposta.

Carinhosamente,

P.S.: Você é muito “educadinha” em suas cartas!

Rindo aliviada de sua não-paixão e de não ter sido idiotice escrever a bendita carta, foi procurar a tia-avó para confirmar sua ida.

•••

Era plena quarta-feira e o assunto mais interessante que se passou no dia inteiro de Gilbert foi, novamente, as dores da senhora Pippett e seus convites para um chá, mas, dessa vez, ele preferiu recusar, alegando que precisava trabalhar na fazenda. Não era exatamente verdade, mas certamente precisava descansar para trabalhar na fazenda cedo no dia seguinte.
Mas, chegando à sua casa, ele encontrou todas as luzes acessas. Seu coração paralisou.
Era Elijah? Ele ainda estaria lá até àquela hora? Ou poderiam ser ladrões?
Ficou sério e olhou ao redor, procurando como se aproximar sem chamar atenção e, sem muitas opções, pegou um machado que estava próximo das árvores. Espreitou-se silenciosamente até a casa, porém, percebeu que sua melhor chance seria assustá-los. Assim, respirou fundo e fez a cara mais raivosa que podia, chutando a porta entreaberta, em seguida, para entrar.
No entanto, ao ver quem estava lá dentro, ele congelou. Depois, soltou o machado e correu, sorrindo, para abraçar Sebastian, que estava sentado na mesa da cozinha.
— Meu Deus, Blythe, não se pode nem fazer uma surpresa para você sem correr risco de morte? — Bash riu com seu sotaque carregado.
— Talvez, na próxima surpresa, você possa tentar não invadir minha casa... certeza que será melhor sucedido. — Gilbert falou sarcástico, mas não conseguia tirar o sorriso do rosto.
Logo depois, viu uma outra figura ali no canto, observando tudo com muito carinho.
— Senhorita Stacy! Quer dizer... Senhora Lacroix... Como você está?
— Eu estou bem! E, Gilbert, eu sei que isso pode ser esquisito a princípio, mas, por favor, me chame de Muriel. — Ela disse rindo, antes de eles se abraçarem.
Gilbert tinha um grande carinho por ela. Ela sempre o incentivou, ajudou-o a conseguir uma vaga na Universidade de Toronto e, depois, ainda fez o seu melhor amigo e irmão feliz novamente.
— Então, como foi a Lua de Mel? — Gilbert falou, sentando-se perto deles.
— Você provavelmente não quer saber. — Bash provocou, colocando os pés na mesa.
— Sebastian! Ele só quer saber sobre os lugares que passamos, não é? — Muriel disse, enquanto servia um chá que tinha acabado de fazer com alguns biscoitos que já estavam na mesa. — Ah, Gilbert, foi incrível! A praia, o lago de pesca, eu peguei um peixe desse tamanho! — Ela separou bem os braços. — Claro que esse aqui... — ela cutucou Bash. — Mal conseguiu pegar o menor de todos.
— Eu estava distraído com outras coisas. — Sebastian sorriu atrevido. – ‘Tá olhando o que, Blythe? Tem mais o que fazer não?
— Certamente tenho, achei só que você poderia ter sentido saudades e por isso estou me foçando a ficar nessa cozinha.
— Saudades de um garoto magrelo e folgado? Certamente que não. Que biscoitos gostosos! São de minha mãe, né? Só não morreu de fome por causa dela. — Então o seu olhar se desviou para a pilha de cartas. — Vamos ver o que temos aqui... Jornal, jornal, ah, minha carta! O que mais? Jeannie reclamando de dor... ainda é sua única cliente? Que foi? Você ainda vai conquistar eles e... — ele olhou para uma carta e arregalou os olhos. — Muriel, querida, por que não traz para ele ver todas as conchinhas que você colecionou na praia?
— Não são “conchinhas”, Sebastian, eu já te disse! São fósseis de animais marinhos, como mariscos e... — ela percebeu o olhar de Sebastian. — Claro, vou pegar.
Ele mal esperou a esposa sair da sala, explodindo.
— Que porcaria é essa? — Sebastian jogou para Gilbert a carta de Anne. — Eu adoro aquela menina, mas para alguém tão inteligente... Como você está?
— Não sei. — Gilbert respondeu, sinceramente. — E não chame de porcaria, é só uma carta de... uma amiga.
— Uma amiga que te beijou e depois começou a namorar outro? Me poupe, Blythe, isso não é só uma carta.
— Olha, é o que é. Somos amigos. Eu só tenho que me acostumar com isso e isso é um bom choque de realidade.
— Um bom choque de realidade? Isso só te faz pensar mais nela. Certeza que depois você já ficou cheio de vontade de enviar outra carta e ter mais notícias dela.
Gilbert ficou envergonhado ao perceber que quase fez aquilo mesmo. Levou um belo tapa na cabeça de Bash.
Ei!
— Isso é para você pensar melhor em como você tem que esquecer a Anne.
Os dois ficaram quietos em seguida, até que Sebastian pegou a última carta e, tentando melhorar o clima, falou:
? Eu saio e você já arruma convite para festas de desconhecidos? Talvez você esteja melhor do que eu pensei.
— Para, Bash, não fala besteira. É só uma moradora nova. É sobrinha-neta daquela ricaça lady Pancy. Ela e a irmã se mudaram para cá logo depois que você viajou. Todos da região foram convidados para essa festa.
— E aí? Conta mais!
— Cuidado para não tirar o cargo de Rachel Lynde de maior fofoqueir... ai! — Levou mais um tapa, agora na nuca. — ‘Tá bom, ‘tá bom, eu só as vi duas vezes! A mais nova parece ter a minha idade ou menos e quase foi atropelada por uma carruagem, eu a ajudei e nesse dia eu conheci a mais velha também. Depois, as encontrei de novo nesse baile, mas só falei com a mais nova, que é essa .
— Então você ‘tá tendo bastante contato com essa ... — o sotaque de Sebastian parecia deixar a ironia muito pior.
— Para de achar que tudo tem segundas intenções! Além disso, não sei se ela realmente gosta de mim, ela meio que... brigou comigo por ajudar ela. Mas depois foi simpática comigo quando dançamos.
— Vocês dançaram?! E eu entendo a coitada, quem não quer brigar com você? E isso é mais ponto para ela, né? Só falta ela te bater e logo você vai estar caidinho.
Sebastian teve que se desviar de um biscoito que voou em sua direção.
— ‘Tá precisando praticar mais a mira, Blythe. Achei que sendo um doutor, você ia saber ser mais certeiro.
Logo, uma pequena guerra se estabeleceu na cozinha e só parou quando Muriel voltou com sua coleção de conchas.

O resto da noite foi extremamente agradável e o coração de Gilbert apertou quando eles se retiraram, já de noite, para dormirem na casa deles. O seu ânimo melhorou muito, de uma forma que só Sebastian conseguia fazer. Porém, não conseguia tirar da sua cabeça toda aquela conversa sobre Anne e sua necessidade de realmente esquecê-la... e sabia que não seria a única vez que Bash ia zombar dele por causa da nova garota, mas apenas a primeira.
Aquele era Sebastian: sempre o perturbando.
Mas Gilbert sabia. Por trás de todas aquelas implicações, ele encontrava, ali, o amor de um irmão.



Capítulo 06

nem acreditava que realmente estava a caminho da casa de . Deu a imensa sorte de o conde ter marcado de voltar naquele mesmo dia e, para lady Pancy, manter a sobrinha-neta mais nova afastada, provavelmente seria bom para prevenir que ele não se afastaria, então recebeu permissão para visitar a amiga.
nunca comemorou tanto o fato de ser considerada um empecilho. Até prendeu o cabelo em um alto coque, colocou um vestido bem arrumado e levou uma sombrinha. Não havia como estar cumprindo melhor as regras de vestimenta social.
Escreveu mais uma das centenas de cartas que enviava aos seus pais pedindo notícias. Depois, relembrando as palavras de Gilbert Blythe em seu baile de aniversário, tentou colocar aquela tarde como sua prioridade, afastando pensamentos de culpa e tristeza.
só desejava profundamente (ou talvez nem tanto assim) que esse fosse o único momento que pensasse em Gilbert desde então: com apenas um conselho justo de ser lembrado. Mas não. Quando não estava pensando em seus pais ou na porta trancada, acabava pensando nele. Frustrou-se tanto quando não conseguiu ler um livro, porque seus pensamentos ficavam se desviando para ele. Não se achava completamente culpada, ela era uma menina vulnerável, que acabou achando de pretexto pensar em um garoto bonito, gentil, inteligente... porém, isso precisava parar. E, se tudo corresse bem, uma tarde de conversa com tiraria o médico de sua cabeça.
Quando a carruagem finalmente parou, se encontrou diante de uma casa marrom-clara de dois andares e um belo jardim. Tropeçou ao descer da carruagem de tão animada que estava.
Na bela porta de madeira, ela ajeitou os últimos fios de cabelo e bateu à porta. Uma senhora, que ela imaginou ser a governanta, apareceu ali.
— Boa tarde, sou . Fui convidada pela senhorita .
— Mais convidados? Um segundo, chamarei a senhorita Monroe.
“Mais convidados?”, pensou , confusa. Logo, no entanto, uma animada estava à sua frente.
— Obrigada, senhora Prewett. ! Você veio mesmo! — A anfitriã começou a arrastá-la para dentro da casa, mas, depois de fechar a porta, fez parar e sussurrou. — Meus tios e uma de minhas primas vieram me visitar, eu não estava sabendo disso, por isso, vamos ter que passar por eles primeiro. Mas fique tranquila que o assunto da “sua irmã” não foi esquecido. Provavelmente minha prima vai ficar conosco e ela é confiável, porém, caso você não se sinta confortável, nós fugimos de sua vista.
ficou um pouco nervosa, mas respirou fundo e agradeceu que sua animação tivesse feito ela se arrumar propriamente. Entraram, então, na sala de visitas.
— Voltei, mamãe! Essa é de quem lhe falei. , esses são meus pais, Vera e Paul Monroe. – Ela apontou para o casal ao seu lado e a convidada percebeu que a amiga possuía uma semelhança incrível com a mãe, exceto a cor do cabelo. — Esses são meus tios, Ruth e Harmon Andrews. — agora apontava para um casal sentado no sofá, oposto a elas.
percebeu que o senhor Harmon e a senhora Vera eram irmãos, pois eram muito parecidos.
— E essa é minha prima, Prissy Andrews. Estavam todos no baile, mas, com tantos convidados, não te culparia de esquecer alguns.
Todos riram educadamente.
, como você vai? E sua tia? Você também tem uma irmã, certo? — Perguntou a senhora Monroe, enquanto a conduzia para uma cadeira.
Uma conversa agradável e educada se instaurou por alguns minutos, até que a senhora Andrews falou:
— Pobres meninas, devem estar entediadas!
— Você tem razão, Ruth. — Vera concordou com a cunhada. — , leve para conhecer a casa. Prissy, querida, acompanhe sua prima.
— Certamente, tia. — A jovem Andrews disse, levantando-se com elas.
— Venha, vou te mostrar meu quarto! — falou, animada, quando elas já estavam fora da sala.
Prissy riu da prima.
— Que lindo! — falou sinceramente, olhando o pequeno quarto azul turquesa com uma vista para o jardim da casa. — Que livro é esse? — Ela disse, apanhando um volume esquisito que estava na cama.
— Ah, entendo sua surpresa! Um livro de economia no quarto de uma menina. Bom, não é meu, é de Prissy, ela que é boa com essas coisas, até na escola eu era péssima com contas. Vamos para a sala de música, esse quarto é muito apertado para todas nós. Prissy, conte a ela sua história.
estava empolgada demais com a sala de música, contudo, ouviu a senhorita Andrews atentamente.
— Bom, não é uma história muito bonita. Primeiro, eu me envolvi com o professor da minha escola. Eu era muito nova para pensar no que eu queria, tinha apenas quinze anos.
— Aquele nojento. — acrescentou.
— Não discordo. — Prissy continuou. — Mamãe nunca quis que eu me casasse, queria que eu fosse para a faculdade. No dia de meu casamento, eu decidi que aquilo não era o que eu desejava e, sim, continuar minha educação. Então eu fui para Queens.
— Sua mãe incentivou a faculdade? — ficou assombrada. Era raro ver meninas indo à faculdade.
— Bem, aqui em Avonlea, muitas meninas foram. Mamãe coordena um grupo que é a favor da educação superior para meninas também. Na verdade, o único da minha família que não foi para a faculdade foi meu irmão, Billy. Você o conheceu no baile.
se lembrou de ter dançado com o menino no baile, mas achou que não seria bom falar para sua irmã e sua prima a sua opinião dele, pois não era positiva. Decidiu apenas assentir para demonstrar que estava acompanhando.
— Desde que retornei, no entanto, minha maior vontade era administrar a fazenda do meu pai, mas, claramente, ela iria para Billy, mesmo que ele nem soubesse o que estava fazendo. Papai negou até mesmo que eu apenas ajudasse meu irmão.
— Até ele quase estragar tudo, como sempre. — falou honestamente.
— Praticamente, é. E quando eu consegui planejar maneiras de nos recuperar e melhorar nossos lucros, mamãe implorou para papai me deixar ajudar. E aqui estou eu.
não se lembrava de ter se sentido tão surpresa com algo antes. Uma mulher administrando uma fazenda? Sem se casar? Tendo feito faculdade?
— Você também fez faculdade, ?
— Ah, não, mamãe não concorda com essas coisas. O maior aprendizado que eu tive na vida, além da escola, foi sobre como bordar. — Ela completou com uma careta.
compreendeu a amiga, contudo, sua concentração se perdeu quando avistou um belo piano na sala. Sem perceber o que estava fazendo, ela já estava colada no instrumento, encantada.
— Você gosta? — Prissy perguntou, educada.
— Ah, sim! Temos um lá em casa. Eu adoro tocar. Mas eu não toco desde que cheguei, não tem nenhum na casa de lady Pancy.
— Você pode tocar, se quiser. — falou, animada. — Mas... estou muito curiosa. Podemos começar o assunto da sua carta? Acho que, se minhas suspeitas estiverem certas, Prissy pode ser de grande ajuda.
A prima olhava para ela completamente confusa e , tentando se distrair no piano, acabou concordando, começando a tocar.
— Para começar, não quero te deixar desconfortável, mas você não estava falando da sua irmã na carta, certo? — nem esperou confirmação para continuar. — Eu sabia, porque sua irmã não parecia nem um pouco confusa naquele baile. Ah, você deve estar perdidinha. — olhou para Prissy. — está a fim de alguém.
— Não estou. Você mesma disse que não era necessariamente gostar. — falou, errando uma nota perante seu nervosismo.
— E quem é? — Prissy indagou, agora bem interessada.
— Ah, se for quem eu penso, não são boas notícias. Fala logo, . É aquele Gilbert Blythe, não é?
levou um choque e parou de tocar. Estava tão óbvio assim? Seu susto foi suficiente para confirmar que estava certa e logo as duas primas estavam lhe lançando olhares de pena.
— Desculpa, mas o jeito que você estava dançando com ele. Ficou na cara! — Mas o olhar esquisito não sumia.
— Que foi? — indagou, suspeita.
— Ah, Prissy você sabe melhor que eu... — falou, agora o olhar de pena se dissolvendo em curiosidade.
— Eu? Não é melhor você?
— Você sabe que não faz sentido eu contar, só sei por meio do que você contou em primeiro lugar. Conte logo!
— Ah, certo. Bom... — Prissy parecia confusa. — Por onde começar? Gilbert estudou comigo na escola. É, todas as meninas da idade adoravam ele e eram apaixonadas por ele, principalmente aquela Ruby Gillis...
se recordou de uma menina loira que estava em sua festa.
— Mas ele nunca se interessou por ninguém, mostrando apenas a sua habitual simpatia que era direcionada a todos.
— Isso é, até Anne chegar. — não se segurou e se adiantou.
— Anne? Não lembro de ninguém com esse nome no baile.
— Ah, é porque aí vem história!
— Continuando... — Prissy se endireitou. — Anne é uma menina órfã que foi adotada pelos irmãos Cuthbert. Ficou claro que Gilbert estava a fim dela desde que se conheceram, mas ela nunca lhe deu bola. Anos depois, então, ele decidiu seguir em frente. Conheceu essa moça, Winifred Rose, e eles quase noivaram! Mas algo aconteceu e pelo que Diana, a melhor amiga de Anne, me contou, ela se declarou para ele e quando ele descobriu, foi atrás dela. Que cena foi aquela! Beijos e promessas para todo lado.
O estômago de estava se embrulhando a cada palavra, mas ela conseguiu falar:
— E então?
— Então, cada um foi para a sua faculdade e Anne conheceu Roy Gardner, um garoto lindo, inteligente, rico...
— Basicamente perfeito. — comentou.
Basicamente. — Prissy concordou. — Anne deixou sua relação com Gilbert voltar a amizade e namorou com Roy por dois anos antes de noivarem. Agora ela está na casa dele, quilômetros daqui. Mas há boatos que, mesmo sabendo do namoro, Gilbert nunca realmente desistiu dela. Mas agora está sendo forçado, não é? Já fazem dois meses desde que eles noivaram. É realmente para valer.
— Todos que o conhecem comentam sobre como ele está abalado. — concluiu.
Então era isso. não conseguia parar de pensar em um garoto, cujo coração era completamente de outra. Todas as esperanças, que ela não admitiu para si mesma, pareciam agora pesar dentro de si.
— Ah, eu sabia que você ia ficar assim. — comentou tristonha.
— Assim como? — falou, espantando o choque e o desconforto.
Tinha necessidade de se sentir assim por uma pequena queda que achou que talvez tivesse por um médico que apenas viu duas vezes?
— Eu disse, não estava gostando dele, ele apenas me falou uma coisa no baile que me deu conteúdo para pensar. — Mas nem ela acreditava cem por cento no que dizia.
Um silêncio se instalou na sala de música.
— Bom, acho que esse momento pede biscoitos da senhora Prewett. — Prissy falou, gentil.
Os olhos de brilharam.
— Alguém disse “biscoitos”?



Capítulo 07

Gilbert teve um dia agitado. Começou com uma visita de Bash e da bebê Delphine, que logo estaria fazendo quatro anos e que agora só o chamava de “tio Gilby” — era melhor do que quando Sebastian ensinou a criança a chamá-lo de uma forma, que fez o sapato da senhora Lacroix voar em direção à cabeça do filho de forma que desafiou a física.
Depois de se despedirem, foi Elijah quem chegou e eles começaram a trabalhar nas macieiras, pois, com o início do verão, dali a dois meses já estariam carregadas. Depois, eles almoçaram e Gilbert deixou Elijah na fazenda, porque iria pegar o trem para Charlettown às doze horas para comprar alguns materiais para o seu consultório.
A viagem foi agradável, mas estava um pouco preocupado com o horário. Queria chegar cedo em casa em um dos seus poucos dias de descanso e no dia seguinte, já nas primeiras horas da manhã, teria igreja.
Chegando na cidade, procurou a loja que ele costumava ir para encomendar o material e teve uma agradável surpresa ao encontrar um rosto amigo ao se dirigir para pagar.
— Meus olhos me enganam ou eu vejo Gilbert Blythe aqui comigo? — Era o Doutor Raynes, que cuidou de seu pai, de Bash, de Mary e deu ao Gilbert seu primeiro estágio com ainda catorze anos.
— Doutor Raynes! Como o senhor vai?
Eles apertaram as mãos, Gilbert muito animado. Tinha uma grande admiração e gratidão por ele.
— Bem, bem, mas o tempo está começando a me cobrar, meu jovem! — Ele disse, rindo. — E você não apareceu mais no meu consultório!
— Ah, voltei da faculdade há apenas uns meses e estou com um pequeno espaço lá em Avonlea. Tentando conquistar as pessoas. — Ele respondeu em tom de pedido de desculpa.
— Elas são difíceis, não são? Nunca abertas para o novo! Ainda mais você, que tinha a cabeça deslumbradas pelas novas pesquisas.
— Ah, senhor, mas você deveria ver todas as ideias que eles pensam! Pensar que tudo que temos pode ser útil, apenas não testamos da maneira correta! — Gilbert teve que se segurar. Aquele assunto o deslumbrava e o intrigava, mas a maioria apenas olhava com grande desinteresse.
— Ah, meu garoto, você pensa tanto! — Doutor Raynes riu. — Você deveria vir me visitar um dia desses.
— Ah... Claro! — Gilbert estava atônito. — Seria um prazer.
— Não suma de novo! E, Paul... — o doutor se dirigiu ao caixa. — Pode colocar o que ele precisar na minha conta.
— Doutor! Isso não é necessário!
— Não é mesmo. — Ele piscou. — Mas eu sei como é difícil sustentar um negócio no começo, ainda mais numa cidade pequena, com desconfiança. Venha ao meu consultório semana que vem e me pague isso com uma tarde com você como meu assistente novamente. Mãos jovens fazem milagres que já não me pertencem mais!
E, assim, ele saiu, deixando Gilbert completamente atônito.
Quando sua gratidão àquele homem já parecia no limite, ele aparecia novamente.

Depois de comprar o necessário na loja, aproveitou o dinheiro economizado e comprou uma boneca simples para Delphine, guardando o que restou.
Já voltando no trem, o jovem ficou refletindo sobre como o destino era engraçado. As últimas vezes em que esteve em Charlottetown foi para encontrar Winnifred, quase sua noiva, que ele abriu mão por... Anne. Sempre ela.
Afastou aqueles pensamentos. O dia estava ótimo. Ele não queria atrapalhar aquilo. Ainda mais em uma viagem de trem, que ele adorava tanto.
Ganhou o gosto de viajar por seu pai e, apesar de ter decidido ficar em Avonlea e virar um médico, cercado por seus amigos e sua família, ele ainda esperava ter a chance de conhecer tantos lugares novos. Tantos mares, tantas praias, tantos campos e montanhas... mas um passo de cada vez. Primeiro, precisava melhorar seu consultório. E conquistar mais clientes.

Depois de uma viagem agradável, ele desembarcou na estação e já estava pensando em alugar uma carruagem para voltar, quando escutou:
— Blythe? É você mesmo?
O dia realmente estava cheio de reencontros.
— Billy! Como está? — Ele respondeu, o mais educado possível.
— Bem, mas tenho que visitar minha família chata agora. E você? Vai para onde?
— Estou voltando para casa. Estive em Charlottetown.
— Ah, a última vez que vivia lá, quase acabou amarrado. — Ele riu e Gilbert forçou uma risada. — Sua casa fica perto, deve ser uma hora andando de lá. Quer uma carona?
Pagar uma carruagem ou ter que aturar Billy Andrews? A resposta lógica era gastar o dinheiro, mas nem ele era capaz de negar uma economia.
— Claro! É muito gentil da sua parte.
Os dois garotos subiram no transporte e se acomodaram. Gilbert começou a se arrepender quando Billy abriu a boca:
— Anda brincando de boneca, Blythe? Não é muito homem da sua parte.
Ele respirou fundo.
“Ele está te dando uma carona, seja gentil!”, ele se relembrou, antes de forçar uma risada.
— É para Delphine, filha do Bash.
— Ah. Aquela gente. — Billy falou com claro desgosto.
“Aquela gente é minha família, seu jumento!”, ele respirou fundo e engoliu novamente os comentários, e a súbita vontade de pular da carruagem.
A partir de então, ele parou de ouvir, soltando apenas alguns “ahã” para não ser completamente ingrato pela carona. Mas era realmente muito difícil conviver com Billy Andrews.

Depois de uma hora de carruagem — que Gilbert ficava se relembrando, para não demonstrar sua frustração, que teria enfrentado muitas longas horas de caminhada ou um bolso bem mais leve —, a visão da casa marrom-clara foi o mais perto que ele poderia dizer de paraíso, tamanho seu alívio. Quando Billy parou a carruagem, o acompanhante pulou imediatamente para o chão e já se preparava para se despedir, quando os dois jovens perceberam duas figuras se aproximando deles.
O dia realmente estava para reencontros.
— ... me visitar sempre que quiser! — Uma jovem, que Gilbert reconheceu como Monroe, falando para ninguém menos que .
Ele viu Billy se ajeitar. , então, reparou neles.
— Ah, doutor Blythe, que prazer! E, Billy, finalmente, seus pais já estavam começando a se desesperar.
— Boa tarde, senhores. — cumprimentou todos.
Então, olhou para longe e pareceu congelar por um minuto.
— Tudo bem, ? — A senhorita Monroe perguntou.
Ela pareceu constrangida.
— Bom, acho que me empolguei muito e planejei tudo para vir, mas... — ela olhou para as próprias mãos, mexendo várias vezes no vestido. — Esqueci que precisava voltar.
Os três que a escutavam não puderam deixar de rir.
— Bom, estou com uma carruagem bem aqui, que conveniente. — Billy riu. — Não será incômodo acompanha-la.
— Ah, Billy, mas você acabou de chegar. Seus pais vão falar no meu ouvido. — resmungou.
— Mas seria muito perigoso deixá-la sozinha.
tentava pensar em alguma opção. Gilbert sabia o que era certo a fazer.
— Se Billy permitir, eu a deixo em casa e depois retorno com a carruagem para cá. Não é longe de carruagem e, assim, ninguém precisa correr perigo, especialmente ameaças de parentes. — Ele comentou, bem-humorado.
Estava cansado, mas não podia deixá-la sozinha. Ou com Billy. A última parecia ainda pior.
— Ah, doutor Blythe, o senhor é tão gentil! — disse.
— Não precisa, Gilbert. — murmurou, baixinho.
— Não precisa mesmo, Blythe. — Billy agora estava mais mal-humorado.
— Claro que precisa. Não quero causar nenhuma discórdia familiar e nenhum risco desnecessário. E acredito que você tenha alugado a carruagem até amanhã, certo? — Gilbert replicou, agora já um pouco de saco cheio.
— Certo. — Billy resmungou depois de um tempo, ainda contrário.
— Então, perfeito! — falou, puxando o primo, como se já soubesse do que ele era capaz. — Vamos, Billy. Tchau, , até outro dia, mas garanta sua carona de volta! Tchau, doutor, obrigada novamente! — E, em um rápido momento, os dois sumiram dentro da grande casa, sobrando apenas Gilbert e .
— Vamos? — Ele a chamou.
Andaram até a carruagem e ele ofereceu ajuda para levantá-la, mas ela recusou e subiu sozinha no transporte.
— Eu juro que normalmente eu não sou tão... tão... estúpida. — Ela completou baixinho. — Era tão óbvio.
— Bom, já percebi que você tende a entrar em situações inusitadas. Não precisa da cara fechada. — Ele acrescentou, rindo. — É só brincadeira.
— Para você, talvez. — Ela falou, mas suavizando a sua expressão. — Vejo que você está bem-humorado hoje.
— Gosto de pensar que estou sempre assim. Mas, sim, tive um bom dia, mas também um pouco longo.
Um silêncio se instalou.
— Me desculpa, se eu não fosse burra, você já poderia estar indo para casa. Estava indo para casa, certo? A propriedade dos Monroe fica próxima da entrada de Avonlea. — falou.
— Estava, mas não me importo. A companhia me agrada. — Ele sorriu para ela. — E não se chame de burra, foi apenas distração.
— É, mas não é só isso. Parece que todas as meninas fizeram faculdade, menos eu. Eu nem fiquei tantos anos na escola. Nem era uma aluna muito boa. E parece que eu não faço nada certo. — Ela resmungou. — Meu bom Senhor! — Ela olhou de esguelha para ele. — Não era para eu ter falado isso. Me desculpa. Isso só estava na minha cabeça.
— Não precisa se desculpar. Acho que é natural ficar assim. Além disso, há muitas coisas que não se aprendem na escola. Todos os meus meses de viagem equivalem há anos de aula que eu nunca tive. Não é só porque você não teve uma formação, que você é incapaz ou inferior.
— Para onde você foi? — Ela perguntou, os olhos brilhando de curiosidade.
— Com meu pai, fui para as montanhas. Depois, bom, estive dentro do navio a maior parte do tempo. Mas o Oceano Atlântico me levou a muitos lugares inesperados, como a Ilha de Trindade, terra de Bash.
— Bash?
— Ah, verdade, você não o conhece. Sebastian é um amigo que conheci no navio e, hoje em dia, ele é meu sócio na fazenda e mais. É como um irmão para mim. Inclusive, essa boneca aqui é para Delphine, sua filha.
— Que lindo. — Ela falou, sorrindo. — Mas por que não o encontrei no baile? Se me lembro, você chegou sozinho.
— Olha você me observando de novo. — Ele brincou.
— Observei a todos! — Ela disse, novamente com uma careta.
— ‘Tá bom, ‘tá bom! Você precisa de mais senso de humor.
— O meu senso de humor é excelente. Mas você não me respondeu.
— Ele estava em Lua de Mel, voltou há poucos dias.
— Ah, isso explica! Mas também não lembro dele na lista dos convidados. Escrevi apenas para você.
Gilbert sussurrou, pensando em como ia explicar aquilo. Esperava que o que dissesse a seguir não transformasse em uma Josie Pie.
— Provavelmente, ele não era bem-vindo lá. Isso acontece frequentemente com quem não o conhece.
— Mas por que ele não seria bem-vindo? Ele... — ela respirou fundo. — Ele é um criminoso?
— Só se você considerar um crime ele ter a língua tão afiada. — Gilbert riu, imaginando Sebastian reagindo àquela conversa. — Não, não, mas ele é uma pessoa de cor. — Ele falou com um “quê” de orgulho de toda a força de seu amigo.
— Ah. — Foi o que ela pôde dizer.
O silêncio se instalou novamente e Gilbert suspirou. Por que todos não podiam só enxergam o fato de ele ser simplesmente... uma pessoa? E muito melhor do que muitos que ele conhecia.
— Ele deve passar por vários problemas por causa disso. — Ela falou, de repente. — Eu só conheci uma pessoa de cor na vida, por cinco minutos, antes de um oficial começar a segui-lo. Nunca mais o vi desde então. E tudo que ele fez foi... estar na cidade.
— É bem assim. — Ele suspirou. — Mas acho que não sou indicado para falar. Nunca passei por isso. Bash certamente tem muitos relatos ruins sobre essas questões.
— Seria adorável conhecê-lo. — Ela acrescentou, olhando para longe.
De repente, se deu conta do que estava falando e ficou novamente constrangida.
— Não que eu esteja me oferecendo para visitar ou algo assim!
— Uma pena, seria um convite bem-vindo. Mas, também, ele agora se mudou com a esposa.
— Ah, claro. — Ela falou, ainda envergonhada.
Gilbert estava achando aquilo adorável e engraçado. Talvez eles pudessem ser bons amigos, afinal. Continuavam se esbarrando sempre por aí.

Depois de meia hora de viagem, com conversas e alguns silêncios, agora confortáveis, e eles chegaram à Mansão Louborne.
— E a senhorita está entregue. — Gilbert disse com uma pseudo reverência, que a fez revirar os olhos e abrir um sorriso.
— Você se acha muito engraçado, mas precisa mais do que gestos bobos para me fazer rir. — Ela disse, embora já estivesse quase rindo.
— Bom, então pretendo te escrever futuramente para que você me visite, para conhecer Bash e para que eu prove, não que seja necessário, que eu sou um cara engraçado.
— Vai sonhando, doutor. Volte para a medicina. Você não trabalha em um circo. — Então, a jovem sorriu. — Mas aguardo o convite. Obrigada novamente. Foi muito gentil da sua parte me trazer aqui. Boa noite, Gilbert.
— Boa noite, . — Ele se despediu e, enquanto ela entrava, começou a retornar.

Meia hora para deixar a carruagem na casa dos Monroe e mais uma hora caminhando até em casa. Com isso, ele chegou na sua fazenda exausto e iluminado já pelo luar.
Mal jantou e se jogou na cama, feliz com o dia. Foi um dia fora do comum e dias diferentes sempre eram bem-vindos... tinha razão, ele esteve mesmo de muito bom humor naquele dia.
Pensar em o fez lembrar de sua futura visita e ele planejou escrever para Bash no dia seguinte para marcar um dia. Ele sabia que ia ouvir diversas reclamações e implicâncias, mas, por algum motivo, estava animado demais para deixar isso desanimá-lo.



Capítulo 08

Desde que recebeu a carta de Gilbert convidando-a para o aniversário de Delphine, ela não conseguiu dormir.
Na primeira noite, sonhou que estava levando o bolo e o deixou cair no chão, fazendo a criança sem rosto chorar e todos a olharem de cara feia. A segunda noite foi pior: agora, ao invés de levar o bolo, ela tentava acender a vela, mas sempre apagava e, quando finalmente conseguia acender, ela derrubava a vela incandescente no chão e toda a casa começava a pegar fogo.
Na terceira noite, ela chegava na casa e ninguém estava. Horas depois, ela descobria que estava no lugar errado. Quando conseguia chegar, todos a olhavam com desaprovação e desgosto. Até Gilbert. Que, inclusive, foi o principal do quarto pesadelo, em que ele a olhava a festa toda e ela decidia se declarar... então, todos riam dela, enquanto uma linda mulher chegava e eles se beijavam, e todos diziam “é claro que Gilbert só poderia ficar com Anne Shirley...”.
Por sorte, o quinto dia era o dia da festa, então os pesadelos só dependeriam do decorrer do dia, que faria de tudo para ser perfeito.
Conferiu novamente o presente da jovem menina que comprou: um pequeno urso de pelúcia. Ficou tentada a comprar uma boneca de porcelana, mas a menininha tinha apenas quatro anos. Quem sabe no futuro?!
“Olha só você, achando que haverá um futuro”, ela falava consigo mesma.
Tinha decidido que Gilbert Blythe era apenas um jovem gentil. E a única coisa que poderia sair daquela relação, era uma boa amizade. Nada mais.
Ela suspirava com os pensamentos.
Escolheu um dos seus vestidos de festas de dia, um pouco mais simples que os noturnos, mas igualmente elaborados. Com a ajuda do espartilho bem desconfortável, o vestido verde-claro com renda azul e amarela lhe caiu perfeitamente. Por insistência da irmã, colocou um chapéu que combinava, conforme as regras de conduta social.
Não contou para lady Pancy de quem era o aniversário, apenas que Gilbert Blythe a convidou. Porém, foi um escândalo explicar que ele não poderia lhe buscar por ter prometido ao caro amigo que ajudaria a organizar a festa (apenas não mencionou que tal amigo era este), contudo, ele ofereceu-lhe carona de volta, situação que melhorou o mau humor da tia. Um pouco.

Desceu da carruagem no endereço indicado e respirou fundo. De longe, conseguia ver uma fazenda adorável e algumas pessoas agrupadas em uma área externa.
Foi se aproximando aos poucos, analisando todos ali presentes. Pessoas de todos os tipos estavam presentes. Simples e arrumadas, brancas e de cor, contidas e animadas. Reconheceu alguns rostos de sua festa, entre eles Diana Barry e Rachel Lynde. Ambas a cumprimentaram cordialmente, a jovem com uma expressão doce e educada, já a senhora, curiosa e observadora. Sentiu-se muito constrangida sob aqueles olhos.
— Ora, ora, se não é . Boa tarde. — A senhora Lynde disse, olhando-a de cima a baixo.
— Boa tarde, senhora Lynde. Como vai?
— Muito bem, minha jovem, graças ao bom Deus. Então, o que faz aqui? Foi convidada? Talvez por Gilbert Blythe?
— Ahn, sim, precisamente, Gilbert me convidou.
— Então já estão se tratando pelos primeiros nomes? — Ela sorriu de maneira nada sutil.
— O quê?
, que prazer te reencontrar depois daquele baile maravilhoso! Como você e sua família passam? — Diana Barry perguntou, salvando de uma péssima situação.
— Muito bem, obrigada, e a senhorita e sua família?
— Bem também, muito obrigada por perguntar.
— Que jovens perfeitamente educadas. O bom Cristo sabe que logo terão maridos. Diana já está noiva e prevejo que logo você estará no mesmo caminho, senhorita .
levou um susto tão grande, que quase se engasgou na própria saliva.
— Perdão?
— Se todos ouvissem meus conselhos de cara, seria mais fácil. Como aqueles ali. — Ela apontou para um casal. — O senhor e a senhora Lacroix. Estariam casados há mais tempo, se simplesmente me escutassem! Mas já vi que você é tão teimosa quanto... Um dia, como todos, você dirá, ah, sim, como dirá, que “Rachel Lynde tinha razão”. Guarde minhas palavras, criança.
estava em completo choque e só observou a senhora e a jovem se afastarem.
Continuou seguindo, procurando um olhar conhecido e recebendo vários estranhos e de julgamento em troca. De repente, sentia que estava muito arrumada, muito deslocada, muito educada e muito... desconhecida.
Por sorte, a salvação chegou com um par de olhos cor de avelã especialmente gentis.
, você veio!
— Boa tarde, Gilbert. Obrigada pelo convite. — Ela disse, tentando não soar agradecida demais.
“Seremos só amigos”, reforçou para si mesma.
— Não há de quê! Venha, tenho que te apresentar a todos.
percebeu que nunca o viu tão feliz. Provavelmente, era porque estava no meio daqueles de quem verdadeiramente gostava. Aquilo fez o coração de se aquecer, feliz por ele estar daquele jeito e ter pessoas tão especiais para si, especialmente por sua história trágica.
— Bom, primeiro te apresentarei ao Bash e à Muriel, e depois para Delphi. Ela deve estar correndo por aí como uma louca. Está em uma fase em que tudo é brincadeira.
Gilbert os conduziu em direção a um casal que pareciam conversar com todos, os que Rachel Lynde havia apontado. A moça tinha os cabelos claros, olhos verdes e pele alva. Já seu companheiro, tinha cabelos e olhos escuros e espertos, a pele de cor e uma barba cheia, um homem que parecia brincalhão, mas que já havia passado por maus bocados.
— Bash, Muriel, essa é a amiga que eu tinha dito que convidaria!
O estômago da jovem se revirou de nervosismo. Então ele já os considerava amigos?
— Esta é .
— Senhor Lacroix, senhora Lacroix, é um prazer conhecê-los. Obrigada por permitirem a minha presença neste dia tão encantador. — curvou a cabeça ligeiramente.
— Então, você é a famosa . Blythe falou bastante de você. — Sebastian comentou com um sotaque carregado, fazendo corar.
Gilbert lhe deu um tapa no ombro.
— Ai! O que foi?
— Sebastian, você está constrangendo a moça! — Sua esposa comentou, mas parecia achar a situação muito engraçada. — Peço desculpas por meu marido. Era apenas uma brincadeira. E, por favor, me chame de Muriel. E nós que agradecemos por sua presença. — Muriel olhou feio para o marido, que estava quieto ao seu lado.
Depois de uma forte cutucada, ele falou:
— Claro, claro! Bem-vinda, isso. Espero que aproveite.
— Bom, eu trouxe uma pequena lembrança para a jovem aniversariante. Devo deixar com vocês?
— Oh, não era necessário! — Muriel falou. — Mas, visto que já está feito, por que não entrega para a aniversariante em pessoa?
A mulher sorriu.
— Seria um enorme prazer!
Os quatros foram andando pela festa, cumprimentando convidados no caminho, , inclusive, sendo apresentada para vários, enquanto procuravam a “pestinha”, como Sebastian a chamava. Finalmente, a busca cessou quando encontraram um arbusto que estava se mexendo demais.
— Te achei! — Bash falou, afastando os arbustos e revelando duas crianças comendo biscoitos, uma que parecia ter oito anos e uma mais nova, que assumiu ser a pequena Delphi.
— Por favor, senhorita Stacy! — A menina maior começou a exclamar. — Não conta pra mamãe, por favor!
— Está bem, Minnie May. — Muriel respondeu, parecendo segurar o riso. — Eu não conto, mas que isso não se repita. Muito biscoito faz mal. E é “senhora Lacroix” agora.
— Eu não sei por que gente adulta muda de nome! — A criança saiu correndo, logo depois de fazer isso.
— E olhe quem também ‘tá aqui, se não é a bonequinha do papai?! — Sebastian disse com uma voz infantil, pegando a criança no colo e depois fazendo cócegas nela, que não parava de rir. — Você tem mais um presente!
— “Pesente”! — A jovem criatura agora tinha os olhos brilhantes e logo se viu completamente encantada com aquela menina tão pequena e tão preciosa.
— Ela é uma amiga do tio Gilby. — Sebastian continuou.
— Delphi, essa é a e ela trouxe um presente para você! — Gilbert falou.
! “Pesente”! Que é? Que é? — A figura tentava agarrar o pequeno embrulho, mas o pai a segurava fortemente, rindo.
Ele estava completamente bobo perto dela e dava para ver que ela era o que ele mais amava no mundo.
— Tudo bem, Delphi? — se aproximou sorridente. — ‘Tá aqui o seu presente, oh! Espero que goste.
A criança nem respondeu, agora no chão, já abria o embrulho e soltou um arquejo ao ver o urso, abraçando-o e correndo de alegria.
— Espera aí, pestinha! — Bash a agarrou no último segundo, antes que ela fugisse. — Como que se diz?
— “Bigada”! — Delphine abraçou a jovem, sendo um pouco mais alta que seus joelhos, e depois saiu correndo.
estava completamente apaixonada.
— Não se sinta muito especial, cada presente que chega vira o seu favorito. — Bash brincou.
— Então, pela primeira vez, espero que eu tenha sido a última a chegar! — replicou com humor, fazendo todos rirem.
— Gilbert, você deveria mostrar a fazenda para . — Muriel falou, encostando gentilmente na jovem, guiando-a para perto do garoto.
— Ah, mas nada aqui nem se compara com a sua casa. — Ele coçou a cabeça, meio envergonhado.
— O seu problema é esquecer que aquela casa e essas roupas não são minhas, e, sim, de minha tia. — falou para Gilbert. — O local é encantador e eu adoraria conhecer.
Não tinha problema, certo? Era educação e nada romântico.
— Vai logo, Blythe, não seja um anfitrião babaca. — Sebastian o empurrou em direção à garota, ganhando um empurrão de fora. — Que foi? Quero que a educação se mantenha nessa casa ou vão pensar que fui eu que te ensinei a ser sem noção desse jeito.
— Ninguém pensa isso, todos têm certeza! — Gilbert replicou para o amigo, depois parando para suspirar. — Então... me acompanha?
olhou para aquela mão erguida para ela, tão convidativa, mas também a chamando para trair seus sentimentos. Então, olhou para aquele rosto encantador, com a sobrancelha erguida e o sorriso de canto, e teve que segurar um suspiro.
“Amigos. Somos apenas amigos”.
Ela sorriu de volta.
— Será um prazer!



Capítulo 09

— Então, apesar da plantação diversa, a maçã é a chave de ouro daqui? — perguntou a Gilbert, tentando assimilar tudo.
— Exatamente! Infelizmente, não são tão bonitas quanto as flores do jardim dos Barry, por exemplo, mas acho que elas têm seu charme. E, com certeza, têm seu valor.
— Elas são lindas! — A jovem falou, maravilhada. — Em minha cidade, os edifícios andam tirando todo o espaço das árvores. E eu até gosto dos prédios, sabe? Especialmente os chiques. Mas eles são bem padronizados. Planejados. A natureza é espontânea. Nenhuma árvore vai ser igual, nem que seja por um pequeno desvio de um galho. É único. Acho que eu gostaria de poder ser tão espontânea quanto esse crescimento, então acabo admirando muito. Entende?
— Acho que peguei a ideia. — Ele sorriu para ela. — Embora eu te ache espontânea. Não acho que pessoas não espontâneas falariam coisas assim.
— Ah, não! Desculpe-me. Eu falei demais de novo, não é? — Ela não corou e nem abaixou a cabeça, mas não parecia conseguir o olhar nos olhos.
— Você não parece do tipo que se desculpa por falar o que pensa. E comigo, tem menos motivos ainda para fazê-lo.
Ela fez uma cara pensativa e ele esperou ansioso sua resposta. Teria sido invasivo falando aquilo? Só queria ser educado. era uma pessoa legal, que estava virando sua amiga. Não queria deixá-la desconfortável.
— Tem razão. — Ela disse, fazendo-o suspirar aliviado. — Você quem me convidou e é quem está puxando assunto. Agora, vai ter que me ouvir falar coisas desse tipo. Por bem ou por mal.
Os dois riram, enquanto continuavam sua caminhada. De vez em quando, encontravam algum convidado e Gilbert cumprimentava a todos. Hoje, estava tendo um dia particularmente bom.
Delphi estava muito feliz, cheia dos presentes. A festa ainda estava com poucas crianças, porque a pequena não começou a frequentar a escola. Muriel tentava a todo custo convencer Bash a colocá-la na escola de Avonlea, mas ele temia o que sua pequena podia sofrer. Mas isso era discussão para outra hora.
Ainda sobre a festa, Rachel e Marilla haviam ajudado na decoração floral. No início, foi muito complicado ver a senhora Cuthbert, mas o fato de Anne não estar por perto ajudava. Aos poucos, a distância e o tempo faziam seu trabalho. Além disso, fazia um lindo dia de sol e estava na companhia de . Fazia muito tempo que não tinha novas amizades e aquilo fazia bem. fazia parte de um novo universo e até mesmo de um novo Gilbert.
— Gilbert... Posso te fazer uma pergunta? — falou, de repente, depois que eles se afastaram de uma conversa educada com uma das antigas amigas de Mary, falecida esposa de Bash.
— Acho que sim. Desde que prometa não me humilhar completamente. — Ele falou, irônico, vendo-a reagir revirando os olhos e dando um sorriso de canto.
Estava determinado a diverti-la e se provar uma boa companhia.
— Você me deixou tentada a te constranger de diversas formas, mas não será dessa vez. Minha dúvida é sobre uma convidada sua... bom... a senhora Lynde. Espero que não me entenda mal, não é nada para magoá-la! — Ela acrescentou rapidamente ao vê-lo levantar uma sobrancelha. — Ela é apenas... como dizer?
— Acho que você vai se complicar se tentar colocar isso em palavras e ainda pode arrumar problemas! — Ele caçoou.
Rachel era... digamos... única. Mas, apesar de todo o seu jeito, ela foi uma amiga excelente da família de Gilbert sempre que eles precisaram.
— Era isso que eu queria evitar! Não quero criticá-la, só fiquei me indagando... ela sempre foi assim? Metade do tempo, ela me trata como se estivesse me analisando detalhe por detalhe e, na outra metade, fica fazendo insinuações sobre mim e sobre... han... outros... que eu não compreendo uma única sílaba!
O garoto tentou se conter, mas não pôde deixar de rir. Ele, que cresceu conhecendo a senhora Lynde, ainda se encontrava confuso com seu jeito de ser. Imagine uma completa estranha a todos esses seus modos tão... de maneira não rude, distintos?!
— BLYTHE! — Ele ouviu alguém o chamar de fundo.
Virou-se e viu Sebastian desalinhado, com uma expressão de desespero.
— Que foi, Bash? — Ele disse, aproximando-se.
— Aí que você está, seu idiota. Preciso de você.
— Calma aí, que que foi?
— O bolo. Cadê o bolo?! — Sebastian arregalou os olhos de tal forma, que Gilbert não acreditou que fosse algo tão bobo.
— Como assim, cadê o bolo? Está em cima da mesa, exatamente onde a senhora Barry deixou. — Gilbert riu diante do estresse do amigo.
— Cacete, Blythe, acha que eu te chamaria pra isso se estivesse lá? O bolo sumiu. — O amigo parecia que teria um infarto, como se quem tivesse sumido fosse sua própria filha.
— Tá, tudo bem, vamos ver. — O mais jovem tentou pensar. — Já viu com Muriel?
— Ela que me mandou buscar, porque alguns convidados já vão embora. Quando eu cheguei lá, puf! Sem bolo.
— Não poderia estar em outro cômodo? — sugeriu, baixo, parecendo não saber se deveria fazer algo. — Ou com alguém que tivesse tentado ajudar e tivesse ido buscá-lo...
— Acho difícil. Eu preciso achar esse bolo, senão, não sei quem me mata primeiro: Delphi ou Eliza Barry. — Bash comentou, enquanto os levava apressadamente para a entrada de trás da casa que estava vazia.
— É melhor nos dividirmos, certo? — Gilbert comentou. — Um de nós dois sonda com os convidados e o outro vê dentro da casa. Seria bom chamar alguém para ajudar, mas alguém discreto. — Ele pensou, lembrando-se da conversa anterior sobre sua convidada mais fofoqueira.
— Vou falar com Muriel e perguntar por aí. Talvez Rachel ou Marilla tenham mexido em algo. — Ele disse, antes de se afastar apressado.
— E eu faço o quê? — perguntou.
— Han? — Gilbert olhou para ela, confuso.
— Eu quero ajudar. — A menina disse, levantando o queixo, determinada.
— Agradeço, mas realmente não é necessário...
— Honestamente, você é a única pessoa daqui com quem eu me sinto mais confortável. Eu me sinto estranha entre todas essas pessoas. Eu não conheço ninguém e, por mais simpáticos que pareçam, não quero me sentir deslocada e desconfortável. Por favor, não me deixe sozinha. — Ela pegou em uma mão dele e olhou dentro de seus olhos. – Deixe-me ajudar.
Ele engoliu em seco, sentindo-se um pouco desconcertado com aqueles olhos brilhantes o encarando decididos. Quando percebeu que estavam de mãos dadas, soltou-se dele, constrangida. Ele sentiu um vento frio onde antes esteve aquele contato quente.
— Tudo bem. — Ele cedeu, por fim, sentindo-se um pouco confuso. — Mas vamos logo. Sei que Bash quer deixar tudo perfeito e Delphi realmente é louca por bolos. Especialmente esse, que é de uma das receitas antigas da mãe dela.
Eles entraram na casa vazia, onde ainda se ouvia a conversa abafada dos convidados.
— Certo. Se o bolo estiver em algum cômodo, será óbvio de ver. Se cada um verificar metade, terminamos em menos de cinco minutos e podemos investigar no quintal. Fique com os quartos mais pertos dessa entrada, que eu vou para os mais distantes.
Gilbert estava realmente intrigado que um detalhe como o bolo tivesse se tornado uma confusão.
Ele começou olhando pela cozinha, onde o bolo deveria estar na mesa de madeira, mas encontrou apenas um rastro da cobertura que deveria ter pingado ali. Procurou logo na dispensa e no primeiro quarto, que foi de seu pai.

A casa não era muito grande, então, dois minutos depois, ele e se trombaram na entrada de seu próprio quarto.
— Perdão. — Ele disse, segurando-a para que esta não caísse.
— Eu que peço. Achou algo?
— Previsivelmente, nada. E você?
— Apenas uma bolinha de gude que quase me derrubou. — disse, rindo, entregando para o garoto uma pequena bola de vidro.
— Ah, desculpa, acho que é um dos presentes de . Quem a presenteou deveria ter esperado alguns anos a mais. Ela vai perder tudo nessa idade. Então, vamos lá para fora? — Ele lhe estendeu a mão, que ela segurou decidida.
Certamente, não segurava a mão de alguém tantas vezes assim desde Winnie. Ou em uma dança.
Eles saíram apressados juntos da cozinha e foram procurar Bash. Depois de receber um olhar arregalado da mãe de Sebastian, que ela tentou disfarçar, ele percebeu o que deveria estar parecendo ao sair daquela casa vazia de mãos dadas com . Ele a soltou, envergonhado, e sentiu um grande alívio ao perceber que ninguém mais parecia ter visto aquilo.
— Bash, Muriel! — Gilbert exclamou, finalmente os encontrando. — Não encontramos nada dentro da casa, e vocês?
— Então quer dizer que vocês procuraram juntos? — Bash perguntou, levantando as sobrancelhas sugestivamente.
Por sorte, Muriel falou por cima dele.
— Infelizmente, encontramos o bolo. — Ela disse, suspirando. — Ou melhor, o que sobrou dele. — Ela os levou até uma mesa onde estava apoiado um amontoado meio confuso.
E então, com um susto, Gilbert percebeu que aquele era o bolo.
— O que aconteceu? — perguntou, os olhos arregalados.
Antes que o casal pudesse respondê-la, o choro de uma criança chamou a atenção.
— E da próxima vez, Minnie May, te levaremos em um médico. Essa sua obsessão por doces está demais. E pelo amor de Deus, limpe sua boca ou eu repensarei a ideia de trazer as aulas de etiqueta de volta para nossa casa! — A senhora Barry gritava com a criança cheia de farelo e glacê de bolo por toda sua roupa e sua face.
— Mistério... resolvido. — Gilbert falou, meio em choque, e acabou rindo de tão sem reação.
— Não ria! Estamos sem bolo de aniversário! Delphi perguntou por ele o dia todo! — Bash estava realmente desesperado.
Ver Delphi feliz significava tudo para ele.
— Não sei quanto do bolo pode ser salvo... — Muriel disse, desesperançosa. — E sua aparência certamente foi arruinada. Talvez eu tenha um resto de cobertura que Eliza Barry trouxe. Mas não sei se adianta muito...
— E se partirmos os pedaços? — falou, parecendo perdida na sua ideia. — Talvez distribuir os pedaços pela mesa e pegar aquele pedaço direito, que está mais inteiro, para colocar no centro com a vela. Os pedaços que estiverem muito feios, podemos jogar essa cobertura extra. Você pode até dizer que foi proposital, para já deixar acessível para os convidados... ou não, também, é só uma ideia idiota. — acrescentou rápido ao ver todos a encarando.
— Não acho uma má ideia. Na verdade, talvez seja a melhor opção. — Gilbert comentou, sorrindo para ela.
— Não custa tentar. — Muriel disse. — Mesmo que ninguém caia nessa do proposital, ninguém ali deve comentar muito. Bom, talvez Rachel, mas é bem capaz de ficar mais focada no escândalo de Minnie May.
E, assim, eles foram para a cozinha começar a arrumar tudo o mais rápido possível.

Em algum momento, Bash o chamou para um canto.
— Devo dizer que não sei como essas garotas decentes conseguem aturar um pé no saco como você.
— Talvez a gente deva perguntar à Muriel o segredo, por aturar o pior de todos. — Gilbert rebateu. — E você está louco. Nós somos só amigos.
— Blythe, qual foi a última vez que eu ouvi esse discurso? Ah, é, sobre a garota que você era completamente apaixonado e ficou em negação por anos. — Bash deu-lhe um tapa no pescoço.
— Ai! Eu mal a conheço. E sei que ela não me enxerga assim. Fala sério, mal começamos a ser amigos.
— ‘Tá bom, Blythe, ‘tá bom. Acredite no que quiser.
Gilbert ficou meio irritado com aquele papo. Ele estava começando a se aproximar de . Claro, ela era bonita. Muito bonita, tinha que admitir. E era engraçada, divertida. Era fácil conversar com ela. E por isso que eles eram amigos.
Certo?

Eles cantaram parabéns e Delphine achou incrível aquela disposição do bolo, tão acessível para comer, que metade do maior pedaço havia sumido antes de apagar a velinha. Ao invés de chatear Bash, isso o deixou aliviado e contente. Não se importava com os outros, apenas em ver sua pequena feliz.

Aos poucos, os convidados foram embora e Gilbert cumpriu sua promessa de deixar em casa. Eles conversaram o caminho de volta, embora Gilbert começasse a ficar mais ciente de cada palavra que dizia e recebia como resposta, mas depois tirou aquilo da cabeça. Não havia nada entre eles. Não ia deixar um comentário sem nexo de Sebastian deixar aquela nova relação esquisita. Além disso, Gilbert sabia, no fundo, que ele ainda não esqueceu Anne por completo. Ele não seria capaz de gostar de duas pessoas ao mesmo tempo. E ele não sabia se estava pronto para outra nova rejeição.
Ele deixou no portão e eles se despediram com um curto abraço, amigável.
Por isso, na volta, ele percebeu que estava aumentando tudo aquilo só por estar pensando no que Bash disse. Eles eram amigos. E nada mais. Ele não estava interessado nela e nem ela nele. E assim ia permanecer. Ainda mais que ela iria voltar para sua cidade natal em breve. Logo, ela nem se lembraria mais dele. Mas ele sabia que não ia esquecê-la.
Afinal, não havia nada errado em lembrar de uma boa amiga.



Capítulo 10

Querida ,

Tudo bem? Como vão as coisas?
Essa semana eu recebi o convite do aniversário de Ruby Gillis e gostaria de saber se você também vai. Não seria nada agradável aparecer lá sem conhecer ninguém.
Espero muito que você compareça, sinto sua falta!

Com carinho,

Querida ,

Aqui está tudo bem, embora eu ande muito entediada. Mamãe diz que já passou da hora de eu arrumar um pretendente. Honestamente, não aguento mais estudar etiqueta em casa. Acho que gostaria de viajar, conhecer outros lugares. Mas mamãe diz que eu só viajarei, por enquanto, até Charlottetown.
Andei pensando em conseguir um emprego para guardar um dinheiro para mim... eu sei o que você vai dizer! Mas, dependendo do emprego, acho que não vai ser radical. Contudo, esse não é o assunto.
Infelizmente, eu não conheço Ruby Gillis para ela me convidar. Honestamente, você deve ter sido chamada por conta de lady Pancy (não se ofensa). Mas acho que Prissy estará lá e você pode conhecer Jane também, irmã da Prissy. Ela é quase da nossa idade.
Além disso, pelo que você me contou da última festa que você foi, acho que companhia não deve ser difícil de arrumar. O seu querido-apenas-amigo-doutor Blythe deve estar na festa. Aproveite para fortalecer seus laços de amizades. Inclusive, devo dizer que sinto certa inveja de você. Está aqui na região há apenas dois meses e já tem uma vida social bem mais agitada que a minha.
Vamos marcar um encontro! Já se passaram duas semanas que não nos vemos e parece que foram meses. Me responda depois marcando um horário.
Mas isso é assunto para depois. Foque agora nesse aniversário. E depois me conte tudo!

Carinhosamente,

ainda analisava aquela carta. O dia da festa havia chegado e ela ainda se sentia nervosa, porque estaria sozinha lá. Além disso, Lucila parecia cada vez mais irritada com todas essas saídas pegando a carruagem emprestada. Mas o que ela esperava? Que passasse seus dias trancada em casa? E a culpa daquele último convite era bem provável de ser de lady Pancy!
Não que a jovem fosse reclamar com a tia-avó, ainda era uma boa desculpa para sair de casa.
O que falou sobre arrumar um emprego também martelava na cabeça de . Não seria nada mal conseguir um dinheiro seu e não depender de Lucila. Porém, honestamente, não conseguia pensar em nada em que fosse realmente boa.
A jovem ouviu uma batida na porta.
— Pode entrar. — Ela disse, sentando-se na cama.
A porta se abriu e entrou.
— Oi, . — Ela entrou elegante e com um sorriso gentil. — Titia disse que você ia sair agora.
— Titia? — Ela retrucou, sarcástica.
sorriu, balançando a cabeça de leve em reprovação.
— Mas, sim. Eu fui chamada para um aniversário.
— Posso te ajudar a se arrumar? — perguntou, esperançosa. — Estou com saudades.
— Estranho como moramos na mesma casa, mas nos encontramos poucas vezes e raramente conversamos. — falou, tentando esconder sua mágoa. — E eu já tô pronta.
— É complicado. Você vai assim? — disse, analisando a mais nova. Seu senso estético era o melhor das duas. — Anda, tire esse chapéu. Não combina com seu rosto. E prenda o cabelo assim. Ah, essas mangas...
E, antes que percebesse, tinha a transformado. Seu vestido, antes branco, foi trocado por um azul celestial. Seu simples coque agora era uma elaborada trança com um chapéu simples. Os sapatos de salto delicados, o batom rosa e um pó que corava as bochechas foram os últimos toques.
— Agora sim! Uma verdadeira dama. — sorriu, orgulhosa.
— De nada adianta parecer uma dama, se estou longe de ser uma. — retrucou.
— Vamos, pare de birra. A carruagem está te esperando. Ficarei surpresa se voltar sem pretendentes. — riu.
“Por que você só pensa em pretendentes?”, pensou em responder, mas não queria estragar aquele clima. Era tão bom estar ali com sua irmã.
— Então eu vou indo. — Estava saindo, quando se virou para perguntar aquilo que ela sempre pensava, embora já soubesse a resposta. — Alguma carta do papai e da mamãe?
sorriu tristemente e já tinha entendido.
— Sabe, a falta de notícias é uma boa notícia. Se algo muito ruim tivesse acontecido, teriam que nos informar. — A mais velha sorriu.
— Obrigada, . Por isso e pelo visual.
— De nada, . Aproveite. — A mais velha se despediu.

Passado o trajeto de carruagem, a jovem chegou na residência dos Barry. O casal cedeu o seu jardim para a comemoração do aniversário da amiga de sua filha. Era um lugar esplêndido, tinha que admitir, mas o nervosismo já a consumia. Carregava consigo o pequeno embrulho que trouxe para presentear a aniversariante.
Avistou de longe uma pequena figura loira, que ela conheceu havia um mês em seu próprio aniversário.
— Boa tarde! Feliz aniversário, Ruby. Espero que o presente seja de seu agrado. — sorriu, nervosa.
— Ah, obrigada, senhorita Pency! — A jovem agradeceu.
— Na verdade, é .
— Ah, claro, claro. Por favor, fique à vontade.
andou pelo jardim até identificar alguém que ela conhecia.
— Prissy! — Ela foi rapidamente ao seu encontro.
— Ah, olá, ! Como vai? — A jovem Andrews respondeu, sorrindo.
— Bem e você? — só queria conversar com alguém sem formalidades. Que falta fazia !
— Tudo ótimo. Creio que você não conheceu minha irmã. Essa é Jane. — Ela apontou para uma morena que lhe disse “oi”. — Estamos esperando Tillie, a melhor amiga de Jane. Ela esteve viajando com uma tia e retornou ontem.
— Sinto muita falta dela. — Jane confessou. — Sabe, somos amigas desde muito jovens. Até a faculdade fizemos juntas. Nunca estivemos longe por tanto tempo!
— Enquanto ela não chega, quer dar uma volta? — Prissy ofereceu.
As três jovens passearam por aqueles lindos jardins, Jane focada mais em procurar a amiga e e Prissy conversando casualmente. Até que dois jovens chegaram na festa.
— Olha como as coisas mudam! Ruby mal olhou para Gilbert e ficou toda corada falando com Moody! — Jane apontou, rindo. — Esses dois vão acabar juntos, mas como vai demorar, se depender do Moody.
— E agora Gilbert tá sem Anne e sem Ruby. Todas as meninas desse salão devem estar doidas por uma oportunidade. — Prissy falou, olhando de esguelha.
— Ele parece mais contente nos últimos dias, não acha, Pris? — Jane comentou.
— Não reparei muito, mas você tem razão. O que será que causou isso? Ou melhor, quem? — Prissy sorria para cada vez mais zombeteira. — O que você acha, ?
— Eu? Não sei. — Ela falou meio nervosa. — Não o conheço há muito tempo e mal nos falamos.
Mas, naquele momento, Gilbert reparou nela e deixou o amigo em seu flerte. E veio na direção delas.
— Prissy, Jane, que bom vê-las aqui. , não sabia que ia ser convidada. Fico feliz. Dessa vez tem carona de volta ou vai precisar de algo? — Ele falou, sorrindo.
— Ahn... — ela começou, o coração um pouquinho acelerado, mas tentando ficar completamente indiferente. — Eu lembrei de pensar na volta dessa vez. Não precisa se preocupar.
— Fico feliz. — Ele comentou. — Bom, vou andar por aí e cumprimentar as pessoas. Embora eu acredite que perdi meu acompanhante para a aniversariante.
Todos riram.
— Bom, vejo vocês mais tarde. — Ele se despediu e saiu.
— O que foi isso? — Jane comentou com as sobrancelhas erguidas e um sorriso no rosto pronta para uma fofoca.
— Quase não se conhecem, é? — Prissy zombou.
— Ah, por favor, somos só amigos. — falou e de novo agradeceu aos céus por não corar e entregar o que sentia.
— Se você diz... — Prissy disse, mas trocou um olhar divertido com a irmã.
Pouco depois, uma jovem de cabelos pretos bem arrumados e um rosto gentil, que não conhecia, entrou no jardim e Jane saiu correndo, assim como Ruby, para cumprimentá-la.
— Tillie! — As jovens falavam, animadamente.
Mas a saída de Jane abriu espaço para a chegada de outro Andrews.
— Ora, , nos encontramos de novo! — Billy riu, talvez numa tentativa de ser charmoso.
— Billy, na minha frente não. — Prissy disse, antes de se retirar.
Droga, agora estava nessa sozinha!
— Olá, Billy, como vai? — Ela forçou um sorriso. Não era exatamente a companhia que ela estava imaginando.
— Melhor agora que te encontrei. Então, soube que vai ter uma dança mais tarde. Gostaria de me acompanhar?
sabia muito bem quem ela desejava que a convidasse. Mas olhou discretamente em volta e o viu absorto em uma conversa com a recém-chegada, suspirando em seguida. Desejar não era o suficiente.
— Claro. — Ela respondeu, cortês.
— Então, te vejo já, já. — Ele disse, piscando e se retirando.
Billy era bonito, mas algo no jeito que ele falava e agia, deixava-o menos agradável.
— Não acredito que meu irmão ‘tá a fim de você. — Prissy falou, desgostosa.
— Desculpa se você acha que eu não estou à altura dele. — sabia que eles eram irmãos, mas Prissy precisava tratá-la assim?
— Ah, não é isso! — Prissy sorriu. — Ele que não está a sua altura. É um idiota sem personalidade e cérebro.
— Bom, por enquanto, não ando com muito direito de opinar e escolher. — deu de ombros.
— Sei, sei. — Prissy riu.
foi apresentada à Tillie, que foi bem educada com ela. Encontrou Josie Pye de novo, que não agiu muito diferente da última vez — pelo menos agora ela estava sem a irmã, não sabia se ia conseguir aturar duas Pyes novamente. Até Diana aparecer, acompanhada do seu noivo, Fred Wright, que ainda não tinha conhecido. Não se sentia extremamente confortável naquele meio, onde sabia que era a estrangeira dentro de amizades de anos.
Conheceu rapidamente também um primo de Ruby, Jake, e duas amigas da faculdade das meninas, Esther e Susane. Porém, logo o tempo passou e estava na hora da primeira dança. Billy logo veio convidá-la, o que fez Josie a olhar ainda mais feio.
— Vamos? — Ele disse, oferecendo-lhe o braço, que ela aceitou.
A banda que a família Gillis havia contratado já havia aquecido e agora vários pares se formavam. A própria Ruby e Moody. Diana e Fred. Jane e Charles, outro amigo antigo das meninas. Tillie e um garoto que não recordava o nome, mas era alto. Prissy e Gilbert. E Josie com Jake — o garoto claramente olhava para a Pye com completa admiração, mas essa simplesmente revirava os olhos. Esther e Susane dançavam juntas, para o horror dos pais de Ruby, mas claramente estavam se divertindo.
A dança foi bem divertida, embora às vezes Billy a tocasse “acidentalmente” perto demais de lugares que ela preferia que ele se mantivesse longe.

No final da dança, todos aplaudiam e riam, com as bochechas coradas do esforço. Ruby era a que parecia estar se divertindo mais, afinal, era o centro de todas as atenções. Todos se dispersaram e Billy continuou grudado em .
— Vamos passear pelo jardim. Acho que existem cantos interessantes para serem... explorados. — Ele sorriu, maldoso.
— Ah, não, a música está tão boa, vamos ficar aqui. — o desconversou.
— Qual é, você vai gostar, não seja chata.
— Chata? — olhou para ele, agora com total frieza. — Eu apenas gostaria de ouvir a música.
— É sua última chance, . Vamos passear?
— Eu faria um teste de audição, Andrews... — ouviu uma voz vindo por trás. — Porque ela disse “não”.
Billy olhou feio para Gilbert, que havia acabado de interferir.
— Escuta aqui, Blythe, você anda me atrapalhando vezes demais.
— Então deixe eu te ajudar. Eu te dou um desconto pro teste de audição no meu consultório. — Gilbert disse, sorrindo, mas com os braços cruzados passando uma seriedade.
Billy, pela primeira vez sendo esperto, decidiu sair de perto.
— Obrigada. — agradeceu, agora podendo revirar os olhos.
Meu Deus, esse Andrews se mostrou um cafajeste!
— Me agradeça com uma dança. — Ele disse, estendendo a mão e sorrindo.
Ela aceitou rindo e eles se prepararam para dançar.

O resto da noite foi super divertido. dançou bastante, conversou mais com as meninas e, quando a carruagem chegou para buscá-la, qualquer chateação por conta de Billy já havia sumido e ela não parava de sorrir.
Mal sabia que o maior motivo do seu sorriso também sorria em sua própria casa.



Capítulo 11

Gilbert estava em seu quarto, escrevendo algumas cartas. Não se lembrava para quem eram, nem o que estava escrito em cada uma, mas, honestamente, aquilo não importava, ele só tinha que escrever e lacrar.
Quando terminou, espreguiçou-se e se esticou na cadeira. Algo dizia que estava sendo observado e, por isso, olhou para trás.
Sentada em sua cama como se fosse a coisa mais natural do mundo, Anne lia um de seus velhos livros, os cabelos presos em um coque e usando um vestido azul, como naquele dia, há três anos, em que se beijaram. Blythe deveria se sentir chocado, mas algo dentro de si já esperava por isso.
— O que está fazendo? — Ele indagou.
Sem erguer os olhos, ela apenas respondeu:
— Quantos livros de geometria você tem aqui! Sabe, eles não são muito interessantes e nem muito românticos. Suas palavras são tão diretas e chatas, não existem versos nem metáforas. Qual seria a mínima graça nisso?
— Acho que está irritada, porque sabe que eu sempre fui melhor nessa matéria. — O menino riu.
— E, mesmo assim, nunca conseguiu me vencer.
— Um empate com você é um prêmio tão bom quanto o primeiro lugar. — Ele riu.
Ela bufou, finalmente deixando o livro de lado e olhando para ele. O coração do garoto errou uma batida. Ela estava tão linda. Estava como sempre tinha sido, lembrando a eles todos os momentos em que ele achou, erroneamente, que ela era sua.
Como se lesse seu pensamento, Anne ficou pensativa.
— Você não gosta mais de mim?
O garoto travou e colocou a mão nos bolsos, tentando disfarçar o nervosismo.
— Claro que gosto. Quer dizer, somos amigos, né? Até porque, você tem Roy...
Anne se aproximou ainda mais, tão próxima, que o garoto podia contar suas sardas, e colocou a mão em seu rosto.
— Você me ama? — Ela sussurrou, os olhos tão vivos, curiosos e cativantes.
Gilbert engoliu em seco e fechou os olhos, tentando pensar no que fazer. Anne era a garota a quem ele tinha amado nos últimos anos de sua vida. Mas ele não podia mais amá-la. Ela tinha Roy. Não. Ela escolheu Roy, o que era pior ainda.
Anne não era sua.
Mas isso significava que ele deixou de a amar?
Antes que pudesse responder algo, o toque de Shilbert mudou. Tornou-se um toque também conhecido, um toque que frequentemente ele estava encontrando.
Quando abriu os olhos, era quem estava na sua frente com seus olhos brilhantes.
— Gilbert, você me ama? — Ela sussurrou, antes de se aproximar para beijá-lo.

Blythe acordou, o coração batendo no peito. De nervosismo? De expectativa? Talvez de tudo isso e até mais!
Afinal de contas, que porcaria de sonho tinha sido aquele?
Não sabia se tinha sido exatamente ruim. Odiava que seu subconsciente o fizesse recordar de Anne, como se acordado já não fosse difícil o suficiente fugir desses pensamentos. Também se odiava por alimentar aqueles pensamentos com , aquilo o fazia se sentir esquisito e podia acabar a afastando dele. Não queria estragar sua amizade. E, bom, parte dele ficou muito ansioso por aquele beijo. Muito mais do que qualquer amigo deveria ficar.
Afastou aquilo tudo. Ele estava perdendo tempo e neurônios por causa de uma criação do seu subconsciente.
Bom, não eram as horas no travesseiro que iriam pagar as contas.
Decidido a esquecer aquilo, ele se levantou, tomou seu café e partiu para Carmody trabalhar. No dia anterior, tinha cumprido sua promessa e visitado o doutor Raynes. Blythe foi seu assistente durante o dia inteiro e o médico elogiou muito o quanto ele havia crescido em suas habilidades. O gentil doutor ainda pediu o endereço de seu consultório para recomendar aos seus clientes, além de ter dado uma ou outra dica para o mais jovem. Combinaram que, toda quinta, ele o ajudaria em Charlottetown.
Gilbert não se sentia tão feliz há tempos. Sentia-se revigorado ao trabalhar com alguém que compartilhava com ele o mesmo amor pela medicina. Sentia saudades dos colegas da faculdade e de todos os trabalhos e pesquisas que fizeram em conjunto.
Alegre e espantando qualquer pensamento que pudesse atrapalhar seu dia, Blythe chegou em seu consultório, cumprimentando a todos no caminho com um entusiasmo que sentia falta. Várias jovens acenaram para ele no caminho, encantadas e envergonhadas, mas ele apenas acenava de volta sem perceber o efeito que causava nelas.
Mal teve tempo de tirar dois livros da estante, quando ouviu uma batida na porta. Não se surpreendeu nem um pouco ao ver a senhora Pippet parada na porta. Só ela iria procurá-lo sem que ele tivesse colocado o aviso “aberto” ainda.
— Ah, Gilbert, bom dia!
— Bom dia, senhora Pippet. — Ele respondeu, sorridente e educado.
— Vejo que está com um ótimo humor hoje! Bom, muito bom. Vi você chegar com seu cavalo e trouxe alguns bolinhos e café para você. Está tão magrinho recentemente. O dinheiro está dando para comer?
— Não se preocupe, estou me alimentando direitinho. — Gilbert riu, lembrando por um segundo da senhora Lacroix, que sempre reclamava que ele estava magro e colocava mais uma boa colher de comida no prato dele.
— Ah, não é só isso. Depois, gostaria que você desse uma olhadinha no meu pulso também. Uma senhora da minha idade precisa ficar atenta a todas as dores que sente: e, infelizmente, são muitas.
— A senhora é muito saudável e ainda é jovem, senhora Pippet. Não precisa se preocupar.
— Ah, Gilbert, uma jovem senhora não merece ser bajulada assim!
Eles se sentaram e Gilbert tomou seu segundo café da manhã do dia. Jeannie ia empurrando os pedaços deliciosos de bolo para o prato do menino, mas ela mesma pouco comia, sempre o olhando com seus olhos gentis. Ela não era de falar muito no início, mas depois de todos esses meses, a velha senhora se sentia mais à vontade para conversar com o menino. Estava cada vez mais o vendo como o neto que nunca teve. E ele, a avó que nunca conheceu.

— Agora, vamos dar uma olhada nesse pulso. — Blythe disse, quando terminaram a refeição. – Acho que está melhorando. Infelizmente, creio que nunca mais vai voltar a ser o que era antes. Mas, se você cuidar e não se esforçar muito, não vai voltar a sentir dor. Seria bom uma vez por semana você não trabalhar, ficar de repouso e colocar uma compressa quente. Isso fará com que a tendinite fique apenas dormente.
— Ah, doutor Blythe, você é um menino bom demais para mim! Muito obrigada! Aqui, tome, pela consulta. — A senhora Pippet deixou uma quantia para ele, que deveria equivaler a cinco consultas suas, se não mais.
— Ah, você contou errado. — Ele devolveu a maior parte do dinheiro.
— Devo te dizer que fui a melhor aluna de matemática da minha série. Costurar envolve medidas! Eu não erro minhas contas. — Jeannie negou a devolução.
— Mas é muito!
— Então considere o resto por aturar uma velha chata como eu.
— Eu nunca consideraria passar tempo com a senhora algo chato. Assim como não a vejo assim.
— Viu? Gentil demais! Deve aceitar o dinheiro e guardar os elogios para uma moça mais jovem que os mereça.
E, antes que ele pudesse replicar, ela foi embora, deixando-o atônito.
Colocou a placa de “aberto” e se sentou em sua poltrona, mas logo o local foi ocupado.
Aqueles olhos que ele jurou que facilmente esqueceria entraram no seu consultório. Então, ele percebeu que nenhum sonho seria capaz de reproduzir o brilho daqueles olhos , nem a maciez de sua pele ou o rosa de sua boca. Seus cabelos estavam meio presos, meio soltos, bagunçados e ela parecia mancar um pouco.
Por Deus, ela estava mancando!
! O que houve com você? — Gilbert se aproximou, afastando qualquer pensamento e constrangimento além da racionalidade médica.
— Er... eu caí? — Ela riu fraquinho, mas gemeu de dor logo em seguida.
Gilbert olhou para , pedindo permissão para levantar seu vestido. Ela assentiu, distraída. Ele o levantou até o joelho e encontrou suas pernas cobertas de sangue.
— Caiu exatamente onde? — Blythe perguntou, os olhos arregalados.
— Olha, eu só estava dando uma volta, enquanto... ai, cuidado aí... enquanto lady Pancy e minha irmã faziam compras juntas. Bom, eu só estava espian... olhando curiosamente o bar, mas parece que eles colocaram uma nova decoração.
Gilbert buscou um pano para limpar as pernas da menina.
— Que tipo de decoração?
Ela gemeu de dor antes de responder.
— Me diga, que tipo de estabelecimento se enfeita com uma planta tão espinhenta? Isso é ridículo. — bufou, agora as pernas não mais cobertas de sangue e os diversos arranhões expostos.
— Você caiu em cima do cacto? — Blythe perguntou, permitindo-se rir, agora que via que não era nada grave.
— Bom, não foi exatamente culpa minha, você entende, não é? Semana passada esses espinhos não estavam lá.
— Foi um presente, ele ganhou de um cliente que voltou de uma grande aventura nos desertos distantes... ou assim ele diz. Fico surpreso que não tenha escutado as histórias.
— Fiquei mais preocupada com os machucados.
O menino pegou uma substância gosmenta e começou a aplicar na garota, que fazia várias caretas e exclamava muxoxos.
— Por acaso, lady Pancy e a senhorita sabem onde você se encontra?
— Não sabem e não saberão, se você cuidar rápido desses cortes.
— Isso é jeito de tratar o seu médico? Eu posso decidir sua vida, sabia?
Ela riu docemente, enquanto revirava os olhos, mas depois se contraiu quando ele passou aquela gosma em um corte particularmente grande. Depois, ela permaneceu quieta, apenas olhando todo o processo.
— O que você tanto olha? — Ele perguntou, enquanto pegava as gazes para o curativo.
— Ah, eu costumo ralar meu joelho às vezes, é bom saber como me virar numa situação dessas para não te perturbar sempre. Essa já é a segunda vez em dois meses que eu te perturbo.
— Você nunca me perturbaria e é sempre bem-vinda aqui. Venha sempre que puder. — Gilbert sorriu, enfaixando sua perna direita.
dirigiu um olhar um tanto surpresa para ele. Estavam próximos, enquanto ele cuidava dela. Na verdade, agora ganhava consciência de que havia levantado a saia dela. Como médico, aquilo era apenas um procedimento padrão, mas não era exatamente assim que se sentia.
“Você me ama?”, a voz dela no sonho o perguntou.
Não, ele não a amava. Conhecia a jovem havia pouco tempo. Mas gostava de sua amizade, de sua risada e do jeito em que ela passava de uma dama educada para uma menina obstinada. Céus! E, com certeza, a achava bonita... Mas seu coração ainda era de Anne. Ou, ao menos, parte dele. Sentia que não era como antes, mas ela ainda estava lá.
Pensando bem, só deveria estar incomodado desse jeito, porque as pessoas pareciam de certa forma fazê-lo considerar como uma pretendente. Até seu subconsciente sabia disso. Mas via, pela expressão chocada da menina, que ela o via apenas como amigo. Assim como ele via ela. Só tinha que lembrar a si mesmo disso.
Por isso, completou sua frase:
— Venha sempre que puder, é sempre bom ter uma companhia amiga.
A menina pareceu se acalmar diante aquela última palavra. Então, afastando qualquer pensamento que não fosse puramente amigável, Gilbert continuou:
— Sabe, desde que lady Pancy e sua irmã não a vejam com qualquer vestido curto por, pelo menos, três semanas, não irão descobrir os arranhões. Mas eu só sei costurar pele e não tecido, por isso, não posso disfarçar seu vestido.
seguiu seu olhar e encontrou vários fios soltos saindo das suas vestes e suspirou, frustrada.
— Por que eles não podem enfeitar um bar com trevos? Ou, quem sabe, margaridas? Por que tinha que ser um cacto?
— Talvez para afastar pessoas bisbilhoteiras como você.
— Ei, eu não estava bisbilhotando, estava apenas... fazendo pesquisa local.
— Vou deixar passar essa sua pesquisa local, porque tive uma ideia sobre o seu vestido.
Logo, Jeannie Pippet estava de volta, parecendo radiante de poder ajudar Gilbert. Ela cumprimentou , que falou com ela animada, já conhecidas. Não que isso surpreendesse Blythe. Em uma cidade tão pequena, era impossível não conhecer todos.
As mãos habilidosas da senhora logo deixaram o vestido novo e impecável, escondendo todos os fios soltos e consertando os rasgos. Ao mesmo tempo, Gilbert agora terminava a perna esquerda da garota.
Em um instante, ela estava de pé, ajeitando os cabelos novamente, sem mancar mais, embora andasse devagar.
— Nunca poderei ser grata o suficiente para com ambos. Infelizmente, meu dinheiro está todo com lady Pancy, depois mandarei por correio o dinheiro de cada um, juro por minha vida!
— Não precisa jurar, eu acredito. — Gilbert riu dela e ela retribuiu, mas logo parou ao desviar os olhos para a janela.
— As duas estão se aproximando daqui. — falou, quase que em um sussurro. — É melhor eu ir rápido. — E assim, sem olhar para trás, ela saiu pela porta, enquanto Gilbert a seguia com o olhar.
Jeannie soltou uma risadinha.
— O que foi? — O menino perguntou.
— Sabe, essa é uma jovem que vale a pena gastar elogios com...
E antes que Gilbert pudesse responder, ela saiu, deixando para trás um jovem médico confuso e com um leve sorriso nos lábios.



Capítulo 12

— Eu não acredito que Billy realmente tentou algo com você! Poxa vida, eu queria ter ido nessa festa. — suspirou.
e estavam na mansão Louborne, sendo a primeira vez que a visitava desde seu aniversário. Ao contrário do chá formal que lady Pency permitiu que fizessem, elas estavam no quarto da jovem , comendo torradas em cima da cama, conversando e rindo.
foi educada em casa e, por isso, nunca teve amizades que ela pudesse manter. O mais perto que chegou, foi uma vizinha que tinha uma filha quase da sua idade. Mas, três meses depois de se conhecerem, a jovem Georgia se mudou para Paris para ser introduzida na sociedade. No início, as duas trocaram cartas para manter contato, mas logo os pretendentes ocuparam a mente de Georgia o suficiente para que ela deixasse de escrever.
não podia negar que temia que isso acontecesse com ela e , mas algo a dizia que não. Nunca tinha tido uma conexão amigável com alguém desse jeito. E, justamente por isso, afastava pensamentos ruins, preferindo aproveitar o tempo com sua amiga.
— Queria que você estivesse lá. Prissy é bem legal, mas ainda não é você. E acho que você poderia ter me ajudado a me livrar do seu primo. Sem ofensas.
— Ofensa para mim seria elogiá-lo. Mas eu acredito que, no fundo, por trás de todo o cérebro que falta nele, existe um coração. Só foi ensinado do jeito errado a usá-lo. — bufou, parecendo se perder em pensamentos.
, o que foi? — A jovem indagou.
— Ah, desculpa, , eu não queria te encher com meus problemas! É só que... estou tão cansada. Quando finalmente consegui um emprego na floricultura, mamãe e papai ficaram horrorizados e me proibiram de continuar. No primeiro dia! Que péssima funcionária eu fui... tenho certeza de que querem que eu seja dependente deles até passar a ser dependente de um marido. É com esse pensamento que meu tio criou Billy também. Os homens, mesmo os estúpidos e prepotentes, tudo podem e tudo receberão. Enquanto nós, só teremos algo se tivermos um deles!
— Bom, acho que as coisas simplesmente são assim. — disse, conhecendo as frustrações da amiga, mas também tendo marteladas em seu coração todas as convenções sociais que seguia.
— São, mas não precisam ser. O problema é que não sei o que fazer! Veja a pobre Prissy, tão boa no que faz, uma mãe que a apoia... mas nunca vai conseguir a fazenda, a não ser que Billy seja internado em um hospício, o pai infarte e a mãe a proteja de documentos legais, que provavelmente darão a propriedade para um primo distante.
— E o que você faria se pudesse, ?
— Se eu pudesse? Ah, se o mundo fosse livre, eu teria meu dinheiro, teria uma paixão. E não por um homem, mas, sim, por um serviço! Qualquer um que não seja lavar louças e receber convidados. E, então... viajaria o mundo. Há tanto para se ver! — A amiga olhava para o nada, maravilhada, mas depois uma careta se formou em seu rosto. — Porém, no final, eu vou acabar na mesma casa de sempre, uma velha solteirona como Marilla Cuthbert, ou casada com um homem mediano que meus pais arranjassem, como acredito que seja o futuro das irmãs Pye. Nenhuma perspectiva animadora. E você?
— Eu não sei. — admitiu, muito intrigada. — A primeira vez que eu visitei a mansão Louborne, eu falei para minha mãe que eu seria uma cuidadora de cavalos, igual os rapazes que eu vi no estábulo daqui. Ela ficou tão pálida, que quase desmaiou. Todos me perguntavam que coisa horrível eu havia falado. Nunca mais ousei pensar ou falar nada para que minha mãe não tivesse um grave problema de coração. No entanto, parece que eu a poupei de infartos, mas não de gripes. Agora que eu nem sei como ela se encontra... acho que eu só faria qualquer coisa que a deixasse bem.
— Ah, , não me faça chorar! Não seja tão emotiva. Seja feliz. Se liberte! O que você faria, se não estivesse ninguém olhando para adoecer ou julgar?
A jovem pensou, olhando para longe. Uma vez, seu maior sonho havia sido cuidar dos belos cavalos dessa casa, além de morar na propriedade. Descobriu que ambos não eram exatamente fáceis nem agradáveis. Agora, só pensava em encontrar , fugir de lady Pency, ver seus pais bem, descobrir o que havia naquela sala tão secreta da casa e, bom, não podia negar... rever Gilbert.
Mas nada era grandioso. Eram respostas práticas. Teria que acordar uma imaginação muitas vezes adormecida pelos costumes para responder aquilo.
Cutucou seus pensamentos mais ousados, aqueles que nunca dava atenção ou alimentava, e começou a escutá-los. Sonhos que nem ela sabia que possuía, mas, pensando melhor, não se imaginava sem os possuí-los.
“O que eu faria sem ninguém para me olhar, julgar ou infartar?”, pensou. E uma imagem brilhante veio à sua cabeça.
— Que minha mãe não me ouça. Nem meu pai. Nem . Nem lady Pency. Pensando bem, acho que peço que ninguém me ouça, mas... — a jovem suspirou. — Não seria nem um pouco ruim ser uma musicista famosa e poder me apresentar em algum grande palco. — A garota ficou em silêncio, esperando a reação da amiga.
, eu ficaria honrada em ser a primeira de muitos dos seus fãs! Você toca piano, certo? Me recordo que tocou quando me visitou.
— Sim, eu toco flauta e canto, mas piano é minha paixão. Uma das poucas coisas que as convenções trouxeram de bom para a minha vida.
— Um dia, você precisa fazer uma apresentação para mim. Por favor!
— Não posso prometer nada. — riu. — Mas se você arrumar um espaço privado e com instrumentos, eu penso no seu caso! Essa penitenciária, digo, mansão, parece ter algo muito forte contra a música. Não existe um único instrumento ou partitura para ser encontrado em lugar nenhum!
— Pois então saiba, que minha missão pessoal será encontrar esse espaço para você!
As duas riram, cúmplices, e logo encheram a boca de torradinhas, sentindo-se novamente na distante infância da qual elas sentiam imensas saudades.
— Sabe, , Prissy me contou que Billy não foi o único a cortejá-la. — sorria maliciosamente.
— Não sei do que fala. — replicou, balançando a cabeça em negação.
— Ah, mas sabe muito bem! Quando me disse que era amiga de Gilbert Blythe, não me disse que ele fazia tanta questão de cumprimentá-la, dançar com você e nem dava tantos sorrisos!
— Porque ele faz isso com todas! Você mesma me disse. Ele é meu amigo e ele trata todas as amigas assim. É um perfeito cavalheiro.
— Ah, pelo que Prissy me contou, ele não estava te tratando como qualquer uma. — A jovem Monroe riu.
, não fale assim. Você mesma me disse que ele ainda é completamente apaixonado por aquela Anne-Perfeita-Shirley! De que adianta me encher de expectativa? — admitiu, pois sabia que parte de si se agarrava naquela esperança boba por um garoto bobo que ela pouco conhecia, mas mexia com ela como ninguém havia mexido.
, isso muda tudo! Talvez ele não estivesse sofrendo do jeito que acreditávamos. Ele pode ter superado. E você tem que aproveitar isso antes que outra aproveite.
— Parece que você está falando de um lote de casa disponível!
— E não seria a mesma coisa? Um homem disponível, uma casa à venda... não vejo muitas diferenças. Quem possuir o maior financiamento, vence.
— Eu não quero financiar Gilbert Blythe! — A jovem exclamou, horrorizada.
— Não com dinheiro, ! Mas você irá fazer o seu financiamento com charme e esses dotes femininos que dizem que nós temos.
— Realmente, , devo estar fazendo um ótimo progresso. Já apareci desmaiada em seu consultório, com pernas sangrando, já esqueci de pedir uma carruagem na sua frente. Ele deve me achar patética! — replicou, sarcástica.
— Não desanime! Homens gostam do complexo de serem nossos salvadores. Um desmaio é a maior chance para seus egos. Um homem não ama uma mulher, ama o quanto ela pode servi-lo e fazê-lo amar a si mesmo.
— Não é assim. Gilbert não é assim!
— Já o conhece bem o suficiente para esse julgamento, não é? — provocou, rindo, fazendo bufar.
— Não é isso. Eu não quero competir por Gilbert Blythe. E quem disse que quero ficar com ele? Eu tenho a amizade dele e é tudo o que preciso!
— Nunca o imaginou segurando sua mão? Dançando com você? — se aproximou com um tom conspiratório. — Te beijando?
Os olhos de se arregalaram e aquela foi uma das situações em que ela agradecia profundamente por não corar. Algo dentro de si a fazia sentir que enxergava sua alma, enxergava cada baile que havia imaginado comparecer com o jovem médico... como seria sentir sua mão na sua novamente, aquele calor confortante ou tê-lo em seus braços. E, ah, meu Deus, que seu pai não descobrisse! Mas ela já havia sonhado acordada, imaginando como seria o toque dos lábios de Gilbert Blythe.
Acordou de seus pensamentos com rindo dela. Aquilo estava sendo frequente demais para sua querida reputação.
— Não precisa responder, seu rosto inteiro tem um grande “sim” estampado!
decidiu não rebater, concentrando-se nas suas torradinhas.
— Onde você guarda papel, tinteiro e pena? — perguntou.
— O tinteiro e a pena estão em cima da penteadeira. O papel está na terceira gaveta. — respondeu, curiosa com o que a amiga tinha em mente.

Depois de alguns minutos, a jovem se levantou da cama e se aproximou da amiga, espiando por seus ombros.
— O que é isso?
— Sou eu salvando a sua vida. — disse. — E pronto!
A amiga estendeu-lhe a carta, a qual ela prontamente agarrou para ler.

Querido Gil,

Há tempos que você não sai de minha cabeça e, depois de tantos questionamentos, decidi perguntar o mesmo. Senti algo especial desde que você me socorreu, enquanto eu estava tão indefesa e machucada. Cada dança que compartilhamos foi única e fico imaginando se tudo deve ser interrompido na nossa amizade. Chego a sentir-me indisposta ao conter meus sentimentos, mas o medo que sinto é cruel. Sente o mesmo por mim? Ou sou apenas outra das suas muitas admiradoras não correspondidas? Imploro-te que acalme meu coração e abra o seu para mim!

Sempre sua,

A jovem ficou encarando a carta em completo choque.
— E aí? Muito boa, não? Puxa, eu deveria trabalhar com isso. — falou.
A resposta da amiga se deu com o barulho de papel rasgando.
Não! Minha obra prima! Tudo bem, eu faço outro. Estou mais inspirada agora!
— Outro? , isso é patético!
— Ih, você me chamou de . A coisa ficou feia...
— Feia? Feia?! , essa carta não tem nada a ver comigo! E que história é essa de “Gil”?
— É um apelido, ué.
— Justamente. E nós não usamos apelidos um com o outro.
— Tá bom, talvez não tenha sido minha melhor carta, mas você tem que tentar alguma coisa! Não pode deixar passar a oportunidade! Imagina o quanto você pode se arrepender no futuro, quando descobrir que deixou o amor escorrer para longe de você?! , você ama aqueles livros de romance. O que você acha que Emma faria agora?
— Empurraria a amiga para algum cavalheiro digno e procuraria o homem mais desejado para ela.
— Então faça isso! Mas sem a parte da amiga, por favor.
— Mas, no final, não era o cara certo.
— E isso, você só poderá saber se tentar, não é?
olhou para a amiga. Sabia que ela poderia estar muito certa ou muito errada. Bom, se tudo desse errado, em algum momento seria apenas uma memória cômica da qual ela riria — e se lembraria de nunca mais cometer o mesmo erro.
A jovem suspirou.
— Tudo bem. Mas eu escrevo.
Pouco depois, ela assinou a carta e entregou para que a amiga analisasse.

Caro Gilbert,

Como vai? Faz tempo que não o escrevo, certo? Espero não estar atrapalhando, mas desde minha última visita (ou, melhor dizendo, acidente) em seu consultório, estive pensando em uma ideia.
Haveria algum problema se eu passasse no seu trabalho na segunda de manhã? Gostaria de conversar com você. Não se preocupe! Nada sério. Pelo menos, nenhuma saúde em risco, que eu saiba.
Me responda quando puder.

Atenciosamente,

— E aí? — perguntou, ansiosa.
— Ah, a minha estava muito melhor. — deu de ombros e não pode deixar de rir. — Mas estou tão orgulhosa! Você vai finalmente se declarar!
— Eu não vou me declarar!
— Ah, não? Então isso tudo é para quê?
abriu um sorriso conspiratório.
— Digamos que você pode ter me inspirado a ousar mais e talvez esteja na hora de eu tentar ter um emprego...



Capítulo 13

Gilbert ficou extremamente ansioso ao receber a carta de . Ela não escreveu nada demais, no entanto, sua natureza curiosa o fazia indagar no que ela estava pensando. Não sabia o que esperar dela. A jovem claramente não era convencional, mas ainda era uma dama. Uma garota. E ter consciência disso, despertava coisas estranhas nele.
Quando, na segunda de manhã, a porta se abriu e revelou a senhora Pippet, ele precisou se conter para não demonstrar seu desapontamento.
— Bom dia, Gilbert! Que bom te ver tão bem disposto me esperando na porta. Eu trouxe bolinhos.
O jovem médico sorriu e a conduziu para a mesa, a ponto de terem sua costumeira conversa matinal, enquanto tomavam café. Ela contou de todos os seus projetos atuais e perguntou dos pacientes de Gilbert. Apesar de não entender muita coisa médica, ela era gentil e escutava cada palavra.
Depois da consulta diária no pulso de Jeannie, Gilbert ouviu a porta se abrir novamente.
— Ah, bom dia, senhora Pippet! Bom dia, Gilbert! Cheguei muito cedo? — A voz de preencheu o ambiente e Blythe se sentiu subitamente nervoso.
— Não se preocupe, querida, eu já estou indo! Não se incomodem comigo. — A velha senhora comentou, juntando seus pertences e tratando de pagar Gilbert, generosa como sempre na quantia. — Agora entendi a ansiedade matinal. Uma velha como eu deveria ter percebido que era o amor jovem.
O rosto do jovem ficou vermelho e antes que ele pudesse replicar, a mulher saiu sorrateira e sorridente.
— O que ela te disse? — A jovem perguntou, curiosa.
— Ahn... Sobre alguns medicamentos. — Ele desconversou. — Mas, é... Bom dia! Já comeu algo? Tenho alguns bolinhos que a senhora Pippet deixou aqui.
— Eu agradeço, mas já comi deliciosas panquecas no café da manhã e pretendo comer pouco durante o dia para poder acabar com as sobras mais tarde. — sorriu, levemente constrangida.
— Então devo assumir que panquecas são seu prato favorito?
— Ah, com certeza! Tenho certeza de que os bolinhos estão deliciosos, mas é realmente impossível competir com as panquecas. Eles só venceriam se minha mãe me obrigasse a comer. Por favor, não conte à senhora Pippet! — Ela correu para acrescentar.
— Você tem minha palavra. — Ele não conseguiu conter o riso. — Mas pelo menos se sente.
Ele observou a jovem ajeitar seu vestido amarelo-claro, enquanto se acomodava no sofá. As palavras estavam na ponta da sua língua, mas ele temia parecer muito ansioso. Por sorte, era tão, ou mais, ansiosa que ele.
— Então... Eu desejava falar com você sobre o que eu lhe escrevi na carta. — encarou Gilbert e este percebeu que nunca estaria realmente preparado para a intensidade daqueles olhos .
Ele pigarreou de leve, antes de falar:
— Eu adoraria te escutar.
Ela sorriu, parecendo um pouco aliviada. Suas mãos mexiam distraidamente na saia, enquanto ela olhava ao redor, antes de focar o olhar novamente nele.
— Bom, como você sabe, tudo o que lady Pency, toda a minha família e a sociedade espera de mim, é um bom casamento. Ainda mais que eu estou envelhecendo.
O jovem médico não pôde deixar de levar um susto. O assunto em questão era casamento? Ele não se via casando. Não agora. Será que ela entendera tudo errado e esperava um pedido? Será que ele deixou brechas a entender isso?
— Mas eu acho isso muito esquisito. Por que deveríamos esperar a vida inteira por apenas esse momento? Ainda mais nos deixando dependentes financeiramente dos homens... Bom, eu não sei o que você pensa disso, mas já devo te avisar que se você achar o que eu penso um absurdo, eu pretendo sair por aquela porta e cumprimentá-lo em todos os futuros eventos sociais por pura educação, sendo o fim da nossa amizade.
Gilbert não pôde deixar de rir levemente.
— Seria uma pena perder uma amizade assim, então me sinto aliviado por concordar com suas palavras. Afinal, existem muitas mulheres tão ou mais geniais que os homens. — Um relance de uma memória da garota ruiva passou por seus olhos, antes se voltar a focar na garota à sua frente.
— Ah, que ótimo! — comentou, contente. — Porque eu gostaria de pedir um favor e isto já será constrangedor o suficiente, mesmo com você concordando com meus ideais.
— E o que é? — O médico não pôde conter a curiosidade.
A jovem respirou fundo, desviando o olhar.
— Eu queria que você me ajudasse a encontrar um emprego.
Primeiro, Blythe ficou extremamente aliviado por aquele assunto ter terminado tão longe de qualquer menção a casamento. E depois, não pôde deixar de se sentir surpreso e de admirar aquela menina na sua frente, que estava confiando nele.
— Vai ser uma honra te ajudar.
O olhar de se ergueu rápido, brilhando com as possibilidades. Ela se levantou e correu até ele, envolvendo-o em um abraço inesperado e bem-vindo.
— Ah, muito, muito, muito obrigada! Eu estava com tanto medo de que você negasse! Quero dizer, com certeza você tinha esse direito, mas eu não conheço tantas pessoas e você conhece todos por aqui.
Gilbert escutava parcialmente o que ela dizia, a outra parte completamente consciente do aperto firme e carinhoso que recebia. Era algo tão puro e espontâneo, que ele logo estava perdido no calor que o corpo da menina emanava e no cheiro de seu cabelo...
Até que ela se afastou abruptamente. Um tom levemente rosado tingia suas bochechas e precisava ser muito observador para perceber que ela estava corada.
Ahn... É... Eu... — ela pigarreou. — Então, sobre o emprego?
Gilbert conteve um sorriso perante o constrangimento de , sabendo que, se implicasse demais com ela, poderia acabar afastando-a.
— Preciso saber de que tipo de coisa você gosta. Não adianta a gente conseguir um emprego para você, se você não gostar.
— Eu desgosto de poucas coisas. Eu realmente amo música, mas nunca poderia tocar sem parecer uma artista libertina. Também não posso trabalhar em tabernas, então nada de garçonete.
— Basicamente, nada que comprometa sua reputação.
Principalmente aos olhos de lady Pency. Ela já terá um infarto quando descobrir. Espero que seja o menos escandaloso e discreto possível.
Gilbert olhou em volta, pensando em cada ponto de Carmody por qual poderia circular sem chamar atenção e nem parecer um emprego. Teve sua primeira ideia.
— E que tal tentar algum emprego com Jeannie? Ela anda precisando de ajudantes com aquele pulso sensível, por mais que ela não admita.
— Ah, seria realmente uma ideia ótima. — Ela disse, embora soasse desanimada. — Mas costurar sempre foi a habilidade que minha mãe mais estimou e eu não consegui desenvolver. As agulhas gostam de furar meus dedos.
Ele sorriu compadecido, embora um pouco decepcionado. Nenhuma outra ideia plausível passava por sua cabeça. Quer dizer, havia uma. Mas não sabia se seria boa.
Mas, talvez... fosse a única saída.
— Bom... eu nunca tenho tempo para limpar esse espaço como deveria. Às vezes, a senhora Lacroix faz esse favor para mim, mas eu ando sendo bem negligente. Eu não tenho muito dinheiro para te pagar, mas...
— Ah, você faria mesmo isso por mim?! — se levantou, animada.
— Não é muito. — Blythe reafirmou, com medo de decepcioná-la.
— É perfeito. — Ela afirmou, um sorriso honesto se formando em seu rosto, fazendo Gilbert respirar um pouco mais rápido que o normal.
— Você nem sabe o salário.
— Eu não me importo. Eu sei limpar, poderia vir aqui sem levantar suspeitas, você é uma boa companhia... Tudo encaixa! — ria abertamente. — Quando posso começar?
O jovem médico arregalou os olhos, deixando uma risada escapar.
— Bom, quando você quer começar?
— Por que não agora? — Ela replicou. — Não me sinto energizada assim há dias.
era uma surpresa diária.
— Bom, não vejo motivos para dizer não.
A garota comemorou e pulou, depois parando por um segundo.
— Se bem que não estou com vestes adequadas. Não estou pronta para uma faxina. — Ela olhou em volta, os olhos voltando a brilhar quando avistou algo atrás do médico. — Mas posso começar com as estantes! Não é impossível espanar e organizar as obras mesmo com um espartilho.
, você tem certeza? — Ele precisou perguntar, especialmente para esconder seu próprio constrangimento ao escutá-la falar tão abertamente de uma peça de roupa mais íntima.
— Nunca senti tanta certeza quanto a alguma coisa em toda minha vida! Não vai desistir da ideia agora, vai?
O jovem médico sentia a incerteza dela e não queria ser o responsável por arruinar suas esperanças. era pura e animada, destruir sua alegria atual parecia tão cruel quanto assassinar um animal inocente.
— Eu não desisti da ideia e espero que você também não. Sabe, essa poeira está atacando minha alergia. — Gilbert, por fim, disse, fingindo seriedade e assistindo a risada dela ganhar o ambiente. — Venha, vou te mostrar o local por completo e onde encontrar material de limpeza.
Os dois jovens seguiram pelo espaço modesto, explorando avidamente os três cômodos que Gilbert lhe mostrava: a sala de entrada, o pequeno consultório e uma porta pequena fechada, a qual ele contou que guardava os produtos de limpeza.
— Espere um segundo, a chave deve estar por aqui. — Ele falou, revirando os bolsos, logo em seguida procurando na mesa da entrada, ambos com resultados fracassados.
— Devo supor que não é uma sala muito visitada. — debochou.
— Em minha defesa, a senhora Lacroix geralmente faz questão de trazer os próprios materiais.
— É melhor se calar, Gilbert Blythe, pois você está apenas cavando cada vez mais o buraco no qual você se colocou. — Ela apontou para ele, em uma bronca falsa.
Logo depois, distraiu-se com algo perto da porta.
— Não seria uma daquelas chaves?
O médico olhou para trás, vendo o chaveiro ainda pendurado na porta de entrada. Sentiu-se patético, percebendo que, em sua ansiedade matinal, havia se esquecido de algo tão simples assim.
Bufando, ele se dirigiu à entrada e recolheu o molho de chaves.
— Não fique frustrado, eu vivo esquecendo meus grampos de cabelo em lugares variados da casa. Esses dias, encontrei um no armário de panelas.
— E o que uma jovem dama estaria fazendo perto de um armário de panelas? — Gilbert provocou.
deu de ombros, fingindo inocência ao olhar para o lado.
— Uma jovem deve manter algumas informações para si.
Rindo, o garoto se direcionou à pequena porta de madeira que era tão negligenciada, encontrando a chave de sua fechadura. No entanto, apesar do evidente clique escutado que apontava que a porta já estava destrancada, esta ainda não abria.
— O que houve? — perguntou, prostando-se na ponta do pé para enxergar.
— Está emperrada.
— Me deixe tentar.
Por entender que era teimosa e conhecendo mulheres teimosas, Gilbert pisou para o lado e deixou a garota passar. O que não esperava, é que ela viesse tão veloz em direção à porta, causando um baque surdo do encontro da menina com a madeira.
! Você está bem?! — O garoto perguntou genuinamente preocupado diante da figura de amarelo atordoada no chão.
— Estou ótima! — Ela falou, embora fosse curta e seca.
— Certo... — foi tudo o que ele conseguiu dizer e, embora sentisse que devia se afastar, seu instinto de médico o fez analisar a garota, percebendo que tudo se encontrava em ordem, menos seu orgulho ferido.
Aquilo foi um alívio e um tanto cômico também.
— Você não precisa me analisar tanto assim. — reclamou.
— Qualquer ser machucado sob este teto é meu paciente. Mas eu já te liberei da consulta.
— Odeio ser sua paciente. — Ela bufou.
— Não sabia que minhas capacidades médicas precárias a desagradavam tanto assim. — Blythe comentou rindo, embora parte de si estivesse magoado.
— Não é isso! — Ela prontamente se corrigiu. — É que... Bom, odeio me sentir fraca e vulnerável.
Gilbert analisou aquela garota à sua frente. não era do tipo que se aproveitaria de um tombo para conseguir a atenção de um cara, e, sim, se sentiria frustrada por perder o equilíbrio em primeiro lugar. Uma mão estendida como ajuda, para uma mente tão autossuficiente, poderia ser uma ofensa. Não corava, nem chorava... era uma fachada de uma fortaleza. Mas, no fundo, ainda era uma garota com pontos fortes e fracos como qualquer um.
Por isso, mesmo sabendo do que lhe esperava, Gilbert lhe estendeu a mão.
E foi o fato de ela ter aceitado o gesto e a segurado firmemente, que o fez falar:
— Sabe, não considero isso uma fraqueza. Afinal, pessoas fracas não se arriscam, seja física ou mentalmente. Apenas pessoas fortes e corajosas sofrem, porque elas tiveram coragem de se expor em primeiro lugar, sabendo que poderia dar muito certo ou totalmente errado.
Por alguns minutos, apenas o encarou, a boca levemente aberta em choque. Um sorriso foi crescendo ali e, por fim, ela apertou a mão do jovem mais forte. Foi nesse momento em que ele se deu conta que já havia se acostumado com o calor das mãos dela na sua. E queria mais daquilo.
Blythe se aproximou de forma quase imperceptível, mas foi notado pelos olhos observadores da jovem. O sorriso dela morreu e ele percebeu que era a segunda vez em apenas um dia que a fazia corar. Perguntou-se qual seria o máximo de vezes que poderia alcançar aquele feito. As bochechas coradas combinavam perfeitamente com seus olhos . E com seus lábios rosados. Lábios estes que pareciam estar úmidos e tão receptivos...
Gilbert despertou do transe, percebendo que quase estava cometendo um erro. Estava prestes a beijar , uma dama, sobrinha-neta de uma das mulheres mais poderosas e temíveis da região que poderia esmagá-lo como um inseto irritante. Estava prestes a beijar uma menina sem saber se ela desejava isso e nem se ela esperaria compromisso disso. Da última vez, ele se enganou ao acreditar na reciprocidade. Não poderia cometer esse erro de novo.
O jovem médico se afastou rápido, mas não tão discreto quanto gostaria. Fingiu tentar abrir a porta de novo e, para sua surpresa, funcionou. Ele focou diretamente em encontrar o espanador, evitando ao máximo aqueles olhos brilhantes. Não poderia imaginar a fúria que ela devia estar sentindo por seu abuso. Isso se tivesse percebido o quanto ele quase ultrapassou todos os limites da amizade deles.
E pensar que há quase três meses achava que nunca superaria Anne...
Querer beijar outra garota devia significar algo, certo?
— Han, bem... aqui, espanador e, se precisar de mais algo, pode procurar. Não sou exatamente especialista nisso. — Ele riu, passando a mão no cabelo e entregando o objeto para , evitando olhá-la e tocá-la.
Tinha medo de ceder para seu transe de novo.
— Claro. É de se esperar que um médico seja tão seletivo com seus conhecimentos.
Blythe olhou em choque para a jovem na sua frente.
poderia não demonstrar o que sentia pelas expressões mais básicas, não era fácil ler seu rosto, se assim ela desejasse. Mas sua voz... aquela voz entregava tudo. Assim como o fundo de seus olhos. E ali estava: mágoa. Frustração.
Se Gilbert não estivesse enganado, ela queria o beijo dele. Queria que aquilo tivesse acontecido. E uma parte dele estava simplesmente em êxtase com aquela descoberta. E por isso, somente por isso (ou assim ele dizia a si mesmo), ele teve que beijá-la.
Foi natural e irresistível. Ele a puxou delicadamente pela cintura, mas ainda se sobressaltou. Ele buscou naqueles olhos qualquer sinal de dúvida ou repulsa, mas eles estavam ainda mais brilhantes. Brilhando apenas para ele. Blythe deslizou a mão que estava solta pelos cabelos da jovem na parte que estava solta e os acariciou, ainda mais macios do que ele pensou. E, por mais que nunca fosse admitir, ele havia pensado.
O primeiro toque dos lábios foi tímido e delicado. Apesar de sua força aparente, podia ser frágil e ele não desejava assustá-la. Pelo contrário, queria fazê-la ansiar por mais. A boca quente dela mal se movimentava em encontro a dele, mas as mãos de agarravam as lapelas do casaco do médico, demonstrando que também sentia a intensidade daquilo e não desejava se afastar.
Com cuidado, ele começou a explorar a boca da jovem com a língua e aos poucos ela foi deixando de lado seu receio. Como tudo na jovem, seu beijo era curioso e orgulhoso. arquejava surpresa com algumas sensações daquele contato, assim como cuidava de observar como ele as realizava para reproduzir no garoto tudo o que gostava, pois não ficaria para trás em nada.
Eles se afastaram aos poucos, os olhares se encontrando logo após tudo aquilo. Não parecia real. Gilbert realmente havia beijado ? Tinha que ser verdade, pois não poderia ser capaz de reproduzir uma sensação tão boa... ele queria se afundar mais e mais nela, sem receios ou bloqueios, mas, porque era um cavalheiro, ele iria parar.
Blythe ajustou uma mecha atrás da orelha da jovem e sorriu. Sentia-se particularmente orgulhoso de arruinar seu penteado.
o olhava intensamente, mas ele não conseguia identificar. Não parecia raiva, pelo contrário, mas eram tantas coisas que ele não conseguia decifrar. Mas ela sorriu de volta, um sorriso pleno, e ele se sentiu bem.
A garota abriu a boca para falar algo e finalmente quebrar o silêncio, quando a porta da entrada se abriu. Gilbert praticamente pulou para longe dela.
Ele se dirigiu para a entrada e avistou ninguém menos do que . Seria mentira dizer que ele não estava minimamente surpreso com o fato de a moça ter justamente interrompido um momento tão importante que ele estava tendo com a irmã dela.
— Ah, doutor Blythe, bom dia. Eu estava necessitada de uma consulta no meu ombro esquerdo.
Nesse momento, voltou do corredor e, para a condenação de Gilbert, não se deu conta dos cabelos despenteados.
? O que faz aqui?
? Apenas uma consulta. E você? — A mais velha disse e, embora sua voz fosse doce, seu olhar claramente havia detectado o que havia acontecido.
Gilbert estava extremamente constrangido. E, justamente por isso, disse a primeira coisa que lhe veio na cabeça:
— A senhorita estava apenas procurando um emprego. Agora, ela está trabalhando comigo. Não fez nada de errado, além de tentar alcançar o potencial que ela sozinha já possui de viver feliz.
O olhar acusatório de o atingiu de imediato. Era para ser um segredo, ele lembrava. Mas o que acharia dele, se Gilbert não contasse a verdade? Especialmente depois de sua irmã surgir descabelada do mesmo corredor que ele?
No entanto, a porta se abriu e outra pessoa apareceu na cena. Gilbert percebeu congelar ao seu lado e suas próprias mãos começaram a suar frio. Lady Pency nunca pareceu tão assustadora.
— Vejo que está ajudando minha sobrinha a se tornar uma meretriz. — A velha disse, direta.
Gilbert se engasgou.
— Minha senhora, o que quer dizer?
— Posso não ter um corpo jovem, mas não sou surda. E nem cega. Essa... garota sem limites veio procurar um emprego e você logo se contentou em oferecer a ela em particular o que ela teria em um bordel. Jovens são manipuláveis e voláteis. Vamos, . Se retire agora e não contarei aos seus pais sobre esse escândalo. E nem sonhe em sequer voltar a vê-lo, menina desprezível.
O tempo, assim como tudo ao redor, ficou confuso para Gilbert. Ele não sabe quanto tempo segurou sua mão e nem quando a persuadiu para soltá-lo. Não sabe quando a menina cheia de vida e desejos perdeu a sua luz e se afastou dele, como se algo dentro de si houvesse quebrado. Ele com certeza sentiu algo assim.
Havia beijado e a perdido no mesmo dia. Não sabia o que aquilo significava para seu futuro ou para seu presente. Nem ao menos o que significava para seu coração. Quem ele queria mais: Anne ou ? Anne sempre estaria ocupando uma parte dali, ele sentia isso. Mas ela estava cada dia menor. Isso significava que a parte pertencente a cresceria? Não adiantava mais negar, ela já havia se infiltrado ali, sem que ele percebesse.
O que seria de ambos agora?
Enquanto não sabia a resposta dessa pergunta, Gilbert suspirou e fechou os olhos, gravando o máximo possível consigo a sensação de ter tido para si.



Capítulo 14

chorava há dois dias. Não sabia exatamente como estava se sentindo, apenas percebia um vazio que se instalava no seu peito. Queria sumir. Queria dormir para sempre. Pelo menos, em seus sonhos, ela podia relembrar dos lábios de Gilbert.
Aquele momento... ah, aquele momento foi único e mágico. Era seu primeiro beijo e ela sempre sonhou que fosse especial...
E foi mais do que isso: beijar Gilbert Blythe era como tocar uma partitura que ela nunca leu, mas, em sua primeira tentativa, a música saiu de forma fácil e extremamente familiar. Cada nota parecia certa, a melodia era linda e ela sabia o que fazer. Era o tipo de música que arrepiava o corpo e tocava o coração.
Sim, só isso poderia chegar perto da emoção de beijá-lo.
Mas, como em todo drama de suas leituras, tudo havia sido arruinado.
Lady Pency chegou. E deduziu tudo. E, dois minutos depois, ela estava a caminho de casa na carruagem, com segurando sua mão, embora aparentasse decepcionada. parecia um monstro por ter se aventurado naquele frio do estômago que sentiu.
E nem era culpa dela! Bom, ela certamente desejou aquilo, mas nunca imaginava que poderia realmente acontecer. Afinal, Prissy e haviam deixado bem claro que ele amava Anne. Mas será que então aquilo significava que ele não amava mais Anne?
Será que seria porque ele gostava dela?
Ela comentou aquilo com lady Pency. Comentou que eles gostavam um do outro. A resposta veio em forma de uma ardência em sua bochecha. Para uma senhora, lady Pency possuía tapas fortes.
— Sua tola! Ele é um homem! Ele não te beijou porque te ama. Te beijou, porque quer corromper sua inocência!
se virou esperançosa para . Ela iria defendê-la. Ela devia defendê-la. Mas tudo o que ela disse foi:
— Você perdeu sua virtude, ?
A jovem ficou em choque. Nada de “”, nada de conforto. Apenas acusações.
— É claro que não! — Ela respondeu, mas ninguém a escutava.
— Eu sabia que aquele garoto era um aproveitador. Caçador de fortunas! Devia estar tentando comprometê-la para ficar com seu dote e se relacionar bem. — Lucila falou, a voz transbordando veneno.
— Isso é mentira! Gilbert não é assim!
Ela deveria ter previsto o segundo tapa.
— Escute aqui, jovem. A senhorita está sob minha guarda, recebendo um imenso favor. — O lábio de lady Pency tremia e sua voz saía baixo como um rosnado. — Você é simplesmente uma menina tola que não sabe de nada!
— Eu sei quem ele é. — respondeu baixinho.
— Sabe, não é? Então, diga-me, . Se ele é tão honrado, ele certamente não tentou nada que comprometesse sua honra, certo?
O rubor em suas bochechas, os cabelos despenteados e o silêncio respondiam aquilo.
— E, certamente... — Lady Pency continuou. — Após o mínimo movimento impróprio, ele lhe propôs em casamento, certo? Afinal, ele gosta da senhorita.
Casamento. A única vez em que sequer mencionou o assunto naquela tarde, Gilbert empalideceu, como se ela estivesse lhe propondo qualquer coisa. E isso foi antes do beijo.
Mais uma vez, o silêncio de foi suficiente para a velha mulher.
— Sua menina tola, era de se esperar que, assim como fala sem pensar, agiria da mesma forma. Nunca conheceu um homem para saber como eles pensam. O médico não gosta de você. Apenas foi um alvo fácil e tolo e ele aproveitou.
se sentia patética. Será que era verdade? Será que ele nunca gostou dela, só a viu como uma oportunidade?
Ela sempre se orgulhou de ser inteligente, mas nunca se sentiu tão estúpida. Dentro de si, ela sentia o vazio crescendo com todas as suas esperanças se despedaçando. Perdeu seu recém-adquirido emprego. Perdeu seu primeiro beijo por interesse. Perdeu Gilbert.
Na verdade, achava que nunca o teve em primeiro lugar.
A jovem nem percebeu quando a carruagem, enfim, parou em frente à mansão Louborne. De repente, a casa que ela tanto amou quando pequena, parecia o pior lugar para se estar. Uma vontade de fugir para casa, para sua mãe, se fez presente dentro de si.
Mas, pensando bem, para quê? Suas broncas não seriam tão diferentes das de tia Lucila e o olhar de decepção seria idêntico ao de . Pois, no final, a verdade era simples: havia sido uma tola.
De repente, a jovem sentiu seu estômago se contrair de agonia.
Entrou na mansão, recebendo olhares discretos e treinados para serem indiferentes dos criados. Levou a mão ao rosto e percebeu que as lágrimas ainda caíam em seu rosto.
Então era assim que se sentia alguém com coração partido?
Pensando melhor, talvez ela preferisse nunca ter se apaixonado em primeiro lugar.
E foi sem querer. Ela não queria. Mas o maldito Gilbert Blythe precisava tratá-la de forma tão gentil? Era claro que todas se apaixonavam por ele. Ele tratava todas dessa forma romântica. Pensando bem, quantas meninas ele poderia já ter beijado?
Lady Pency parou subitamente na sala de estar, assim que a porta se fechou. afastou seus outros pensamentos e focou na mulher séria a sua frente.
— A partir desse momento, teremos novas regras nesta casa. Regras que minha bondade me impediu de instaurar anteriormente.
bufou. Bondade. Seria a última palavra para descrever as atitudes de tia Lucila até agora. Mas, olhando nos olhos daquela mulher, percebeu que era assim que ela se via: bondosa. E, bom, não era mentira que as irmãs estavam sendo acolhidas por ela. Era no mínimo algo. Por isso, a garota se resignou a não comentar nada e ficou calada, esperando.
Lady Pency pareceu satisfeita com seu silêncio e continuou.
— A partir de agora, está proibida de entrar em contato com o aquele médico inapropriado e com qualquer um que possa favorecer seu contato com ele.
arregalou os olhos. Qualquer um? Mas isso significaria todas as suas amizades recém-conquistadas. Será que...?
— A partir de agora, a senhorita está oficialmente proibida de deixar essa casa e enviar qualquer correspondência até provar-se capaz de agir apropriadamente. — Lady Pency decretou.
Se já não estivesse desolada e sem chão, isso teria sentenciado sua tristeza.
— Mas, lady Pency...
— E, que fique claro, que qualquer um que a ajudar a descumprir tais ordens, será devidamente punido. — Lady Pency olhou cuidadosamente para cada funcionário e para .
Nesse momento, o olhar de também caiu sobre a irmã.
, por favor, você não pode concordar com isso. — Ela disse em um sussurro.
A mais velha suspirou e a encarou com o mesmo olhar que se dirige a uma criança que não consegue entender por que não pode almoçar doces.
, eu te amo. E te considero uma jovem tão forte e corajosa. — dizia palavras doces, porém, sentia o que estava por vir. — Mas o que ocorreu hoje foi extremamente grave. Você precisa ser mais prudente.
A jovem se sentia murcha como uma flor notificada que seria afastada de toda a luz do sol.
— Acredito que estejamos resolvidas, então. — Lady Pency retomou a palavra, de forma fria e aterrorizante. — E devo também anunciar que se qualquer criado surgir com algum boato sujo, fará uma viagem apenas de ida para a sarjeta. Estamos entendidos?
Todos engoliram em seco e fizeram uma breve reverência de concordância.
— Muito bem, então o assunto está encerrado.
No entanto, um leve pigarro tomou a sala. se virou a procura e encontrou o mordomo atrás de alguns criados.
Por Deus, quantas pessoas haviam presenciado tal humilhação?
— Diga, George. — Lucila ordenou.
— Minha senhora, um presente acaba de chegar da Inglaterra para ti. É de lorde Phillip, lady Pency, o pai do mais novo conde de Jordan.
Um sorriso discreto surgiu no rosto de tia Lucila e o rosto de ficou levemente rosado. se esforçou para relembrar daquele nome. E então, como um estalo, tudo voltou para sua cabeça: era o pai de Travis Phillip, o conde de Jordan. O pretendente ilustre de . Um que não a levaria para fazer algo impróprio. E se a levasse, bem, lady Pency torceria para que fossem pegos e se tornasse rapidamente a condessa de Jordan.
“Enquanto uns tinham tão pouco...”, pensou , “... outros simplesmente tinham tudo!”.
— Deixe o presente em meus aposentos, George. E preparem um banho para essa menina. Está parecendo uma mosca com os olhos bulbosos de lágrimas.
não se recordava exatamente do que aconteceu a seguir. Não sabia quanto tempo havia ficado na banheira, sem se enxaguar, sem agir, sem pensar em nada, apenas seu corpo naquele ambiente.
E depois, tudo se misturava com dias iguais e sonhos confusos...

•••

Já haviam se passado dois dias, porém, ela continuava tão atordoada quanto. Sentindo o mesmo vazio e a mesma dor. Queria tanto que estivesse ali com ela. saberia as melhores palavras para consolá-la. Provavelmente sentiria mais por ela ter perdido o emprego, do que perdido Gilbert, e concordaria que todos os homens são insolentes.
Quem diria que e lady Pency iriam um dia concordar.
Se bem que, para lady Pency, nem todos os homens eram ruins. Não quando eles carregavam títulos, pelo visto, já que ela ressaltou diversas vezes durante o jantar a gentileza de lorde Phillip e o colar maravilhoso que ele a enviou. Não parava de enumerar as grandiosas qualidades de seu filho, quase como se estivesse descrevendo um objeto válido de ser comprado.
Se bem que seria a mais comerciável da situação.
nem tinha mais energias para rebater nada durante o jantar. Geralmente, vinha se sentindo sem fome. Lady Pency a obrigava a comer, dizendo que não permitiria que ela adoecesse e a incomodasse ainda mais. Isso deixava a garota irritada, o que afastava um pouco a dor e abria espaço para fome.
Ali, naquele sentimento, ela encontrou sua salvação. Raiva. Porque, quando sentia raiva de ter sido usada por Gilbert, não sentia a tristeza de ter tido seu coração partido, e, sim, uma extrema vontade de mostrar que ela era melhor do que ele imaginava. Quando sentia raiva de tia Lucila por trancá-la e humilhá-la, esquecia a dor de ser tão insignificante para ela, aumentando sua rebeldia. Quando sentia raiva de de não a defender e ficar pateticamente presa em seu mundo de paixão com Travis Phillip, afastava a mágoa de ter perdido sua melhor amiga e irmã.
Sim, era melhor sentir raiva. E, sentindo raiva, ela conseguiu se levantar naquele dia.
Comeu e ignorou as outras mulheres naquela mesa, relembrando como elas também eram responsáveis por fazê-la sofrer. Depois, foi para a biblioteca para ler e falar sozinha, assim como sabia que todos odiavam e achavam estranho. Porque assim, ao menos, poderia ser quem ela era. Até mesmo deixou uma meia suja perto da entrada, apenas para enlouquecer os criados e, por consequência, lady Pency. Tudo o que ela sentia era raiva, rebeldia e um sarcasmo doído do fundo da alma que parecia.
Isso era, até o momento em que todas as suas barreiras foram desmanchadas como se fossem feitas de papel.
— Ah, senhorita . — George veio em sua direção, quando a viu no hall, sem imaginar que ela havia acabado de posicionar sua meia suja ali perto. — Carta para você e sua irmã. De um doutor Reynalds, vinda de Summerside.
se sentiu tonta. Doutor Reynalds. Summerside.
Mamãe e papai.
Ela agarrou a carta e seguiu para o quarto, escada acima. Já dentro do aposento, fechou a porta e se sentou na cama, segurando o envelope pardo com as mãos trêmulas. Depois de meses, meses sem notícias, ali estava: a resposta de parte de suas aflições. Aquilo era tudo. Poderia significar que estava tudo bem. Ou que estava tudo muito, muito mal.
Não tinha coragem para abrir. Sabia que deveria chamar . Ela também merecia saber e com certeza iria consolá-la caso algo saísse errado, sendo sempre a rocha firme entre as duas. Porém, não estava sendo uma boa irmã no momento. Não, ela estava sempre se colocando contra e ocupada demais com cartas para Travis Phillip. iria ler sozinha. Porque ela era forte, corajosa e prudente. Saberia como reagir, o que faria, mesmo na pior situação. Ela era independente e plenamente capaz de fazer aquilo sozinha.
Respirou fundo e pegou o abridor de cartas. Quando as folhas escritas rolaram por suas mãos, desdobrou a mensagem e se pôs a ler:

Prezadas senhoritas ,

Devo dizer que lamento muito em informá-las...

A carta caiu da mão de , antes mesmo que ela continuasse. Seu coração parecia estar sendo esmagado e sua garganta comprimida. Ela não conseguia respirar. Não precisava ser uma vidente para saber o que viria a seguir. No entanto, ela precisava ser prudente.
Mesmo com maior dificuldade de ler, causada por seus olhos embaçados com lágrimas, que ela lutava para que não caíssem, a jovem continuou:

... lamento muito em informá-las que, nesta madrugada, o senhor Paul , vosso querido pai, veio a falecer. Infelizmente, seu pulmão foi afetado de forma irreversível pela doença respiratória e este não resistiu. Devoto-vos nossos mais sinceros pêsames, porém, saibam que nos dedicamos ao máximo por sua vida.
É um alívio, no entanto, poder afirmar que vossa mãe se encontra bem, seu único mal sendo resultado do luto por vosso querido pai.
Não é de maior segurança que vocês retornem ainda, visto que, após sua partida, diversos casos se fizeram presentes em Summerside. Informarei sua mãe para que vos escreva quando a situação for plausível de vosso retorno.

Respeitosamente,
Dr. Harry Reynalds.

, paralisada pelo choque, conferiu a data da carta: dez de agosto. Seu pai faleceu há três dias e ela não sabia.
Nada daquilo podia ser real.
Embora não fosse extremamente próxima do pai, ele foi seu protetor e provedor durante toda a sua vida. Não conseguia imaginar uma ceia com a família sentada junta, sem que ele estivesse na cabeceira com seu típico jornal aberto nas últimas notícias de Londres.
se deitou na cama, abraçando a carta, sem conseguir chorar. Não, aquilo era mentira!
Como pôde estar tão preocupada com um maldito coração partido, quando havia perdido alguém e não sabia? Como podia ser tão injusta e egoísta de ter se considerado tão desafortunada? Ela tinha a sua família toda naquele momento. Agora, ela perdeu tudo.
Abraçando o envelope, ela percebeu que outro papel saiu dali. A letra indicava uma escrita às pressas. E o perfume... jasmim.
Era um bilhete de sua mãe.
No automático, abriu o pequeno bilhete:

Minhas meninas,

Me sinto cansada e perdida. Não poderei me prolongar. Mas quero que saibam que eu as amo muito e não poderia estar mais desolada do que nesse momento, sem meu marido e sem vocês.
Cuidem uma da outra. Eu as verei em breve.

Com amor,
Mamãe

apertava o bilhete com força, como se pudesse puxar sua mãe de dentro dele. Por Deus, como precisava dela ali. Como pôde tentar esquecer seus pais, esquecer a agonia de tê-los doentes? Seria o Senhor a punindo por ter sido feliz com Gilbert quando seus pais sofriam? Não sabia se isso a tornava uma merecedora do inferno.
Releu o bilhete novamente: “cuidem uma da outra”. Aquilo não poderia estar mais distante da realidade. A mãe ficaria extremamente decepcionada de vê-las afastadas.
não conseguia perdoar por tudo. Ainda não. Mas não significava que não precisasse contar para a irmã o que aconteceu. Ser prudente não era ser independente. Também significava que ela deveria ser racional. Sua irmã também era parte daquele assunto e precisava ler a carta e o bilhete também.
se sentiu como um corpo sem alma se arrastando até o quarto de . Um ruído surdo acompanhava seus ouvidos e era tão difícil de respirar. Piscou e estava parada diante da porta da irmã. Não se lembrava de ter chegado até ali. Ainda mecanicamente, bateu na porta.
— Entre. — escutou a voz de .
Abriu a porta e viu o rosto da irmã de relance, antes de desabar no chão, derrubando as duas mensagens e começar a chorar compulsivamente.
Talvez, ser prudente fosse se deixar sentir a dor.



Capítulo 15

Gilbert estava dentro do trem, voltando de Charlottetown, após a sua quinta-feira comum trabalhando com o doutor Raynes. O médico mais velho, que insistia que Blythe já havia trabalhado o suficiente para compensar os materiais que o fizeram voltar a frequentar o consultório, agora o retribuía com um pequeno salário por aquelas horas. O garoto certamente tentou recusar, mas o doutor se mostrou irredutível. Então, pela segunda vez em meses, Gilbert acabou aceitando mais dinheiro do que sentia que merecia pela mão de amigos generosos.
O dia havia sido cansativo, embora sempre fosse incrível trabalhar com o doutor. Uma paciente precisou de anestesia e eles se recordaram, saudosos, da primeira vez em que Gilbert viu a agulha de anestesia que seria aplicada em Bash e de seu consequente desmaio. Como era jovem e tolo! Agora, com seus vinte anos, aprendeu depois de muito tempo na faculdade e nos consultórios, a lidar com aquele nervoso e criar resistência.
De qualquer forma, por mais prazeroso que fosse trabalhar com o doutor, as viagens de trem de ida e volta, assim como as horas no escritório, custavam um preço. Já fazia mais de um mês em que ele, toda quinta, se acostumou àquele cansaço, dormindo cedo para acordar revigorado nas sextas. Porém, naquele dia, a situação seria diferente.
Por que o encontro de turma da escola havia sido marcado naquela quinta? Não poderia ter sido marcado em um dia mais tranquilo?
Gilbert sabia que não era obrigado a ir. Todos entenderiam se ele dissesse que teve um longo dia de trabalho e acabou faltando. Talvez ficassem um pouco decepcionados, mas entenderiam.
O problema era que, por uma razão que ele preferia não nomear, ele queria ir a esse encontro.
Não era difícil de adivinhar que esse motivo era talvez encontrar Anne. Já se completavam seis meses de seu noivado e, mesmo assim, às vezes, ele se via pensando nela. Recentemente, no entanto, ela vinha dividindo muito espaço em sua cabeça com outra pessoa.
Há mais de vinte dias que ele não via . Não que estivesse contando. Desde o fatídico dia do beijo, ela havia desaparecido. A ameaça de Lady Pency sobre não o ver mais se tornou real, porém, ele não deixou de notar que aquilo se estendeu além. Não era apenas o garoto que não tornou a vê-la e nem apenas o consultório que ela deixou de frequentar. havia desaparecido por completo, dizia Jeannie, que ouviu da própria Rachel que agora só via a irmã mais velha na rua e que esta sempre alegava que não estava se sentindo bem.
É claro que as especulações começaram na cidade: ela estaria doente? Estaria de luto pelo pai? Estaria grávida? Cada situação atraía um olhar diferente para ela. Gilbert, no entanto, tinha noção do verdadeiro motivo. E a culpa era toda dele.
A menina era parente de uma lady. Em que realidade ele poderia simplesmente beijá-la sem consequências? Por mais que tenha sido um dos melhores momentos que viveu desde que se afastou de Anne.
E lá estava ela de novo. Seus pensamentos estavam mais confusos do que nunca e ele sentia uma vontade imensa de encontrar as duas para entender o que se passava dentro dele. Porém, uma estava noiva do outro lado do país e a outra estava afastada da sociedade, por mais perto que pudesse estar.
Felizmente, o trem chegou à estação e ele pôde afastar aqueles pensamentos o melhor possível. Sua preocupação agora era outra: ser gentil.
Quando comentou com os amigos que estaria chegando do trabalho antes da confraternização, Charlie e Moody fizeram questão de buscá-lo na estação para irem juntos à festa. Gilbert, quando avistou os dois o esperando perto de uma carruagem, não pôde deixar de negar que, apesar de não terem muitos interesses em comum, ambos sempre se esforçavam para manter a amizade e, naquele momento, ele estava muito grato por aquilo. Por mais que fosse muito mais próximo de Sebastian e de pessoas mais velhas no geral, a companhia dos dois antigos colegas era agradável.
Moody foi o primeiro a avistá-lo, sorrindo enquanto ele se aproximava.
— Gilbert! Como está? Muitos doentes nessa região?
— Graças a Deus, nenhum com sintomas graves. Parece que na Europa estamos tendo surtos de gripe e de outras doenças, mas aqui estamos bem. — O jovem doutor reafirmou.
— Vamos conversando no caminho, que tal? — Sloane disse, já assumindo a condução.
— Poxa, eu estava dirigindo! — Spurgeon reclamou.
— É, e soltou a condução, quase fazendo com que batêssemos em uma árvore!
— Estou com o Charlie nessa, Moody. — Gilbert se posicionou.
Conhecia bem o jeito desastrado do amigo e preferia uma viagem segura.
O trio avançou a viagem até o bar em uma conversa agradável. Moody estava ansioso. Confessou ao grupo que Ruby o beijou em sua festa de aniversário, mas, desde então, nenhum avanço havia ocorrido. Ele pediu conselhos relacionados ao campo amoroso e parecia tão sério, que Gilbert não duvidava que ele pedisse Gillis em casamento, se ela pedisse.
Charlie, por sua vez, não parecia estar muito ligado nesse assunto. Ele dizia que tinha muito tempo para viver e muitas garotas para conhecer, fazendo os dois amigos rirem, como se fossem adolescentes de volta à escola.

Quando alcançaram o bar em que seria a festa, a noite já começava e Gilbert estava melhor humorado do que esperava. Nem mesmo o olhar de relance para os cactos, lembrando-se de uma tarde no consultório com um vestido amarelo rasgado, o fez desanimar.
Porém, é claro que assim que adentrou o local, sua mente automaticamente procurou um certo rosto. Na verdade, não tinha certeza absoluta de qual rosto estava procurando, mas sabia que não encontrou nenhum deles.
Seus antigos amigos estavam ali. Além dos três que haviam acabado de chegar, Billy, Tiilie, Jane, Prissy, Josie, Gertie, Diana e até Fred estavam ali. As duas faltas mais marcantes eram Cole e, bom, Anne, mas todos esperavam que estes não viessem devido as suas atuais moradias.
— Blythe, Spurgeon, Sloane, que bom vê-los! — Wright os cumprimentou. — Finalmente um pouco mais de presença masculina. Eu realmente não consigo mais ouvir Josie Pye dizer que meu terno é de uma cor feia de mostarda e que eu deveria ter vestido amarelo. Digam-me, meus caros, mostarda não é amarela?
Os colegas riram e as garotas se opuseram, tentando mostrar o que para elas era uma clara diferença. Gilbert se viu sorrindo genuinamente, apreciando falar de algumas bobagens com aquelas pessoas que durante tanto tempo foram presença constante em sua vida. Mesmo Fred, a quem ele conheceu apenas na época da faculdade e logo se tornou muito presente no grupo.
— E quem vai se encarregar das bebidas? Hoje foi um dia longo na fazenda! — Charlie proclamou, já se sentando confortável ao lado de Billy.
— Não se preocupem, eu já pedi! — Uma voz feminina familiar vindo de trás do grupo fez Gilbert se interessar.
De onde ele conhecia aquela voz?
Então, para sua completa surpresa, Monroe veio em direção à mesa deles.
Blythe não pôde deixar de se sentir agitado. A senhorita Monroe era prima dos Andrew, ele sabia, mas possuía uma relação muito mais interessante para ele: era amiga de . Agora, ele só tinha que pensar em como abordá-la sem chamar a atenção dos outros ou ser desagradável.
— Gente, para aqueles que não a conhecem, essa é , nossa prima. — Jane disse, em especial para Charlie e Moody. — Me diga que pediu bebida para os cavalheiros apenas e não para você.
— Eu sempre quis provar cerveja. — Foi tudo o que a garota respondeu, sorrindo marota.
“Ela, com certeza parecia alguém peculiar!”, Gilbert pensou, divertido.
— Isso me lembra uma coisa... — Diana disse, chamando a atenção de todos. — Nosso próximo encontro deve ser em um local mais... agradável. Mamãe quase morreu do coração quando descobriu que eu estava indo para um bar.
— O problema é a privacidade. Aqui, podemos fazer o que quisermos longe do olhar de qualquer pai. — Billy respondeu, já olhando para Josie, que apenas devolveu o olhar com nojo.
— Mas perto do olhar de qualquer bêbado fofoqueiro. — Tillie devolveu.
— Pelo menos aqui temos instrumentos e o Moody pode tocar. Não é, Moody? — Ruby disse, com a voz mais inocente do mundo.
Spurgeon, por sua vez, ficou mais pálido do que a luz do luar.
— Eu... o quê?
— Ah, vamos, você toca tão bem! Você não tocaria para a gente? Por mim? — Gillis piscava os olhos e sorria como uma garotinha.
É claro que, menos de um minuto depois, Moody já estava falando com o proprietário e pedindo licença para os músicos.
— Coitado do menino! Olha o que a paixão faz. Ainda bem que eu não sou assim. — Wright comentou com Gilbert, risonho.
— Fred, querido, acho que um de meus brincos caiu no chão. Pode me ajudar a encontrá-lo? — Diana o chamou.
— É para já, minha querida. — Ele disse, sem olhar para Gilbert, claramente constrangido.
O jovem médico segurou uma risada.
Moody e Fred o haviam abandonado. As meninas estavam alheias em uma conversa própria, enquanto Billy e Charlie estavam envolvidos em uma discussão sobre a melhor forma de cultivar os legumes. Gilbert escutava a música, apreciando aquele momento com o grupo, por mais deslocado que pudesse se sentir.
Mas é claro que ele se surpreendeu completamente ao sentir um cutucão.
— Gilbert Blythe, eu preciso falar com você.
O menino levou um susto ao ver Monroe atrás dele. Ele podia jurar que ela estava, há menos de um segundo, ao lado de Prissy, bem distante dele.
E pensar que ele esteve preocupado em como abordá-la sem que ela estranhasse. Pelo menos isso não seria um problema.
— O que acha de darmos uma volta? — Ele disse, estendendo o braço para ela.
Ela arregalou os olhos, mas logo aproveitou a oportunidade para puxá-lo para fora do bar.
O vento gelado do local o atingiu certeiro. Ele fechou melhor o seu casaco e analisou a cidade iluminada por velas de dentro de algumas poucas lojas abertas e algumas casas habitadas. Ele percebeu que a mulher ao seu lado estava agitada.
— Blythe, preciso ir direto ao assunto. — disse, mexendo no cabelo sem parar. — Você é o único que pode me ajudar. Eu apenas ouvi dizer que lady Pency está na Inglaterra e as sobrinhas, em casa. Por favor, me diga que você tem notícias da .
Gilbert, que antes estava esperançoso que pudesse ter essas respostas, ficou visivelmente desapontado. Monroe, por sua vez, percebendo o estado do médico, suspirou abatida. Ambos ficaram ali, em silêncio, suas mentes voltadas para uma garota espontânea e divertida de lindos olhos .
foi a responsável por quebrar aquele silêncio.
— Eu não sei o que aconteceu. Ela não me manda cartas e nem responde as minhas próprias. Nunca mais a viram em local nenhum da vila. Estou tão preocupada com ela... E se algo terrível tiver acontecido? — Então, como se algo tivesse se acendido em sua cabeça, ela se voltou abruptamente para Gilbert. — Faz menos de um mês que ela sumiu... E isso bate com a época em que ela ia te encontrar no consultório! Você recebeu a carta, certo? E a viu?
O jovem médico se sentiu levemente desconfortável por ter conhecimento daquela última carta que recebeu de . Por algum motivo, aquilo era um pouco vergonhoso. Mas então ele se lembrou que também contou tudo a uma pessoa. Sebastian. Se havia contado à Monroe sobre a carta dos dois, era porque confiava nela, assim como Gilbert confiava em Bash.
Por isso, ele sentiu que para ela, e somente ela, aquilo poderia ser revelado. Ele se virou para a garota.
, eu tenho algo para te contar. Mas eu só posso fazer isso se você prometer não contar a mais ninguém. Ouviu? Mais ninguém. Pela .
Os olhos de Monroe se arregalaram instantaneamente e ela se sentou muito ereta. Porém, com uma seriedade assustadora, ela disse:
— Eu juro pela minha vida.
Então, Gilbert a contou sobre aquele último encontro. Claro que não detalhou muito, mas, infelizmente, teve que revelar à garota que ele tinha boa parcela de culpa pelo sumiço de . E, por mais que preferisse ficar uma hora conversando com Billy do que contando qualquer questão mais íntima sua a uma garota estranha a ele, e amiga de outra por quem ele não sabia o que sentia, tentou de forma indiferente e rápida narrar que um beijo aconteceu. Depois, mudou o foco para as reações de lady Pency, explicando que ela disse que não poderia mais vê-lo.
— E essa foi a última vez que eu a vi. Mas não sabia que lady Pency faria restrições tão intensas. — Gilbert finalizou, sentindo a vergonha queimando em seu peito.
encarava o jovem médico intensamente e ele já imaginava suas próximas palavras, algo como “e você não a pediu em casamento?” ou “como ela deixou isso?”.
Ele realmente não esperava que ela dissesse:
— Entendo... Fico feliz que ela esteja bem. Ou em partes. O pai dela faleceu, não sei se você ficou sabendo.
Ele apenas concordou, com a cabeça. Aquilo era outra coisa que doía dentro de si. Ele a prometeu que seus pais ficariam bem e agora ela devia estar arrasada. Ele conhecia o sentimento e queria estar ali por ela.
Maldição, por que havia a beijado?!
— Uma última pergunta, Blythe. — Monroe retomou a palavra, alheia à tristeza dele. — Você não gostava da jovem Anne Shirley?
Nada, absolutamente nada mais poderia ter surpreendido mais do que aquela fala. Acabou engasgado em sua própria saliva e foi socorrê-lo, embora ele tivesse a impressão de que Monroe estava se divertindo com aquilo.
— Eu... Anne... Está noiva! — Ele afirmou, em seu desespero.
Ele não negou propriamente o que disse. E, ela, observadora como era, percebeu. A garota abriu um sorriso irônico:
— Você parece uma boa pessoa, Gilbert Blythe. — Sua expressão, no entanto, de repente se tornou séria. — Mas isso não me impede de te avisar: não magoe a . Não a envolva em algo que você não terminou.
Gilbert nunca esteve tão sério na vida. Por alguma razão, aquela garota parecia muito mais ameaçadora que Billy, apesar de sua falta de músculos.
Não, o que o assustava era seu cérebro.
Depois daquela conversa, ambos voltaram para dentro do bar e seguiram a noite como se nada tivesse ocorrido. Bom, pelos menos , já que Gilbert, por mais que tentasse aproveitar, tinha a cabeça tomada por muitos questionamentos.

•••

No dia seguinte, Gilbert acordou com uma leve ressaca provocada pela cerveja e pelos pensamentos que não deixavam sua cabeça. Que grande sorte a sua por ser médico e por Sebastian ter tirado a sexta-feira de folga. Assim, pôde arrumar rapidamente uma bebida horrível, mas que seria certeira para a dor, sem ter o amigo falando em seu ouvido apenas para incomodá-lo.
Por mais exausto que estivesse do longo dia anterior, Blythe acreditava que o trabalho certamente o ajudaria. Uma distração depois daquele dia tão confuso seria muito bem-vinda.
Porém, ele não esperava que a distração fosse estar na forma do seu locador, o esperando seriamente em frente ao seu consultório.
— Senhor Pye. — Gilbert disse, claramente surpreso e nervoso.
Aquele homem podia ser tão intimidante para ele como já viu suas filhas serem para outras meninas. Por sorte, sua dor de cabeça já estava quase desaparecendo por completo.
— Bom dia! O que o traz aqui? Espero que nenhum problema de saúde.
O senhor Robert Pye o encarou, dando um sorriso com nenhum dente e pouca emoção. Não que o jovem médico pudesse reclamar, afinal, aquele homem foi responsável por ele conseguir um espaço para que ele pudesse exercer a sua profissão dos sonhos.
— Blythe, estava te esperando. E não se preocupe, estou em perfeita saúde. — Ele continuou sorrindo, as mãos no bolso. — No entanto, não vim discutir um assunto particularmente positivo.
Então, a ficha de Gilbert caiu. O aluguel.
— Senhor Pye, me perdoe, eu esqueci de pagar esse mês o aluguel para o senhor, mas eu já tenho aqui o dinheiro. — Um dinheiro apertado, graças aos pagamentos generosos da senhora Pippett e do doutor Raynes. — Por favor, me acompanhe.
O homem entrou silenciosamente atrás de Gilbert no seu consultório, observando cada mínimo canto do local. Gilbert se dirigiu a um canto mais a fundo em que ele guardava uma caixinha com o dinheiro do aluguel. Separou as notas correspondentes ao valor, sobrando quase nada na caixa, e se dirigiu a Robert.
— Aqui está, senhor!
O homem, no entanto, apesar de ter o dinheiro em mãos, ainda sorria de uma forma esquisita. Gilbert não pôde deixar de se sentir inseguro.
— Algum problema, senhor Pye?
Robert ampliou ainda mais o sorriso e desviou seu olhar do dinheiro, encarando o jovem médico. Ali estava estampado: pena.
— Gilbert Blythe, você é uma ótima promessa para a vila, não? Por que não nos sentamos um pouco e conversamos sobre isso?
Mesmo sem muita vontade, o jovem médico ofereceu o sofá para o convidado e se sentou à sua frente em uma simples cadeira de madeira. Retorcia os dedos, nervoso, mas tentava transmitir uma postura relaxada.
— Então, como vão os clientes e os atendimentos? — O locador perguntou.
A postura relaxada de Gilbert ficou ainda mais difícil de ser mantida.
— Infelizmente, não muito diferente do início, senhor. Tenho visitas constantes da senhora Pippett e tive outras três ou quatro de outros clientes no último mês. — Ou melhor, uma cliente, mas isso ele decidiu guardar para si. — É difícil conquistar a confiança das pessoas.
Sei... — o senhor mais velho mantinha aquele sorriso sem dentes estático. — E soube que voltou a trabalhar com o doutor Raynes em Charlottetown, estou correto?
— Sim, senhor. — Gilbert nem se questionou como ele sabia. Uma vila pequena era movida pelas fofocas. — Todas as quintas à tarde eu tenho ido lá para ganhar ainda mais experiência, um dinheiro extra e até talvez conquistar alguns clientes.
— O doutor é bom com você ao oferecê-lo um emprego, mesmo sabendo que você talvez leve embora seus clientes, não? Ou talvez ele não o veja como concorrência. — O senhor Pye disse.
Foi a vez de Gilbert de sorrir sem mostrar os dentes, pois sabia que não devia discutir com o homem responsável pelo seu aluguel. Após o seu silêncio, no entanto, Robert pigarreou e seguiu seu diálogo.
— Sabe, Gilbert, eu não posso mentir para você. Eu ouço as pessoas falarem e essa confiança dos clientes ainda não foi construída.
— Eu só estou aqui há cinco meses. Isso leva tempo. — Blythe não se segurou e tentou rebater.
— Eu sei, garoto. Mas eu não sou um simples locador, entende? Eu me vejo como um... investidor. E agora, eu não sei dizer se você está valendo a pena.
Aquilo deixou o jovem sem fala e, vendo-se sem resposta novamente, o senhor Pye continuou.
— Eu tenho recebido propostas. Boas propostas, inclusive. Mas eu segurei esse espaço o máximo que pude, acreditando em você. Mas será que isso é mesmo o melhor para você, meu rapaz?
— Claro que sim. — Ele recuperou a voz para responder. — Esse é meu propósito.
O senhor Pye, no entanto, apenas sorriu, agora mais saudoso.
— Propósito. Isso é algo engraçado, sabia? Eu tive em mente por muito tempo que meu propósito na vida era ser um bom pai e um bom trabalhador. E veja aonde estou agora: com duas filhas corrompidas pela mãe e destruindo o sonho de um jovem garoto.
— O que isso quer dizer? — Gilbert o indagou, depois de engolir em seco.
— Quero dizer, criança, que você tem duas opções. O imóvel está valorizando e minhas filhas precisam de dinheiro. Gertie está quase noiva e eu preciso de um bom dote. O aluguel irá aumentar. Eu o diria que, se isso é o que você realmente deseja, invista. Venda sua fazenda e invista em ser médico. Ela valerá um bom dinheiro e eu estaria disposto a negociar esse local para não mais alugá-lo para você. Você, meu jovem, poderia ser definitivamente jovem desse consultório. E não só daqui, como do apartamento aqui de cima! Poderia realmente se dedicar ao seu trabalho e ter sua casa no local que seu coração está. Conquiste seus clientes mostrando sua dedicação!
Aquilo agitou Gilbert. Apenas em seus melhores sonhos ele conseguia ser dono daquele local. Poderia acordar e evitar transportes e burocracias. Estaria sempre perto do movimento local, poderia investir em cursos e em melhores equipamentos. Era a realização de um sonho.
Ou a concretização de um pesadelo, pois, para isso, teria que renunciar a sua fazenda. O local em que estavam seus pais e Mary, a quem ele poderia visitar quando precisasse e cuidar daquele delicado santuário que o espaço virou. A fazenda que tinha suas melhores memórias, de toda a sua infância, da chegada de Bash, das visitas de Anne, do aniversário de Delphie com . A fazenda que era o último legado de seu pai, além dele mesmo. Ademais, Sebastian era seu proprietário também, ele não poderia simplesmente vendê-la assim.
Embora aquilo fosse uma desculpa. Bash faria de tudo para apoiá-lo a ser feliz.
A verdadeira questão era que aquela, em hipótese alguma, era uma escolha para ele.
— Qual minha outra opção? — Gilbert perguntou ao senhor Pye.
O homem levou um susto com o garoto que se mantece quieto por tempo demais.
— Perdão?
— O senhor disse que eu tenho duas opções. Já me falou da primeira. Qual a segunda?
O homem o olhou, intrigado, como se imaginasse que Blythe nunca hesitaria em fazer essa escolha.
— A segunda, meu rapaz, é ser talvez o mais próximo da sensatez. Se a fazenda é muito importante para ser vendida e você já está realizando seu sonho como médico com o doutor Raynes, por que se prender aqui?
Gilbert se sobressaltou. O homem realmente estava sugerindo que ele largasse seu próprio consultório?
— Não estou me prendendo aqui. Esse é o meu lugar. — Gilbert rebateu.
Então, o sorriso sem dentes e sem emoção do senhor Pye retornou.
— Um lugar que te impede de trabalhar com verdadeiros clientes, ganhar dinheiro e ser feliz, como quando você está com o doutor Raynes. Ouvi dizer que seu salário tem sido mais do que generoso para apenas uma tarde por semana. Imagine o que ganharia em tempo integral.
Mas Gilbert não queria imaginar. Novamente, pelo bem de ambos, o jovem se manteve quieto.
— Não espero que se decida agora. Estou o aconselhando, como sei que seu querido pai, que Deus o tenha, também o aconselharia nesse momento. Esse será o novo valor do aluguel a partir do ano que vem. — Pye rabiscou em um papel e entregou a Blythe.
Seu coração afundou.
Nem em cinco meses lucraria tanto para pagar o aluguel de um único mês com aquele preço.
— Escolha o que for melhor. Venda a fazenda e seja independente, ou deixe alguém inovar em seu lugar. Ou, quem sabe, você consiga conquistar os clientes até lá?
Ambos sabiam que isso era impossível.
Robert se levantou do sofá, alisando seu paletó.
— Foi uma boa conversa, Blythe. Espero seu pagamento do próximo mês e sua decisão até o final do ano. — Disse o senhor Pye e depois saiu.
Gilbert estava preso àquela velha cadeira de madeira, como se não conseguisse se levantar. Aquelas não eram escolhas. Eram imposições. Dolorosas imposições. E ele sentia que, independentemente do caminho que tomasse, perderia tudo.
Blythe riu da ironia da situação. Mais uma vez, estava dividido. Parecia que o destino realmente estava brincando com as indecisões dele.
“Não a envolva em algo que você não terminou”, ele escutou a voz de Monroe novamente em sua cabeça.
Suspirando fundo, ele se levantou. Ela tinha razão. Gilbert tinha muitos assuntos inconcluídos atrapalhando sua vida. E era hora de tentar resolver algumas questões que estavam em aberto. Pelo menos, o que tivesse em seu alcance.



Capítulo 16

Aquele último mês era um borrão difuso na memória de . A tristeza e a agonia tomaram seu coração, e ela sentia a dor de perder o próprio pai sem ter o colo da mãe, o apoio de ou até mesmo um abraço de Gilbert.
Gilbert. Era outro em quem evitava pensar, porque só podia suportar uma dor de cada vez.
Talvez não tivesse aguentado o passar daquele mês, trancada em casa, sem nada para se distrair e com a dor a corroendo. Mas, então, um milagre aconteceu: ela ganhou sua irmã de volta.
Por pior que tenha sido o luto, era grata a Deus por ter ao seu lado. Como sentiu falta da irmã mais velha! Por mais diferentes que pudessem ser, algumas coisas apenas a outra entendia, e uma delas era a saudade que seu pai iria deixar.
estava livre, diferente de , mas lady Pency deixou que ela ficasse em casa para sentir o luto e pudesse evitar suas atividades sociais. Ela não era um monstro, afinal. Por isso, as irmãs puderam ficar juntas. Chorar juntas. Se abraçaram até dormir em dias que as palavras ficavam presas na garganta. Reviveram memórias saudosas do querido pai. Sorriram ao imitar o que ele lhes falaria naquela situação.
As primeiras duas semanas foram imersas no luto, mas também na volta da confiança entre as irmãs. Aos poucos, elas iam se recuperando e se apoiando uma na outra.
Uma noite, que não estava tão ruim quanto nas últimas, as duas irmãs estavam no quarto de , que penteava os cabelos e longos de , algo que sempre acalmava a mais nova e que elas nunca mais haviam feito desde que se mudaram. Era como voltar para uma época mais simples e tranquila.
... — a mais velha a chamou, ainda desembaraçando as madeixas.
— Sim?
— Me desculpa.
Aquelas palavras surpreenderam . De tudo o que poderia sair da boca da irmã, não era exatamente isso que esperava. A mais nova se virou para encará-la.
— Do que está falando, ?
As bochechas da mais velha estavam coradas e ela desviou o olhar da irmã, parecendo muito envergonhada. virou-se de costas novamente, sabendo que aquilo tranquilizaria a irmã.
— A gente se distanciou tanto nos últimos meses... e eu sei que é culpa minha. Me desculpa, eu fiquei tão deslumbrada com tudo e deixei de lado minha única irmã.
sacudiu a cabeça. Um dia, ela poderia ter pensado assim, mas agora não mais.
— Você estava aproveitando um lugar novo. Eu também aproveitei. Conhecemos novas pessoas e acho que está tudo bem. — procurou cegamente uma das mãos da irmã e a apertou, gentilmente. — Talvez, se não tivéssemos nos permitido experimentar coisas novas, não teríamos conhecido pessoas incríveis ou vivido experiências maravilhosas. — Fez-se um silêncio e tomou coragem para continuar. — Você realmente gosta do conde Phillips, não gosta?
A mais nova sabia que a cara da irmã devia estar pegando fogo no momento. pigarreou e respondeu, a voz um pouco mais aguda que o normal.
— Travis é um homem muito gentil. Temos alguns gostos em comum. Ele também adora jogar xadrez, gosta da cidade, mas prefere o campo, e me trata muito bem. Sim, , eu gosto dele.
— E ele também parece gostar de você. Fico feliz. — sorriu, mas um pouco de tristeza passou por seu peito. Afastou-a rapidamente. — Viu? Você gostaria de fazer diferente e perder a chance de conhecê-lo?
— Mas eu poderia tê-lo conhecido e ainda sim ter continuado ao seu lado. — replicou.
— Não sabemos, . Não temos como saber se, mudando algo, as coisas teriam dado certo assim. Então não se arrependa de ter conhecido alguém de quem você gosta.
sentiu a irmã abraçá-la por trás e deu uma risada fraca, fazendo carinho nos braços que a envolviam. Quando se separaram, parecia mais recomposta.
— Desde quando ficou tão sábia? — A mais velha brincou.
— Desde que aprendi a viver sozinha no mundo. — dramatizou, tirando uma risada da irmã.
se levantou e levou a escova consigo. puxou uma mecha para frente, adorava sentir a maciez do cabelo depois de ser penteado com tanta delicadeza pela irmã.
— E aquela menina, Monroe? — questionou, ainda em pé, fechando a gaveta da penteadeira.
— O que tem ela?
— Você estava falando de pessoas novas que conheceu e valeram a pena. Isso a inclui?
se virou para novamente, abrindo um sorriso fraco e um pouco triste.
— Com certeza... — ela respondeu. — foi uma amiga incrível para mim. Ela é muito divertida, sabia? Não tem medo de falar o que pensa, é honesta e me apoia. Você ia gostar dela e de Prissy, prima de . Embora não sejamos tão boas para você. — riu.
Mas não riu junto.
— O que quer dizer, ?
A mais nova ficou confusa e analisou o rosto da irmã iluminado pelas velas. Por que estava tão incomodada?
— Não se preocupe, eu estava só brincando.
— O que você quis dizer com não serem tão boas para mim?
suspirou. A irmã era uma pessoa gentil e perfeitinha, mas que sabia ser teimosa, embora nunca o demostrasse e guardasse aquele temperamento para . Aquele era um gene que ambas compartilhavam.
Sabendo que não tinha escolha, a mais nova suspirou e começou a explicar:
— Ah, você sabe! Você é tão perfeita, . A garota que qualquer um desejaria ser. É linda, delicada, gentil, conhece todas as regras da sociedade, encanta a qualquer um, até mesmo lady Pency! Conquistou um conde e parece uma princesa de tão amável. Eu sou a esquisita que faz a própria tia odiá-la, que consegue se machucar toda semana, que fala sozinha e assusta os criados. Ótimo, não? — colocou novamente, rindo, mas dessa vez com menos humor.
Acabou sendo mais sincera do que deveria e expôs uma situação que sempre havia a incomodado.
, novamente, não riu. Na verdade, a observava com os olhos cerrados, como se pudesse desnudar sua alma. Sendo a pessoa que melhor a conhecia, não seria impossível.
... — a irmã começou, lentamente. — É assim que você vê as coisas?
— Eu não vejo as coisas desse jeito. Isso é como elas são. Ou vai dizer que não é verdade?
— Mas isso não é verdade. Eu não sou perfeita!
! — riu de nervoso, um pouco irritada com a incredulidade daquela frase. — Mas é claro que é! Você nunca teve um problema, todos te adoram, você é a perfeita debutante, já conquistando uma nova sociedade em um único dia.
— É claro que eu tenho meus problemas. — comentou, baixinho.
— Sim, eu sei, mas você não tem problemas com os outros, entende? Você é maravilhosa!
— E talvez esse seja o problema... — replicou.
— Ser maravilhosa? Puxa, eu bem que queria esse problema!
, pare por um segundo e me ouça!
A mais nova se surpreendeu. nunca levantava a voz para qualquer um, nem mesmo para ela, com quem tinha tanta intimidade.
Emudecida pelo choque, apenas observou , que estava ofegante.
— Eu posso ser a pessoa bem-educada que você descreveu. Mas o que fica no fim do dia? Vocês acham da perfeitamente enquadrada ?
, é claro que...
— Por favor, , me deixe falar! — A mais velha interrompeu. — Eu sei que você acha que todos me adoram, mas, de verdade, quem me conhece? Quem lembra de mim quando não tenho nenhum traço marcante além de ser “perfeitinha’? — suspirou, jogando-se na cama novamente. — Todos me elogiam, mas pelo quê? Por me segurar e cumprir meu papel? Você é tão genuína, tão única. Todos comentam de sua espontaneidade, de sua risada, de sua forma de aproveitar os momentos. Você é linda, , e também é educada. Mas não tem medo de não ser aceita por quem é.
fechou os olhos e a irmã se lançou ao seu lado, esticando-se pelo colchão.
— Quem me dera isso fosse coragem... — comentou. — Quando, na verdade, eu só finjo não me importar, porque já percebi que, se eu tento fazer tudo certo, eu com certeza farei algo errado. Não importa o quanto eu tente, eu estrago tudo. Então eu só parei de tentar.
— E, mesmo assim, você é encantadora.
— Só nunca tão encantadora quanto a minha irmã. — disse, suspirando em seguida.
— A irmã que queria ser como você.
As duas encararam o teto, uma do lado da outra, diversos pensamentos percorrendo suas cabeças, mas, no quarto, apenas o barulho do crepitar da chama da vela podia ser escutado. De repente, soltou uma risada fraca, que mais parecia um tilintar de tão graciosa.
— Quem diria. Todos esses anos, eu te invejando, enquanto você não se achava boa para mim. É aquele velho ditado de que a grama do vizinho é mais verde! — A mais velha comentou.
— Eu não quero que você ache que é uma pessoa chata ou desinteressante, . — , ainda incomodada com aquele assunto, colocou. — Você é incrível, gentil e legal. Não é à toa que o Conde se apaixonou por você.
virou a cabeça na direção da irmã, que sorria olhando para o teto. Estava realmente apaixonada. A mesma pontada incômoda voltou ao peito da mais nova, que voltou a encarar o nada.
provavelmente sentiu um estranhamento na mais nova e se virou para ela:
, posso te perguntar uma coisa?
— Claro! — Ela respondeu na mesma hora.
Confiava na irmã para contar qualquer coisa, embora estivesse curiosa com o que ela falaria.
— O que exatamente aconteceu entre você e Gilbert Blythe?
Um bolo na garganta impediu de falar qualquer coisa. Por mais que confiasse na irmã, o que falaria? Sentia-se constrangida com tudo o que tinha acontecido desde a última vez. E isso porque a irmã nem sequer sabia sobre Anne. Ah, como pareceria boba se contasse tudo!
Percebendo o desconforto da mais nova, voltou a falar:
— Não precisa me contar, se não quiser...
— Tudo bem, eu conto. — falou, repentinamente, surpreendendo até a si própria.
Respirou fundo e se virou novamente para a irmã. Começou, receosa, a contar sobre o acidente, do qual a irmã se recordou, mas falou de outras coisas que a irmã não soube: a interação deles no baile, quando ele lhe deu carona para casa, a festa de aniversário da sobrinha dele, o aniversário de Ruby, o outro encontro no escritório, suas conversas com , o passado dele, a ideia de começar um emprego, a procura por ele...
Quando a garota terminou, recontando sobre o beijo, se virou, envergonhada de encarar a irmã depois de revelar o quanto talvez estivesse envolvida e como agiu como uma idiota ao deixá-lo tocá-la (por mais que tenha desejado ardentemente aquilo).
Ela se surpreendeu ao sentir a mão da irmã em suas costas, acariciando-a. Ficaram alguns minutos assim, até que suspirou e voltou a encarar .
— Ele não gosta de mim, . Por mais que fale que sim, eu sei que não gosta. Ela mesma me contou do quanto ele gosta de Anne. Devo ter sido só uma substituta conveniente.
Uma lágrima involuntária correu pelo rosto da mais nova.
— Ah, . — suspirou, abraçando-a.
Sempre assumia o papel de mãe para com a mais nova quando a delas não estava por perto, como no momento.
— Pode ser que ele goste, pode ser que não. Desculpe-me por ter sido tão grosseira no dia em que tia Lucila a deixou de castigo. Eu estava com medo por você, medo de você sofrer qualquer consequência social por causa disso. E se você fosse taxada como impura, se espalhassem por aí que você estava beijando um homem que não a pediu em casamento? Já pensou em como isso afetaria a mamãe?
baixou a cabeça, sentindo mais uma vez a culpa dividir espaço em seu coração com a mágoa.
— Mas chega de broncas... — a mais velha disse. — Acho que, quando tudo isso passar, vocês devem conversar. Ele não me parece má pessoa. Quem sabe realmente tenha se interessado por você? Seria difícil não ter acontecido.
— Eu duvido.
segurou o rosto da irmã com firmeza.
— Ouça, nunca diminua a si mesma. Por tudo o que você me contou, esse garoto que deve correr atrás de você caso acorde e perceba que te perder é uma besteira gigante. Então, não se preocupe, ok? Se ele não fizer isso, a perda será dele. Terão outros muito melhores que vão querer te desposar.
Por mais que não concordasse plenamente, ficou grata por todo o apoio da irmã.
Dormiram, mais uma vez, juntas, apoiando uma à outra, especialmente após aquela noite de reflexões e sentimentos compartilhados. Ambas se sentiam pensativas, mas com o coração mais leve depois de terem conversado.

•••

No dia seguinte, lady Pency não estava em casa. Viajou para Londres e apenas deixou uma carta dizendo que resolveria assuntos com o velho lorde Phillips. Todos sabiam que se tratava do noivado de e a menina recuperou um pouco de seu brilho com a notícia.
A tia não se despediu ao partir. Estava bem afastada das meninas desde o falecimento do pai delas. achava que era uma forma esquisita de demonstrar apoio e respeito, mas não podia reclamar.
Infelizmente para ela, a saída da tia não significava a volta da liberdade da mais nova. Todos os criados continuavam ameaçados se permitissem sua saída ou qualquer comunicação com o meio externo. Porém, ao menos estava livre do medo de encontrar a tia pela casa.

Uma semana se passou do mesmo modo. As irmãs ficavam juntas quase o tempo todo, faziam companhia uma à outra, sentiam o luto que, vez ou outra, voltava mais intenso, dormiam juntas para não se separarem.
Até que teve que ir ao vilarejo comprar um novo vestido. Por mais que tivesse prolongado, sabia que provavelmente receberia a visita de Travis e precisava de uma peça especial para tal. entendia e, por mais que não desejasse ficar sozinha, encorajou a irmã a sair de casa, com suas vestes pretas. Aquele seria um assunto muito comentado: por que estaria usando roupas pretas? Pela imaginação local e o confinamento de , eram capazes de achar que estava chorando a morte da irmã.
Um sorriso sarcástico se firmou no rosto da mais nova com a ideia.
Passou o dia vagando pela casa, perdida no que fazer. Não sentia gosto por ler ou sequer sair para os jardins que tanto adorava. Nada parecia ter muito sentido, simplesmente por não sentir ânimo. Nenhuma ideia parecia alegrar sua cabeça.
Durante seu andar errante, acabou reencontrando, no fundo do grande salão, a pequena porta que a levava pelo corredor secreto. Relembrou de quantos dias passou ali, imaginando-se com Gilbert, tentando lutar contra seus próprios sentimentos: coisa que ainda fazia, se fosse sincera consigo mesma.
Entrou no quarto dos porta-retratos, relembrando de cada foto que havia decorado do casal desconhecido que enfeiava o local. Eram tão jovens e apaixonados. A sua favorita era a da jovem mulher sentada à frente de um piano, os olhos fechados, entregue à música, enquanto o homem a encarava com completa adoração. sorriu, triste, e pensou em como sentia falta de tocar. Talvez aquilo fosse a única coisa que gostaria de fazer naquele período de luto.
Saiu da porta e parou de frente para o antigo motivo de sua angústia e curiosidade: o que estava por trás da antiga porta de madeira. Porém, analisando melhor, percebeu que a porta não estava alinhada com o portal e revelava uma fresta. prendeu a respiração: a porta estava aberta!
Não sabia exatamente o que sentir diante daquele fato. Como seria seu interior? E se decepcionasse todas as horas de imaginação dedicadas a criar uma imagem para o local? Seria melhor manter o mistério ou abri-la, por fim?
era muito curiosa para, mesmo se decepcionando, não conseguir abrir a porta. Respirou fundo e prensou a mão na porta de madeira, sentindo-a se afastar aos poucos...
— Lady Pency retornou à casa! — escutou o velho mordomo gritar. — Jones, pegue um cavalo e vá à Charlottetown: vossa lady precisa de um médico!
Lady Pency estava de volta?, a jovem pensou. E precisa de um médico?
A porta foi esquecida e correu rapidamente para o grande salão, atravessando até o hall principal, onde encontrou todos os criados se movimentando.
— O que está acontecendo? — Indagou, mas todos pareceram ocupados demais para responder.
Atordoada, foi atrás do mordomo.
— Senhor, o que houve? Por que lady Pency precisa de um médico?
O mordomo a encarou, rapidamente, pronto para ignorá-la, mas parando ao ver de quem se tratava. Então, pigarreou e se voltou para ela:
— Lamento informar que lady Pency começou a sentir um mal-estar na carruagem durante sua volta para a mansão. Não temos mais informações e devemos esperar um médico analisá-la.
Um médico? O coração de se acelerou quando sua mente formou a imagem de Gilbert. Ela tratou de afastar a imagem. Por mais que não gostasse da tia, não era um monstro. Não queria vê-la doente. Era uma cena, inclusive, estranha de se conceber, pois a mulher parecia indestrutível e imortal, quase como um ser antigo que habitava o mundo desde sua criação.

chegou antes do médico e teve que ser a responsável por contar-lhe as notícias. A irmã ficou visivelmente abalada. e ficaram abraçadas, sentadas na escada do hall, aguardando o Doutor Raynes.

Uma hora mais tarde, o médico chegou à residência e foi diretamente para o quarto privado de lady Pency. As irmãs aguardavam, apoiando uma à outra. Estavam cansadas das doenças do mundo que abatiam àqueles a sua volta, até mesmo os que menos gostava, no caso de .
Esperaram mais meia hora o diagnóstico do médico.
— Pode ser velhice. — disse, tentando tranquilizar a irmã, sempre a irmã bondosa e responsável que tentaria segurar seus próprios sentimentos pela mais nova. — Pode ser uma gripe. Pode ser só enjoo. Vamos aguardar.
Quando o Doutor Raynes desceu as escadas, de volta para o hall, no entanto, não trazia um sorriso muito tranquilizante no rosto.
— Não posso dizer com certeza, mas o caso parece muito semelhante à tuberculose. Os sintomas ainda são muito iniciais, então posso estar enganado, mas o melhor agora é que poucos fiquem na casa, que liberem todos os criados possíveis. E vocês duas devem ir para outro lugar.
— Para onde? — questionou, os olhos cheios de lágrimas. — Nossa mãe não pode nos receber, porque também está infectada. Esse era nosso lar provisório.
— Sinto muito, senhoritas. — O médico se encaminhou para a entrada, recolocando o chapéu. — Deixo a decisão a cargo de vocês. Os criados já foram informados. O mordomo se voluntariou a continuar com a cozinheira Linnet e a camareira Silvia. Os outros serão dispensados, ordem de sua tia. — O homem abriu a porta e inclinou a cabeça com respeito. — Virei amanhã para conferir o estado dela. Rezo a Deus que não seja tuberculose. Boa noite.
A porta se fechou e as duas irmãs foram deixadas sozinhas no grande hall.
— Ah, , o que iremos fazer? — O choro já escorria na face de .
— Meninas, não se apavorem. — As duas se viraram ao escutar a voz da senhora Mary, a governanta da casa. — Minha casa não é muito grande, mas abrigaria com prazer as duas, pelo menos até termos um diagnóstico confirmado e pudermos buscar outro local melhor.
— Oh, Mary, seremos eternamente gratas por sua ajuda! — disse, abraçando-a.
— Mary, as regras de lady Pency ainda são válidas? Estou proibida de me comunicar com o mundo externo? — questionou, as lágrimas diminuindo e uma ideia surgindo na cabeça.
— Oh, , não é hora de pensar nisso... — brigou com a irmã gentilmente.
— Não, , você não entendeu. Se eu puder escrever uma carta, posso pedir estadia na casa de . Sei que ela não recusaria, mas preciso pedir a ela. E também explicar meu tempo sem enviar notícias. Não podemos abusar da senhora Mary.
— Não é abuso nenhum, meninas, seria uma honra! — A governanta afirmou. — Mas acredito que seria bom pensarem em uma alternativa. É claro que pode enviar uma carta. Até lady Pency entenderia essa situação.
assentiu, efusiva, e correu escada acima para seu quarto. Revirou as gavetas atrás do papel e pena que estavam há semanas inutilizados. A carta saiu um pouco rasurada pela pressa e sua caligrafia não era das melhores, mas a emoção de poder falar com a amiga compensava tudo isso.

Querida ,
Acredito que esteja surpresa por receber esta carta de minha autoria. Primeiro, devo-lhe desculpas por minha ausência. Não tenho muito tempo e realmente espero poder vê-la logo (entrarei em detalhes sobre isso em breve), mas, em resumo, lady Pency me proibiu de sair de casa ou me comunicar com qualquer um por causa de um evento acidental, um pequeno escândalo (não se preocupe, está tudo resolvido, exceto em meu coração).
Fico feliz de poder, enfim, contatá-la, embora isso só seja possível pela situação lastimável em que nos encontrando. Após o falecimento de meu pai há três semanas, agora recebo a notícia de que lady Pency possa estar com tuberculose. Teremos que, mais uma vez, nos realocarmos. A gentil governanta nos hospedará nos próximos dias, mas não queremos incomodá-la e sinto tanto a sua falta. Espero não ser deselegante de minha parte, mas, caso vocês possam receber minha irmã e eu, seremos eternamente gratas e os recompensaremos, obviamente.
Sinto imensas saudades suas. Me desculpa novamente por sumir, senti tanta a sua falta que mal pude ficar bem.

Com todo amor,

— Entregue para um criado levar ao correio antes que seja dispensado. — disse ao mordomo, após envelopar a mensagem.
Tinha medo de que interpretasse que ela apenas estava se aproveitando da situação, quando realmente sentia uma falta imensa da amiga. No entanto, apenas respirou fundo e deixou a carta ir. Não tinha mais o que fazer até obter uma resposta.
e fizeram rapidamente as malas e as irmãs sentiram um deja vu de quando estavam saindo de casa pela primeira vez. Em seguida, entraram na carruagem com a senhora Mary. Um dos cocheiros que morava perto as levou até a casa da governanta.

Chegaram em uma região mais simples da cidade, mas ainda bem arrumada. Era uma área que muitos criados de boas famílias se abrigavam. Um pouco mais adentro, eles pararam a carruagem na frente de uma adorável casinha de tijolos. As irmãs desceram da carruagem e levaram as bagagens para dentro, enquanto o cocheiro deixava o transporte em um local próximo.
As meninas entraram na casa, que tinha um andar com uma pequena cozinha embutida em uma sala de jantar e dois quartos, com um lavatório do lado de fora. As meninas ficaram com o quarto maior, que era de Mary, e a governanta se mudou para o quarto de visitas.
— Senhoritas, não posso oferecer muito, mas sintam-se em casa! — A mulher disse, parecendo constrangida.
— Muito obrigada, Mary, nunca poderemos ser gratas o suficiente — disse, segurando a mão da mulher.
Ambas se instalaram no quarto.

•••

As três viveram durante quatro dias juntas, compartilhando a mesa de refeições, dividindo as tarefas (por mais que Mary tivesse insistido que elas não precisavam), mas, no geral, ficavam quietas. ainda se esforçava para manter um clima agradável e tentava ser educada, mas estava uma pilha de nervos. Geralmente, Mary falava sobre sua vida sozinha, mas desistia depois de um tempo de silêncio. Receberam muitas visitas durante aqueles dias de vizinhos curiosos com as visitas tão bem-criadas por aquelas regiões.
Mas, enfim, a carta de resposta de chegou. ficou muito nervosa para abrir de cara. E se aquele fosse o fim de sua amizade? Mas seu bloqueio durou alguns poucos milésimos de segundos, porque a curiosidade venceu e logo pegou seu abridor de cartas, despejando o conteúdo em sua cama emprestada, desdobrando o pergaminho.

,
Primeiro, eu queria dizer que sinto muito pela perda do seu pai. Queria ter estado aí para te abraçar, só imagino quão doído foi para você.
Recentemente, encontrei Gilbert Blythe. Juntando as peças, acho que entendo o que você passou, só precisei ligar os pontos.
Queria dizer que estou indignada por você achar que precisava me pedir desculpas. É claro que entendo o que você passou e nem precisa me perguntar se pode vir para cá ou não. Falei com mamãe e ela ficou emocionada com a possibilidade de receber você e sua irmã aqui em casa.
Estaremos esperando vocês por aqui a partir do dia 20 de setembro. Venham logo! Precisamos conversar sobre várias coisas URGENTEMENTE!
Estou morrendo de saudade.

De todo o meu coração,

releu a carta três vezes, captando todos os detalhes e nuances, e rompeu em uma gargalhada feliz. ainda era sua melhor amiga e não a odiava! O alívio se espalhou por cada centímetro do seu corpo e ela se jogou na cama, braços e pernas espalhados em júbilo.
Então, se levantou rapidamente e releu a carta. “Estaremos esperando vocês por aqui a partir do dia 20 de setembro”. pegou o calendário de papel e conferiu o que passou por sua cabeça: era dia 21 de setembro. Elas já estavam a esperando! Por mais agradável e gentil que Mary fosse, ela podia já ver a amiga.
saiu correndo pela casa, procurando a irmã pela pequena propriedade. Encontrou-a do lado de fora, observando o movimento da cidade.
! ! — Exclamou, acenando empolgada.
A irmã se virou para trás, assustada com a excitação tão discrepante do seu comportamento anterior, ansioso e para baixo.
— O que foi, ?
sorriu abertamente e pegou a mão da irmã, levando-a para dentro.
— Arrume suas malas. Você irá conhecer minha melhor amiga!



Capítulo 17

O primeiro dia de outono chegou e Gilbert estava mais perdido do que nunca. Em uma semana, o mês acabaria e ele teria que pagar o aluguel, aluguel este que ainda não havia recebido dinheiro o suficiente para pagar. E nem sabia se valeria a pena, pois o senhor Pye já havia dito que, ao final do ano, o preço se tornaria muito mais alto e lhe deu apenas duas opções: largar o consultório ou comprá-lo de vez, o que ele só conseguiria se vendesse sua fazenda. A fazenda em que o pai e Mary descansavam.
A única vez em que partiu, foi porque sabia que tinha para onde retornar: para sua casa. Como ficaria, sabendo que nunca mais poderia estar ali, se a vendesse? Mas como poderia também abrir mão dos seus sonhos?
Ele precisava de um conselho amigo, mas não queria incomodar Bash. Ele estava muito bem de vida, recém-casado e com uma filha pequena, guardando o que sobrava para o futuro da pequena Delphi, mas Gilbert sabia que ele não mediria esforços para ajudá-lo, mesmo que isso pudesse atrapalhá-los. Por isso, quando Bash foi o visitar no mesmo dia, pela parte da manhã, Gilbert se esforçou para colocar um sorriso no rosto e ajudá-lo a esvaziar as macieiras.
Durante o mês de setembro, e o de outubro que estava por vir, seria a melhor época de maçãs. Elijah estava de férias naquele dia, então era função dos dois assumirem. O trabalho, pelo menos, abriu caminho para assuntos mais tranquilos de serem discutidos, como as vendas e lucros que estavam tendo, as áreas mais prósperas da propriedade e, claro, sendo Sebastian ao seu lado, como Gilbert era desengonçado e tinha as mãos macias demais para o trabalho duro.
Naquele ano, as maçãs estavam muito bonitas e isso encheu Gilbert com um pouco de esperança de conseguir pagar o aluguel do mês e adiar a sua decisão sobre o consultório para final de outubro. Parecia que adiar a tomada de decisões estava se tornando algo frequente para ele.
Depois da longa manhã, Gilbert e Bash almoçaram uma bela refeição que havia sido deixada pela senhora Lacroix, a mãe de Sebastian. Os anos passavam e ela ainda sentia dentro de si a necessidade de agradá-lo. Ao menos, agora não como a serviçal que ela, no início, pensou ser, e um pouco mais como uma tia querida.
O almoço foi interrompido quando Blythe escutou o carteiro o chamando do portão. Voltou para a cozinha com as entregas recebidas: um jornal periódico da cidade, uma carta de Louis, um colega da faculdade que às vezes ainda mantinha contato com ele, além de uma carta de Diana Barry e outra de Monroe.
A matemática sempre foi a única área em que Gilbert conseguia superar Anne, ele realmente tinha um excelente raciocínio lógico. E aquilo para ele havia praticamente se tornado um problema de matemática. Afinal, estava para Anne assim como estava para Diana. Relações de equivalência. Ou algo assim. E aquilo lhe lembrava escolhas, escolhas que ele estava se esforçando bastante para fugir de.
Ignorando-as no momento, abriu a carta de Louis.
— Caramba, Louis está trabalhando na linha de frente em um hospital Europeu. Aparentemente, está havendo um surto de gripes e doenças até mesmo desconhecidas! — Gilbert, por um momento, esqueceu das outras duas cartas e se permitiu ficar deslumbrado e apavorado ao mesmo tempo.
Muitas pessoas estavam morrendo, mas ele mantinha esperança de que médicos como Louis poderiam fazer descobertas que salvariam essas vidas e mudariam para sempre o futuro.
— Ainda bem que minha lua de mel foi há meses! — Bash comentou, balançando a cabeça sombriamente.
Com certeza a ideia de perder novamente o amor o apavorava.
Gilbert passou sua atenção então para o periódico de Avonlea. Na verdade, era a única coisa que restava entre ele e a escolha de qual carta ler primeiro.
— Ok, o que está havendo aqui, Blythe? — Bash perguntou, apoiando as mãos na mesa e olhando para o garoto como se suspeitasse de algo.
— Como assim? — Gilbert disse, virando a página.
Já não se recordava nada do parágrafo anterior, o que era bom, porque assim poderia relê-lo.
Gilbert devia ter previsto o tapa.
Ai!
— Você sempre joga essa porcaria de periódico no lixo, onde as opiniões sobre qual grama esteve cortada de forma mais rente devem mesmo ficar. Nunca se dá ao trabalho de ler a primeira página, quem dirá tudo! Acha que não sei que tem algo errado?
Blythe engoliu em seco, sabendo que era impossível enganar o melhor amigo, mas não se sentindo muito disposto a pensar na situação. Seu olhar recaiu por um segundo nas cartas, antes de se bronquear mentalmente e voltar para o periódico.
Mas Bash foi rápido e percebeu seu olhar, e logo as cartas estavam em sua mão.
— Diana Barry? É por isso que você está enrolando nesse maldito periódico? Eu já devia ter imaginado. — Sebastian então olhou para a outra carta e sua face assumiu uma expressão de confusão. — Monroe? Quem é?
As bochechas de Gilbert ficaram levemente coradas. Ele queria evitar ao máximo o assunto e agora havia caído no centro dele.
é… a melhor amiga de .
O menino podia enxergar as engrenagens no cérebro do amigo girando, enquanto ele juntava as peças, dando forma à situação.
? ? A menina que você beijou e sumiu? — Ele subitamente olhou para as cartas. — As duas melhores amigas?
— Eu me encontrei com recentemente... — Gilbert admitiu, sabendo que precisaria contar ao amigo sobre o acontecido no bar, há quase duas semanas.
Guardou aquilo para si como se o ajudasse a fingir que nada havia acontecido.
— No encontro de turma dos meus colegas de escola, ela é prima dos Andrews. Enfim, depois que e eu nos beijamos, ela desapareceu completamente. ficou preocupada e veio me perguntar se eu tinha notícias. Nós acabamos conversando sobre o que aconteceu e… ela me deu um alerta.
Sebastian ergueu uma sobrancelha.
— Um alerta?
— Como minha vida é um entretenimento público para essa vila, ela sabia sobre a Anne. E me pediu para só me envolver com a se eu tivesse certeza absoluta do que sentia, para não a envolver nos meus problemas. Ela… deixou claro que eu deveria escolher.
Sebastian não riu, nem o chamou de idiota. Ele olhou o amigo nos olhos, como se procurasse entender o que ele estava sentindo. Provavelmente, só encontrou um olhar desesperado, ansioso e confuso. Bash então voltou os olhos para as cartas.
— Escolher, é?
— Não sei se estou pronto para escolher. Não sei se conheço o suficiente para isso ou se realmente posso me entregar para alguém. Eu não te contei, porque, como é óbvio, estou tentando adiar tudo isso. Mas parece que as decisões ainda me chamam.
— Escolher entre as cartas das melhores amigas seria como escolher entre elas... — disse, como se estivesse entendendo a lógica do amigo.
— Exatamente! — Gilbert suspirou, derrotado.
— Blythe, você é um tremendo idiota.
Gilbert se sobressaltou na cadeira. Depois de todos os olhares compreensivos que o amigo estava enviando, certamente não esperava isso.
— Entendo o lado da tal de que você realmente não pode se envolver se não estiver pronto para entrar de cabeça, que a pobre garota não merece, mas você complica tudo demais! Essas cartas não são escolhas do seu coração, são escolhas de prioridade momentânea. Você nem sabe se essas cartas são sobre as garotas de qualquer jeito.
— Sobre o que mais elas me escreveriam?
— Sei lá, convites para festas e eventos! Você conhece essas besteiras melhor do que eu.
Sebastian, como sempre, tinha razão, mas o coração de Gilbert ainda estava pressionado no peito. O amigo suspirou de novo.
— Ouça, Gilbert. Essas cartas não são sua escolha final. Elas são só cartas. E você não vai ter um dia de um grande veredito em que algum juiz engomadinho vai perguntar quem você deseja e, logo, você deve se casar imediatamente. ‘Tá mais que na hora de você entender que Anne não vai voltar. Mas você não precisa se envolver com ninguém também. Você pode levar tudo com calma com a e, ainda assim, pode depois mudar de ideia. Não se envolva demais se não estiver pronto, mas também não precisa evitar se envolver completamente, só porque você teve alguém no passado. — Bash suspirou e seu olhar já não estava mais ali.
Na verdade, Gilbert sabia bem onde ele tinha ido parar: em sua ex esposa, Mary.
— Nunca esquecemos de verdade as pessoas que amamos. Mas, graças a Deus, nós não amamos somente uma vez. Anne pode ainda ficar no seu coração, mas não significa que você não vai ter espaço suficiente para outra pessoa um dia. E, aos poucos, uma nova pessoa abre cada vez mais espaço, até a pessoa antiga se tornar uma memória carinhosa, alguém que uma versão nossa já amou.
Gilbert segurou a mão do amigo, em um gesto confortante. Sabia como tinha sido difícil para Bash seguir em frente da primeira mulher que amou e se envolveu. E a situação dele era ainda mais triste, porque ele havia a perdido para sempre. Já Gilbert poderia com o tempo reaprender a amar Anne apenas como uma amiga.
Ele suspirou.
Tudo parecia tão complicado, mas a conversa havia lhe dado um pouco de esperança.
— Desde quando ficou tão sábio? — Gilbert o provocou, tentando trazer um pouco de leveza para o momento.
Funcionou, porque Bash abriu um sorriso convencido.
— Desde quando eu não sou?
E então estendeu as cartas de volta para Gilbert.
O garoto as segurou, a de na mão esquerda e a de Diana na direita.
— Não é uma escolha. São só cartas! — Bash o lembrou.
Ele, então, respirou fundo e abriu a de Diana, que tinha mais chances de ser apenas sobre alguma convenção social.

Caro Gilbert,
Como vai? Talvez minha carta lhe seja uma surpresa. Espero que uma agradável. Nos vimos há poucos dias e fico sempre contente em sua companhia. Mas temo que o foco dessa carta não seja eu.
Anne irá retornar no dia 23 de setembro para reencontrar Marília e Matthew, além de distribuir os seus convites de casamento. Ela decidiu nesse dia fazer um pequeno reencontro com todos os amigos locais aqui em casa, às cinco da tarde, e me pediu para convidá-los. Você, é claro, está na lista.
Não sei como se sente hoje em dia. Não cabe a mim perguntar. Gostaria apenas de estender o convite. Anne ficaria muito feliz com a sua companhia, mas quero que saiba que entenderá se você não for, afinal, você é um médico muito ocupado. Sinta-se à vontade.

Cordialmente,
Sua amiga, Diana Barry.

Gilbert terminou de ler e reler a carta com o coração na boca. Ele não tinha o que dizer sobre. Vinte e três de setembro era o dia atual. Anne estava em Avonlea. Anne estava ali, perto dele. Com seus cabelos ruivos, seu temperamento indomável, sua sede de justiça, sua mente brilhante, sua risada contagiante. Uma princesa guerreira. Nem tudo aquilo seria capaz de descrevê-la.
Sua Anne. Ou melhor, a Anne que não era sua e tinha apenas sido por um breve momento. Ele não sabia como reagir com a sua proximidade.
Vendo o estado de choque do amigo, Sebastian tomou a carta de suas mãos e começou a ler. Suas sobrancelhas se ergueram em completa surpresa e então olhou para Gilbert, preocupado.
— Ela está aqui?!
Blythe engoliu em seco, mais nervoso do que nunca. Ele tinha um pressentimento sobre a carta, mas nada poderia chegar perto dessa notícia. Parte de si queria se levantar imediatamente para vê-la. Mas uma parte maior, com o sentimento um pouco adormecido pela distância e que se lembrava da dor e constrangimento que a garota havia lhe causado, o fez ficar sentado em sua cozinha na presença de Sebastian.
— Blythe? O que você vai fazer?
Sem responder Bash, ele apenas tratou de abrir a última carta. A carta de Monroe.

Caro Gilbert Blythe,
Devo dizer que nossas teorias estavam certas. Lady Pency esteve mantendo afastada de tudo e de todos, impedindo-a de sair ou mandar correspondências, mesmo durante o período em que as perderam o pai.
Como eu sei disso? Aparentemente, Lady Pency está doente há quase uma semana. Gripe, aparentemente, e, com o risco de ser contagiosa, todos se retiraram da mansão. Já deve imaginar quem está na minha presença…
Não sei se é certo eu escrever e te notificar disso, porque eu ainda acho que você tem muita coisa para corrigir, mas isso não se trata das suas questões amorosas. acabou de perder o pai. Por mais que minha amiga não goste da própria tia, por favor, não a deixe perder mais alguém.
Minha casa está de portas abertas para você quando puder. Por enquanto.

Gilbert engoliu em seco ao ler a segunda carta, seu coração mais acelerado do que nunca. Ele deixou-a na mesa (sendo rapidamente capturada pelas mãos do curioso Sebastian) e buscou um copo de água, procurando se acalmar.
— Puxa, essa menina não está para brincadeira! — Bash tentou zombar.
Gilbert tomou mais um longo gole.
— Então parece que realmente se tornou uma escolha, não?
Blythe pensou sobre o que o amigo disse. Sim, era uma escolha aos olhos de Bash, mas não aos olhos dele. Aquilo era algo com o qual ele precisava lidar. Algo que ele jurou fazer ao terminar a faculdade.
— Não é uma escolha. Eu sou um médico. — Gilbert apoiou o copo na pia, sentindo-se um pouco mais seguro.
Naquilo, ele tinha maior segurança e a desculpa perfeita para não escolher.
— Obrigado por tudo, Bash. Fique à vontade, mas estou partindo já. Tenho um caso urgente para tratar.

Gilbert parou diante da casa marrom e se lembrou quando, há meses, deu carona para na carruagem alugada de Billy, porque ela havia se esquecido de providenciar um modo de voltar para casa. Um pequeno sorriso se abriu na sua boca. Antes do beijo, ele achava a companhia dela confortável. E agora? Seu histórico com situações parecidas não era das melhores.
Mas ele não estava ali para se preocupar com isso. Era um médico e ia ajudar a familiar de uma doente. Com isso em mente, bateu à porta.
A cozinheira a abriu, olhando-o de cima a baixo.
— Pois não?
Ele engoliu em seco, um pouco ansioso.
— Meu nome é Gilbert Blythe, sou médico. Vim a pedido da senhorita Monroe.
A mulher se afastou um pouco do batente e, colocando a cabeça para dentro da casa, chamou pela garota.
Gilbert a viu descer as escadas apressada. Já na porta, o encarou de frente. Mesmo baixa, a garota passava um olhar apavorante.
— Gilbert Blythe. Vejo que recebeu minha carta.
— Olá, . Estou aqui para ajudar como puder.
Ela assentiu com a cabeça e fez um gesto para que ele entrasse. A casa era bem arrumada e espaçosa o suficiente para uma família bem de vida de uma cidade pequena.
apontou para a escada.
— Ela está lá em cima com a irmã. Vamos?
Por um segundo, sua mão tremeu e ele engoliu em seco. Mas afastou todas essas sensações e começou a automaticamente apoiar seus pés nos degraus, um de cada vez. Ele podia sentir o olhar analítico de nas suas costas.
— Então, andou pensando na nossa última conversa?
Ah, e como estava pensando.
— Não seria justo da minha parte afirmar que já tenho minha resposta, embora tenha me dedicado bastante a refletir sobre o assunto. Mas não estou aqui para isso.
— Não, claro que não.
Ele não sabia se ela estava sendo sarcástica.
No topo da escada, ele começou a escutar uma melodia tocar, algo que fez os pelos em seu braço se arrepiarem. Era uma música triste que parecia fazer o coração de Gilbert se afundar. Mesmo abafada, ele conseguia perceber que era muito bem tocada e de forma tão emocionante e carregada. A música parecia atraí-lo para onde estava.
foi guiando-o pelo corredor e conforme percorriam o espaço, o volume da música aumentava. Agora, seu coração disparava por mais um motivo: estava prestes a ver de novo. E cada vez mais ele tinha a impressão de saber de onde a música vinha.
Quando lhe indicou a porta, ele engoliu em seco e a abriu, a música atingindo-o em cheio. Mas não foi apenas a música. Ele identificou sentada ali perto, com um vestido cinza, bordando, mas seu olhar estava fixo em outra figura. Na que tocava piano, virada de costas para ele. Mas não havia dúvidas de quem era. Só restava encontrar uma pessoa. E havia algo diferente que atraía seu olhar para a garota, algo que o fez, mais do que tudo, reconhecê-la.
Seus cabelos brilhavam com a luz do sol que entrava no ambiente. Suas mãos se moviam com destreza sobre o instrumento, com um talento que ele nem sequer sonhava que ela possuía. As vestes lilases o deixavam triste, porque ele conhecia o significado: meio-luto. Já havia tempo que o pai dela faleceu, mas nenhum tempo era suficiente para superar esse tipo de situação, ele bem entendia. Era uma das cenas mais lindas e simultaneamente tristes que ele já havia visto.
quebrou o encanto do momento.
— Temos visitas.
A música parou subitamente. foi a primeira a vê-lo e suas sobrancelhas se ergueram com leveza, a boca se abrindo em um perfeito “O” que ela tratou de corrigir com um sorriso.
— Doutor Blythe, que… surpresa.
O som brusco de diversas teclas sendo pressionadas chamou a atenção dos presentes. se virou rapidamente para trás, mortificada, as mãos ainda apoiando as pobres teclas do piano. Sua boca se abriu diversas vezes, mas se fechou em seguida. Ela não conseguiu pronunciar nenhum som.
Não que Gilbert estivesse muito atrás.
Nenhuma lembrança fazia jus aos olhos cheios de vida que o encaravam e ele estava completamente perdido neles. Algo esquisito parecia se revirar em seu estômago. Havia intensidade até demais naquele olhar trocado.
Um pigarro chamou atenção dos dois.
Gilbert sentiu as bochechas corarem e relanceou o rosto de . Apesar de seus olhos arregalados, ela mantinha a cor natural. Ele sorriu fracamente. Ela realmente tinha razão quando dizia que nunca corava.
— O que está fazendo aqui, doutor Blythe? — foi educada ao perguntar, seus olhos seguindo do doutor até a irmã.
Ele pigarreou, tentando se recompor. Como podia conquistar clientes se não estava sendo profissional?
— Vim a pedido de para ajudá-las com sua tia.
O olhar de se virou rapidamente para , que passou a admirar seu quarto com muito interesse, praticamente ignorando a amiga. Então, se virou para Gilbert com o queixo bem erguido.
— Agradecemos sua boa vontade, mas Lady Pency já está acompanhada de um médico.
— E ele já conseguiu curá-la? — O garoto perguntou.
— Não, mas…
— Então eu ajudarei.
A irritação voltou ao rosto da garota, ela era transparente demais com suas emoções. Voltou a olhar , e dessa vez a amiga a encarou de volta, dando os ombros. revirou os olhos.
— Tudo bem, senhor médico sabe tudo, o que acha que pode fazer?
Ele se encolheu um pouco ao receber a irritação de , mas lembrou-se de se manter firme e profissional.
— Vamos começar do princípio. Quando ela ficou doente? Quais os sintomas e diagnósticos?
revirou os olhos e voltou a ficar de costas para ele, tocando uma nova música no piano, esta bem mais raivosa do que a primeira. Diante da atitude da irmã, suspirou e se virou para Gilbert.
— Tudo começou quando nossa tia retornou da Europa, uma semana atrás. Ela já retornou se sentindo mal e um médico foi chamado imediatamente. Disse que é uma gripe contagiosa, por isso fomos retiradas de lá.
Gilbert assentiu, vendo que as informações coincidiam com o que havia lhe dito na carta. Antes que ele pudesse fazer uma nova pergunta, colocou uma mão na frente da boca.
— Será que… Doutor, será que pode ter sido algo que eu e trouxemos de casa?
A música raivosa no piano parou e pareceu atenta.
— Não se preocupe, senhorita . Já faz quase cinco meses de sua chegada, se algo fosse acontecer, se vocês estivessem carregando a doença, ela teria se manifestado em uma ou duas semanas desde a chegada. Não é, de forma alguma, algo que vocês trouxeram e menos ainda culpa de vocês. Se realmente for uma gripe e se ela estava voltando da Europa, creio que ela tenha pegado a doença lá. Surtos de gripes e várias outras doenças estão sendo relatadas na região.
— Mesmo assim, ela foi à Europa por minha causa, pela minha corte. Eu sou a culpada…
— Não fale isso, ! — disse, virando-se na direção da irmã. — Lady Pency já ia para a Europa antes, ela havia dito.
— E não tinha como saber a situação. — Completou .
não retrucou, mas se manteve em silêncio. De repente, Gilbert se sentiu em um momento íntimo demais em que achava que não era bem-vindo. Ele pigarreou baixinho.
— Vocês têm notícias se mais alguém da casa já ficou doente até então?
As três garotas ergueram o olhar para ele.
— Não estamos mais lá para saber. — respondeu.
— Mas Mary, a governanta, nos manda notícias diárias. — comentou.
As garotas reviraram as próprias coisas, até encontrarem três cartas.
— Enquanto estávamos lá, ninguém se contaminou e pelo que ela escreveu, continua assim, graças a Deus! — informou.
— Estranho... — Gilbert disse. — Uma doença contagiosa, diversos criados em contato e ninguém se contaminou? Seu retorno foi há uma semana, mais alguém já deveria ter manifestado algum sintoma. Será que a doença está sendo tão bem contida assim?
— O que isso significa? — perguntou.
— Significa que talvez Lady Pency não esteja apenas gripada. Talvez seja outra coisa. — A mente de Gilbert estava a mil. — Vamos precisar conversar com o médico que está a tratando. Ele, melhor do que ninguém, saberá sobre os sintomas do que ela está passando. Depois, precisamos comparar o que ele informar com algumas pesquisas. Procurar a doença que corresponde.
— Eu não sei o nome do médico. Poderíamos perguntar à Mary. — disse.
A porta se abriu e uma moça jovem entrou no quarto.
— Senhorita Monroe, correspondência para a senhorita .
se levantou a buscou a carta para a irmã, que corou e sorriu ao segurá-la.
— É de Travis.
Gilbert estava familiarizado com o nome do conde, já havia comentado sobre ele e toda Avonlea sabia do envolvimento de com o nobre inglês. A mais velha abriu o envelope e se pôs a ler o conteúdo da carta.
— Travis está vindo me visitar. Essa carta é de quinze dias atrás. Aparentemente, Lady Pency havia o convidado para jantar, então ele embarcaria no dia dezoito de setembro para chegar aqui hoje. Hoje! começou a se abanar.
— Ele vai te pedir em casamento! — exclamou.
— Não haverá casamento nenhum se ele chegar à mansão Louborne e não me encontrar.
— Não se preocupe! — exclamou. — Falarei com mamãe. O receberemos aqui em casa, mamãe se sentirá muito importante de poder organizar um jantar para um conde.
, não queremos ser um fardo maior! — disse.
— Pois não são fardo nenhum! Será uma grande honra, prometo. — Ela sorriu. — Sou contra o meu próprio casamento, mas isso não significa que eu seja contra o que os outros escolherem como felicidade.
— Ah, , você foi uma amiga tão boa para e agora está sendo uma amiga tão boa para mim! Obrigada!
— Espera. Mas como o conde saberá onde nos encontrar? — questionou.
— Vamos juntar um problema a outro. — olhou para Gilbert e as duas o olharam como se tivessem se esquecido da companhia do médico.
ficou extremamente vermelha.
— Gilbert precisa ir à mansão Louborne descobrir o nome do médico e como encontrá-lo. E também precisamos deixar os criados avisados sobre a chegada do conde, para que possam direcioná-lo para cá. Como Gilbert é um estranho, deve acompanhá-lo, porque já conhece a casa e os criados. O pedido será melhor atendido e a mensagem será tida como legítima.
— Eu?!
— Enquanto isso... — a ignorou. —, eu e iremos avisar minha mãe das notícias e arrumar as coisas por aqui. Há muito trabalho a ser feito para se receber um conde.
— Então deixe-me ajudar!
— Você não ouviu nada do que eu disse sobre o seu papel? Isso é urgente, , não sabemos se o conde já pode ter procurado a mansão ou não.
bufou e olhou para Gilbert. Naquela fração de segundo, ele pôde ler seus olhos. Ela estava irritada, mas acima de tudo, magoada. Magoada por causa dele. E ele nem sabia o que havia feito.
Mas alguma coisa se suavizou em seu olhar. A garota suspirou.
— Tudo bem. — Ela buscou entre as suas coisas e ajeitou a bolsa, calçou um par de sapatos mais arrumado e colocou um chapéu. — Vamos logo. — E agarrou Gilbert pelo braço, arrastando-o para fora do quarto sem nem se despedir das outras duas garotas.

O caminho até a mansão foi silencioso, mas não o silêncio confortável que antes eles compartilhavam. estava com o cenho franzido, bufava alto como se quisesse explicitar o quão chateada e irritava estava, e se recusava a encarar Gilbert. O caminho de uma hora, na primeira vez, pareceu durar quinze minutos de tão tranquila havia sido a viagem. Com o clima carregado, Gilbert sentia que estava há dias sentado ali, esperando para chegar ao seu destino.
Não pôde deixar de suspirar quando finalmente avistou a mansão Louborne.
e Gilbert desceram da carruagem, mas não foram para a entrada principal. Rapidamente, explicou que eles não estavam recebendo ninguém dentro da mansão, pois era o local em que Lady Pency estava isolada. A menina então os guiou para a casa da governanta Mary.
Ao chegarem lá, bateu à porta.
— Já vou! — Eles escutaram uma voz ao longe, então, um minuto depois, a porta se abriu. — Senhorita ! Que agradável surpresa! Não sabia que iria passar por aqui ou teria arrumado melhor o ambiente. Entre, por favor! Ah, e quem é esse?
— O doutor Gilbert Blythe, Mary.
Pela cara da governanta, Gilbert soube que o seu nome não era uma novidade para ela, mas ela escondeu bem suas reações, então não sabia se havia escutado bem ou mal dele. Trabalhando para Lady Pency, ele apostaria na segunda opção.
Os dois se sentaram na pequena sala da governanta, que serviu chá para eles.
— A que devo a honra?
olhou para Gilbert, as sobrancelhas arqueadas, como se o convidasse a falar.
— Obrigado por nos receber, senhora Mary. Estamos aqui por dois motivos. Primeiramente, estou querendo trabalhar conjuntamente com o médico que vem tratando de Lady Pency para ajudá-lo a descobrir mais sobre a doença, em favor a uma família que me ajudou tanto. — bufou baixinho, mas Mary, bem treinada, fingiu não ouvir.
— Se é da vontade das jovens , serei grata em ajudá-lo. O nome do médico é doutor Lucian, bem renomado aqui na região de Cavendish. Ele não está aqui hoje.
— Acho que já ouvi seu nome, mas não o conheço.
— Escreverei o endereço do consultório dele para você. É um homem bem receptivo.
Mary buscou um papel e escreveu um endereço para Gilbert, que o guardou em seu paletó, agradecido.
— Agora o outro motivo. Creio ter escutado que eram dois, certo?
Dessa vez, Gilbert se virou para . Ele sentia que não era seu direito falar do cortejo da irmã de .
— Conde Phillips enviou uma carta para minha irmã. Parece que Lady Pency o convidou para um jantar aqui antes que a doença a acometer. Ele chegará de viagem hoje e está vindo para a mansão Louborne.
— Mas não temos condições de recebê-lo! Não temos nem permissão médica para recebê-lo!
— Exatamente, Mary! Por isso, disse que poderíamos recebê-lo na casa dela, mas preciso da sua ajuda. Preciso que, quando ele chegar, você informe a ele dos acontecimentos e passe o endereço de . Mary, ele vai pedi-la em casamento, isso é óbvio.
— Eu não teria dúvidas, de acordo com o que vi no jantar que aqui foi oferecido há alguns meses... — Mary concordou, assentindo com a cabeça.
— Podemos contar com você, Mary? Pelo futuro da minha irmã?
A governanta suspirou e se levantou, alisando a saia do vestido.
— Não temos tempo a perder, ele pode chegar a qualquer instante. Escreva-me o endereço que irei avisar alguns criados que moram aqui perto. Pedirei ajuda para vigiarmos a chegada do conde.
— Ah, Mary, não sei o que faríamos sem você! — se levantou, correndo para abraçar a governanta. — Muito obrigada!
— Não há de que, senhorita ! — Mary respondeu, sorrindo, surpresa com aquele contato.
fez o que lhe foi orientado e se despediu de Mary, agradecendo-a novamente. Gilbert também lhe dirigiu seus próprios agradecimentos, enquanto planejava procurar o médico no dia seguinte para ajudarem Lady Pency o mais rápido possível. Ele queria muito encontrar de novo aquela provocativa e sorridente, e não a triste e raivosa que agora o acompanhava na volta da carruagem.

Depois de meia hora mais uma vez naquele castigo de silêncio desconfortável, Gilbert não se conteve.
— Pode falar comigo, por favor? Estive muito preocupado com você nesses últimos dias. E… estive com saudades.
As palavras, ao invés de terem um efeito positivo, pareceram causar a reação contrária, porque se virou para ele como uma onça, rápida e feroz.
— Saudades? Me poupe! Foi o seu bom coração de médico que fez com que nos procurasse. — Gilbert pôde sentir a ironia por trás de suas palavras.
— Mas é claro que esse foi o principal motivo, afinal, você já perdeu seu pai e não quero que tenha que lidar com outra perda.
— Mas foi só isso, não é?
— Claro que não. , eu queria muito vê-la…
O olhar dela parecia dividido, dividido entre acreditar nele ou não. Aparentemente, ele não estava sendo muito convincente, porque ela desviou o olhar novamente, cruzando os braços e se soltando no assento da carruagem, irritada. Gilbert suspirou.
— Me desculpe por beijá-la e deixá-la na situação que deixei. Foi muita falta de educação da minha parte. Se eu pudesse, eu voltaria no tempo e mudaria tudo. — Ele disse, quase que implorando para que ela o perdoasse.
Mas agora o olhar que se voltou para ele foi triste.
— Mudaria, é?
Gilbert suspirou, sabendo que talvez não tivesse sido muito bom de sua parte deixar dizer aquilo, como se dissesse que não queria ter a beijado. Se ela soubesse como o bico que fazia quando o olhava irritada o deixava louco…
Mas ele não poderia beijá-la. Nem se ela ficasse bem com ele. Não agora.
Gilbert segurou uma das mãos dela, a surpreendendo.
, me perdoe. Eu não quis dizer que não gostaria de te beijar, só não queria te deixar mal. Sei que ficamos com muitas coisas em aberto naquele dia, mas, de forma egoísta, eu gostaria de te pedir compreensão. E um tempo. Por favor, seja minha amiga novamente até conseguirmos resolver a situação da sua tia. Vamos ser uma equipe. Depois, nós podemos sentar e conversar. Você pode reclamar, me xingar e falar tudo o que eu mereço ouvir. E nós decidimos o que é melhor para nós. Mas depois. Só por agora, me perdoe.
estava com os olhos arregalados, olhos que iam de suas mãos juntas até encontrar o olhar dele. Gilbert podia senti-la baqueada, ainda mais dividida do que antes. Só precisava de um empurrão.
Ele beijou levemente a sua mão.
— Por favor, .
A face dela se suavizou.
— Gilbert Blythe, o seu charme deveria ser proibido em todo o Canadá.
O garoto riu e ela sorriu de volta, fazendo o coração dele balançar no peito.
— Isso significa que podemos ser amigos?
Ela revirou os olhos.
— Céus, Blythe. Sim, podemos ser amigos. E… obrigada por ajudar com a minha tia.
— Não há de quê. Sinto muito mesmo pelo seu pai e sinto muito não ter estado com você para te ajudar nesse momento. Você sabe que eu faria de tudo para ajudá-la.
Ela abriu um sorriso um pouco mais triste, soltando a mão dele sutilmente, mas parecendo não querer soltá-la.
— Eu sei.

Horas depois, depois de Gilbert ter deixado na casa de , depois dele ter se despedido das três garotas, depois de passar em seu consultório para encontrar Jeannie e ajudá-la com mais uma consulta, depois de chegar em casa e jantar, Gilbert levou um susto. Ele havia se esquecido de que, naquele dia, Anne Shirley havia estado na cidade. Que Anne Shirley tinha o convidado para encontrá-la e ele não havia ido.
Constatar isso fez com que sorrisse.
Sentado na mesa de jantar, apesar de ter devorado a comida da senhora Lacroix, Gilbert se sentiu leve como não se sentia há anos.


Capítulo 18

mal tinha posicionado a última taça na mesa quando a porta se abriu, a governanta anunciando o Conde de Jordan. A mãe de se abanou, murmurando um “Santo Deus”, o pai dela deixou o jornal de lado para se levantar, lançou um olhar conspiratório para , e … sua boca se abriu em um sorriso lindo, daqueles que são guardados para dias especiais. Como o dia em que você pode ser pedida em casamento.
— Boa noite — Conde Phillips disse, fazendo uma breve reverência e retirando a cartola e o paletó.
Ele mal pareceu ouvir a resposta que ressoou na sala, seus olhos logo fixos em . O olhar dele se iluminou.
sorriu para si mesma. Sabia que aquilo era certo e tinha sido boba e ciumenta ao tentar impedir.
— Conde Phillips, nós lhe pedimos desculpas por não podermos recebê-lo em melhores condições, mas saiba que estamos muito contentes com sua visita — a sra. Monroe disse.
— Tudo está na melhor das ordens. Foi muita gentileza de vocês permitirem que o jantar esteja acontecendo, visto a atual situação. — Ele se empertigou e se aproximou mais de , embora também olhasse para . — Meninas, sinto muitíssimo pelo falecimento do pai de vocês, uma alma que de fato terá sido nobre se criou duas moças tão elegantes, e também pela situação atual de sua tia. Saibam que estarei oferecendo tudo possível para ajudá-las nesse momento.
As meninas agradeceram aquele gesto que parecia muito honesto e se sentaram à mesa de jantar, a cozinheira aparecendo para oferecer uma taça de vinho para todos os presentes.
A conversa foi inicialmente leve. e , que ficaram lado a lado e de frente para o casal, frequentemente se cutucaram e transmitiam mensagens pelo olhar sobre os dois apaixonados. O sr. e a sra. Monroe, nas pontas da mesa, conduziam de forma elegante e divertida o jantar.
O prato principal foi servido e todos se deleitaram com o porco. Mas o melhor era a forma que os corpos de e Travis pareciam ficar cada vez mais próximos, como ela deixava comentários divertidos escaparem quando ele terminava de falar, e como ele a ouvia falar das coisas mundanas como se fossem as mais mágicas de todas.
Quando terminaram a sobremesa, no entanto, começou a ficar apreensiva enquanto caminhavam para a sala principal.
— Ele já não deveria ter dito algo?
— Eu sei lá como isso funciona — replicou . — Talvez ele esteja nervoso.
— Ele é um conde. Sabe que ninguém é maluco de negá-lo.
— Mas o amor deixa as pessoas malucas. Pensam o impensável — acrescentou. — Percebi isso em Emma há alguns meses.
— Não estamos em um romance. Ele já estariam casados em um romance.
— a sra. Monroe chamou a filha, fazendo as duas se separarem —, por que não busca o tabuleiro de gamão? Seu pai e o Conde com certeza adorariam jogar.
resmungou por ter que deixar o ambiente e foi em tempo recorde buscar o pedido, com medo de perder qualquer informação emocionante.
Mas não houve nenhuma.
— Ah, conde Phillips, que sorte a sua! Eu teria ganhado se não tivesse tirado aqueles últimos dados.
— Deus ajuda aqueles que jogam bem — Travis provocou, com gentileza.
— Estou um pouco cansado dessa partida. Srta. , por que não toma meu lugar?
Todos os olhares se voltaram para a mais velha. se sentou na poltrona assim que o pai de se levantou, parando de frente para seu amado.
— Sabe jogar? — Travis perguntou.
— Nunca joguei antes, mas acho que compreendi a dinâmica.
Por mais que fosse menos convencional, os jogos sempre foram o forte de sua irmã. A mais jovem não se contentava em só poder andar uma casa com o peão, enquanto a mais velha dominava o mundo do xadrez. Não foi muito diferente do gamão. Mesmo perdendo a primeira partida, jogou perfeitamente. E insistiu em jogar mais, quando ninguém se opôs. Como alguém se oporia, se todos ali estavam apenas à espera de um pedido?
persistiu jogando até ter sua vitória, mas, assim que saiu da mente tão focada no jogo, sentiu a irmã um pouco tensa. Ela estava com medo de não dar certo, sabia. Estava já pensando que o conde desistira. Honestamente, também.
Tomada levemente pelo desespero, a jovem se levantou do sofá como se um bicho a tivesse mordido. Todos a encararam, preocupados.
, você não está parecendo muito bem. Por que não toma um pouco de ar?
entendeu a ideia na mesma hora.
— É verdade, a srta. está um pouco pálida. O ar da noite a fará bem.
E as duas encararam fixamente o conde. Ele pigarreou, um pouco confuso com aquela atenção.
— Se te fizer bem, ficarei feliz em acompanhá-la.
E estendeu a mão, como uma ilustração de um príncipe de conto de fadas. sorriu timidamente antes de tomar a mão dele e ser guiada para fora da propriedade.
Quando a porta se fechou, o caos silencioso de antes pareceu tomar forma (e barulho).
— Se daqui a meia hora eles não retornarem, irei atrás deles. Tomara que o conde a beije, então podemos forçá-lo a se casar com ela!
— Mãe! — exclamou, horrorizada.
— Podemos conseguir um contrato especial com o padre. Ele é um conde, afinal.
— Isso é muita… gentileza, sra. Monroe — disse, um pouco apavorada com aquele fervor. — Mas não precisa se preocupar. Eu o vi revirar o bolso. Com certeza trouxe um anel.
Era mentira, mas fez a sra. Monroe colocar a mão no coração, aliviada, um sorriso de orelha a orelha tomando seu rosto.
— Então posso me retirar. , me chame assim que eles retornarem!
O sr. Monroe seguiu a esposa escada acima, também pedindo para ser avisado para se despedir apropriadamente.
Os criados passavam discretamente para retirar os pratos e copos utilizados enquanto e se jogaram no sofá, trazendo o tabuleiro de gamão entre elas.
— Já imaginou? Ter que se casar somente porque beijou alguém?
As bochechas de queimaram. Sim, ela já havia imaginado. O que teria acontecido se, depois de ser pega beijando Gilbert, eles fossem forçados a se casar?
já havia sonhado em se casar com ele em alguns de seus delírios, mas forçados? Ele iria odiá-la eventualmente por estar naquela situação. Eles seriam infelizes, porque ele nunca a amaria. Só estaria ali por educação, e educação não faz um casamento, amor sim.
Quando percebeu que a amiga havia voado para longe, corou.
— Me desculpa! Não quis te levar para… essas lembranças.
— Não tem problema.
tirou bons dados e capturou uma peça de .
— E você tem certeza de que isso vai dar certo? Serem amigos?
deu de ombro antes de conseguir voltar com sua peça para o tabuleiro.
— É difícil dizer não para ele.
— Eu posso dizer. Com meus punhos.
riu da amiga.
— Mas é mais que isso. Mesmo que eu conseguisse dizer não a ele, eu não sei se quero dizer não a ele. Ele me faz bem e, depois de você, foi talvez a melhor pessoa que eu conheci aqui.
— Ainda bem que me colocou na frente.
— Claro! Mas eu gosto da companhia dele. Não percebi o quanto tinha me machucado perdê-lo por completo. Mesmo que eu não tenha nada além de amizade, acho que eu preciso de um amigo no momento.
deu de ombros, parecendo ter mais opiniões para compartilhar, mas se contentando em dizer um simples “tudo bem”. Mas seu olhar poderia ser lido como “cuidado”.
ganhou as cinco partidas que jogaram, então elas pararam de jogar. já estava quase cochilando no sofá quando a porta se abriu e entrou, cercada de risos e, depois, pela imponente presença do conde.
— Ah, deixe-me chamar meus pais!
— Por favor, não os incomode. Eu logo terei que ir, estou acompanhando notícias do meu pai. Ele está doente, infelizmente, provavelmente também da mesma doença que acometeu lady Pency.
assentiu, mas não estava assimilando muitas coisas além do rosto da irmã, que não deixava transmitir muito. Ela estava feliz? Decepcionada?
Percebendo os olhares da irmã, corou, mas então abriu um sorriso fácil e apaixonado, antes de desviar o rosto para encarar o conde Phillips. Ah!
— E nós temos boas notícias também.
— Excelentes notícias — Travis disse, sorrindo de orelha a orelha.
esticou a mão para a irmã. Seu dedo anelar, agora, tinha um lindo anel dourado com uma pedra rosada cercada de brilhantes.
— Nós vamos nos casar!
e não conseguiram conter os berros. Em um borrão, o sr. e a sra. Monroe desceram, com os olhos arregalados.
— O que houve? O que está acontecendo?!
— O Conde Phillips e estão noivos! — anunciou.
A expressão de pânico no rosto dos pais de deu lugar ao deslumbramento, principalmente no rosto da sra. Monroe.
— Ah, quanta felicidade! Teremos que celebrar!
— Receio infelizmente ter que ir — o conde se desculpou novamente. — Poderemos comemorar apropriadamente na feliz data. Mas antes, gostaríamos de discutir um último ponto com vocês.
O casal deu a mão e se olhou, sorrindo.
— Nós estamos muito ansiosos para nos casar, mas temo que não posso fazê-lo sem que meu pai esteja recuperado — Travis informou.
— E sem que eu possa apresentá-lo antes à mamãe e que ela possa estar presente no dia — completou .
— Por isso, provavelmente teremos um noivado um pouco mais longo.
— Parece justo — afirmou.
— Porém, até lá, gostaríamos de permanecer juntos — falou, um pouco esbaforida pela animação.
— Tenho uma prima que mora nos Estados Unidos — o conde disse. — Ela nos informou do aluguel de um adorável chalé próximo a sua residência. Achamos que será um bom lugar para permanecermos até as gripes na Europa se acalmarem, papai melhorar e Summerside ser liberada.
— Visitarei sempre, é claro — logo acrescentou, largando a mão do noivo para segurar a de sua irmã. — Você ficaria triste, ? Se eu fosse embora? Porque, se você me pedir, eu fico.
Era verdade. acreditava que a irmã abriria mão de tudo para que ela pudesse ficar bem. Por isso, só pôde abrir um largo sorriso.
— E impedi-la de ser feliz? Nunca, minha irmã. Eu te amo, , e acho que você deveria ir — falou , e ficou contente ao constatar que estava sendo honesta em suas palavras.
As irmãs se abraçaram e podia jurar que viu limpando uma lágrima.
— Excelente! Então partiremos amanhã.
se virou para o conde, estupefata. Entre concordar com a partida e esta partida ser abrupta, havia uma longa diferença.
— Já?
— Lamento, mas esses planos estão na minha mente há meses! E sinto que não consigo ficar mais um segundo longe de sua irmã.
Eles se olharam e ali viu. Uma troca de olhar de amor verdadeiro. Ela torcia que, um dia, pudesse achar o mesmo sentimento para si.
— Como fui tola. É claro que devem partir — ela disse, sorrindo para o casal, engolindo para si seus temores.
Já no quarto, contou às meninas sobre o pedido: como ele a comparou com a beleza das estrelas, como disse que gostaria de propor o casamento em particular porque era um pouco tímido e gostaria de compartilhar esse momento especial só com ela, e como ele se ajoelhou próximo ao jardim de flores, com a lua no alto, revelando o anel que coube perfeitamente em seu dedo, graças a uma ajuda de lady Pency. As meninas fizeram perguntas e ficaram satisfeitas com todas as respostas. Naquela noite, as irmãs dormiram juntas na mesma cama. sabia que estava tomando a decisão correta, mas isso não diminuía a sua dor. Seu pai estava longe para sempre e ainda não tinha perspectivas de quando encontrariam a mãe. Até mesmo a tia, um ponto que estava se tornando familiar, não estava mais ali. Restava apenas . E Gilbert, embora ele fosse um ponto muito inconstante naquela equação.
Daise sempre teria , e sempre teria . Mas elas não eram mais crianças brincando de boneca. Era hora de cada uma seguir seu caminho e encontrar seu final feliz.
Na manhã seguinte, Phillips estava bem cedo com uma carruagem na frente da casa. A mala, que e ajudaram com tanto carinho a irmã a fechar, agora era levada embora por um criado do conde. Tudo estava acontecendo tão rápido que mal conseguia processar.
A irmã agradeceu imensamente aos Monroe pela estadia e pelo jantar, ao que eles pareceram genuinamente contentes de ajudar. A relação mais próxima com um conde parecia alegrar principalmente a mãe de , que não se conteve em perguntar:
— Conde Phillips, por acaso o senhor teria um irmão mais jovem? Mais ou menos na faixa etária de ?
— Mamãe! — ralhou, as bochechas totalmente coradas.
— Ou um primo?
O conde foi delicado ao responder que seus parentes já estavam comprometidos, mas que estaria atento para um bom par para , que respondeu com uma expressão enojada.
Então, se perdeu em um abraço familiar. Os braços de sua irmã. Os braços da futura condessa.
— Adeus, . Por favor, se cuide e escreva diariamente. Nós ainda nos veremos muito e veremos mamãe e tia Lucila bem. Eu sinto isso em meus ossos.
— Eu te amo — conseguiu murmurar.
— Ah, florzinha — sorriu —, eu te amo mais do que tudo nesse mundo.
A irmã se soltou dela e acenou, embora sua visão estivesse um pouco embaçada. Foi quando um lenço azul foi estendido em sua frente que entendeu o que se passava.
— Não, obrigada — ela disse a Travis, que estendia o lenço. — Eu… eu não choro.
— Certamente que não — ele respondeu, sério.
Ela o olhou e abriu um mínimo sorriso.
— Cuide bem dela, por favor?
— Mas é claro. Eu lhe darei o mundo, se possível. E lhe darei todo o amor que eu puder lhe dar — ele respondeu, como se fosse absurdo desejar menos que isso.
sorriu. Era bom que sua irmã estivesse em boas mãos.
Ela abraçou o cunhado, que pareceu surpreso com o contato, mas logo a abraçou de volta. Afinal, eles logo seriam família.
— Espero que seu pai se recupere logo.
— Desejo o mesmo para sua tia.
Eles se afastaram e ele fez um cumprimento a todos, antes de seguir para dentro da carruagem.
A porta do veículo mal se fechou quando uma ideia repentina se passou na cabeça da jovem .
— Esperem!
A cabeça de apareceu na janela, confusa.
— O que foi?
— Conde Phillips! Conde Phillips! — recuperou o fôlego da rápida corrida até a carruagem. — Quais os sintomas da doença do seu pai?
— O quê?
— Quais os sintomas da doença dele?
Ele parecia achá-la louca. Tudo bem, ela também se acharia no lugar dele.
— Ele está tendo o de sempre: febre, suor, falta de ar, tosse, às vezes com sangue, náuseas... O mais preocupante é que recentemente teve uma pequena parada cardíaca.
— Entendi. Sinto muito. Obrigada. Muito obrigada — ela praticamente vomitou as palavras.
voltou correndo à casa enquanto a carruagem se afastava. Os Monroe a encaravam, confusos, mas ninguém ousou perguntar.
Exceto .
— O que foi aquilo?
— Preciso de um papel. Por favor, , um papel e tinta, antes que eu me esqueça.
A amiga correu para o quarto para pegar o material. Foram poucos segundos, mas pareceram longuíssimos minutos. Quando retornou, mal a olhou antes de se colocar a escrever a lista de sintomas.
Quando terminou, encarou o papel por dez segundos, relendo rapidamente a lista. Aquilo não significava nada.
Ainda.
, me desculpe a confusão, mas poderia me pedir uma carruagem? Preciso ir ao centro.
Seria mais correto dizer que, quando o transporte chegou, se lançou lá dentro, tanta pressa tinha. A carruagem parecia estar cruzando o continente inteiro, ou ao menos era o que sua ansiedade fazia parecer.
Quando finalmente chegou ao centro de Avonlea, agradeceu ao cocheiro e correu rapidamente para o consultório de Gilbert. Várias pessoas a encaravam no caminho, mas ela nem mesmo processou que era a primeira vez em muito tempo que saía em público naquela cidade.
Alcançou o local, enfim, suada e exausta da corrida (estava percebendo naquele dia quão pouco atlética ela era), e bateu na porta. Então bateu novamente. E mais uma vez.
Já estava prestes a bater de novo quando uma porta se abriu.
Mas era a porta do comércio ao lado.
, como é bom vê-la!
se virou e encontrou o sorriso gentil de Jeannie Pippett, que acabava de abrir a porta de sua loja.
— Senhora Pippett! Que bom vê-la! — Mas, sem conseguir se conter, perguntou: — Gilbert já chegou?
— Receio que hoje seja quinta, minha querida. E às quintas ele fecha o consultório para ir a Charlottetown ajudar o doutor Raynes.
murchou. Ele passaria o dia todo fora em outra cidade. E ele já havia lhe contado isso uma vez, mas na euforia e no desespero, ela havia se esquecido da informação.
Jeannie avaliou o rosto cansado da menina.
— Por que não entra e me conta o que se passou nesse mês em que não te vi?
Sem muitas saídas, se viu entrando na loja da doce velhinha.
Lá dentro, passaram pela assistente de Jeannie, que costurava um lindo vestido vermelho, uma cor ousada e linda que raramente se arriscava a usar, ficando nos tons mais pálidos e inocentes.
— Que bela peça, senhora Pippett!
— Obrigada, querida. Pode experimentar mais tarde, se desejar.
— Oh, não. Infelizmente, hoje não trouxe dinheiro. E acredito que ficarei um tempo assim.
A mais velha as conduziu para o andar de cima, onde um pequeno apartamento se instalava: a casa de Jeannie. No centro, uma mesa com pedaços de pães e bolos se dispunha. O estômago da jovem roncou. Não teve muita fome com a despedida e depois, na pressa, se esquecera de se alimentar.
Jeannie deve ter percebido que a menina encarava a comida com desejo, pois logo se sentou.
— Por favor, me faça companhia no café da manhã.
não precisou de outro comando para atacar o delicioso bolo com framboesas.
Quando parou de engolir a comida como uma desesperada, olhou para Jeannie, que sorria com delicadeza.
— Me perdoe. Esqueci de comer ao sair de casa hoje.
— Não se preocupe. Sem o menino Gilbert para dividir o café comigo, o pão ficaria duro, o bolo esfarelaria, e ninguém gosta de café velho. — deu uma risadinha. — Mas então. Me conte o que se passou.
A jovem engoliu em seco. Por onde começar? Ou melhor, o que contar?
— Meu pai faleceu e eu precisei me afastar — ela começou.
— Meus pêsames, fiquei sabendo da notícia. — Jeannie a analisou por um tempo, parecendo incerta. — Porém, não quero soar indelicada ao dizer que isso foi bem depois de seu sumiço. Sem contar que sua irmã apareceu, mesmo em luto, mas você não.
bufou, frustrada com as percepções certeiras daquela senhorinha.
— Tudo bem, eu estava de castigo — disse, fazendo um bico.
Jeannie soltou uma gargalhada honesta ao olhar para a garota. Daise teve que esperar quase um minuto inteiro antes que ela retornasse à conversa.
— De castigo? Por bom Deus, o que você aprontou para irritar, suponho, lady Pency?
— Precisava muito? Ela já estava por um fio comigo — se desviou.
— De fato. — Jeannie pareceu acatar a resposta como boa o suficiente.
— Mas, agora que ela está doente, meu castigo está suspenso. Ainda mais que eu e tivemos que nos retirar da casa com medo de a doença ser contagiosa.
— Pobres meninas! — a senhora Pippett exclamou, parecendo verdadeiramente comovida pela situação. — E onde estão abrigadas? Sabem que minha casa estará sempre aberta para vocês.
— Obrigada — agradeceu, surpresa com a gentileza da senhora. — Estamos na casa de uma amiga minha, Monroe. Bom, estava até essa manhã, pois agora está noiva do Conde Phillips e os dois partiram para os Estados Unidos.
— Bom Deus, que notícia excelente! — Jeannie voltou a sorrir, radiante. — No meio da tempestade, um lindo arco íris!
— De fato.
— Deseje minhas mais sinceras congratulações a ela.
— Com toda certeza. — sorriu com a felicidade da mulher. Quando pensou que só poderia contar com e Gilbert agora, havia se esquecido de uma bondosa amiga. — Mas chega de falar de mim. Como a senhora está?
Jeannie a atualizou sobre as últimas vendas da loja, suas dores que estavam melhorando consideravelmente com o descanso, as fofocas de sua funcionária com o garçom da taverna próxima e alguns boatos locais.
— Alguns acharam que você estivesse morta! Eu não pensei tal coisa, uma coisa horrenda de se pensar.
— Eu não os culpo, acho até divertido — riu. — Agora, podem pensar que sou um fantasma bem corpóreo.
— E ninguém ficou tão preocupado quanto Gilbert, pobrezinho — Jeannie continuou em suas divagações.
O nome despertou um nervosismo nela. Ele estivera tão preocupado assim? Talvez só com medo de ter de se casar com ela. Ou se sentindo culpado. Mas não se importava tanto, certo?
— Sei o que está pensando — Jeannie falou, deixando a garota subitamente tensa e alerta. — Você com certeza já ouviu os boatos sobre Anne, não é mesmo?
suspirou, aliviada. Ok, ela provavelmente não sabia sobre o beijo.
— Sim, eu ouvi.
— Não se prenda a essas fofocas. Não posso mentir, Gilbert ficou arrasado com essa história de casamento. Anne era uma coisa quando criança. Uma peste, um furacão, uma brisa fresca no meio de tanta hipocrisia. — Jeannie sorriu, perdida nas memórias. — Uma garota esperta, sem dúvidas. E cresceu uma mulher bonita.
O estômago de não estava ficando muito amigável com tantos elogios.
— Mas acontece que Gilbert não a amava.
piscou, de repente voltando à realidade.
— Me desculpe, mas acho que a senhora se confundiu. Está falando ainda de Anne Shilbert?
— Sim, eu estou — Jeannie disse, parecendo achar graça. — Não estou dizendo que ele nunca a amou. Eu diria que ele a amou, no início, quando ele ainda não sabia o que era amar. E persistiu nisso porque, depois de perder a família, ele conhecia poucos amores e precisava se firmar no que tinha. Porém, não era amor. Ela não o amava de volta, ele não era o que ela precisava. Ele não sabia, mas ela não era o que ele precisava também. Houve muito carinho, amizade e um amor infantil, mas, depois de crescido, Gilbert se apegou tanto ao que conhecia que nem percebeu que, a garota que ele tanto dizia amar, havia se tornado uma mulher muito diferente dele. Mas ele continuava preso naquela menina, naquele único amor que ele conheceu.
absorvia tudo, incapaz de proferir uma palavra.
— Até que você apareceu.
— Oi? — Ela se assustou.
— Isso mesmo, querida. — Jeannie abriu um sorriso. — Ele andava tão tristonho e rabugento. Mas você sofreu um acidente, e ele te ajudou… Ah, ele sorriu como não sorria em tantos meses. Eu o vi renascer na minha frente, tudo porque havia conhecido uma garota.
— Gilbert não gosta de mim dessa forma — se viu na obrigação de corrigir.
Jeannie colocou o indicador na lateral do queixo, pensativa.
— Será? Talvez sim, talvez não. Talvez ele não tenha percebido ainda. Mas eu te direi o que eu vejo. — A senhora Pippett sorriu, calorosa. — Eu vejo algo real e intenso que pode se transformar no sentimento mais lindo do mundo. Isso, se vocês permitirem.
A frase ficou na cabeça de o dia todo. E também à noite. E na sexta-feira, enquanto ela batia mais uma vez na porta do consultório dele.
Dessa vez, ele atendeu.
! — Ele parecia surpreso e, ela ousaria arriscar, talvez um pouco encantado.
Ela estava menos suada e esbaforida que no dia anterior, o que era um bom sinal. Ele a conduziu para dentro do consultório e ela percebeu que era a primeira vez que pisava ali dentro desde o acidente. Graças aos céus ela não corava, porque as memórias invadiram sua mente sem permissão nenhuma, misturadas às palavras da senhora Pippett.
— Isso não está ajudando em nada… — murmurou.
— O que disse?
— Descobri algo que pode ser importante — ela falou, rapidamente.
Ele sorriu para ela e se sentou em sua frente, parecendo inabalável. Por que aquele sorriso estava fazendo seu coração acelerar? Ela já havia se decidido que mais o odiava do que gostava dele. Eram amigos, e olhe lá.
— Primeiro, deu tudo certo com e o conde. Obrigada mais uma vez pela ajuda.
— Não precisa me agradecer, me sinto bem em ajudá-la.
— Que bom, porque estou vindo lhe cobrar um favor.
Ele franziu as sobrancelhas, mas logo estava sorrindo de leve de novo.
— Mas é claro. Qual deles?
— Qual deles? Eu… Olhe — ela espalmou as mãos nas coxas por cima do vestido —, você conseguiu alguma informação com o médico de lady Pency?
A expressão dele se tornou sombria pela primeira vez.
— Infelizmente, não. O doutor Lucian não confiou em um garoto para falar de sua rica paciente em estado grave.
O tom de voz de Gilbert era claramente frustrado, e se apiedou dele imediatamente. Sabia o quanto estava sendo difícil para ele conseguir respeito em sua profissão.
— Bom, talvez eu tenha algo que vá ajudar. O pai do conde esteve com minha tia antes de ambos adoecerem. O que quer que ela tenha, devem ser os mesmos sintomas, ou ao menos parecidos, se realmente tiverem se contaminado juntos.
Ela estendeu a lista para ele, timidamente.
— Não tenho sua formação, claro, então não sei se isso foi suficiente, só pensei que talvez pudesse ajudar…
Gilbert sorriu abertamente para .
— Isso foi genial, vai nos ajudar tanto! Meu amigo Raynes atendeu sua tia no primeiro dia e compartilhou comigo as suspeitas de tuberculose, e consigo enxergar os sintomas se encaixando nesse diagnóstico.
— Sim, mas suspeito que não seja isso. Não veríamos nenhuma variação na situação dela depois de ser tratada em sua doença? — disse, inquieta.
— É uma hipótese a ser considerada. Pode ser uma situação em que já está tão avançada que os remédios não adiantam, mas ela não poderia estar doente por nem mesmo uma semana. Deveria de fato ter algum efeito.
As palavras eram exatamente o que esperou ouvir desde que conseguiu coletar as informações daquela lista. As palavras dele de que podiam estar errados e que, se eles descobrissem a verdade, ela poderia ser curada.
— Eu quero ajudar.
Blythe ergueu uma sobrancelha para ela.
— Ajudar em quê, exatamente?
— A descobrir a verdade — se impôs. — Descobrir a verdadeira doença para você tratá-la.
— Não sabemos se o diagnóstico está errado…
— Ele está.
— … e nem se eu poderei ajudá-la se estiver…
— Você poderá.
— … mas acredito que não custa tentar.
A jovem abriu um largo sorriso e o garoto sentiu seu rosto o espelhando.
— Então, por onde começamos?
Gilbert se levantou em um salto, apontando para a alta estante abarrotada às suas costas.
— Pesquisa.
Os dois se enterraram nos livros durante toda a manhã e a tarde, mal parando para lanchar os pedaços de bolo de maçã deixados pela senhora Pippett. Dedicaram o trabalho a anotar as doenças que batiam com a maior parte da lista, dizendo com quais sintomas batia e quais sintomas extras descritos não constavam no que foi relatado por Travis.
O problema, que Gilbert já devia saber, mas logo descobriu, é que os sintomas correspondiam a várias doenças por contaminação no ar.
A jovem já estava no terceiro livro (e, só naquele, já havia marcado duas doenças), quando encontrou um trecho curioso.
“Essa doença, provavelmente transmitida pela alimentação, embora os cientistas desconheçam seu agente, é extremamente perigosa para gestantes, que podem passá-la para seus bebês pelo cordão umbilical”.
Aquela palavra era curiosa. Ela olhou para Gilbert. Ele estava tão concentrado em sua leitura que uma ruga aparecia na sua testa. Ele estava tão sério e isso, de alguma forma, o tornava muito atraente.
Ele ergueu os olhos, encontrando o olhar dela, e então lhe mostrando um belo sorriso.
— Você fica com uma ruguinha quando se concentra. — As palavras simplesmente escapuliram sem nenhum freio de sua boca, que ela logo correu para tapar, derrubando o livro no caminho. — Ah, me desculpa! — Ela se abaixou para pegar o exemplar.
— Não se preocupe. É só um livro raro que foi vendido em apenas dez exemplares na Austrália.
Os olhos dela se arregalaram.
— Sério mesmo?
— Não.
Ele riu imensamente, enquanto ela pegava um livro (pequeno e surrado, claro), e lançava na direção dele. Isso só aumentou sua risada.
— Você não é muito amiga dos livros, não é mesmo?
— Cretino!
Gilbert riu ainda mais e se lembrou da descrição de Jeannie de como ele estava fechado antes de conhecê-la. De fato, não se parecia com esse Gilbert. Com o seu Gilbert.
Demorou um tempo para Blythe se recompor, então se virar para ela.
— Você desejava apenas comentar minha anomalia facial ou tem alguma dúvida?
Ela se conteve para não dizer que não havia nada de errado com o rosto dele (na verdade, havia muito de certo), e decidiu falar o que tinha lhe causado a inquietação em primeiro lugar.
— O que é… cordão umbilical? — ela leu.
— Ah. — Ele se ajeitou no sofá. Eles estavam sentados no mesmo móvel, separados por apenas uma pilha de livros. Perto demais, longe demais. — O cordão umbilical é como um cano. Quando o bebê está dentro da barriga da mãe, ele precisa se alimentar, então esse “cano” leva do sangue da mãe até ele todos os nutrientes que ele precisa.
— O sangue dela? Que nojo! — Ela fez uma careta.
— O leite também é feito de sangue.
— O leite materno é feito de sangue?!
— O da vaca também. E das cabras. E de qualquer mamífero.
sentia que podia vomitar e ele parecia achar muita graça da situação. Então, ela encarou o livro mais uma vez. Deveria perguntar?
— O que ainda te atormenta? — ele a questionou antes que ela pudesse tomar a decisão. Talvez fosse um sinal.
— Gilbert?
— Sim?
— Como as mulheres ficam grávidas?
O rosto dele ficou pálido. E depois, ficou vermelho. Então, ele pareceu recuperar um pouco a cor e o maxilar ficou marcado, do jeito que ficava sempre que ele o travava.
Ele pareceu ficar imóvel por décadas, mas foram poucos segundos antes que ele se levantasse e pegasse um outro livro da estante, que estendeu para ela.
— Capítulo 4.
Ela o olhou, encantada.
— Você sabe o que encontrar em cada capítulo de cada livro daqui?
— Nem todos, honestamente. — O rosto dele voltou a ficar vermelho. — Mas os garotos da faculdade gostavam particularmente das ilustrações.
Sem entender muito bem ao que ele se referia, abriu o livro no capítulo 4. Então, vieram as ilustrações. E as explicações. De verdade, ela não saberia dizer o que era mais escandaloso.
— Meu… Meu bom Deus! Cristo! Ave Maria!
Ele ficou quieto, analisando as reações dela, em parte ainda petrificado, por outro lado parecendo achar levemente cômico.
— Isso… como vai encaixar… como vai…? Isso deve doer para burro.
— Muitas pessoas relatam que é doloroso. Outras relatam bem o oposto, na verdade. Byron, por exemplo.
— E Byron por acaso tinha… isso… entrando… nele? — quase latiu a última palavra.
— De fato, você tem um ponto. Mas as… partes femininas… são feitas para também a saída dos bebês, então não deve ser pior do que isso.
se lembrou dos gritos de sua vizinha de Summerside na noite em que teve o filho.
— Não que isso seja muito promissor — ela sussurrou.
Mas então reviu as imagens. Aquilo era tão escandaloso, estava surpresa que a Igreja não tinha queimado todos os exemplares. Aqueles corpos sem roupas… e tão próximos… não era possível que isso acontecesse.
— Se quiser, pode levar para você — Gilbert comentou.
Ela soltou o livro quase imediatamente, como se estivesse pegando fogo. Blythe gargalhou novamente.
— Me desculpa, mas você perguntou e não parecia justo que não soubesse a verdade.
— Uma verdade dolorosa. Nunca vou ter filhos, isso é impossível.
As bochechas dele ficaram levemente rosadas. Ele parecia querer dizer algo, mas não sabia como. Então, apenas pegou outro livro.
— Pausa literária. Quer ver fotografias especiais de filhotes de leão? Esse livro foi um presente de uma antiga amiga e foi caríssimo, honestamente. Poucas pessoas gastam seu filtro de foto com pequenos gatos ferozes.
Ele derrubou a pilha de livros entre eles e se aproximou, erguendo o livro no colo dela. sentiu um calor estranho ao pensar na proximidade deles logo depois de ver todas aquelas fotos.
Por Deus, pelo menos estavam vestidos e assim permaneceriam por todo sempre.
— Esse aqui é o pai orgulhoso. — Gilbert apontou para a foto de um leão.
Blythe estava realmente empenhado em entretê-la e fazê-la se sentir confortável. Eles riram e fizeram caras adoráveis para os animais que, por sua vez, eram adoráveis. Mas cada vez que Gilbert passava uma página e esbarrava na mão de , ambos pareciam ficar alertas. Ou quando a mão segurando o livro esbarrava de leve na coxa dela. Daise estava em um incêndio interno, só isso poderia explicar a inquietude e esquisitice de seu corpo com toda aquela proximidade.
— Aqui, eles estão comendo uma pequena zebra.
— Ah, não, Gilbert, isso não é fofo, é horrendo! Um pobre animal acabou de morrer.
— É a natureza.
Ele sorriu e se virou para ela. Só não esperava que ela fosse se virar para ele no mesmo momento.
Ambos prenderam a respiração e o mundo congelou naquele momento. Lembranças de um beijo antigo, tão desejado por ela, passaram por sua memória. Tentou por tanto tempo se condenar pelo feito, associou tantas coisas ruins à situação, que conseguiu se esquecer de um detalhe muito importante: tinha sido maravilhoso. Como a adrenalina de se apresentar ao vivo, com o desejo de mais, mais, mais…
E, olhando Gilbert tão próximo novamente, seu cérebro parecia gritar mais, mais, MAIS!
Porém, antes que pudesse fechar os olhos, Gilbert se afastou dela em um pulo, fechando o livro com um baque alto. Ela voltou à realidade em um instante.
Obrigada, Pai amado, por me fazer uma criatura que não sabe corar, ela pensou em uma oração silenciosa.
, está ficando tarde, será perigoso para você retornar se continuar aqui por mais tempo. Sei que não encontramos nada ainda, mas lerei atentamente as suas anotações e as minhas, e quem sabe deixamos algo passar no cansaço?
— Quem sabe — ela respondeu por responder.
— Se depois do fim de semana eu não te enviar uma resposta, você é bem-vinda para voltar aqui para continuarmos a pesquisa.
Isso a fez sorrir genuinamente. Porém, ainda era um pouco dolorido pensar que ele estava tão composto depois de ter estado tão próximo de beijá-la. Ela queria que ele a beijasse. Ou que parecesse sôfrego por não tê-la beijado. Mas, droga! Ele fez o certo. Aquilo só os colocaria em mais problemas.
— Obrigada por tudo, Gilbert. Atrapalhei sua rotina e provavelmente embaralhei seu cérebro com muita leitura à toa.
— É sempre bom rever os conhecimentos da faculdade — ele brincou, a tranquilizando.
Ela se levantou do sofá, olhando a confusão de livros ao seu redor.
— Certeza que não quer ajuda?
— Por favor, vá. Ficarei inquieto caso escureça e já não esteja em casa.
Ela sabia que ele estava sendo gentil e preocupado, mas não podia deixar de se sentir, mais uma vez, rejeitada.
— Obrigada por tudo.
Os dois caminharam até a porta, que ele abriu para ela. Ela passou e se virou para ele, oferecendo um último sorriso, antes de chamar o cocheiro de .
.
Ela parou no meio da caminhada, se virando para ele.
— O que foi?
Ele sorriu, se apoiando no batente da porta com os braços cruzados.
— Você fica inquieta quando lê. E faz muitas, muitas caretas mesmo.
Ela bufou, arrancando uma risada dele.
— Eu nunca disse que era algo ruim! — Ela o ouviu completar, antes de fechar a porta da carruagem, segurando um sorriso no rosto.


Continua...



Nota da autora: Parece até primeiro de abril, mas juro que não é! Finalmente veio aí o novo capítulo de Depois de Anne!
Devo a vocês as mesmas desculpas de sempre. Mas, como prometido, eu vou terminar essa história. Por vocês e por mim.
E aí, o que acharam desse novo capítulo? Um noivado, a conversa com Jeannie, as suspeitas das doenças, as interações com o Gilbert… Contem tudo nos comentários!
Um beijo e até a próxima <3


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