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Última atualização: 14/08/2023

Capítulo 1 - Fanfic

Eu estava viciada.
Tudo que eu conseguia pensar era , e mais . Eu passava o dia todo escutando a voz dele, os dedos dele deslizando pelas cordas da guitarra, do baixo, do violão... Esse homem era um verdadeiro gênio musical, ele fazia tudo sozinho. E esse talento dele me deixava em êxtase, eu queria mostrar para o mundo quem era , quem era .
Acabei engolindo aquele nó que incomodava a minha garganta toda vez que eu me apaixonava por mais uma pessoa inssível. Jurei para mim mesma que dessa vez era diferente, que não existia ninguém como , mas, toda vez, juro o mesmo com todas as paixonites que já passaram, então não valia a pena contar para ninguém de novo. Afinal, estar apaixonada de novo não era nenhuma surpresa.
É no mínimo estranho quando você ama uma pessoa famosa. Todo mundo te olha com pena e esses olhares só vão piorando quando isso acontece pelo menos umas 4 vezes por ano, eles evoluem até mesmo para escárnio. Não dava para esperar menos, não é? Eu tenho 25 anos, já passou da hora de crescer e parar de me apaixonar tanto assim, talvez até me apaixonar por uma pessoa de verdade como as pessoas da minha idade. Infelizmente, não consigo. Primeiro ponto: sou teimosa e vou até o fim pelo que gosto. Segundo: eu tenho um pequeno problema que me faz viver assim desde os meus dez anos, quando descobri que o mocinho da novela era mais interessante que os meus coleguinhas da escola. Desde aquele ano, eu venho me apaixonando por tantas pessoas que não consigo mais contar. Pelo o que me lembro, já passei pela fase dos personagens dos filmes da Disney, pelos personagens de novelas nacionais e até mesmo mexicanas, depois vieram os livros e descobri que tinha como me apaixonar por alguém que nunca vai existir.
Depois disso, foi só ladeira abaixo. Descobri as fanfics como uma adolescente normal da minha idade: McFly. Apaixonei-me profundamente por McFly. Nesse meio tempo, me apeguei à música, daí conheci algumas bandas, passei para a One Direction, Never Shout Never, algumas fanfics com bandas famosas de glam metal nos anos 80, me afundei tanto na minha falta de critério que acabei chegando em uma fanfic de black metal.
O que é black metal? É um gênero musical que geralmente amedronta muitas pessoas pelas letras gritadas e histórico macabro. É, quando digo que me afundei nos últimos quase 10 anos, não estou mentindo, praticamente entrei na deep web do mundo das fanfics. Foi em uma dessas com ícones do black metal que o conheci. Um dos precursores do gênero, o pai do black e posteriormente do viking metal. .
Posso dizer que fanfic foi a melhor descoberta da minha vida — depois do , é claro. Fanfic é uma maneira de aliviar todo esse amor doloroso que sinto quando me apaixono, lendo uma fanfic me sinto finalmente livre para superar a fase amor doentio e passar para a fase amor normal. Nesses anos, descobri que é uma necessidade básica, se não fosse pelas fanfics, não sei se conseguiria respirar normalmente — tudo por causa dos meus episódios de paixonite aguda.
Era mais um dia desses em que tinha a impressão de não conseguir respirar direito. Levantei-me da cama após um sonho em que meu subconsciente me alertava da realidade que eu mais evitava: estava morto. Não era de ontem, do mês passado ou sequer do ano anterior. Estávamos em 2019, o coração dele parou em 2004.
Hoje, dois meses antes do aniversário de morte dele, eu sonho que era apenas uma criança no meio de um monte de adultos de roupas pretas, tentando passar para ver de onde vinha aquele som, sabia que era ele, só nunca consegui alcançá-lo, porque ele não existia mais. Interpretei como uma mensagem clara do meu subconsciente me alertando que morreu quando eu apenas tinha 10 anos.
Infelizmente, a vida não respeita seus dias de pesadelos, então eu fiz todo o meu ritual antes de ir para a faculdade com mais falta de vontade do que o normal. Às dez horas, dentro do ônibus vazio, eu o colocava para cantar em meus ouvidos mais uma vez e me absorvia em pensamentos.
não era como todos acreditavam que seria um ídolo do black metal. Não, essa fase dele já tinha passado e ele praticamente a abominou assim que os anos 80 passaram. Desde que ele tinha mudado todo o gênero da banda para a temática viking — devido à sua nacionalidade escandinava —, ele mudou totalmente sua essência. Antes dos anos 90, ele tinha cabelo descuidado e pintado, depois manteve na cor natural: . Usava muita roupa de couro, depois optou mais por peças em jeans e tecido. Até mesmo suas letras evoluíram de gritos desconexos para letras entendíveis. Eu o amo em todas as suas versões, mas é claro que o prefiro desde que ele passou por essa mudança. Ele se tornou mais humano, um sueco comum dos anos 90, se afastando do ideal de ídolo do black metal. Não havia como não se apaixonar.
A pobre apaixonada se chama . Sim, eu. Brasileira, natural de São Paulo capital, mas atualmente moro na Inglaterra há um pouco mais de um ano. Sou bolsista no curso de biologia pela Universidade de Birmingham. Tenho 25 anos e me considero uma garota simplória. Porém, as pessoas não me consideram tão simplória assim por ser filha de pais famosos no Brasil. Meus pais são atores da maior emissora de TV brasileira, vivem pulando de São Paulo para o Rio e outras cidades para gravações. Foi assim durante minha vida inteira, então, quando surgiu a oportunidade para me afastar do Brasil, eu agarrei com unhas e dentes.
Como estudante de biologia, eu faço trabalho voluntário toda terça à tarde no santuário de animais silvestres que também era conhecido por zoológico pela população local. Hoje, o que me deixava mais esperançosa é que, finalmente, eu poderia cuidar do novo elefante-da-savana que tinha chegado no final de semana. O voluntário intercambista — que era meu colega de trabalho e rival — fizera de tudo para ser o primeiro a fazer o relatório sobre o elefante só porque estava curioso para lidar com um elefante dessa idade, visto que os atuais elefantes que moravam por lá tinham, no máximo, 23 anos. Ser quieta tinha suas vantagens, afinal.
Segui para a aula e assim que sentei, nem abri o Instagram que nem todos os dias. Tinha chegado ao ponto de explodir, isso significava que estava na hora de começar a minha procura por fanfics. Eu tinha uma lista grandes de sites onde ler fanfics com famosos não tão conhecidos, por isso abri o primeiro e quando apareceu “nenhum resultado encontrado” não me decepcionei tanto. Seria mesmo um longo dia.

***


Na hora do almoço, eu estava no décimo quarto link e até agora, obviamente, sem sucesso.
Hoje eu tinha companhia dos meus únicos amigos, Shandi e Raj. Eles são trigêmeos, mas Gorty tinha escolhido trabalhar em uma oficina ao invés de entrar na faculdade como os irmãos, então meus únicos contatos com ele foram nas vezes que acompanhei Shandi e Raj até a casa de seus pais.
Shandi era a cópia perfeita da mãe, seu cabelo cacheado ruivo era extremante volumoso e bem cuidado, ela usava óculos redondo dourado, tinha muitas sardas pelo corpo todo e usava aparelho nos dentes. Já Raj era cinco centímetros mais baixo que a irmã, o pai dizia que ele parecia com o avô paterno que era descendente direto de tailandeses, seu cabelo era escuro e preto, seus olhos eram pequenos, as pessoas perguntavam se ele era chinês e algumas vezes ele respondia “sim”, porque não gostava de ter que explicar que nem todo asiático era automaticamente chinês. Já Gorty era idêntico a Shandi.
Apesar de ter contato com os dois quase todos os dias, sou mais próxima de Shandi. Nossos horários se batem mais e ela tem um desafio consigo mesma que é despertar meu lado amoroso. Ela não é a primeira a tentar, no entanto. Até semestre passado, eu me forçava a me relacionar sem compromisso com garotos, saía na balada, ia ao cinema, qualquer coisa que acabasse comigo em uma cama do dormitório masculino. Até que decidi largar essa vida por não me sentir bem. Desde então, Shandi se aproximou mais de mim e acha que preciso ser mais pé no chão. Largar minha fé de viver “uma história de amor louca” com algum ídolo meu para adotar minha fé no amor real. Em minha defesa, eu não quero viver o que ela chama de “uma história de amor louca”, só quero apenas ler uma fanfic que posso me imaginar no lugar da personagem principal e acalmar meu coração. Viver dava muito trabalho.
— Eu vi que você não prestou atenção na aula de hoje — Shandi disse enquanto me via esquentando minha comida no micro-ondas comunitário. Eu ainda mexia no meu celular, procurando furiosamente por sites o nome de . — Continua apaixonada pelo Noah Centineo? — disse em tom de repressão.
Eu levantei os olhos do celular e respondi afirmativamente com a cabeça. Como eu disse antes, não valia a pena contar para alguém. Duas semanas atrás, eu estava realmente apaixonada pelo Noah Centineo. Até que passou rápido, porque eu tive muito material, Noah era o ator do momento e isso foi mais fácil de saciar minha sede.
— Semana que vem tem prova dessa matéria, se você quiser, posso te ajudar a estudar amanhã — ela disse, tirando minha vasilha de dentro do micro-ondas e colocando a dela.
Sorri.
— Você é a melhor — respondi, dando um abraço de lado nela. Eu realmente não podia tirar nota baixa nessa prova, na última tinha sido na média e eu precisava manter notas altas porque era bolsista.
Esse último ano na Universidade foi totalmente diferente do que eu estava acostumada. Tinha estudado desde os 18 anos para conseguir uma bolsa para estudar ao redor do mundo e finalmente aconteceu nos meus 24 anos. Biologia foi minha segunda escolha, quando eu percebi que não conseguiria bolsa para estudar moda do século 20 em um curso de 18 meses na Itália. Shandi sabia das dificuldades em ser bolsista, por isso prestava atenção quando via que eu estava desperta só para me ensinar depois. É, ela era incrível. Shandi foi meu primeiro exemplo verdadeiro de amiga na vida. As outras amizades que tive foram superficiais e não duraram.
— Demoraram tanto que vou ter que ir, tenho uma aula agora — Raj disse quando nos sentamos à mesa. Ele bagunçou o cabelo da irmã e me deu um beijo no rosto. Saiu pelo corredor que conectava o refeitório com o prédio de história. Ao contrário de Shandi, que pegava as mesmas aulas que eu, porque estávamos no mesmo semestre e no mesmo curso, Raj estava no primeiro semestre de história, porque tinha visto que a biologia não era para ele.
— Então, tenho uma surpresa para você — ela disse enquanto colocava macarrão na boca. Levantei as sobrancelhas, esperando que ela desembuchasse. — Eu vi “Para Todos Os Garotos Que Já Amei” ontem. Você estava certa, não tem como não se apaixonar pelo Noah nesse filme, eu até me apaixonaria, se gostasse de homens.
Dei um sorrisinho para disfarçar que eu não estava mais nem aí para o Noah, pelo menos até o próximo filme com ele lançar na Netflix. Ela pareceu não perceber, porque continuou comendo despreocupadamente.
— Eu disse que Noah Centineo era o homem mais bonito atualmente — falei com ênfase na última palavra, me sentindo no dever de acrescentar para não trair o atual homem dos meus sonhos.
— Isso seria verdade se Tom Cruise ainda não estivesse entre nós, por enquanto a fama é dele — ela respondeu, pegando um pouco da mandioca caríssima da minha vasilha. Quis reprimi-la, mas fico com dó dos ingleses que não tiveram o prazer de comer mandioca por uma vida.
— Saudades da minha fase Tom Cruise, as fanfics de daddy e little girl eram bem legais — comentei, recebendo a cara de nojo dela. Shandi gostava de fanfics sobre Crepúsculo, apesar de estarmos em 2019 e não haver mais tantas assim. — Vai me dizer que nunca leu uma fanfic que o Edward era o daddy?
, já falaram que você é estranha hoje? — ela riu.
— Não, esse prazer é exclusivamente seu hoje — também ri, bebericando minha coca-cola.
Comemos em silêncio o resto de nossas refeições, Shandi assistia a vídeos de exploradores em casas abandonadas — o que era nossa atividade favorita para fazer juntas na hora do almoço, principalmente em um dia nublado como aquele. No entanto, recusei seu convite porque estava determinada a ter algum êxito com a minha pesquisa o mais rápido possível.
Site número 15, 16, 17, 18, 19... todos iam sendo riscados da minha lista.

***


Atravessei os portões do zoológico e fui direto para o vestiário colocar meu uniforme de voluntária. Deveria estar mais ansiosa para conhecer o novo morador, mas meus pensamentos agora se alternavam em preocupação com a nota na prova da semana que vem e em não conseguir estudar, porque estava ansiosa demais. Guardei minhas coisas no armário e fiquei um pouco mais animada em tentar me distrair com algo que agregasse no meu futuro. Então, fui até o isolamento do elefante cantarolando, a portinha indicava que o nome dele era Solveig. Lembrei das aulas de intensivo de sueco que estava fazendo duas vezes na semana nas últimas duas semanas, no livro tinha um senhor com esse nome e dizia que Solveig significava “caminho do sol”. O rosto cinza que apareceu de dentro do abrigo mostrava como combinava perfeitamente com esse nome.
— Você e eu vamos ser grandes amigos, porque eu adoro nomes suecos. — murmurei para ele, pegando todas as pastas que foram deixadas no chão com as informações. — Na verdade, eu só conheço um sueco, mas ele é a minha pessoa favorita. O que fazem nomes suecos serem os meus favoritos.
Ele chegou perto do portão que nos separava e me lançou um olhar curioso, como se estivesse entendendo o que eu estava dizendo e realmente interessado. Esse é um dos pontos que os animais sempre ganham. Eles são ótimos ouvintes e sempre parecem te achar o ser mais interessante do universo enquanto você está simplesmente tagarelando aleatoriedades. Eu sempre gostava de considerar aquilo como um convite para continuar verbalizando meus devaneios.
— Vamos ver o que temos aqui — analisei a ficha básica, vi que ele nasceu em uma unidade de conservação de espécies na Índia, que estavam trocando seu ambiente por conta de estresse e que pretendiam reproduzi-lo com uma fêmea local, para depois castrá-lo. A data de nascimento dele era outubro de 1984, ri comigo mesma e ele me encarava com aqueles olhinhos curiosos. — Outubro de 1984 foi quando saiu o primeiro álbum da banda do , seria engraçado se eu não tivesse tentando esquecer dele para o bem da minha ansiedade e vida acadêmica.
Solveig me deu as costas, me deixando com a minha história trágica e indo atrás de comida. Desejei ser ele naquele momento, seria bom esquecer tudo e só ir atrás de comida.
Comecei a trabalhar no relatório, resumindo todas as informações sobre o recém-chegado para só depois analisar o que já tinha no dossiê. Duas horas passaram sem que eu nem percebesse e quando virei a página vi que tinha acabado aquele documento, as folhas envelhecidas do próximo indicavam que seria uma leitura interessante. Virei a página novamente, iniciando, e percebi que eram relatos de pesquisadores e cuidadores que passaram pela vida de Solveig desde seu nascimento.
As duas primeiras páginas foram normais, mas depois alguns começaram a escrever que, na cultura popular, acreditava-se que quem captasse a atenção de Solveig, olhasse em seus olhos e mentalizasse algo, provavelmente veria seus sonhos realizarem. Havia muita gente contando que as visitas de Solveig sempre foram bastante disputadas, todo mundo queria pedir as mais diversas coisas a ele. Quando as pessoas retornavam um tempo depois com seus desejos realizados, sempre traziam algo em forma de agradecimento e afirmavam que o elefante era mesmo mágico.
Com todos os romances que li, eu não duvidei daquilo por nenhum segundo. Sempre via que as mocinhas duvidavam, faziam e não esperavam nada. Já eu, acreditava piamente em Solveig, até mais do que em mim mesma. Afinal de contas, ele tem a pureza dos animais e, por não ter a maldade humana, acredito que criaturas possam mesmo alcançar o nirvana ou algo assim.
Uma onda de felicidade me preencheu e de repente me senti muito grata por ser a primeira ali a ter contato direto com Solveig — a não ser pelos cuidadores que forneceram as necessidades básicas dele durante esses dias. Eu estava na presença de uma celebridade indiana ou melhor: de um animal associado a uma divindade.
Larguei os papeis e o meu notebook em cima do banco em que estava sentada e resolvi tentar a minha própria sorte também. Eu estava desesperada, afinal de contas. Bati no portão de aço e ele veio ao meu encontro com passos lentos, me analisando a cada passada. Nós não estávamos tão perto assim por causa da segurança do isolamento, mas eu consegui ver que sua atenção era minha.
— Bom, Solveig, as pessoas naqueles papeis dizem que você é mágico. — apontei para onde estava meu notebook. — Acho que nenhum desses cientistas que passaram por você levaram esses relatos de visitantes muito a sério. Porém, saiba que, enquanto pesquisadora e cientista, eu acredito e respeito muito você — sorri para ele, mostrando que poderia confiar em mim e olhei em seus olhos que estavam em mim. — Se não for muito incômodo, eu queria achar uma fanfic com aquele cara sueco que te falei. Eu gosto muito dele, ele já morreu e acho que esse é o único jeito de termos alguma chance — soltei uma risadinha. Eu era patética e aposto que Solveig também achava isso lá no fundo, só mantinha aquele olhar curioso para não me deixar sem graça. — Esse deve ter sido o pedido mais idiota que você já recebeu — comentei, baixando a cabeça, talvez quebrando o rito por não ver aquilo se realizando nos olhos dele. Eu percebi que era bobeira pedir isso quando estava tão atolada com outros problemas e sem dar a mínima, por isso senti vergonha de mim mesma.
Voltei ao relatório até dar 19h e não tive mais coragem de conversar com Solveig, até porque ele foi fazer outras coisas que elefantes normais (e não místicos) fazem. Guardei as pastas no meu armário, já que não tinha terminado o relatório, depois coloquei o notebook de volta em sua case para fazer o caminho longo de casa. Na volta do zoológico, para não pegar um trânsito de horas, eu sempre tinha que enfrentar duas linhas do metrô, um ônibus e a caminhada habitual de 10 minutos da parada até minha casa.
Aproveitei aquele tempo no transporte para jogar o nome de nos sites restantes de fanfic e ouvir o quarto álbum inteiro mais uma vez. Era um alívio ouvir a voz dele depois de um dia inteiro de abstinência, senti realmente que era um anjo cantando no meu ouvido — se anjos gritassem ou falassem que hoje é um belo dia para morrer, como na música atual que eu estava escutando, é claro. Vamos considerar que tinha seu jeito único de ser um anjo e eu de acreditar em anjos.
Quando cheguei em casa, eu preparei macarrão instantâneo e coloquei ração na vasilha do Lemmy — meu gato de estimação ingrato que achava que minha colega de apartamento era sua mãe. Ele ainda me pediu sachê, rodeando minhas pernas com seu rabo felpudo, mas Anya tinha escrito em um post-it rosa colado na geladeira que já tinha dado para ele. Depois de ver que eu tinha sacado, ele voltou a me ignorar e a se esconder no quarto da Anya.
Aquela era a hora da verdade, faltava só mais um site da lista. Abri meu computador para poder procurar melhor, digitei o site na barra de pesquisa e, quando abriu, coloquei o nome de e minha mão tremeu na hora de apertar enter. Não tive nem tempo para expectativas, cinco segundos depois a página carregou informando que nenhum resultado havia sido encontrado.
Droga.
Coloquei as mãos na cabeça, pronta para surtar. Senti meu rosto ficar vermelho a ponto de entrar em combustão e era um dos primeiros sinais que eu choraria a qualquer momento. Foram longos dez minutos tentando controlar minha respiração para não ter uma crise de ansiedade, meus olhos passearam pelo pequeno apartamento diversas vezes na tentativa de achar uma solução.
Depois de sentir esse surto inicial ir embora, decidi que não ia me contentar com aquilo. Coloquei a panela cheia de macarrão de lado, me ajeitei na cadeira e ajeitei também meu pijama de natal fora de época. que me aguardasse porque hoje mesmo eu estaria lendo uma cena hot com ele.
Sorri ao pensar nisso, mas senti também meus pelos eriçarem de excitação. Achar aquela fanfic era questão de vida ou morte agora.
Joguei no Google “ fanfic”, apareceram várias que mencionavam músicas de sua banda, mas nenhuma com o próprio. Me concentrei em olhar link por link, quando dei por mim já estava na página 23 de resultados — a última. Os links dessa página eram transcrições de entrevistas que eu tinha visto antes, mas o último era uma página diferente.
A página tinha um fundo preto e letras em vermelho. As letras em vermelho falavam sobre um mito de pessoas que já tinham morrido. Mais para baixo era possível ler que pessoas de décadas e séculos diferentes poderiam ter seu destino atrelados com essas pessoas, as almas gêmeas. Esse erro do destino nunca as permitia serem felizes ou se sentirem realizadas. Depois da história de Solveig, meu apetite com qualquer coisa mística estava a mil, então continuei lendo.

“Se você conheceu a pessoa amada apenas por fotos ou por livros de história e seu coração sofreu com um amor à primeira vista inexplicável, talvez você possa ser mais um atrapalhado pela maldição do tempo.
A lenda diz que é possível alcançar anos em que nem mesmo tinha nascido e continuará com a sua idade atual. Se decidir permanecer naquela data, você envelhecerá normalmente ao lado da pessoa que ama. Mas seu nascimento, sua infância e todas suas memórias serão algo pessoal que nunca terão acontecido com as outras pessoas envolvidas, elas só estarão presentes na sua realidade atual. Ou seja, não poderá haver duas de você.
Se decidir não viver na mesma época que a pessoa amada, abandonando-a, ela mesmo assim lembrará da sua presença e poderá sofrer pelo resto de seus dias com a maldição de amar um viajante do tempo. Há casos aqui reportados que elas enlouqueceram procurando sua alma gêmea e descobrindo que tinham acabado de nascer.
Por isso, é preciso ser cauteloso se deseja prosseguir.
Você deseja saber o segredo?
Prosseguir / Retornar”

Aquele era realmente um site nada convencional, para não dizer outra coisa. Eu não comprei em nada essa história, afinal, há muitas lendas de todos os tipos, de todas os países, religiões etc. Mas nenhuma delas apareciam quando você digitava o nome de alguém que existiu no Google, pensei.
Batuquei os dedos no notebook, a dúvida me consumindo: tentar ou não? Parecia uma história boa, afinal de contas. Bem Outlander. Poderia ser uma fanfic envolvendo Outlander, não? Não faria mal apertar em prosseguir. Não é como se eu pudesse amaldiçoar alguém ou a mim só de clicar em algo em um site.
É, eu não tinha nada a perder.
Apertei em prosseguir e agora era outra página preta, só com os dizeres em branco:

Para efetuar a viagem, digite o nome da pessoa que deseja encontrar, o ano e o local em que deseja estar.

Nome:
Ano:
Local da pessoa:”

Era estranho pensar em qual lugar a pessoa estaria em tal ano, visto que ela poderia se locomover rapidamente e que nem todo mundo saberia onde está a pessoa. Mas, aparentemente, essa era a única pergunta do formulário que não era obrigatória.
Lembrei que tinha uma certeza de onde poderia estar numa data. Era em 1990, quando ele saiu para fazer a promo do novo álbum pela Europa. Passava em seu documentário que eu havia visto um monte de vezes pelo YouTube. O bônus do lugar é que eu sabia o idioma e poderia me comunicar.

Nome:
Ano: 1990
Local da pessoa: Lisboa, Portugal.
Aperte para continuar

Capítulo 2 - Time Warp

— Olá? Estás bem? — escutei uma voz, no meio de muitas, perguntando.
Minha cabeça doía como se eu tivesse levado uma pedrada de uma pedra maior que minha cabeça. Tentei abrir os olhos, mas tinham tantos rostos no meu campo de visão que fechei de novo. A última coisa que eu lembrava era de estar sozinha, sentada na sala da minha casa, e Lemmy no quarto da Anya. Não fazia ideia de como todas essas pessoas tinham entrado ali ou o que estavam fazendo.
— Acho que ela está bem — outra voz comentou. Meus sentidos ficaram em alerta, eu não escutava alguém falando em português sem ser pela tela do computador há um tempo considerável. Por mais que aquele português parecesse bem diferente do que estava acostumada...
Abri os olhos e me levantei rapidamente, me arrependendo logo em seguida, quando minha cabeça piorou e quase bati a testa nos rostos daquelas pessoas que me assistiam.
A memória tinha me atingido com tudo e de uma vez só no segundo seguinte, como se, de repente, minha alma tivesse voltado para o corpo. Lembrei que eu realmente estava em casa e com aquele site estranho aberto, tudo ficou escuro quando apertei o botão. Olhei da esquerda para a direita, tive um sobressalto ao notar as pessoas com cabelos cheios de laquê e bastante fora de moda que me cercavam. Ok, ou eu era sonâmbula e tinha vindo parar no meio de algum desfile do curso de moda da minha faculdade ou, dando razão ao que o site prometeu entregar, eu estava deitada no chão aparentemente no meio de uma rua de Portugal — onde passou em 1990 na promoção do disco novo da época.
O que explicaria o motivo de essas pessoas estarem falando português europeu e indicaria que tinha dado certo.
Minhas mãos começaram a tremer e eu não sabia mais articular as palavras em português para falar com aquelas pessoas. Eles começaram a se aproximar demais de novo, minha cara deveria ser um misto de incredulidade e pavor, podia sentir claramente minha expressão.
— Calma, respire — um homem mais velho com um bigode gigante pediu. — Inspira. Expira. Inspira. Expira.
Obedeci, mas não consegui parar de encarar todas aquelas pessoas e suas roupas tão vintage que pareciam preservadas demais para terem vindas de brechó.
Também temos a opção de terem organizado uma pegadinha comigo de mau gosto, talvez Anya, por eu ter deixado a louça suja na noite anterior. Ela podia ser bem vingativa quando o assunto era limpeza. Só que tudo ali parecia genuíno para ter sido arquitetado pela minha colega de quarto, ela teria que gastar um dinheiro que não tinha para contratar tanta gente e investir uma boa grana nesse figurino. Acho que ela não teria dinheiro nem para o laquê que toda aquela gente estava utilizando, afinal, nós éramos universitárias.
O que me deixa com a outra opção que explicava melhor.
Uma risada nervosa ficou presa na minha garganta enquanto fazia o exercício de respiração. Não podia realmente ter dado certo, não é? As pessoas não apagavam em casa e acordavam vinte e nove anos antes. Eu não posso ser uma viajante no tempo rodeada por todas essas pessoas.
Recuperei um pouco do controle da minha respiração e das minhas funções, seguindo à risca o exercício respiratório do homem. Por isso, coloquei meu cabelo para trás da orelha, tentando processar as palavras novamente.
— Que dia é hoje? — perguntei em português.
— Terça-feira — uma adolescente me respondeu prontamente.
— ‘Tá, mas terça quando? — respondi, ansiosa, soando até um pouco grosseira.
— 5 de maio — outra pessoa respondeu, dessa vez uma mulher loira com um mullet igual das capas de discos que minha vó guardava cuidadosamente em sua casa.
— E o ano? — soei, dessa vez um pouco impaciente demais para aquela conversa. Eu não me dava bem com multidões, ainda mais quando estava tão confusa e todo mundo me olhava assustado demais.
— 1990 — a mulher disse em resposta, depois encarou o homem que me disse para respirar. — Acho que devemos levá-la para o hospital mais próximo.
Puta que pariu. Eu definitivamente tinha viajado no tempo. Eu era Claire Fraser de Outlander fora da ficção. Isso queria dizer que eu estava oficialmente às cegas procurando o meu Jamie.
Ah, droga.
.
Se eu estava em 1990, em Portugal, ele estava vivo. Estávamos respirando o mesmo ar.
Em um pulo fiquei de pé, surpreendendo todo mundo — inclusive a mim mesma.
— Não preciso ir para o hospital. Olhem só, estou ótima. Não se preocupem comigo — forcei um sorriso tentando comprovar, mas deve ter saído mais como uma careta. — Acabei de lembrar que só preciso encontrar uma pessoa. Alguém sabe se hoje tem uma sessão de autógrafos ou algo do tipo com um sueco famoso chamado ?
Todos continuaram me olhando com desconfiança sem falar nada, parecendo até mais perdidos do que eu. O homem do bigode e a mulher que me respondeu ainda me analisavam, provavelmente tomando suas próprias conclusões se deveriam ou não me levar para o hospital. Fiquei cerca de um minuto depois que eu estava encarando-os com esperança de receber alguma resposta. Quando pareceu que eu estava realmente às cegas, um garoto atrás de várias pessoas quebrou o silêncio, dizendo bem baixinho:
— Ele vai estar daqui a duas horas no Dino’s, duas ruas daqui.
Cortei as pessoas que estavam na frente dele e reconhecer sua camiseta da banda de foi um alívio. A sorte estava ao meu lado. Sorri verdadeiramente dessa vez, finalmente algum sinal de que ele estava ali. Eu não estava doida, não era um delírio. Eu estava nos anos 90!
— Você está indo para lá? — perguntei. O garoto parecia ter uns 17 anos. Ele estava todo vestido como se acabasse de sair de uma produção hollywoodiana, calça jeans de lavagem cinza toda furada e desgastada — não era como as que eu via para comprar na H&M que furavam de propósito e vendiam pelo triplo do preço, parecia genuinamente velha. A camiseta era igual a uma das que eu tinha comprado no eBay, só que a tinta preta estava desgastada por lavar com sabão em pó de má qualidade. Por cima, um colete branco com vários patches de bandas antigas dos anos 80. Ele tinha cabelos pretos e olhos chamativos.
— Estava matando tempo enquanto não é hora. Porém, se quiser, posso lhe mostrar o local — ele disse, soando simpático. Minha vontade era de abraçá-lo de tanta felicidade, mas me contentei em sorrir e balançar a cabeça afirmativamente várias vezes. Aos poucos, o aglomerado ia se dissipando atrás dele. A mulher e o homem do bigode já não eram mais vistos.
Eu veria . Não podia ser real. Eu só esperava não acordar naquele momento, me frustraria pelo resto da vida.
Era a primeira vez que eu estava tão perto de conhecer uma das minhas paixões platônicas. Nota mental: eu precisava dar pulinhos de felicidade assim que ficasse sozinha e agradecer qualquer coisa que tenha me trazido até aqui (ou me proporcionado esse sonho louco). As borboletas no meu estômago tinham finalmente aprendido a voar e se sentiam livres para dar cambalhotas, me deixando enjoada de tanta ansiedade.
Andei do lado do garoto, deixando a aglomeração de curiosos para trás, que logo se desfez com cada um seguindo seu destino. As ruas, os carros, o cheiro, era tudo conforme eu imaginei com base nos filmes. As pessoas andando nas calçadas, conversando com a pessoa ao lado e não digitando em seus telefones. Tudo parecia bonito demais para ser verdade, mas milimetricamente pensado para ser mentira.
Virei para o garoto.
— Desculpa, eu nem mesmo perguntei seu nome — notei.
— Ah, é Tiago — ele respondeu, dando um sorrisinho tímido. — E o seu?
— imitei seu sorriso. Ele devia estar me achando muito estranha por estarmos indo para o mesmo lugar e eu estar vestida de pijama natalino enquanto ele estava todo paramentado.
— Nome legal — comentou.
— Obrigada — sorri. — O seu também não é nada mau.
Ele sorriu, concordou com a cabeça e continuou andando ao meu lado em silêncio. Não me incomodei para considerar aquele silêncio desconfortável, a minha atenção estava até mesmo nas pedrinhas do chão enquanto minha mente processava que aquelas ali eram pedrinhas dos anos 90 nas ruas dos anos 90. Afinal, eu aparentemente estava nos anos 90. Dá para acreditar onde eu estava? Ainda estou em choque, sem acreditar totalmente.
Chegando ao lugar, tinha um cartaz enorme informando que aquele seria o dia que o estaria lá, às dezesseis horas. O frio na minha barriga se intensificou e eu engoli em seco. Ainda não tinha fila e nem ninguém esperando do lado de fora, então me sentei em um murinho que ficava perto do vidro da vitrine, onde tinha um monte de exemplares de vinis do disco novo que ele lançou esse ano. Cara, a Shandi não iria acreditar quando eu contasse para ela.
Se um dia eu voltasse a vê-la.
As palavras do site me vieram à mente: “Se decidir não viver na mesma época que a pessoa amada, abandonando-a, ela mesmo assim lembrará da sua presença e poderá sofrer pelo resto de seus dias (...)”.
Suspirei. Era doloroso pensar que nunca mais veria Shandi e Raj. Também era doloroso pensar que teria um leque de possibilidades na minha frente, como: eu poderia nunca encontrar com ou ele nem sequer ligar para mim. Quem dirá chegar a me amar. Imaginar isso também causava um pouquinho de dor. Porém, me deixava mais perto de retornar para casa.
Nada disso importava agora.
— Eu tenho que ir ali buscar alguns amigos antes de começar. Vejo-te mais tarde? — Tiago falou, apontando para trás.
— Tudo bem. Obrigada por me trazer até aqui — nei.
Ele murmurou algo que não entendi pelo forte sotaque e seguiu a rua, sumindo de vista.
Pensei logo que encontrar o caminho pra tinha sido incrivelmente fácil, nós mal andamos cinco minutos. Pensei também que eu poderia aproveitar o fato de estar em 1990, andar por aí para conhecer um pouco e depois retornar para casa, seria o mais seguro a se fazer. Eu poderia até mesmo entrar naquela loja de discos só para conhecê-lo e ir embora. Porém, não sabia como fazer para voltar para 2019, então estava presa ali.
Nunca visitei Lisboa, mas tinha primos que moravam por lá e vivam postando fotos em lugares que lembravam essas ruas, só que versão anos 2010. Era um lugar bonito, digno de várias fotos e de se apaixonar.
Um homem na casa de uns quarenta anos passou bem perto de mim, me assustando a ponto de quase cair do murinho em uma vala que tinha atrás. Ele me segurou pelo cotovelo, apesar de que não tinha tanto risco assim que eu virasse com tudo para trás, mas fiquei grata por diminuir as chances para nulas.
— Perdão — ele disse, assustado, em um inglês carregado de sotaque. Aquele rosto extremamente familiar que já vi milhares de vezes através de uma tela e que tinha traços semelhantes ao de quem vinha me tirando muito o sono. — ‘Tá tudo bem?
Era Börje , pai e produtor do . Ele era dono da produtora que tinha os direitos da banda e os dois trabalhavam juntos. Ninguém sabia que eles eram da mesma família até a morte de ser anunciada na mídia em 2004. Engoli a surpresa e tentei pensar que era um desconhecido, porque afinal de contas, até que era.
— Sim, eu só estava bem distraída. Foi culpa minha — respondi, meio ofegante pela surpresa. Por dentro, querendo morrer por não poder gritar, pular ou comemorar por estar de frente para um membro da família de . Além do mais, Börje era prova de que viajei no tempo, ele nem estava mais vivo em 2019. Estava falando com alguém que já morreu, tecnicamente. Então, sim, o site estava certo e era possível encontrar pessoas que já morreram. Afinal, muitas pessoas que passaram por mim, querendo ou não, tinham fortes chances de não estarem mais vivas quase trinta anos depois.
Levantei do murinho e ele soltou meu braço que ainda apertava suavemente, depois estudou profundamente a minha imagem. Ele já tinha alguns fios grisalhos em meio ao cabelo e seus olhos eram de uma profundidade admirável.
— Por acaso não está com frio? Está ventando muito aqui fora — ele disse, dando um sorrisinho. Olhei meu pijama de natal e minhas pantufas de rena. Patética era o mínimo. O que Tiago não tinha percebido, Börje percebeu. Então minhas bochechas imediatamente coraram e eu quis me jogar na vala por vontade própria. Eu estava mesmo nesses trajes na frente do pai do meu ídolo e no meio da rua? Um pijama fora de moda para a época! Merda, eu estava fora da moda até para onde vim, não era mais Natal, eu só amava aquela combinação por ser tão confortável.
Eu sequer tive tempo de sentir frio de tanta adrenalina desde que acordei aqui, mas, depois do seu comentário, meu corpo abaixou a temperatura em vários graus. Coloquei os braços em volta um do outro em um abraço e olhei para ele totalmente sem graça ao perceber que tinha razão.
Ele soltou uma risada baixa, percebendo tudo.
— Vem, vamos entrar comigo e tomar um café para esquentar — chamou. Ele abriu a porta da loja e me deu passagem. O aquecedor trabalhava, transformando o lugar em uma espécie de caverna aconchegante que fazia a gente relaxar só de pisar ali. Meus olhos passearam pelo local e era simplesmente uma loja só de vinis e fitas — nem os CDs existiam. Nunca entrei e nunca pensei entrar em um lugar desses. Estava além da fantasia. Tudo parecia incrivelmente retrô e me animei com a constatação.
Börje me olhava com curiosidade, contribuindo para o sentimento de forasteira me incomodar. Não era um olhar como recebi quando cheguei à Inglaterra ou viajei internacionalmente, era um que você dá a alguém que vem de um lugar mais longe que a América Latina.
Segui-o até as cortinas pesadas atrás do balcão, separando a loja de um espaço maior com sofás, almofadas em cima do tapete, uma mesinha com vários LPs de aparentemente todos os lançamentos da banda. O lugar não tinha janelas, era iluminado apenas por abajures de luzes amarelas. Tinha jornais e revistas em cima do tampo da mesinha.
— Pode ficar à vontade — ele disse atrás de mim, virei para sorrir em agradecimento. — Como você se chama?
— minha voz saiu esganiçada, pigarrei e repeti. — .
— Bom, , pode ficar à vontade e se sentar onde quiser, vou buscar o café — ele disse, já saindo do lugar. — Ah, sou Börje . Qualquer coisa, pode me gritar.
Assenti, ele passou pelas cortinas em seguida. Eu nem gostava de cafeína, mas tomaria qualquer coisa bebível que ele me desse. Estava extremamente grata por ter encontrado Börje primeiro do que o filho dele, seria a brecha perfeita para treinar minha confiança. Tinha a impressão de que ela seria bastante necessária.
Sentei-me no sofá e fui engolida por ele, era daqueles sofás grandes e fofos que dava a ideia de ser abraçada. Encarei a mesa repleta de revistas de metal e procurei algo de interessante. Puxei um jornal que estava espalhado ali e a primeira coisa que bati o olho foi a data: 5 de maio de 1990. A foto de um Mário Soares bem mais novo do que eu conhecia ilustrava a primeira página e dizia em português “os novos olhares do presidente”.
Eu nem sonhava em nascer em 1990, meus pais nem tinham se conhecido ainda.
É, sou mesmo uma viajante do tempo. Bem típica, aliás. Eu não tinha nada comigo, nem mesmo meu celular no bolso ou uma nota fiscal com a data de 2019 para comprovar que estava falando a verdade. Então não podia falar a verdade para ninguém enquanto não pudesse provar. Não tinha nem dinheiro, porque estava usando pijama. O que levava ao mais importante: não tinha para onde ir, estava completamente jogada à minha própria sorte e teria que me virar não sei como.
Suspirei e coloquei o jornal no lugar que estava. Peguei a cópia novinha do último disco lançado e que estava sendo promovido atualmente. Uau. Isso daria inveja em qualquer colecionador em 2019. Aquele era meu álbum favorito, acho que, além de ser genial, também se deve ao fato de estar em seu auge aos 24 anos. Ele estava absurdamente lindo, por isso me preocupava com minha reação. Como disse anteriormente, sou apaixonada por todas suas fases, mas ele tinha acabado de assumir sua essência, parado de usar tanto couro e... Bom, toda fã tem sua fase favorita.
não sabia da grandiosidade dessa nova fase da banda, o quanto ela foi importante a longo prazo para a carreira dele, foi aqui que ele finalmente criou e consolidou o viking metal. O cara criou sozinho um gênero musical novinho! Queria poder mostrar para ele tudo isso, descrever com detalhes o quanto ele ainda era respeitado de onde vim, depois de quase quinze anos da sua morte. Não sei se é algo que o de vinte e poucos anos entenderia. Provavelmente não. Provavelmente ninguém entenderia se me ouvisse falar que sou do século 21, então precisava guardar esse segredo enquanto estivesse lá.
Fiquei mais um tempo no meu surto de fã, admirando os vinis novinhos — que eu não tinha em casa, porque eram caríssimos, aliás —, até que Börje entrou de novo no ambiente, trazendo uma bandeja com bule, xícaras e um prato com biscoitos. Meu estômago roncou só de sentir o cheiro do café quentinho.
— Trouxe biscoitos, caso esteja com fome — informou, colocando tudo em cima da mesinha de centro. Sentei-me na ponta do sofá e agradeci. Não sei por que Börje estava sendo tão prestativo com uma desconhecida, mas era extremamente grata por ter atraído sua atenção sem querer e ter vindo parar aqui dentro. Facilitou minha vida.
Ele me entregou algumas roupas que estavam em seu ombro e botas que estavam na sua outra mão.
— Peguei essas roupas, caso você queira se trocar. Já vou logo avisando que são o dobro do seu tamanho, mas, pelo menos, vão te manter quente — ele sorriu com simpatia. — A bota talvez sirva melhor, porque comprei para minha filha.
— Não precisava, de verdade — comentei e me levantei com receio para procurar pelo banheiro. — Mas obrigada. — Ele sorriu. Entrei no ambiente e claramente o banheiro era habitado por homens, por causa da desorganização e do fedor. O metal é um gênero musical muito machista desde os primórdios, então não me admirava que a maior parte dos clientes da loja fosse formado por seres do sexo masculino.
Eu estava me sentindo mal por usar as botas da filha de Börje, mas ele me ofereceu de tão bom grado com aquele sorriso simpático, que fiquei sem graça de rejeitar. No fim, também seria melhor me trocar e tentar me encaixar melhor aqui. Já me sentia uma alienígena pelos olhares que recebi do pai de , vestir esse pijama quando começasse a chegar um monte de jovem headbanger* para me julgar pioraria essa sensação em cem por cento.
Quando saí do banheiro, meu cabelo estava molhado com a água da pia e totalmente para trás — não foi difícil imitar o penteado famoso daquela época, visto que meu cabelo estava bem acima dos ombros. Tive que enrolar as pernas da calça e apertar bem o cinto que ele tinha me dado para que não caísse, mesmo assim, o jeans escuro ficou apertado nos meus quadris por ser masculino, mas nada que o tornasse inutilizável. A camiseta de manga longa preta da banda de teve que ser erguida até meus cotovelos. Já a bota era realmente do meu tamanho. A imagem refletida no espelho do banheiro mostrava que claramente as roupas não eram minhas, mas eram mais apresentáveis do que meu pijama.
Procurei por Börje para agradecer e não o achei. Resolvi, então, voltar para o lugar dos sofás para comer e beber o que tinha levado para mim. Meu estômago roncava, mas me lembro de ter me sentido sem fome antes de deixar minha casa, então não sei quanto tempo perdi fazendo a viagem.
Puxei a cortina para entrar e tinha alguém no sofá onde eu estava. Quando aqueles olhos me encararam, não teve uma parte do meu corpo que não ficasse gelada e retesada.
— Ahm... Olá? — ele me analisou minuciosamente, fazendo minha pele arrepiar. — Espera, essas são as minhas roupas? — perguntou, parecendo meio ofendido e divertido ao mesmo tempo.
Era . estava ali. Aquela voz era dele, estava saindo de sua boca e ela estava se mexendo conforme as palavras saíam. Ele existia em carne e osso bem na minha frente.
Derrubei o pijama que carregava dobrado em meus braços.
Fale ou faça algo, .
— E-e-e-eu... — gaguejei tanto que até senti babar um pouco. Tampei a boca com a mão, me sentindo patética e incrédula. Poderia dizer que era como se eu estivesse vendo um fantasma, mas eu realmente estava vendo um.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Ai-meu-Deus-vou-desmaiar — foi tudo que eu consegui dizer antes de sentir tudo escurecer pela segunda vez em menos de 24 horas.

***


Abri meus olhos pensando nesse sonho esquisito. Provavelmente, eu tinha ido dormir escutando música de novo e por isso sonhei com . Estava ficando bastante preocupada com a frequência que ele estava aparecendo nos meus sonhos ultimamente. Porém, sorri, me lembrando da sensação ao ver aqueles olhos pessoalmente. Até que foi um bom sonho. O teto que estava no meu campo de visão parecia mesmo com o da sala da minha casa, então levantei o tronco em uma mistura de alívio e confusão.
Cocei a cabeça. Deveria considerar voltar para a terapia, aquilo estava bem intenso até mesmo para mim, que era acostumada a ter essas paixonites. O próximo passo era não saber mais distinguir sonho da realidade, já que meus sonhos também estavam se tornando reais demais.
Levantei o olhar e pisquei várias vezes, tentando entender o que estava bem na minha frente. Não, não, não. Esfreguei os olhos para ver se assentava a visão ou acordava — o que acontecesse primeiro —, na outra ponta do sofá bebendo café e lendo o jornal parecia extremamente real. Se estava vendo pessoas mortas... então eu poderia estar morta também.
Soltei um grito. Não consegui pensar antes de soltá-lo, foi automático. Me arrependi logo em seguida.
Ele quase derrubou o conteúdo da xícara em si mesmo e finalmente retribuiu meu olhar com fúria, colocando o jornal e a porcelana em cima da mesinha. Virou o tronco para me encarar.
— Qual o seu problema, hein? — ele resmungou em um inglês com sotaque leve, depois checou a regata preta para ver se não tinha sido arruinada pelo café que quase derrubou.
— Eu morri? — perguntei, olhando fixamente seus olhos a ponto de me enxergar neles. Me arrastei a ponto de ficar próxima dele no sofá.
Ele definitivamente parecia real. Só não podia ser. não podia ser real, eu sabia que ele tinha morrido, Börje morreu, então eu provavelmente assinei meu atestado de morte ontem. Quer dizer, sei lá, qualquer coisa que faça sentido. Meu cérebro estava simplesmente desesperado à procura da razão. Ergui minha mão e toquei seu rosto. Senti sua postura endurecer e ele me lançar um olhar assustado de canto de olho.
— O quê? — ele perguntou de volta com incredulidade enquanto eu puxava a pele de sua bochecha entre meus dedos, conferindo se não era alguém usando uma máscara. — Ai!
Não era, mas não havia espaço para sentir vergonha agora.
— Eu ‘tô morta, ? É por isso que você veio até aqui, para me dar a notícia — respondi, arrancando bem rápido minha mão de sua bochecha e jogando o corpo para trás. — Mas eu não vou! Eu não vou a lugar algum!
Não posso acreditar que morri aos 25 anos de idade, sem aproveitar nada da vida. Deveria ter escutado Shandi e passado menos tempo fantasiando. Deveria ter passado mais tempo com meus pais... meus pais! Como eles vão reagir quando souberem que morri no meio da sala do meu apartamento depois de apertar um botão. Quer dizer, eu morri assim, não é?
— Ai, meu Deus. Como eu morri? — verbalizei.
— O quê? — ele repetiu com a mesma incredulidade agora misturado com um toque de ofensa. — Quem te deixou entrar aqui, garota? Você é completamente maluca!
— O seu... — travei na hora, cerrei os olhos. Pensando bem, se aquilo fosse verdade, ele não poderia saber que eu sabia que o Börje era o pai dele. Eu não era amiga íntima da família e nem tinha informações o suficiente para fingir ser. Então, precisava evitar que sabia demais sobre ele também, pelo bem do meu mais novo segredo. — O Börje.
— Você conhece o Börje? Foi ele quem te deu minhas roupas? — perguntou, desmontando um pouco a pose defensiva e a compreensão banhando gradativamente os olhos . Balancei a cabeça em concordância. — Estranho, ele não me falou nada — coçou o queixo. — Você está bem? Quer que eu chame, sei lá, uma ambulância? Não acho muito normal desmaiar e depois acordar achando que morreu.
A ameaça de ir parar no hospital pela segunda vez me fez despertar para o que estava acontecendo. Era melhor começar a agir como uma pessoa normal e não correr o risco de ir parar na ala psiquiátrica — já que tudo estava conspirando para que eles achassem que eu deveria ter fugido de uma.
— Não, acho que estou bem — respondi, segurando minha cabeça, tentando entender que não era delírio, que escrever o nome dele naquele site tinha realmente me trazido para essa realidade. Eu sabia que corria o risco de estar nos anos 90 mesmo enquanto Tiago me trazia para cá, ao ver Börje e olhando a data no jornal, mas vê-lo só tornou tudo mais fantasioso. estar morto vinha sendo um problema que me abraçava e andava comigo feito um velho conhecido nas últimas semanas, então não conseguia entender como ele poderia estar vivo. Na minha cabeça, estar nos anos 90 fazia mais sentido do que ele estar respirando. De repente, me senti incrivelmente cansada. — Só... Quanto tempo eu fiquei desacordada?
— Quase uma hora — ele olhou para o relógio na parede.
— Ah — murmurei, observando e admirando cada detalhe dele. Ele era lindo e imponente, muito mais que imaginei. Sua presença passava muita segurança e charme. Os olhos , os fios daquele cabelo que parecia muito sedoso, cada singelo ponto daquele homem à minha frente me inspirava. Eu não era boa em nada e nunca senti necessidade em ser, mas, de repente, por causa dele, queria pintar quadros, escrever músicas, livros e poesias, e olhá-lo para sempre. Ele me analisava de volta e parecia curioso, é claro que estava, toquei seu rosto antes de me apresentar. Eu sou tão destrambelhada. Tentando corrigir a situação, acrescentei: — Me chamo .
Ele concordou com a cabeça, continuando com a sua análise por mais alguns segundos.
— respondeu, estendendo a mão na minha direção em cumprimento. Peguei sua mão e parecia que tinha uma corrente elétrica ali nas nossas peles, como se estivéssemos começando a fazer história com apenas aquele toque. Céus, era difícil ser fanfiqueira e apaixonada.
Ele soltou minha mão, voltou a pegar a xícara e o jornal. A minha mão ficou ali, pendendo no ar, e senti minha boca escancarada fazendo par, formando uma expressão boba.
Pela normalidade que voltou a reagir e prevalecer no ambiente, ele estava itando mais minha presença e perdoando minha reação exagerada desde que mencionei o nome de Börje. Isso se devia ao fato de e Börje, além da relação de pai e filho e do trabalho, também serem melhores amigos, até onde eu sabia.
Eu também precisava passar naturalidade e confiança, não podia ficar ali encarando-o com pupilas em formato de corações e correr o risco de estragar tudo. Se eu estava ali, precisava começar a dançar conforme a música. Peguei outra xícara de café na bandeja que o Börje tinha colocado ali, servi um pouco de café e um pouco de leite para não atacar tanto a ansiedade, coloquei o açúcar e bebi, tentando não virar a cabeça para encarar . Eu já nem sentia mais fome, mas comi um biscoito nervosamente pela situação.
Estava bebendo café com o . A minha paixonite mais improvável de encontrar. Ele era o único da minha gigante lista que havia falecido. E, por incrível que pareça, aparentemente o único com quem troquei algumas palavras, por causa de uma viagem no tempo que aparentemente concordei em fazer. Que. Coisa. Doida.
Segundo a “maldição” da viagem, se eu estava ali era porque tinha chances de ser minha alma gêmea, certo? Bem, foi o que entendi. Meu coração lerou só de pensar nessa possibilidade. Se ele fosse mesmo, acho que tudo faria sentido agora, me apaixonar por todas aquelas pessoas até chegar nele... até chegar naquela página da internet, naquele dia. Agora ficava a dúvida: seria obra do destino ou do meu pedido para Solveig?
Börje entrou pela cortina, interrompendo meus devaneios, me lançou um sorriso e depois se virou para o próprio filho. Vendo os dois no mesmo ambiente, era possível notar que havia muitas semelhanças físicas, então eles deveriam se esforçar muito para esconder que eram pai e filho. Na verdade, inteiro sempre foi um mistério para todo mundo, acho que ele se divertia com isso e acabava nem sendo um esforço tão grande. É por isso que ele se apresentou pelo stage name e não por , ele gostava do personagem que havia criado, podia sentir pelo modo como falou.
— Ainda lendo isso e não entendendo uma palavra? — Börje perguntou para ele, que desviou os olhos do jornal para encará-lo.
— Tenho a esperança de que comece a fazer sentido uma hora — respondeu, se referindo ao jornal em português que eu estava segurando momentos antes. — Quem é a garota? — falou em sueco, provavelmente para eu não entender, mas teve o efeito contrário. Já sei um bocado de sueco por causa do intensivo que fiz na faculdade e ele que foi minha inspiração para fazer aquelas aulas.
Börje sorriu de lado e se sentou no sofá do outro lado da mesinha. Notei que eles tinham basicamente o mesmo sorriso, apesar de lábios diferentes. Os lábios de Börje eram mais finos e os de um pouquinho mais cheios.
— Acho que a sabe português, quem sabe ela não possa te ajudar com isso? — sondou a pergunta dele, mas em inglês, para que eu entendesse.
Engoli em seco quando os dois me olharam. Estava visivelmente me sentindo pressionada por estar sentada com e Börje . Me ajeitei no sofá, tomando coragem para responder o questionamento.
— Sim, eu sei — falei. estendeu o jornal, a página 5 falava sobre um jogador de futebol, em português de Portugal “futebolista”. Mas o que prendeu mesmo minha atenção foi a palavra “gozar” em um sentido diferente que usávamos no Brasil e, como eu tinha zero maturidade, eu soltei uma risada alta e impensada. Tratei logo de corrigi-la, pigarreando e querendo me fuzilar. Você prometeu que ia agir normalmente. — Um tal de Albano Narciso Pereira morreu dia 5 de março e aqui é uma coluna relembrando alguns momentos dele.
Eles me olhavam com divertimento mal disfarçado e questionando o motivo de ter rido da morte de uma pessoa.
— É que no Brasil “gozar” é usado assim com outro sentido — expliquei, devolvendo o jornal para .
— Você é do Brasil? — Börje perguntou. Balancei a cabeça afirmativamente. — E o que faz tão longe de casa?
Foi uma pergunta bem repentina, acho que parecia que ele estava puxando assunto e tentando me conhecer, mas eu não tinha como responder. Não mesmo. Não poderia contar que fazia faculdade na Inglaterra, porque isso ficou em 2019, no momento não tinha nem lugar para passar a noite. Nem um passaporte eu tinha.
Pensa, , pensa.
— Eu fugi de casa. — Fui para o lado mais óbvio. — E fiz check-in em um hotel que se revelou ser uma farsa, por isso acabei na rua de pijamas. — Isso deveria servir também para encobrir o passaporte e a falta de mala.
Vi, através da visão periférica, virar a cabeça feito um cachorrinho curioso. Börje se mantinha impassível, como se eu estivesse dizendo algo tão inocente como brincar de esconde-esconde com meus pais.
— Por quê? — foi quem perguntou, se referindo à primeira parte da minha fala.
Droga, por que eu poderia ter fugido de casa? Por que eu percorri milhares de quilômetros para fugir? Eu simplesmente não sabia. Pensei por alguns segundos que podem ter virado minutos. Até que uma ideia — que parecia genial, porque isso me garantiria algum lugar para dormir — passou pela minha cabeça. Assim que eu abri a boca e as palavras saíram, me arrependi pela segunda vez no dia.
— Estou grávida — anunciei, deixando o ar mais pesado.
Eu realmente estava lendo fanfic demais.
Um silêncio se instaurou por alguns segundos entre nós três, o café esfriava dentro da minha xícara em cima da mesinha. Börje foi o primeiro a reagir com seu sorriso tão formidável.
— Que incrível! — Börje disse, agora como se fosse a melhor coisa do mundo. Bom, deveria ser para quem queria e não para alguém que estava mentindo. — Você veio morar com o pai do bebê ou algo do tipo?
Pigarreei. Não tinha como voltar atrás na mentira, então...
— Hm... Sim, é dele — apontei para , minhas pernas tremiam e eu tentei disfarçar, tampando com os braços.
me olhou, sério, e depois olhou para o pai com surpresa. Börje tinha transformado completamente suas feições, o sorriso desmanchou e o cenho franziu. Ele retribuiu o olhar do filho com olhos acusatórios.
Essa era a cena mais vergonhosa da minha existência. Mais vergonhosa do que minha primeira apresentação de teatro, da primeira vez que me fotografaram de biquíni na praia por causa dos meus pais ou de segundos atrás que apareci no meio da rua com meu pijama natalino.
— Ele não se lembra de mim, m-mas — respirei fundo, tentando controlar minha respiração para continuar com a mentira. Eu não costumava ser boa mentirosa, então é por isso essa estava custando sair. Minha mente estava em completo pane. — Há dois meses a gente se conheceu e bom... Até entendo você não lembrar de mim, porque estava visivelmente bêbado.
me olhava fixo a ponto de não piscar. É impossível dizer o que ele pensava, porque ele não demonstrava emoção alguma. Eu tive medo de olhar de novo nos olhos dele. Eram olhos bastante incisivos, então era questão de segundo para vacilar na minha mentira tão frágil.
— Isso é sério? — Börje questionou. Engoli em seco e assenti tremulamente em resposta.
— Realmente, eu não me lembro — ele finalmente respondeu, parecendo estar em um transe.
Ao que tudo indicava, funcionou. Eu esperava. Precisava me aproximar dele de alguma forma, não saberia se conseguiria pensar em outra forma antes que eles me botassem na rua.
— Nossa — Börje murmurou na minha frente. — Bem que desconfiei que tinha algo errado quando te vi lá na frente antes de todo mundo chegar com aqueles trajes, mas não imaginei que seria algo tão... grandioso — ele arqueou as duas sobrancelhas enquanto fitava o chão. Alguns segundos depois, se levantou. — É melhor deixar vocês conversarem.
Ele saiu, fechando as cortinas pesadas para que pudéssemos ficar ainda mais sozinhos. Se fosse possível tremer mais do que eu estava tremendo sem ter um piripaque, com certeza meu corpo trataria de providenciar. Minha respiração estava começando a ficar rápida, mas eu tentei me concentrar em não a deixar ser audível. Não sabia nem como prosseguir com essa mentira, por que fui inventar logo isso? Que vontade de me estapear. Grávida do ídolo? Sério mesmo que isso era o melhor que você poderia inventar, ?
Ele tinha ndido um cigarro e continuava tomando seu café, olhando para o nada. O retrato perfeito da calma. Nós dois éramos os opostos no momento, eu estava tendo um ataque e ele exercitava o seu Buda interior.
Ele não disse uma palavra enquanto eu encarava o ponteiro marcar cada segundo daqueles 21 minutos e 32 segundos que restavam para dar quatro horas. Nada. Ele só bebeu mais café e fumou outro cigarro enquanto olhava para o nada.
Quatro e um, ele se levantou do sofá, deixou a xícara na mesinha, abaixou a cabeça para olhar para mim.
— Podemos conversar depois que eu terminar a sessão de autógrafos? — ouvi sua voz perguntar.
Balancei a cabeça, concordando. Qualquer coisa para me livrar da sua presença um pouco ou explodiria de ansiedade. Ele passou por mim e saiu.
Finalmente pude voltar a respirar.




*Headbanger é a denominação utilizada para fãs do gênero musical metal.

Capítulo 3 - Dealin’ With The Devil

Enquanto ele trabalhava, fiquei absorta em pensamentos. Concluí que deveria ter deixado a senha do meu armário do estágio anotada, porque eles teriam um trabalho arrombando o cadeado para pegar as informações de Solveig quando dessem minha falta. Eu deixei tudo para trás sem explicação nenhuma, sem uma mensagem, como se tivesse simplesmente esvaído — que foi o que aconteceu, eu me teletransportei para cá.
Tinha medo da repercussão que poderia dar, já conseguia imaginar as manchetes no jornal da faculdade: “estudante estrangeira desaparecida e última vez vista em seu apartamento ao redor do campus”. Talvez colocassem a Scotland Yard atrás de mim como em uma fanfic que li há um tempão.
Nah, eu não era tão importante assim para ativar a polícia de Londres.
Meus pais iriam surtar, obviamente. Colocariam Shandi e Anya para surtar junto ou vice-versa. Quem desse minha falta primeiro.
Se não tivesse duvidado do que dizia o site, poderia pelo menos ter escrito uma carta para a Anya entregar a eles antes de entrar nessa realidade maluca. Bem, agora não resta nada a se fazer. Lidaria com as consequências quando voltasse.
Estava o observando, de longe e sentada em um banquinho, conversar com os mais diversos tipos de fãs e assinar LPs, fitas, camisetas e papéis. Ele fazia tudo isso com um sorriso no rosto e eu sorria feito uma trouxa, tentando salvar essa cena na minha memória. Olhando assim tão perfeito em minha frente, não me convencia de que não podia mesmo ser um sonho.
Börje me chamou algumas vezes para ajudar alguns fãs que queriam falar com , mas se atrapalhavam entre o português e o inglês. Eu traduzia sem dirigir o olhar a ele e saía de cena o mais rápido possível. Se íamos conversar, então eu lidaria com tudo aquilo depois.
Isso me fez pensar na possibilidade que ele falaria que não assumiria o filho não-existente e eu teria que dormir na rua de qualquer forma. Se ele quisesse assumir, eu também não sabia o que fazer quando os dias passassem e minha barriga continuasse do mesmo jeito. Demoraria, é claro. Ele não iria perceber tão cedo, barrigas de grávidas demoram a aparecer. Só que exames aparecem em poucas semanas.
Balançava meus pés impacientemente enquanto esperava o resto das pessoas irem embora. Börje tinha me arranjado aquele banquinho que segurava a porta para não ficar indo para trás da cortina e voltando. Era uma maneira bem eficaz também de ter uma visão privilegiada do filho dele. Eu já sabia o jeito que mexia no cabelo — e quais ocasiões ele fazia isso: perguntas pessoais, turnê ou show. Nunca aconteceu um show da banda oficialmente. Apesar de que, em suas respostas, sempre dizia que ia voltar para a Suécia para gravar o vídeo de duas músicas do álbum novo que demorariam bastante, depois retornaria para uma turnê.
Nunca ficou claro se ele considerava mesmo fazer esses shows, se o rumor que circulou depois da sua morte era real e ele já sabia que tinha algo de errado com seu coração que o impedia de subir em um palco ou se ele nunca nem cogitou fazer show mesmo por vontade. Quando dizia que era um mistério, estava falando sério. Era um saco ser fã dele.
Já fazia horas que estávamos ali e ele não sentou por um segundo, dava para ver em seu rosto que o cansaço começava a tomar conta. Perdi as contas de quantas vezes eu controlei o impulso de ir chamá-lo para fazer uma pausa ou alertar seu pai para que o forçasse, mas não tinha intimidade o suficiente para isso. Börje cuidava para que pelo menos ele sempre tivesse água — o que já me aliviava.
Minha cabeça estava uma mistura de pensamentos que variavam de “o que fazer para o pai do meu filho-que-não-existe acreditar na minha gravidez-que-não-existe”, “o desespero que meus pais, Shandi e Raj vão sentir quando perceberem que sumi” e “a falta que vou sentir de 2019”. Ou seja, a ansiedade só crescia. No entanto, não era uma ansiedade ruim que nem sempre senti a minha vida inteira, eu estava finalmente feliz a ponto de querer saltitar e gritar, mas também chorar de desespero. Agora que já estava há algumas horas em 1990, estava começando a sentir um contentamento com o que estava acontecendo.
Depois de um tempo ali, ouvi a voz de chamar o meu nome em cima de mim e levantei a cabeça para olhá-lo.
— Tem um restaurante no final da rua. Podemos comer, se você tiver com fome, e aproveitar para conversar — ele disse, olhando para baixo, porque eu estava no banquinho. Notei que seu cabelo emoldurava muito bem seu rosto. Minhas mãos coçavam para pegar em um fiozinho que fosse, mas me limitei a escondê-las atrás das costas antes que fizessem algo que me envergonhasse de novo.
— Tudo bem — respondi, sem ter muito o que dizer. Eu iria para onde ele quisesse me levar. Não tenho hora para voltar para casa, porque não tenho nem casa.
— Vou pegar minhas coisas e avisar ao Börje, então. Já volto — comentou, dando as costas.
Ele tinha um jeito único de andar, era minimamente desengonçado e altamente charmoso (e não estava nem dizendo isso porque era apaixonada por ele, acreditem em mim). Era mais um detalhe dele que exalava o charme que mencionei enquanto estávamos no sofá.
Levantei do banquinho e na mesma hora vi as últimas pessoas que estavam saindo pela porta, Tiago era uma delas. nei para ele e ele acabou desviando para falar comigo.
— Oi! — saudei, assim que ele chegou perto.
— Olá! — ele disse, sorrindo. — Achei que tivesse ido embora. Você é amiga dos donos da loja?
— Ah, não. Eu ‘tô com o , na verdade — justifiquei. Será que ele acharia ruim por eu ter contado isso para Tiago? Afinal, estou aqui só o esperando.
Tiago pareceu surpreso.
— És namorada do ?! — ele exclamou, colocando a mão no rosto. — és mesmo uma rapariga cheia de surpresas.
— Não! — quase gritei. — Não sou namorada dele — deixei bem claro, com medo que chegasse aos ouvidos do dito cujo que estávamos em um relacionamento. — Só estou com ele não-romanticamente, se é que essa palavra existe — pigarreei e resolvi mudar de assunto antes que eu entregasse algum detalhe crucial pelo nervosismo. — Posso tentar falar com ele para apresentar vocês algum dia desses, fora desse ambiente todo. O que acha? Como forma de agradecimento por me trazer aqui.
Eu nem conhecia direito e já estava armando um encontro com um fã. Só podia ter pedido o juízo. Se Tiago resolvesse me cobrar depois e me desse um pé na bunda, estava lascada.
— Giro! — ele respondeu, animado.
— Me passa seu telefone. Acho que daqui a uns dias ele deve voltar para a Suécia ou ir para outro país, mas posso tentar dar um jeito — falei, com base no que sabia do seu documentário que vi em 2019 e no que o ouvi falando hoje. Pelo visto, terei que me apoiar em todo meu conhecimento sobre e escutá-lo com atenção para sobreviver.
Esperei ele me entregar o celular, mas ele virou para arrancar um pedaço do papel que tinha no bolso e rabiscar o telefone com uma caneta que tinha usado para ganhar o autógrafo. Não era comum as pessoas possuírem um telefone celular em 1990, eu deveria me lembrar constantemente disso.
Os amigos chamavam por ele lá fora.
— Tenho que ir. — Ele me entregou o papel. — Espero mesmo te encontrar mais vezes.
— Também espero! — nei e guardei o papel no bolso da calça que nem era minha.
Tiago saiu andando com os amigos, sumindo mais uma vez de vista. Fiz um amigo mais rápido aqui do que na minha época. Sorri, orgulhosa, ao constatar isso.
apareceu de novo, dessa vez com uma jaqueta de couro preta em cima da camisa e carregando outra no ombro com os dedos.
— Ele vai levar minha mala para o hotel, então aproveitei para pegar isso para você — ele me estendeu a outra jaqueta.
— Não precisa, já peguei muita roupa sua para um dia só — recusei.
— Por isso você precisa dela, para completar o visual — sorriu e senti o sorriso brotando na minha boca instantaneamente. Estava feito boba o vendo sorrir. Peguei a jaqueta e a coloquei.
Quase tive um treco quando ela me vestiu por completo. O cheiro dele me envolvia, como se ele estivesse me afundando em um abraço quentinho. Fechei os olhos e suguei o ar feito uma viciada, me deixando levar por essa fantasia e aproveitando aquele cheiro de homem cheiroso. O cheiro dele era de algum shampoo adocicado e desodorante masculino. Quando cheguei perto dele mais cedo, não tinha sentido tão presente assim, mas agora que estava cercada por itens dele, eu queria esse cheiro todo em mim para sempre.
Quando abri os olhos, ele me olhava com aquele sorriso de quando tem algo estranho e engraçado acontecendo na sua frente, como me olhou quando apareci vestindo suas roupas. Eu não me incomodava de bancar a palhaça agora, desde que me mantivesse abastecida com aquele cheiro.
— Vamos? — ele chamou.
Concordei com a cabeça e o segui pelas portas da loja.
Andamos lado a lado sem falar nada. fumava e observava a rua, eu fingia não o estar observando.
Meu corpo todo estava em alerta a qualquer movimento dele e respondia como se tivesse sido chamado quando ele apenas erguia a mão para ajeitar o cabelo. Reagia até quando ele erguia o cigarro até os lábios. Por vários momentos, não pude controlar a vontade de ser um cigarro.
Pensar nisso não estava me ajudando a manter o silêncio. Vez ou outra tive que apertar o passo por ficar perdida em todo o autocontrole que estava reunindo.
Um pouco menos de dez minutos de caminhada depois, entramos pela porta do restaurante que estava quentinho e sem vento de chuva. Receberam-nos, pediu uma mesa para dois em inglês que permitisse fumantes e imediatamente nos conduziram para uma perto da janela da rua — que estava fechada por conta da chuva, mas permitia ver a vista.
Ele se sentou de costas para a parede e ao seu lado tinha um abajur que refletia a luz, realçando seus olhos. Esses malditos olhos seriam minha perdição, eu tinha certeza.
A garçonete nos entregou dois cardápios e nos deixou sozinhos.
— O que você vai querer? — perguntei a ele. — Porque vou querer o mesmo, não estou acostumada com comidas dessa... estirpe.
Ele sorriu.
— Hm... Talvez esse bacalhau a brás? — ele estendeu o cardápio na mesa e apontou para que eu pudesse ver. — Li em um livro de turismo daqui de Portugal que é um dos pratos mais famosos. Para acompanhar, acho que a alheira de mirandela, que também quero provar.
— Tudo bem, por mim — sorri, tentando levar a confiança para nossa conversa.
Ele chamou a garçonete levantando a mão. Para beber, ele pediu vinho verde e eu pedi uma garrafa de coca-cola de cereja. Talvez não fosse a melhor combinação com a comida, mas era isso ou beber água. Não estava em posição de arriscar minha sobriedade com uma gota sequer de álcool. Além do mais, eu tinha escutado muito sobre a coca de cereja dos anos 90, então nada mais justo do que provar no meu primeiro dia ali.
A chuva começou a cair com tudo enquanto eu olhava pela janela.
— Então... — ele disse e já soube que estava indo direto ao assunto para o qual estávamos reunidos ali. — Eu não queria falar na frente do meu produtor, porque se quiser podemos discutir o melhor para esse bebê. Mas não é meu, tenho absoluta certeza — falou com calma, não em tom acusatório ou repreensivo como era esperado quando descobrisse que era mentira. Porém, mesmo assim engoli em seco. A minha mentira frágil desmoronando bem debaixo do meu nariz. — Sei disso porque faz algum tempo que não bebo para perder totalmente a consciência. Então tenho plena ciência de cada mulher com quem dormi. Eu teria lembrado de você. — Ele alcançou o maço de cigarros dentro da jaqueta que pousava no encosto da cadeira e ndeu um. — Só que acho que, para inventar isso, você deve estar precisando de ajuda e não vou negá-la. Quero apenas que me conte por que escolheu a mim.
É... Eu devia ter imaginado que ele não acreditaria. Até porque lembro de ter lido uma entrevista que ele dizia que, no começo da banda, eles eram muito novos para pensar em dormir com as milhares de garotas que surgiam e sempre estavam bêbados demais. E, agora, claro que o de 24 anos tinha passado dessa fase — ele era muito focado na carreira, a banda era um projeto exclusivamente dele desde o ano passado.
Suspirei, deixando minhas costas descansarem no encosto da cadeira de madeira. Era melhor falar logo a verdade porque não podia sustentar a mentira por mais tempo, era horrível nisso e realmente precisava de ajuda. Se ele não quisesse mais me ajudar por causa dessa mentira, o que me restava era itar e ver o que poderia fazer a partir daí.
— ‘Tá, você tem razão — admiti. — Não tem bebê nenhum, nem seu e nem de ninguém — pontuei, mexendo nervosamente no zíper da jaqueta. — Sou só eu. Mas não tenho para onde ir, realmente larguei tudo para vir até aqui.
Não era mentira, eu tinha largado tudo por ele. Seria melhor se simplesmente começasse a usar verdades adaptadas a partir de agora, mentira apenas para os casos estritamente necessários. Ele parecia surpreso ao ouvir isso, e percebi porque olhava dentro dos olhos dele, o seu rosto continuava a demonstrar nenhuma emoção.
— Gastei meu último dinheiro com a passagem de avião — menti, mas só para que ele se situasse e pareceu finalmente convincente. — Com toda a situação do hotel, eu não tenho nem mais passaporte ou roupas, então você pode entender meu desespero — arquitetei essa “verdade adaptada”, esperando que ele realmente se convencesse. — Não posso contar o motivo que me fez fugir de casa, mas soube que você estaria por aqui e planejava passar na sua sessão de autógrafos, então calhou de ser no mesmo dia que fui posta para fora do hotel. — Mordi o lábio inferior. — Desculpa por ter mentido, não quero me aproveitar de você, só tenho algumas razões pelas quais não quero voltar para casa.
Essas razões consistem em: não quero mais viver em uma realidade onde você não exista. Completei, mentalmente.
Ele me observava, atento, enquanto fumava. Tanta gente fumava em 1990 que basicamente a área de fumantes era todo o restaurante e a fumaça presa no ambiente me deixava meio intoxicada.
— E você quer minha ajuda para não voltar, é isso? — disse, batendo com os dedos no cigarro, em cima do cinzeiro, para tirar o excesso de cinza da ponta.
Não pensei nessa parte.
— Erm... — Fiquei com um pouco de receio de parecer folgada, mas era a única alternativa. — Acho que sim, mas só até conseguir um emprego e juntar dinheiro o suficiente para me manter — disse, com vergonha de pedir isso para qualquer pessoa, mas especialmente para meu ídolo. — Eu posso ser proveitosa! Sei que você precisa de alguém para te ajudar ao longo da promo do disco novo, posso falar com o Börje para ser sua assistente full-time. É só uma ideia. — Fiz questão de acrescentar essa última parte.
Sua mão repousava abaixo do maxilar e seus olhos observavam a janela, pensativo. Dizer que tive medo da sua resposta seria minimizar o que estava sentindo, parecia que as borboletas no meu estômago estavam forçando sua saída pela minha boca enquanto ele parecia pensar. Aquele seria meu fim ou meu começo nos anos 90, então tinha muito com o que me preocupar.
— Ok, me parece um bom plano — disse, por fim. Arqueei minhas sobrancelhas em surpresa. Ok, isso tinha sido relativamente fácil para quem pensou que seria a parte mais difícil.
Depois da minha reação inicial, sorri de lado. Minha vontade era de simplesmente voar nos braços dele e apertá-lo até sentir que agradeci o suficiente. É claro que não faria isso, não iria jogar a chance que foi me dada no ralo tão fácil.
— Então temos um acordo? — perguntei. Ele concordou, mexeu no cabelo e retribuiu o sorrisinho de lado. Estendi minha mão para ele e demos um aperto, oficializando o acordo. Minha pele reagiu a dele novamente, por isso fui eu quem recolheu a mão primeiro e com certo receio. Como disse anteriormente, sou fanfiqueira, então pensei que era apenas figurativo esse contato que vivem descrevendo, mas a pele dele estava me provando que não. O choque existia e era assustador pensar na dimensão que aquele pequeno contato provocava em mim.
Ele apagou o cigarro no cinzeiro quando trouxeram a comida e as bebidas. Ao terminarem de colocar todas as porções em cima da mesa, ele pegou o prato que estenderam para ele e me entregou.
— Obrigada — agradeci, sentindo o sangue se concentrar exclusivamente no meu rosto. Foi uma coisa inocente, por que estava corando?
— Sem problemas — ele respondeu, servindo o próprio prato.
Após ele terminar, servi o meu. Começamos a comer e reparei que ele me olhava, retribuí o olhar, sem saber o motivo de estar me encarando. Será que minha boca estava suja? Passei o guardanapo de pano por ela.
— Vou pedir para o Börje te passar a minha agenda amanhã de manhã — quebrou o silêncio. — Então escolha um horário livre para que possamos comprar roupas para você. É melhor andar com roupas mais... Ahm... digamos que confortáveis quando me acompanhar em entrevistas e outros compromissos.
Larguei o guardanapo e olhei para as roupas dele que eu vestia. Eram roupas que claramente ficavam grandes em mim e por isso engraçadas. Por mais que eu tenha feito um bom trabalho tentando disfarçar que não eram minhas, as pessoas que cruzaram o meu caminho devem ter entendido tudo. Corei de novo ao pensar em Tiago perguntando se eu era namorada de , pudera...
— Bom, estou confortável. Porém, você tem razão, não posso usá-las para sempre — respondi, tomando minha coca-cola de cereja que concluí ser a melhor bebida que já provei. — Obrigada, — agradeci, ele arqueou uma sobrancelha enquanto mastigava. — Obrigada por concordar com isso tudo e se dispor a me ajudar, sei que é meio maluco. Eu tenho 25 anos, fugi de casa e vim até Börje de pijama. Ainda contei essa história absurda de gravidez. — Larguei o garfo e escondi meu rosto com ambas as mãos, pensando que o que parecia tão bom plano agora vinha se provando um motivo para me envergonhar tanto. — Enfim, você não precisava me ajudar e mesmo assim o fez. Então, nunca serei grata o suficiente.
— Tudo bem, eu já fugi de casa antes algumas vezes, mas não fui tão longe quanto você. Deve estar sendo difícil — ele disse, continuando a comer.
Ah, você não conseguiria acreditar se eu te contasse.
Concordei com a cabeça e olhei para a janela.
Aquele parecia até mesmo um encontro, para quem nos visse lá da rua e não soubesse que tínhamos acabado de nos conhecer pessoalmente. É engraçado pensar que não sabia nada sobre mim, já que eu sabia coisas bem importantes sobre ele.
Acho que, se o amor platônico tivesse uma cara, com certeza seria a minha. Ele estava sentado do outro lado da mesa em toda sua glória, tudo que eu pensava era em não vacilar e dar uma de fã obcecada, mas a cada minuto se provava mais difícil executar essa tarefa. Ainda mais porque ele continuava a jogar aquele inferno de cabelo lindo para trás com um charme desnecessário.
Assim que terminamos de comer, ele pagou a conta com cheque — sim, com um cheque! — e nos levantamos, indo para a porta. Ele não quis saber mais sobre mim, nem eu quis saber sobre ele. Quer dizer, seria natural que ele quisesse saber mais sobre mim para ter certeza de que não estava empregando uma serial killer, mas ele parecia cansado demais para pensar em fazer perguntas. Pude ver só pelas suas feições.
— Para onde estamos indo? — perguntei, para confirmar que ele não era um louco me carregando para algum cativeiro.
— Para o hotel — explicou e concluí que era óbvio esperar que fôssemos para onde ele estava hospedado. — Apesar de que eu estou duvidando que um táxi vá parar para a gente com essa chuva — ele comentou.
E ele estava certo, esperamos por uns 30 minutos debaixo da fachada do restaurante. Por sorte, a jaqueta de couro dele estava tampando o vento forte daquela tempestade noturna. Fiquei pensando em como faria, acho que iria sugerir que ele descontasse de um possível pagamento o preço do hotel, já que precisaria dormir em algum lugar e não tinha dinheiro agora para pagar. Viajar no tempo era uma enrascada quando você era leiga, mas estava gostando de estar ao lado do homem que admiro.
— Tenho uma ideia, mas você precisa correr agora e rápido — ele interrompeu meus pensamentos, olhando em direção à chuva.
— Por... — Não tive a chance de continuar a pergunta, ele pegou na minha mão e me puxou para correr em direção ao relento. Corremos e pingos violentos de chuva ricocheteavam em meu rosto. Ele virou para mim, sorrindo, já com o cabelo e o rosto encharcados. Meu coração errou algumas batidas com toda a certeza.
— Mais rápido, ! — ele gritou e me puxou mais ainda em direção à chuva que nos maltratava. Eu só entendi o que estávamos fazendo quando consegui ver em qual direção estávamos correndo, tinha um táxi parado com uns três passageiros desembarcando mais à frente.
A cada passo nosso, uma poça de água espirrava. Não tinha uma parte minha que não estivesse molhada, eu comecei a rir de gargalhar. Era uma felicidade boba, mas eu não me lembrava da última vez que tinha tomado banho de chuva por vontade própria, mas naquele momento eu estava fazendo isso com nesse mundo incrivelmente velho.

***


abriu a porta com a chave, logo em seguida colocando-a no interruptor e ligando a luz e ar-condicionado do quarto inteiro. Ele entrou e me deu passagem, depois fechou a porta atrás de mim.
— Bom, se você quiser privacidade, eu posso dormir com o Börje na casa do amigo em que ele ‘tá hospedado. É que realmente esse era o último quarto, o hotel ‘tá cheio para uma convenção. — Coçou a nuca.
Passeei meus olhos pelo local, era realmente um quarto pequeno e sem privacidade para dois desconhecidos, mas eu não iria mandá-lo sair do quarto que ele mesmo pagou. Na verdade, estava adorando a ideia de ficar presa com ele por mais um tempinho.
— Não, ‘tá tudo bem. Obrigada por me deixar ficar aqui — falei.
Ele concordou com a cabeça e pegou uma toalha no banheiro, secando o cabelo e o rosto. Peguei a que estava em cima da cama e tentei secar um pouco as roupas que eu vestia.
Acho que nunca fiquei sozinha com um homem em um quarto de hotel sem ser para fins sexuais ou que não fosse da minha família. A atmosfera logo mudou para mim. Ele estava abaixado, mexendo na mala, e eu olhava fixamente o tecido molhado grudando na pele de suas costas, pensando em como seria ver aquele abdômen desnudo pessoalmente. Quando eu tinha encontrado fotos dele dos anos 80 sem camiseta, já tinha sido um choque, afinal, eu era uma fã e era . Ele era gostoso e sabia que era. Salvei todas no meu celular para admirar no ônibus, foram muitas horas gastas fazendo isso. Então, eu conhecia aquela barriga e me causava calafrios bons só de imaginá-la na minha frente. Mesmo que ela tivesse coberta pelo tecido da camiseta, sabia o que esperar.
Era melhor eu guardar esse tipo de pensamento na parte mais sombria, escura e distante do meu cérebro de novo, porque não era muito confiável pensar essas coisas com ele molhado na minha frente.
— Pode ir primeiro — ele me estendeu uma muda de roupas e apontou com a cabeça para o banheiro.
— Obrigada — eu disse, logo em seguida me trancando longe daquele homem.
Ele devia me achar patética com esse tanto de “obrigada”, parecia que a única coisa que eu sabia fazer era agradecer.
Suspirei, me encostando na porta.
Qualquer força divina, me ajude. Eu estou tendo o sonho mais louco da minha vida.
Comecei a desdobrar as roupas da pilha que ele tinha me dado, uma camisa do Motörhead desgastada e uma samba-canção listrada em preto e vermelho. Mais uma vez, eu teria que me virar com as roupas dele.
Entrei no chuveiro e abri só o registro quente. Era bem século 20 ter um registro para água fria e outro para água quente, no meu apartamento inglês era apenas um que cumpria as duas funções. Eu lembro de quando era criança e ficava indecisa do quanto abrir de cada, mas a maioria não funcionava os dois no Brasil, então era água escaldante ou gelada, sem meio termo. Aquele funcionava bem, porque a água estava tão quente que começou a pinicar minha pele. Deixei isso acontecer, para ver se esquecia todos os pensamentos que o envolviam sem camisa embaralhados com a confusão de estar em 1990 que ainda rondavam minha mente. Lavei o cabelo com shampoo e condicionador do hotel, depois me esfreguei com o sabonete.
Claro que não rolaria nada entre nós dois. Porém, só de estar ali, sozinha, com ele, me deixava aflita pela chance.
Para. Se controla.
Esfreguei mais a pele que insistia em se arrepiar ao imaginar seu peitoral nu.
Esquece isso.
Eu não deveria estar pensando nessas coisas enquanto estava perdida em um ano que nem nasci ainda. Deveria era estar preocupada em como acordar e sair dali. Se isso fosse um sonho, não teria nada de normal a cada segundo que se passava. Temia muito pela minha sanidade.
Sequei o cabelo com o secador preso na parede e tentei secar um pouco minhas roupas de baixo no aquecedor de toalhas para poder reutilizá-las. Vesti suas roupas e dessa vez serviram um pouco melhor, até porque não era uma calça que cobria suas pernas maiores do que as minhas.
Saí do banheiro e ele tinha aberto um pouco da janela para fumar. Na sua mão, tinha um livro que dava para ver que ele lia antes que eu abrisse a porta. Agora eu era alvo de sua atenção.
— Ficaram melhores do que as outras — eu disse, coçando nervosamente a nuca como ele tinha feito minutos antes.
— Tenho que concordar.
Coloquei as peças molhadas para secar no aquecedor do quarto. Ele voltou a ler o livro. No chão, tinha um cobertor estendido, um travesseiro e uma manta dobrada. Parecia confortável, então me abaixei para me deitar.
— O que está fazendo? — ele perguntou, me assustando.
— Me deitando? — falei em um tom óbvio e ele franziu a testa.
— Não, não. Quem vai dormir aí sou eu.
— Claro que não! Você já fez muito por mim hoje, eu não poderia roubar a sua cama. Pode deixar que eu durmo aqui — respondi, já me ajeitando em cima do cobertor.
— Você ‘tá roubando minha cama deitando aí — ele riu. — Eu insisto que você fique na cama de verdade. Jamais conseguiria dormir, sabendo que deixei uma mulher deitar no chão enquanto estou em uma cama, seria totalmente mal-educado da minha parte.
Já que ele queria assim, eu não iria retrucar mais. Estava mesmo morrendo por uma cama de verdade, com toda a loucura que passei naquele dia. Parecia um bom lugar para cair no sono e sonhar outra coisa que não envolvesse meu ídolo morto. Deitei na cama de casal e todas as minhas juntas gritaram “aleluia”. Era uma daquelas camas que parecia que você estava deitado na nuvem. Soltei um gemido de satisfação e ele me olhou, usando o sorriso de “te acho muito estranha”. Hoje o prazer de me achar estranha não foi exclusivamente de Shandi, como costumava ser.
Ele terminou de fumar e pousou o livro em cima da TV, pegando sua própria muda de roupa e se trancando no banheiro.
Eu adorava livros. E eu sabia que recebia livros de um autor de ficção envolvendo mitologia nórdica e fantasia. Ele tinha escrito a música principal do álbum com base no ambiente que se passava esses livros, inclusive a que ele transformaria em um vídeo. Fiquei num impasse interno entre ir ou não até a televisão para pegar o livro. Metade de mim dizia para não ir, porque não era da minha conta e para não ser tão curiosa assim. A outra metade queria levantar e cheirar o livro para ver se tinha cheiro de livro ou de — sendo que os dois cheiros eram os favoritos do meu nariz.
Vou.
Não vou.
Vou.
Não vou.
Vou.
Não vou.
Vou.
Não vou.
Vou.
Não vou.
Levantei e deitei tantas vezes que, quando levantei, quase corri para pegar o livro de ansiedade. Olhei aquela capa preta, digna de sebo do mundo de 2019. Não deu tempo nem de levá-lo até meu nariz, tinha terminado e abria a porta do banheiro, me pegando no flagra.
Devolvi o livro e comecei a fingir que estava ligando a televisão. O problema é que eu não sabia mexer em TVs de girar o botão, então paguei de maluca mais uma vez.
— Quer ajuda? — ele perguntou ao me ver apanhando com os botões.
— Sim, eu nunca mexi em uma dessas — respondi, me afastando para ele ligar o aparelho. Ele ligou apertando o botão, era só apertar.
— Eu não sabia que no Brasil não tinha televisões.
Engraçadinho.
Deitei de novo, sem responder à provocação, tentando prestar atenção em um jornal português enquanto o cheiro de um muito cheiroso invadia meu nariz sem pedir licença.
— Meu Deus, como você ‘tá cheiroso — falei, sem perceber que isso ia sair da minha boca e não continuar nos meus pensamentos.
Eu me surpreendi com o som que ecoou pelo quarto. Uma gargalhada. Essa era a primeira vez que eu o ouvia gargalhando, também ri, esquecendo a vergonha por ter falado isso e sendo grata porque tinha provocado aquela reação.
— Obrigado — ele respondeu.
— Não era para ter verbalizado isso, mas por nada — comentei, rindo, e, em seguida, escondendo meu rosto com a mão, depois abrindo os dedos para fitá-lo.
— Tudo bem, posso fingir que não escutei — ele piscou, penteando o cabelo molhado com uma escova que estava em sua mala.
Se ele soubesse o perigo de piscar para mim quando eu estava tendo pensamentos tão estranhos, pediria é que eu fingisse que não vi aquilo.
Ele usava uma camiseta verde-escuro e uma calça de moletom preta que realçava seu bumbum típico de europeu. Não posso mentir que era grande coisa, mas qualquer mínimo detalhe dele estava me deixando doida — e olha que nunca tive uma libido tão boa assim, na maioria das vezes eu tinha que me forçar a sair e sentir atração.
Enrolei-me todinha no edredom pesado, de forma a não conseguir fugir dali e me atirar nele. Já ele, foi se deitar na cama improvisada do chão, carregando o livro de capa preta consigo.
— ‘Tá lendo o quê? — perguntei para ele, resolvendo usar a abordagem mais convencional do que olhar escondido. Até porque a primeira opção não tinha dado certo e eu era curiosa, não conseguiria dormir enquanto não soubesse o que ele estava lendo.
— Um livro que um americano muito legal me enviou. ‘Tô relendo para poder escrever o roteiro de um vídeo — ouvi a voz dele responder, não conseguia o ver.
— A música principal do álbum — comentei baixinho.
— Sim, como você sabe? — ele perguntou, curioso.
Eu não sabia que aquilo era um segredo ainda.
Eu ouvi você explicando para as pessoas no Dino’s — improvisei.
— Ah, é verdade.
Suspirei. Essa foi por pouco.
— Esse vídeo... Você fez algum contrato com uma gravadora ou vai fazer por conta própria? — perguntei, só para confirmar o que eu já sabia.
— Gravadoras têm muita burocracia, quero fazer algo em que eu tenha o controle.
Então era verdade o que eu soube, ele iria desembolsar 5 mil dólares do próprio bolso para gravar esse vídeo. Os responsáveis pela gravação iriam sumir com 60 horas de gravação e retornar para ele só umas 3 depois de muito tempo, nunca o dando a chance de rever e escolher as melhores partes sozinho.
Não sei se eu tinha a capacidade de interferir em coisas que eu sabia que iriam acontecer e nem se poderia fazer isso, então preferi ficar quieta para não revelar que sabia demais.
Eu via as imagens da TV e não prestava atenção, tentando juntar tudo o que sabia sobre viagem no tempo com base no que li e vi até sumir do meu apartamento na Inglaterra.
Um tempo depois, finalmente peguei no sono, desejando que aquilo não fosse um sonho e que o outro dia ainda fosse 1990 e não mais um dia sem graça em 2019.

Capítulo 4 - Ace of Spades

Estendi minha mão para pegar meu celular. Quando aproximei o objeto do rosto, percebi que estava ligado na tomada e era um relógio de cabeceira que marcava 9 horas da manhã. Devolvi o objeto para o lugar e me sentei, coçando os olhos. Olhando ao redor, logo percebi que aquele não era meu quarto e não era o ano que acordei no dia anterior. Imediatamente um sorriso apareceu no meu rosto 一 detalhe: eu nunca acordava feliz. Não sou mal-humorada quando acordo, apenas uma pessoa que se sente sempre sonolenta. No entanto, o motivo da minha felicidade era estar em mais um dia de 1990.
Lancei-me do outro lado da cama para ver se ainda estava ali, mas não tinha mais cama improvisada. Tudo estava dobrado perfeitamente em cima da mesinha que ficava embaixo da janela. Um papel amarelo jazia ali também.
Provavelmente, ele tinha deixado um bilhete, já que não existia mensagem no iMessage ou WhatsApp.
Levantei e peguei o papel rasgado das páginas amarelas.

Estou no restaurante dando uma entrevista. Desça para tomar café, Börje está esperando por você.
- .

Espreguicei-me. Tinha sido uma noite bem-dormida, sem sonhos e eu me sentia extremamente descansada. Pensei que ia demorar a dormir por causa da presença do , mas o cansaço realmente tinha me pegado de jeito.
As roupas que eu tinha deixado no aquecedor estavam secas e prontas para serem usadas novamente. Escovei os dentes com a escova descartável que o hotel tinha fornecido, penteei o cabelo com a escova que com certeza pertencia a por causa da quantidade de cabelo que havia ali e deixei o quarto. Ele tinha os fios mais bonitos que já tinha visto, reluzia de longe e era uma das características que mais chamavam atenção quando o observava de longe. Tive que me controlar para não surtar enquanto segurava a escova que escovava aquele cabelo incrível.
Quando cheguei ao restaurante do hotel, a primeira pessoa que vi foi justamente . Ele estava de costas, falando e gesticulando com uma mulher que apontava um gravador para a boca dele.
Börje nava para mim em uma mesa afastada ao meu lado direito.
一 Bom dia! 一 ele disse quando cheguei perto. 一 Dormiu bem?
一 Bom dia 一 sorri. 一 Mais do que bem.
一 Que bom. Fico feliz em te ver de novo, principalmente porque sei que agora vai ser uma figura recorrente 一 sorriu. 一 me contou que você precisava de um emprego e de um lugar para ficar, por isso te contratou.
Ele não demonstrou nenhum estranhamento, o que indicava que ele itou bem também.
一 Sim, foi muito gentil da parte dele 一 respondi, arrastando uma cadeira e me sentando na mesa, de frente para ele.
一 E sinto muito pelo bebê. 一 Ficou sério de repente. 一 Ele me contou que perdeu antes de chegar aqui, mas que ficou com medo de contar.
Virei a cabeça, confusa. Por que será que tinha dito isso para ele?
一 Ah, tudo bem. Já é algo que superei 一 dei uma resposta neutra. Depois, se me lembrasse, eu iria perguntar o que ele tinha dito especificamente para Börje, assim eu poderia corroborar com mais uma “verdade adaptada”. 一 Ele disse que você iria me passar a agenda, então vamos ao trabalho.
一 Sim, sim. Você pode comer algo enquanto te passo 一 ele disse, apontando para a mesa gigante no canto cheia de comida. 一 Imagino que esteja com fome.
Concordei com a cabeça e fui me servir. Passei o olho em super concentrado na mulher. De repente, uma sensação de dèja vu me invadiu. Olhei de volta para a mesa do Börje, uma câmera antiga jazia ali em cima e eu não tinha percebido antes. De repente, tudo fez sentido, já tinha visto uma cena no documentário gravada por Börje de dando essa entrevista. A mulher tinha o rosto bem característico, então me lembro com perfeição de todo o cenário.
O documentário tinha sido gravado durante a promoção do disco atual, ou seja, ao longo de 1990, durante a passagem de por vários países europeus. E, depois desse dèja vu, sentia que praticamente tinha mergulhado dentro desse documentário.
Eu, de fato, estava em 1990 e cada vez mais a ficha estava caindo.
Não estava muito preparada para ficar tendo visões de cenas que já tinha visto. Era estranho e me deixava tonta, parecia que eu ainda era uma mera espectadora, mas agora eu me movia, sentia cheiro e vivia aquela realidade.
Retornei à mesa, pousei o prato e a xícara no tampo, sentando-me em seguida. Apontei para a câmera que jazia ali.
一 Posso te ajudar a gravar o 一 falei para Börje. Eu estava curiosa para ver se mais cenas apareciam em 2019 no documentário quando eu voltasse. Cenas gravadas por mim.
Ele assentiu prontamente e começou a me ensinar a mexer em todas as configurações da câmera, o que era bem difícil, porque tinham coisas ali que nem precisávamos mexer mais 一 era simplesmente automático. Ele disse que iríamos nos revezar para gravar , já que ele tinha outra câmera e eu podia ficar com essa.
Finalizei meus ovos mexidos e bebi meu suco de laranja enquanto Börje me ensinava tudo sobre a agenda do filho dele. Desde como falar com hotéis para repassarem as ligações com entrevistas ao quarto, até deixar espaços livres na agenda para conhecer a cidade, porque gostava de sair esporadicamente. A agenda dele era bem tranquila, nada comparada a um bicho de sete cabeças como imaginava que seria a de um artista gigante, tipo o Harry Styles.
Meu Deus. Harry Styles não tinha nem nascido ainda.
Fiquei triste por não poder ouvir a voz aveludada dele pelos próximos vinte anos. Já tive um crush platônico no Harry também, quando gostei da One Direction. Tinham muitas fanfics Larry que eram ótimas, ocuparam parte do meu tempo durante alguns meses.
se sentou entre nós dois, carregando consigo uma xícara transparente de café com leite.
一 Olá 一 Börje disse e ele nou com a cabeça, cumprimentando-o de volta. 一 Já passei tudo para ela, inclusive as configurações da câmera para ela me ajudar a gravar você.
一 Perfeito 一 ele respondeu, bebendo o conteúdo da xícara. 一 E como ficou o que te pedi ontem?
Ele tinha virado para mim.
Lembrei que ele tinha falado para pegarmos um espaço livre e comprar roupas para mim, então vasculhei nervosamente a agenda de capa vermelha que Börje tinha me entregado.
一 Tem um tempo livre agora, até quatro da tarde.
一 Você já acabou de comer? 一 perguntou, concordei com a cabeça. Ele bebeu rápido todo o resto do café com leite. 一 Então vamos.

***


Andando pela loja, percebi que tudo aquilo parecia o figurino dos personagens de Friends e também de Buffy The Vampire Slayer. Era absolutamente incrível ver toda a mudança. Não conhecia as lojas de departamento de Portugal, mas tinha certeza de que as que passamos não existiam mais ou trocaram de nome ao longo dos quase 30 anos que se passaram.
Se em 2019 eu tinha dificuldade para encontrar calças que se adequassem ao meu corpo na Europa, imagina nessa década em que o padrão era extremamente diferente. O biotipo europeu era muito destoante da variedade de corpos que havia no Brasil. A globalização só se aprofundou mais na segunda metade dos anos 90 e, principalmente, nos anos 2000, quando um número bem maior de pessoas conseguiram imigrar de outros continentes e montar uma vida nova na Europa, se bem me lembrava.
Ele tinha me dito para escolher várias roupas, porque teríamos um longo caminho para a promoção do álbum novo. Então, peguei blusas de gola alta com e sem manga, vestidos de verão e de inverno, meias-calças, saias, calças jeans e plissadas, casacos e mais um monte de coisas necessárias para formar um guarda-roupa do zero.
Enquanto eu estava na saga de provar todas essas roupas, ele me esperava sentado no banco junto com vários outros homens que também esperavam suas mulheres nos provadores. Constatar isso me fez sorrir, porque pude me iludir momentaneamente que namorava meu ídolo.
Só que, na realidade, agora sou sua assistente e ele era um cara muito bondoso por acolher uma sem-teto.
一 Terminei. 一 Saí do provador carregando várias sacolas de loja com roupas.
Ele tirou os olhos do livro de capa preta que lia, se levantou, pegou algumas sacolas para me ajudar e fomos para a fila do caixa.
一 Como foi a entrevista de hoje cedo? 一 quebrei o silêncio.
一 Hm... normal 一 ele respondeu, olhando para as pessoas na nossa frente.
一 Normal como? 一 insisti, querendo conhecê-lo.
一 Mesmas perguntas, mesmo papo de “onde estão os outros músicos da banda?” e esse tipo de babaquice.
一 Não gosta muito de trabalhar em grupo, hein? 一 dei um empurrãozinho nele com o ombro, brincando com o fato de ser um lobo solitário em sua banda.
一 Não, não gosto muito de pessoas interrompendo o ciclo natural que eu levo na minha vida. 一 Senti que de alguma forma essa foi uma indireta e um aviso. 一 Fazer música em grupo só me atrapalha, não posso trabalhar de madrugada, porque tenho que esperar os outros, e essa é a hora que justamente tenho mais inspiração, depois de... 一 pigarreou, meio tímido, meio de ego inflado 一 sair com alguma mulher. Então, é, prefiro eu mesmo trabalhar no meu tempo e tomar minhas próprias decisões.
Desmanchei o sorriso e fiz cara feia.
一 Parece algo que você diria mesmo 一 resmunguei, baixinho, me lembrando das respostas ácidas que dava nas entrevistas sobre mulheres e inspirações. Ouvi-lo falando sobre sua vida sexual me causou uma onda de ciúmes nada agradável. Eu não deveria estar sentindo ciúmes, isso era perigoso.
Ele soltou uma risadinha sarcástica, indicando que ouviu o que praticamente sussurrei.
一 Não vai me dizer que você acompanha essas merdas que soltam sobre mim? 一 perguntou.
一 Pode-se dizer que sim 一 respondi, já com um pé atrás de onde aquela conversa nos levaria e pelo tom sarcástico dele.
一 Pura merda da pior qualidade 一 ele disse, ainda sem olhar para mim, e sorrindo. 一 Eu não respondo praticamente nada da minha vida pessoal que seja cem por cento verdade. Me ajuda a manter minha identidade em segredo.
Seu tom presunçoso serviu para me fazer acordar um pouco. Eu andava flutuando muito sobre estar com meu ídolo e acabei me esquecendo que ele não se esforçava para ser perfeito, ele se esforçava para ser misterioso. Isso era horrível para os fãs, visto que ele morreria cedo demais e ficaríamos com quase nada de material. Fora que sou uma crítica assídua desse comportamento dele, acho digno de um babaca.
一 E o que você esperava? Que a gente não acreditasse? Você não fala nada sobre si e eu sou uma fã que quer saber tudo sobre o meu artista favorito, é assim que eles ganham o seu público. E isso faz parte de ser um artista completo, . Você que tem que mudar sua imagem e não deixar espaço para que façam isso 一 respondi, andando até a moça do caixa e deixando um absorto para trás. 一 Mas não precisa se preocupar, a gente pode trabalhar nisso juntos, fiz alguns cursos de marketing na... na... biblioteca.
Me segurei na hora de falar “na internet”, ele apenas soltou uma risadinha baixa e andou até mim, sem responder. Não saberia dizer se ele soube ou não que tinha a intenção de retrucar, mas com certeza não, ele só permaneceu olhando para a frente com um meio sorriso. Claro que a minha ideia era mirabolante, falar mais sobre ele mesmo? Sem chances, ele não facilitaria que formassem uma pessoa por trás de quem ele criou, que tinha coisas básicas como um nome, um apelido, um endereço e até mesmo um aniversário.
Fiquei sem graça por ser o motivo dele desembolsar todo aquele dinheiro, mas jurei que iria ressarci-lo assim que recebesse meu primeiro salário. Ele pagou e saiu carregando todas as minhas sacolas, encontramos Börje do lado de fora da loja.
一 Ah, aí estão vocês! 一 ele sorriu para a gente e encarou as sacolas na mão do filho. 一 Precisa ir em mais alguma loja, ? 一 Börje me perguntou. Neguei com a cabeça. Fiz questão de pegar tudo nessa loja para montar uma mala da estação. Era primavera, mas já estava bem quente aqui em Portugal, se assemelhando muito ao Brasil. 一 Então, vamos, tenho uma coisa para mostrar para vocês.
Saímos do shopping e fomos a pé até uma pequena galeria de lojas que tinha ali perto. Entramos em mais uma daquelas lojas de vinis, fitas cassetes, camisetas e outras roupas alternativas. Poucas pessoas estavam ali, mexendo em algo nas prateleiras.
一 Olhem 一 Börje apontou para uma parede em exposição com várias cópias do vinil do disco novo da banda de , em cima escrito em português “Lançamentos”. Tinham camisetas também e alguns patches para costurar em coletes. 一 Falei com o dono da loja e combinamos uma sessão de conversa com os fãs amanhã. Se puder colocar na agenda, 一 piscou para mim.
Virei-me para procurá-la no bolso de trás da calça e anotei o que ele falava na hora exata.
já olhava outros discos do Black Sabbath enquanto eu terminava de registrar o compromisso. De alguma forma, parecia estar cansado de prestigiar e admirar seu próprio trabalho. Cheguei perto dele quando acabei. Ao saber que estaria aqui amanhã, seria uma oportunidade perfeita para que conhecesse Tiago.
一 Eu conheci um garoto ontem que é seu fã, ele me ajudou a chegar à loja para te encontrar 一 falei, encarando seus dedos deslizando pelas pontas dos vinis. 一 Me sinto meio que em débito com ele por esse favor, então... Será que posso convidá-lo para conversar contigo antes dessa sessão de amanhã?
一 Claro. Você que controla a minha agenda agora, eu só te obedeço 一 falou sem me olhar.
Olhei para o outro lado para sorrir. Mal cheguei e ele já queria acatar minhas ordens. Bem, aquela viagem no tempo seria até que fácil, então. Virei-me de novo para ele e ele estava mais perto de mim, ainda passando os olhos pelos discos. Fiz uma nova análise minuciosa dele. Seus olhos concentrados, seu nariz que se encaixava bem em seu rosto, sua boca bem delineada e sua pele bronzeada pelo sol da primavera. Ele era tão jovem, um ano mais novo que eu. Lembranças de fotos de um mais velho me invadiram, um dia ele não teria mais cabelos tão cheios, nem olhos sem marcas da idade e adotaria um cavanhaque para complementar o visual 一 um quase quatorze anos mais velho do que o atual. Se atualmente ele tinha 24, nessas fotos ele estava no final dos 30. Definitivamente envelheceria bastante durante esses anos, mas de uma forma boa e não estava falando isso por ser apaixonada por ele. Eu juro.
Ele olhava para os discos totalmente alheio às imagens que passavam pela minha cabeça e de como envelheceria. Afinal, ele só era um homem comum. Eu também não sabia como envelheceria e ficaria assustada se soubesse que alguém que apareceu do nada na minha vida dissesse que saberia até o dia que eu iria morrer. Seria errado contar detalhes da vida dele que ele nem sabia ainda? Eu poderia interferir e mudar o futuro ou estar ali estava premeditado assim que consegui viajar no tempo? Eram tantas perguntas... Não conseguia definitivamente pensar naquilo naquele momento. Estava saltitante demais para começar a me preocupar com a morte dele e questões relacionadas à viagem no tempo. Tinha certeza de que, assim que as coisas se rtassem mais, eu começaria a correr atrás.
Sentia como se fosse uma pendência minha tentar alertá-lo do que iria acontecer enquanto viajante, só precisava arranjar um jeito de falar isso.
Peguei um LP do Motörhead, aparentemente aquele era o último de estúdio lançado, visto que a etiqueta apontava o ano de 1987. O próximo era um dos meus favoritos, mas só lançaria em ‘91. O meu favorito mesmo era o The World is Yours, de 2010, um que nunca conheceria.
一 Você gosta? 一 perguntei para ele para espantar meu pensamento mórbido e para conhecê-lo mais. Para variar, eu já sabia que era certo que ele gostava de Motörhead, porque era uma das poucas bandas que o vi falando em entrevistas. Porém, não sabia de sua preferência pelos álbuns.
一 Sim. Não é meu disco favorito, mas é bom 一 respondeu, ainda sem me olhar.
一 Entendo perfeitamente, vai ser difícil algum superar o No Remorse. Mas vão ter alguns que se igualarão a ele. 一 Ele olhou para mim e eu imediatamente acrescentei. 一 Eu acho.
Como não demonstrava emoções tão facilmente, eu julguei que ele não percebeu mais um pequeno deslize meu. Era extremamente difícil falar tão no passado; se fosse na segunda metade dos anos 90, eu já teria mais domínio, mas a gente tinha acabado de sair dos anos 80 e algumas coisas ainda se confundiam na minha cabeça. Com certeza, tenho muito a aprender pela frente.
一 Reconheço a importância do No Remorse, mas, por incrível que pareça, não é o meu favorito. Na verdade, se eu tivesse que fazer um ranking, o No Remorse seria meu quinto favorito. Em quarto lugar, o Orgasmatron 一 ele procurou no meio dos LPs 一, em terceiro, Overkill. Em segundo, Motorhead. E finalmente em primeiro... 一 tirou um vinil e me entregou. 一 Esta obra de arte.
Era o of Spades, de 1980. Como fui esquecer que aquele disco já existia? Eu era uma grande fã de Motörhead, não me apaixonei com veemência que nem o fiz pelo sujeito à minha frente, mas gostava muito de escutar. Aparentemente, compartilhava do gosto popular, porque, até em 2019, as pessoas preferiam o of Spades.
一 O of Spades? 一 perguntei, me controlando para não fazer cara feia por achar superestimado.
Ele concordou com a cabeça. Não dei muita fé para o vinil que segurava porque um detalhe de nossa conversa na loja de departamento me passou pela cabeça, então decidi, depois de um momento de silêncio, voltar ao assunto.
一 Por que você escolheu ? 一 perguntei.
一 Eu precisava de um nome só para a banda. Quando tive que escolher um stage name, preferi que fosse um que quase ninguém tivesse escutado antes. 一 Ele olhou para mim de novo e pude contar todos os traços que formavam os seus olhos extremamente .
Mordi o lábio inferior. Eu sabia o motivo por trás do nome, porque o vi falando sobre isso em uma entrevista via telefone no final dos anos 90, mas o ouvir falando pessoalmente sem o ruído do telefone tornava tudo mais real.
一 E então, você prefere que eu te chame de ou de ? 一 perguntei, guardando o disco que eu mesma tirei ali do meio.
一 Pode me chamar como quiser. geralmente me chamam os meus amigos de muito tempo ou pessoas mais próximas. , todos que me conhecem pela minha música.
Não estava lá para forçar intimidade com ele. Eu tinha um emprego para manter, afinal de contas.
一 Bom, eu te conheço inicialmente pela sua música, então vou ficar com 一 respondi, optando por manter as coisas mais “profissionais”. Ele ainda segurava e analisava o disco. 一 Estou um pouco decepcionada com seu gosto musical, no entanto. O of Spades não é bom o bastante nem para entrar no meu top five 一 comentei com um sorriso provocador.
Ele sorriu de lado e se virou para mim, me analisando de cima a baixo. Tive vontade de me esconder com as mãos, mas mantive a postura para passar confiança.
一 Acho que você não ouviu direito. Deveria tentar de novo.
Ele se virou para os discos de novo e guardou o exemplar que segurava. Bufei, duvidando dele. Eu discordava totalmente do ranking dele, porque, para mim, eu ordenaria: The World is Yours, Kiss of Death, Motörizer, No Remorse e o Iron Fist. Nada de of Spades. Ele não tinha moral para me contestar, porque não conheceu os três primeiros, mas tenho certeza de que, se conhecesse, mudaria sua opinião.
Börje parou no meio de nós dois.
一 A convenção acabou hoje de manhã e ao longo do dia vai vagar alguns quartos. Quer que eu arranje um para você, ?
Concordei com a cabeça. Um pouco de privacidade, para começar, seria muito bom.
一 Ótimo. Então, vamos indo? 一 chamou nós dois.
一 Na verdade, podem ir sem mim. Eu vou dar uma volta por aí 一 se manifestou.
Pensei em voltar atrás e ir com ele, mas pareceria muito grudenta para alguém que ele conheceu há menos de 24 horas e sabia como ele precisava ficar sozinho às vezes 一 só os introvertidos se entendem. Além disso, seria um tempo legal para que eu me organizasse no meu novo papel de assistente até o compromisso de quatro horas.
Börje pegou as sacolas de roupas que tinha deixado no chão para mexer nos discos, me virei para ir embora e deixei os dois conversando.
Eu carregava três sacolas e Börje me encontrou do lado de fora para podermos pegar um táxi e ir embora. O taxista não falava inglês, então tive que me comunicar em português com ele enquanto Börje mexia no interior de seu pager. Ele murmurou algo sobre estar com problema, então havia aberto com uma chave de fenda e agora cutucava algo.
Seguimos viagem até o hotel em silêncio, Börje gostava de conversar, mas parecia muito entretido. Não me incomodei. A presença dele e de não era enfadonha 一 mesmo que eu fosse uma pessoa bem tímida e com dificuldade de fazer amigos, eu me sentia até que confortável com eles dois. Não estava tendo que fazer esforço para me inserir, talvez porque fosse bem introvertido. Já Börje, parecia saber lidar bem com pessoas que tentavam socializar e que não tinham o mínimo talento para isso.
Era irreal demais para uma pessoa do século 21, onde todos eram desconfiados o tempo todo ou desacreditados da bondade humana, pensar que eles viram o meu desespero de não ter para onde ir e me acolheram como se já me conhecessem. Talvez, se uma pessoa aparecesse para mim dessa maneira em que apareci, eu acharia que era golpe ou uma piada de muito mau-gosto.
Quando paramos de frente ao hotel, Börje me informou que ele tinha me registrado como hóspede de manhã, então eu não teria dificuldade em pegar a chave na recepção enquanto não tinha a minha. Além disso, almoçaria com alguns amigos hoje, então eu poderia pedir o serviço de quarto, já que o restaurante do hotel estaria fechado para comer presencialmente por causa da finalização da tal convenção. Börje me buscaria um pouco antes das quatro, sempre dava um jeito de aparecer nos locais apesar de não saber a língua.
Balancei a cabeça, concordando com tudo com pressa para liberar o taxista que esperava pacientemente. Quando ele terminou, peguei todas as sacolas e saí do táxi.
Pouco depois que eu tinha entrado no quarto, um funcionário do hotel veio me trazer uma mala novinha da loja deles e um envelope com o nome de .
Abri o envelope e tinha um bilhete escrito em uma máquina de escrever na folha com o timbre do hotel. Ou seja, foi digitado por algum funcionário.

“Lembrei depois que você saiu que não te vi pegando mala para guardar todas essas roupas. Estou enviando um pouco de dinheiro também, caso queira sair e comprar algo para você. No entanto, recomendo que compre na loja do hotel, porque vai tudo para a conta do quarto e você não precisaria contar... você sabe, moedas”.

Eu não lembrava que precisava guardar as roupas em algum lugar e depois locomover quando saíssemos dali. Sorri com o bilhete e com a memória dele.
Ele tinha rtado precisamente, ainda precisava comprar coisas de uso pessoal que todo ser humano necessitava e fiquei com vergonha de pedi-los para passar em uma farmácia ou em um mercado. Disquei o número da recepção e listei os itens que precisava, o serviço cobria um funcionário ir até algum lugar para conseguir os que não tinham.
Guardei o bilhete em um dos zíperes que tinham dentro da mala junto com o outro que ele tinha me escrito pela manhã. O dinheiro guardei dentro da bolsa que tinha comprado para me acompanhar para cima e para baixo. Dentro dessa bolsa, cabia a câmera de filmagem, a agenda e todos as milhões de coisas que eu viesse precisar enquanto assistente.
Dobrei as roupas novas e as guardei na mala vermelha, deixei uma de fora para vestir essa tarde. Um vestido xadrez preto e azul colado que ia até as canelas, um casaco folgado e fofinho cinza, botas pretas que peguei emprestada da filha de Börje 一 acho que vou ter que acabar comprando botas novas para ela.
Eu era oficialmente uma garota dos anos 90 vestida a caráter, com roupas sofisticadas para a época. Não estava nada mal para uma assistente também, mesmo que meu chefe se vestisse como um rockstar e, eu, o oposto.
Eu não investia em roupas com frequência em 2019. Ultimamente, eu vinha preferindo as camisetas largas que encomendava do site do merchandise oficial e algumas do eBay. Só naquele momento vi que valia a pena investir. Precisava passar despercebida como alguém com quem trabalharia, não como alguém que namoraria. Um deslize meu com uma roupa, as revistas de metal e as fanzines começariam a dizer que andava com a namorada a tiracolo.
Ok, já era a segunda vez que pensava na palavra “namorar” e ele juntos. Talvez, a viagem no tempo estivesse me deixando esperançosa demais. Primeiro, tinha que organizar os pensamentos no lugar, me lembrar da maldição que poderia fazê-lo sofrer, e também precisava ter em mente que precisava voltar para casa alguma hora, porque aquele tempo não me pertencia, e que ele poderia nunca me ver nesse sentido.
Naquela tarde, antes de me arrumar, passei o tempo estudando a agenda enquanto comia, depois repassei várias informações de coordenadas que Börje tinha me dado pela manhã, anotando-as em alguns papéis avulsos da agenda.
Meu coração errou as batidas quando bateram à porta pela primeira vez com a comida e depois com todos os meus pedidos. Eu sabia que era muito cedo e que eu precisava me dar um tempo, mas me irritava profundamente o meu corpo reagir daquela forma à mera ideia de entrando naquele quarto. O quarto que era dele e eu teria que ficar até vagar outro, então precisava controlar minha imaginação fértil.
Tinha 25 anos e não 15, pelo amor de Deus! Por que estava fantasiando tanto? Aquilo era a realidade, ele não abriria a porta com um pontapé e me daria um beijo cinematográfico.
Mas bem que poderia.
Suspirei.
Seria difícil começar do zero, com nenhuma garantia que eu me tornasse algo para ele. Eu ficaria feliz só sendo amiga dele, por mais improvável que esse pensamento parecesse naquele momento.
Droga, como era agoniante saber o futuro dele e do mundo, mas não saber nada sobre o meu.
Tomei banho e me vesti, passei um pouco de maquiagem que não ficasse tão à la 2019 一 o que consistia em sombra cintilante, pó e batom vinho. Passeei pelos canais da TV, esperando Börje vir me buscar.
Sentia que o meu maior problema era vir gastando muito tempo pensando em e não em como sobreviver em 1990 até saber como voltaria para casa. E isso era algo que precisava mudar imediatamente, se quisesse continuar ali.

Capítulo 5 - A Question of Lust

Börje me elogiou assim que atingi seu campo de visão. Ele me chamou de “bonita” em sueco e eu fiquei toda me achando, é claro.
Ele nem me conhecia, mas tinha aquele brilho no olhar e jeito de falar como se tivesse me visto crescer todos os 25 anos e me tornado o que sou hoje. Senti isso desde quando ele me viu sentada de pijama naquela mureta. Era como se o rosto dele me fosse familiar a vida inteira. Conhecia pessoas que tinham esse traço, como meu avô tinha. Geralmente elas eram as mais simpáticas, por isso me sentia segura perto dele.
Quando chegamos lá, já estava dentro de um estúdio de televisão. Eram tantos cabos pelo caminho, câmeras e pessoas para lá e para cá, que fiquei tonta.
Börje pareceu perceber meu desconforto pelo excesso de informações e explicou:
一 Nós vamos divulgar o disco novo em um canal de TV português sobre música.
As pessoas começaram a me ver ali ao lado de Börje e entender que eu também estava trabalhando com o artista.
Todo aquele ambiente me parecia tão não-. Ele deveria estar desconfortável também, apesar de estar aparentando certa normalidade. Tinha uma luz branca forte em seu rosto que parecia machucar seus olhos e ele tentava enxergar além dela para entender o que acontecia, então decidi que aquela seria oficialmente a minha primeira tarefa.
一 Olá 一 parei uma pessoa que caminhava por ali com um fone de ouvido. 一 Quem é o responsável pela iluminação?
一 Pode ser eu 一 ele disse, aparentemente nervoso.
一 Você pode desligar enquanto não está gravando? Não queremos que o artista fique cego 一 sorri, tentando ser simpática.
Ele deu uma risadinha nervosa e afirmou com a cabeça, saindo logo em seguida.
Börje alternava um olhar orgulhoso em minha direção e em analisar papéis que seriam a pauta. Ele não disse nada, mas sabia que aquilo indicava que eu estava no caminho certo.
Quando a luz diminuiu, pareceu aliviado e finalmente nos enxergou ali. Vi que ele analisou rapidamente minhas roupas e parecia um pouquinho impressionado com a mudança. Bom, para ser sincera, eu tinha realmente me superado na esperança de, pelo menos, provocar uma pequena reação dele quando me visse 一 e, pelo visto, eu tinha conseguido. Aquilo subiu um pouco minha autoestima e, para espantar a vergonha que ameaçava me levar correndo dali para me esconder no banheiro mais próximo, eu andei até ele.
Ele estava sentado em um sofá baixo, que me fazia parecer alta em pé perto dele. Seu olhar profundo ainda me analisava enquanto eu fazia o caminho que nos separava. Meus passos demonstravam falsa confiança ao ser analisada daquela forma.
一 Oi. Melhor sem a luz? 一 perguntei, tentando soar natural. 一 Pedi para que diminuíssem.
一 Com certeza. Você me salvou, meus olhos estavam derretendo 一 ele sorriu. 一 Gostei da roupa, parece que finalmente rtou no seu tamanho 一 disse em um tom brincalhão.
Soltei uma risada. É claro que ele não iria perdoar o fato de eu ter usado suas roupas, era engraçadinho demais para isso.
一 É, acho que não iria pegar bem, em um lugar desses, uma assistente aparecer usando as roupas que são claramente do artista. Pensariam que passei a noite com ele 一 pisquei um olho, entrando no joguinho dele. Ele sorriu, galante.
一 Mas você passou a noite com ele 一 piscou de volta. 一 Está bonita, 一 acrescentou, desta vez olhando dentro dos meus olhos.
Soltei uma gargalhada escandalosa, por causa da vergonha que me dominou como uma onda. Além da sua provocação, foi uma reação ao seu elogio. Não era boa em receber elogios, ainda mais quando vinham de quem eu admirava, ficava totalmente sem graça.
一 Obrigada 一 respondi, meio desconcertada por ter atraído olhares que eu não queria. Ele apenas sorriu de lado.
Uma mulher apareceu do meu lado, carregando um ponto de microfone para colocar nele. Usei isso como minha deixa para sair e voltar ao meu lugar atrás das câmeras.
Börje me mandou alterar a ordem de algumas perguntas e remover outras que eram sobre a vida pessoal de 一 como seu nome verdadeiro ou se ele curtia mulheres vivas ou mortas. Bom, é o que dá ser um ícone do black metal. Eram perguntas extremamente invasivas e inconvenientes, mas até que a segunda era engraçadinha e teria me arrancado boas risadas vê-lo respondendo. Conversei com algumas pessoas e elas me garantiram que iriam tirar imediatamente do roteiro, porque o programa iria ao ar logo mais. Todo mundo corria de um lado para o outro, menos eu, Börje e , que estava sentado olhando toda a loucura acontecer com certa curiosidade.
Quando o programa foi ao ar, eu estava dispersa, anotando na agenda as perguntas que não deveriam ser feitas em futuras entrevistas e as que não se incomodava em dizer que não responderia. Na verdade, Börje me disse que não passava muito o olho em roteiros de entrevistas, principalmente para fanzines 一 o que aprendi que eram revistas pequenas feitas por fãs 一, por isso que, às vezes, acabava respondendo coisas mirabolantes quando perguntavam. A princípio, a ideia era evitá-las antes que fossem feitas e eu me concentraria em tirá-las do script, a menos que fossem insistentes e perguntassem mesmo assim.
Ele não parecia nem um pouco nervoso por estar de frente às câmeras, respondia as perguntas tranquilamente e, mesmo agora, a luz não era tão forte a ponto de atrapalhar sua visão. A primeira vez que ele me olhou de relance, ergui os polegares e dei um sorriso enorme para mostrar que ele estava mandando bem, mas foi mais cômico do que apoio, porque ele se segurou para não rir e continuar prestando atenção no que o entrevistador estava falando.
Nas outras vezes que ele me olhou, mais porque eu estava no campo de visão quando ele pensava e falava, eu apenas dei alguns sorrisinhos sem que me comprometesse de novo. Eu ficava toda destrambelhada quando estava perto de quem tinha interesse, era incrível a quantidade de vergonha que conseguia passar em tão pouco tempo.
Ele tinha essa mania de ficar passando a mão no cabelo e jogando para trás, eu ainda não sabia se me dava aflição porque atraía oleosidade ou se achava charmoso, porque era (e para cte). O cabelo dele não era nada oleoso, só para constar. Tinha a impressão de que ele era extremamente cuidadoso e lavava todos os dias. Afinal, eu já havia comprovado que ele cheirava a shampoo.
Peguei a câmera de dentro da bolsa e liguei, filmei todo o set de filmagem e ele dando entrevista por trás das câmeras que o filmavam. Börje apareceu, nando para a câmera, me fazendo sorrir.
Por um momento, até me esqueci que não era mesmo desse século. Esqueci que tinha familiares e amigos me esperando de volta no meu tempo e apenas agi conforme o presente. Enquanto eu me afundava nessa melancolia da probabilidade de um dia ter que partir, terminou sua entrevista. Guardei a câmera de volta, voltamos para o hotel e Börje me explicou estratégias de divulgação pelo resto do dia no lobby. tinha saído para andar pela cidade de novo.
Pela noite, eu ainda não tinha um quarto. Os dois saíram para jantar com o amigo que estava hospedando o mais velho. Fui convidada, mas eu não quis ir. Preferi ficar sozinha por um tempo para organizar a mente.
Observei a banheira encher enquanto cheirava o shampoo de . Percebi que era dali que vinha quase dois terços do cheiro dele na primeira vez que inspirei. De repente, quis me afogar no líquido. Eu estava certa, ele era muito cheiroso. Seu cheiro era viciante, estava completamente vidrada pelo ar vindo de dentro da embalagem toda vez que apertava. Aquele parecia um shampoo qualquer de mercado, mas, só de saber que estava ligado a ele, se tornou o meu cheiro favorito no mundo.
Guardando o shampoo a contragosto, voltei minha atenção de volta à banheira. Joguei um pouco de sabonete líquido na água para dar um pouco de espuma e cheiro. Me permiti relaxar um pouco, porque ter trabalhado me deixou exausta. Ser assistente não era nada como trabalhar como voluntária no zoológico. Lá, eu só precisava lidar com a minha rixa com o intercambista e uma vez por semana com a nossa supervisora. Aqui, precisava lidar com o cara mais gostoso do planeta Terra. O cara por quem era apaixonada. O cara que estava me abrigando.
Por que não pensei nisso antes de apertar naquele link? Por que geralmente as pessoas não pensam antes de viajar no tempo? Por que raios estava ali? Seria minha alma gêmea? Eram tantas perguntas unidas com a situação que me exauriram no dia anterior e naquele momento também. Talvez a confusão mental fosse o jetlag de quem viajava no tempo.
Ao terminar meu banho depois de ficar de molho por uns bons minutos, vesti meu pijama novo. O meu de Natal era totalmente fora de estação, então acabei comprando dois conjuntos com short e blusa de cetim. Telefonei para a recepção do hotel vir buscar as roupas dele que usei para lavar. Enquanto eles não chegavam, peguei o jornal de para me inteirar das notícias de 1990 e fui ler deitada na cama. Ele entrou no quarto quando eu devia estar na página 6 sobre a liberdade do Nelson Mandela.
Desviei os olhos das páginas para fitá-lo enquanto esvaziava o conteúdo dos bolsos e colocava tudo em cima da TV.
一 Oi 一 saudei-o. 一 Achei que demoraria mais 一 comentei, sem saber ao certo quanto tempo fiquei na banheira.
一 Olá 一 sorriu. 一 Eu não bebo mais para ficar bêbado, então a graça acaba para mim quando a comida termina 一 explicou, agora tirando as botas.
Sorri de volta. Falando em comida, acabei nem comendo porque ainda estava lotada do almoço, mas tinha a impressão de que essa sensação não iria durar até o dia seguinte. Não queria encher mais o saco dos funcionários do hotel enquanto não viessem buscar as roupas, por isso optei por voltar a ler o jornal. Ele foi fumar na janela. Era cômico estar em um quarto preso com meu ídolo e sem ter certeza do que poderia falar. Não poderia ser intrusiva demais e nem dar na cara que sabia demais, então, por isso, o silêncio se instaurou no ambiente.
Anya era fumante, por isso a fumaça não me incomodava mais tanto assim como antes. Enquanto meus olhos não estivessem em sua boca e no filtro do cigarro, também não era mais um problema para mim. Ele terminou de fumar e entrou no banheiro.
Só ao senti-lo deixar o quarto, percebi que segurava o ar. Notei também que sua presença dentro desse quarto de hotel me instigava muito. Não sabia o que eram todas aquelas sensações que estavam despertando meu corpo, mas sabia identificar uma: o desejo. era bonito, era cheiroso, era inteligente e meu cérebro estava bem ciente do seu traço mulherengo. Lá no fundo, eu tinha esperanças em me tornar uma mulher que ele dizia que saía e depois se inspirava. Porém, toda vez que o pensamento surgia, tratava logo de o mandar embora.
Apesar de ter me elogiado hoje, eu e ele não começamos com o pé direito nesse sentido. Sentia que mentir sobre uma gravidez sem nem ter dormido com ele tornaram as coisas estranhas entre nós dois nesse quesito. Ou, talvez, pelo fato de ter sentido empatia pela minha situação, ele não tenha investido em mim; ou porque agora trabalho para ele; ou só porque não faço seu estilo; ou...
Tentei voltar para o Mandela, mas minha mente continuou me distraindo, até que batidas na porta ecoaram pelo quarto. Reuni as roupas que separei e a abri. A camareira tinha um saco grande transparente com a etiqueta do número do quarto e apenas se limitou a estendê-lo para mim, e coloquei todas as peças lá dentro.
Fechei a porta assim que saiu. Pretendia voltar para a cama, mas acabei tropeçando no carpete desnivelado e...
Um peito muito firme me amparou. Só tinha mais uma pessoa no quarto, então, quando meus olhos chegaram até o rosto de , meus lábios abriram para arfar pela proximidade. Seu cabelo molhado emanava o cheiro que me inebriou momentos atrás. Ele sorriu de lado, provavelmente ao se dar conta da minha aproximação repentina.
一 Cuidado, . Não vá se machucar 一 murmurou e me afastou com suas mãos nos meus pulsos. Meus braços, minhas mãos e toda a parte da frente do meu corpo o tocavam por cima da camiseta do pijama. Quando colocou distância entre a gente, todos os meus membros formigaram em protesto.
O que diabos ele quis dizer com essa frase tão simples e dita de forma tão irônica? E o jeito que ele falou meu nome? Ele pronunciava meu nome de um jeito tão diferente, como se fosse a palavra mais bonita do mundo!
一 D-Desculpa 一 pedi, ainda meio zonza por ter ido parar logo em cima dele. Quando é que ele tinha chegado ali?
一 Sem problemas, mas toma cuidado da próxima vez 一 ele disse enquanto continuava dobrando as roupas em sua mala, mas parou para me olhar. Seus olhos faiscaram com diversão em minha direção. 一 Eu posso não estar por perto para te impedir de chegar ao chão. 一 E piscou. Piscou! piscou para mim pela segunda vez no dia! E quando só tinha nós dois em um quarto muito pequeno.
Antes que eu pudesse me controlar, uma risada irrompeu pela minha garganta pela segunda vez no dia. Não era para ela sair, é claro, mas ele não precisava saber disso. Precisava contornar a situação o mais rápido possível porque ele estava sorrindo, sem entender nada.
一 Bom, ainda bem que você está por perto agora. Meus joelhos agradecem 一 falei, indo me deitar de novo e passando por ele, que ainda me olhava com diversão. 一 Eu sou muito desastrada, então qualquer oportunidade para cair, derrubar ou quebrar, não dispenso 一 tagarelei, com certo nervosismo.
Senti seu olhar queimando minhas costas quando passei. Me enfiei debaixo do cobertor e ele ainda estava parado, me olhando com o mesmo sorriso.
一 O que foi? 一 perguntei, logo em seguida mordendo o lábio inferior com receio de ser o alvo da sua atenção.
一 Nada, é só que você tem uma risada bem única 一 comentou e voltou a virar para dobrar suas roupas. Estremeci ao ouvi-lo falando da minha risada. 一 Então, não conseguiram outro quarto?
一 Não, infelizmente a empresa pagou para eles passarem mais uma noite depois da finalização da convenção.
一 Quer dizer que você está presa comigo mais um dia? 一 Seu tom era brincalhão, mas estremeci novamente. Eu estava presa com ele, no mesmo quarto, o desejando.
一 É. Estou te incomodando? 一 perguntei e depois engoli em seco. Caso estivesse, fodeu. Não tinha nem para onde ir, teria que dormir no corredor.
一 Claro que não. É divertido te ter por perto, você é bem calorosa. Bem contrário ao que estou acostumado. 一 Fechou o zíper da mala e se virou para mim. De repente, me senti pequena demais sob seus olhos. Ele disse que eu era calorosa porque o divirto com minhas trapalhadas, tenho certeza. Tive vontade de rir do seu comentário, mas me controlei, já tinha rido demais por um dia. 一 Já que reclamou que não sou sincero com meus fãs, como você me vê depois de passar dois dias comigo?
一 Hmm... 一 pensei. Minha mente praticamente cuspiu as palavras diretamente para a minha garganta: bonito, gostoso, cheiroso e intrigante. 一 Ainda misterioso demais. Tem alguns pequenos detalhes que não fariam mal revelar, como seu signo ou seus passatempos. Por exemplo, você lê bastante, eu não sabia disso.
Ele sorriu e começou a arrumar sua cama improvisada no chão.
一 Bom, meu signo é aquário 一 falou. 一 E sim, um dos meus passatempos favoritos é ler, assim como escutar música clássica, tocar guitarra e escrever.
Sorri, ao perceber o que ele estava fazendo. Ele sabia que eu era sua fã, então estava se dispondo a responder minhas perguntas.
一 Qual é a sua comida favorita? 一 perguntei, disposta a seguir com aquilo.
一 Pizza, mas gosto muito de massa em geral. 一 Se abaixou para terminar de ajeitar e depois ficou de pé de novo. 一 Tenho uma ideia. Você pode me perguntar qualquer coisa, desde que me prometa que não contará a ninguém. Assim, eu posso te perguntar o que quero também.
Concordei com a cabeça, ansiosa. Esse era o auge da minha vida de fã, então não poderia me culpar por ficar emocionada.
一 Eu prometo 一 verbalizei.
一 Ok. 一 Ele derrubou o travesseiro e depois se deitou. 一 Como é o seu país?
Eu esperava uma pergunta mais complexa e pessoal, então me surpreendi. Olhei para o teto iluminado pela luz amarela do abajur, já que ele estava fora do meu campo de visão, e tentei resumir o Brasil.
一 É muito diferente da Europa. Apesar de ser quente o verão daqui, lá é mais ou tão quente o ano inteiro. Nós costumamos reclamar muito do calor, mas basta botar o pé para fora do país para sentir falta 一 sorri ao lembrar do meu primeiro ano e inverno em Birmingham. 一 Você disse que sou calorosa, mas acho que é uma característica nossa. Acho que o calor é o que nos torna pessoas tão intensas e calorosas, sabe? Ah, também há muita desigualdade social, só que isso não é bonito de se dizer.
Ele riu.
一 Se as pessoas são como você, então me parece um bom país para se morar 一 disse e senti meu coração tolo palpitar com esperanças de que fosse outro elogio. 一 Sua vez.
一 E como é o seu? 一 questionei a pergunta que já estava pronta na minha cabeça.
一 Os países daqui da Europa são bem parecidos, esteticamente falando. Mas... para resumir, pode-se dizer que é tão frio quanto o seu é quente 一 respondeu e senti que ele ainda sorria. 一 E qual a sua comida favorita?
Pensei nessa pergunta. Eu gostava muito de café-da-manhã, especialmente um que minha avó preparava para mim quando era criança. Desde que ela me apresentou, aos seis anos, se tornou minha comida favorita.
一 Achocolatado e pão tostado com queijo 一 respondi, sentindo saudades da minha avó. 一 Qual sua banda favorita?
Ele pareceu pensar por um instante.
一 KISS, mas mais por memória afetiva. Eu costumava fingir que era o Frehley quando era mais novo por causa da guitarra 一 respondeu e o escutei se mexendo no chão. 一 Já estou sem criatividade 一 ele riu e me peguei rindo junto. 一 Ok, vamos ver... 一 pensou um pouco. 一 Posso invadir um pouco sua privacidade?
一 Isso é uma pergunta? 一 brinquei, sentindo meu corpo tremer por debaixo do cobertor com a ansiedade que me afligia. Se ele precisou me perguntar antes, devia ser finalmente algo pessoal. 一 Devo contar como uma?
一 Não. 一 De novo, tive a impressão que ele sorria. 一 ‘Tá, lá vai... Você deixou um namorado quando fugiu de casa? 一 foi direto ao ponto.
Pelo jeito como perguntou, ele parecia achar que eu fugi por causa de um namorado.
一 Não. Eu nunca namorei, mas também não estava saindo com ninguém quando deixei minha casa 一 tratei logo de responder. 一 E você? Tem uma namorada?
一 No momento, não. Também não estou saindo exclusivamente com ninguém. 一 Ele pareceu pensar de novo. 一 Quando foi a última vez que você saiu com alguém?
一 Há uns três meses, eu acho. 一 Me acovardei em retribuir a pergunta porque não tinha certeza se era algo que queria mesmo saber, mas precisava fazer outra pergunta. 一 Como foi sua primeira vez?
Ouvi uma risada sacana ecoar pelo quarto e me toquei do que perguntei. Meu Deus. Eu que invadi sua privacidade com essa pergunta audaciosa. Me perguntei se realmente não era uma adolescente ainda para pensar logo nisso. Para que queria saber como ele perdeu a virgindade? Quis retirar o que perguntei, mas ele foi mais rápido em sua resposta:
一 Eu tinha quatorze anos e foi com minha primeira namorada. Nós dois não sabíamos de nada. Não é como se eu pudesse simplesmente caminhar até a locadora e alugar o primeiro cassete de pornô, como hoje em dia. Então foi uma merda. Eu acabei finalizando antes de conseguir achar o lugar certo 一 ele riu e eu o acompanhei. 一 Ei, nada de tirar isso desse quarto. Eu tenho uma reputação a manter! Sou um novo homem agora. 一 Mais uma risada, mas dessa vez não o acompanhei.
Sorri de lado ao imaginá-lo mais novo, tentando ter sua primeira experiência sexual. É realmente uma pena que Shandi e Raj não estejam aqui, isso renderia umas boas risadas. Iria fazer uma nota mental para contá-los assim que nos encontrássemos de novo. Essa história era boa demais para morrer comigo. Primeiro, eu teria que apresentar a eles, mostrá-los suas entrevistas e, depois de contextualizados, entenderiam a importância daquela confissão. gostava de pagar de comedor. Eu não duvidava que fosse, mas...
一 E a sua? 一 perguntou, interrompendo meus pensamentos.
Droga. Não calculei que ele poderia retribuir a pergunta. Por que logo eu fiz questão de levar aquelas perguntas para a conotação sexual? Era eu que estava me reprimindo por causa dele e não me toquei que aquele campo poderia ser perigoso.
一 Foi ruim também. Eu tinha acabado de fazer dezoito e me convidaram para uma festa cheia de pessoas que deviam ter minha idade atual. Estava meio revoltada com meus pais e o primeiro garoto que veio dar em cima de mim, dei estia 一 fiz uma careta ao me lembrar da cena. 一 Ele mal ligou quando eu falei que era virgem, fez tudo em prol de si mesmo e depois me largou sozinha no quarto de um desconhecido que era dono da festa.
Eu estava brava com meus pais por não estarem presentes nem no aniversário de 18 anos da própria filha. Então, entrei no Fbook e vasculhei alguns eventos que aconteceriam no dia. Parecia uma festa de jovens perdidos, nada como as de república que tinha em mente. Não tinha garotos fortes que jogavam futebol americano, apenas garotos que gostavam muito de drogas sintéticas e bebida barata. Foi um pesadelo.
一 Que imbecil 一 ele disse, parecendo genuinamente indignado. 一 Saber tratar uma mulher é o básico. Sinto muito por ter passado por isso. Espero que as outras vezes não tenham sido tão traumatizantes assim.
Sorri minimamente. Ele não tinha nada a ver, então não precisava dizer que sentia muito, mesmo assim o fez.
一 Não foram. Quer dizer, os homens não são tão carinhosos assim com casos de uma noite só, imagino que namorando sejam melhores. Mas é... foram melhores do que o da primeira 一 comentei.
一 Concordo. Não entendo o porquê, no entanto. Não acho que é preciso estar namorando para falar umas palavras bonitas, levar para jantar, fazer algo romântico ou só oferecer uma boa noite de sexo 一 falou e a mesma adolescente interior que me levou a fazer a pergunta sobre primeira vez sentiu suas bochechas esquentarem. 一 Sou adepto da ideia de uma noite só, porque posso me reinventar e tirar mais inspiração.
一 Então você é um homem de uma noite só? 一 perguntei.
Ele riu baixinho.
一 Na maioria das vezes, sim. Algumas vezes, eu saio mais de uma noite e talvez nos tornemos exclusivos. Não tenho nada contra namorar, já tive até um tempo atrás, mas não tenho mais. Só deixo me levar 一 revelou e suspirou. 一 E você? É uma mulher de uma noite só?
Parei um pouco e pensei antes de dar essa resposta. No entanto, não sabia o motivo de ter feito aquilo. Só havia uma resposta para a pergunta, visto que eu não havia namorado por não achar graça em pessoas mundanas.
一 Sim, eu sou. Não gosto de deixar espaço para arrependimentos 一 respondi e depois mordi o lábio inferior. Não tinha mais tanta convicção assim que as palavras deixaram minha boca. Eu estava desejando-o e não o queria só por uma noite. Não, uma noite não seria suficiente para aplacar o desejo que vinha nutrindo. Afinal, não era de ontem.
一 Hmmm. Por um lado, isso é bom.
Nossas perguntas acabaram por aqui, os poucos minutos que fiquei em silêncio serviram para ele começar a roncar. Meu estômago o acompanhou, porém não tive coragem de me mexer para pedir serviço de quarto e correr o risco de o acordar. Ele já tinha abdicado da própria cama, então não merecia ser perturbado.
Minha mente flutuou para o que ele quis dizer com sua última fala. Não parecia ter segundas intenções, eu achava. Também não parecia inocente, assim como tudo que ele falava. Era uma fala simples, mas que deu um nó no meu cérebro inebriado. Não sei se ele perguntou dando a entender um possível nós dois, mas eu com certeza respondi no geral. O que me levou a outro questionamento: se algo acontecesse, será que eu me arrependeria de não o querer só por uma noite? Bem, eu esperava muito que não. Estávamos presos um ao outro por um tempo, querendo ou não.

Capítulo 6 - Love In An Elevator

Os eventos começaram a acontecer com uma rapidez impressionante desde a manhã seguinte às perguntas que acordei sem no quarto mais uma vez. Consegui meu próprio quarto também no dia seguinte e tratei de mover minhas coisas para o quarto em outro andar enquanto ele estava pela cidade. Em pouco tempo, já tinha uma mala cheia e muito pesada. Foi difícil arrastá-la pelo caminho, sem ter dobrado uma roupa sequer e simplesmente ter socado tudo lá dentro.
conheceu Tiago antes da sessão de autógrafos. Eu gravei tudo para que ficasse registrado a emoção do garoto naquelas três horas exclusivas que eles ficaram conversando. Dei espaço para eles conversarem livremente e fui me sentar na outra extremidade do saguão do hotel. Börje só chegou na hora que tínhamos de seguir para a sessão de autógrafos.
Vi Fernando Ferreira 一 de uma banda portuguesa de metal gótico que eu particularmente gostava muito 一 em pessoa com apenas dezesseis anos ao lado de Tiago. Foi difícil me controlar para não dar um ataque de fã, mas azucrinar um adolescente com perguntas do tipo “de onde vocês tiraram a inspiração para aquele primeiro álbum, afinal?” quando ele nem tinha escrito ou formado a banda seria bizarro.
Muitos garotos passaram por nós esse dia, os tratava como amigos enquanto eles estavam claramente nervosos. Para resumir, era no mínimo fofo de se ver.
Ele não me procurou e no seguinte havia uns espaços na agenda que Börje deixou livres para o filho conhecer a cidade. Então, utilizei-os para passar quase o dia todo na área comum do hotel, analisando as pessoas, seus costumes, as revistas disponíveis, a programação na TV. Foi um dia de imersão no século 20 para mim.
A cada segundo que passava, me surpreendia mais por ainda estar ali. De alguma forma, pensei que iria embora depois do primeiro dia, para se assemelhar a um sonho. Porém, a maldição era clara quando dizia que juntaria duas pessoas que foram separadas pelo destino com a viagem no tempo e tinha a impressão de que talvez eu acabasse não voltando para casa. Ainda não sabia como me sentia quanto a isso, não estava disposta a deixar para sempre meus costumes, minha família e meus amigos para viver rumo ao desconhecido. No entanto, vinha procurando evitar um pouco esse pensamento pela ansiedade que me causava.
Infelizmente, meu desejo vinha crescendo e piorava quando estava perto dele. A culpa, em maior parte, se devia aos meses de abstinência que estavam ajudando a pesar a situação. Me sentia prestes a implodir, para ser bem sincera. A sensação era totalmente nova para mim, nunca senti essa necessidade de estar com alguém, apenas obrigação. Então, me preocupava não saber lidar muito bem com o que vinha crescendo dentro de mim.
Börje me pediu para entrar em contato com a embaixada do Brasil ao me ouvir falando que perdi meu passaporte. Nós viajaríamos no dia seguinte, então tive que pedir uma autorização através do fax do hotel para poder embarcar para a Inglaterra e depois para a Suécia, que seria onde eu resolveria minha documentação final. Seria uma burocracia para resolver minha documentação quando chegasse em Estocolmo 一 a cidade onde e Börje nasceram e viviam 一, mas definitivamente era um problema que queria me preocupar depois.
De manhã cedinho, voamos para Londres só de passagem, porque e Börje tinham vários amigos por lá e estavam indo encontrar com alguns. Em meio a muitas tarefas e compromissos, tinha toda aquela bagagem de ainda não estar no meu habitat natural. Eu me sentia exausta de passar esses últimos dias assim e não era a única, a julgar pelas olheiras deles, mas teríamos uma pequena folga aqui.
Passei o dia todo trancada no meu quarto de hotel, organizando a agenda, tirando os compromissos passados enquanto eles visitavam esses amigos. Para compensar o cansaço de ultimamente, eles decidiram se reunir em um bar naquela noite quente e me chamaram. Não iria mentir, eu fui só para ficar perto de . Eu mal o conhecia, mas sentia falta de ficar perto dele e só percebi depois de passar algumas horas no voo com Börje no meio de nós dois. Estava totalmente apaixonada e, enquanto me arrumava para ir até o bar, fiquei assustada com o quanto esse sentimento estava evoluindo depressa. Eu já o amava desde 2019, mas estar apaixonada assim era extremamente avassalador e inédito.
Quando cheguei sozinha de táxi, entrei no local e logo nou diretamente de uma mesa cheia. Aproximei-me. Börje foi o primeiro a me cumprimentar com um abraço, depois beijou os dois lados da minha bochecha, me deixando paralisada pelo contato. Toquei minha bochecha direita bem onde ele tinha plantado o beijo e meu cérebro apenas emitiu uma única resposta: Wow.
一 Pessoal, essa é a 一 disse, com o braço nos meus ombros, me deixando banhada por ele. Não que eu estivesse preocupada, minha atenção ainda estava nas minhas bochechas beijadas e no que aquilo pareceu despertar entre minhas pernas. As pessoas naram para mim e eu nei de volta com a mão que estava no rosto. Ele se sentou de novo na ponta do banco estofado típico de pubs antigos. 一 Vem, senta aqui. 一 Procurei com o olho e não encontrei lugar algum para ocupar.
Arregalei os olhos enquanto olhava para algumas mulheres da mesa e constatava que elas estavam sentadas no colo dos homens. Ele não podia estar falando sério. Corei ao me imaginar sentada no colo dele. Eu não podia, podia? A resposta era não, absolutamente não.
? 一 ele me chamou. Encarei-o, mortificada. As outras pessoas já conversavam, inclusive Börje na outra ponta da mesa. 一 Não vai querer se sentar? 一 Sua mão estava espalmada em um espacinho restante do estofado, mostrando que eu estava ficando com a imaginação bem fértil. Sentei-me ao seu lado, me amaldiçoando por estar reagindo assim.
Eram cinco caras, cinco garotas que pareciam ser namoradas deles, eu, Börje e . Eles eram diferentes, usavam cabelos de poodle e tinham toda aquela vibe glam metal dos anos 80. As garotas pareciam barbies da época, corpos de modelos dos anos 90 e extremamente loiras, com exceção de uma com o cabelo pintado de vermelho que estava claramente interessada em .
Alguns minutos depois, eu o observava conversar e, de repente, ele se virou para mim, sorrindo de alguma piada que lhe contaram. Fiquei totalmente vidrada pela proximidade. Eu podia visualizar os pontinhos de barba que ameaçavam aparecer.
一 O que vai querer? 一 perguntou só para que eu o ouvisse.
Você.
Balancei a cabeça para espantar o pensamento.
一 Água, com muito gelo 一 respondi, ainda encarando seus lábios, totalmente hipnotizada.
Ele assentiu e chamou o garçom com os dedos, quebrando nosso contato visual. Na verdade, era mais seguro pedir um caminhão pipa para apagar meu incêndio interior.
Nós três parecíamos visualmente deslocados ali, mas os dois se divertiam e riam bastante com eles. Eu me concentrei em observar a garota de cabelo vermelho sentada no colo de um e dando mole logo para outro. Não sou dona de , mas ela estava com o amigo dele! Aquilo era extremamente bizarro. E sim... eu estava com ciúmes. Com muito ciúmes.
Börje acabou voltando para o hotel meia noite, acusando ser velho demais para ter uma noitada completa com outros jovens, me deixando sozinha com seu filho e o resto da mesa que bebia. A verdade era que eu nunca gostei muito de bebida, mas aturava algumas, tipo tequila. E, naquele dia, eu larguei minha água, que basicamente se tornou gelo derretido, para virar alguns shots depois da meia noite 一 só para tentar me inserir no meio deles.
Eu não estava nem um pouco perto de ficar bêbada. Tinha plena consciência do que falava e fazia, mas minhas atitudes estavam mais impulsivas, algumas das minhas sensações estavam dormentes e outras completamente sas. O desejo que vinha reprimindo todos aqueles dias era uma das coisas que estavam sas feito a Times Square.
Foi assim que eu tomei a sequência de atitudes impensadas a seguir.
一 E se formos embora? 一 perguntei baixinho. Para minha surpresa, ele escutou e se virou para mim.
一 Já quer voltar para o hotel? 一 confirmou, seu hálito batendo no meu rosto.
Por que hoje tudo nele está me provocando?
一 Sim 一 respondi e não sustentei seu olhar, com medo do que poderia acontecer caso o fizesse.
Nós dois voltamos para o hotel de táxi em silêncio e eu estava basicamente subindo pelas paredes. Tinha a leve impressão de que isso era resultado dos beijos nas bochechas. Ah, e também da tequila, é claro.
Ao chegar ao hotel, percebi que estava aparentemente normal, mas, aos meus olhos, aquele cabelo levemente bagunçado de quem bebeu, seu olhar cansado e disperso, e aquele cheiro de vinho misturado com nicotina o deixavam irresistível. Esse combo foi o culpado por me fazer mudar o que eu deveria ter feito: apertar o botão 3 e 5 no elevador. Apertei só o 5, que era o andar do quarto dele. Ele me olhou, sem entender, e eu soube que meu autocontrole foi para o inferno naquele momento, quando ele simplesmente perguntou:
一 O que está fazendo?
Eu o ataquei.
Dei os dois passos que nos separavam e não esperei, apenas o puxei para se abaixar e colei nossos lábios. Não pensei no que estava fazendo, só pensei em calar o desejo que me ensurdecia. Beijei-o com vontade, com cólera, com paixão. Ele demorou alguns segundos para começar a retribuir da mesma forma, e, de algum jeito, eu soube que seus olhos estavam arregalados de surpresa enquanto os meus estavam cerrados. Eu não queria olhá-lo e correr o risco de perceber o que estava acontecendo, o quão errado viria a ser assim que eu me desse conta.
Quando abriu a boca e deu passagem livre para a minha língua, eu gemi em deleite. O gosto dele era exatamente o vinho e tabaco misturados com algo a mais, algo único. Suas mãos calejadas pelas cordas da guitarra tocaram minha cintura por cima da blusa e deslizaram, parando em minhas coxas, forçando-as para cima. Logo entendi o que ele queria e enrosquei minhas pernas em seu tronco, reduzindo nossa diferença de altura.
O elevador apitou, indicando que tinha chegado ao andar, mas nós dois estávamos muito ocupados para reagir. Ele me prensou contra a parede fina e sua língua começou a exigir o máximo da habilidade da minha. Minhas mãos deslizaram pelos seus braços cobertos pela jaqueta que havia me emprestado no outro dia, e puxei-o pela lapela para mais perto. Eu queria mais. Eu precisava de mais. Seus dedos, que sustentavam meu peso, apertaram minhas coxas, mostrando que me entendia muito bem.
Ele passou pela porta do elevador enquanto ainda me beijava. Abri seu pescoço para me segurar e ele se pôs a procurar pelas chaves nos bolsos. Sem suas mãos em minhas coxas, meu corpo deslizou um pouco para baixo a ponto de unir nossas virilhas. Por mais que houvesse o meu jeans e o dele no meio do caminho, foi tão repentino e mostrou que ele já estava pronto para qualquer coisa que viesse resultar dessa nossa escapada. Seus lábios deixaram os meus e um gemido rouco escapou por eles. Pisquei os olhos, assimilando o que veio dele. Era o som mais bonito do mundo. Sua voz era incrível, sua gargalhada era magnífica, mas seu gemido era tão libidinoso e gracioso ao mesmo tempo, que me fizeram parar para admirar. Ele abriu os olhos para procurar o motivo da minha pausa e sorriu ao me olhar.
Um sorriso absurdamente lindo.
一 O que foi? 一 perguntou com a voz rouca, os lábios inchados e manchados com o meu batom.
Uma parte do meu cérebro despertou ao ouvi-lo falando, eu sabia que estava me agarrando com meu chefe. Outra parte, a maior, a que vinha sofrendo, a que se dispôs a viajar durante os anos que nos separavam através de um site suspeito, estava simplesmente se agarrando com meu ídolo. Então, mandei a razão para o mesmo lugar que meu autocontrole. Apertei minhas pernas em volta da sua cintura e pressionei nossas virilhas de novo, sentindo o frio do material da porta nas costas enquanto ele jogava a cabeça para trás e me agraciava com mais um gemido.
一 Oh, céus. Você é perfeito 一 confessei, sem nem perceber o que saía da minha boca, e comecei a distribuir beijos pelo seu pescoço à mostra. Ele soltou uma risadinha baixa e sacana, depois me pressionou mais ainda contra a porta e me deu uma prova concreta da sua excitação, se esfregando em mim. Foi a minha vez de gemer, mas não fechei os meus olhos, fiz olhando no abismo dos seus .
一 Você me acha perfeito? 一 perguntou, dessa vez com um sorriso de lado que exalava puro charme e luxúria.
一 Acho 一 admiti, embrenhando meus dedos em seu cabelo que era tão sedoso quanto imaginei. Imitei seu sorriso. 一 Mas só quando sua boca está na minha.
Amanhã...
Amanhã eu deixo para pensar nessa pequena confissão, se eu me lembrar.
Ele me observou, seu sorriso se desmanchando, seus olhos descendo para meus lábios vagarosamente ao mesmo tempo que suas pupilas dilatavam.
一 Eu vou te beijar e te levar para o meu quarto. Se você não quiser isso, por favor, diga agora 一 murmurou.
Nós dois sabíamos que, no segundo que ele enfiasse a chave na tranca e colocasse nós dois para dentro do quarto, não seriam mais alguns amassos. Eu precisaria continuar convivendo com ele, teria que fingir quando isso terminasse que foi o suficiente, que não aconteceria de novo em prol do profissionalismo. Ele estava ciente disso, por isso havia me perguntado e em parte sabia que também era por causa do “arrependimento” que falei no outro dia. Estaria eu disposta a tratá-lo como mais um caso de uma noite? Analisei-o, suas pupilas dilatadas, suas bochechas coradas, sua respiração lerada, sua ereção contra o tecido da calça jeans. Era inegável que o queria também, visto que fui eu quem começou essa nossa dança perigosa por estar sofrendo com o desejo latente. Seria um desperdício parar, para mim e para ele. Se eu parasse, sabia que acabaria tendo uma recaída e fazendo de novo, até ter o que queria. Então, sim, eu podia fazer isso agora.
一 Me leva para dentro 一 pedi, acariciando seu cabelo incrivelmente macio.
Ele soltou o ar que segurava e fechou os olhos, parecendo aliviado. De certa forma, também estava e com expectativas do que poderia acontecer a partir daquele momento. Sem me soltar, colocou a chave e girou. Senti a porta que me apoiava se mover e depois seus lábios voltaram aos meus. Com certeza eu não esqueceria seus beijos tão facilmente quanto esperava, não quando sua língua acariciava a minha com tanta avidez ou quando parei e pensei em seu gosto tão deliciosamente diferente de tudo que já tinha provado. Entreguei-me tanto àquele beijo que me assustei ao sentir o colchão embaixo de mim. Ele pareceu não perceber, seus beijos desceram pelo meu queixo, maxilar, pescoço e logo estavam no decote da minha blusa. Eu estava beirando o desespero para tê-lo, não suportaria preliminar alguma agora. Alcancei o cós da sua calça, desabotoei e desci o zíper. Foi o suficiente para ele parar de beijar a curva dos meus seios e me encarar.
Um olhar foi o suficiente. Ele se levantou e começou a se despir. A luz que entrava pelo quarto era exclusivamente do poste atrás da persiana, mas ainda assim pude observá-lo tirar primeiro a jaqueta, depois a camiseta, a calça jeans, a cueca, até não sobrar nada o cobrindo. Não posso dizer com propriedade como era vê-lo nu por causa da parca iluminação, mas, pelo pouco que vi, tive certeza de que foi meticulosamente esculpido por Odin. Ele se aproximou, se encaixou no meio das minhas pernas, apoiou-se em uma mão e voltou a me beijar. Sua língua pediu passagem e eu concedi. Senti sua outra mão pousar na minha nuca e depois me puxar pra cima, me deixando sentada. Logo ele trabalhou em me despir, passou a blusa pelos meus braços, abriu o sutiã com uma facilidade notável e depois o jogou pelo quarto.
Minhas mãos passearam pelas suas costas, enquanto ele ainda me beijava, depois pela sua barriga e finalmente seu peito rijo que havia me apoiado no outro dia. Tocar era tão diferente de imaginar, eu lembrava quando o tinha visto sem camiseta pelas fotos, como meus dedos deslizaram pela tela do celular enquanto minha imaginação flutuava. Sua pele debaixo da minha palma parecia em brasa e era tão firme. Ele era meu. Por um momento, mas era.
Ele parecia dolorosamente envergado para poder me beijar, então deitei as costas no colchão mais uma vez e o trouxe comigo pelos braços. Ele se deitou por cima de mim, sua ereção tão perto do lugar que mais clamava por ela. A minha maldita calça jeans ainda estava ali e nos separava. Coloquei minha mão entre nossos corpos para tirá-la, acabei esbarrando nele e arrancando um gemido sôfrego. Ele parecia duro a ponto de incomodar. Parou de me beijar para arrancar a calça e a calcinha com certa ferocidade, atirando-as longe como fez com as outras peças. Depois, encaixou-se na minha entrada. Não havia como voltar dali.
? 一 chamei-o antes que ele pudesse dar início.
一 Sim? 一 Sua voz saiu mais rouca do que antes.
一 Só uma noite, certo? 一 perguntei, para garantir que ficamos entendidos. 一 Amanhã você volta a ser meu chefe.
一 Certo. Uma noite 一 confirmou.
E então ele empurrou os quadris, entrando em mim. Eu gritei. Ele estagnou no mesmo segundo, aparentemente achando que estava me machucando pelo som que emiti, mas foi de pura surpresa e prazer. Prendi os pés ao redor de seus glúteos e fiz força para que ele continuasse. De início, pude sentir seu receio, mas depois ele cedeu e continuou. Quando ele entrou totalmente em mim, me senti literalmente no céu. Foi como se tudo, de repente, estivesse certo e não houvesse nenhum problema no mundo. Sei que é egoísta pensar assim, mas naquele momento não conseguia pensar em nada melhor para descrever sem soar mesquinho da minha parte. Enquanto havia pessoas morrendo, havia pessoas vivendo e eu sentia que finalmente era uma delas. Ah, e como, de repente, era bom viver os anos 90.
Ele começou a se movimentar, arrancando gemidos de nós dois. De olhos bem abertos, vislumbrando o seu rosto, só consegui concluir que nós tínhamos o encaixe perfeito e que seria um desperdício não levar isso até o fim. Pude perceber que eu não estava muito longe do clímax, mas ele foi com calma. Segurava atrás dos meus joelhos e fazia um carinho ali. Seus quadris giravam, se enterravam fundo em mim e depois repetiam. Voltei a beijá-lo por estar viciada em seu gosto e por querer tê-lo por completo. Embrenhei meus dedos em seu cabelo, o trouxe para mais perto e aprofundei o beijo. Seus movimentos acabaram por ficar mais rápidos, acompanhando sua língua que travava uma batalha contra a minha e simplesmente foi demais para mim. Separei nossos lábios, minhas ancas foram de encontro com as suas e finalmente me senti atingindo o ponto máximo. Gemi seu nome como se fosse um segredo. E era, afinal. O fato de ninguém poder saber e amanhã termos que fingir que não aconteceu só tornava aquilo mais deliciosamente proibido.
Ele só conseguiu dar mais algumas estocadas até me seguir e tirar a tempo de ejacular na minha barriga. Seu corpo caiu ao lado do meu na cama e por alguns segundos o único som no quarto era o de nós dois tentando normalizar a respiração.
一 Foi bom para você? 一 perguntou, ofegante.
一 Sim. E para você? 一 perguntei, meio envergonhada por estar conversando depois de termos feito tudo isso.
一 Foi incrível 一 ele respondeu e depositou um beijo em meu ombro. 一 Estou tão cansado. Se importa se eu dormir um pouco?
Sorri, me empatizando pelo seu cansaço.
一 Tudo bem, eu também estou morta de cansaço. Nós andamos trabalhando muito, não é? 一 tentei soar natural, trazendo o assunto que temos em comum.
一 Para caralho. 一 Ele se virou para mim, seu polegar e indicador trouxeram meu queixo em sua direção. Observei-o através da penumbra. 一 Não precisa voltar para o seu quarto, se não quiser. Na verdade, eu adoraria que você dormisse comigo esta noite.
Não era muito o que eu tinha em mente depois de dizer que era só uma noite. Geralmente, eu fazia o que tinha para fazer, vestia minhas roupas e saía fora ou vice-versa.
Porém, seu tom foi tão doce e amável que bastou para me convencer. Fora que essa não era nada como as outras vezes. Eu estava tão apaixonada, que tinha a impressão de que sofreria caso ele me pedisse para ir embora. Não adiantava ficar ali, tentando mentir para mim mesma.
一 Posso dormir aqui 一 sussurrei. 一 Só preciso me limpar primeiro.
一 Ok. 一 Selou nossos lábios rapidamente. 一 Te esperarei aqui.
Levantei-me e fui até o banheiro. Tomei um banho para lavar a barriga e tirar um pouco do suor, mas sem molhar o cabelo. Meus pensamentos estavam nublados, sentia que estava adiando-os até acordar no dia seguinte e me dar conta do que fizera. E é claro: do que faria para esconder o que estava começando a sentir. Fora de cogitação deixar as coisas como estavam antes de tudo isso. Foi exatamente para evitar isso que fui até o fim.
Uma noite. Você só precisava de uma noite.
Repeti mentalmente enquanto voltava para o quarto. Optei por ficar sem roupa mesmo, aproveitando que estava escuro. Ele já dormia pela sua respiração pesada, mas sua mão estava espalmada onde eu estava deitada antes. Levantei seu braço, me deitei por baixo e pousei sua mão de volta na altura do meu estômago. Aquilo era íntimo demais e tinha a impressão de que eu deveria estar me incomodando, mas estava adorando cada segundo. Ele se remexeu, seus dedos deslizaram pela minha pele nua da barriga até a cintura e me trouxeram para mais perto dele.
一 Boa noite, 一 murmurou no meu ouvido com a voz embargada pelo sono.
一 Boa noite, 一 murmurei de volta, fechando os olhos.

***


Acordei com alguém batendo suavemente na porta. estava do meu lado, me fazendo lembrar que eu estava em seu quarto devido aos acontecimentos de ontem. Ele levantou e vestiu bem rápido uma calça de pijama, em seguida checando para ver se eu estava coberta o suficiente para abrir a porta.
一 Você não vai acreditar no que aconteceu. 一 Ouvi a voz animada de Börje, absorvendo as palavras com meu conhecimento medíocre em sueco. 一 Consegui adiantar nossas passagens para hoje. Vamos poder ficar alguns dias a mais em casa.
一 Bacana. Que horas é o voo? 一 perguntou , também em sueco, mas sem a mesma animação.
一 Daqui a duas horas, te acordei com antecedência para você poder ir acordar a .
Meu coração lerou quando ele disse meu nome. Por favor, aconteça o que acontecer, só não me veja aqui, sem roupas e dormindo com seu filho.
一 Ok, vou me preparar e a acordo 一 respondeu.
一 Espero vocês lá embaixo 一 despediu-se.
一 Beleza 一 disse.
A porta fechou. Soltei o ar que estava segurando, cobri o rosto com o cobertor. Essa foi por pouco. Imagina se ele me visse aqui! Eu nem teria cara para olhar para ele mais. Para quem corre o risco de ir parar na rua, eu andava arriscando demais. Praticamente rindo na cara do perigo.
Ele voltou ao meu encontro, parou ao meu lado e eu tirei o cobertor para olhá-lo.
一 Bom dia 一 ele disse e me deu um selinho. 一 Nós vamos para Estocolmo mais cedo. Se arrume, porque o voo é em duas horas e Börje está nos esperando lá embaixo 一 ele resumiu a conversa, achando que eu não tinha entendido ou escutado. Nós só íamos para a Suécia amanhã porque Börje só tinha conseguido passagens para esse dia, mas fiquei feliz e ansiosa que íamos para a casa deles mais cedo. Estava curiosa, afinal.
一 Bom dia 一 sorri ao vê-lo com o cabelo bagunçado pelo travesseiro, o tronco nu e a calça ao avesso. 一 Ele não percebeu que estou aqui, ? 一 perguntei para confirmar.
一 Não 一 ele sorriu de volta. 一 Ele pode até ter achado que tinha alguma mulher aqui por causa das roupas no chão, mas não desconfiou que era você.
Ai, meu Deus! As roupas! Fitei o sutiã branco bem perto do batente da porta e senti meu rosto esquentar.
一 Fique tranquila. Eu o conheço. Se ele tivesse achado que era você, eu perceberia de cara 一 garantiu. Eu suspirei e concordei com a cabeça, me sentindo mais confiante. 一 Vou tomar banho, você vem?
Espreguicei-me.
一 Pode ir, eu vou voltar para o meu quarto 一 declarei. Eu odiava ficar pelada durante o dia a ponto de revelar cada pedaço meu, tenho muitas inseguranças. Tomar banho com ele me enlouqueceria. Ele assentiu, sem demonstrar nenhuma emoção e saiu.
tinha entrado no banheiro e ligado o chuveiro, essa era minha deixa para voltar para o meu quarto e evitar um clima estranho depois de uma noite íntima demais. A partir daquele momento, aquilo nunca tinha acontecido e nem iria acontecer de novo. Principalmente chamá-lo de perfeito. Infelizmente, eu achava que essa seria uma lembrança que ficaria na nossa cabeça por um tempo. Porém, não podia chorar pelo leite derramado, mas trabalhar para não o derramar mais? Isso eu poderia e iria.
Catei minhas roupas do chão e as vesti, pensando se deveria deixar um bilhete pra ele. Decidi que sim, na escrivaninha tinha um bloco de papéis e caneta ao lado do telefone.
“Cumprindo com a minha palavra: nada aconteceu. Te espero lá embaixo, chefe.”
Não assinei, não é como se ele não soubesse de quem era.

Capítulo 7 - New Way Home

Eles voltaram pra Suécia, eu estava ali pela primeira vez. Estocolmo era linda e diferente dos outros países que visitamos, possuía mais verde e a temperatura era mais baixa — características de país nórdico que sempre associei na minha cabeça. Eu estava apaixonada por cada detalhe daquela cidade, era como se eu estivesse em processo de redescobrir minha nova casa naquele local. Mesmo que tivesse minutos que o avião tenha pousado, o sentimento de pertencimento estava presente tão forte que aumentava minha ansiedade pelo que estava por vir. Tudo me encantava, desde a marca do século 20 nos prédios envelhecidos com mãos de tintas de cores escuras que não eram mais apropriadas na minha época até o modo que todo mundo ali parecia muito alto e bonito.
Filmei todo o caminho do aeroporto para a casa dos , onde iríamos almoçar com a esposa de Börje e os irmãos de — a irmã dele ficaria famosa no futuro e ele produziria sua música, mas, por enquanto, ninguém sabia da existência dela porque aparentemente ela era só uma adolescente. Eu também fingiria que não sabia quem era ela, vinha cada vez mais me tornando profissional nisso. Acho que quando se é viajante do tempo, você está o tempo todo sobrevivendo, mas, enquanto está tudo correndo bem, o processo de sobreviver se torna natural. É por isso que sentia que estava me tornando profissional em fingir e as “meias verdades” saíam com naturalidade que quase poderia chamá-las de mentiras — o que me intrigava. Será que eu estava me tornando uma boa mentirosa?
O bairro era muito bem localizado com um comércio local bom e um parque pequeno ali perto. A casa era linda e grande. De primeira, o que se via era um jardim muito bem conservado, com plantas diversas — eu não entendo muito de plantas, mas sei dizer se elas são bem-cuidadas e aquelas definitivamente eram —, tinha espaço para duas árvores que pareciam bem floridas por causa da primavera iminente. Ao entrar na casa, o hall continha vários casacos pendurados que pareciam resquícios do inverno, já que estávamos usando apenas blusas de manga longa, e o chão era branco meticulosamente limpo. Börje nos conduziu para a sala de estar, onde tinha uma lareira limpa; na parede ao lado da lareira, uma TV que deveria ser cara pela quantidade de polegadas para a época, dois sofás que ficavam nas pontas do cômodo não-ocupadas e uma mesinha de centro com um tapete persa sob ela. Fui apresentada primeiramente à mulher de Börje que deveria ser apenas uns sete ou oito anos mais velha que eu, Karin, que não falava inglês fluentemente ainda, então me arrisquei com algumas palavras em sueco — surpreendendo , Börje e a mim mesma. Ela me fitou com olhos amorosos quando viu que eu conseguia formar frases na língua dela e não precisávamos dos dois traduzindo.
Depois que Börje e Karin deixaram a sala de estar, foi se sentar no sofá, eu o acompanhei me sentando em outro. Nós não tínhamos conversado muito naquele dia depois que saí do quarto, mas não porque estávamos nos estranhando, era por não ter nada que precisasse mais ser dito sobre o que aconteceu. Sentia que para ele era: “ok, nós dormimos juntos.” Para mim, internamente era: “eu dormi com meu ídolo, que também é meu chefe e agora estou conhecendo a família dele.” Estava completamente surtada, estava me controlando para ficar quieta porque sabia que quem estabeleceu isso fui eu, mas sabia que, se o assunto fosse minimamente abordado, seria capaz de explodir.
Ele pegou uma revista e Karin perguntou se eu queria beber Fläderblom. Eu itei, rezando para não ser bebida alcoólica, porque o estrago ontem foi o suficiente para o resto da vida. Eu não poderia arriscar acabar com a casca que criei com dificuldade falando de novo como ele era perfeito e tascando outro beijo nele.
Por mais que a oferta fosse tentadora, não. Só uma noite, era tudo que eu precisava.
— Você quer um pouco, ? — ela perguntou para ele, mostrando que também se referia a ele por e não . Lembrei que ele disse que as pessoas mais próximas usavam seu nome e me senti bem por ter conseguido estabelecer pelo menos essa barreira segura entre a gente. Eu o chamei de desde que o conheci, lá em 2019, também era mais natural continuar o chamando assim.
— Sim. Por favor — ele respondeu, voltando os olhos para a revista.
A casa era tão linda por dentro quanto era por fora, era possível perceber que a família dele era bem de vida. Porém, curiosamente não tinha uma foto em família. Tinha fotos de viagens, Börje e Karin juntos, mas nada de foto que continha os outros três membros. De alguma forma, isso me cheirava a frieza europeia.
— Não é como se eles fossem fugir! — Uma voz diferente soou pela casa, eu olhei para trás na direção do som que vinha da escada e dei de cara com uma adolescente que era a cara do . Logo atrás dela vinha outro garoto mais novo que era a cara dele também. Levantei-me para cumprimentá-los.
— Olá — a menina disse, em sueco, com um sorriso e estendendo a mão para mim. Levantei do sofá e apertei a mão dela. — Lilly.
— respondi, sorrindo de volta e soltando sua mão.
— Andreas — o garoto falou, tímido. Ergueu a mão e eu também apertei a dele. — Mas, se quiser, pode chamar de Dre. É como todo mundo geralmente me chama.
— Prazer em conhecer vocês — comentei em sueco.
— Seu sotaque é bonitinho, de onde é? — ela perguntou. O garoto passou a cumprimentar animadamente o irmão mais velho e era bizarro como um era a cara do outro. Aqueles três ali perto um do outro era impossível mentir e falar que eles não eram da mesma família. Börje e até valiam a tentativa. Apesar de que os genes de Börje eram bem fortes, seus filhos eram cópias dele.
— Brasil — comentei, me sentando de novo no sofá. Ela me acompanhou, sentando-se no sofá na ponta oposta a que estava.
— Ah! Uma brasileira! Dre! — chamou, elevando a voz e se virando para eles. — Ela é brasileira, você perdeu a aposta — ela falou para o irmão, que fez uma carranca e olhou para ela. — Regras são regras.
Ele veio até ela, entregou duas cédulas que estavam em seu bolso.
— O que vocês apostaram? — perguntei, com curiosidade.
— Melhor não perguntar isso — advertiu em inglês, mas ainda soando divertido.
Lilly deu uma risadinha sapeca, Andreas estava bravo ainda por ter perdido a aposta e se sentou no braço do sofá ao lado do irmão.
— Como assim? — questionei.
— A gente apostou se a próxima namorada dele seria outra sueca. Eu disse que ele está ficando famoso demais para isso, ainda mais fazendo uma tour para promover o disco novo, mas o Dre acha que ele é chato demais para sair da zona de conforto e arrumar uma estrangeira — Lilly explicou em inglês. Eu abri a boca, impressionada demais para falar qualquer coisa, e fechei de novo. Eles achavam que eu estava namorando o irmão mais velho deles?
bufou, desdenhando, e sem negar que estávamos tendo algo.
— Mas faz sentido mesmo, você é um chato. Aposto que foi ela quem tomou a iniciativa — Lilly disse para ele.
— Parem de gracinha, estão deixando a nossa convidada sem graça — Börje disse, passando pela sala.
— Está tudo bem — respondi, sentindo meu rosto queimar. Por que não conseguia negar também? Uma parte de mim, a parte apaixonada por , estava até gostando da sensação de ouvir aquilo. Eu estava pisando, ou melhor, sapateando no que estabeleci ontem.
Uma noite, . Você teve uma noite.
— Ouvi dizer que os brasileiros não têm vergonha de nada! É verdade? — ela perguntou.
— Não. Por que a gente não teria? — perguntei com certo ultraje por estar me sentindo envergonhada naquele segundo pelo que estava rolando ali.
— Minha professora de inglês disse que vocês sambam usando biquínis bem pequenos, que mostram coisas que os europeus nem sonham que têm — ela respondeu.
— Isso é no carnaval, mas nem todo mundo participa. Eu não participo. — Admiro o feriado, mas nunca fui de ir para bloquinhos quando morava no Brasil. Eu preferia eventos mais privados, pela fama dos meus pais e de ser fotografada fazendo algo fora da curva da normalidade. Apesar de que os paparazzis não viviam atrás de mim porque não ando muito com minha mãe ou meu pai e, se não estou com eles, sou apenas uma garota normal. Não sou como a Sasha, filha da Xuxa, que também é famosa.
— Carnival? — ela chutou para o termo que eles mais conheciam.
— Não, carnaval — falei com entonação no segundo “a”. — É nesse feriado, que é uma grande festa colorida, que as pessoas geralmente sambam. No resto dos dias, não é tão normal sambar. A menos que esteja tocando samba, é claro — expliquei.
— Carna...val? — ela disse de um jeito engraçado. Confirmei com a cabeça, sorrindo. — Depois você pode me falar mais desse evento?
— Claro — sorri, simpática.
Börje serviu copos para nós quatro, em seguida voltou para a cozinha. Dei um gole e percebi que era algo próximo de um suco, muito gostoso, uma mistura de doce e cítrico. Lilly me encarava enquanto pousava o copo em sua coxa.
— Então... Como você seduziu meu irmão? — ela perguntou indo direto ao assunto com certa inocência.
Quase cuspi o líquido todo que estava na minha boca.
— Lilly — censurou. Andreas ria da minha reação e tentava esconder com a mão.
Meu Deus! Ela era bem direta, hein? Coloquei o copo no descansa-copos.
— Ahm... Eu não.... — gaguejei, sem nem saber o que responder. (ou eu deveria dizer “traidor”?) após censurá-la, deu de ombros e voltou a discutir algo da revista com Andreas, que parava de rir aos poucos.
Ela olhou para os dois e depois ficou bem perto de mim, colocou a mão no meu cabelo como se fosse contar um segredo.
— Você gosta dele,? — ela sussurrou no meu ouvido. Mostrando que sabia que nós não namorávamos, mas que algo pairava no ar. Eu olhei meio sem graça para ela, mas não disse nada. — Tudo bem, eu também sou mulher. — Se afastou um pouco, dando um sorriso triunfante. — Vocês já se beijaram?
Fiz que sim com a cabeça. Não acreditava que estava tendo aquela conversa com uma adolescente, ainda por cima com a irmã do meu ídolo, mas tinha algo naqueles olhos que estavam me fazendo falar a verdade. Algo também relacionado com minha vontade de explodir.
— E já...? — ela disse se referindo àquilo. Arregalei os olhos, olhei para para me certificar de que ele não estava nem perto de ouvir essa conversa. Ela pareceu entender tudo. — Entendi, já. Nossa. — Ela estava visivelmente surpresa. — Como foi?
Olhei para ela, aqueles mesmos olhos familiares me encaravam curiosos e incisivos. Eu estava tonta e nauseada por conta de como aquela conversa evoluiu rápido demais, de carnaval para o que aconteceu ontem à noite. Estava escrito na minha testa, por acaso? Tinha um anúncio dizendo “eu dormi com ele ontem”? Não era possível que aquela menina era sagaz a esse ponto. Tentei pensar numa resposta para dar para uma adolescente, mas não sabia como fazer isso sem ser uma tarada. Era o irmão dela!
— Todo mundo para a mesa! — Börje gritou de outro cômodo. Minha vontade era beijá-lo por ter me livrado daquela conversa constrangedora.
— Depois continuamos — Lilly avisou e piscou um olho.
Se dependesse de mim, iria fazer o máximo para que não.
O almoço era rökt lax — fatias de salmão com batata cozida, endro e molho branco. Eu conhecia aquele prato muito bem, tinha um restaurante sueco perto do meu apartamento em Birmingham, eu comia lá quando tinha dinheiro e queria ostentar fazendo um agrado para mim mesma. Parecia realmente um outro tempo pensar em pequenas coisas assim que costumavam ser normais. Comemos em silêncio, Börje estava em uma ponta da mesa e Karin na outra, como bons chefes de família. Andreas estava de frente para mim, Lilly ao seu lado e eu estava no outro lado da mesa perto de . Ela não tirava os olhos de mim e dele, provavelmente arquitetando o que ia falar a seguir para me matar de vergonha.
— Como vocês dois se conheceram? — ela perguntou, mostrando que eu tinha razão.
Enfiei uma grande quantidade de batata na boca para não ter que responder. Aquela menina ia me fazer ter um ataque de vergonha.
— Nos conhecemos em Portugal. — Foi quem abriu a boca para respondê-la em sueco. — Ela era uma fã que não tinha para onde ir. Por isso, ela precisava de emprego e de um lugar para ficar. A gente conversou e agora ela está trabalhando como minha assistente. Satisfeita ou vai perguntar mais alguma coisa que faça a garota levantar e sair correndo de tanto desconforto? — disse com severidade.
Engoli o bolo de batata que quase ficou preso na minha garganta. Lilly soltou uma risada debochada e notei que seu sorriso parecia muito com o dele. O resto comia tranquilamente, como se o possível embate fosse algo corriqueiro.
— Assistente... Que caridoso. Uma pessoa aparece falando que não tem teto, você imediatamente oferece o seu teto — ela respondeu também em sueco.
Achei meio rude a forma com que ela falou, mas concordava. Era meio improvável que alguém me itasse da forma com que ele itou, ainda mais por eu ser sua fã e ter mentido logo de cara. Bom, eu não me itaria, se estivesse no lugar dele.
— E você acha que eu deveria ter feito o quê? — rebateu, ainda impassível. — Era alguém precisando de ajuda e eu podia ajudar.
— Não, era uma mulher precisando de ajuda e é claro que você se prontificou a ajudar — falou com um toque de sarcasmo pingando em seu tom de voz.
Meu rosto imediatamente esquentou.
— Lilly, pare imediatamente, isso é desagradável — interveio Börje em inglês, erguendo os olhos de seu prato. — Além do mais, eles se conheciam de antes, a fugiu de casa porque estava grávida do e acabou perdendo o bebê no caminho.
Solucei, nervosa demais com aquela mentira emergindo das profundezas do inferno. Foi isso que ele contou para acobertar minha história maluca? e Börje comiam tranquilamente. Lilly, Andreas e Karin me olhavam como se eu tivesse um peixe morto na cabeça.
— Eu... sinto muito — ela disse, sem saber como agir e se acreditava naquela história.
— Foi um erro e não vai voltar a acontecer — respondeu.
Essa, com certeza, foi uma resposta grosseira. Tive a impressão de que ele falava sobre nós dois, dando um basta no que realmente poderia resultar de ontem à noite. Não sei dizer o motivo para estar me sentindo magoada, mas eu estava.
Comemos e esperamos até a última pessoa terminar — no caso, Andreas, que ainda me observava como se tivesse algo morto na minha cabeça, principalmente depois da declaração de Börje. Bebíamos café na sala de estar, a mesma que estávamos antes de irmos almoçar. Em algum ponto, Lilly me carregou para o seu quarto levando a xícara cheia, sob o olhar feio de seu irmão mais velho. Ele deveria ter me salvado enquanto era tempo, mas apenas me observou.
— Vamos continuar nossa conversa — ela disse, fechando a porta.
— Ahm, Lilly... não me leve a mal, mas é que o seu irmão não parece gostar muito que a gente fique conversando sobre nós dois — falei. Ah, e porque eu acabei de presenciar um embate lá embaixo de vocês dois por minha causa e você foi muito grosseira. Com razão, mas ainda grosseira. Completei mentalmente.
— Ele é um idiota, não ligue para ele. Você é tipo luz que me apareceu no fim do poço, porque eu tenho 17 anos e não tenho ninguém para conversar sobre sexo. Karin e eu não temos tanta intimidade assim e eu prefiro alguém mais jovem que me entenda — ela disse tudo rápido demais. Karin era bem jovem, mas entendi que ela simbolizava a madrasta e não a amiga para Lilly.
— É o seu irmão, você não vai querer ouvir essas coisas sendo que o cara em questão é ele — justifiquei.
— Melhor meu irmão do que meu pai, confie em mim. — Ela se sentou na cama. Analisei o quarto e era um cômodo típico para adolescentes, as paredes e algumas decorações eram rosa, havia pôsteres de ídolos dos anos 80. Tinha uma escrivaninha bagunçada com vários papéis, no chão tinha uma pilha de roupas e um guarda-roupa tombando com a bagunça de dentro.
Eu já tinha passado por aquilo e sabia muito bem que era confortável estar assim no próprio quarto porque, quando se é adolescente, você se sente bagunçado o tempo todo.
Ela pediu para que eu me sentasse na cama de solteiro com lençol cor de rosa e seus olhos se tornaram pidões quando viram que eu estava relutante em me entregar. Ela parecia o maldito gato de botas. Para manter uma distância segura daqueles olhos, arrastei a cadeira da escrivaninha. Ela recolheu rapidamente as roupas que estavam ali, jogando tudo no chão.
— ‘Tá. O que você quer saber? — perguntei, me rendendo. Ela parecia realmente contar comigo para o assunto em questão.
— Dói? — ela perguntou, inocentemente. Abraçada com uma joaninha de pelúcia.
— Na primeira vez sim, depois não. Por isso, você tem que procurar alguém que te respeite...
— Blá, blá, blá — ela me interrompeu revirando os olhos. — Disso já sei, . Nunca abriria minhas pernas para um babaca. Não precisa falar que nem uma adulta.
Concordei com a cabeça, tinha que me acostumar com esse jeito dela de falar tudo na cara. Nunca gostei muito de pessoas assim, mas, por incrível que pareça, com ela não me causava repulsa. Só me fazia querer entendê-la mais.
— Você era virgem quando conheceu meu irmão? — ela perguntou com inocência.
— Não — respondi, me controlando para não fazer uma careta ao relembrar minha primeira vez.
— Ele foi bom para você?
Senti minhas bochechas esquentarem, agora flashes da noite passada ressurgiram e eu deixei com que invadissem minha visão. Eu disse que estava prestes a explodir e que aconteceria, se o assunto fosse abordado; era por isso que nem relutei a responder:
— Muito — falei, pensativa, e definitivamente querendo repetir. Por mais que eu tenha dito que nada mudaria e prometido que seria só uma noite, ele foi bom demais, e eu não era de ferro.
Ela soltou uma risadinha afetada.
— Foi só uma vez?
— Sim. E será a única.
— Hmmm... — ela parou um pouco e me analisou. — Deixa eu ver se entendi. Vocês fizeram e você acabou perdendo o bebê, é isso? — perguntou. Assenti, sentindo meu rosto ficando vermelho pela mentira. É, eu não tinha me tornado boa mentirosa. Ela pareceu não notar minha pele pegando fogo. — Agora você é a assistente dele, depois de se envolverem. — Coçou o queixo. — Isso não vai funcionar, já parou para pensar que vão morar na mesma casa? Só você e ele.
Não. Não tinha parado pra pensar, porque, para mim, ele ainda morava nessa casa com a família. Me senti inocente por pensar que um homem de 24 anos, em 1990 e independente financeiramente, moraria com o pai.
— Escute. Não é bem assim — ensaiei outra mentira para convencer a nós duas. — Nós estávamos sob efeito de álcool quando aconteceu, tornando toda a atmosfera atípica.
O nó de excitação abaixo do meu umbigo que estava me incomodando provava que tudo não passava de mentira. Não foi atípico nada, eu o desejava desde que cheguei aqui. Porém, sabendo do que ele era capaz de me fazer sentir, tudo estava pior.
— Mas você gosta dele — ela sorriu de lado.
Ok, eu não podia negar isso para ela porque não estava com paciência para mergulhar em um diálogo que precisaria mentir mais ainda para convencê-la e que só iria acabar quando uma de nós duas cedesse. Lilly não parecia ser do tipo que cedia.
— Sei disfarçar — me limitei a dizer apenas isso. — Pode guardar esse segredo, certo?
Ela concordou com a cabeça, pensativa demais de novo. Bem, esperava que ela realmente guardasse, não queria que ele pensasse que nutri sentimentos depois da nossa primeira e única vez, porque, provavelmente, é o que passará pela sua cabeça. Isso resultaria em uma grande confusão.
— Agora que você já percebeu que Börje é nosso pai, estou falando isso porque sei que ele não deve ter te falado, vou te contar uma coisa: ele tinha treze anos quando nossos pais se separaram. Foi uma situação muito maluca, tivemos que nos separar também — quebrou o silêncio que deve ter durado mais ou menos um minuto. Suspirou. — Ele, Dre e meu pai se mudaram para um apartamento. Eu fiquei com minha mãe. E, droga, ela era uma péssima mãe — o tom de voz dela ficou meio triste e afetado. — Péssima mesmo. Ela não me queria mais e me mandou morar com eles pouco tempo depois. Nunca tive um referencial feminino na minha vida, eu só tinha sete anos e cuidou de mim e de Dre enquanto nosso pai trabalhava feito um condenado para nos sustentar.
Suspirei, com pena dela. Eu não fazia ideia de como era me sentir assim, meus pais não foram lá muito presentes durante a minha vida, mas querendo ou não eles ainda estavam ali de algum jeito. Ao ver os olhos tristes dela, percebi que pelo menos meus pais tentavam me encaixar na agenda lotada deles às vezes.
— Sinto muito — falei, sinceramente.
— Está tudo bem — ela enxugou uma lágrima que insistia em cair. — Deve estar me achando maluca por falar isso para uma menina que acabei de conhecer, mas quero chamar sua atenção porque vocês vão morar na mesma casa e meu irmão é minha vida. Eu quero vê-lo feliz — sorriu minimamente. — Bem, acho que está faltando mesmo um toque feminino para transformar aquele viciado em trabalho em homem de verdade.
Sorri e peguei a mão dela. Ela ainda achava que nós ficaríamos juntos pela forma que falou a última frase, mas, ao contrário de quando estávamos lá embaixo, agora eu precisava negar. Pelo bem do emocional dela. Eu não faria promessas de me comprometer romanticamente porque nem sei se ele me queria ou o que estava sentindo. Afinal, fui eu quem impôs essa barreira entre a gente, para não dar espaço para arrependimentos.
— Não posso me comprometer com isso no quesito romântico, mas pode contar comigo para tentar fazer isso como uma amiga — respondi.
— E caímos em um questionamento importante — ela semicerrou os olhos. — Será mesmo que vocês vão conseguir ficar só amigos? — ela perguntou, se levantando. Imitei-a. Abriu os olhos de novo e sorriu. — Obrigada, . E desculpa por ter sido grosseira lá embaixo — disse e eu concordei com a cabeça, mostrando que estava tudo bem. Não guardaria mágoas de uma adolescente, ainda mais a irmã do meu ídolo. — Vou reservar algumas perguntas para a próxima vez que nos vermos. Se prepare, porque vão ser piores — brincou.
Nós duas rimos e descemos as escadas.
estava de pé, acompanhando com o olhar nós duas descermos as escadas.
— Qual foi o tipo de lavagem cerebral que ela fez dessa vez? — perguntou.
— A gente só estava falando coisas de mulher, seu bobão — ela respondeu.
Ele semicerrou os olhos para ela, igualzinho ao que ela tinha acabado de fazer para mim. Foi bizarro ver o quanto os dois eram parecidos.
— Sei — respondeu, desconfiado. — Vocês deixaram tudo certo lá, ?
Ele perguntou para os dois irmãos. Os dois responderam positivamente e deram de ombros.
— Então vamos? — ele perguntou para mim, eu concordei com a cabeça e me despedi de todos da casa, exceto por Börje, que ia levar a gente.
morava mais no centro de Estocolmo ainda, onde a cidade tinha mais cara de capital e mais prédios “novos”. Ele carregou a mala dele e a minha escada acima, depois destrancou a porta e entrou. Respirei fundo antes de encarar o que me esperava. É só por um tempo, até eu conseguir um espaço só meu.
Entrei no apartamento e fechei a porta, trancando logo em seguida.
Era isso, eu estava oficialmente morando com meu ídolo.

***


O apartamento dele era claramente masculino pelo pouco que observei do corredor, assim que fechei a porta. Um cachorro pulou em mim no momento em que entrei, foi um pulo tão alto que acabei pegando-o nos meus braços. Ele era de porte médio, então o segurei toda desengonçada enquanto ele lambia todo o meu rosto.
— Esse daí é o Solveig — falou.
Eu olhei para em choque. Quê? Solveig? Igual ao elefante Solveig? Isso era uma brincadeira, só pode ser. Talvez uma infeliz coincidência? Não podia significar nada.
As paranoias da minha cabeça gritavam: destino, divindades, maldição.
O cachorro branco e cinza me olhava animado, como se tivesse extremamente feliz por me conhecer e totalmente alheio à minha preocupação. Fiz carinho em sua cabeça e dei um beijinho no focinho dele que retribuiu com mais lambidas.
— Bom, pode ficar à vontade, porque agora a casa também é sua — disse entrando mais ainda na casa. — Você pode ficar com o quarto.
Segui-o. Passei pela sala — o cômodo tinha muitas informações, uma TV antiga com um videocassete, um móvel de madeira escura ao redor dela com inúmeros vinis e fitas cassete, um toca disco e um som toca fitas em uma prateleira acima da televisão, um sofá xadrez pequeno comparado ao de Börje. O chão possuía carpete e a cozinha era americana; do lado do sofá, uma pequena varanda do outro lado da porta de vidro. Em seguida, passei por um quarto no corredor que aparentemente era o estúdio dele porque era possível ver alguns instrumentos de relance pela fresta aberta da porta, um banheiro do lado contrário da parede. Entrei no quarto que ele estava. Ali tinha uma cama de casal, mesas de cabeceira, guarda-roupa, em um lado da parede uma TV de girar o botão — a qual eu já sabia que não me dava bem — e, ao lado, a porta do banheiro. Tudo meticulosamente no lugar, mas tive a impressão de que nem sempre era assim e alguém que não foi ele organizou tudo. Provavelmente Lilly.
— E você vai dormir onde? — perguntei.
— No sofá — ele respondeu, tirando algumas coisas do guarda-roupa. — Toalha — estendeu para mim e eu a peguei. — Os lençóis da cama são novos, pedi para Lilly trocar anteontem.
— Você vai abdicar da sua própria cama de novo? — perguntei com certo divertimento.
— A menos que você queira dormir comigo de novo — sorriu de lado e voltou a se virar para mexer no guarda-roupa. Tinha que admitir que foi uma boa piadinha, mas meu corpo manifestou que levou a sério e que queria muito.
Trancar-me no quarto me faria ficar longe dele. Eu não confiava mais em mim mesma, então seria o melhor.
Ele guardou a mala no guarda-roupa e tirou algumas coisas para conseguir se virar sem entrar muito no quarto, por enquanto. Fechou a porta quando saiu e eu finalmente me joguei na cama. Aquilo seria definitivamente complicado. Toda vez que ele passava por mim eu lembrava de como era sentir as mãos dele passando por mim, a forma que ele me olhou e a textura do cabelo dele nas minhas mãos. Faria qualquer coisa para repetir aquilo, mas não podia. Era totalmente errado. Dessa vez, tinha até mesmo um motivo para ser errado: eu precisava de um teto e como ficaria ali se ele simplesmente cansasse de mim? E se eu não tivesse sido boa o suficiente para ele e ele se arrependesse depois?
Lágrimas encheram meus olhos e cegaram minha visão. Não acreditava que eu estava chorando por uma noite! Eu nunca fiz isso antes. Ele não tinha obrigação emocional nenhuma comigo. Quantas pessoas não dormem umas com as outras e simplesmente fica por isso mesmo? Eu faço isso! — ou eu deveria dizer “fazia”? Depois da noite passada, acho que não vou querer me envolver com mais ninguém. E, afinal, eu sabia que não seria fácil fazer com que ele me correspondesse, não era só cair do céu na vida do garoto, dormir juntos e pronto.
Estava sendo tão mesquinha que até mesmo esqueci o motivo de estar na sua vida e em sua casa: meu emprego. Se nós ficássemos juntos para valer, eu perderia meu trabalho. Não daria para separar as duas coisas e nosso trabalho seria prejudicado. Então era melhor jogar no mais seguro.
Mas incomodava tanto.
Lembrei do site que falava sobre as almas gêmeas e as lágrimas começaram a deslizar pelo meu rosto.
Contrariando o que ele dizia, achava que minha missão ali não era ser um par romântico para e sim alguém para mudar o passado. Tudo conspirava para que eu parasse de buscar uma atração romântica vinda dele, como: meu emprego, morar com ele, nossa recaída, o fato de eu não saber se vou embora, sua morte precoce. Se aquela maldição estivesse mesmo certa, eu o faria sofrer voltando para meu tempo, caso ele venha a me amar um dia. Então, eu tinha que mudar totalmente minha abordagem para tentar salvá-lo. Precisava ser apenas sua assistente e começar a observá-lo de perto, ao mesmo tempo que construía minha vida do zero nesse país novo. Quando me mudei para a Inglaterra, senti que estava construindo minha vida do zero, mas agora, olhando para o teto do quarto do meu ídolo que me fez viajar vinte e nove anos, a sensação é totalmente inédita. Eu precisava salvá-lo, essa era minha única certeza.
E é... Eu ia me ater a isso.
Não vou dizer que o esqueceria por completo, porque é impossível, mas faria o possível para esquecer o seu toque e seus beijos.
E rezar para que desse certo.

Capítulo 8 - Heart of Glass

Dormir depois de chorar era uma das coisas que mais me aconteciam. Meus olhos acordavam inchados, meu nariz ficava vermelho e entupido, mas a vontade de chorar pelo menos ia embora.
Aparentemente, era para eu tomar uma parte do guarda-roupa, já que ele tinha tirado algumas roupas propositalmente para eu colocar as minhas. Então organizei-as, sem invadir muito o espaço dele.
Peguei uma muda de roupa e outras coisas para poder tomar banho. Lavei o cabelo e me ensaboei preguiçosamente. Adiando o momento que eu teria de sair do quarto para não parecer antissocial. Porém, tem uma hora que não tem jeito, então abri a porta e deixei minha toca.
Já era noite, parecia oito horas pelo sol que começava a se pôr no horário de verão e não estava na sala, nem em algum lugar visível da casa. Refiz meu caminho e a porta do estúdio estava fechada. Tudo indicava que ele estava lá, era ali que toda a magia acontecia. Grudei meu ouvido na porta e ouvi ele dedilhando o violão em uma melodia conhecida, And I Love Her dos Beatles. Ele parava um pouco, depois continuava — provavelmente divagando.
Eu não iria incomodá-lo, é claro.
Procurei Solveig — que com fé era apenas um cachorrinho inocente e não uma divindade que me jogaria para o século 19 —, mas ele não estava em nenhum lugar visível. Provavelmente estava com seu pai. Desci para procurar algum restaurante pelas redondezas e para clarear a mente também. Era uma noite típica da primavera nos anos 90, as pessoas conversavam alto pelas ruas com seus estilos de roupas, suas gírias, seus trejeitos. Pareciam todas procurar uma nova aventura, era uma década jovem. Eu definitivamente não me sentia em casa, onde todos andavam por aí com os olhos em seus smartphones e pareciam grosseiros demais.
Tinha um mercado ali perto que vendia kebab, pedi quatro e, enquanto ficava pronto, andei pelos corredores para comprar algumas coisas para conseguir fazer algumas receitas.
Os itens nos mercados eram diferentes do que eu estava acostumada, a maioria das marcas ou produtos não existia e tive que procurar alternativas. No final, deu certo e paguei com o dinheiro que ele me deu quando me contratou e que eu havia trocado na casa de câmbio do aeroporto. Depois fui embora. Ainda bem que as coisas nessa época eram incrivelmente baratas, então o dinheiro rendeu e sobrou até que bastante.
Quando voltei para o apartamento, ele estava no mesmo lugar. Resolvi assistir televisão na sala para esperá-lo, até que já passava de meia-noite e minha barriga roncava. Levantei-me e fui comer sozinha.
Comi devagar, esperando por ele. No entanto, ele não apareceu. Arrumei tudo e deixei a sacola com os outros dois em cima da pia para ele ver quando sentisse fome, desliguei a TV e fui dormir. De repente, me senti incrivelmente solitária e ele me pedindo para dormir com ele na noite passada invadiu meu pensamento, tratei logo de espantar o sentimento.
De manhã, eu acordei bem cedo para fazer geleia e panquecas no estilo americano. Lembrei que ele gostava por causa de uma das músicas do segundo álbum solo, que seria lançado só em 1997. Ele estava dormindo na sala, virado para o lado do encosto, deveria ser desconfortável, porque boa parte das pernas dele sequer cabiam no sofá.
Quando estava tudo pronto e eu estava limpando a bagunça que fiz, ele entrou pela porta da cozinha com o cabelo bagunçado e vestindo uma calça de pijama listrada e uma camiseta do Aerosmith.
— Que cheiro é esse? — ele perguntou, espiando.
— Não está reconhecendo? — perguntei, jogando o pano de prato em cima da bancada e tirando o prato de cima da comida. — Panqueca com geleia de morango.
— Nunca comi, mas parece ser gostoso — comentou, analisando as panquecas.
— Como assim nunca comeu? Você disse na... Ah — falei rápido e depois surgiu a possibilidade na minha mente de que talvez fosse eu. Naquela música, poderia ser eu quem fazia panquecas e geleia para ele. Uau. Será?
Era melhor eu ficar calada.
Se fosse o caso, isso dizia muito. Minha presença ali naquele século já estava premeditada desde o começo. Solveig entrou pulando na cozinha, pegava uma vasilha cheia de ração no armário para servir o pote dele, alheio à minha cara de choque com a revelação. Servi um pouco das panquecas para ele em outro prato.
— Obrigado — ele disse, pegando o prato e se sentando na bancada da cozinha. Cutuquei um pouco da minha, mas de repente fiquei sem fome com a chance de ser a pessoa que ele falava na música.
Eu lembro claramente que ele falava que sentia falta do dias das panquecas com geleia, que desejava que a pessoa estivesse bem. Nosso futuro juntos não poderia mesmo ser nada promissor, combinava perfeitamente com o que a maldição prometia. Ele sofria naquela música e queria desaparecer, senti angústia pela possibilidade de ser eu a magoá-lo daquele jeito.
Isso só serviu para corroborar o plano de tentar não me aproximar romanticamente dele de ontem. Eu poderia fazer com que ele não passasse por isso. Se fosse realmente eu na música, obviamente. Só poderia responder por mim e deixar viver uma vida normal, como se nada entre nós tivesse acontecido. Se ele tivesse que sofrer, que sofresse por alguém da mesma época dele, não uma viajante como eu.
Apesar de que, depois do almoço de ontem, uma parte minha gritava que ele nunca se apaixonaria por alguém como eu. Ele deveria ter consciência de que foi apenas uma noite, devo ter sido só mais uma na sua lista. Então, apenas mais uma coincidência, assim como Solveig ter o mesmo nome do elefante mágico que provavelmente me jogou aqui. Eu não iria parar no século 19, não iria se apaixonar por mim e em breve irei embora depois de ter certeza de que ele estava salvo. Assim que eu descobrir como fazer para sair daqui.
— Isso daqui é muito bom — ele comentou de boca cheia.
É, estou dolorosamente ciente de que essa comida o agrada até demais. Dei um sorriso amarelo. O único barulho audível era Solveig comendo a ração.
— Você pode dar uma volta pela cidade, se quiser. Não precisa ficar esperando por mim, não sou a melhor companhia quando entro em processo criativo — ele disse, devorando o restinho das panquecas de uma vez só. Ele as comeu tão rápido que mal consegui acompanhar.
— Na verdade, eu tenho algo em mente para você hoje — anunciei, tomando a liberdade que ele me deu de organizar sua agenda. — Vamos ao médico checar a sua saúde — falei como se eu fosse a agente dele, não a garota que morava com ele.
— Eu tenho 24 anos, não 60 — respondeu, deixando bem claro o que pensei anteriormente.
No entanto, estou irredutível.
— Ah, é? Então por que você tem problemas de saúde que te impedem de fazer algumas coisas? — cruzei os braços, me impondo.
— Como assim? — ele franziu o cenho.
— Você sabe o que estou falando. Do seu problema no coração.
Ele ficou sério, seus olhos ficaram nublados imediatamente.
— Como você sabe disso? Nunca contei para ninguém — sua voz engrossou.
Falei sem pensar, é claro. E me lasquei, não dava nem para falar que Lilly tinha me contado. Eu nem sabia que ele já sabia. Joguei verde. As pessoas começaram a falar isso depois que ele morreu, então era verdade.
— Circula um rumor por aí que você não faz shows porque tem problema no coração — revelei o que sabia.
— Hm — ele me analisou, dava para ver que ele não acreditou, mas também não queria continuar aquele assunto. — Não é totalmente verdade, mas não quero falar sobre isso. E não posso ir hoje, estarei ocupado.
, você vai. Sua agenda está praticamente vazia pelos próximos dias — rebati, autoritária.
— Por isso que vou usá-los para trabalhar compondo — ele respondeu, levantando e deixando o prato na pia. Ele ia saindo, mas o puxei pelo pulso.
— Por favor — pedi, olhando sinceramente no fundo dos olhos dele. Ele sustentou o olhar e parecia estar enfrentando uma batalha interna.
... — ele soprou, baixinho, em aviso.
— Por favor, ? — arrisquei seu nome com toda a meiguice que eu tinha guardada para situações como essa.
Ele suspirou e fechou os olhos. Quando abriu, estavam nos habituais, mas com um brilho diferente. Usei aquela estratégia só para convencê-lo e aparentemente tive sucesso. Virei a cabeça, esperando uma resposta.
— Ok, eu vou. Mas só se você me prometer que vai tentar fazer panquecas com geleia todas as manhãs.
— Tudo bem, parece justo — sorri e larguei o pulso dele. — Temos que sair daqui a 30 minutos para dar tempo de conseguir um táxi...
— Relaxa, eu tenho carro. Não precisamos pegar táxi aqui.
— Então te dou 40 minutos para estar pronto aqui na minha frente — falei, autoritária.
Ele saiu. Ouvi-o resmungando na sala, o que me fez rir. Olhei pra Solveig que estava sentado do lado da ração de boca aberta, parecendo estar sorrindo também e pisquei um olho para ele. Estávamos começando a fazer progressos, afinal.

***


Entramos no Volvo cinza conversível consideravelmente novo para a época. Claramente já tinha uns anos de uso e era um modelo do início dos anos 80, mas ainda era bem arrumado e parecia clássico. Ele engatou a ré e tirou o carro da baliza na rua. Ligou o rádio, a voz do locutor pairou no ar, coincidentemente tocaria a seguir Drive do The Cars. Conhecia muito bem essa música, ela era uma das minhas favoritas dos anos 80, escutei-a sem parar durante um bom tempo. dirigia tranquilamente, totalmente alheio à animação que me dominava a cada segundo. Em um surto repentino, girei a manivela e abri o vidro inteiro.
Nós entramos em uma rodovia vazia, coloquei minha cabeça para fora para admirar a paisagem de um país nórdico que era simplesmente de tirar o fôlego. Todo aquele verde intocado nos morros que passavam pela janela me encantava. A sensação foi a de finalmente estar no lugar certo na hora certa.
— Baixa a capota — pedi, colocando a cabeça para dentro.
— O quê? — ele perguntou, aumentando a voz por cima do vento que entrava pela minha janela aberta.
— É um conversível, não é? — perguntei mais alto, ele assentiu. — Então baixa a capota.
A música começou ao mesmo tempo em que ele apertou um botão no painel e senti o vento chicotear meu rosto de uma só vez. Soltei um gritinho de surpresa, arrancando uma risada dele. O velocímetro marcava 90km/h e subia a cada segundo. Aumentei o som do rádio e coloquei os braços para cima. Meu cabelo perdendo toda a ordem que estabeleci poucos minutos antes na frente do espelho do banheiro.
— Eu estou em um Volvo conversível na Suécia! — gritei e depois ri. Completei mentalmente: e nos anos 90!. Ele soltou uma risada gostosa enquanto segurava o volante, depois me lançou um olhar indecifrável com um sorriso de lado.
O olhar dele me fez sentir tantas coisas, eu queria falar sobre nós. Eu queria que houvesse um “nós” para falar, mas só existia eu, a viajante do tempo apaixonada, e ele, o meu ídolo que precisava ser salvo. Então, antes de abrir minha boca para falar qualquer coisa que pudesse comprometer a minha estadia em 1990, abri-a para gritar a letra da música:
Who’s gonna drive you home tonight? — cantei.
O assisti reprimir um sorriso, sendo o bom misterioso que era.
Ao chegarmos ao hospital, colocaram-no para fazer todos os tipos de exames conhecidos para saber como estava o coração dele. Passamos o dia inteiro fazendo isso, andando para lá e para cá. No final da tarde, voltamos ao médico, que analisou exame por exame.
— É, dá para ver que você tem arritmia cardíaca. Os pacientes com esse tipo de doença costumam tomar alguns medicamentos, então vou te receitar. É um teste, pode dar certo como não pode dar — o médico disse em inglês por minha causa.
— Como assim pode dar certo ou não dar? Como saberemos se não der certo? — perguntei com a voz afetada.
— Eu vou... — disse, fazendo uma careta e deitando a cabeça no ombro para mostrar que morreria. Não gostei nada e ele riu.
— Olha, costuma dar certo. Vamos observar — disse o médico para mim.
— Não, não, não. Preciso de cem por cento de certeza — eu disse, olhando para , meio desesperada.
— Calma, senão quem vai acabar tendo um ataque é você — ele disse, ainda risonho demais.
Ele não estava entendendo a gravidade da situação, ele poderia morrer se não desse certo. O que seria de no passado sem ? Se ele morresse, eu falharia na minha missão mais importante e não conseguiria viver com a culpa no futuro. Isso se conseguisse voltar para o futuro!
O médico prescreveu a receita, logo depois entregou umas caixas de amostra grátis dos remédios para ele. Qualquer coisa poderia procurá-lo, então anotei o nome, o número do escritório e da residência dele na agenda vermelha dos compromissos de . Azar o do médico se falou isso só para ser educado, eu definitivamente iria ligar se ele soltasse um “ai” fora do normal.
Saindo do hospital, me convidou para irmos em um restaurante e aproveitar para dar uma volta na cidade. Aceitei prontamente, é claro.
Ele parou o carro longe porque o caminho era de barco e andando. Quando o barco parou, pedi para ele ir na frente que iria procurar algo na bolsa, ele relutou um pouco, mas depois seguiu. Eu pesquei a câmera e filmei todo o lugar — sei que era para filmá-lo fazendo a promoção do disco novo, mas achei que o momento todo após o lançamento do álbum merecia ficar gravado. Era um dos melhores da vida dele — dava para perceber claramente —, ele era jovem e estava no auge da carreira, tinha transformado a banda em um projeto dele e faria o que quisesse dali em diante. O rótulo de “precursor do black metal” tinha ficado para trás. agora usava jeans, pulseiras, colares, anéis, tênis e seu cabelo natural.
Eu não poderia estar mais apaixonada.
Não conseguia decidir o que era pior: estar apaixonada por ele sem nunca poder conhecê-lo ou estar apaixonada com ele estando na minha frente e não poder tocá-lo. Meus dedos coçavam para se entrelaçarem no cabelo dele. Eu queria tanto poder sentir seu toque de novo. O mero pensamento me irritava. Era um mau sinal. Significa que estou vulnerável, que poderia ter outra recaída e acabar com tudo o que vim lutando para seguir.
Estávamos na pequena ilha de Gamla Stan, mais especificamente na Österlånggatan, uma das ruas mais famosas do mundo. A rua era estreita, chão de tijolos, regada a prédios antigos em volta que continham lojas dos mais variados tipos, mais para frente era possível ver algumas árvores. Pelo que sei, era nessa ilha que ficava o palácio real. Filmei todos os casais que passavam ali, juntinhos, e o quanto destoava deles andando sozinho enquanto fumava com uma das mãos no bolso da jaqueta.
Depois de alguns minutos andando, ele se virou em minha direção, viu a filmadora, parou e sorriu. Apontando para trás, onde estava a estátua de São Jorge e o Dragão da Gamla Stan.
— O que meu guia particular tem a me dizer sobre esse monumento? — falei, sorrindo, e o olhando pela lente. Pessoas nos cercavam e encaravam a câmera, ele não parecia dar a mínima, por isso eu também não dei.
— Aqui temos mais uma estátua, a mesma merda de sempre — comentou, sorrindo. Ele prendeu o cigarro entre os lábios e me chamou com o dedo indicador. Aquilo tinha sido sexy para cacete. Feito um cordeirinho inocente, dei os quinze passos que nos separaram meio que no automático. Filmei seu rosto de perto. — Como está meu cabelo? — ele sussurrou, passando as mãos pelos fios e depois os jogando para trás.
Gargalhei alto, fazendo-o rir também. Ele pegou a filmadora da minha mão e apontou para mim.
— Sabia que você fica linda sorrindo assim? — ele perguntou, sorrindo e me olhando pela lente.
Senti o sangue subir pelas minhas bochechas.
— Para, assim eu fico sem graça — falei, a voz soando como um miado.
— Mas é verdade. Você tem um sorriso bonito.
Eu soltei mais uma das minhas gargalhadas espalhafatosas, morrendo de vergonha por estar derretida por um galanteador.
— Chega, me dá essa câmera de volta. Você que é a estrela aqui — tentei alcançar, mas ele subiu o braço para eu não conseguir. — ! Me dá isso agora! — pulei para tentar alcançar e ele ria de mim, com o cigarro no canto da boca. — Me dá! — pulei mais algumas vezes.
— É só pegar — ele respondeu, me fazendo querer socar sua maldita cara bonitinha. Dei mais alguns pulinhos. — Ande, , pegue!
, é você? — ouvi uma voz atrás de mim, eu e ele paramos o momento imaturidade para ver quem era a dona da voz. Ele ficou sério de repente, me entregando a filmadora. Peguei-a e depois me virei para ver a mulher que esperava uma resposta.
Era uma mulher muito bonita. Seu cabelo era de um loiro quase branco e escorrido, não tinha um fiozinho fora do lugar. Os olhos eram azuis que variavam para verde, sua pele parecia um veludo e seu sorriso era de uma simetria invejável. Típica mulher perfeita que tinha na minha década. A diferença é que ela usava mom jeans bem característico, cinto e uma camiseta do Black Sabbath.
— Natalia, que coincidência — ele respondeu, jogando o resto do cigarro no chão e pisando. Eu coloquei a tampa na lente da câmera com um tapa forte demais, demonstrando o quão rápido o ciúme me dominou. Eles pareceram não perceber, se encaravam e eu me senti a patinha feia ali entre os dois. Até porque, sobre beleza, ela era tipo uma valquíria com seus mais de 1 metro e 80 centímetros e ele um deus nórdico. Senti que eu estava sobrando ali.
— Pois é! Achei que você nem estava na Suécia, a última vez que nos falamos estava indo começar a sua promo.
— Ainda está rolando, mas tirei uns dias de folga para produzir — ele respondeu.
— E como está o Börje?
— Do mesmo jeito, mas com alguns fios de cabelo a menos do que na última vez que você o viu — brincou.
Essa brincadeirinha a fez rir, os olhos dele brilharam e me irritaram a ponto de soltar em português:
— Esse é o seu futuro também.
Os dois olharam para mim, finalmente notando a minha presença. Ela me olhava como uma mulher adulta olha para uma criancinha.
— Essa é a , minha nova assistente. E essa é Natalia, uma amiga de muito tempo — ele nos apresentou.
Sorri minimamente — parecia uma careta, para falar a verdade —, apertando a mão que ela me oferecia.
— Prazer em conhecê-la, Sônia — ela disse, sorrindo igual a uma Barbie, até o mesmo nível de falsidade. Era claro que ela tinha errado meu nome de propósito.
— É . E é um prazer também — respondi em inglês, não gastaria o meu suado sueco com ela que nem se dignou a falar meu nome certo. Ela soltou minha mão.
— Até que enfim você e Börje arrumaram uma assistente, já estava passando da hora de pararem de se ocupar com essas coisas banais e focar no que é importante — ela disse para ele, em sueco. Fechei a cara, ela ia ver só quem era a banal... — Agora você terá mais tempo para se divertir.
está se provando muito eficiente no que faz e é uma pessoa incrível, o que me ajuda bastante — ele tentou contornar o que ela disse, me elogiando, mas não adiantava. Eu já a odiava por errar meu nome e me menosprezar.
De repente, eu não queria mais continuar ali e correr o risco de ser diminuída de novo.
— E como gerenciadora das suas coisas banais, digo que temos que ir — falei, em inglês, mas sabia que ela me entendia perfeitamente. Por isso fiz questão de frisar o “coisas banais”, para mostrar a ela que eu estava entendendo tudo, não importava qual das duas línguas ela escolhesse usar.
— Ah, tudo bem. Eu te ligo para a gente marcar nosso encontro habitual — ela beijou o rosto de , meio que passando por cima de mim que estava na frente dele. Eu fiquei tão vermelha de raiva que quase senti minhas orelhas liberando fumaça que nem nos desenhos animados. Não sei como me controlei naquela hora, mas graças aos céus consegui. — Tchau, . Foi bacana te conhecer — ela disse, a palavra soando o contrário.
Ela saiu andando rápido na direção que viemos antes. Eu espumava tanto que preferi sair andando na frente, sem falar nada. Meu passeio tinha sido arruinado por essa sujeita, agora eu só queria ir embora.
— O restaurante é para o outro lado — ele comentou, me alcançando fácil demais.
— Estou voltando para o barco — respondi, ríspida.
— Já quer voltar para casa? Sem nem almoçar? — ele parou de andar, o que me fez parar junto para respondê-lo.
— Sim. Estou sem fome — declarei.
Ele franziu o cenho, me analisando. Eu desviei o olhar e cruzei os braços na frente do peito, sem paciência para qualquer tipo de joguinho.
— Está com ciúmes? — ele arriscou, tentando entrar no meu campo de visão.
— De quê? — respondi, ainda evitando-o. — Não tenho motivo algum para ter ciúme.
— Me dá a filmadora de novo — ele pediu.
— Por quê? — me virei para ele com curiosidade.
— Vou filmar sua cara de ciúmes para provar que você está se roendo.
Olhei para ele de cara feia.
— Não vou te dar para essa finalidade — retruquei. Eu queria gritar com ele, mas sabia que ele não tinha nada a ver com meu ciúme e minha raiva por ter sido diminuída.
Ele chegou bem perto de mim.
Com’on. Você não faz coisas banais, . Não precisa acreditar em mim, mas olhar para Börje. Ele até que gostava muito de ser minha assistente — ele sorriu. — Se ele concordou e te confiou essa posição, é porque viu que tinha potencial.
Ele passou o braço pelos meus ombros e me virou na outra direção. Todos os meus sentidos gritaram com sua proximidade repentina, mas eu estava concentrada demais em ficar com raiva.
Eu mal cheguei na Suécia e tive meu emprego — que jurei que era incrível — menosprezado pela irmã e a amiga dele. Aquilo atingiu uma fraqueza minha. Ele não me apresentou como “a outra amiga”, ele me apresentou como “a assistente”. Reconheço que tenho que ser grata por ele ter me dado esse mínimo lugar na vida dele — de poder trabalhar e morar em sua casa. Eu sou grata. Porém, sinto que falta algo importante entre a gente, algo que era para ter acontecido antes de termos dormido juntos, algo crucial para que eu possa salvá-lo. Uma aproximação. E talvez fosse tarde demais.
A saudade de casa e da minha antiga vida ficou latente demais, lá eu era estudante, voluntária, amiga e filha; aqui eu sou assistente dele e só. Um papel descartável e “banal”. Eu queria importar de novo. Aqui tenho que pensar cuidadosamente em tudo que faria e eu nem sabia como começar a reverter essa sensação.
A postura que essa mulher adotou comigo foi algo que piorou meu estado de espírito. De Lilly, escolhi não guardar mágoas, mas essa tal de Natalia parecia fazer questão de que eu guardasse. Parecia me enxergar como oponente, sendo que nem ameaça eu oferecia por não ser nem amiga de .
Ela era linda e parecia ter algo com ele. É, e definitivamente estou com ciúmes de novo. Será possível mesmo que terei ciúmes de todas as garotas que olharem para ele com olhos desejosos? Se for, eu estava em apuros.
— Vamos, esqueça isso, ok? Tenho certeza de que ela não falou para te magoar — ele começou a andar, me levando junto. — E seu guia aqui tem um restaurante para mostrar que vai te deixar de queixo caído.
Eu cedi, é claro, mas não totalmente. Apenas o acompanhei, deixando seu braço nos meus ombros, enlaçando sua cintura e andando de uma forma mais íntima do que era recomendável para nossa relação. Ele falava curiosidades sobre a ilha Gamla Stan e a importância dela para a Suécia, eu ouvia tudo, mas só conseguia pensar que eu estava realmente com ciúmes porque eu não tinha a menor chance perto dela.
Porém, assim era melhor, certo? Eu deveria estar satisfeita. Que sofresse e escrevesse canções sobre as mulheres dos anos 90, seguindo o curso normal de sua vida. Não por mim que sou uma forasteira e carrego uma maldição comigo. Por mais que eu esteja indubitavelmente sofrendo por não o ter, estamos melhor assim.
Só de lembrar da maldição e do incidente da música hoje de manhã, aliados à presença da Natalia, sinto enjoo.
Andamos mais um pouco com a mesma vista de prédios antigos através da Österlånggatan — aquela parte da cidade era conhecida como cidade antiga, conforme informou . O restaurante chamava Den Gyldene Freden, eu lembro de o ter visto nas aulas de sueco, era um dos restaurantes mais antigos com o interior inalterado.
— Ele foi construído em 1722 — comentou enquanto entrávamos e via minha exaltação ao analisar o lugar. O interior era adorável. A mesa e as cadeiras eram de madeira pintado de tinta escura, a cortina das janelas e a toalha branca suavizavam o ambiente. Um lustre estava pendurado no meio do cômodo que estavam as mesas. Na mesa que nos conduziram a sentar, tinha um instrumento de cordas pendurado na parede em cima da minha cabeça.
O lugar tinha uma iluminação suave, por isso um dos funcionários acendeu a vela que ficava no candelabro em cima da mesa. Eu observava discretamente como a chama banhava os seus fios de cabelo e dava um ar romântico a ele que passou tanto tempo tentando se desvencilhar desse tipo de imagem. Ele me olhou de volta, o amarelo da vela refletiu em seus olhos e pareciam que estavam em chamas. De repente, tive a impressão de que ele me deseja tanto quanto eu o desejava. Que, para ele, não foi suficiente só uma noite, assim como para mim. E que ele parecia estar começando a me olhar com a mesma admiração que eu estava o olhando sob a luz da vela. Minha respiração ficou ofegante e larguei o guardanapo em cima do prato com certa força.
— O que foi? — ele perguntou, saindo do transe.
— Preciso ir ao banheiro — anunciei.
Saí correndo, fechei a porta do banheiro e me encostei nela. Agradeci mentalmente por estar vago ou eu não saberia o que fazer.
É isso que dá tanta fanfic na cabeça, uma hora iria me deixar biruta assim. Andei até a pia e molhei o pescoço. Encarei a figura no espelho, os olhos esbugalhados que me fitavam com puro medo. Medo de não conseguir salvá-lo, de ser o motivo daquela música, de morar com ele, do que eu acabei de ver em seus olhos.
Quando tomei coragem para deixar o banheiro, consegui tocar o resto da refeição como se nada estivesse acontecendo dentro de mim, como se eu não estivesse engolindo todas as minhas emoções. Porém, a partir desse momento, eu decidi impor mais uma barreira para o nosso bem.

Capítulo 9 - Killing me softly with his song

(N/A: A título de curiosidade, a música que ela se refere nesse capítulo como “Laid my eyes on you” existe, se chama “Deep” e é do personagem principal original).

Eu procurei ser a assistente que ele precisava. Apesar de estar claramente o evitando e azedando o pouco que construímos desde minha chegada. Ele percebeu, é óbvio, e passou a falar cada vez menos comigo, me dando espaço. Eu via que ele não entendia essa barreira que impus, mas respeitava, assim como me respeitou depois da nossa noite de descuido. Aos poucos, nós nos tornamos desconhecidos que viviam juntos e me senti como se estivesse invadindo sua privacidade continuando ali.
Eu estava assustada, tinha que admitir. Aquele olhar que ele me lançou foi o suficiente para fazer todo o meu sistema de alerta entrar em curto-circuito. Durante esse tempo de distanciamento, eu nunca me esqueci de ver refletido na sua íris os possíveis caminhos que poderíamos traçar a partir daquele momento. Era como se ele estivesse mostrando para mim que estava pronto para o que quer que eu decidisse fazer conosco. Foi assustador ver que eu carregava o peso dos seus sentimentos quando não dava conta nem do peso dos meus. Além de que, só eu que sabia que nós não poderíamos ser o que ele possivelmente viria a querer.
Eu reconhecia que a culpa tinha sido minha. Fui eu que dei o primeiro passo dormindo com ele e praticamente tropecei nos demais, demonstrando ciúmes. Não consegui ser paciente, deixei-me levar inconscientemente pelo que estava escrito no site sobre almas gêmeas e aquela baboseira toda. Deveria ter desconfiado que não existia tal coisa, ainda mais quando se é viajante do tempo e precisa se adaptar a simplesmente tudo. Ele tinha uma vida antes de mim! Eu simplesmente não podia entrar na vida dele e o fazer se apegar para depois sumir. Não podia. Não era certo.
De uma hora para outra, eu tinha muitas responsabilidades e aquilo estava me matando. Então esse tempo foi bom para refletir e acalmar os ânimos. Foi ruim porque eu realmente sentia falta dele e estava me matando ficar em silêncio.
Eu tendia a fazer isso mesmo, me afastar quando ficava demais para mim, mas nunca contei que sentiria falta dele tanto assim quando a gente nem se conhecia direito. Porém, ao vê-lo todos os dias, eu sentia a urgência de ter mais. Queria conhecê-lo, desvendá-lo, me afundar nele. O que me restou, no entanto, foi uma melancolia irritante.
Solveig ficava comigo o dia inteiro e era o único que me animava dentro do apartamento. Sobre o trabalho, eu e Börje organizamos tudo para o próximo destino da promo, mas simplesmente, depois de dias de trabalho árduo, ele me disse que havia ligado e falado que preferia tirar mais um tempo para compor.
Ele tinha ligado para Börje sem nem falar comigo antes, que vivia na mesma casa que ele. Fiquei um pouco magoada depois disso e considerei procurar meios para voltar para 2019. Quer dizer, tinha que ter meios de voltar, certo? A maldição era clara quando dizia que, se eu voltasse, ele sofreria. Não achava que ele iria sofrer se visse que sumi, me encarreguei de o fazer ignorar minha presença nos meses que se passaram, então não era tarde demais.
No entanto, o que me fez voltar atrás era não querer desistir tão fácil por sentir que tinha mais a aproveitar dessa década antes de voltar para casa. Não havia feito quase nada ainda, não queria voltar carregando pouca lembrança. Precisava ser uma experiência mais intensa e relevante. Caramba, eu estava nos anos 90! Eu tinha voltado no tempo. Tinha que ter histórias melhores para contar.
Não parecia que estávamos um com raiva do outro, ele só trabalhava o dia inteiro trancado. Isso foi se tornando nossa rotina. Portanto, depois que ele deu essa pausa na promo, me ofereci para trabalhar na produtora de Börje, para não ficar sem o que fazer e tornar minha existência aqui mais proveitosa.
Eu entrava às nove da manhã e só saía quando estava escurecendo. Ele estava dormindo todo torto no sofá, então, pelo menos antes de sair, me prestava ao papel de fazer as panquecas com geleia de morango, afinal havia prometido para ele para o fazer ir à consulta aquele dia. Quando eu chegava, ele estava no estúdio particular. Alguns dias, depois do trabalho, quando ele não estava ouvindo música alta e parecia quieto demais, grudava meu ouvido na porta e o ouvia tocando algum instrumento ou cantarolando. Coisas assim ajudavam a manter meu coração quentinho.
Nos finais de semana, geralmente eu ficava no quarto, assistindo TV, com Solveig deitado ao meu lado, limpava a casa para clarear a mente e às vezes saía. costumava sair e não retornava por mais de 24 horas. Ah, e eu sabia muito bem o motivo. Ele estava com outras mulheres. Não podia culpá-lo por ir atrás de outras, já que não tínhamos nada. Se eu o amava, tinha que deixá-lo livre para conhecer outras e me manter aqui só para salvá-lo. Porém, eu não podia deixar de sofrer e desejar que fosse eu.
Depois de uma lavagem cerebral da MTV, eu chorava até mesmo por causa de Careless Whisper do George Michael. Esse era o nível da minha fossa.
Depois de três meses com a sensação de estar anestesiada e cada vez menos pertencente àquele lugar, decidi não ficar me martirizando com toda a bagagem emocional que criei. Eu precisava viver, precisava criar essas lembranças para contar para Shandi e Raj quando voltasse. Era sábado, mais um dia que ele não estava em casa, então coloquei a fita do No Future UK? bem alto no som da sala e comecei a dançar enquanto limpava a casa. Precisava também me sentir eu mesma, pelo menos um pouco. Solveig pulava e latia junto comigo, como eu disse: ele era o melhor companheiro.
Limpei a casa inteira, até que só restou o estúdio. Eu nunca tinha limpado o estúdio, porque achava que isso poderia incomodar o dono dele, era seu único local de privacidade, assim como ele me fornecia o quarto como meu próprio templo, entrando lá raramente. No entanto, sabia que aquele lugar deveria estar sujo, nunca o vi limpar e pensei que seria legal da minha parte ao menos fazer isso.
A porta estava entreaberta, o cachorro passou correndo para dentro do cômodo enquanto eu espiava pela fresta. Chamei-o de volta, mas ele tinha sumido do meu campo de visão. Abri a porta inteira, analisando tudo antes de dar o primeiro passo. Não sabia o motivo pelo qual estava com medo de entrar. Ele nem estava em casa e não era como se fosse brigar comigo por entrar.
Peguei todos os materiais de limpeza e fui em frente em um súbito surto de coragem.
Lá dentro era tão abafado. Quando se entrava, o que mais chamava atenção inicialmente eram os instrumentos. Vários instrumentos que não eram o seu foco estavam espalhados pelo quarto: flauta, violino, teclado, violoncelo e ao fundo tinha uma bateria. Nas cinco prateleiras ao lado da porta, via-se várias pastas-arquivo.
Totalmente dentro do quarto, consegui visualizar seu violão, o baixo e a guitarra que estavam presos nos suportes na parede atrás da porta. Como eram seus instrumentos mais usados, ele tinha pelo menos o trabalho de pendurá-los, pelo que pude concluir.
Me aproximei de onde ficavam os que ele mais usava e a ficha caiu. Eu estava no lugar onde meu ídolo trabalhava. Toquei na guitarra com os dedos trêmulos, eu tinha visto fotos dela. Uma Ibanez Destroyer II que era originalmente cor candy apple red, mas, após várias mãos de spray, passou a ser preta. Pessoalmente era ainda mais bonita e... épica. Ele havia feito história com aquele instrumento. Até comprar uma Gibson ao longo dos anos 90, aquela guitarra tinha participado de todos os álbuns que ele gravou. Estava tremendo um pouco com a sensação de tocá-la por me sentir tão perto do que um dia pareceu tão longe. Era só uma postagem no Tumblr e estava sentindo com as pontas dos meus dedos.
tinha aprendido a tocar inicialmente bateria com oito anos de idade. Porém, aos quatorze anos, ele se apaixonou pela guitarra e sua maior inspiração foi o guitarrista do KISS que agora me encarava do pôster na parede do lado direito. Ele era muito fã de KISS, da formação original que continha o Criss e o Frehley, depois disso, passou a considerar uma porcaria. Sei disso não pelo conhecimento que adquiri pesquisando em 2019 e sim porque venho o estudando de longe ao longo desses meses. O último disco que ele tinha era o Creatures of the Night e estava praticamente intocado, ao contrário do restante da discografia que estava gasta.
Ele tinha levado o toca-discos para o estúdio e pude aprender ainda mais sobre seu gosto pelo som que vinha de dentro daquele quarto. Eu nunca tinha me considerado uma pessoa muito musical, mas andava ligada intimamente à música depois que cheguei em 1990, porque, além de viver com um músico, tudo ali gritava isso. A MTV tinha começado seus anos de ouro, todo lugar tinha um rádio tocando os últimos sucessos e até o jornal tinha uma seção para falar sobre shows e lançamentos. O único defeito de Estocolmo era não ter muitas lojas de discos ainda e as que haviam não tinham tanta variedade. Acreditava que a maior parte da coleção de tenha vindo das suas viagens ao exterior.
Voltando minha atenção ao quarto: na mesa perto da porta tinham vários papéis espalhados, palhetas e uma caneta. Esvaziei o lixo que transbordava com papéis amassados, pensando se deveria organizar a mesa dele. Não sei se era invadir demais a privacidade dele olhar o que vinha se dedicando tanto para ter que adiar os próximos destinos da promo, mas eu estava me coçando de curiosidade.
— Foda-se, já estou aqui dentro mesmo — falei, tocando os papeis e organizando para ver o que estava escrito.
Aparentemente, ele tinha começado a escrever algumas músicas para o próximo álbum, inclusive a que era a minha favorita desse álbum estava ali em cima — senti calafrios de poder ver a música assim, quando não passava de rabiscos e letras no papel. Meu lado de fã dava cambalhotas de emoção.
Mais para trás estavam algumas músicas que ele iria dividir entre o primeiro e o segundo álbum solo — sem o selo da banda e sim com o nome do próprio . Eram quatro com títulos conhecidos e uma música desconhecida com o nome de “Laid my eyes on you”.
Peguei o papel, ele não tinha escrito tudo, eram poucos versos.
Eu reconheceria essa música em qualquer lugar, mesmo que tivesse com outro nome. Ela mexia tanto comigo que sabia exatamente cada palavra na minha cabeça. Estava bastante incompleta ainda, mas eu me lembrava perfeitamente e era uma letra bastante romântica — por incrível que pareça, já que estamos falando de um homem que ficou famoso por ser um ícone do black metal —, como se ele se declarasse para alguém, falando os sentimentos dele e até sobre destino. Ainda no meu surto de coragem, pensei que ele saberia que eu mexera ali, então resolvi ajudá-lo — se fosse para me dar bronca, daria de qualquer jeito.
Peguei um lápis e uma nota adesiva e escrevi alguns dos trechos que estavam faltando. Parando para pensar, era como se meu sentimento jorrasse em cada palavra que escrevia e se minha presença ali já estivesse premeditada, as consequências dos meus atos poderiam ser notadas no futuro. O que queria dizer — para resumir — é que talvez, só talvez, eu poderia ter participação em uma das minhas músicas favoritas da vida. A forma como as coisas se conectavam me deixava meio confusa, mas não podia deixar de notar que tudo isso poderia vir a ser verdade. A música, com toda certeza, não era sobre mim porque ele não me via de um modo romântico desde o dia do restaurante que comecei a afastá-lo, mas senti um pouco de ciúmes em não ser a dona dos grandes olhos que ele mencionava e do sorriso gentil. Ele disse que gostava do meu sorriso, que eu ficava linda sorrindo daquele jeito, pensei. Aparentemente, ele arranjou uma nova mulher para dizer que o sorriso dela era lindo, talvez a Natalia? Eu nunca saberia, mas também não deixei de sentir ciúmes.
Grudei em cima do papel. Meu cérebro gritando que fiz merda ao interferir em uma música dele, mas foi por um bem maior. Ele, com certeza, quebraria a cabeça para tentar continuar e só complementei com poucas coisas para dar um empurrãozinho.
Limpei o chão e passei o espanador nos instrumentos. Ao final, estava tudo bem cheiroso e no lugar. Procurei não pensar muito no que fizera, senão daria meia volta e arrancaria aquela nota adesiva. Apenas chamei Solveig, que saiu debaixo da mesa todo desengonçado. Talvez, nossa familiaridade se desse ao fato de sermos dois desastrados.

***


O telefone tocou enquanto eu assistia uma reprise de um dos filmes do Elvis. Corri para atendê-lo antes que caísse na secretária eletrônica.
— Oi, . É a Lilly — a voz disse assim que atendi.
— Oi, Lilly! Aconteceu alguma coisa? — falei, já eram onze da noite e fiquei um pouco assustada.
— Bem... Sim.
— Você não vai poder me encontrar amanhã? — chutei. Nós tínhamos marcado de nos encontrar amanhã com muita antecedência, então logo estranhei.
Não, está tudo certo para amanhã. É que... — ela suspirou. — O ‘tá aqui e ele ‘tá bêbado. Tipo, muito.
Gelei, ele me disse que não era de beber mais assim na primeira vez que nós conversamos e eu sabia que era verdade. Afinal, minha mentira da gravidez não tinha funcionado exatamente por esse motivo. Quer dizer, gostava de pensar assim e não que era absurdo demais porque me mataria de vergonha.
— Meu pai saiu com a Karin e vão passar o final de semana todo fora. Eu não ia te ligar, mas só tem eu e o Andreas aqui para segurá-lo e não está adiantando muito. Tem como você vir?
Não pensei duas vezes, é claro. Fiquei preocupada com eles três e uma parte egoísta minha queria usar isso como oportunidade para fugir da rotina chata que eu mesma criei. Era dia de mudança, certo? Eu podia falar com ele...
— Sim, tenta distraí-lo que já chego aí. Beijo — desliguei o telefone. Não tive nem tempo para refletir o que um bêbado poderia significar, apenas coloquei duas vasilhas de comida para Solveig e duas de água fresca. Peguei algumas roupas de que estavam no guarda-roupa do quarto e algumas minhas, caso fôssemos precisar, depois peguei o remédio do coração que estava no escritório. Arrumei tudo em uma bolsa.
— Seja um bom menino e não faça cocô na sala que limpei hoje — falei para Solveig antes de fechar a porta e descer para pegar o táxi. Solveig odiava ficar sozinho por longos períodos e sempre acabava fazendo cocô no meio da sala, mesmo que tenha saído para passear antes.
Eu tinha ido na casa dos algumas vezes depois daquele dia para levar alguns documentos para Börje e para encontrar a Lilly, quando já passava do horário do expediente. Então eu soube exatamente como dar as coordenadas para o taxista.
Lilly e eu nos aproximamos ao longo desse tempo e vinha me divertindo com sua personalidade forte. Ela era minha primeira amiga de verdade em 1990. Nossa amizade era tão diferente e nova para mim, se assemelhava muito as de filmes dos anos 2000, nós saíamos para fazer compras, ir ao cinema, comer, fofocar sobre os outros — também fazíamos muito isso no telefone. Aos poucos, ela estava se tornando essencial e um dos motivos fortes para que eu não procurasse meios de deixar o século 20.
Meu corpo tremia de ansiedade, a vista passava como um borrão pelos meus olhos o caminho todo.
Quando o carro parou, eu vi o carro de parado de qualquer jeito na rua e a porta da casa totalmente aberta. Paguei o taxista, peguei a bolsa com os itens essenciais e pulei do carro. Vozes exaltadas vinham lá de dentro, então eu me pus a percorrer o jardim a passos rápidos.
Ele estava deitado no tapete da sala de estar, Andreas e Lilly em pé, o cercando.
— Ela chegou — Andreas anunciou, olhando para mim.
Lilly e também se viraram. Três pares de olhos azuis iguaizinhos me encaravam, seria engraçado se a situação não fosse trágica.
— Não acredito que você a chamou mesmo. Eu disse que estava tudo bem! — resmungou e deitou de novo a cabeça no tapete.
— Calado! — Lilly gritou com ele, vindo na minha direção. — Desculpa te fazer passar por isso, sério. Ele está insuportável, ficava falando que ia voltar para casa dirigindo.
Arregalei os olhos. Ele queria morrer, por acaso?
— Eu disse que você ia vir para cá e ele se jogou no chão para fazer birra — ela explicou.
Ele encarava o teto com um olhar perdido. Andreas o observava com o olhar cansado, como se aquela fosse uma cena que já foi bastante recorrente.
— Dre veio dirigindo do bar para cá — Lilly explicou. Andreas tinha acabado de tirar a carteira, pelo que fiquei sabendo por ela, então explicava o jeito que o carro estava estacionado lá fora.
Eles não mereciam passar por essa situação, mesmo que demonstrassem normalidade, as feições deles só contribuíam para que eu concluísse isso. Então precisava agir rápido. Não me incomodava em ter que lidar com ele. Depois desse tempo de convivência silenciosa, sentia que de alguma forma podia e queria cuidar de .
— Me arruma café — eu pedi para ela, andando até o culpado da confusão. — Você, arruma uma cama para ele e coloca essa bolsa em cima — falei para Andreas. Os dois obedeceram sem falar nada. — E você, espero que esteja com vergonha desse teatro todo — comentei, me ajoelhando ao seu lado.
Ele soltou uma risadinha bêbada e fechou os olhos. Nunca o vi tão cansado e entorpecido antes, nem fedendo a uísque como se tivesse tomado banho com uma garrafa.
— O que é? — resmunguei, sentindo o mau-humor me dominar depois que meu nariz farejou o cheiro de bebida. Era isso que ele vinha fazendo todo sábado?
— Se eu soubesse que isso faria você falar comigo que nem uma pessoa normal, eu teria feito antes — falou em meio a mais risadinhas e abrindo os olhos que estavam em uma tonalidade diferente.
— Não é engraçado, . Você deixou seus irmãos preocupados — censurei-o. — Por que fez isso?
— Porque eu sou um maldito covarde. — Fungou. — Era o único jeito de tomar coragem para falar com você — respondeu e fez uma careta como se a declaração o machucasse. Eu não vinha sendo um poço de coragem também, então imitei sua careta.
— Bem, você conseguiu, estou aqui agora — respondi, esperando ouvir algumas palavras depois desse tempo todo que não eram sobre trivialidades da casa.
— Eu sei, e não consigo pensar em nada para te dizer — ele disse e depois riu. — Não é ridículo?
Eu sabia bem como ele se sentia, então sorri minimamente em compreensão. Ter milhões de coisas para dizer e de repente não ter mais nada só porque a pessoa em questão está em sua frente. Oras, eu estava nessa situação também. O convenci a levantar e me acompanhar até o andar de cima, onde Andreas preparava o que pedi. Ele cambaleou algumas vezes, mas eu o tinha pelo braço, então consegui evitar uma tragédia. A cada dois passos nossos, ele ria mais ainda e, ao ver minha expressão, pedia desculpa.
Andreas me chamou até o que parecia ser o quarto de visitas, havia uma cama de casal gigante e mobília de luxo — como o resto da casa. O chão era de um carpete fofo e rosa bebê, tinha um guarda-roupa de uma ponta da parede até a outra, janelas amplas com cortinas de linho e uma televisão em cima da cômoda na parede ao lado da porta. A cama estava pronta, mas Andreas sugeriu que o colocasse no banho antes, para que ele ficasse um pouco menos bêbado e não vomitasse.
Eu esperava os dois do lado de fora, sentada na cama. Pensando em outra abordagem para utilizar com ele que não nos deixasse tão próximos, mas que não o fizesse recorrer a outros meios para chamar minha atenção. Qualquer coisa que eu arquitetava, trazia consequências que eu não queria o submeter por minha causa.
Andreas abriu a porta do banheiro, com uma carranca aparente e estresse que tomou conta do ar. Uma parte minha sabia que não seria boa ideia colocar para tomar banho estando tão bêbado, mas pensei que, como Andreas tinha mais experiência com ele assim, sabia mais do que eu.
— Ele não me obedece, quer que você entre — anunciou, sem paciência. — Boa sorte, vou ajudar Lilly.
E saiu.
Me deixando com a fera que jazia naquele banheiro. Respirei fundo e entrei, sem pensar muito. Se o fizesse, sairia correndo daquela casa. Não podia, no entanto, porque queria ajudar Andreas e Lilly.
Ele estava sentado na tampa do vaso, tentando prender o cabelo, usando nada mais do que roupa íntima.
Oh, Deus me ajude.
Peguei o elástico de sua mão e prendi o cabelo dele em um coque alto, a banheira estava quase transbordando, então desliguei a água e pedi para ele entrar. Ele não quis, claro, seria fácil demais. Tirei meus chinelos, minhas meias, casaco e entrei na banheira com o resto das minhas roupas, era mais fácil se pelo menos um de nós estivesse com mais peças.
A água estava fria, o que era compreensível pela intenção do banho. Ele entrou logo depois de mim, me seguindo e mostrando que tinha dado certo. Ficamos um de frente para o outro e pude ver o real motivo de ter me seguido, ele me olhava com desejo aparente.
— Devo estar tão bêbado que estou sonhando com você em uma banheira comigo — ele quebrou o silêncio. — Se for, eu não quero acordar.
Tentei controlar o sorriso que ameaçava brotar nos meus lábios, eu não podia dar a entender que não estava brava com todo o showzinho dele e nem parecer que estava imersa no momento mais do que queria. Caso parecesse, ele acharia que o estava dando passe livre para começar com as investidas e não sabia se teria coragem de negar. Foram meses de carência de novo depois daquela noite no hotel, então me dava um desconto de estar por um fio.
Ele me olhava com malícia e um sorriso de lado, parecendo um predador que farejava minha tentativa de ter o controle da situação. Era exatamente o que eu estava tentando evitar alguns segundos atrás. Ele era um espertinho e só tinha um jeito de lidar com esse tipo de cara. Peguei a ducha e liguei, no mais forte, a água fria na cara dele.
Fy fan, isso ‘tá gelado demais! — ele gritou, metade em sueco e metade em inglês, enquanto pulava e a água transbordava, molhando o chão. Passou as palmas das mãos nos olhos para tentar espantar a água dos olhos. — Para, ! Você vai me afogar!
Desliguei a ducha, tentando manter minha pose de séria. Não tinha a menor chance de afogá-lo assim, só se ele estivesse em coma alcoólico e sem poder se defender. Mesmo que por dentro eu estivesse morrendo de rir, me limitei a fitá-lo com nada mais que um sorriso de lado em resposta ao seu.
— É para você aprender a não beber mais — falei. Ele ainda esfregava os olhos com as mãos. — Agora tome banho, .
— Céus, não acredito que você fez isso! — resmungou, me olhando finalmente. — Me dá essa merda aqui — tentou pegar o chuveiro da minha mão.
Fiz que ia ligar a ducha de novo e ele enfiou as mãos na frente, falando “não, não, não”. Joguei a bucha e o sabonete em sua direção como indireta para se esfregar. Ele fedia muito a uísque e cigarro, de uma maneira nada sensual. Eu deveria agradecê-lo porque era um dos motivos que estava me mantendo longe e meu autocontrole intacto. Ele me obedeceu e o fez com mais concentração do que o necessário, ele passava a bucha tão devagar por cada pedaço de pele que me amaldiçoei por pensar que deveria agradecê-lo e não o socar.
Até que ficou insuportável, fui obrigada a pegar a bucha e o sabão de volta e fazer eu mesma. Ele fechou os olhos enquanto eu tentava esfregar suas costas contra a banheira.
— Hm... posso até te perdoar pela água gelada se você continuar esfregando — ele gemeu e tive que prender meu lábio para não sorrir. Estava para nascer outra pessoa que esfregava as costas do próprio chefe no banho e gostava de ouvi-lo gemendo de satisfação. Talvez porque me lembrava bem como ele gemia em outras situações...
Esse não era um pensamento nada seguro.
Terminei e enxaguei com a ducha, ele não reclamou da temperatura da água dessa vez. Tinha certeza de que havia se tocado que o melhor era ficar sóbrio de novo.
Como eu estava sentada no assento de dentro da banheira e ele estava sentado na parte mais funda, nós dois estávamos na mesma altura — o que nos fez encarar um ao outro por alguns minutos.
... — ele murmurou com desejo.
... — eu murmurei em aviso.
— Me chama de de novo, nem que seja só por hoje — ele pediu, estendendo a mão para tocar meu pé debaixo da água e quebrando minha pose que estava pendendo por um fiapo.
— soprei, sem conseguir disfarçar que estava derretida pelo seu toque. Se ele me pedisse para chamá-lo de mestre, eu o chamaria, contanto que continuasse subindo aqueles incríveis dedos calejados pela minha pele debaixo d’água.
Mordi o lábio inferior, pensando que estava sendo fácil demais para quem foi a responsável pelo nosso distanciamento de meses e para alguém que estava cuidando de um bêbado.
— É incrível como seu sotaque faz qualquer palavra soar como poesia, baby — ele disse, erguendo meu pé e plantando um beijo nos dedos. Pisquei os olhos excessivamente. Ele me chamou de baby? Espera. Engoli em seco. Ele estava usando todo seu charme para me atrair? — Já faz tanto tempo que não te sinto tão perto assim. — Beijou meu calcanhar. Oh, estava funcionando. — Só consigo me lembrar do dia que você me agarrou dentro daquele elevador e o quanto foi delicioso. — Beijou minha panturrilha. — Ah, se você soubesse o quanto eu gostei... — beijou meu joelho — ...não pediria para que eu esquecesse como é te ter, . — Plantou um beijo na parte interna da minha coxa e eu me controlei para não levantar os quadris em sua direção. Aquilo estava bom demais, demais mesmo, por isso eu precisava dar um basta.
Recolhi minha perna ao perceber que aquela conversa estava se tornando perigosa demais. Ele revirou os olhos quando o fiz. Levantei-me antes que meu subconsciente me levasse para os braços dele. estava bêbado e eu estava considerando me jogar nos braços dele depois daquele charme barato, só podia ter ficado mesmo louca. Em tese, o dia do hotel nem era para ser lembrado e ele não deveria trazê-lo à tona, não foi o que conversamos.
Antes que eu pudesse sair, no entanto, ele me puxou pelo pulso e seus olhos suplicaram para que eu ficasse. Eu não podia, meu medo de quebrar nossa distância tão fácil me ajudava a enxergar o quão absurdo seria me entregar agora. Fora que ele estava bêbado! Saí da banheira sem lançá-lo um último olhar, me sentindo a vadia mais sangue frio do mundo.
Tentei me secar, mas meu short jeans e minha blusa de malha estavam arruinados. Através da visão periférica, pude vê-lo com a cabeça parcialmente encostada na parede, me observando.
Deixei o banheiro, para que ele pudesse sair e vestir a roupa que entreguei para Andreas. Troquei a minha no quarto, agradecendo mentalmente a mim por ter pensado na probabilidade de precisarmos de uma muda a mais. O ouvi tirando o ralo, a água da banheira descendo pelo encanamento e depois o barulho de escova de dentes batendo contra a louça da pia.
Encontrei com Lilly trazendo uma bandeja com uma garrafa de café, xícara e um pratinho de biscoitos açucarados — o que me deixou nostálgica ao lembrar do meu primeiro dia em 1990, em Lisboa, quando seu pai trouxera o mesmo para mim. Nem parecia que se passaram meses desde que cheguei ali, aquela situação com tinha feito os dias parecerem iguais e emendados um no outro, me fazendo perder a noção de tempo.
Pedi a ela que deixasse comigo dali para frente e que poderiam ir dormir sem se preocupar. Ela avisou que Andreas tinha arrumado uma cama para mim em seu quarto, já que iria ficar com o quarto de visitas. Depois foi embora.
Entrei no quarto de novo e ele estava deitado na cama, devidamente vestido. Para a minha sorte e para o meu azar, simultaneamente.
Parecia estar muito puto e mais sóbrio, pelo menos. Entreguei a xícara com café para ele e ofereci os biscoitos, ele pegou alguns e eu peguei o restante para ocupar minha boca antes que quebrasse o silêncio com mais alguma peripécia típica de quando ficava nervosa. A presença dele começou a me intimidar de novo, talvez por causa dos meses que não trocamos muitas palavras.
Ele terminou, em silêncio, e eu organizei tudo de volta na bandeja. Antes que eu pudesse pegá-la para levar para a cozinha, ele me segurou pela blusa do pijama assim como fizera com meu pulso antes. Fitei-o enquanto parecia travar uma batalha contra todo seu orgulho por ter sido negado na primeira vez e estar ali insistindo de novo.
— Eu não quero ficar sozinho — ele disse, por fim, com olhos suplicantes.
... — me interrompi com o olhar feio que ele me lançou, pigarreei e depois corrigi: — , eu tenho que ir para o quarto da sua irmã.
— Não — ele suspirou e largou minha blusa. — Fica comigo.
Suspirei, tentando botar um pouco de oxigênio misturado com juízo dentro de mim. Era um saco ter sempre a voz da razão que impedia o que nós dois queríamos tanto, mas não tinha opção, precisava ser firme para poupá-lo.
— Nós não podemos dormir no mesmo quarto — concluí.
— Por quê? A gente já fez isso — ele explicou como se fosse óbvio.
— Não é a mesma situação, tudo mudou. E seus irmãos vão pensar o que de nós dois?
Definitivamente não queria ser malvista pelos , só de imaginá-los me julgando como outra garota que passou pela mão do já sentia calafrios. Isso poderia afetar diretamente meu trabalho e, na minha situação, não estava podendo correr riscos.
— Eles não estão nem aí, sabem que eu provavelmente insisti para que ficasse aqui comigo porque estou bêbado.
Até parece que não conhecia a irmã mais nova dele e não desconfiasse que ela tenha me arrancado algumas confirmações sobre nosso relacionamento. A mente de Lilly era tão afiada quanto sua língua. Acho que era até óbvio pela facilidade que ela entendeu tudo, me perguntava se era por causa das outras namoradas dele. Eu não iria falar sobre esse assunto com ele, também não queria correr o risco de que ele fugisse para beber mais, então seria melhor ficar ali pelo menos até ele adormecer.
Peguei um comprimido da caixa do remédio de coração dele que trouxe comigo e o entreguei.
— Merda, você realmente pensa em tudo — ele disse, bebendo o comprimido com a água da jarra que Andreas deixou na cômoda.
É, eu pensava em tudo, inclusive nele — e excessivamente.
Liguei a TV e estava passando uma série policial do começo dos anos 80, nem me dei o trabalho de procurar outro canal, porque era só para preencher o silêncio.
Eu poderia fazer isso sem derrubar toda a barreira de segurança que criei em volta de mim, não é?
Céus, eu esperava que sim.
Ergui o cobertor e me posicionei debaixo, descansando a cabeça no travesseiro ao lado do dele. Ele parecia genuinamente feliz, como na última vez que saímos juntos antes daquela amiga dele chegar. Eu também tinha vontade de me embebedar a cada instante que pensava o quanto eles dois combinavam e pareciam íntimos, porque era doloroso. Será que era doloroso para ele também? Não a questão com a Natalia, mas pensar em mim e esse distanciamento? Afinal, ele disse que beber era o único modo de tomar coragem para falar comigo. A maior parte de mim estava decepcionada porque ele ficou bêbado mesmo depois de dizer que não costumava mais fazer isto, mas tinha aquela pequena parte egoísta que ficou se achando por ser o motivo.
— O que foi? — perguntei enquanto ele me assistia com aquele coque ridículo no topo da cabeça. Ergui minhas mãos e comecei a desmanchá-lo.
— Não sei se me lembro da última vez que uma mulher dormiu ao meu lado sem segundas intenções — ele confidenciou, seu rosto perto do meu.
— Eu pensei quase a mesma coisa no dia que dormimos naquele quarto de hotel — soltei uma risada enquanto minhas mãos trabalhavam desenrolando o elástico do seu cabelo. Mechas caíram em cascata no travesseiro, trazendo o cheiro de frutas do shampoo que ele usava.
— Estou me sentindo um garoto — reclamou, fazendo um bico.
— Você ainda é um garoto, , só tem 24 anos — respondi, passando a mão para ajeitar a ondulação que ficou no seu cabelo.
— É... Eu sou só um garoto dormindo ao lado de uma garota, afinal de contas. — Ele pareceu refletir enquanto eu ainda arrumava seu cabelo. — Acho que esse é o tipo de situação que uma mãe deveria ensinar para o filho. Vai existir uma garota que te faça dormir ao lado dela sem querer nada e te deixar confuso. A minha poderia ter me ensinado algo ao invés de ter se ocupado sendo ridícula me xingando daquele jeito — suspirou, um pouco mais exaltado, provavelmente por estar falando dela. — Digo que precisa ser a mãe a ensinar isso, porque acho que meu pai nunca teria a sensibilidade de pensar em uma situação assim antes da Karin.
— Ah, ... — eu enrosquei meus braços ao redor do seu pescoço, encostando a minha testa na dele em um gesto automático e sentindo minha pele arrepiar pelo contato. Eu queria tanto que tudo fosse diferente para eles três, que a mãe deles tivesse pelo menos mantido contato depois da separação e tentado ser melhor. Não fazia ideia de como era ter pais separados, quem dirá ser negligenciado por um deles. Minha mãe era cruel, às vezes, e um pouco ausente por ser uma atriz famosa, mas não na mesma proporção. Foi a mesma coisa que pensei com a Lilly aquele dia e prometi a ela que iria cuidar dele, eu falhei miseravelmente e o pensamento me fazia querer chorar. Era insuportável não fazer nada, por isso o segurei nos meus braços para poder mostrar, pelo menos, que estava ali.
— Eu tenho toda essa merda emocional que sempre me deu certeza da minha escolha em não ter filhos. Atuar um pouco como uma espécie de pai dos meus irmãos mais novos contribuiu bastante — ele continuou, me fazendo abrir os olhos e vê-lo tão perto, seu hálito soprando meu rosto e me fazendo prestar bastante atenção. — Nunca confiei em nenhuma mulher para ser mãe, mas... — franziu a testa — ...de alguma forma, confio em você.
— O que você quer dizer? — murmurei, com o cenho franzido.
— Não tenho certeza se isso não vai soar estranho, mas você é organizada, dedicada, bondosa e doce mesmo quando está brava. Tudo que minha mãe não foi. — Prendeu os lábios em uma linha fina, parecendo em dúvida com o que estava prestes a dizer — Se, um dia, eu tiver filhos, espero que seja com alguém assim como você. Acho que não faz muito sentido, ?
Eu me senti… honrada? Lisonjeada? Não tenho certeza se entendi bem, se ele disse que serei uma boa mãe em geral ou uma boa mãe para os filhos dele. ‘Tá, ele disse que queria uma mulher com minhas qualidades para ter filhos, significava, então, que talvez estivesse dizendo que queria ter filhos comigo, certo? Ou com outra que tivesse as mesmas qualidades. Ai, meu Deus!
Fiquei confusa com aquela fala, mas positivamente. Ainda não me decidira, talvez eu devesse conversar com Lilly, que o entendia melhor.
— Desculpa, não queria jogar esse fardo em cima de você — ele riu. — Parece até que estou te pedindo para ser mãe dos meus filhos que nem quero e a gente mal se conhece. — Soluçou. — Ignore isso, só estou… bêbado. Muito bêbado.
Fiquei sem fala, não sabia se aquela conversa era de alguém bêbado, de algum jeito parecia séria demais. Senti como se ele tivesse pensado nesse assunto durante os meses que mal nos falamos e esperado a oportunidade perfeita para me dizer. Porém, ao mesmo tempo, não o via pensando nisso sóbrio. Ele sempre pareceu ocupado demais até para notar minha presença naquela casa.
— Não sei o motivo de confiar tanto em você desde que te vi pela primeira vez. Caramba, eu te deixei entrar na minha vida sem nem saber quem você era. — Fitou o teto e seus olhos estavam vermelhos. — Isso não é comum, a Lilly estava certa em estranhar aquele dia. Mas acho que não me arrependo, gosto de saber que você está em casa, me sinto menos solitário, mesmo que não conversemos.
Eu concordava, ele nem sabia meu nome direito e me deixou ser sua assistente, morar em sua casa. Ele até tinha me deixado conhecer seus irmãos, a casa da sua família e sua vida de verdade. Isso era demais, sabia muito bem. Sempre estive ciente da minha sorte de o ter inspirado confiança para me acolher. Então me senti na necessidade de agradecê-lo verbalmente, já que limpando a casa ou fazendo comida eram minhas formas silenciosas.
— Obrigada por me acolher — eu disse, chegando meu rosto perto do dele de novo para colocar sinceridade nas palavras. Ele se virou para me encarar e nossos narizes se tocaram. Controlei o impulso de me sobressaltar e nos afastar. Estávamos só conversando, então não precisava manter distância. Pelo menos, era isso que meu cérebro entorpecido com sua proximidade concluiu.
Ele riu baixinho.
— Acho que sou eu quem deve te agradecer por tudo que tem feito, por cair de paraquedas na minha vida — ele disse e roçou os lábios nos meus devagar. Não era um beijo de verdade, era algo natural por estarmos perto demais, mas meu coração que batia rápido interpretou totalmente errado. — Eu sinto que deveríamos conversar mais, que você deveria me deixar entrar na sua vida e não me afastar como tem feito. Te dei um tempo, mesmo sem saber do que precisava, mas me sinto sufocado e com vontade de te conhecer... de te questionar. É por isso que bebi, a bebida geralmente me deixa mais tagarela e livre — riu como um bobo e meu coração errou uma batida com a fofura do gesto. — Meu plano era chegar em casa e conversar, mas acabei bebendo além da conta. Andreas estava lá e me trouxe para cá, ainda bem que nos encontramos no fim. — Beijou a ponta do meu nariz, ainda sorrindo. — Eu disse que falava demais.
— É, tenho que concordar — sorri com timidez pelo beijo do nariz e por estar ouvindo informações que soavam íntimas demais para o nosso relacionamento decadente. Espantei a vergonha e acrescentei: — Nunca mais beba assim ou, ao invés de conversarmos, vou te estapear e te colocar na água gelada até ficar sóbrio de novo.
Eu poderia ter falado para ele os motivos da minha distância, mas ainda tinha tanto medo de compartilhar e ele desconfiar dos meus sentimentos. Precisava de mais tempo. Não sei se ele não falou com a intenção de ouvir uma explicação e uma promessa que tudo mudaria ou se apenas ignorou. Limitou-se a sorrir minimamente e se mexer, quebrando nosso contato. Deitou-se direito para assistir à televisão, pondo um fim à nossa conversa.
Provavelmente, ele esperava uma resposta diferente mesmo, mas não estava pronta, então só estiquei o braço e acariciei seu cabelo, rezando para que ele me desse mais tempo e não se incomodasse com minha apatia. Meu receio era que desistisse de mim e me expulsasse da sua vida depois dessas confissões. Não queria ir embora ainda, não queria deixá-lo, eu o amava e meu corpo ainda implorava pelo dele. Só precisava aprender uma maneira nova de lidar com ele, sem correr o risco de mostrar meus sentimentos e assustá-lo ou pior: com que ele me corresponda.
Ele não demorou a adormecer, pelo visto a bebida também o deixava sonolento. Porém, esperei um tempo para ter certeza de que ele estava inconsciente enquanto o fitava. Sua expressão era pura tranquilidade, me dando inveja. Desde que cheguei em 1990, me tornei confusa demais. Apesar da minha facilidade para dormir, toda noite eu remoía minhas atitudes com ele, a saudade de casa, minha confusão por estar em outra década etc., etc., etc. Eram tantos pensamentos.
Achava que o estava afetando com essa confusão de sentimentos. É, eu realmente devia uma resposta a ele, mas, como era um segredo, teria que ser enquanto estava dormindo.
— Eu te amo, é por isso que preciso me manter distante — murmurei, olhando seu rosto iluminado pela luz da televisão. — Ainda preciso aprender como viver aqui, com você, sem levantar suspeitas de que sou uma viajante do tempo. Não tenho para onde ir, então tenho que ser cuidadosa ao extremo. Desculpa — engoli em seco, pensando no momento da banheira e em como estava por pouco de sucumbir tão fácil. — Estou por um triz, sabe? Me lembro bem do seu toque quando dormimos juntos, apesar de prometer que nada mudaria. Tudo mudou dentro de mim, sim. Você ser tão lindo pessoalmente e interessante não ajuda em nada. Logo hoje, você resolveu ser sincero, me elogiar, diz que me vê como uma pessoa boa, ou seja lá o que aquilo signifique... Diz que te deixei menos solitário, tudo de uma vez, depois de três meses que acreditei que estava destruindo seu interesse. Isso é demais para mim, não estou pronta para resistir ainda, . Sou fraca, carente e completamente apaixonada por você. Bom, essa é a minha resposta e a verdade.
Ele não moveu um dedo, apenas continuou a respirar tranquilamente enquanto dormia. Era melhor assim. Minha mente estava tranquila por ter respondido e revelado meus sentimentos. Porém, não me sentia disposta a sair dali e fugir para o quarto de Lilly. Estava simplesmente congelada ao lado dele, tentando digerir tudo o que o bêbado revelou.

Capítulo 10 - Days like this

Quando abri meus olhos, entrou no meu campo de visão logo de cara. Pelo visto, eu estava sendo observada há um tempo. Não sei se foi isso que me fez despertar ou se foi a iluminação do sol que começava a dar sinais pela cortina aberta. Suas mãos estavam em cima do travesseiro, amparando sua bochecha, seus olhos estavam atentos.
— Que horas são? — perguntei, coçando os olhos com sono, ainda absorvendo onde estava. Depois de acordar em vários lugares ao longo desses meses, meu cérebro estava encontrando dificuldades em se situar quando minhas pálpebras se abriam.
— Acho que sete — ele respondeu, sem mexer nada além dos lábios.
O dia realmente tinha acabado de nascer através das cortinas de linho, como eu havia notado ao acordar, e era parte responsável pela cor tão profunda dos olhos dele.
Me espreguicei, não devia ter dormido nem três horas direito.
— Por que já está acordado? — indaguei, voltando a me ajeitar para encará-lo da mesma forma.
Ele deu de ombros.
— Tenho insônia — ele explicou e abriu um sorriso galanteador. — Acho que hoje, exclusivamente, foi culpa sua. Talvez minha consciência tenha me acordado porque quisesse te ver dormindo.
Sorri. Ele era mesmo um conquistador barato, mas, juntando isso à sua beleza, deveria ser mortal para qualquer ser que sentisse atração pelo sexo masculino.
— Falando assim, soa até piegas — respondi, um pouco envergonhada.
Ele soltou uma risadinha baixa e se aproximou calmamente até nossos corpos estarem colados. Estagnei no lugar, esperando com curiosidade seu próximo movimento e tentando assimilar sua proximidade. Será que ele lembrava o que me disse ontem? Se lembrasse, em tese, tudo estaria mais estranho entre nós. Ou não. Ele disse que bebeu para ter coragem de falar comigo, então isso daqui deveria ser a continuação de ontem. Seus lábios calaram meus pensamentos e me fizeram arregalar os olhos. Ai, meu Deus, ele me beijou! Meu corpo logo despertou reconhecendo o dele. Não foi um beijo beijo, só um selinho, mas definitivamente mais notável que o roçar de nossas bocas ontem. Estou em completo pânico. Ele não percebeu quando parou, no entanto.
— Fica comigo só hoje — pediu. — Depois de tudo que te falei ontem, eu só te peço isso, um dia para matar minha saudade.
... — comecei, em aviso, e sem saber o que dizer ao certo. Ele disse que tinha saudades de mim, não era minha culpa estar desconcertada.
— corrigiu, pegando minha cintura por baixo do lençol com sua mão possessiva.
, você é meu chefe e nós entramos em acordo que seria só aquela vez, sem mudar nada — adverti, conseguindo milagrosamente tirar palavras que faziam sentido juntas do meu cérebro que parecia gelatina com seu toque.
— Só por um dia, baby, ignore tudo e eu vou fazer ser bom para nós dois — ele disse, deslizando as mãos e adentrando a barra da camiseta para tocar minhas costelas. Todos os meus poros se arrepiaram em resposta e tive que me concentrar para manter meus olhos bem abertos. — Estou tão louco por você e já tem um tempo.
Em um segundo, ele estava na curva do meu ombro beijando meu pescoço e tirando o resto da minha sanidade. Ele estava louco... por mim? Não podia ser. Sem chances de acreditar naquilo depois de perceber que ele era só um paquerador, não é? Não é? Questionei meu corpo que me traía conforme ele descia os beijos pelo meu colo. Ele podia ter qualquer mulher que quisesse, o que me levava a pensar: estava tão carente a ponto de mentir ou podia ser mesmo verdade? Me recompus um pouco para tirá-lo da minha pele e voltar a nos encararmos.
— Desde quando você está sentindo isso? — questionei, querendo que conversássemos mais ou eu acabaria cedendo.
Ele suspirou e se afastou um pouco, encarando um ponto atrás de mim. Suas mãos ainda estavam nas minhas costelas, provocando um formigamento ligado diretamente ao meio das minhas pernas, porém tolerável.
— Não sei, mas você tem essa coisa de fisgar as pessoas como se sempre tivesse por aqui. Eu não consigo entender o que é isso e estou ficando louco tentando. Fico mais louco ainda sentindo seu cheiro, te vendo acordar mais cedo só para preparar panquecas para mim, o jeito que você conversa com Solveig e aquela música que você cantarola tomando banho, ela fica na minha cabeça o dia inteiro...
My Heart... So Blue? — interrompi-o, pensando alto. Achei que ele não me escutava. Era uma música do Erasure de 1986 que tocava na rádio todos os dias religiosamente enquanto eu estava na produtora, eu amava esse álbum desde o meu tempo.
— É esse o nome da música? — ele perguntou, anuí em resposta. — Então finalmente vou parar de ficar com essa porra de música na cabeça e poder ouvi-la inteira. — Ele riu de olhos fechados. Acompanhei sua risada.
— É do Erasure — comentei, ainda rindo.
— Acho uma bandinha brega, mas estou disposto a dar uma chance só por causa dessa música e por você. — Ele parou de rir e ficou sério. — Você me atrai, , não sei quando e nem como, mas sinto essa atração estranha por você.
Não conseguiria descrever tudo que passou pela minha mente, porque foi um turbilhão de pensamentos e sensações que não acompanhei. Senti que ele não estava tentando me cantar, que, se eu o negasse, doeria mais do que um fora comum. Ah, Deus sabe que não queria negá-lo mais uma vez. Por que ele não poderia ter facilitado e desistido? Me incomodava profundamente vê-lo daquele jeito, me desejando, sendo sincero, esperando algo de mim depois de meses que me recolhi em um casulo para evitar tudo isso. Incomodava mais do que tentar visualizá-lo sofrendo no futuro. Eu era uma egoísta de merda.
E a justificativa era simples: eu também precisava dele.
Não podia mais suportar aquela resistência, precisava apenas de um dia para recuperar minhas forças. Um dia com ele.
Eu tive uma noite, agora precisava de um dia. Seria um passo até não conseguir mais parar...
Os olhos dele brilhavam em expectativa, como uma criança em uma loja de brinquedos.
Foda-se a razão.
— Só hoje — cedi. Ele não esperou nem dois segundos para colar nossas bocas.
Era um beijo cheio de necessidade, a impressão é que ele queria conferir se estava tudo ali mesmo, se era como ele lembrava. Cada parte que tocava despertava imediatamente e de novo enquanto sua língua exigia o máximo da minha. Eu não esperava por isso, pensei que ele me daria um tempo para pelo menos acordar, mas ele estava decidido a não perder tempo. Acabei por demorar a corresponder os movimentos hábeis da sua boca.
Desceu as mãos para minha cintura e colou nossos corpos mais uma vez — me fazendo sentir toda a extensão da sua excitação. A lembrança vívida da última vez, de quando finalmente nos conectamos da maneira mais intimista possível, veio à minha mente e me causou calafrios de ansiedade para senti-lo de novo.
Deslizei minha mão para dentro de sua calça e o toquei. Oh, ele realmente me desejava. Partiu o beijo para gemer de olhos fechados quando minha mão começou a se movimentar com curiosidade. Se virou para se deitar com as costas totalmente no colchão, provavelmente para aproveitar melhor. Deslizei para junto dele e aumentei a velocidade dos meus movimentos.
Enquanto eu o admirava reagindo deliciosamente ao meu toque, a porta rangeu e ele reagiu antes de mim, me escondendo debaixo do lençol.
Misericórdia, nós tínhamos acabado de sermos pegos no flagra!
Segurei a risada escandalosa que tentava a todo custo sair enquanto me mantinha imóvel grudada a ele.
— Lilly! — ele vociferou. — Será possível mesmo?! Quantas vezes eu já te disse para bater antes de entrar?
— Achei que você ainda estivesse dormindo, por isso não bati — ela explicou com a voz trêmula, provavelmente por ele ter sido tão grosseiro logo de cara.
— O que você quer? — ele rosnou.
— A não foi para o meu quarto, ela está aqui?
Bom, eu não poderia ter desaparecido, ? Não tinha mal ela saber que dormi na mesma cama que ele, como disse ontem. Então, em outro surto de coragem menos de 24 horas depois, coloquei a cabeça para fora do lençol, mostrando que sim.
— Ah... — ela disse, mas parecendo entender não o que eu pretendia, mas tudo. — Merda.
A porta bateu e ouvi os passos dela correndo no corredor. Tirei minha mão que ainda segurava a ereção dele. Cara, aquilo não era nada bom... Nós estávamos no quarto de hóspedes da casa da família dele! Eu deveria ter previsto que não aparecer ontem a faria procurar por mim. Mais um pouco, era perigoso ela me pegar em cima dele no ato em si. Estremeci com o pensamento.
— Quase certeza que a gente acabou de traumatizar sua irmã — comentei, me sentando na cama.
— Só a Lilly mesmo para entrar no quarto em uma hora dessas. — Ele colocou o travesseiro no rosto, em um ato revoltado e excitado demais. — É uma habilidade que ninguém tem.
— Vamos atrás dela — chamei, sentindo meus lábios se curvarem em um sorriso. Desmanchei na mesma hora que me dei conta que estava sorrindo em uma situação desesperadora daquelas.
— Preciso me acalmar primeiro — ele resmungou, ainda com o rosto enterrado no travesseiro.
Me desvencilhei do lençol, sem poder continuar ali o esperando, sabendo que Lilly estava traumatizada. Acho que ele nem queria mais minha companhia, afinal não poderia ajudá-lo nesse quesito agora e provavelmente minha presença só pioraria.
Demorou algum tempo até que ele se sentisse em condições de se mexer, enquanto isso, troquei de roupa, me arrumei no banheiro e o deixei no quarto.
Eu me sentia uma mãe caminhando para o quarto da filha prestes a ter outra conversa inevitável. Juntei toda minha paciência e bati à porta duas vezes. Ela abriu um pouco e conferiu quem era. Por um breve momento, achei que não me deixaria entrar, mas, quando me viu, ela me puxou para dentro e trancou.
— Sinto muito, eu não fazia ideia... — ela choramingou. — Céus, eu preferia ter morrido sem presenciar isso.
A coitada não parecia saber nem como reagir, se sentia envergonhada por ter interrompido ou traumatizada por imaginar o que interrompeu. Era possível enxergar em seus olhos assustados.
— Calma — pedi. — A gente não estava fazendo nada...
Ela me lançou um olhar de pura descrença, aquela garota sabia algumas coisas demais e outras de menos. Quer dizer, ela não era boba, já tinha 16 anos e nessa idade nós já estamos dominadas pelos hormônios. Ao mesmo tempo que penso que ela é nova demais por ser a irmãzinha do garoto que gosto, também penso nela como alguém da minha idade quando saímos e conversamos. Era um tanto quanto esquisito.
— ...ainda — completei depois da sua cara de descrença. A diferença daquele momento para a nossa primeira conversa é que nós já tínhamos uma certa intimidade e éramos consideravelmente amigas, então não me sentia mais tão envergonhada em falar de nós dois.
A expressão dela se transformou em puro nojo, mas os olhos azuis brilharam em curiosidade. Ela se sentou na cama.
— Vocês fizeram? — ela jogou no ar para que eu captasse. Lilly, apesar de ser esperta, ainda tinha receio de usar palavras como uma adolescente mesmo.
— Não, ele só me pediu para ficar, não aconteceu nada. A gente apenas dormiu — falei, para tranquilizá-la. Ela parecia um pouco descrente ainda, mas eu sustentei seu olhar como forma de garantir que era verdade e eu não iria esconder nada dela (só detalhes, para o bem da sua saúde mental).
Lilly era o meu único referencial de amiga ali. Ela me tratava diferente de Shandi, meu único referencial de amiga nos meus tempos. É claro que as duas eram diferentes, Lilly era tão sagaz e sacava as coisas mais rápido. Tinha o dom de saber tudo antes que qualquer palavra fosse dita. Enquanto Shandi era mais duvidosa, sarcástica e não fazia tanta questão de saber de algo se você a despistasse com plena certeza. No entanto, as duas tinham algo em comum: foram as primeiras a se aproximarem de mim. Eu era tímida na faculdade e Shandi acabou dando um jeito de furar minha bolha ao me ver lendo fanfic, depois trouxe Raj para o nosso círculo, mas sempre nossa amizade se limitou ao campus. Usualmente eu visitava a casa de sua família e, ela, meu apartamento. Já Lilly, depois daquele dia que disse ter ficado feliz em ter finalmente uma garota mais velha para conversar, basicamente me tratou como sua irmã e me apresentou a tudo na cidade. Por isso, sentia que tinha minha idade, mas, quando a ligava ao seu irmão mais velho, parecia que ela ainda usava maria chiquinhas e andava por aí com seu ursinho de pelúcia.
Para resumir, se não fosse por Lilly, eu teria passado os últimos meses trancada em casa com , sem conhecer nada de Estocolmo. Então, já era muito grata a ela. Por isso que dizia que ela era um dos motivos para não voltar para 2019 ainda.
Comecei a desfazer a cama que Andreas tinha preparado para mim e ela me olhava, pensando no que me perguntaria, só que dessa vez tomando cuidado para pensar no que ela queria realmente saber e o que ela não queria de jeito nenhum. Minha vontade era de rir ao constatar isso.
— Meu irmão é romântico? — ela perguntou, cautelosa.
— Ele é um conquistador, você sabe... — falei e ela concordou. Pensei nele falando que estava louco por mim, pelo meu cheiro, pela música que cantava no banho e em tudo de ontem à noite. — Mas acho que sim, ele deve ser um daqueles bêbados românticos — completei, agora sem olhá-la e ainda dobrando o cobertor.
Ela riu.
— Ele é um daqueles bêbados chatos, isso sim — comentou. — Você disse que não ia mais se envolver com ele nas últimas vezes que nos encontramos, o que te fez mudar de ideia?
Suspirei. Eu estava determinada a ser sincera com ela, então prossegui:
— Ontem, quando íamos dormir, ele começou a divagar e acabou me contando que não queria ter filhos por causa da mãe de vocês.
Percebi que ela estremeceu só pela menção da mulher que havia os machucado tanto. Quase me arrependi, mas sabia que ela não me deixaria em paz enquanto não terminasse de contar tudo.
Ela pareceu perceber minha hesitação, então balançou a cabeça, pedindo que eu continuasse.
— Ele disse... — puxei o ar, tomando coragem para contar aquilo sem... Sei lá, ainda não sabia como me sentia em relação àquilo — que se um dia fosse ter filhos, ele queria alguém tipo eu para ser a mãe. Porque ele confia em mim.
Lilly arregalou os olhos e abriu a boca, ficou assim por uns trinta segundos depois que terminei de falar. Até que ela soltou um gritinho, me pegando desavisada e causando um sobressalto. Já percebera que ela fazia isso quando algo muito bom ou muito ruim acontecia, aconteceu duas vezes nesse meio tempo.
A menina caiu com as costas no colchão da cama. Não sei dizer o que estava sentindo, porque ela grunhia enquanto balançava as pernas no ar.
Eu me aproximei, com cuidado, para não causar mais estragos. Ela sorria, encarando o teto.
Ah, era só a típica excitação adolescente.
Finalmente sorri junto com ela e me sentei na beirada da sua cama.
— Ah, amiga... Ele está considerando ser pai por sua causa — ela disse, em êxtase. — O turrão do meu irmão mais velho! Eu nem acredito... Me diz que depois disso você decidiu ter um bebê. Com ele. E eu serei a tia! — falou, emendando tudo.
— Claro que não, eu ainda sou a assistente dele. Não é uma... — Fanfic. Engoli a palavra contemporânea demais que lutava para sair. — Um conto de fadas, Lilly. Não estou pronta para ser mãe, muito menos de um garoto que mal conheço e não é nem meu namorado. Até ontem, a gente mal trocava duas palavras — falei rápido demais e em um tom afetado. A ideia era totalmente maluca e sem noção, eu duvidava que fosse esse sentido que ele estivesse querendo dizer.
Ela se levantou em um pulo e se sentou de frente para mim, ultrajada.
! — ela gritou, eu tampei a boca dela com a mão, indicando que era para falar baixo. O outro irmão dela dormia no quarto ao lado. — Desculpa — tirei minha mão. — Não acredito que você vai continuar negando depois disso. Eu mesma nunca imaginei o meu próprio irmão falando essas coisas, se Dre souber que o falou isso, você vai entender o quão improvável é.
— Ele mesmo reconheceu que estava bêbado e falando coisas sem sentido — respondi, me recusando a acreditar no que ela estava dizendo, por isso completei: — Aposto que deve dizer isso para outras também.
Eu não acreditava nisso, na verdade. Foi intenso demais e ele disse que vinha querendo conversar comigo, lembro que senti que ele tinha guardado aquelas palavras ao longo daquele tempo, mesmo que depois eu tenha concluído que parecia papo de bêbado. Ele disse que confiava em mim como nunca confiou em mulher nenhuma. Porém, falei que ele dizia isso para outras mulheres com a intenção de querer acreditar para o bem da minha sanidade e da nossa relação profissional (agora, em frangalhos). No entanto, ela me provou que eu estava dizendo sandices ao me dar um tapa no braço.
— Outch! — reclamei.
— É claro que ele não fala esse tipo de coisa bêbado, sua bobona! Senão, ele teria um monte de filhos espalhados pelo mundo! Do jeito que as mulheres gostam daquele feioso, não ia demorar a aparecer uma querendo ter um bebê dele — retrucou, me fazendo concordar com ela nesse aspecto. Até onde eu sei, ele morreu sem herdeiros e provavelmente a culpa era da sua mãe, não da falta de alguém para querer ter um filho dele. Ainda mais porque ele tinha ótimos genes, como a beleza, o talento...
Espera, por que estávamos discutindo uma possível mãe para ter um bebê do meu ídolo? E por que logo eu estava encabeçando a lista? Ele mesmo disse que não tinha intenção de jogar esse fardo em cima de mim!
— Lilly, não posso ter um filho agora — expliquei com paciência. Sobre a mentira de estar grávida e ter pedido o bebê, ela já sabia que não era verdade depois que ficamos amigas. Infelizmente, Lilly era doida por bebês e ficou um pouco indignada quando teve a confirmação, por isso estava levando esse assunto tão a sério. — Ainda mais com seu irmão! Quero manter meu emprego e isso seria agir com falta de ética.
Ela soltou uma risadinha de escárnio.
— Ah, é? E por que você estava com a mão dentro da calça dele agora mesmo? — ela soltou com um sorriso perverso emoldurando seu belo rosto.
Eu estava errada sobre todas as outras vezes que ela me colocou contra a parede, essa com certeza foi a mais desconcertante. Se tivesse como me esconder agora, eu não pensaria duas vezes.
— Co-como você sabe disso? — gaguejei, mortificada. Esse era o detalhe que eu preferi deixar de fora.
— Dá para saber pela forma que o lençol estava quando você apareceu — ela falou como se fosse óbvio e sem importância. — Agora me responde.
Engoli em seco, tentando não deixar minha voz trêmula e seguir com a naturalidade que Lilly estava tratando aquilo. Eu me dispus a ser sincera como amiga com ela pelo que vivemos cultivando nos últimos tempos, mas era mais fácil no pensamento do que na realidade quando ela me questionava assim.
— Ele me pediu para ignorarmos tudo só por hoje, eu meio que concordei.
Ela bateu a palma da mão na testa, mostrando que aquilo não era uma boa ideia. Nenhuma novidade, não é como se eu não soubesse ou pudesse fazer algo diferente.
— Bom, acho que tem duas alternativas: ou ele vai sacar que você está totalmente apaixonada e não vai tolerar quando voltar a tratá-lo daquele jeito ou você não vai conseguir mais parar — ela disse, me olhando com reprovação. Ela sabia também que eu o estava afastando depois do episódio de ciúmes e pelo medo de mostrar que estava apaixonada demais. — Bom, vamos ver no que isso vai resultar. Nós marcamos nosso compromisso de hoje para outro dia, que tal?
Concordei com a cabeça. Eu não queria cancelar, eu me divertia muito com ela. Algumas vezes, quando saíamos, nós falávamos do irmão dela e arquitetávamos planos — geralmente ela arquitetava e eu falava que não daria certo, porque eu e ele não tínhamos e nem teríamos nada. Mas Lilly era Lilly, ela colocou na cabeça que nós dois éramos perfeitos um para o outro e não desistiria. Eu até que gostava disso, ela daria uma boa fanfiqueira pelos plots que arquitetava.
Como boa cupido, ela cedeu o horário com tranquilidade para ele. Ela costumava me ligar umas dez horas, quando eu pegava o telefone e puxava o fio até o quarto para fofocarmos, então provavelmente eu teria que descrever o dia de hoje mais tarde.
Nós duas descemos as escadas, enquanto estava lendo o jornal novo de pernas cruzadas em um dos sofás da sala de estar. Seu cabelo estava molhado e penteado para trás, ele mastigava os amendoins que ficavam perto das bebidas, mas que agora estavam na mesinha de centro.
Ele ergueu os olhos e nos viu, depois voltou a atenção para o papel. Parecia que ele conseguira se recuperar bem, provavelmente com a ajuda de um banho gelado.
Estremeci um pouco ao lembrar que ele teria o dia de hoje para mim. Então, nós voltaríamos para casa e nada seria igual ao que costumava ser. As borboletas no meu estômago me mostravam o quanto estávamos nervosas com essa constatação.
Despedi-me de Lilly, enquanto ele terminava de ler o jornal. Ela sussurrou as coordenadas: dez horas ela iria dar três toques no telefone, se eu não atendesse, era para ligar depois, já eu apenas dava um toque e, se ela não atendesse, provavelmente o telefone estava no quarto de Andreas.
Sorri e concordei veemente, seria legal ter algo novo para contar só para variar.

***


Ele não falou durante o trajeto para o apartamento, apenas colocou uma fita com músicas do Aerosmith para preencher o silêncio, mas sua mão estava na minha coxa enquanto dirigia — o que tornou a situação até que confortável.
Quando abri a porta com minha chave, Solveig não parecia tão animado. Ele bocejou, se alongou e depois veio dar um “oi” preguiçoso para nós, como se nos culpasse pelo horário. Bom, pelo menos não tinha deixado um cocô de presente.
o colocou na varanda para tomar um sol e para usar o jornal no chão caso estivesse apertado demais até o passeio, depois fechou a porta. Sua mão ainda estava no trinco quando ele levantou os olhos para me observar e notei suas pupilas dilatadas. Nós mal havíamos pisado em casa e ele me comia com os olhos, mostrando que queria desesperadamente continuar o que havíamos começado de manhã. Pelo modo que meu corpo reagiu em resposta, eu também já não estava mais disposta a perder tempo.
Soltei a bolsa no chão, entendendo tudo o que iria acontecer nos próximos segundos. Ele deu passos rápidos até me encontrar e nos beijamos de novo como se nossas vidas dependessem daquilo — eu sentia que provavelmente dependiam sim, era a minha dose necessária para poder continuar convivendo com ele. Para quando dormisse no quarto dele, sozinha, pudesse pelo menos me contentar com a lembrança.
Ele me ergueu pelas coxas, andou comigo enroscada em seu quadril até que eu estivesse sentada no balcão da cozinha e nossos rostos de frente um para o outro, na altura certa. Nos beijamos por mais alguns minutos, mas nós dois estávamos impacientes. Ele desceu os beijos pelo meu pescoço e pelo meu colo, tirando toda a roupa dali e jogando longe para que pudesse beijar cada pedacinho que antes estava coberto.
Eu o queria e queria agora. Por isso, peguei seu queixo com os dedos e o trouxe de volta para o meu rosto, de forma a olhar nos olhos dele — que talvez fossem minha parte favorita, ainda estava em processo de decisão. Não dava para decidir uma parte favorita tão fácil quando a pessoa em questão é seu ídolo.
Desabotoei o jeans dele, enquanto nos olhávamos fixamente, deslizei minha mão pela segunda vez no dia para segurá-lo. E lá estava ele, quente, pulsante e viril para mim de novo. Ele apertou as pálpebras, como se meu toque tornasse a ereção insuportável. Trouxe-o para perto com minhas pernas em volta da sua cintura, sem nunca soltar a parte dele que mais me clamava. Sua cabeça estava do lado da minha, o que me facilitou sussurrar diretamente em seu ouvido:
— Faça ser bom para nós dois.
Foi o tempo calculado de levantar um pouco a saia e afastar a roupa íntima — quando terminei a frase, coloquei-o dentro de mim.
Ele soluçou e gemeu ao mesmo tempo, prova de que o surpreendi como planejei. Senti seu tronco se afastando, e seus olhos me fitando como se eu fosse a mulher mais cheia de surpresas e incrível do mundo, enquanto começava a se movimentar para me convencer que, para ele, eu era mesmo.
Suas investidas se tornaram em um piscar de olhos tão urgentes, tão profundas e tão rápidas que eu tive de me apoiar com os cotovelos no granito. Eu não achei ruim, precisava dele exatamente daquele jeito e com aquela intensidade para esquecer da loucura que estava fazendo, além de calar meu desejo ensurdecedor que me incendiava desde a primeira vez que o senti no meio das minhas pernas. Ele começou a apertar minha cintura com força e achei que era um sinal de que estava perto do ápice. Desgrudei meus olhos de seu rosto contorcido pelo prazer, só para olhar sua mão possessiva cravada na pele da minha cintura. Era como se ele me reivindicasse com aquele toque. Eu não pertencia a ele, não era nenhuma propriedade e definitivamente não pretendia deixar que homem algum me tratasse daquele jeito, nem que fosse meu ídolo que tivesse me feito viajar quase 30 anos para encontrá-lo. Porém, naquele momento, eu era dele. Enquanto ele me apertava, rosnava e estocava com fervor no balcão da cozinha, eu era dele.
Ah, se era.
Eu passei meus braços ao redor do seu pescoço e gritei o nome dele, como prova disso:
!
Sabia que me escutar gritando o que ele me pediu na noite anterior foi a sua perdição. Ele tentou sair de mim para ejacular fora assim como a primeira vez, mas o prendi com meus braços e pernas para aproveitar mais o momento.
— ele gemeu baixinho e sedutoramente no meu ouvido. Se eu não tivesse acabado de ter um orgasmo, com certeza o seguiria depois disso. gemendo era algo que nunca iria se apagar da minha mente — quiçá gemendo meu nome.
Depois de passar o efeito inebriante, ele se afastou do meu abraço de forma a nos encararmos. Tinha o cenho franzido, formando uma ruguinha entre as duas sobrancelhas que me tentava a tocá-la.
— Você... me... prendeu — ele disse pausadamente e assustado.
Eu ri, ele devia estar achando que interpretei literalmente o que me disse ontem.
— Eu tomo pílula — expliquei. É claro que eu falei sério para a Lilly que não estava pronta para ser mãe, por isso me precavi depois da nossa primeira noite inconsequente no hotel. Ficou claro, para mim, que mesmo dando o meu máximo para afastá-lo, nós poderíamos acabar nos atracando de novo em algum ponto e coito interrompido não é lá muito confiável. Eu estava estudando para ser uma bióloga, era vergonhoso pensar que utilizei esse método uma vez na vida, sabendo bem que continha espermatozoide no líquido pré-ejaculatório. Então, resolvi marcar uma consulta com uma ginecologista e começar a tomar pílula assim que consegui meus documentos aqui, era bom para controlar minhas cólicas também, que costumavam ser intensas.
Sua expressão suavizou e ele finalmente pôde soltar todo o ar que prendia. Não será hoje que você se tornará papai, . Eu podia parecer aproveitadora pelo modo que cheguei em sua vida, mas garantia que não era. Então, sei que ele falou aquilo ontem só para dizer que confiava em mim, mesmo que tenha me causado dúvida e Lilly tenha me dito o contrário hoje. Como eu disse, nunca pensei em ser mãe, só tinha 25 anos e sentia que não estava na hora ainda. Queria que, quando acontecesse, pelo menos fosse com alguém que eu amasse e me retribuísse. Ele só estava atraído, como disse.
Desci do balcão e ajeitei minhas roupas. Depois, com ajuda dele, fiz panquecas com a geleia de morango, que comprei no mercado ontem, para nós dois. Era tão engraçado ser seu prato favorito e ele associar a mim por apresentá-lo, sendo que, na verdade, aprendi essa combinação exatamente porque ele falava em sua música. Eu ainda ficava confusa como estava tudo se encaixando.
Deixei-o comendo no balcão — que nós limpamos, claro — para ir tomar banho. Antes de entrar no banheiro, liguei o rádio e My Heart... So Blue do Erasure era anunciada, sorri e deixei tocar enquanto trancava a porta. Ouvi-o aumentar o volume do aparelho na sala, mas o suficiente para me ouvir. Eu não era nenhuma cantora como ele, então timidamente comecei a cantar ao me despir e continuei depois de ligar o chuveiro. Não sei porquê, mas eu sabia que ele estava ouvindo atentamente com um sorriso no rosto do outro lado da porta. Isso me fez feliz por um momento.

***


Eu estava sentada no chão, Solveig estava deitado de bolinha no meu colo. estava em um banquinho da cozinha que era bem baixinho — o que era engraçado porque suas pernas eram enormes.
Ele tinha concordado, depois de muita insistência, em cantar uma música para mim. Então, pedi a do último álbum que mais ficava bonita em sua voz. Sabia bem que ele não gostava de cantar as próprias músicas ou escutá-las porque era muito crítico com seu próprio trabalho, mas eu era fã dele e não poderia perder a oportunidade.
Por isso, estava ali com o violão em um banquinho ridiculamente pequeno demais para ele, mudando a afinação enquanto eu o observava. A ansiedade tomou conta de mim porque não sabia o que esperar, se seria muito diferente da versão do estúdio, se seria igual, se minha opinião mudaria, se eu teria que fingir que gostei.
Ele tinha prendido a parte da frente do cabelo para trás, com uma presilha, em um penteado que eu julgava se assemelhar muito a um dos elfos do Tolkien. Me lembrava de ser seu penteado favorito no documentário em homenagem a ele.
Estava vestido com short jeans e regata preta — um de verão nos últimos dias da estação. O clima começaria a mudar em setembro na Europa e agosto tinha acabado de começar.
Ele passou o dedo no violão, a primeira nota que me arrancou dos meus devaneios. Sua voz acompanhou e minha pele se arrepiou de expectativa.
O alívio me dominou ao me certificar de que era a voz que eu passei tanto tempo escutando nos fones de ouvido, ela soava diferente só pelo ambiente não ser tão abafado quanto um estúdio. Mas era aquela voz que me acompanhava ao longo do dia e da noite em 2019, vinha dele e era perfeita.
A música agora estava perdida para mim. Nunca seria a mesma coisa, agora que eu conhecia a sensação de ouvi-lo cantando na minha frente. Eu queria que ele cantando para mim fosse meu primeiro pensamento quando pensasse nela quando eu voltasse para 2019. A sua concentração e dedicação me encantavam, ele cantou com a alma. Não foi algo descuidado ou preguiçoso por só ter eu ali assistindo. Foi realmente bonito de se ver.
Ele terminou e eu deveria ter uma cara de boba estampada ou minhas pupilas viraram corações, porque ele sorriu quando me dirigiu o olhar.
— Foi tão ruim assim? — ele perguntou com vergonha.
Eu toquei meu rosto com os dedos, só para me certificar de que não estava sonhando no meu apartamento em Birmingham.
— E-eu... — gaguejei, impressionada demais ainda. — Não sei se queria que o mundo todo pudesse ouvir isso ou se sou egoísta demais para dividir.
Sua risada masculina reverberou, o que me fez despertar um pouco do transe. Ele encostou o violão na parede, depois se ajoelhou no chão, vindo na minha direção. Sua mão amparou minha mandíbula e, segurando meu rosto, ele me beijou calmamente. Os movimentos de sua língua eram suaves e seu polegar fazia carinho em minha bochecha.
— Às vezes esqueço que você é minha fã — ele comentou, depois de partir o beijo. — Obrigado.
— Pelo quê? — perguntei com um sorriso e acariciei sua bochecha macia de barba recém-feita.
— Por ser minha fã. — Beijou a ponta do meu nariz. — Antes de você falar aquilo no outro dia, eu não me dei conta de que poderia ser o artista favorito de alguém. Quer dizer, eu sabia que a banda era a favorita de muitos meninos porque recebo muitas cartas falando isso, também que se inspiram na minha atitude merda dos anos 80. Porém, desde que eu resolvi mudar e ser mais como eu mesmo, pensei que a atenção ficaria só na banda e eu seria só uma consequência do trabalho. — Seu polegar começou a acariciar meu lábio inferior e nossos olhos estavam em uma conexão assustadoramente inquebrável. — Eu só não imaginei que no mundo tivesse alguém como você, que joga verdades na minha cara, me acusando de ser um péssimo artista, ou que gosta tanto da minha voz a ponto de, na primeira oportunidade, me pedir para cantar uma música minha. Então, sim, obrigado por ser minha fã.
O sorriso que senti meus lábios formarem foi de puro derretimento. Nunca imaginei que alguém me agradeceria pelo que eu fazia de melhor: ser fã. Ainda mais ele, que não me enxergava só como uma fã, mas também como sua assistente, a pessoa com quem dividia seu apartamento etc.
Solveig se espreguiçou no meu colo, provavelmente achando ruim nossa proximidade. Estávamos dignos do nojo que Solveig nos lançava mesmo. Se eu conhecesse um pouquinho mais, duvidaria da atração que mencionei mais cedo e chutaria que existia algo a mais pelo modo que estava me tratando. Porém, é claro que estava colocando expectativas demais pensando isso. Não sabia como ele tratava as outras...
Tentarei não pensar nas “outras”.
Minha cabeça insistia em lembrar que eu teria de pôr um ponto final nisso em algum ponto do dia. Porém, por enquanto, eu iria aproveitar cada momento. Seize the day.
Decidimos sair para dar uma volta pela cidade, colocamos a coleira em Solveig e o levamos também. Andamos pelo parque de mãos dadas. Eu estava totalmente rendida, romanticamente falando.
Ele segurou Solveig enquanto eu me arriscava a falar sueco com o vendedor da barraca de sorvete. Ouvi-o rindo junto com o homem mais velho quando troquei uma palavra semelhante por uma parte do corpo humano que eu nem sabia que tinha esse nome até agora. Porém, em tese, fui até bem. Consegui sair de lá com duas casquinhas de sabores que não foram os que eu tinha em mente. Entreguei uma para que arqueou uma sobrancelha.
— Eu queria de baunilha — comentou, rindo e analisando o sorvete. — E não... verde.
A julgar pela cor e textura, deveria ser de pistache ou de menta. Era quase a mesma coisa, não?
— Tenho sorte de voltar com sorvetes e não com qualquer outra coisa estranha que ele tivesse lá — sorri, provando o meu e sentindo o gosto de morango. Eu pedi chocolate branco, mas gosto de morango também. — Ainda bem que, além de sorveteiro, ele não é um traficante ou agora você estaria segurando algum tipo de droga que a gente nunca ouviu falar.
Ele soltou uma risada baixa e breve, seus olhos azuis encaravam meus lábios no sorvete com certa obscenidade. Afastei o sorvete da minha boca, com um pouco de vergonha e pareceu o despertar.
— Deixe-me provar o seu — ele pediu. Antes que eu erguesse o sorvete para lhe oferecer, sua boca já estava na minha e sua língua deslizou pelos meus lábios que antes observava. Arregalei meus olhos minimamente com a surpresa. Não era o que eu tinha em mente. Não durou muito, ele logo se afastou porque Solveig ainda estava em sua mão e nós ainda estávamos no meio da passagem do parque. — É, eu prefiro morango a sabor verde.
Soltei uma gargalhada meio escandalosa. Ele nem tinha provado o seu para saber do que era. Entreguei o meu e peguei o dele. Eu gostava muito de sorvete, então o verde não me intimidava. Contanto que não fosse de cupuaçu, estava satisfeita.
Sentamo-nos no banco ali perto, ele enrolou a guia de Solveig no pé para que ficasse com as mãos livres. Tomei o sorvete de menta enquanto observava as pessoas passeando e vivendo mais um domingo de 1990 em Estocolmo. A esse ponto, as roupas, os cortes de cabelo e as atividades diferentes tinham se tornado algo completamente rotineiro, mas às vezes ainda me pegava refletindo. Tudo parecia mais fácil, apesar de termos avançado nas tecnologias que tornaram nossa vida mais cômoda, as relações e a conversa fluíam com facilidade admirável. As pessoas pareciam mais felizes em interagir, em se conhecer e encontrar. Tiro por mim e por Lilly, que andamos saindo mais do que saí em 25 anos com todos meus outros amigos.
— É de que, afinal? — ele perguntou, atraindo minha atenção. Percebi que ele estava falando do sorvete depois de alguns segundos.
— Menta — respondi, notando que ele tinha acabado o seu devido a ausência da casquinha em qualquer lugar visível. — Quer provar de novo? — sugeri, surpreendendo até a mim mesma com a audácia.
Ele sorriu de lado e se arrastou para perto de mim. Me preparei para o beijo, mas ele só riu e lambeu o sorvete que estava quase no fim da minha mão. Fiquei frustrada e acho que minha expressão não me deixou esconder isso. Fiz papel de boba esperando-o me beijar e, de repente, estava sentindo muita vergonha por aquilo. Não costumava fazer investidas, então era o suficiente para me desestruturar.
Fiz menção de jogar o resto no lixo, já que não era muito fã de comer a casquinha com o restante, e também porque estava irritada com o sorvete, mas ele parou minha mão no meio do caminho da lixeira que estava atrás dele. Pegou o sorvete e enfiou o indicador ali, depois espalhou o sorvete pela minha boca. Eu o observei com completa descrença enquanto repetia por mais três vezes, até que meus lábios estivessem lambuzados. Jogou o resto na lixeira e limpou o que sobrou dos dedos no short jeans. Me senti uma palhaça ali com a boca cheia de sorvete até ele se aproximar de novo, passar as mãos pelas minhas coxas desnudas fazendo a pele arrepiar, depois lamber o sorvete devagar enquanto olhava nos meus olhos. Era uma cena totalmente imprópria para um parque no domingo à tarde, onde crianças corriam para lá e para cá, mas ninguém deu a mínima. Tenho certeza de que, em 2019, nós teríamos sido parados por pais irritados. Era para eu estar achando nojento também ou ainda estar irritada, mas meu sorriso de lado mostrava o quanto estava apreciando ser provada por ele.
Quando dei por mim, sua língua já estava dentro da minha boca convidando a minha para se juntar a ela. Por mais que eu estivesse meio travada devido a possibilidade de estar sendo observada, retribuí, sentindo o gosto de morango e o quanto sua língua estava gelada. Era um tanto quanto diferente e bom devido a sensação térmica. Ele agarrou minha nuca para aprofundar o beijo. Sua outra mão que continuou acariciando minha coxa pegou meus tornozelos e apoiou minhas pernas em seu colo. Ficamos ainda mais perto assim. O nó de excitação no meu ventre se tornou notável, estava caminhando para o insuportável em estar tão perto e o beijando em local público. Minhas mãos encontraram o cabelo sedoso e desfrutei de seu sabor que lentamente ia sumindo, dando lugar ao sabor de tabaco usual.
Solveig latiu, arrancando nós dois do momento. Encarei-o, tentando entender o que estava acontecendo, um homem ruivo se aproximou tampando o sol que vinha em nossa direção.
— Meu cachorro pode brincar com o de vocês? — perguntou em inglês com forte sotaque americano. Pensei que ele falaria algo sobre eu estar quase totalmente no colo do homem à minha frente, mas não. concordou com a cabeça e o homem apenas soltou a guia da peitoral do seu pastor alemão.
Ele ainda tentou voltar a me beijar, mas apesar de o desconhecido estar entretido com os dois cachorros brincando, eu tive o bom senso de me incomodar.
— Quer voltar para casa? — sugeriu. — Só um pouquinho, antes de irmos jantar fora mais tarde.
— Você quer me levar para jantar fora? — perguntei enquanto flashes da nossa última refeição em um restaurante passaram diante dos meus olhos. A luz de vela nos olhos dele, depois eu tomando a decisão de me afastar e iniciando o que estávamos esquecendo hoje. Uma memória que não cheirava nada bem.
— Por quê? — ele perguntou, provavelmente devido a minha expressão. — Prefere comer em casa?
Tirei minhas mãos do seu cabelo e suspirei. Será que ele iria interpretar mal se eu preferisse? Realmente não queria me lembrar, ainda estava muito fresco na minha mente e seria um estalar de dedos até me dar conta do que estava fazendo.
— Sim, prefiro — respondi, mordendo o lábio inferior.
— Tudo bem, então. Eu passo lá mais tarde para pegar — respondeu. Suas mãos começaram a passear pelas minhas pernas até que uma delas tocasse minha cintura. Ele enterrou o rosto no meu pescoço e mordeu de leve provocando uma sequência de arrepios por todo meu corpo.
, não — falei, tentando estabelecer um controle dos meus sentidos que insistiam em me trair. Nós estávamos indo longe demais no meio do parque durante o dia, tinham crianças passando e o dono do cachorro estava logo atrás.
— Ninguém se importa — ele comentou, alcançando o lóbulo da minha orelha e me fazendo quase pular do banco com a sensação da sua língua ali. — São só alguns amassos, baby.
— Não é possível que não se importem — respondi, tentando afastá-lo pelo peito. Aquilo não entrava na minha cabeça, por mais que ninguém tenha vindo nos incomodar. Ele deixou o meu lóbulo em paz e virou o tronco para encarar o dono do cachorro.
— Ei — chamou o homem. O americano que estava ajoelhado na grama perto do seu cachorro e de Solveig encarou de volta. — Você se incomoda em presenciar um casal se beijando no parque?
O americano franziu o cenho, suas sobrancelhas quase escondendo seus olhos verdes. Era uma pergunta estranha para se escutar de um desconhecido e era maluco por tê-la feito. Mentiria se dissesse que não estava com vontade de estapeá-lo por levar nossa conversa para o dono do cachorro e ainda se referir a nós como um casal. Por mais que estivéssemos fazendo coisas de... casal.
— Ahm... Não — ele respondeu, com um sorriso vacilante. — É claro que não.
Os dois iniciaram uma conversa depois disso e eu caí nos meus devaneios.
Apesar de parecer, nem tudo do século 20 eram flores. Por mais que eu enxergasse 1990, a maior parte do tempo, como um lugar fantástico, não era tanto assim. Tinha muito preconceito e muitos padrões que em 2019 foram superados.
Em uma loja de departamentos, já sofri julgamento por meu corpo não ser como o das mulheres da época quando pedi um número maior da saia que experimentei. Quase chorei, porque me lembrei da minha mãe, que era fruto dessa criação deste século, então sempre foi exigente com esportes e alimentação para nos manter dentro de um peso considerado ideal. Só não chorei na hora por causa da Lilly, que me defendeu feito uma leoa protegendo seu filhote. Eu estava acostumada a engolir isso em silêncio na infância, mas vê-la intercedendo por mim foi incrível.
Enfim, também sofri preconceito por ser latina. Os suecos só estavam acostumados a receberem europeus e estado-unidenses, e não brasileiros. Era estranho crescer em um mundo globalizado e em um estalar de dedos estar em um mundo que ainda está se preparando para a globalização.
Eu enxergava ali como um lugar formidável por olhar através de olhos apaixonados de uma viajante do tempo. Quer dizer, eu viajei décadas para viver o que meus pais viveram na juventude, o que as pessoas diziam ter saudade e estava conhecendo um mundo completamente diferente. Não era só viajar para outro país, como fiz quando mudei para a Inglaterra, era voltar no tempo. No entanto, reconhecia que havia muitos defeitos...
? — me chamou. O americano já não nos olhava mais, prova de que provavelmente fiquei presa nos meus pensamentos por alguns minutos. — Podemos voltar a nos beijar agora? — pediu com olhos suplicantes.
Ok, já que sabia que as pessoas dos anos 90 não ligavam para demonstrações de afeto de pessoas, mesmo perto de crianças, tinha algo a mais. Um fator que me incomodou na fala do próprio e em mim também por estar concordando com tudo o que ele estava me oferecendo até agora. Nós não somos nenhum “casal” para fazer isso no meio do parque. Eu estive de acordo em dar uma trégua, me mostrar que poderia ser bom para nós dois, mas foi no quesito sexual. Não estava sendo insensível por concluir aquilo, na verdade, era por me importar com meus sentimentos que pensava daquele jeito. Para ele, o que estávamos fazendo era só mais um joguinho de sedução, para mim, era chegar à beira de ser correspondida. Ter esperanças quando não queria ter nada. Eu estava caindo na sua armadilha direitinho, nossos beijos de manhã, sua mão na minha coxa, sexo no balcão da cozinha, ouvindo-o cantando e tocando para mim, me agradecendo por ser sua fã, lambendo sorvete da minha boca e dando amassos no parque. Tudo aquilo era ilusão demais para o meu pobre coração apaixonado, tinha medo de quando fosse para voltar à normalidade de nós dois separados, eu acabasse sucumbindo e não conseguindo.
— Na verdade, eu acho que quero voltar pra casa — falei, finalmente. Ele apenas assentiu, sem demonstrar sentimento algum e desenrolou a guia de Solveig que estava toda embolada no banco.
Nós nos despedimos do americano e de seu cachorro, depois andamos até em casa. Agora sem mãos dadas. O parque ficava perto da nossa rua, então não demoramos nem cinco minutos. Ele não parecia perceber o silêncio constrangedor que se instaurou, acho que vinha de dentro de mim depois da minha conclusão. não era muito de brigar ou de questionar, por isso que disse que teve que beber para se soltar na noite anterior. Os escandinavos eram assim, fechados demais, com exceção de Lilly, é claro. Börje, Karin e Andreas também tinham essa característica bem forte, por isso não fui muito questionada por aparecer de repente com uma história absurda que nem era verdade. Era bom, olhando por esse lado. Porém, tudo que quis nesses meses era que ele me questionasse e brigássemos pela minha decisão. O que ganhei? Espaço. Assim como ele estava fazendo agora.
Ao entrar no apartamento, estava decidida a ignorar esse espaço e continuar com o nosso joguinho sexual, antes que nosso dia de trégua acabasse. Ele tirou a coleira de Solveig que saiu andando feliz para seu lugar favorito de novo: a varanda.
Prensei-o contra a parede de frente para cozinha.
— Pode voltar a me beijar agora — respondi sua pergunta de minutos atrás, tirando a coleira de sua mão e jogando no chão da cozinha.
— É por isso que quis voltar para casa? — ele resolveu me questionar logo agora que eu estava quase implorando para ser beijada. Seu sorriso de lado estava ali. — Eu já te provei que ninguém liga se estamos nos beijando.
— Não — menti.
Não vou explicar que, secretamente, primeiro: não quero andar por aí de casalzinho porque doía meu coração essa amostra grátis de algo que não poderia ter; segundo: tinha muito medo das duas alternativas que Lilly me deu mais cedo; e terceiro: também não queria que tudo fugisse do controle que lutei para estabelecer aqueles meses. Por isso, tinha uma resposta plausível pronta.
— Não quero ficar de amassos por aí, . É um desperdício de tempo. Não sou mais um affair seu, você não precisa me conquistar, eu concordei em ter esse dia extraordinário porque preciso de sexo e você é especialista nesse quesito. — Me controlei para não engolir em seco ao botar essa mentira horrenda para fora. Para quem não sabia mentir direito, estava me superando. — Não precisamos de demonstrações públicas de afeto. Você é meu chefe e moro na sua casa por enquanto, então temos de ter limites. Só me beije e tire minha roupa antes que nosso dia acabe.
Um brilho meio ofendido passou pelos seus olhos azuis que me fitavam quase sem piscar. Eu o tinha negado, afinal, mesmo sabendo que ele poderia nutrir algo pequeno por mim depois do que vinha acontecendo desde a noite de anterior e que isso o machucaria. Não esperei mesmo que ele se sentiria assim ao me ouvir falando “verdades”. No entanto, o brilho surgiu e se foi muito rápido. Ele me puxou pelos ombros e agora eu que estava prensada contra a parede.
— Por que não disse antes? — ele perguntou enquanto desabotoava o meu short. — Essa é a minha parte favorita. Se eu soubesse antes, teria passado o dia todo te comendo.
Nunca o ouvi utilizar esse tipo de linguajar perto de mim. Foi uma surpresa ao constatar que meu nó de excitação respondeu positivamente a ele. É essa exata versão que quero hoje. A que está mais concentrada em me comer, não a que fica me elogiando e beijando no parque. Essa me ilude demais.
Sem qualquer aviso, ele enfiou a mão por dentro da barra do short e invadiu o tecido da calcinha com seus dedos hábeis. O desejo que se apossou de mim era poderoso e veio como uma onda gigante, se espalhando por cada nervo. Segurei em seus antebraços para não deixar meus joelhos cederem. Dois de seus dedos me penetraram e o dedão passou a me provocar. Eu senti no toque sua determinação para dar o que pedi e me enlouquecer de tabela por ter negligenciado suas investidas românticas. Gemi quando seus dedos alcançaram uma parte necessitada minha, que eu nem sabia que existia porque ninguém tocou lá.
— É isso que você quer, baby? Que eu te faça gozar? — ele perguntou com a boca colada no meu ouvido. Sua outra mão acariciou meu cabelo. Assenti com certa dificuldade por estar tão perto do ápice. — Ah, então é isso que você quer. Se você não fosse tão teimosa, eu poderia fazer todos os dias, já que moramos debaixo do mesmo teto. Porém, você insiste em estragar tudo falando que precisamos de limites, que sou seu chefe...
Não estava no humor para ouvi-lo tagarelar depois de todo o silêncio, foram meses de silêncio. Porém, também estava incapacitada de contestar.
— Você é má, . Muito, muito, muito má. E meninas más precisam de outro tipo de tratamento — ele disse e recolheu sua mão de dentro do meu short. Protestei com um gemido sôfrego. Ele queria me castigar, é isso? Encarei-o com toda a indignação dentro do meu ser, sem entender nada, ele apenas soltou uma risadinha sacana e depois atacou minha boca. Atacou com certa violência, diga-se de passagem. Assim como fiz com ele no dia do hotel. Me recusei a retribuir no começo, só pela frustração que me causou. Porém, ele continuou me beijando com força e suas mãos puxaram minhas coxas para enlaçar sua cintura. Vacilei por um momento e parti meus lábios, permitindo com que sua língua entrasse.
Ele cambaleou comigo até a parede do corredor para me ajeitar. Tirou a boca da minha e me fitou com olhos semicerrados. Se depois de insistir tanto para me beijar, ele achava que se livraria assim tão fácil, não mesmo. Puxei seu lábio inferior com minha boca e cravei meus dentes na pele, querendo castigá-lo pelo que fez comigo. Não o machuquei, não saiu sangue e nem nada. Foi só uma mordida bem bruta. Pelo seu sorrisinho, ele entendeu minha motivação por trás do gesto e voltou a me beijar. Bom, eu era má, não era? Então estava agindo conforme mandava o manual. Era engraçado porque mal sabia ele que estabelecer limites e distância são minhas tentativas de poupar a nós dois. Eu que carregava o peso de saber demais nas costas por ser uma viajante do tempo enquanto ele ficava tranquilo na sombra da inocência. Era eu que, a qualquer deslize, podia fazê-lo cansar de mim, ficar sem emprego, sofrer... Então, sim, era necessário limites e respeito entre nós.
Ele me jogou na cama com tudo, depois começou a se despir.
Não conseguia vê-lo direito porque as persianas estavam fechadas, mas senti suas mãos arrancarem peça por peça do que eu vestia com certa brutalidade que só me excitou mais.
— O que você está fazendo? — perguntei, obviamente sem pensar antes de fazer essa pergunta imbecil. Ele tirou a própria roupa e depois a minha, o que eu achava que ia fazer? Dormir? Bom, não duvido nada depois que ele me deixou na mão na sala poucos minutos atrás...
Ele soltou outra risadinha baixinha e sacana, mas que o fez parecer perigoso. Pena que na lista de todas as coisas que temo atualmente, um pelado definitivamente não estava incluso. Suas mãos me trouxeram para a beira da cama, ele pegou meus tornozelos e abriu minhas pernas. Em outros momentos, eu sentiria vergonha por estar assim, mas neste segundo meu cérebro estava concentrado demais na sensação de que ele provocava estando no ponto que mais clamava por sua atenção.
— Estou te obedecendo, princesa — respondeu, se enterrando em mim calmamente e me arrancando um gemido de satisfação. — Apenas te dando o tratamento que ofereço para meninas más. Eu sou o especialista, não é mesmo?
Ele não foi calmo em seguida, seus quadris investiram com tudo antes de chegar até o final. Eu soltei um gritinho misturado com gemido pela invasão. Céus! A facilidade, a brutalidade e a surpresa daquela invasão me deram a impressão de senti-lo na boca do estômago. Foi profundo no sentido cru da palavra. Começou a se movimentar com rapidez, sem me dar tempo para digerir.
— Surpresa? — ele perguntou e eu soube que seu sorriso de lado mais canalha possível estava lá.
— Cala a boca e me mostra do que você é capaz, — falei, levemente irritada por ele estar se achando.
Suas mãos me puxaram para cima pela cintura para tirar um pouco minhas costas do colchão e me adequar à altura dele. Eu mantive minhas pernas assim como deixou porque, por mais vergonhosa que fosse pensar nessa posição, ela era vantajosa para o ângulo da penetração e estava instigada para ver o que ele poderia me proporcionar. Queria descobrir do que e de como gosta. Sentia-me tão inocente ao pensar em todas as mulheres que passaram pelas suas mãos...
Seu dedão voltou a provocar meu clitóris e minha visão ficou turva pelo prazer. Oh, se esse era o jeito que tratava uma menina má, eu jurava que nunca mais seria boa. Seria uma megera, uma filha da puta, qualquer coisa que o fizesse prolongar aquela sensação e não me deixasse atingir o ápice naquele momento.
Ele se curvou, sem diminuir a velocidade do dedo e dos quadris.
— Estou fazendo um bom uso do seu tempo agora? — ele sussurrou contra meu rosto. Girou os quadris, me fazendo alucinar. — Responda — soou autoritário.
— S-Sim — respondi com medo de que ele parasse.
— Então deixa vir — pediu.
— Não posso — falei de olhos fechados, sentindo meu corpo começar a formigar querendo atender ao seu pedido. — Não quero que termine agora.
Ele soltou outra risadinha.
— Mas você vai. Só tenho um dia, não é? Então não me faça perder o meu tempo, . — Aumentou a velocidade do seu dedão. Arqueei as costas, sentindo o orgasmo começando. Não. Não posso. Torci os dedos dos pés para me segurar. Não dari esse gostinho para ele. — Pare de teimosia — pediu com a voz rouca.
— Não! — praticamente gritei. Ele começou a se movimentar devagar, girando os quadris e indo mais fundo, me enlouquecendo. Então parou para começar de novo. Gemi feito uma gata no cio querendo mais, mais e mais. Toda minha barreira ruindo bem na minha frente. — Droga, .
Meu corpo começou a convulsionar violentamente, lutando para que eu parasse de me segurar. Ele se curvou e percebi que ele também estava perto pela forma que ofegava no espaço entre meu pescoço e ombro. Sua boca começou a sugar a minha pele e eu gritei de novo. Deixei-o me conduzir para o frenesi que estava me cercando esse tempo todo. Urrei debaixo dele com o que me possuiu. Segurar só deixou o orgasmo mais intenso, poderoso e lascivo.
Ele soltou resmungos desconexos no meu ouvido e me seguiu, confirmando minhas desconfianças de que estava perto também. Meus olhos mal conseguiam ficar abertos e meu corpo estava em um nível de relaxamento profundo de que nunca esteve desde minha chegada. Eu arriscaria até em dizer desde que tive idade para começar a pensar demais com minha mente ansiosa. Ele saiu de dentro de mim e foi se limpar no banheiro.
Senti saudades do seu peso, do seu calor e do seu cheiro. Tudo junto. O que sentia por ele era perigoso, exagerado, sufocante. Somado ao que sabia sobre seu futuro e de onde vim, se tornava até doentio. Eu estava o usando enquanto escondia tudo dele. Ele não fazia ideia de que era vinte e sete anos mais velho que eu. era mais velho até que meus pais! E cá estava eu tratando tudo de novo como se fôssemos mais um casinho, como se eu pertencesse a 1990.
Que merda estava fazendo?
Foi uma falha gigante da minha parte ter deixado esse dia ocorrer, ainda mais depois do quão íntimo foram as declarações de ontem. Eu era muito babaca. Depois de tudo que aconteceu, a sensação era unicamente de que eu o usei, sabendo de tudo.
Ele passou por mim e foi catar suas roupas, parecendo estar prestes a me deixar ali sozinha, repleta dele.
— Aonde você vai? — perguntei, me sentando na cama e me cobrindo com o lençol enquanto ele ligava a luz.
— Sair — ele respondeu como se não fizesse diferença, mas o modo com que tensionava os músculos revelava que estava estressado.
— Eu pensei que nós iríamos passar o dia juntos — comentei com cautela, tentando fazer um reconhecimento do campo que estava me metendo. Eu nunca o vi bravo.
— E passamos. São oito da noite agora. Eu te satisfiz, , como você pediu. E, bom, como você não me quer mais para nada, não vejo sentido em ficar aí nessa cama contigo ou passar o resto da noite. Vou procurar outra mulher que me queira por completo, desde a parte da conquista até a parte de a levar para a cama para que eu possa ficar satisfeito — explicou, me fazendo arregalar os olhos em descrença e causando o sentimento de ter sido chutada como um cachorrinho. Ele finalmente me olhou ao ficar com a postura ereta e parecia sério demais enquanto se vestia. — Eu fui sincero ontem à noite para quebrar esse clima todo que você criou em cima da gente, mas tenho que concordar que é melhor daquele jeito. Você é tão confusa e complicada. Quando acho que está a fim de mim, você fala que quer apenas foder. — Ele suspirou. — Ainda insiste em relembrar que trabalha para mim, cara, isso me irrita tanto. Como se não estivesse rolando algo entre a gente desde aquele dia no hotel, e adivinha só? O dia que você que tomou a iniciativa! Honestamente, eu perdi a paciência. Te dei o seu espaço esses meses, não foi? Então, agora, preciso do meu para digerir essa indignação que estou sentindo pelo seu fora — ele disse e terminou de vestir a camiseta que era a última peça que faltava. Estava esperando-o finalizar para poder decidir como me sentia, mas, se fosse para definir algo naquele momento, eu diria que choque. — Não se preocupe, nada vai mudar para você que já vive assim por três meses sem nem ao menos se importar. — Me lançou um sorriso amargo. — Hoje foi um dia extraordinário. Assim como foi no hotel, não é? Então, considere esse meu bilhete de que nada aconteceu.
Então, ele se foi. E eu fiquei ali, tentando assimilar aquelas palavras. Eu que cheguei a achar que ele não se importava com o que estava fazendo a ponto de não demonstrar emoções todo esse tempo. Porém, ele sentia e sentia muito. Além das palavras, os olhos dele demonstravam a mágoa que infligi.
Meu chão tinha desmoronado. Ele finalmente tinha falado e isso mudava tudo.
Ele achava que eu não me importava esses meses? Foi por me importar muito que me afastei! Nós dois tínhamos uma ideia bem deturpada um do outro. Isso, com certeza, era resultado da nossa falta de conhecimento e comunicação um com o outro. Eu o conhecia como artista na ponta da língua, mas como pessoa...
Tinha que urgentemente parar de tratar como o artista inatingível e passar a vê-lo como um homem palpável que tinha sentimentos. Só que eu não sabia nem por onde começar a fazer isso.
Eu já vinha desconfiando que ele não gostava de que eu ficasse relembrando que trabalhava para ele. Eu entendia. Para ele, aparentemente não mudava nada entre nós dois. Mas, para mim, aquele emprego era necessário para minha permanência aqui ao lado dele. Para salvá-lo. Se eu largaria meu cargo de assistente e assumiria o posto de uma possível namorada? Provavelmente. Porém, só se eu não soubesse demais, se eu não fosse amaldiçoada por vir do futuro, se eu não tivesse tido sinais de que minha missão aqui era outra, se eu não precisasse permanecer perto dele sem ter medo de colocar tudo a perder.
Droga. Ele já estava sofrendo por minha causa. Nós realmente precisávamos de limites para que aquilo não acontecesse de novo. Ter concordado com esse dia foi um erro gigante. Eu achei que pudesse contornar tudo com aquela fala para não me machucar, mas acabei o machucando.
Eu sempre fui meio irresponsável com os sentimentos de outros garotos que me relacionei, mas eles não deram muita importância, porque nunca dei brecha para que eles se apaixonassem, afinal, eu mesma não me lembrava de estar apaixonada por alguém. Porém, agora os sentimentos de outra pessoa que importava demais para mim estavam ali e... Eu estava tão confusa. Me sentia tão sozinha nessa, tendo que tomar decisões responsáveis depois de passar 25 anos as evitando. Não queria deixar marcas piores nele quando precisasse ir embora. Queria que ele olhasse para trás e lembrasse daquela menina doida que era sua fã, que “caiu de paraquedas” em sua vida e que sumiu na mesma proporção. Não a que enfiou uma estaca em seu coração ao ir embora.
Eu era patética. Estava nua, na cama dele, chorando depois de escutá-lo falar que iria atrás de outra mulher. Não tinha o direito de me sentir ofendida pelas suas palavras, mesmo assim sentia. Nós não tínhamos nada, eu deixei bem claro com aquela escolha de palavras. Mas doía. Eu queria que ele pudesse segurar minha mão, beijar em público, me tocar todos os dias até me levar para o céu... Queria até mais do que ele.
Meu Deus! E ele...
Ele achava que eu estava a fim dele! E enquanto eu estava preocupada em esconder meus ciúmes para não demonstrar que sentia nada, ele sabia. Eu era uma tonta, era claro que ele saberia, fui eu quem começou com toda essa aproximação. Praticamente desperdicei três meses que poderia estar usando para conhecê-lo, me retraindo, com medo que ele percebesse e ele já sabia. Aparentemente, ele não sabia da dimensão do meu sentimento e creio que estava segura nesse quesito depois de hoje. Nós só precisávamos nos afastar de novo, tudo se estabeleceria, porque iria dá-lo seu tempo.
Afinal, qual escolha eu tinha depois que ele deu o meu?

Capítulo 11 - Consequence

Portugal
Depois de algum tempo longe da promo do disco novo, estávamos voltando à Portugal. Isso mesmo, o lugar em que apareci. A sensação de estar retornando ao lugar que surgi em 1990 era estranha, ainda mais ao lado de e Börje. Quando nós saímos de Portugal, eu me sentia tão entusiasmada por ter viajado no tempo, encontrado meu ídolo e ter ganhado uma chance de entrar em sua vida. Agora, estava me sentindo um verdadeiro... sei lá. É, não tinha descrição melhor para mim naquele momento.
Meu relacionamento com estava ainda pior do que antes daquele dia, agora o básico de casa tinha se resumido a falar quase nada. Fomos obrigados a conversar pendências do trabalho, nesse meio tempo, mas quem puxou o assunto todas as vezes fui eu e ele parecia extremamente incomodado em ouvir minha voz — o que acabou por machucar demais.
Ele reagia como um animal ferido toda vez que passava por mim, às vezes se encolhia, desviava o olhar, prendia a respiração, os passos rápidos e, por vezes, cautelosos, para que não fosse notado. Era horrível nossa convivência. Sentia-me um monstro, o pior de todas as espécies de monstros, e ia para o quarto chorar toda noite.
Andava assombrada pelo pensamento que ele estava saindo agora quase todos os dias para encontrar outra mulher que o satisfizesse. Ah, Deus, se for a tal da Natalia, eu não tinha a menor chance... Na verdade, realmente não tinha a menor chance porque não podíamos ficar juntos.
O lado bom é que isso não dependia mais só de mim, então estava em uma margem segura.
Sempre acordava pelas manhãs com olhos inchados de tanto chorar, mas fazia o café da manhã dele e saía para trabalhar de segunda à sexta. De todos os males, pelo menos os dias tinham se tornado rotina de novo. Nada de dia extraordinário aí no meio. Ele estava certo, afinal de contas. Pouco mudou depois daquele dia e nós nos distanciamos de novo, como se nada tivesse acontecido.
Eu e Lilly continuamos muito amigas. Depois do dia fatídico, ela me fez enxergar algo de bom: ele que colocou um ponto final no que estávamos fazendo e não me deixou com essa responsabilidade. Reconheci que seria pior caso eu tivesse que chutá-lo do quarto no fim do dia, só ajudaria a corroborar o papel de filha da puta que fiz. Lilly sabia que tinha um motivo para não poder ficar com ele, além dos óbvios de morarmos na mesma casa ou que eu era sua assistente, porém não se contentava muito em não saber o que era. No entanto, ela andava se contentando mais, acho que estamos até evoluindo nesse quesito e em vários outros. Ainda penso que a amizade dela está me mantendo aqui...
Confesso que não pensei em meios para voltar para 2019, porém, ao ver assim, me sinto tentada.
Eu resolvi boa parte da minha documentação nos meses que passei o evitando, foi assim que consegui ir ao médico, trabalhar legalmente na produtora de Börje, começar a pagar algumas contas e ter uma vida em Estocolmo. Não foi difícil, afinal. Devido à falta de sistemas operacionais e computadores que cumpriam a função que temos no século 21, eles compraram a história de que simplesmente perdi meus documentos e me entregaram um passaporte novinho, sem ao menos confirmar com o governo brasileiro se eu existia. Foi uma burocracia enorme para tirar toda a documentação de imigrante do zero, mas o passaporte acabou sendo a parte fácil. Assim, não tive problema para comprar as passagens dos próximos destinos e nem para embarcar.
No avião, a caminho de Lisboa, eu estava na janela com a filmadora apontada para a paisagem. Börje estava ao meu lado e em pé, no corredor, conversando com ele. Não dava para ficar mais desconfortável do que isso, de vez em quando o mais velho tentava me incluir na conversa, mas dei respostas rasas de forma a não continuar participando. Não queria espantar com minha voz irritante.
— Börje? — uma voz grossa, que não era de , ecoou do corredor. Olhei e era um homem mais velho, da idade de Börje provavelmente, mas com cabelos extremamente brancos feito sal.
— Sebastian! — ele respondeu, quando reconheceu. — Achei que nós nos encontraríamos na sua casa, em Lisboa! O que estava fazendo na Suécia?
— Passei rapidamente em um chalé que tenho um pouco afastado de Estocolmo para resolver algumas pendências, foi rápido, por isso não avisei — explicou. Sebastian tinha mais rugas que Börje também, então imaginei que estivesse acima dos 50 anos de idade, e vestia roupas brancas como um agente da saúde misturado com um dono de fazenda muito rico.
Os dois se cumprimentaram alegremente, como dois velhos amigos. e ele também se cumprimentaram, depois Sebastian me lançou um olhar inquisitivo.
— Essa é a , a nossa assistente — Börje me apresentou. O homem estendeu a mão e eu a peguei para mostrar o mínimo de educação, por mais que estivesse meio amuada. Observei como seus olhos brilharam diferente quando se dirigiram a mim. Talvez fosse impressão e os olhos pretos dele tivessem aquele brilho que passou despercebido antes, mas quase certeza de que não, porque ele tinha um sorriso esperto quase invisível como par.
— Prazer, mocinha — ele disse e beijou as costas da minha mão. franziu o cenho enquanto eu lutava internamente para não puxar minha mão em um reflexo rápido. Retirei-a calmamente, depois firmei a câmera no ombro para soar como desculpa.
Homem estranho. Quem beija a mão de desconhecidas ainda? Nós não estamos no século 19. Esse gesto só contribuiu para ativar meus alarmes de perigo.
Börje e ele saíram em direção ao assento dele, que, por um acaso, era quase ao lado do de e que teria percebido a presença do homem caso tivesse sentado a bunda lá além do momento da decolagem. saiu também, sem dizer nada — o que já era normal dada a nossa convivência.
O céu lá fora estava iluminado pelo sol na última vez que olhei, mas entramos em uma parte do trajeto que estava nublado e raios cortavam as nuvens. Esperava que o momento não fosse um mau presságio. Eu acreditava muito em sinais e esses pareciam indicar que eventos não muito bons poderiam vir por aí. As coisas já não estavam muito boas para mim, mas estavam “normais” e rotineiras. Não poderia suportar pensar que poderiam piorar de novo. Sofri mais pelo nesses últimos tempos do que sofri por homens inalcançáveis a minha vida inteira, então isso me deixava meio sem humor para lidar com mais uma armadilha do destino para me colocar para baixo. Ainda mais quando consegui me reerguer minimamente — Lilly quem dizia isso.
Eu ainda me sentia patética, mas pelo menos não estou mais nua na cama dele *risadinha autodepreciativa*.
Como pode-se esperar de uma tempestade iminente, o avião começou a sacolejar violentamente. O aviso de afivelar o cinto de segurança ligou e eu obedeci. Um episódio de Grey’s Anatomy veio à minha mente, lembrei que essa tremedeira nunca acabava bem. Nunca mesmo. Minha respiração ficou curta e minhas mãos suavam, o ataque de ansiedade me saudava feito um velho amigo. Me abaixei para guardar a câmera na bolsa para não ter o risco de soltá-la e ela rolar pelo carpete. A poltrona ao meu lado cedeu um pouco. Olhei, assustada, e estava lá, afivelando o cinto.
Nem precisei perguntar o que ele fazia ali, a resposta era óbvia: Börje estava em seu lugar com o tal Sebastian e ele havia corrido para o que sobrara.
Segurei um pouco a respiração para não chamar atenção, mas era difícil quando se estava tão apavorada. Se aquele avião ia cair, então eu tinha sido mandada para os anos 90 para morrer? Não, não, não. Se fosse para morrer tão cedo, preferia morrer no meu tempo, com meus pais. Não com o meu ídolo que atualmente me despreza.
Espera, se ele estava ao meu lado, então sua morte seria antecipada. Será que minha presença estava causando a inversão dos acontecimentos?
O avião tremia e desceu alguns pés, o que me provocou um frio na barriga horrendo. Soltei um grunhido apavorado e a mão dele agarrou a minha em cima do braço do assento.
Virei-me bem devagar, adiando o momento de olhá-lo tão de perto assim pela primeira vez desde o dia extraordinário. Só de sentir sua mão na minha, meu coração se acalmava aos poucos e a ideia de morrer começava aos poucos a soar absurda. Estava presente ainda, mas em menor proporção e esvaindo como um passe de mágica. Seu toque era tão poderoso a ponto de acalmar minha ansiedade, mas ao olhar seus olhos... Ele tinha aqueles olhos de animal ferido caraterísticos dos últimos tempos — que piorou quando os meus entraram em seu campo de visão. Virou-se e fechou as pálpebras, para me evitar mais uma vez.
A mão era para me acalmar, já os olhos mostravam que não me perdoaria naquele momento. Se é que perdoasse. Também fechei os meus, para não deixar nenhuma lágrima escorrer porque não tinha espaço para chorar escondido dessa vez. Permanecemos assim até o avião pousar, quando ele soltou minha mão e foi um dos primeiros a levantar. Seu rosto sem nenhuma expressão, é claro.
Börje foi para a casa do tal Sebastian conforme tinha planejado desde o princípio, eu e ficamos no mesmo hotel. Agora, éramos vizinhos de porta. Ao contrário do que eu esperava, estar de volta nesse hotel não me deixava nervosa. O nosso normal já havia se transformado em separados por portas e paredes mesmo, então nada mudou. A lembrança de nós dois dividindo o mesmo quarto era distante e estava quase se apagando pelo gosto amargo da nova realidade.
Eu ainda estava meio assustada com a turbulência do avião e os trovões lá fora não me eram muito favoráveis, mas achei que combinava perfeitamente com meu estado de espírito naquele momento. Toda vez que ele me olhava daquele jeito, parecia que enfiava uma estaca no meu peito e eu tinha vontade de desistir de tudo. Sei que não dependia mais de mim, não tinha direito de interferir no espaço que ele pediu — essa falta de opção era a única coisa que me mantinha firme. Eu tinha vontade de questioná-lo, de sacudi-lo, de gritar com ele, qualquer coisa para arrancar pelo menos alguma reação dele que não fosse de incômodo. Porém, não era justo tentar algo depois que ele me deu o meu tempo. Ele tinha me dado três meses, só havia se passado dois meses... Meio cedo para me afundar em uma garrafa de uísque e tomar coragem, certo?
Infelizmente, teríamos um jantar para participar juntos. tinha a primeira entrevista dessa parte da tour para a promoção do disco novo. Então, dali a duas horas eu tinha que bater na porta dele para pegarmos um táxi. Que ótimo, pensei.
Usei o telefone do hotel para confirmar o jantar de hoje e os compromissos de amanhã. Também liguei para Börje para comunicá-lo — apesar de que ele escolhia os eventos de que queria participar. O trabalho dele nessa parte da promo era colocar as cópias dos discos em mais lojas possíveis, meio que fazer o papel de espalhar o disco por aí, já que ele era o responsável pela produtora, além de me ajudar a montar a reunião com os fãs. Eu fiquei com o trabalho de controlar os compromissos com as fanzines e outras pessoas de alto escalão que convidavam para uma conversa.
Antes de sairmos da Suécia, respondi todas as cartas de fanzines portuguesas que mandaram para a produtora, espalhando que estaríamos aqui de novo — visto que estávamos tendo alta demanda — e informando o número do meu pager para marcarmos algo quando chegasse. Era parte da promoção fazer a ponte para que conversasse com o máximo de pessoas possível. E ainda deixei Charlotte — a outra funcionária da produtora — de aviso, caso alguém ligasse de última hora, para me passar o recado.
Depois de tudo resolvido, tomei banho, pendurei algumas roupas para escolher qual delas seria melhor. Optei por uma blusa vinho de gola alta — o que vinha sendo minha paixão nessa década porque estava na moda e tinha de monte nas lojas —, calça jeans azul escura e sapatos de salto alto fechados. Basicamente era o que eu sempre usava para essas ocasiões de trabalho desde que a estação mudou, então nenhuma novidade. Usei o ferro do hotel para desamarrotar o tecido das roupas que vieram apertadas numa mala pequena.
Enquanto passava a roupa, bateram à porta. Eu não estava esperando ninguém, então não me dei o trabalho de tirar o roupão e vestir a roupa passada.
Era , aparentemente pronto. Vestido com suas roupas habituais, calça jeans, camiseta do Bathory, uma jaqueta preta para proteger do frio — mas que era mais para dar charme mesmo, ele não sentia frio fácil. Seu cabelo estava molhado e exalava o cheiro do shampoo de frutas, que eu mesma tinha comprado no mercado outra unidade antes de virmos.
Ele ficou meio desconcertado quando constatou que eu estava vestida com o roupão do hotel. Agindo assim, ele até parece um garoto. Eu não sou muito adepta de ficar completamente pelada enquanto a luz está ligada no momento do vamos ver porque tenho muitas inseguranças que me desconcentrariam. Porém, é óbvio que ele já me tocou o suficiente para descobrir cada curva minha.
— Ahm... achei que já estava pronta. Eu volto outra hora... — ele disse, se virando para ir embora.
— Espera — toquei seu braço, sentindo uma corrente elétrica pinicar minha pele depois de tanto tempo sem contato. Minha pele ter se tornado refém do calor da dele era o maior motivo daquilo. Ele agora estava virado para mim e eu recolhi minha mão. Não ia deixá-lo ir embora agora que estava falando comigo utilizando a vergonha e não a mágoa. Senti que era um momento bom demais para deixar passar depois daquele último mês. — Entra, já estou quase pronta.
Ele franziu o cenho. Era uma proposta esquisita, mas tratei de arranjar uma desculpa antes que ele recusasse:
— É mais fácil se você me esperar e descermos juntos.
— Ok, tenho que discutir algo contigo mesmo — ele concordou como se já estivesse esperando uma proposta como brecha para conversarmos, depois me seguiu para dentro do quarto e fechou a porta. Ótimo, sozinha de novo entre quatro paredes com o motivo da minha dor de cabeça.
Ofereci a cama para ele se sentar e ele o fez, ficando um pouco de costas e um pouco de lado para o banheiro — onde eu estava vestindo minha roupa.
Ele estava falando normalmente — e parecia ter ensaiado antes de vir até meu quarto, devo ressaltar — sobre número de cópias do novo álbum que veio errado, o que resultaria na ida de Börje amanhã para Estocolmo com o intuito de mandar produzir às pressas e mandar mais para o resto da promo.
A porta estava aberta para que o ouvisse e por certa ousadia da minha parte em me vestir perto dele para testar sua reação. Se ele quisesse virar para me ver, ele certamente me veria, mas eu conheço e ele nunca faria isso. Não por estarmos brigados, mas por ele me respeitar muito. Eu ficava feliz que ele me respeitasse, ficava genuinamente grata e tornava nossa convivência ruim um pouco melhor. Porém, no fundo, quis muito que ele se virasse. Ele não deu uma espiada sequer enquanto meus olhos o fitavam para comprovar. Apenas continuou falando que já estava tudo certo pelos próximos dois dias que ele assinaria e conversaria com os fãs com um número limitado de cópias do álbum, mas que seríamos só nós dois para dar conta da organização e de todo o resto que já eram minhas atribuições.
Não era um trabalho tão grande, provavelmente eu só teria de arrumar um espaço nos lugares já acordados para que ele pudesse conversar e distribuir autógrafos para os fãs. Ele não se incomodava com muita gente em cima, então ninguém precisava cuidar da porta e eu poderia ajudá-lo facilmente com coisas básicas, como: arrumar canetas, tirar as fotos, colocar o mínimo de ordem e outras banalidades. era um artista muito tranquilo, não era estrelinha e gostava muito de discursar quando respondia perguntas sobre seu trabalho. Por mais que eu controlasse as perguntas de algumas entrevistas que sairiam em meios de comunicação, se elas ainda surgissem, ele se limitava a lançar uma piada sobre ou dispensar. Nada de xingamentos ou deixar a pessoa falar sozinha. Eu o admirava bastante por isso.
Terminei de me vestir, pendurando o roupão no banheiro.
— Não é um problema tão grande — comentei. — Eu dou conta.
Ele apenas assentiu e o silêncio constrangedor reinou no quarto.
Ficar tão perto dele enquanto conversávamos civilizadamente sobre trabalho até parecia que estava tudo normal. Seria tão mais fácil se pudéssemos acabar com esse silêncio chato e começar a nos conhecer, sermos amigos. Esquecer que já nos beijamos ou que fizemos mais que isso. Começar de novo, sabe? Estraguei tudo quando o ataquei no hotel e era culpa minha, eu sabia e ele também, mas não era pecado querer que tudo se ajeitasse. Nós estávamos longe de Estocolmo, então seria um bom pretexto para um recomeço.
Fiquei em pé na porta do banheiro por alguns minutos, esperando para ver se ele me procuraria. Dali eu conseguia ver seu nariz empinado, sua boca presa em uma linha fina e seus olhos fixos no papel de parede. Ele sabia que eu estava parada na porta, aguardando seu olhar. Eu sabia que sim.
Ficamos assim até eu resolver que estava frustrada o bastante com o espaço que ele me pediu. E, antes de verbalizar isso, já anunciei que estava pronta.
Ele se levantou rápido demais para que parecesse natural e eu arqueei uma sobrancelha. É claro que ele percebeu que foi estranho, porque tentou disfarçar jogando o cabelo para trás. Queria explodir em uma gargalhada nervosa pela sua falta de jeito, mas me controlei. Me controlei até demais para que não saísse nem um barulho pelo nariz e me entregasse.
Às vezes era bom saber que ele também era humano com essas pequenas demonstrações de falta de jeito. Aos meus olhos, mesmo depois dos últimos cinco meses, ele ainda parecia inalcançável, mas agora de uma maneira diferente. A gente morava debaixo do mesmo teto, mas nós dois parecíamos dois fantasmas.
Enquanto fazíamos o caminho até o saguão, perguntei algumas coisas pontuais relacionadas ao trabalho para quebrar o gelo. Caminhamos lado a lado, o que era estranho pelo que passamos no avião, mas aparentemente só eu me preocupava com isso — então resolvi deixar para lá.
No táxi, ele se sentou no assento da frente e eu fui sozinha no banco de trás. Dei os comandos para o motorista em português, enquanto olhava pela janela entretido até demais. O caminho foi um pouco demorado e silencioso. As notícias vinham do rádio em português europeu, mas apesar da familiaridade com meu idioma nativo depois de meses ouvindo sueco, nem dei bola, estava presa na paisagem da janela que nem ele. Meus pensamentos giravam em torno de assuntos do trabalho, porque ultimamente era só o que minha vida consistia: trabalho, trabalho e trabalho. reservara o horário da noite para invadir meus pensamentos.
Börje estava me mantendo bastante ocupada na produtora e juntar isso às pendências da carreira do estava sendo cansativo e suficiente para que eu esquecesse meus sentimentos durante o dia. Na verdade, para dizer que não pensava nele, eu me irritava muito separando a quantidade absurda de cartas mandadas por garotas do mundo inteiro das outras com perguntas possivelmente interessantes e o amaldiçoava por ser tão... .
Notei que ele não havia me encarado com aquele olhar de animal ferido do meu quarto de hotel até ali. Um avanço no meio da tempestade. Não podia contar com a vitória tão fácil assim, algo me dizia que essa pequena trégua foi forçada pela ausência de Börje nos próximos dias. Nós iríamos ficar sozinhos e precisaríamos trabalhar, então era plausível, ele estava agindo feito um profissional.
Descemos do táxi no restaurante, paguei o taxista com o cheque da produtora reservado para esse tipo de despesa. Acabei por aprender a assinar cheques do tanto que vinha passando-os, tudo nessa década girava em torno deles ou de dinheiro em espécie.
Ele deu o meu sobrenome para a recepcionista, que localizou a reserva. Ela nos levou até a mesa de quatro lugares e nos ajeitamos. Pedimos apenas bebidas para esperar nossos convidados, ele pediu vinho verde e eu pedi refrigerante.
Eu estava de frente a ele no canto, colados na janela com cortinas pesadas, de modo que as duas cadeiras dos nossos lados ficassem livres para os convidados. Ele lia o cardápio — que era bilíngue, então não precisei traduzir nada, pelo bem do nosso silêncio. Como não tínhamos mais o que falar, nem tentei puxar assunto como nos velhos tempos, só observei a chuva cair lá fora, assim como no meu primeiro dia ali — sim, eu estava me tornando uma observadora de paisagens e tanto.
Um pouco depois do garçom servir o que pedimos, desgrudou os olhos do cardápio e sorriu na minha direção. Não pensei que fosse para mim, porque ele não me lançaria um sorriso, por isso me virei na cadeira para ver quem vinha atrás.
Era ela. A loira alta daquele dia.
Natalia.
Do lado dela tinha um homem com um corte bem moderno para o meu tempo, as laterais de seu cabelo eram raspadas e o cabelo preto era preso num rabo de cavalo. Ele usava uma camiseta do Metallica, calça jeans e parecia alheio às pessoas bem-vestidas do restaurante, assim como .
Já a mulher, vestia um vestido champanhe que até eu fiquei sem ar ao observar. Como ela era alta, o vestido caiu perfeitamente, assim como teria sido na Gigi Hadid. Ela usava sandálias de salto alto bem finos, que a deixavam ainda mais alta e até sua bolsa era incrível — porque provavelmente era de marca, uma mulher como aquela não usaria algo que não fosse de marca.
se levantou para cumprimentá-los. Apertou a mão do homem, que se chamava Brian, depois cumprimentou Natalia com dois beijos no rosto. Provavelmente fiquei mais vermelha do que eu já estava depois daquele cumprimento. De novo, eu deveria estar a prima do pimentão pela facilidade que minha pele ficava vermelha. Não era algo que conseguia controlar, mas me abanei para tentar aliviar um pouco.
Eles me cumprimentaram também, me levantei e apertei a mão dos dois. O único lado positivo dessa era do gelo foi que adquiri a habilidade de me portar como uma profissional, em qualquer ocasião, mas principalmente quando era a trabalho. Acho que devia isso ao meu trabalho na produtora nesse tempo. Enfim, o que queria dizer era que eu não deixaria transparecer nem 0,001% do meu ciúme comparado ao que deixei no nosso último encontro na Suécia...
Eu espero.
Talvez eu estivesse no caminho para aprender, na verdade, a não demonstrar emoções que nem ele.
Bem provável, era um ótimo professor nesse quesito.
Ela se sentou logo ao lado dele, minha vontade era de gritar de ódio até ela se levantar e trocar de lugar com Brian, só que a profissional estava no controle. estava na minha frente, mas não era o suficiente quando estava ao lado dela. Comecei a sentir meu maxilar se tensionar — uma das formas silenciosas de descontar meu ciúme que encontrei. Meu dentista provavelmente reprovaria o comportamento.
O garçom apareceu de novo, dessa vez para anotar o nosso pedido de verdade. Não escutei o que ninguém pediu, minha cabeça estava a mil com a presença de Natalia, então, quando chegou a minha vez, pedi a primeira coisa que lembrava de ter visto no cardápio: salmão ao molho de alcaparras.
Era até razoável para a ocasião. Era melhor mesmo pedir algo leve ou eu correria o risco de vomitar de nervosismo na cara de ou dela.
— E você, ? — ela tentou me trazer para o assunto, depois dos três conversarem como velhos amigos durante alguns minutos e eu estampar um sorriso que até doía minhas bochechas de tão falso. — Achei que esse cara aqui não iria conseguir manter uma assistente por muito tempo.
Meu sorriso ficou ainda mais amarelo, mas me dava um desconto: foi inevitável.
— Pois é — falei. — Ainda estou aqui.
Para o seu infortúnio. Completei mentalmente, eu ainda me lembrava que ela menosprezou meu trabalho no nosso último encontro.
Foi a resposta mais amigável que encontrei para a situação. Eu falei baixinho, de forma que não soou como um fora, até porque me impressionava também o fato de ainda estar ali. Não tinha sido o que chamo de fácil.
Ela deu um sorriso sem mostrar os dentes, seu batom era vermelho vivo — em contraste com sua pele extremamente branca e seu cabelo extremamente loiro. Odiava admitir que ela era realmente bonita e que eu tinha de parar com essa rivalidade feminina boba que inventei. Ela não era uma ameaça para mim, afinal não estava namorando , ele vinha saindo com quem queria.
Brian se manifestou, levando a conversa para o trabalho, finalmente. Eles estavam lá para arranjar uma entrevista com em uma rádio popular inglesa que seria daqui a alguns dias. Börje que marcou esse jantar, por isso não sabia para quem eles trabalhavam, mas, pelo que entendi, eles eram responsáveis pela publicidade de uma empresa bem grande que trabalhava com pessoas famosas e estavam representando a rádio. Acho que esse era o motivo pelo qual nos encontramos em Estocolmo e agora em Lisboa, como se tratava de uma multinacional, há filiais da empresa em vários países.
Entreguei a eles o termo que criei para proteger a identidade de — o qual eles já haviam recebido uma cópia por fax, podendo ler as cláusulas que limitavam certas perguntas com antecedência. Nós geralmente não entregávamos esse termo para fanzines, porque já sabia driblar perguntas invasivas e eles geralmente escreviam o que saía da boca dele, o que não era o caso de empresas, revistas, rádios e pessoas do alto escalão, que geralmente faziam de tudo para “maquiar” a resposta.
Eles assinaram, primeiro Brian e depois Natalia. Ela entregou para , que murmurou um “obrigado” e sorriu para o sorriso dela — está vendo o porquê de o salmão ter sido a melhor alternativa? Nem comi e já queria vomitar.
Ele me entregou o papel e a caneta, tomei cuidado para pegá-los de forma a não encostar em sua mão ou o estrago nas minhas emoções seria maior. Por fim, assinei e guardei na minha pasta.
Brian faria algumas perguntas que o staff da rádio tinha entregado para ele de modo a nortear para o dia, por isso colocou um gravador até que moderno para a época em cima da mesa. Começando, assim, a fazer perguntas sobre a banda — algumas perguntas sobre a história, outros integrantes, álbuns, entre outras.
Não sobraram perguntas para Natalia, mesmo assim a chata quis fazer algumas de bônus para acrescentarem no dia da entrevista. Antes de começar, ela fez questão de destacar que ela e eram amigos já fazia uns anos, que eles tinham passado por algumas aventuras no meio e por isso suas questões seriam um pouco diferentes. Basicamente, ela fez algumas perguntas sobre fãs, o vício dele em bebida nos primeiros álbuns e mulheres.
A minha vontade de bufar era tão grande que chegava a ser incontrolável, mas eu estava imóvel, não queria que saísse na gravação e ela pudesse ouvir isso depois. Eu não teria me incomodado em ouvi-lo falando sobre mulheres, sério, porque ele se limitou muito para responder essa questão, já que era pessoal demais e foi a primeira que respondeu. Porém, o motivo do meu incômodo foi que ela perguntou aquilo olhando nos meus olhos, o que tornou tudo mais escroto. Me perguntava se ela sabia que algo aconteceu entre nós dois, qual o nível de amizade entre eles — se era aquele que tipo que contava tudo um para o outro. Bom, duvidava que fosse, o melhor amigo do era justamente Börje e depois vinha Andreas, então achava que, se ele contasse nosso envolvimento para alguém, seria apenas para os dois. Se contasse, afinal, não teria tanta importância assim.
Enfim, ela queria me atingir, não era coisa da minha cabeça. Outras duas pessoas que ela tinha mais afinidade a olhavam e ela escolheu me fitar logo nessa fala? Ah, faça-me o favor.
Olhei para a janela, evitando-a.
Ela não me faria perder as estribeiras. Não faria.
Pensar nisso só me lembrou de novo quando ela menosprezou o meu trabalho e só me fez sentir mais raiva. Descontei toda minha energia reprimida no meu pé, mexendo-o nervosamente debaixo da mesa.
Só queria sair dali e a comida nem tinha sido servida.
respondeu tudo alegremente, nem parecia o defensor do silêncio que vivia comigo. Me apeguei à imagem dele ali, sorrindo e gesticulando animadamente enquanto respondia às perguntas dela para relembrar nos meus momentos de solidão. Parecia uma rainha do drama falando assim. Fora a hipocrisia, já que fui eu a culpada por essa nuvem escura pairando em cima de nós dois. Naquele dia, ele sorriu para mim várias vezes, só para mim, e o que eu fiz? Abri minha boca para falar que não queria investidas românticas. Então, é. Eu não tinha motivos para ficar amargurada com o que acontecia na minha frente, porém eram meus pensamentos e estava livre dentro da minha cabeça para xingar os dois.
Ele fez uma brincadeira, respondendo à pergunta dela, e ela gargalhou. Logo em seguida, encostou a cabeça no ombro dele e vi sua mão de esmalte vermelho entrelaçando a dele.
Aquilo foi demais. Levantei-me em um pulo, fazendo, em suma, todo mundo do restaurante me olhar.
— Vou ao banheiro — expliquei, saindo da mesa com a cara queimando após Brian me dar espaço. Não conseguia definir se queimava por vergonha ou por raiva. Toda vez que a situação apertava, eu me trancava no banheiro como a ridícula que era. Naquele momento, era menos vergonhoso me trancar no banheiro do que pular na mesa e esganar um dos dois.
Quase percorri o caminho até o banheiro correndo, tranquei a porta com cuidado para que ninguém entrasse ali e me pegasse surtando.
No minuto que percebi estar sozinha, pulei e soquei o ar.
Droga, droga, mil vezes droga!
Estava tudo muito estável e tranquilo para ser verdade.
Não diria que estava “tudo bem”, porque não considerava a situação boa o bastante para isso. Mas estávamos estáveis e, desde que ele apareceu no meu quarto mais de uma hora atrás, diria que estávamos caminhando para a tranquilidade. tinha voltado a me tratar como pessoa, não como o monstro que assusta a criancinha pobre e indefesa que ele guardava dentro de si.
Molhei minhas mãos com a água da torneira e passei na nuca, para me acalmar um pouco. Essa estratégia costumava ser bem eficaz comigo. Esse era o máximo de emoção que tive em dias, por mais que fosse apenas ciúmes, juntou com o jetlag e todo o episódio da turbulência do avião, eu me sentia prestes a entrar em pane.
Achei que realmente estava sendo muito dramática. Nunca fui assim, não tive ciúmes das amigas ou das ex-namoradas dos garotos com que me relacionei — na verdade, não dava para ligar muito, já que nada foi como era atualmente. nem era meu namorado ou coisa do tipo, eu sei que ele não vai se guardar para mim porque disse estar atraído. Ele estava no auge da sua juventude e, como entendi das suas palavras dolorosas daquele dia, ele não se pouparia. Então, repetia: Natalia não era uma ameaça para mim. Se ele chegasse no máximo, que era namorá-la, eu teria somente de sair de casa — o que não era mais problema como era há dois meses.
se recusava a dividir igualmente as contas do apartamento comigo, então eu só pagava a do telefone, que boa parte era só das minhas conversas quase diárias com Lilly. Ou seja, sobrava muito dinheiro do meu salário, então abri uma poupança no banco e estava depositando boa parte lá para me mudar o quanto antes, de preferência quando chegássemos da tour. Eu gostava de viver com ele, mas não aguentava mais viver esse silêncio, essa tensão sexual reprimida e nem meu sofrimento quando o via saindo de casa pela noite. Seria melhor para nós dois nos afastar um pouco.
Joguei mais água na minha nuca, tentando desimpregnar esse ciúme e parar de ser uma abusiva de merda. Na última hora, fiz duas coisas que mais costumava odiar: rivalidade feminina e achar que alguém era propriedade. Meu Deus, no que eu estava me transformando?
Provavelmente, no monstro que assustava criancinhas mesmo.
Ou alguém do século 20.
Ok, estava na hora de deixar o banheiro e encarar as responsabilidades. Antes que enlouquecesse de vez e passasse o resto da noite naquele banheiro, saindo de lá só para caminhar até a porta da rua.
Lavei as mãos, sequei-as. Arrumei minha postura, tentando parecer mais confiante e suspirei — porque seria a última vez que faria aquilo naquele jantar, para não desconfiarem que estava com dor de barriga ou alguma outra coisa estranha que me fizesse ir ao banheiro com frequência.
Quando voltei à mesa, cheguei junto com o garçom que vinha acompanhado de outro funcionário que deveria ser da cozinha. Finalmente, poderia me ocupar com a comida e não com a vida alheia como uma velha fofoqueira.
Tomei meu lugar, enquanto ele servia os pratos aos respectivos donos. Aparentemente, todos iriam comer carne e só eu pedi peixe. Natalia pareceu perceber também, porque, quando o funcionário foi embora e ela terminou de ajeitar o guardanapo em seu colo, ela me lançou aquele sorrisinho novamente.
— Você vai comer salmão com alcaparras bebendo Coca-Cola? — ela perguntou, os outros dois me olharam com curiosidade.
— Sim, por quê? — respondi, já na defensiva por estar sendo observada.
— Porque não combina, o certo é beber um espumante brut ou rosé.
levantou uma sobrancelha, provavelmente esperando a minha resposta mal-educada porque sentia que estava estampando irritação na minha cara naquele momento. Não era preciso me conhecer muito para saber que eu tinha uma cara típica para quando estava irritada e para outras emoções, eu era muito expressiva como dizia meu professor de teatro. Mas ela não iria conseguir me tirar do sério a ponto de arrancar uma resposta atravessada.
— Não, obrigada. Eu gosto de salmão com refrigerante, além do mais, não costumo beber durante o trabalho — respondi, soando educada o bastante para ver uma surpresa no rosto dele.
— Tudo bem, se você quer desperdiçar esse belo salmão com Coca-Cola, então vá em frente — retrucou, mas com uma falsa educação notável.
Não cabia resposta, por isso resolvi apenas continuar desperdiçando meu belo salmão. Alguns minutos depois de silêncio, voltaram a falar para alinhar alguns detalhes da entrevista. Suspirei, aliviada, por não ser mais o foco da atenção pela minha preferência culinária medíocre.
Comi bem devagar, para me manter ocupada durante o máximo de tempo que consegui. Só que tudo uma hora acaba, até mesmo meu belo salmão.
Eu estava bebendo minha Coca-Cola com um canudo agora, observando-os acabar com tudo que reservaram para hoje. Brian encerrou o gravador e guardou-o de volta na bolsa que carregava.
— Vamos sair depois daqui? — Natalia sugeriu, olhando para e depois olhando para Brian.
Ainda bem que silenciosamente não fui convidada, ficaria sem jeito de meter um “NÃO” bem grande na cara da Natalia — contém ironia.
Além disso, no dia seguinte acordaríamos cedo, eu e teríamos que trabalhar juntos para levar caixas com os materiais para a sessão de conversa em duas lojas de discos e consequentemente uma pequena entrevista para uma fanzine local durante uma delas. Esperava que ele soubesse que iria me ajudar, já que Börje não estaria ali.
A agenda estava até que cheia no dia seguinte.
Porém, sorriu e disse:
— Claro.
O jeito que ele a olhou lembrou muito como costumava me olhar, inclusive quando disse que confiava em mim e soltou elogios. Eu me senti traída, é claro. Tudo aconteceu muito rápido, tive o vislumbre dele bêbado falando sobre sua mãe e sobre eu vir a ser uma pessoa de confiança, depois meu reflexo de chutar a canela dele por baixo da mesa antes que eu pudesse pensar no que estava fazendo.
Ele abaixou para segurar a perna e soltou um “outch”. Arregalei os olhos, surpresa com o que acabara de fazer. Não costumava ter atitudes daquela natureza, alguns tapas tudo bem, mas chutar a canela dele? Me surpreendi comigo mesma e com o nível do meu ciúme. Ele me olhou com ultraje e acabei por me engasgar com meu refrigerante. Eu tossi, buscando o ar e imaginando que só faltava essa para terminar a merda que foi esse jantar. Deveria ter fingido que estava doente no meu quarto. Provavelmente faria isso, se soubesse que Natalia estaria lá. Brian dava suaves batidas nas minhas costas enquanto Natalia tocava as costas de tentando entender o que acontecia com ele que segurava a própria perna. Agora quem estava sendo dramático era ele, nem foi um chute tão forte assim, foi mais por reflexo.
Quando um garçom apareceu querendo fazer a manobra de desengasgar em mim, eu recuperei parcialmente o fôlego por desespero de me sujeitar a esse tipo de vergonha no meio de um restaurante relativamente chique. tinha parado de reclamar da própria canela quando viu que eu estava parecendo o Sulley do Monstros S.A. logo em sua frente, e todos os três e as demais pessoas do lugar me olhavam, preocupadas.
Lágrimas saíam dos meus olhos e senti minha cabeça doer com falta de oxigênio. Não lembrava de ter me engasgado tão feio assim antes, nem queria de novo. Que sensação horrível. Sentia que literalmente me engasguei em um misto de vergonha e surpresa com minha própria atitude. Eu chutei a canela dele por ciúme, logo eu que vinha agindo como uma profissional todo esse tempo.
O que o ciúme não fazia comigo desde a primeira vez que a vimos...
Após recuperar o controle e minha cor normal, paguei a conta do jantar com o cheque da produtora e saímos porta afora. Sentia que atrapalhara tudo e os fiz terem vontade de ir embora por ter me engasgado assim.
— Você não vem, ? — Brian perguntou para mim enquanto um funcionário chamava o táxi.
— Não, preciso voltar para o hotel e organizar algumas coisas para amanhã — menti, sorrindo para parecer verdade. — Mas divirtam-se.
— Ah, obrigado. Foi bom te conhecer, você é bem simpática — ele sorriu — Espero que esteja bem depois de se engasgar daquele jeito.
Será que ele disse que eu era simpática por educação? Porque passei o jantar todo evitando conversar e no breve momento que abri minha boca para responder a provocação da Natalia, eu fingi ser educada. Não estava lá nos meus melhores dias de simpatia.
— Estou com um pouco de cabeça, mas estou melhor — me limitei a dizer isso e não a questioná-lo. — Foi um prazer, Brian.
Atrás de Brian, acontecia uma cena desagradável. Natalia estava de frente para , que descansava suas mãos na cintura fina dela e lhe lançava um sorriso de lado. Ela conversava com ele em sueco rápido demais para que eu ou Brian não pudéssemos entender. Sei que em sueco era para ele não entender, já que era da Inglaterra, mas naquela velocidade era para que eu não corresse o risco de entender, já que vinha me aprimorando na língua ultimamente. Ao contrário do que as pessoas pensavam, sueco não era lá tão difícil. Peguei apenas algumas aulas de intensivo, em 2019, para entender o básico de como a língua funcionava. Tudo que aprendi em seguida foi ali, estava até conseguindo me comunicar melhor do que aquele dia com o sorveteiro e estabelecia diálogos com a Lilly e com a Karin, quando as encontrava. Porém, não era o bastante para entender quando eles falavam tão rápido. Ouvi-los ali, trocando palavras incompreensíveis para mim, só contribuía para aumentar minha raiva. Seria óbvio dizer que minha consciência já concluíra que eles estavam marcando de dormir juntos.
Um táxi teve a decência de parar no meio da chuva torrencial e finalizei meu martírio.
— Pegue este, disse, soltando um pouco Natalia para me olhar. — Como estamos juntos, nós vamos no próximo.
Ele foi bem sucinto nessa fala, mas significou muito para a fagulha do nosso relacionamento reativar no meu peito, transformando-se em um fiozinho de esperança. Concordei com a cabeça e pulei para dentro do táxi, mas a minha vontade mesmo era de empurrar Natalia, pular no pescoço dele e beijar suas bochechas enquanto agradecia um milhão de vezes por estar finalizando esse período horrível aos poucos.
Pensamentos desesperados surgiam quando a situação era grave e eu estava mesmo me agarrando a qualquer migalha.
Depois que a poeira abaixou, quando já tinha chegado ao hotel, tomado outro banho e vestido meu pijama que voltei a recordar: ele tinha saído com ela.
Fiz uma careta quando pensei que deveria estar feliz por ele estar seguindo em frente. Ele parecia gostar genuinamente dela. Eu deveria ficar feliz, já que o amava, mas me sentia desconfortável em pensar que ela teria as mesmas sensações que experimentei viver naquele dia com ele. Antes de estragar tudo, é claro.
Não é como se eles aparecessem namorando depois, eu poderia guardar a minha fossa para quando eles declarassem que estivessem juntos. Por enquanto, eu estava sofrendo por antecipação e me cobrando a ficar feliz por algo que poderia nem ser real. A minha ansiedade tinha dessas mesmo.
Ajeitei-me na cama enquanto passava reprise de Top Gun na TV. Uma dublagem horrorosa em português de Portugal meio que ofuscou a beleza do Tom Cruise, me fazendo rir e assistir só por ser engraçado. Lembrei de Shandi e o filme se tornou um quentinho no coração.
Depois que acabou, eu ainda não tinha dormido, por isso fiquei assistindo O Poderoso Chefão ou O Padrinho, como eles chamavam ali. Sabia que o terceiro ainda nem tinha saído, então fingi que aquele final ainda poderia ser mudado assim como todo o futuro.
Aliás, já que resolvi arranjar um apartamento e assumir aquela vida em 1990, eu deveria começar a me organizar para entender como a viagem no tempo funcionava. Já passava da hora de entender qual era o meu propósito, se eu iria embora, se aquela música dele que interferi seria para mim ou se eu estava predestinada a estar ali. Mas, principalmente: será que eu tinha algum poder de mudar o futuro ou tudo iria acontecer comigo ali? Porque minha intenção real era adiar, ao máximo, a morte de . Para que isso viesse a acontecer, eu precisava mudar o futuro e talvez acabar mexendo na ordem de outros eventos.
Era difícil ser Claire Fraser, agora sentia na pele. Se estou enfrentando dificuldade por ter viajado quase 30 anos, imagina ela, que viajou mais de 100.
Me lembro das noites que fantasiei viver algo como Outlander para me tirar da minha vidinha mixuruca de jovem adulta. Jamais imaginei que pudesse se tornar verdade mesmo. Porém, nossa diferença não se limitava a apenas a quantidade de anos e os desafios que eles traziam, mas na grande quantidade de bagagem além da ficção.
Sobre a música, eu ainda vinha pensando nela, acompanhada do medo de fazer sofrer por mim e principalmente sofrer pela minha partida. Não suportava o fardo de o ter inspirado a ponto de escrever algo para mim. Apesar de que tinha quase certeza de que pelo menos duas músicas teriam partes inspiradas em mim, se fosse verdade mesmo. Uma porque fui eu que apresentei panquecas com geleia para ele, a outra porque eu interferi. Fora que, eu tinha quase cem por cento de convicção de que “Laid my eyes on you” não era para mim, mas a Natalia não tinha olhos grandes e . Eu tinha.
Balancei a cabeça para espantar pensamentos com ela e lutar mais uma vez contra a rivalidade feminina que criei por causa de um homem que nem ligava para mim.
Querendo ou não, eu tinha aquela saudade de casa e de quem eu era em 2019. A viagem no tempo muda muito quem você é, por incrível que possa soar para algumas pessoas. Me sentia uma nova , com uma nova personalidade, novos gostos e até sentindo ciúmes de outra mulher de graça. E eu estava cansada da nova versão, eu precisava me sentir como eu mesma de novo. Voltar para meu tempo parecia uma possibilidade cada vez mais realista e palpável.
Para falar a verdade, eu era uma covarde.
Eu nunca amei uma pessoa presente, não sei como agir a não ser fugir.
Um Al Pacino bem jovem decorava a tela da TV. Sorri, porque 1979 não tinha sido há tanto tempo quanto em 2019. Na verdade, pessoas que nasceram em ’79 estavam fazendo 11 anos.
O telefone tocou, me fazendo quase pular da cama com o susto. Já pensei em todas as coisas ruins possíveis que poderiam ter acontecido porque uma ligação na madrugada só indicava má notícia. Depois de me ajeitar na cama novamente, estiquei o braço para tirar o fone do gancho.
— Alô? — falei em português mesmo, minha voz saiu meio esganiçada pelo susto.
Estava dormindo? — a voz masculina ecoou do outro lado, me fazendo arrepiar ao reconhecer que era .
— Não. Por quê? Aconteceu alguma coisa? — falei rápido, dessa vez em inglês.
Oh, não — ele deu uma risadinha charmosa do outro lado da linha — Só queria saber se estava bem depois de se engasgar daquele jeito.
Sorri feito uma boba. Ele também se preocupava comigo agora?
— Me ligou às... — olhei no relógio de cabeceira para conferir — ...três horas da manhã para me perguntar se estou bem? É muito bondoso da sua parte. — Ele suspirou do outro lado, parecendo se arrepender de ter perguntado. Por isso, tratei logo de acrescentar: — Estou bem, não me engasguei mais. Ainda bem, porque provavelmente eu morreria se acontecesse de novo.
Ele riu.
Acho que nunca vi ninguém se engasgando daquele jeito — ele completou. — Pareceu meio fatal.
— Nem me fale, morrer engasgada por causa de uma Coca-Cola seria uma tragédia. Ainda mais depois de sobreviver àquela turbulência no avião que eu jurei que morreria.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos, pensei que tinha sido porque abordei o assunto do avião em que ele pegou minha mão.
Você chutou minha perna antes de se engasgar, isso era um indício do que estava por vir? Só para eu saber na próxima vez que acontecer — brincou, me distraindo do que falei.
Bati a palma da mão na testa, lembrando desse incidente que meu cérebro sem oxigênio apagou.
— Me desculpa, sério. Não sei dizer por que fiz aquilo — admiti. Eu sabia o motivo que me levou a fazer aquilo, mas não o motivo que recorri a tal gesto, já que não era do meu feitio.
Acho que você se assustou por estar se engasgando — ele disse, por fim.
— É... talvez — respondi, pensativa. Na verdade, a ordem dos eventos não foi essa, eu me engasguei por vergonha de ter chutado a canela dele, só que ele não precisava saber. — Foi divertido com a Natalia e o Brian? — puxei assunto, não querendo que aquele momento acabasse, mas me odiando por perguntar sobre ela e correr o risco de saber algo que não queria.
Sim, foi legal — ele respondeu. Ouvi-o soprando a fumaça e deduzi que estava fumando uma última vez antes de dormir. Ele sempre fazia isso. — Deveria ter ido com a gente, se divertir um pouco para variar, você só trabalha e fica em casa.
Não estava com paciência para ouvir sermão de , apesar de gostar de ouvi-lo falando comigo e de apreciar sua ligação.
— Tentarei ir na próxima vez — me limitei a responder isso e bocejei.
Boa noite, — ele disse, interpretando meu bocejo como uma deixa.
— Boa noite, — respondi, desligando o telefone.
Aquela fagulha de esperança se reativou e havia se transformado em uma chama, deixando meu coração bem quentinho. Eu ainda sorria feito uma boba quando deitei minha cabeça no travesseiro. Aquele dia teve um significado enorme. Finalmente pude dormir tranquila.

Capítulo 12 - Forever

O dia amanheceu comigo batendo na porta de . Eu me levantei cedo para garantir que tudo estava certo, afinal esse era um campo relativamente novo para mim e Börje não estava aqui para me ensinar mais. Eram seis horas da manhã quando me dei conta de que estavam faltando duas caixas com as cópias do disco novo e três contendo os outros discos. Corri, desesperada e de pijama, para bater à porta dele, com esperança de que elas estivessem lá.
Um de cara amassada e pijama abriu depois de várias batidas minhas. Passei por ele, quase o arrancando da porta e ignorando a minha pele que formigou pelo contato repentino com a dele. Evitei que isso acontecesse ontem e hoje acabei fazendo sem nem perceber. Passei o olho pelo quarto e encontrei um total de zero caixas.
— Cadê? — o olhei de olhos arregalados, feito uma doida varrida, esperando que ele entendesse. Quando vi que ele não tinha ideia do que eu estava falando, acrescentei: — As caixas! Estão faltando caixas no meu quarto!
— Você é uma workaholic, garota. Puta que pariu. São seis horas da manhã e está batendo na minha porta procurando trabalho! — ele esbravejou, seus olhos estavam vermelhos de sono. Mas não deixei me atingir, balancei a cabeça, esperando a resposta, e ele se deitou de novo. — Estão na casa do Sebastian, mais tarde a gente passa lá para pegar. Está bom para você?
— Temos que começar a nos arrumar agora, se vamos acrescentar mais uma coisa na lista de afazeres — comentei, um pouco desesperada pelas coisas estarem saindo do meu controle.
— Não vai rolar, — ele disse, se ajeitando no travesseiro. Percebi só naquele momento que seu torso estava nu e seu pijama se resumia a apenas a uma samba canção. ‘Tá, eu morava com ele e ele vivia dormindo de samba canção, não era nada estranho. Mas olhar sua pele exposta mexia com meus hormônios mais do que era tolerável, por isso fixei meus olhos nos seus. Onde era mais ou menos seguro.
— Pensa só: nove horas temos que estar arrumando tudo isso, ainda temos que nos arrumar, tomar café, passar na casa do Sebastian e depois ir às lojas. Seis horas é o horário ideal para conseguirmos fazer tudo isso — expliquei.
— Nada disso vai funcionar se eu estiver com muito sono para me mover. Então, por favor, espere mais uma hora — falou, de olhos fechados. Me deixando nervosa por perder o que era meu foco para não ter que passar os olhos pelo seu corpo. Devo acrescentar que ele não costumava andar sem camisa pela casa quando usava samba canção. Então vou usar isso como justificativa para o meu nervosismo.
— Te dou dez minutos e estarei aqui contando — sentei na cadeira, determinada a não deixá-lo me atrasar. Ele estava com o braço atrás da cabeça e de olhos fechados, parecendo confortável demais para quem só ia dormir por dez minutos.
Comecei a bater o pé no carpete, ansiosa. Se ele achava que iria me contrariar e eu ficaria calada, nada disso. Dessa vez, era trabalho e eu gosto de me manter organizada profissionalmente. Fiquei assim por uns dois minutos, não foi suficiente. Liguei o rádio na mesinha ao meu lado em um volume quase mínimo, mas que ainda ressoasse pelo quarto. Ele gostava de dormir com o rádio ligado, então não faria grande caso por isso. No entanto, Forever do KISS começou a tocar, ultimamente naquela rádio tocava muito essa música, talvez por ter lançado ano passado. Era uma rádio internacional com sede na Inglaterra, então também tinha na Suécia. Como eu sempre deixava o som sintonizado nela no escritório da produtora, sabia toda a letra. Já — que não gostava do KISS atual —, talvez ficasse um pouco irritado.
Comecei a cantar baixinho, olhando para um ponto aleatório e pensando que era engraçado ouvir KISS na rádio comum e ainda por vários dias seguidos. O gosto musical do século 20 era superior, sem dúvida nenhuma. Eu amava a sensação de sintonizar na rádio e ouvir músicas que me agradassem o dia inteiro. Mesmo que em 2019 pudéssemos ouvir qualquer música no Spotify ou Youtube a qualquer hora do dia, não era a mesma sensação.
também começou a cantar, me fazendo virar para encará-lo com surpresa. Ele sabia cantar uma música do KISS sem o Frehley? Ele ainda estava de olhos fechados e na mesma posição, cantando baixinho. Achei que era um “sim”. Parei de cantar e fiquei o observando, me permitindo finalmente passear os olhos pelo seu rosto, seu pescoço, seu peito rijo que me apoiou quando tropecei no carpete nesse mesmo lugar, desci pela barriga onde havia um pouco de pelo quase imperceptível abaixo de seu umbigo.
Como a música estava quase no final, em seguida foi anunciada “I want to know what love is” do Foreigner. Nem prestei muita atenção, apesar de também amar aquela música. Eu não estava concentrada o suficiente para fazer mais do que escutar inconscientemente. O que estava na minha frente era muito mais interessante. Meus olhos finalmente alcançaram o único tecido que o cobria, depois as suas pernas que eram quilométricas, para dizer o mínimo, e cada pedacinho dele me parecia inédito — bom, e era, eu nunca tinha feito uma análise visual tão minuciosa daquele corpanzil. Ele era perfeito... cada centímetro dele era perfeito. Senti o peito apertar pela vontade de tocá-lo de novo, de beijá-lo e fazer seus poros se arrepiarem só para mim. O que mais doía era saber que tudo aquilo ali foi meu e eu estraguei tudo. Não era justo olhá-lo com tanta adoração se era eu a culpada por estarmos daquele jeito, pisando em ovos um com o outro. Porém, sendo a teimosa que era, mesmo assim eu o admirava como se fosse uma obra de arte.
Quando cheguei aos seus pés, minha visão periférica captou o movimento de suas pálpebras ao mesmo tempo que desviei o olhar para a janela acima da cama. Por pouco, ele não me flagrou. Teria sido o meu fim, eu gaguejaria até a morte e ele sacaria tudo.
Ele se levantou da cama com um só movimento.
— Ainda não se passaram os dez minutos — comentei, após conferir o relógio ao seu lado.
— Não consigo dormir sabendo que você está sentada na minha frente me encarando — rebateu, entrando no banheiro e fechando a porta atrás de si. — Vá se arrumar também, estarei pronto nos seus malditos dez minutos — sua voz ecoou lá de dentro.
Sorri de lado por tê-lo irritado a ponto de fazê-lo se levantar. Ele não parecia bravo de verdade, como esteve aquele dia — o que me deixava com uma sensação de divertimento. Nós estávamos fazendo avanços de novo, afinal.
***
já estava sentado nas mesas externas do restaurante quando desci. O dia amanhecia preguiçosamente atrás dele enquanto bebia café e lia um livro do Nietzsche. Notei seu cabelo molhado e a jaqueta de couro do dia anterior que ele vestia. Olhei para as minhas próprias roupas. Quase certeza de que estava malvestida para o frio que deveria estar lá fora. Como eu disse, ele não sentia frio com facilidade. Então, talvez o outono estivesse começando a dar suas caras e a Europa viraria um grandessíssimo ar-condicionado antes de congelar.
Decidi eu mesma fazer o prato dele para que depois ele não levantasse e enrolasse escolhendo comida que nem criança em loja de doce. Ele gostava de primeiro tomar café e depois se levantar para escolher a comida, pelo que sei, mas não havia tempo para isso. A hora estava contra nós.

***


Estava realmente ventando um pouco, eu senti os poros das minhas pernas arrepiarem conforme me aproximava da mesa em que ele estava. Portugal não era um país muito frio, mas dava para notar que estava bem diferente da primeira vez que viemos. Pousei os dois pratos na mesa, empurrei o dele para o seu encontro.
— Obrigado — agradeceu. E, para a minha surpresa, comeu um pouco de ovo mexido enquanto ainda havia café na xícara.
Tentei não demonstrar espanto, bebendo o café da minha própria xícara. Eu geralmente não era muito adepta da cafeína por causa da minha ansiedade, mas precisava, desesperadamente, permanecer disposta. A memória de ter ido dormir às três da manhã não ajudava, não estava arrependida, no entanto. Foi tão bom ouvi-lo falando normalmente comigo ao telefone...
Me apegando a migalhas, minha mente sussurrou.
— A casa desse Sebastian é muito longe? — perguntei para espantar esse pensamento intrusivo.
— Não muito — ele olhou para mim.
Concordei. Ele parecia bem comparado a mim: eu estava acabada e ele parecia que tinha dormido oito horas ininterruptas. Porém, ele tinha o hábito de ir dormir tarde até mesmo em casa, então achava que não era uma competição justa.
Ele continuou lendo e eu observei a paisagem. Era bem verde em volta do hotel. Como já tinha um tempo considerável que eu estava nos anos 90, tinha me desacostumado aos poucos a hábitos de 2019 — mas admito que em momentos como esse, me fazia falta um smartphone para verificar as redes sociais. Ainda mais que eu não tinha o hábito de carregar um livro que nem o e geralmente tinha que fingir interesse pelas paisagens porque era literalmente a única coisa para ver. Nunca fui muito de admirar paisagens com fervor, mas admito que era divertido recorrer à minha memória para adivinhar o nome científico de algumas espécies de plantas e me mantinha ocupada.
— Ah, antes que eu me esqueça. — Ele ergueu os olhos do livro. — Você já deve ter percebido no avião que o Sebastian é um pouco... invasivo. Não sei nem se essa é a palavra certa para descrevê-lo. Então, se ele te disser ou fizer algo que te deixe desconfortável, me avise e vamos embora imediatamente.
— Ahm, ok — disse, receosa, e mordendo o lábio inferior. Não sabia o que esperar, mas já sabia que não era coisa boa.
— Ele é maluco por mulheres, ainda mais jovens — declarou, fazendo uma careta. — Börje me avisou que ele pensa que estamos juntos depois do avião, então pode ser que ele não fale nada — deu um gole no café e bufou. — Eu duvido, é melhor que fique alerta sempre que estiver perto dele.
— Tudo bem — respondi, tentando não transparecer meu medo.
Eu sabia que tinha algo estranho com aquele homem, o jeito que ele me tratou aquele dia o fazia um homem do século 19 ou um tarado. E ele era um tarado. O pior é que naquela época existia tantos dessa laia, homens de todas as idades me assediavam e a outras mulheres cotidianamente. No século 21, nós tínhamos mais voz e direito de reclamar, mas aqui era trinta vezes mais perigoso reagir e a certeza que o homem ficaria impune era maior. O que nos restava era aguentar ou me esconder atrás de outro homem, como mesmo sugeriu.
Nós dois nos levantamos — depois de mais minutos de silêncio em que ele lia e eu adivinhava nomes de plantas — para chamar o táxi e irmos para a casa do tal Sebastian. Nós dois pegamos as caixas que estavam no lobby do hotel e encaixamos no porta-malas do carro.
Chegamos em menos de dez minutos. O homem morava em um casarão imponente, com direito a segurança na entrada. me disse que essa era apenas uma de suas casas espalhadas pelo mundo, que a de seu país natal — a Irlanda — era vinte vezes maior e ele vinha alternando entre todos elas. Pedi ao taxista que levasse as caixas no endereço anotado no papel que entreguei a ele, depois o paguei. As caixas iam direto para a loja porque deixei o proprietário à espera antes de sairmos, em uma breve ligação que fiz antes de tomar banho.
Lá dentro da casa de Sebastian, um mordomo nos recebeu. estava acostumado ao ambiente e o homem até mesmo cumprimentou-o por “senhor ”. Ele falava um inglês elegante, provavelmente era sua obrigação por ser a primeira língua de Sebastian, mas estava na cara que era português pelo seu nome ser Otávio.
Recusamos todas as coisas para beber e comer que nos foram oferecidas. Depois de nos sentarmos no sofá do hall, Sebastian apareceu descendo as escadas em espiral que cortavam o ambiente, parecendo um rei em seu próprio castelo, porém vestido com as roupas brancas de enfermeiro-fazendeiro.
— Não esperava vocês a essa hora da manhã — comentou, nos últimos degraus. — Caíram da cama?
sorriu pelo comentário, mas não consegui imitar seu gesto por ainda estar receosa em estar aqui depois do que escutei. O homem aproximou-se de nós com um cheiro de menta enjoativo. Ele pegou minha mão de novo e a beijou, mas dessa vez eu o encarei de cara fechada para deixar claro que eu não estava para brincadeira e sabia das suas intenções.
— Olá, bela — ele disse em um português carregado de sotaque.
Cumprimentei-o com um movimentar de cabeça quase imperceptível. Ele pareceu não dar a mínima para minha falta de educação porque continuou sorrindo de lado. Depois, apertou a mão de .
— Por que Otávio não levou vocês para a sala de estar? — ele perguntou, procurando o homem com os olhos.
— Só estamos de passagem mesmo. Temos vários compromissos hoje — respondeu.
— Não vai matar ficar só um pouquinho. Só para jogar uma conversa fora e poder conhecer melhor essa moça bonita.
olhou para mim, analisando se eu me sentia desconfortável depois de ele me chamar de “bela” e “moça bonita” em menos de cinco minutos. Fiz que sim com a cabeça, indicando que podíamos ficar pelo menos um pouco e que tinha tudo sobre controle.
Sebastian sorriu e nos levou para a sala de estar. Pediu para que o mordomo trouxesse chá, mesmo que não quiséssemos porque o café da manhã nem tinha descido direito ainda. Ele serviu a nós três, Sebastian sentado em uma poltrona de costas para a janela e na nossa frente, nós dois no sofá gigante.
Ele me olhava com olhos desejosos o tempo todo, o que me deixava bem desconfortável. Eu disfarcei, é claro. Bebi o chá com classe enquanto olhava a vista para os estábulos atrás dele.
— E então... como vai a banda? — ele perguntou para .
— Bem, as promos estão dando resultados positivos. — Também bebeu o chá.
— Eu sabia que seria ótimo virar uma banda de um homem só. Você é realmente um músico, garoto — ele sorriu, orgulhoso. — Sempre falei isso para o seu pai, desde que ele me disse que você começou a bater em latas fingindo ser baterista aos oito anos.
lhe lançou um sorriso sincero e que me deixou com um pouco de inveja. Para aquele homem tarado, ele também era todo sorrisos, já para mim, que cozinhava e mantinha sua casa limpa, só olhar de cachorrinho chutado.
— Obrigado. Börje e a vêm me ajudando no processo para esse sonho dar certo, então não é uma banda de um homem só tecnicamente.
Senti minhas bochechas esquentarem com a menção ao meu nome.
— Ah, que isso... — falei, sorrindo totalmente desconcertada. — É só meu trabalho, você é quem faz acontecer.
Sebastian nos encarava com um meio sorriso.
— Humildade da sua parte, . Você deve ser realmente boa em tudo que faz — ele disse o “boa” com malícia escorrendo feito veneno.
Dei um sorriso amarelo. Senti tensionar os músculos ao meu lado, parecendo ter percebido também.
— Como uma senhorita tão bela veio parar por esses arredores? O Brasil é longe demais para uma mocinha tão... — ele umedeceu os lábios — ...nova e indefesa vir sozinha.
Nova e indefesa? Eu ia mostrar o nova e indefesa para ele... largou a xícara com o pires na mesa rapidamente e colocou o braço em volta da minha cintura antes que eu pudesse voar em cima do homem. Seu cabelo fez cócegas no meu pescoço, me desarmando parcialmente, mas sua proximidade me atiçou inteira e se encarregou de desarmar o resto. Eu tive de me controlar para não soluçar com o susto de tantas emoções que despertaram ao mesmo tempo. Em um segundo, estava queimando de raiva, no outro, ele estava perto demais e me tocando. Era muita informação para o meu cérebro processar.
— Achei que Börje tivesse lhe contado — respondeu . — Eu e acabamos nos conhecendo nos Estados Unidos na minha viagem — inventou e fiquei admirada por ele ter pensado nisso. Eu mesma nem pensei nessa parte, a família dele sabia que a minha era do Brasil, mas nunca perguntaram como conheci . — Ela teve que fugir por estar grávida, mas acabou perdendo nosso bebê. — Beijou o topo da minha cabeça, me fazendo ficar ainda mais vermelha, mas agora pela vergonha. — Como ela foi expulsa de casa, agora mora e trabalha comigo. Não é, baby?
Balancei a cabeça como uma criança obediente.
Os olhos do homem faiscaram e seu sorriso ficou sombrio. Tremi um pouco e notou, sua mão calejada deslizou pelo meu braço para me tranquilizar. Oh, e funcionou, nesse sentido. O pânico por estar sendo tocada por ele de novo, no entanto, que deu as caras.
— Espero que vocês sejam felizes juntos — Sebastian falou, bebendo da sua xícara. — E cuide bem dela, . Os dias hoje estão tão perigosos, nunca se sabe quem pode encontrar sua mulher na rua dando sopa.
Ok, isso foi assustador. Essa era nossa deixa para ir embora, toquei a coxa dele por cima da calça e o fitei com olhos pidões. Ele me encarou e entendeu tudo.
— Acredito que temos de ir agora, Sebastian. Estamos realmente com pressa hoje — ele anunciou.
— Sem problemas, depois apareçam para que possamos conversar com mais calma — respondeu e depois gritou o nome de alguém. — Vou pedir para meu motorista levar vocês.
O homem se levantou e logo em seguida o seguimos porta afora. nunca me largou, nem quando outros funcionários da casa surgiram para levar as caixas para o porta-malas do carro de Sebastian. Ele só me soltou quando entramos na parte de trás do carro, enquanto o motorista nos levava portão afora.
Eu nem tinha me despedido de Sebastian, só maneei com a cabeça e me escondi atrás de , perdendo toda minha pose de brava depois que ele disse aquilo. Aquele sorriso e seus olhos só colaboraram com toda a atmosfera apavorante, eram de alguém com péssimas intenções e que não iria querer parar — mesmo que agora ele tivesse certeza de que estava com . De mentira, é claro.
Como tinha um material que nos separava do motorista, para dar privacidade, eu comecei a falar:
— Obrigada.
— Tudo bem — ele respondeu, dando um sorrisinho. — Eu já esperava que ele fosse aprontar pelos comentários que fez no avião e para Börje.
— Odeio esse tipo de homem e o mundo está tão cheio deles — cruzei os braços, olhando pela janela. Era tão chato lidar com esse tipo de situação. Ainda mais porque Sebastian era amigo deles e, pelo visto, de muito tempo, de acordo com seu comentário sobre o de oito anos.
— Deve ser horrível para você. Já li uma reportagem no jornal que reunia relatos sobre como as mulheres latinas sofrem no exterior, os homens consideram seus corpos como objeto de desejo e se acham no direito de tocar por estarem em seu próprio país. É totalmente bizarro — ele divagou, me fazendo arquear as duas sobrancelhas com a surpresa. Primeiro, ele não falava tanto assim comigo e nem sobre coisas aleatórias. Segundo, esse discurso dele foi muito além do seu tempo. Ele reconhecendo algo como isso era totalmente inusitado. — Sobre o Sebastian, não o deixarei chegar perto de você. Contanto que fique perto de mim ou do Börje, ele será inofensivo.
Balancei a cabeça em concordância, encerrando o assunto. Precisava de um tempo para me acostumar a enfrentar a presença de de novo. Estava ficando repetitiva, me surpreendendo com a voz e com o que ele estava falando comigo. Quer dizer, falar é algo normal e não podia me contentar com migalhas.
Chegamos à loja. agradeceu o motorista que, gentilmente, nos ajudou a descarregar as caixas.
Assim que entrei, me lembrei do lugar. Era da sua vinda em maio de acordo com os vídeos que assisti em 2019, mas, por algum motivo, nunca estivemos aqui na vinda anterior — o que provavelmente significava que não tinha acontecido uma segunda ida à Portugal e os acontecimentos estavam um pouco diferentes. Na verdade, há chances de que eu esteja errada ou os vídeos não estejam com a data certa.
Eu precisava muito procurar respostas.
tocou meu braço. Virei-me para olhá-lo.
— Preparada? — perguntou, arrastando uma caixa em minha direção com o pé.
— Sempre.
Sorrimos sem mostrar os dentes e começamos a desmontar tudo para deixar do nosso jeito.

***


Era hora do almoço, o que significava dar um tempo na arrumação.
Ele escolheu um restaurante italiano — que era seu tipo de comida favorito, era fã número 1 de pizza e eu nunca esqueceria essa informação — a alguns quarteirões de distância. Nós dois andamos lado a lado, o vento de fim de verão balançava o meu cabelo e o dele. As casas daquele bairro eram lindas, cada uma pintada de uma cor diferente da outra e padronizada.
— Tem algumas cidades no Brasil com casinhas assim. Me deu até uma saudade das praias — comentei, divagando.
— Você tem vontade de voltar? — ele perguntou, olhando para as casinhas que mencionei.
— Às vezes, sim — respondi, pensando na minha casa em São Paulo com meus pais, em 2019. — Mas gosto da Europa também, principalmente de Estocolmo, considero agora como minha segunda casa. Só que, no fim, a gente nunca se esquece da nossa primeira casa, não é?
— Eu... vou te levar lá um dia — comentou.
— O quê? — perguntei, pensando não o ter escutado direito.
— Vou te levar até seu país, quero conhecer de onde você vem — ele disse, naturalmente. — Você não precisa encontrar seus pais, se é o que te impede de voltar.
— Ah — tentei soar normal, mas eu estava surpresa de novo. — É, eu tenho um pouco de receio de encontrá-los, sim... porque eu fugi de casa — menti em cima do que ele falou. — Mas parece uma boa ideia, acho que você vai gostar, os europeus costumam elogiar bastante nossa hospitalidade e nossa natureza.
Ele não respondeu, nós apenas viramos na esquina do restaurante e entramos.
Enquanto olhava o cardápio, ele resolveu se manifestar:
— Estava pensando em irmos em dezembro.
Abaixei o meu cardápio.
— Perdão? — perguntei. Ele ia achar que eu estava com algum problema sério de audição, se eu continuasse o pedindo para repetir tudo.
— Bom, você sabe... A Suécia fica um frio insuportável em dezembro, viajamos para o Brasil para perseguir um pouco o sol. Que tal?
Ergui minhas sobrancelhas, achando aquele assunto meio esquisito para nossa situação atual.
— Por mim, ok — falei, sendo cautelosa, para que ele não desistisse de falar comigo caso fosse questionado. — Mas você não vai trabalhar em dezembro?
— Vai ser ótimo para minha inspiração mudar de ambiente — ele justificou e sorriu. Sorriu! Assim como fez para Natalia e para Sebastian. — Estava pensando em convidar meus irmãos, Börje e Karin. Lilly surtaria se soubesse que vamos ao Brasil.
— Ela vai ficar bem triste em não ser época de carnaval — ri e ele me acompanhou. — Vai ser legal ter toda a sua família no meu país. Não me sentirei a forasteira, pela primeira vez desde que te conheci.
Ele sorriu de novo!
— Está decidido, então. Temos que comprar a passagem assim que chegarmos, para não ficar tão caro — comentou.
— E você pretende ir em qual cidade? — perguntei com curiosidade para ver se ele conhecia alguma cidade brasileira.
— Me surpreenda.
Um arrepio subiu pelo meu corpo com essas duas palavras. Essas frases de efeito me instigam.
— Tudo bem — sorri, misteriosa. Eu não tinha nem ideia de onde levar toda a família dele, acreditava que São Paulo capital fosse extremamente desinteressante para turistas europeus, então pretendia consultar uma agência de viagens.
Pedimos a comida, falamos sobre alguns assuntos corriqueiros de trabalho enquanto comíamos e depois fomos embora. Conforme eu ia ouvindo sua voz e suas reações às minhas falas, as coisas entre nós iam se encaminhando e se tornando normais de novo. Um novo normal, diferente de todos os outros que já tivemos, como vem sendo desde que cheguei aqui. Ainda estávamos aprendendo a conviver um com o outro, então enfrentaríamos vários “normais” até nos adaptarmos. Ele tinha um probleminha para admitir o que acontecia, o que eu carinhosamente chamava de “cabeça-dura”, ou seja, até ele reconhecer que estava errado, poderia demorar um bom tempo. Ele, no fundo, sabia que precisávamos de limites e não podíamos ficar juntos, mas só naquele momento estava admitindo aquilo. Sabia que a reaproximação se tratava disso.
De volta ao trabalho, o dono do lugar chegou para dar uma olhada e oferecer uma ajuda. Dispensei a ajuda porque eu e estávamos nos dando muito bem trabalhando como uma dupla, o homem nos trouxe café e eu não poderia negar. Não no meu estágio atual de sono. Nós três nos reunimos para tomar e ele comentou ter alguns amigos próximos que eram fãs do , mas que tinham vergonha de aparecer.
Adorava esse sentimento puro de fã que tem receio de encontrar o artista, lembrava quando eu tinha isso e simplesmente parei na frente dele. As armadilhas do destino eram engraçadas. É, elas eram, mas só quando você não estava na minha pele.
foi simpático e sugeriu para trazê-los antes dos outros fãs chegarem. Era uma das coisas que mais me admirava nele: a proximidade e a ligação que ele tinha com os fãs. Lembro que sempre comentavam exatamente isso dele no meu tempo, o quão alcançável ele era e sempre pronto para responder às perguntas que mandavam através de cartas ou e-mails. Atualmente ele ainda respondia cartas e encomendas que mandavam de diversas partes do mundo, visto que os e-mails ficaram mais populares no final da década. Ele mesmo pegava as encomendas na produtora que eu separava e respondia sozinho. Existe só um porém, ele fazia questão de responder somente as de fãs e fanzines, as de revistas grandes e gente influente eu mesma respondia — mesmo que às vezes eu acabasse tendo que perguntar algumas coisas para ele ou, para poupar o estresse, para Börje. Geralmente as respostas das cartas ficavam prontas em no máximo dois dias depois que as pegava, então ele próprio levava para os correios. Ou seja, meu trabalho mesmo era apenas separá-las, ele que lidava com os próprios fãs.
Eu sempre escutava tarde da noite a máquina de escrever batendo conforme ele trabalhava em responder cada um deles. No final, a assinatura dele à mão. Sempre que pensava nisso, eu o achava adorável. Imaginei o quanto essas cartas não deveriam valer dali a alguns anos. Qualquer autógrafo do custava muito dinheiro, em uma faixa de 500 dólares para cima, então uma carta devia estar nessa faixa também.
— Combinado, então. Volto com eles às quatorze horas — o dono da loja se despediu.
Arrumamos tudo até ele voltar com os amigos, deixei-os conversando e fui olhar meu pager na bolsa. Aos poucos, estava me adaptando a aquele tipo de tecnologia, mas confesso que só lembrava da existência dele às vezes. Alguém — que não era Lilly ou Börje, porque decorei os respectivos números — tinha me bipado. Pensei se deveria usar o telefone público para ligar para o número, mas não tinha moedas portuguesas no momento, então ficaria para quando retornasse ao hotel. Também estava ali para garantir que tudo estava em ordem enquanto conversava com os três garotos e duas garotas. Não precisava mencionar que elas estavam rindo excessivamente, tocando desnecessariamente e investindo nitidamente. Ah, isso era óbvio que aconteceria para completar o dia de ontem. Observei pelo canto do olho enquanto testava as canetas, sentada em um banco na porta.
— Oh, , você é tão engraçado — falei baixinho com uma voz fina e nojenta, depois soltei uma risada forçada para imitá-las. — Você malha? Nossa, você é tão alto! Quanto você mede? Blá, blá, blá. — Revirei os olhos. – , sabia que eu estou doidinha para te dar? — ri de mim mesma. — Disso ele sabia, com certeza.
Alguém pigarreou, me assustando no meio dos meus delírios verbais e percebi que eu estava sendo observada o tempo todo. Três jovens me encaravam com curiosidade e divertimento. Era Tiago, Fernando Ferreira e um garoto loiro do cabelo grande.
— Tiago! — exclamei, me levantando e jogando o papel com a caneta na cadeira.
! — Tiago exclamou de volta, enquanto me abraçava. — Sabia que ia te encontrar por aqui.
— Eu ia te ligar para falar que estávamos na cidade, mas imaginei que soubesse — falei em português, abafada pelo seu ombro. — Você não perde mesmo uma, não é? — brinquei.
— E nós temos lá tantos eventos importantes assim? — ele também brincou.
— Vocês, portugueses, não sabem se divertir.
Ele fingiu irritação quando desfez o abraço, mas logo em seguida sorriu. Olhei para os demais ali, Fernando me lançou um manear com a cabeça em cumprimento, mas o outro parecia totalmente deslocado e me olhava com um pouco de curiosidade ainda.
— Esse é o Marko, ele é finlandês — disse Fernando, em inglês, porque o garoto não falava português.
— O Marko tem uma banda — Tiago disse.
— Eu sei — falei, vidrada no garoto à minha frente. Estiquei a mão para cumprimentá-lo em um gesto automático. Eu era muito fã dele.
— Você conhece minha banda? — ele perguntou, os olhos verdes brilhando de ansiedade.
— Já ouvi falar — comentei, tentando parecer neutra, mas por dentro meu cérebro estava gritando.
Eu mal cheguei no século 20 e já conheci três ídolos meus. Era a garota mais sortuda do mundo.
Seus olhos eram de um verde tão claro que quase sumiam, assim como seu cabelo que era bem loiro e abaixo do peito. Os fios escondiam metade de seu rosto, mas dava para ver que sua pele era rosada como a de um bebê. Na verdade, ele estava no auge da puberdade e sua beleza era evidente — eu teria que ser a rainha da hipocrisia para não reconhecer isto. Ele parecia mais velho do que Fernando e Tiago, mas ainda assim não deveria nem ter 20 anos, o que o tornava bem mais novo que eu.
— Você tem um stage name, não é? — eu disse.
Ele balançou a cabeça, concordando.
— Mas pode chamar de Marko — ele respondeu com um pouco de timidez. Concordei com a cabeça, Marko parecia mais fácil mesmo.
é aquela amiga que te falei que ajudei esse ano e ela acabou se tornando assistente do — Tiago disse para ele.
— Como está sendo trabalhar com um gênio? — Fernando perguntou, sorrindo.
— Difícil. A genialidade está associada com um temperamento complicado, pelo que percebi até agora — brinquei.
Marko e Tiago também sorriram.
— Com quem você estava... ahm... — Tiago pareceu pensar na palavra certa para utilizar — ...falando agorinha?
Prendi a risada escandalosa antes que ela criasse vida.
Ah, foda-se, eles podiam saber resumidamente o que eu estava fazendo. Não estava com nenhuma desculpa na ponta da língua naquele momento e nem com paciência para pensar em alguma. Aproximei-me dos três para que pudessem escutar minha voz baixa.
— Tem umas garotas ali, que são amigas do dono da loja, dando em cima do na maior cara de pau. Típico comportamento de garotas quando veem um homem diferente, então as estava imitando — olhei-os com falsa seriedade. — Não contem para ele, hein?
Os três olharam para o lado para constatarem o que eu estava falando. Homens... eles não sabem disfarçar.
— Ei, não olhem os três ao mesmo tempo! — censurei-os. Eles voltaram a me olhar. — Assim vai ficar na cara.
— Elas realmente estão investindo com tudo. A ruiva está praticamente pendurada nele — Fernando comentou baixinho também. — Bom, ele se deu bem, porque ela é gostosa.
Fiz uma careta involuntária ao ouvir aquilo. Não foi nem por ciúmes, foi mais por ouvir aquele tipo de elogio tão masculino. Ele não percebeu meu desgosto, mas Tiago me analisava minuciosamente.
— A gente já pode entrar? — Fernando voltou a falar. Dei de ombros, indicando que não havia problemas por mim. Eles eram meus amigos, afinal. Ele saiu carregando o garoto finlandês mudo pelo antebraço loja adentro.
— Você está namorando o ? — perguntou Tiago agora em português, assim que os dois saíram.
Era por isso que ele estava me olhando?
— Não. Por quê? — perguntei na defensiva.
— Parece que você gosta dele o suficiente para se incomodar com o comentário do Fernando — explicou, cruzando os braços e me olhando com curiosidade. Ele tinha hazel eyes profundos e acolhedores, olhar para eles era como se sentir com algum familiar, apesar de não nos conhecermos muito.
— Não foi por ele ter elogiado a garota — tentei explicar. — Foi mais pelo que ele disse. Não é todo dia que estou no meio de homens e ouço comentários assim.
O modo como tudo soou pareceu uma grande desculpa esfarrapada, por mais que eu estivesse falando a verdade. Aparentemente, eu carregava uma placa na testa escrita “eu amo o ” e ela não me deixava falar nada que fugisse desse fato. Tiago e Lilly não precisaram nem conversar direito comigo para perceber, eu era um fracasso mesmo.
— Sei — ele fingiu que acreditou. — Ele parece um cara bacana, você deveria investir, só casualmente.
Acredite em mim, Tiago, eu tentei o casualmente e depois fugi que nem uma garotinha assustada com medo.
— Ele é meu chefe — utilizei a minha desculpa padrão e mais simples.
— Você tem um bom ponto — ele assentiu. — Mas tem muita gente por aí que tem casinho com o chefe que diz que isso só torna tudo mais excitante.
Comecei a rir com exagero. Algumas pessoas começaram a chegar atrás dele e tive que me conter. Tiago me olhava com divertimento, apesar de que não tinha sido tão engraçado para merecer essa risada escandalosa, porém estava um pouco nervosa com a situação. Se eles perceberam, podia perceber a qualquer momento, então aquilo me apavorava.
Tiago acabou sendo arrastado junto com a multidão que chegava. Achei que não teria tanta gente porque era a segunda vez que nós estávamos ali naquele ano, com o mesmo disco, mas parecia que tinha sido bem recebido. Provavelmente ele teria que responder uma enxurrada de questionamentos sobre o show que prometeu em novembro — e que não iria acontecer, óbvio, não voltaríamos uma terceira vez em Portugal e não podia subir em um palco por conta do seu problema no coração.
— Entrem, vocês são os últimos — falei, pegando a porta e esperando os três últimos garotos passarem. Os portugueses entraram, agradecendo em nossa língua nativa.
Concordei, fechando a porta e indo atrás deles. Cortei pelo pequeno tumulto que estava ali dentro, para entrar e falar que o tempo tinha acabado. A garota estava ainda mais perto dele, me fazendo segurar um suspiro indignado.
Ele não é sua propriedade, .
— Estão todos aqui — falei, esperando-o concordar, e saí logo em seguida. Coloquei as canetas que peguei antes de sair na estante atrás do balcão. A ruiva se afastou um pouco ao perceber que eu a encarava de cara feia por estar atrapalhando meu trabalho. Não porque estava com ciúmes. Jamais.
Ajudei o dono a computar as vendas e ouvi o barulho de vozes masculinas exaltadas atrás de mim. Só consigo pensar em como o Marko me era curioso depois de olhar para mim. Sei que era normal para garotos — ainda mais com aquela idade — me olharem do jeito que ele olhou, até porque eu era claramente mais velha que eles — o que por si só já despertava interesse. Mas não sabia explicar o motivo que isso me intrigou.
Não estava acostumada a me enxergar como alguém atraente e digna de atenção. Até porque, para Fernando e Tiago, eu era uma igual.
chegou ao meu lado, depois de despistar os amigos do dono. Para lhe dar mais espaço, chutei a lixeira para o canto e liguei a música — o que fez os garotos gritarem um “oh” coletivo.
Ele sorriu timidamente com a reação coletiva e começou a falar com os primeiros que estavam colados no balcão. Conforme eu ia gravando com a filmadora que Börje tinha me dado, tirando foto dos fãs com a câmera deles, ia assinando LPs, fitas, fotos, papéis e todo o resto. Aos poucos, a muvuca foi se dissipando. Até que vi o último exemplar do disco novo sendo vendido no caixa para Marko, que entrou na fila, o abraçando, até alcançar . Filmei Tiago, Fernando e ele, os três não me viram.
Eles chegaram ao balcão, Fernando conversou com e me pediu para tirar uma foto. e Fernando sorriam do mesmo jeito, o que era engraçado. Tiago e Marko se espremeram para aparecer na segunda foto com do outro lado do balcão, era uma câmera analógica e tenho certeza de que aqueles que possuíam olhos claros sairiam com bolas vermelhas no lugar quando fossem reveladas.
Marko pareceu ficar meio confuso com o flash, portanto não me viu o encarando.
Só a lembrança da voz dele nas músicas me arrepiava e visualmente era só... um garoto. Era estranho.
Recebi outro bip ao mesmo tempo que vi um telefone da loja, confirmei se podia usar para uma ligação local e depois retornei. O dono da próxima loja de discos estava remarcando a ida de de hoje por um problema de saúde.
— O próximo compromisso dele foi cancelado, você quer estender? — perguntei ao dono da loja.
Seus olhos se iluminaram.
— Sim! Meu Deus, sim — ele disse, alegre. — A gente separou umas perguntas para ele. Íamos tentar fazer antes, mas acabamos nos distraindo falando sobre futebol.
— Ótimo, vou conversar com ele, então.
Desviei de algumas pessoas que o separavam do balcão que estava. Agora todos os olhos estavam em mim. Me subiu um calafrio conforme tocava o braço dele, ele abaixou para ficar com a orelha ao meu alcance.
O próximo foi cancelado, vamos estender mais um pouco esse. Entrevista com uma fanzine, coisa rápida”.
Ele concordou com a cabeça e saí de cena.
Ele assinou mais algumas coisas, mas, quando sinalizei que o tempo tinha acabado, ele se sentou em uma cadeira cercado por garotos e uma câmera.
Os garotos se juntaram para ouvir a entrevista com ele.
Quando dei por mim, após anunciar o final, sobraram apenas eu, os meus amigos — que me pediram para arranjar de ficarem um pouco mais —, o povo da loja e — que se aproximou e começou a conversar com eles de novo. No entanto, dessa vez os dois portugueses e o finlandês estavam no meio. Rezei para que, por um acaso, não viessem a abrir a boca e falar para as garotas que eu as estava imitando. Homens eram tapados o suficiente para me fazerem temer.
Arrumei toda a bagunça em tempo recorde, eu estava ficando muito boa naquilo. Nem cansava mais. Achava que era a correria na produtora que estava me acompanhando a sempre andar assim, fazendo várias atividades ao mesmo tempo e rápido demais.
Tudo que voltaria conosco já estava pronto na porta à nossa espera. Por isso, me aproximei do grupo que ainda estava ali.
— Vamos? — chamei, me aproximando do grupo. Percebi que o dono e os amigos estavam na parte privada da loja.
Eles eram fãs “força-barra” que se achavam privilegiados por terem uma loja, acho que pensavam que como fizeram uma entrevista para sua própria fanzine e conseguiram chamá-lo, eram amigos. Não era assim e isso me deixava brava.
— Ei, , já vai embora? — a ruiva saiu da cortina de pedrinhas perguntando. Eu o encarei com o queixo no chão. ? Desde quando ele revelou o nome no meio de um evento de trabalho? Ele havia perdido o juízo? Inspirei e expirei para tentar manter a calma e não reagir.
— Sim, Abigail. Tenho que trabalhar, minha assistente não me dá folga — ele justificou, sorrindo sem nem me olhar. É, seu palhaço, não me olhe mesmo ou eu furaria seus belos olhos com o olhar fulminante que estava lhe lançando. Eu era a desculpa de ele não querer sair com uma mulher, que ótimo. Foi exatamente isso que pedi depois desses cinco meses de convivência medíocre.
Ela colocou um papel no bolso de trás da calça dele e beijou o canto de sua boca, fazendo meu queixo cair mais ainda com a audácia.
— Me liga para que eu te apresente a cidade, te ensine a falar português ou o que você quiser — a garota falou.
Eu tive que reagir.
— Ele não precisa de outra professora de português — falei em português mesmo, depois me virei para ele e o peguei pelo antebraço assim como Fernando tinha feito com Marko. — Vamos embora — falei em inglês.
Todos eles me olharam, os garotos pareceram ficar tristes. pareceu perceber a tristeza deles em ter que ir embora porque seu semblante divertido pela cena que acabara de presenciar mudou. Salva pelos olhos pidões dos meus amigos, amém. A tal Abigail passou de volta pela cortina depois de me encarar com um sorriso de lado.
— Fiquei curioso para te ouvir — ele falou para Marko. — Quem sabe vocês não me levam para ver?
— Agora? — Fernando perguntou, surpreso.
— Claro. — olhou para mim, a fim de confirmar, e fiz que “sim” com a cabeça porque não tinha mais nada programado pelo resto do dia e queria muito sair dali para esquecer o que tinha acabado de fazer. — Se as crianças não tiverem que ir dormir cedo. Não quero problemas com os pais.
Os três riram. Eu me forcei a rir, saiu mais um ganido do que uma risada.
— Tem um lugar, mas é frequentado por outros... fãs — Tiago disse, cauteloso.
— Sem problemas — ele respondeu, tranquilizando-o. não tinha problema com fãs, como eu disse. Ele até que gostava de estar no meio de adolescentes e testosterona.
Eu tinha que levar as coisas para o hotel de qualquer forma, então combinei de encontrar com eles depois. Tiago anotou o endereço em uma folha do meu bloquinho, depois chamei um táxi e parti.

Capítulo 13 - Strutter

Era normal sair sem a minha companhia, ele sempre dava voltas pela cidade para conhecer e, sei lá, dar uma respirada. Mas me preocupava o fato de ele estar sendo levado por garotos na puberdade para um lugar cheio de garotos na puberdade. Dava para perceber o quanto aquilo era problemático?
Porém, não seria eu — com esse tamanho — que iria defender um homem de quase dois metros de um bando de fãs.
A segunda coisa que me preocupava, enquanto eu fechava a porta depois que um funcionário do hotel que me ajudou com as caixas sair, era a minha cabeça oca. Cara, eu tinha acabado de dar um ataque de ciúmes na frente da garota e dele. Mesmo repetindo para mim que não podia tratá-lo como propriedade, eu fui lá e fiz o quê? Falei que ele não precisava de outra professora de português. Nunca nem falei em português com ele direito! Sentia que essa Abigail não foi propriamente o motivo do meu ataque, ele já vinha se acumulando desde o dia anterior por causa da Natalia.
Eu era uma bomba-relógio. Era isto.
Só que... algo me dizia, desde a primeira vez, que eles não foram só amigos da infância até hoje, não quando ela investia tanto nele. Ela era linda e ele era lindo, em algum momento, os dois deviam ter pelo menos ficado. Tinha um sentimento ali, eu sabia, quase podia tocá-lo no ar perto deles e essa probabilidade me feria. O que aconteceu uma vez, poderia acontecer de novo e estar acontecendo naquele segundo bem debaixo do meu nariz.
Um nariz que estava onde não foi chamado.
Tomei banho, tentando relaxar, conforme a água quente deslizava pela minha pele. Nem assim a minha mente parou. Então, me apressei para sair e colocar uma roupa. As peças em questão não eram nada discretas, mas eram as únicas que não estavam amassadas. Na verdade, eu tinha duas escolhas: elas ou um vestido de jantar. Obviamente eu não iria com o vestido, tanto pelo local quanto pelo compromisso de amanhã — eu e tínhamos um jantar marcado com uns figurões de uma revista famosa.
Eu devia pensar melhor onde eu estava me metendo, a cada passo que eu dava até o lobby do hotel me convencia disso. Eu gostava do Tiago e Fernando também era um cara que admirei muito no futuro, mas eu estava ali a trabalho.
O taxista me levou até o endereço do papelzinho. Eu roí minhas unhas o caminho todo de tão nervosa, minha ansiedade estava a ponto de me fazer descer do táxi e querer ir correndo o trajeto. Percebi que o que estava causando-a era estar no meio de um bando de garotos casualmente. Nas sessões de autógrafos, era estarrecedora a quantidade de homens, mas eu havia me acostumado, porque não conhecia ninguém ali e nem corria o risco de vê-los mais. O problema mesmo era sair com todos eles sem estar trabalhando.
Eu não tinha muita confiança para isso.
Desci do táxi e estudei o lugar, era um lugar todo pintado de preto chamado The Cave. Aparentemente, em cima não tinha nada a não ser um cara controlando quem entrava, o lugar mesmo era subterrâneo. Havia uma pequena multidão ali na porta, mas não parecia que iriam entrar.
— Boa noite, moça — o “segurança” disse. Devia ter uns 19 anos e era mais ou menos do tamanho de .
— Boa noite. Eu estou com uns amigos, Tiago e Fernando.
Ele me estudou com olhos semicerrados. Quando pareceu se lembrar de algo, arqueou as sobrancelhas. Concluí que provavelmente ele pensou na possibilidade de estar com , sorri e balancei a cabeça. Ou isso, ou ele lembrou que eu era uma mulher e provavelmente elas tinham passe livre para se infiltrar naquele clube de garotos — o que faria total sentido.
Me aproximei do balcão e sussurrei:
— Sou a assistente dele. Muito prazer.
Ele ficou todo sem jeito, mas correspondeu ao meu aperto de mão.
— Eles estão lá embaixo, senhorita. Quer que eu lhe acompanhe?
— Não precisa, muito obrigada! — agradeci e segui para as escadas. Lembrava que esses ambientes subterrâneos eram bem famosos nos anos 80 e 90 até mesmo no Brasil. Eu, particularmente, achava bem claustrofóbico.
O lugar que ia se materializando conforme eu ia descendo se provava bem aconchegante, tinha um bar com várias pessoas em volta bebendo. Sofás diferentes um do outro eram espalhados pelo lugar todo, tinham tapetes persas um em cima do outro e a música vinha alta de um som praticamente do meu tamanho. Uma mesa de sinuca atraía a atenção de uns seis meninos perto do bar. No meio do lugar, quatro sofás estavam posicionados para formar um quadrado e uma mesinha de centro de madeira. Ali jazia uma pequena multidão e imaginei que iria encontrá-los naquele ponto específico. A luz não colaborava, eram poucos pontos de iluminação vermelha e a fumaça dos fumantes contribuía para atrapalhar mais ainda.
Aproximei-me deles e toquei o ombro de Fernando, ele se virou.
— Olá... — ele me viu e depois passeou os olhos pelo meu corpo, embasbacado, abriu o espaço batendo no ombro do garoto ao lado, fazendo todos eles saírem do caminho para me olhar e deixar o espaço livre até . Ótimo. Consegui chamar a mesma atenção do que se tivesse com uma melancia na minha cabeça. Todos estavam com os olhares fixos em mim. — ... — completou, meio chocado.
, ao perceber que eu chegara e era o centro das atenções, se levantou e passou o braço pelos meus ombros. Eu encarei seu braço como se estivesse em chamas. O que ele achava que estava fazendo para me tocar possessivamente daquela forma? Ainda mais no meio de um monte de garotos que podiam vir a ser possíveis pretendentes meus.
— Essa é minha assistente, o nome dela é — apresentou-me enquanto me conduzia para o sofá ao seu lado. Os garotos que estavam ali saíram. Eu havia extrapolado o limite de desconforto, os olhos deles pregados em mim me julgavam por estar tão grudada ao meu próprio chefe.
continuou com o braço por cima dos meus ombros e cruzou as pernas.
— Você está arrasando com os corações dos pobres garotos ele sussurrou no topo da minha cabeça. Sorri com embaraço, sentindo a cor voltar ao meu rosto com força total. Não vou dizer que minha confiança foi recuperada 100% porque ainda estávamos perto demais depois de ter sido apresentada como sua assistente, mas vamos dizer que uns 60% por causa do elogio.
— Então, , suas letras atuais são sobre cenários de livros de fantasia? — um deles perguntou, quebrando o gelo que se instaurou com minha chegada.
Percorri os olhos para ver se encontrava meus meninos, mas nem um deles estava mais na aglomeração à nossa volta.
— Ahm, não exatamente. Eu mesmo imagino os cenários quando vou escrever, tudo ali é fruto da minha imaginação com a caneta e o papel. Porém, digamos que é baseado em alguns livros, sim.
Vários deles concordaram com a cabeça, colocou um cigarro entre seus lábios e pescou um isqueiro do bolso da frente.
— Qual será o próximo disco? — perguntaram.
Ele anunciou o nome enquanto tragava.
Ao contrário de mais cedo, eu até que estava me sentindo mais confortável dentro do seu abraço. Não completamente, mas um pouquinho mais. Acho que seria um caminho a ser percorrido até eu começar a me sentir confortável, sem culpa ou qualquer coisa me atrapalhando.
— Vai ser parecido com o primeiro ou o último lançamento?
— Com o último lançamento, nós não pretendemos mais lançar novas músicas que se encaixem no estilo antigo da banda.
— Por quê?
explicou novamente o que ele explicava sempre que faziam essa pergunta, eu resolvi dizer um “já volto” para que só ele escutasse e fui procurar os meus amigos. Eles estavam perto do bar.
Cutuquei Fernando de novo, ele se virou.
— Valeu mesmo por chamar a atenção de todo mundo — ri, me enfiando na roda deles. Cumprimentei os outros com a cabeça.
— Foi mal, mas não sei se você percebeu, aqui não tem muitas mulheres e você ainda está vestida assim. Eu me assustei.
— Se assustou? Por quê? Por acaso, minha roupa está furada? — brinquei.
— Você está linda — Marko disse, sério.
— Obrigada — respondi, envergonhada.
Meus saltos eram bem altos, pretos e fechados na frente. Eu usava uma calça de vinil preta, minha blusa preta era um pouco folgada em cima e tinha um decote com um cadarço na frente que era muito revelador. Minhas argolas eram pratas e pesadas, minha boca estava pintada de vermelho sangue, passei um pouco de lápis de olho e blush.
— A gente vai jogar sinuca, você quer vir? — Tiago convidou, animado. — disse que vem.
— Claro — sorri de lado.
Fomos até a mesa de sinuca, Tiago foi resgatar das perguntas.
— Sabes como jogar, certo? — Fernando perguntou.
— Aham, pode ficar tranquilo.
A verdade é que eu era muito boa na sinuca, mas eles não precisavam saber ainda.
vinha atraindo seu montinho.
— Para o bem do entretenimento, e vão jogar um contra o outro — Tiago avisou para todos que assistiam. Eu tinha muito de me lembrar de esganá-lo quando saíssemos dali. Era nítido que ele estava fazendo isso por causa da nossa conversa de horas atrás. — Vocês se decidam sobre a próxima rodada depois.
Ele distribuiu os tacos para nós dois. tinha um sorrisinho no rosto que eu considerava bonitinho, mas nesse momento estava me irritando porque sabia que era pura presunção. Pois bem, faria questão de arrancá-lo com minha vitória.
— Vamos apostar algo — sugeriu.
Fiz cara feia. Isso era sério? Apostas nunca acabavam bem.
— Depois a gente conversa — respondi entredentes, pensando que podia fazê-lo desistir depois. Isso é, se ele ainda estivesse disposto a falar comigo depois. Não sabia se já estávamos em bons termos cem por cento.
— Se eu ganhar, você vai me conceder um desejo, se você ganhar, eu te concedo um — falou mesmo assim.
Bom, aquilo até que me interessava.
— Qualquer coisa? — perguntei, para me certificar.
— Claro — ele deu de ombros.
Eu não sabia o que pedir, mas sabia que tinha fortes chances de ganhar.
— Pode começar, — Fernando disse.
Nos dividimos para ver quem ficaria com quais. Uns trinta minutos depois, eu estava encaçapando a minha última bola. Ele descansou o taco em cima da mesa. O jogo tinha acabado e a vitória era minha.
O público masculino vibrava minimamente por eu ter acabado com um deus do metal na sinuca. Modéstia à parte, realmente o botei em seu devido lugar e consegui meu desejo de quebra.
— Mandou bem. — Ele veio em minha direção, apertou minha mão e me puxou para perto do seu rosto. — Depois a gente vê seu prêmio, sim? — falou baixinho no meu ouvido para não escutarem.
Me afastei e pisquei um olho para ele. O sorrisinho não tinha sumido, mas me agradava quando eu era a dona da vitória.
, você quer ir mais uma? — Fernando perguntou.
— Não, não. Vou deixar vocês o usarem um pouquinho — empurrei para ele e praticamente fugi.
Tiago estava na bagunça da sinuca, mas, saindo dali, vi que Marko estava sentado em um dos sofás, fumando. Sentei-me ao seu lado.
— E aí, garoto finlandês? — cumprimentei-o.
— E aí — ele respondeu, olhando rapidamente para mim.
Não gosta de sinuca?
— Nah. Mas você, pelo visto, gosta.
— É popular no meu país — comentei, me ajeitando no sofá.
— O frio é bem popular no meu país — ele riu e o acompanhei.
Ficamos em silêncio, mas ao nosso redor o barulho reinava.
— Você está na escola ainda? — perguntei qualquer coisa.
Ele riu pela minha pergunta inusitada para quebrar o silêncio.
— Não, terminei há dois anos. E você?
— Já faz uns bons anos — soei como uma idosa.
— Até parece — ele disse, me analisando.
— Tenho vinte e cinco — comentei, poupando-o de ficar pensando em qual era minha idade.
Ele assoviou, surpreso.
— Verdade, já fazem uns bons anos.
— Told ya — pisquei para ele.
Ele ficou calado por um instante, mas logo se desencostou e virou para mim, abraçando o joelho.
— Vocês estão juntos há quanto tempo? — perguntou, os olhos azuis bem abertos.
— Eu e quem? ? — perguntei, me desencostando também. Chutei porque é claro que até Marko havia reparado. Ele assentiu. — Romanticamente, desde nunca. A gente não tem nada. Profissionalmente, desde maio.
Ele ergueu uma sobrancelha e um brilho passou por seus olhos. Mau sinal. Eu queria corrigir o que disse para uma maneira que parecesse que não estava disponível, mas não consegui. Ouso dizer que nem fiz muita força para tentar, não era um problema tão grande. Marko era bonitinho e, bem, eu estava solteira. Tinha de superar alguma hora, não?
— Entendi — ele respondeu, por fim.
O clima havia ficado tenso, ele estava bem absorto em pensamentos e eu fingi estar também por alguns segundos. tocou meu ombro e me arrancou da monotonia que estava sendo olhar para o tapete.
— Se divertindo? — ele perguntou para nós dois. Nós concordamos por força do hábito. Aquele silêncio não estava nada divertido. — Ótimo, porque quero ouvir o garoto finlandês tocar.
Assisti Marko tremer, levantar e correr para pegar sua guitarra que estava em um canto do bar. se sentou ao meu lado.
— O que houve? — perguntei, resolvendo ser sincera depois do que Marko perguntou.
— O quê? — ele perguntou, sem entender. Passou o braço de novo pelos meus ombros.
— Você. Todo grudento comigo, nem parece que dois dias atrás nem olhava na minha cara — resmunguei. Ele suspirou, parecendo não querer ter essa conversa ali, mas sustentei meu contato visual para provar que eu queria.
— Eu pensei melhor no que disse aquele dia e concluí que, no fim, tenho de respeitar sua decisão. Se você não me quer, só o que posso fazer é me esforçar para ser seu amigo. Afinal, nós precisamos ser amigos para poder continuar convivendo na mesma casa como dois adultos normais, não como duas pessoas que fingem se odiar.
Estremeci. Era difícil lembrar, nem que fosse minimamente, desses meses. Não fingi odiá-lo em momento algum. Na verdade, sempre me julguei a pessoa mais afetada e consequentemente a que mais sofreu. Naquele momento, percebi que também não queria falar sobre nós dois nesse porão escuro. Ou em qualquer lugar que tenha rota de fuga. Meu receio era de que ele fugisse, caso eu falasse algo fora do que esperava de novo e eu não suportaria.
— O problema é que esse seu novo tratamento está levando as pessoas a acharem que temos algo, já me perguntaram isso duas vezes — resolvi continuar com a linha do assunto que pretendia inicialmente.
— Mas a gente tem — ele deu de ombros, como se fosse verdade.
— Não, a gente não tem — adverti.
— Eles não precisam saber, estão se divertindo achando que nós somos um potencial casal e pisar em mim na sinuca só te deixou ainda mais legal. — Olhou nos meus olhos. — Vou parar se me disser que está incomodada.
E lá vamos nós nos afogar naquele par de olhos ...
— Está? — ele perguntou, sério.
— Não — respondi automaticamente. Incomodada eu? Imagina! Nunca nem passou pela minha cabeça reclamar de passar o dia fingindo ser namorada do , que, por um acaso, era meu chefe. Que ótima ideia! Contanto que esses lábios e essas roupas continuem no lugar, não vejo mais problema.
Ele abriu aquele sorriso metido de novo e se virou para a frente, quebrando nosso contato visual tão confortável.
— Por que está sorrindo? — resmunguei.
— Tenho a impressão de que você concordaria com qualquer coisa que eu dissesse enquanto olho nos seus olhos assim — comentou. Eu também tinha essa impressão, por isso fiz cara feia. — É fofo — adicionou.
Senti imediatamente minha cara ficando vermelha de uma vez só, feito um sopro. Cruzei os braços e olhei para o outro lado, totalmente sem graça e resposta. Marko chegou bem na hora. Meu salvador.
O finlandês se sentou na mesinha no centro dos sofás. Ajeitou a afinação da guitarra, o pedal, ligou no amplificador e quase todos os presentes vieram ver o que estava prestes a acontecer. Quando ele dedilhou a guitarra, o ambiente fechado tornou o barulho que ecoou indescritível. Tiago estendeu um microfone para ele, mostrando que iria ficar segurando durante a “performance” — era só uma amostra, visto que o baixista e o baterista não estavam presentes.
Ele deu início à música mais famosa da banda e me concentrei em admirá-lo, ignorando a proximidade de que parecia queimar ao meu lado. É claro que não durou muito, ele não me deixaria em paz tão fácil.
— Você está tão concentrada... Seria uma pena se eu te distraísse, não é? — sussurrou perto do meu ouvido, já me distraindo.
— Não se atreva — sussurrei entredentes. Ele não conhecia limites, era óbvio.
— E se eu me atrever? — provocou, todo cheio de gracinha. Ameaçou virar meu queixo em sua direção com aqueles dedinhos hábeis, mas segurei minha cabeça.
— Vai apanhar — resmunguei. — Agora presta atenção no garoto, porque ele está tocando para você.
Ele riu baixinho, mas cedeu.
Cerca de um minuto depois, Marko acabou a música e todos bateram palma. Eu era muito fã dele e ele era lindo, mas acabava de lembrar que ele ia se casar logo, logo, de acordo com a linha do tempo que eu conhecia. Então não era uma opção a se considerar mesmo. Uma voz distante se manifestou na minha cabeça: você nunca conseguiria, você ama outro. Calafrios percorreram meu corpo ao lembrar que estava ao meu lado enquanto considerava Marko como potencial candidato.
Balancei a cabeça para afastar esse pensamento.
— O que achou? — ele perguntou para com olhos esperançosos.
— Excelente, garoto finlandês. Está no caminho certo — respondeu com simpatia. Sabia que, no fundo, ele não achou grande coisa por divergir do seu gosto musical e trabalho. Agora que ele saiu do black metal e entrou no viking metal, ele meio que despreza o gênero inteiramente, inclusive seus primeiros álbuns que ele classifica como inaudíveis. Porém, é claro que ele não seria rude com um fã, ainda mais amigo meu.
Marko se virou para mim.
— Sabe minha opinião, já sou uma grande fã — sorri. Marko sorriu e se levantou para dar um abraço desajeitado em mim, ainda com a guitarra na mão e meio que atropelando com ela no processo.
— Obrigado, mesmo. Se não fosse por você, eu não teria essa oportunidade — ele disse com sinceridade para mim.
se mexeu desconfortavelmente no estofado.
— De nada, Marko. Você vai compor e lançar muita coisa boa ainda, aguarde e verá — falei. Soei um pouco enigmática, mas essas são as vantagens de saber o futuro.
Peguei em sua mão e sorri mais abertamente, passando confiança para ele que parecia ainda nervoso a ponto de vomitar. Só naquele momento me dei conta de que ele alternava entre olhar para mim e para o homem ao meu lado, que fuzilava ele e nossas mãos.
— Eu... Eu... Vou deixar a guitarra no lugar — disse o garoto, correndo para longe.
Encarei de cara feia.
— Está vendo? Você deixa as pessoas nervosas! — reclamei.
Ele olhou para mim.
— Eu? — respondeu com cinismo.
Dei um empurrão nele.
— Vi o jeito que você estava olhando para ele e para as nossas mãos! — cruzei os braços com indignação. — Argh, você é tão irritante e cínico.
Ele riu.
— Ei, eu só estava fingindo que temos algo. Você concordou — respondeu.
Olhei-o de rabo de olho. Não ia discutir com ele ali.
— Não concordei nada! Quando a gente chegar ao hotel, vamos conversar — respondi com cara de poucos amigos.
— ‘Tá bom. Então vamos logo porque estou cansado e aposto que você vai atrapalhar meu sono da beleza de novo amanhã — ele disse.
Concordei porque também me sentia cansada depois de poucas horas de sono e muito trabalho. Levantamo-nos para nos despedir. Eu só tive que dar tchau para Tiago, Fernando e Marko, já , ficou cercado por garotos durante uns 15 minutos.
— Qualquer coisa, esse é o número do meu pager. Anotei o do hotel, mas vamos embora depois de amanhã, então deixei o da produtora também — falei para Tiago enquanto lhe entregava um papel com as informações. — Vocês já têm celular por aqui?
— Já, mas custa uma fortuna! Quem sabe até 1992 não se torne mais acessível? — ele sorriu e me abraçou. — Você tem o meu número. Se cuide, garotinha, e pense sobre o que lhe falei — sussurrou.
Eu não pensaria, preferia esquecer. Beijei o rosto de Tiago e depois dei um tchauzinho para os outros dois que já tinham se despedido de mim. Depois disso, fui arrancar o homem do meio da rodinha de garotos animados demais. Pensei em meios de tirá-lo dali sem alarde, visto o que aprontei na loja de disco mais cedo.
Falando nisso, lembrei que podia puxá-lo pelo bolso de trás da calça jeans... bolso este que a mulher ruiva depositou o papel com o telefone.
Uma ideia maquiavélica passou diante dos meus olhos.
Eu não faria isso, faria?
Concordei comigo mesma em não o tratar como minha propriedade mais. Ok, , mas e se ele ficar com outra no quarto ao lado? Você não vai desejar voltar para esse momento e arrancar aquele papel do bolso dele?
É, eu provavelmente tinha razão. Iria ficar remoendo aquilo e pensando se ele estava com ela a cada segundo que passasse e, para o bem do meu sono, precisava dar um fim antes mesmo que começasse. Além disso, era só uma garota qualquer. Ele não iria dar falta. Enfiei minha mão em seu bolso discretamente enquanto aproximava o rosto de seu braço. Não foi difícil alcançar o papel, tirei-o de lá e botei no meu próprio bolso. Ele sorriu para mim e percebeu apenas que vim resgatá-lo pelo brilho ingênuo dos seus olhos.
Carreguei-o para fora e ele deu sinal para um táxi que passava na rua. Abriu a porta para mim e dessa vez se sentou ao meu lado, não do motorista. Aproveitei a oportunidade para ter a nossa conversinha logo.
— Então é isso, nós seremos amigos agora? — perguntei assim que o carro começou a andar, depois de dar o nome do hotel para o taxista.
pareceu meio desnorteado ao meu ouvir indo direto ao assunto.
— Sim — respondeu, passando a mão pelo cabelo. — Por mim, sim.
— Nada mais de espaço, certo? Você vai me tratar diferente desses últimos meses? — perguntei em um tom óbvio, mas de quem quer garantir tintim por tintim. Ele concordou, aparentando cansaço, mas ainda assim prestava total atenção em mim. — Sem beber para falar o que quer, falar sóbrio mesmo. — Virei para ele no banco. — E sem mais dias extraordinários — garanti que ele entendesse essa última parte.
— Tudo bem, baby — ele sorriu minimamente. — Vamos tentar de novo desse jeito.
Meu sorriso foi maior que o dele. Ele queria tentar de novo! Significava que não cansou e quis desistir de mim. Me senti radiante ao constatar isso e virei para frente de novo de modo que não percebesse. Eu fui um pé no saco, reconhecia, ainda mais para uma intrusa. Exigi demais dele e continuava exigindo, mas a partir do momento que ele resolveu colaborar, seria mais maleável. Um silêncio dominou o ambiente e ele se remexeu ao meu lado, afundando o banco. Fitei-o.
— Acho que perdi o papel que aquela garota colocou no meu bolso — explicou com o cenho franzido enquanto se contorcia para tentar alcançar o bolso.
Ops.
Enterrei a cabeça entre os ombros com culpa. Por que ele estava procurando o papel logo agora? Era para ele perceber só em seu quarto.
— Vai ver caiu — comentei só para não parecer mais culpada do que aparentava. Afinal, eu fui a única pessoa que tocou em seu bolso e ele poderia perceber isso.
Ele desistiu de tatear os bolsos a procura do papel. Já no bolso da minha calça, o papel pareceu queimar, me julgando.
— É, deve ter caído — falou e voltou a se sentar normalmente. — Em falar nessa garota, o que você falou aquela hora que ela veio se despedir?
Ops. De novo.
Pensa, . Pensa rápido.
— Ahm... nada. Só que precisávamos ir embora — menti. Sua cara de desconfiança foi quase automática. Ela consistia em uma sobrancelha levantada, um sorrisinho e o queixo pra baixo. Um adendo: era extremamente irritante.
— Duvido que tenha sido isso. Você me chamou para ir embora em inglês depois, então não faz lá muito sentido — comentou, ainda com aquela expressão chata. Maldito seja esse observador. — O que você disse, ?
— Estou lhe dizendo, não falei nada. Por que você está implicando por um motivo tão tolo? — perguntei, exasperada. Queria encerrar aquele assunto o mais rápido possível ou eu mesma sairia correndo do veículo em movimento.
— Ela praticamente te fuzilou com os olhos, então você falou algo importante sim e quero saber o que é — falou em tom ultrajado, como se eu tivesse o tirando de burro. Pegou meu queixo e me lançou aquele olhar que fazia meu coração errar batidas, minhas pernas virarem gelatina e o ar sumir dos meus pulmões. Logo o olhar que fazia todos meus pensamentos sumirem, só restando o que ele queria. Golpe muitíssimo baixo. — O que você disse, ?
Como eu falei: golpe muitíssimo baixo.
— Falei que você não precisava de outra professora de português — respondi no automático, como se estivesse hipnotizada pelos de seus olhos.
Ele riu baixinho e acariciou meu queixo.
— Você é bem sagaz para alguém do seu tamanho. Eu gosto disso — comentou, me despertando do meu transe. Cruzei os braços e olhei para frente.
— Não acredito que você vai usar isso contra mim agora — resmunguei feito uma criança. — Uma hora, não vai mais funcionar.
Bem que eu queria que fosse verdade. O silêncio se instaurou novamente conforme ele ia parando de rir, mas ainda fiquei com a garota na cabeça e acabei me lembrando do que queria questionar.
— Por que pediu para ela te chamar de ? — quebrei o silêncio. Ele estava tirando um cigarro do maço e me olhou com o cenho franzido. — Pensei que usasse só quando estivesse trabalhando — me apressei em acrescentar para que não ficasse soando como ciúmes depois que ele me arrancou aquela informação.
— Ela pareceu uma garota legal — deu de ombros, colocando um cigarro entre seus lábios. Abri a janela para que eu e o motorista do táxi não morrêssemos sufocados com a fumaça. O século 20 e a liberdade para fumar onde desse na telha...
Revirei os olhos para resposta dele.
— Você a achou gostosa, não é? — perguntei na lata, depois de ouvir o comentário de Fernando.
Ele tossiu a fumaça que havia puxado e me olhou com incredulidade.
— Seja sincero.
— É, eu achei — respondeu com cautela e depois tragou o cigarro. — Ela também não era minha fã, só estava lá porque me achou bonitinho quando o amigo mostrou minha foto. Então, não havia motivo para que me chamasse de .
Fiquei um pouco balançada ao ouvi-lo admitindo isso. Porém, mais ainda em imaginá-la falando que ele era bonitinho. Além de estar com ciúmes, acho desrespeitoso com o artista comparecer a um evento só porque o acha “bonitinho” e externar isso. Ele não parecia ligar muito, mas me incomodou. era puro talento e merecia ser reconhecido mesmo como o deus do metal, não como apenas um rostinho bonitinho. Não me arrependo, agora, de ter pegado o papel com o número daquela ridícula. Ela não merecia o meu .
Ok, vamos ignorar essa última frase porque ela foi totalmente problemática.
O táxi parou em frente ao hotel e nós descemos depois de pagar. Ele caminhou ao meu lado fumando seu cigarro e depositou o resto no cinzeiro do elevador. O quarto dele era uma porta antes da minha, então parei de frente para ela.
— Boa noite, até amanhã — falei enquanto ele abria a porta e me virei para abrir a minha.
— Não, não. — Ele me puxou e fechou a porta que tinha acabado de abrir. — Se despeça direito do seu amiguinho.
Eu o fitei, achando graça.
— E como seria essa sua despedida?
Ele apontou para própria bochecha, assim como meu pai fazia quando eu era mais nova e chegava em casa depois de dias de gravações externas fora de São Paulo. Poderia ter soado nostálgico, mas continuei achando graça da coincidência.
‘Tá, queria que eu beijasse sua bochecha. Logo , a pessoa que eu não conseguia resistir muito bem. Temi que esse simples gesto pudesse me fazer perder o controle de novo e acabar beijando seus lábios tão convidativos. Ele mudou seu peso de perna, demonstrando impaciência. Eu seria mais maleável, não é? Podia fazer aquilo. Fiquei nas pontas dos pés e ele abaixou alguns centímetros para que eu alcançasse seu rosto. Meus lábios coçaram para beijar o sorriso dele, mas com um autocontrole que nem sei de onde veio, eles estalaram em sua bochecha. Quando fiz que ia me afastar, ele me segurou pelos cotovelos e fitou meus olhos.
— Será mesmo que tudo que eu disser assim você obedecerá? — ele perguntou com divertimento. — , não acorde às seis da manhã e descanse um pouco, eu ordeno — brincou com uma voz grossa e misteriosa forçada.
Explodi em gargalhadas logo em seguida, ele me acompanhou.
— Você é inacreditável — falei, me desvencilhando do seu toque. — Vá dormir que amanhã baterei na porta no nosso horário habitual. Boa noite.
— Vou dormir na banheira, então. De lá, não te escuto — ele riu e beijou minha testa. Veja só, estávamos evoluindo a passos de lebre, já estabelecemos um novo relacionamento e uma despedida. Tinha sido um longo de dia de avanços.
— Muito engraçadinho. — Me virei para abrir a porta de novo. Dessa vez, ele deixou. — Boa noite, .
— Boa noite, — ele disse antes que eu fechasse a porta atrás de mim.
Meu primeiro ato dentro do quarto foi rasgar aquele maldito papel. Que essa Abigail vá para o inferno.

Capítulo 14 - Room Service

— Bom dia, flor do dia — falei assim que ele abriu a porta e me deu espaço para passar.
— Só se for para você. — Ele encostou a porta e caminhou a passos lentos até a cama, se jogando de volta.
— Na-na-na-não. Vamos levantar que temos uma reunião às sete horas aqui no hotel.
— Finja que sou eu — resmungou com a cara no travesseiro.
— Ah, claro, porque somos idênticos mesmo — ri. — Meu nome é e eu como bebês.
Ele levantou a cabeça o suficiente para que eu visse sua cara de bravo.
— ‘Tá vendo? Minha imitação é péssima, agora se levanta e vá se arrumar.
Ele grunhiu, mas se levantou e parou de frente para mim. Pude ter um vislumbre de sua cara amassada, seu cabelo embaraçado, seus olhos com bolsas embaixo e o sol que estava nascendo iluminava algum pontinho aqui ou ali de barba que ameaçava nascer. Minha análise acabou ali, sem descer para o seu corpo para não me maltratar. Sua expressão deixava claro que estava bravo, mas eu só pensava em como era sortuda por ter a chance de vê-lo assim quase todas as manhãs. Principalmente hoje e ontem, que pude admirá-lo por estarmos nos falando.
— Nem amanheceu direito e você já está me irritando? — resmungou, provavelmente notando que eu não ia emitir nenhum som por estar presa em meus devaneios apaixonados secretos. Não tão secretos assim, porque, como eu disse antes, sou bastante expressiva. Ao contrário dele, que geralmente não demonstrava muitas emoções, mas se comunicava através dos olhos.
Dei língua para ele e me sentei na poltrona do dia anterior para esperá-lo se arrumar. Ele revirou os olhos e foi para o banheiro, batendo a porta. Era tão fácil irritar ... Eu fazia quase com maestria. Já o conheço suficientemente bem para saber onde provocar.
Se parássemos para pensar, eu e ele não convivemos tanto assim desde que cheguei, passamos mais tempo sem nos falar direito do que nos falando realmente. Querendo ou não, depois de vê-lo com aquela expressão de cachorrinho chutado, eu achava que estava cada vez mais aprimorando minha habilidade em lê-lo. Isso era bom, significava que, aos poucos, ele estava me deixando entrar em sua vida e tornando minha presença mais normal. Todo mundo — Lilly, Börje, Karin, Andreas e até mesmo Charlotte — já me tratava como se eu estivesse ali desde sempre, mas sentia falta de ver isso em . Acho que, por morarmos juntos e ficar tão evidente nossas diferenças, ele estava demorando mais para me acolher totalmente, apesar de fazer isso inconscientemente.
Já que ele concordou em mudar nossa tática, unido ao fato de que me mudaria em breve, talvez tivéssemos uma chance de finalmente conhecer melhor um ao outro. Eu estava me coçando para conhecê-lo. morreu sendo um mistério para nós, fãs. Ele era tipo a Miley e a Hannah Montana, vivia uma vida dupla. Existia o e existia o .
Sorri com a comparação dele com a Hannah Montana. Um dos deuses do metal com uma personagem da Disney. O que poderia fazer? Cultura pop fazia parte de uma garota do século 21. Organizei algumas pendências da agenda e estudei seus compromissos mais de uma vez. Naquele dia teríamos uma reunião para saber como iríamos organizar o press kit do próximo álbum e, para minha grande sorte, Charlotte ligou mais cedo para me avisar que seria com a empresa de Natalia. Börje e Natalia conversaram e assumiram que seria melhor para a banda se trabalhássemos com a empresa de marketing. Nem precisava dizer como estava desanimada.
saiu do banheiro no meio de fumaça, seu cabelo penteado para trás e segurando simplesmente uma toalha enrolada no quadril. Meu queixo deve ter batido na agenda que estava no meu colo quando o vi daquele jeito, um verdadeiro pedaço de mau caminho.
— Esqueci minha roupa — comentou, andando até sua mala.
— Hm... Que conveniente, não é mesmo? — resmunguei com sarcasmo, desviando o olhar para não correr o risco de fazer aquela toalha cair com a força do meu pensamento.
— Você que invadiu meu quarto — retrucou.
— Invadi sua casa também, mas você não aprontou isso — falei, tentando ao máximo não olhar em sua direção.
— Você é que nunca parou para perceber — riu. — Eu vivo andando de toalha pela casa porque algumas roupas estão no guarda-roupa do quarto que você está usando.
Eu rolei os olhos enquanto meu rosto estava virado para o outro lado. Ele estava reclamando da minha presença em seu quarto ou era impressão minha?
— Você não está com medo de que essa toalha caia, está? — ele riu de novo e chegou perto demais para alguém que estava molhado e seminu. — Bem, não é nada que você não tenha visto antes, baby.
— Por isso mesmo, sei o que tenho a temer — confessei. Obviamente era para soar que nem uma piada, mas o que saiu foi puro desespero.
Dessa vez, ele soltou uma gargalhada. Passou de volta para o banheiro. Eu estava tampando minha cara com minha mão inteira, não para não o ver, mas para ele não ver a minha vergonha depois daquela confissão.
Eu era louca? Onde que eu estava com a cabeça para falar uma coisa dessas? Aparentemente muito presa no conteúdo que a toalha escondia porque não era possível. Não aguentava aquele meu jeito todo destrambelhado perto dele, parecia que sempre estava procurando vergonhas para passar, eu não perdoava uma.
Naqueles meses, passei por cada coisa e o pior é que a gente nem podia rir juntos. Uma vez, eu fui limpar a prateleira em cima da cabeça dele enquanto ele trabalhava na mesa da sala, eu não quis arrastar a escada de novo para não o atrapalhar, me estiquei um pouco mais e caí de lado no colo dele. Não sei quem levou mais susto, eu, ele ou Solveig que reagiu ao nosso susto. Murmurei só “desculpa” e saí correndo, mas na cozinha fiquei sem ar de tanto rir silenciosamente. Outra vez, ele entrou na cozinha de madrugada enquanto eu bebia água meio dormindo e meio acordada. Ele passou por mim sem que eu percebesse sua presença antes, gritei e cuspi a água toda no chão. E, por último das nossas peripécias nesse último mês, Solveig roubou uma caixa de leite e derramou pela casa inteira enquanto saía correndo comigo atrás dele. Eu dei um grito ao ver a bagunça e, alguns segundos depois, saí deslizando pela sala inteira até a porta do escritório. Só parei porque ele saiu para ver o motivo do meu grito e caiu em cima de mim. Ele tentou se levantar várias vezes, mas a sua meia estava encharcada como todo o resto de nós e ele caiu mais três vezes enquanto eu chorava de tanto rir. O vi prender o riso, mas sem dizer uma palavra para mim, além de praguejar. Tinha certeza de que ele se lembrava desses momentos.
Alguns minutos depois, ele saiu do banheiro e me levantei para descermos.
Ao pisar no restaurante de café da manhã do hotel, a pessoa que conseguia ser mais bem-humorada que eu naquela manhã específica, se levantou ao nos ver. Ou melhor: ao ver . Porque, se fosse só comigo, tinha certeza de que ela não se daria o trabalho nem de olhar na minha direção.
! — ela o chamou ao vê-lo enquanto eu, teatralmente, revirei meus olhos tão profundamente que cheguei a ver meu cérebro. Os dois se abraçaram, beijou as bochechas dela e todo esse lenga-lenga dos dois.
Odiava me sentir no meio de um romance de banca. Ainda mais quando o homem em questão era o meu, mas a mocinha em questão não era eu.
Cumprimentei Brian, que assistia àquela cena como eu, com um aperto de mão. Apressei em me sentar na cadeira para não desmaiar com tanto açúcar no sangue que foi ver os dois juntos. Eu não tinha a menor chance contra aquilo dali, digo e repito. Ei, mas espera aí, você não queria ter a menor chance para não correr o risco de estragar tudo? A voz da razão na minha cabeça estava certa, mas eu queria não querer. Quem sabe, de tanto desejar algo, não viesse a se tornar realidade.
— Oi, — ela me disse, seca, depois de voltar ao normal. Seu tom ainda era de: você ainda está aqui?
— Bom dia, Natalia. Como vai? — falei, tentando dar um sorrisinho e mostrar simpatia, ao contrário dela. Dava para imaginar o resultado, provavelmente uma careta horrenda.
— Estou muito bem, e vocês?
— Estamos ótimos — respondi, olhando para , que piscou. Pelo visto, ele estava utilizando todo o charme para cima de mim. Tinha até medo.
Natalia percebeu o gesto dele e desmanchou um pouco o sorriso.
— Que bom, porque temos muito o que resolver — ela disse, se sentando ao lado de Brian, já que escolheu a cadeira ao meu lado. Não que eu estivesse admitindo que essa era uma competição, mas ponto para mim.
Ela foi falando, falando e falando sem parar por uns quarenta minutos. Eu nem sabia que uma pessoa conseguia falar tanto. Como se tratava de uma reunião, escolhemos itens do cardápio e não do bufê. tomou café, depois café com leite e comeu pão com presunto e queijo. Eu comia cuscuz — o que era uma bênção ter na Europa e me lembrava do gostinho de casa — e bebia mais café para aguentar o falatório. Brian comia torradas com geleias. Duvido que se não tivéssemos servidos aguentaríamos dez minutos daquele falatório, ainda mais porque ela tinha uma voz fininha. Porém, aquela voz fina explicava pontos importantes, como toda a estratégia de promoção tanto das próximas viagens que iríamos fazer nesse mês e depois do lançamento do próximo disco.
Burocracias que sobrariam para mim, claro. Ela propunha uma cópia antecipada para distribuir por diversos países antes do lançamento do próximo disco, eu teria que providenciar e mandar para ela assim que a mixagem ficasse pronta. Demoraria um pouco, visto que ele ainda nem entrara em estúdio. Charlotte me contou que Natalia era consultora de marketing e estava sendo contratada pela produtora para dar um boost na venda dos discos, junto com Brian que era seu assistente. Por isso, teríamos que trabalhar juntas.
— Tudo bem — me limitei a responder, dando fim ao seu monólogo. Não tinha muito o que dizer, afinal. Estava ali só para receber ordens como Brian, que também era assistente.
— Amanhã retorno à Suécia, vocês vão encontrar com Börje antes de pegar o avião? — ela perguntou para mim.
— Não sei, ele não tem dado notícias — respondi, notando que fazia um tempo que não falava com meu chefe, só com Charlotte. Pelo que eu entendi, era para nós dois continuarmos a tour sozinhos e ele veria a questão dos discos lá da Suécia, mas não tinha certeza. Nem parecia ter, visto que não falou nada. — Era para ele ter me ligado, deve ter acontecido algo de urgente.
— Você pode ligar e ver essa questão? Preciso me encontrar com ele, nem que seja em Estocolmo.
Anuí.
— Vamos indo, então? Temos um compromisso agora — Brian anunciou.
Natalia concordou, levantando-se. se despediu dela com os beijos nas duas bochechas, eu apenas a cumprimentei com um manear de cabeça de longe. Nosso relacionamento não era bom o suficiente para mais. Já Brian me abraçou meio de lado. Tinha que concordar que ela soou até que simpática e profissional, sem me dar brecha para reclamar de seu comportamento. Além da demonstração de afeto excessivo dos dois, o que definitivamente não era da minha conta, aquela reunião não teve nada extravagante. Acho que eu e ela poderíamos nos acostumar a trabalhar juntas, afinal.
— Temos que sair daqui já, já — informei a , que estava comendo ainda.
— Dá tempo de terminar de comer? — ele perguntou com a boca cheia, me fazendo sorrir.
Respondi positivamente e pedi licença para ligar logo para o Börje.
Usei o telefone no lobby do hotel e liguei diretamente na produtora.
— Börje, é a — falei, assim que ouvi sua voz atrás da linha.
Oi, ! Eu pedi hoje cedo para a Charlotte te ligar.
— É, ela vem me ligando. Aconteceu alguma coisa contigo? Faz tempo que não nos falamos. A Natalia me pediu para te ligar e perguntar se você viria, ela quer te encontrar.
Sim, tive alguns problemas aqui na produtora com a produção dos discos e não vou poder voltar ou sequer ir para os outros destinos com vocês. Problemas muito sérios que estão me dando uma dor de cabeça daquelas, mas vou resolver e não deixar que atinja vocês — ele suspirou. — O que a Natalia quer comigo?
— Não sei, ela disse que queria te encontrar nem que fosse na Suécia. Talvez você pudesse ligar para ela e combinar.
Vou cuidar disso. Você consegue dar conta de tudo nas viagens?
— Creio que sim.
Inclusive do ? — brincou.
— Vou ficar te devendo essa resposta — ri.
Ele também riu do outro lado da linha. Notei como a risada deles ficava tão parecida através da ligação. Era meio impressionante não terem notado as inúmeras semelhanças entre os dois, eu não levaria nem um dia inteiro para concluir isso, caso não soubesse antes.
Qualquer coisa, me ligue. Eu mando alguém ir atrás de vocês.
— Tudo bem. Tchau, Börje.
Tchau, .
Coloquei o telefone de volta no gancho e apoiei a testa em cima dele. Seria difícil e cansativo organizar tudo só nós dois pelo que observei de ontem. Börje não fazia muito, ele me deixava mais livre para controlar a agenda do seu filho, porém o pouco que ele fazia me ajudava e sua presença me mantinham tranquila. Eu e teríamos que dar conta. Nossa sorte é que seriam viagens breves para destinos dentro da Europa.
Ao encontrar com ele, expliquei tudo. Ele foi bastante compreensivo. Levantamo-nos e fomos para o nosso encontro com os fãs em um auditório que reservei só para aquilo. Ao contrário da loja de discos, não teriam autógrafos, seria mais uma conversa e tínhamos a presença de várias fanzines que consegui reunir. A tarde discorreu tranquila, nós almoçamos depois de terminar de arrumar tudo. As pessoas começaram a entrar às 14 horas, nós finalizamos três horas depois — o que foi suficiente para fazer muitos rostos sorrirem. Ainda bem, significa que posso ter minha sensação de trabalho cumprido. Às 20 horas, nós tínhamos o jantar com as pessoas influentes da revista.
Nós iríamos negociar um ensaio fotográfico para , como modelo, para uma revista grande de metal. Dá para acreditar? Fiquei surpresa por ele ter concordado. Nós não estávamos nos falando e fiquei com medo de ter que discursar para ele concordar, afinal era muito dinheiro em jogo, mas Börje o convenceu antes que eu precisasse intervir. Eu fiquei tão feliz que comprei um vestido que me fez gastar boa parte do meu salário para a ocasião. Não podia ser qualquer coisa, definitivamente.
Enquanto eu passava maquiagem no meu rosto, pensei em como seriam aquelas fotos. Com certeza, eu filmaria com a minha câmera para guardar de recordação. Conseguia até imaginá-lo com vento no cabelo, usando apenas calça e aquelas caras de modelo. Meu Deus, subiu até um arrepio. Essas fotos seriam perfeitas, a beleza de merecia ser eternizada daquela maneira. Lembro-me que ele fez um ensaio nos anos 80, aquela época que ele era bem exótico, usava colares de ossos e calça de couro sintético bem coladas que mostravam mais pele do que cobria. Eu já o amava assim, quem dirá como agora.
Minha maquiagem estava bem pesada, de acordo com a ocasião. Penteei meu cabelo com cuidado e passei gel em só um dos lados e desfiei o outro — era a moda da época. Coloquei brincos e colares dourados. Fui atrás do meu vestido pendurado no guarda-roupa do hotel. Ele era vinho e rente ao corpo com um tecido leve próximo da seda — o que o fazia não ser tão colado assim —, tinha também uma abertura que revelava parte da perna esquerda. Vesti-o e calcei os sapatos de mesma cor. Eu me sentia linda. Uma garota típica do século 20.
Ouvi batidas na porta e fui abrir. Me surpreendi assim que revelou a figura que me esperava. estava com camisa, calça e sapato sociais. Sua mão segurava um blazer.
Ele arqueou as sobrancelhas enquanto passava os olhos por mim.
— O que achou? — perguntei, girando para ele poder me ver por completo. Ele nunca me viu tão arrumada antes, a ponto de vestir um vestido chique. Acho que isso justifica sua surpresa.
— Uau. Pensei que você estava bonita ontem, mas, porra, hoje você se superou — ele disse, a sinceridade presente em sua voz e cada palavra enquanto ainda me observava. — Está deslumbrante, baby.
Sorri, era tão boa essa sensação de me sentir bonita. Eu queria muito morar neste momento, nesta sensação e neste olhar que ele me lançava.
— Pronta? — perguntou, agora olhando para o meu rosto.
— Só vou pegar minha bolsa — corri até a cama onde deixei minha bolsa-carteira. Fechei a porta do quarto e ele me ofereceu o braço.
Olhei-o, questionando o gesto.
— Estamos vestidos a rigor para este gesto — explicou, lendo minha mente. Coloquei meu braço dentro do seu. Esqueci de mencionar que seu cabelo estava preso num rabo de cavalo baixo, deixando-o parecendo um príncipe. Deixei-o me guiar pelo corredor como se eu fosse a sua princesa.
Vinte minutos depois, entramos em um restaurante extremamente chique. Acho que eu nunca tinha entrado em um que fosse metade do que era aquele dali. Dei meu nome, o maître me indicou a mesa redonda que estava ocupada por dois homens e uma mulher. apertou a mão dos homens que levantaram para nos cumprimentar. A mulher foi bem simpática e parecia mais humana do que os outros. Eles pareciam aquelas pessoas que viviam trabalhando, sem tempo para a família ou até mesmo para ter um gato.
Foi um jantar bem produtivo, conseguimos combinar algumas fotos para ele durante nossa ida à Alemanha em um estúdio, as outras ficariam para serem tiradas na Suécia, em paisagens típicas suecas. Ele parecia bem feliz com o resultado, assim como eu estava. Feliz, na verdade, era pouco para me descrever. Aquilo o traria um reconhecimento gritante. Era uma revista que fez o mesmo com pessoas tipo Ozzy Osbourne, Tom Araya e Cronos. Nomes grandes do cenário do metal.
Enquanto subíamos para nossos quartos já no elevador do hotel, eu prendia o ar e olhava para cima. Não sei o motivo, mas eu me sentia de volta à noite que enlouqueci e o beijei. Ou talvez tenha sido uma reação normal às nossas roupas elegantes e como ele ficava uma delícia formal assim. Céus, que calor. Comecei a me abanar. Só por isso o elevador subia mais devagar que o usual.
Ele tocou meu braço e eu pulei de susto ao sentir seu toque.
— Está tudo bem? — ele perguntou, preocupado.
Eu estava ofegante e tentando olhar para todos os lugares possíveis menos para ele. Não foi fácil, o elevador era um cubículo.
— Sim — respondi sem ar.
Fora essa tensão sexual que estou reprimindo, sim. Eu o queria muito, queria atacá-lo de novo como na nossa primeira vez.
Acho que tenho um certo problema com elevadores.
As portas finalmente se abriram, nos libertando da tortura.
— O que você achou da reunião? — ele perguntou enquanto saía em direção ao corredor do nosso andar.
Respirei melhor aquele cheiro de carpete recém limpo, o alívio me consumiu. Eu tinha superado a etapa elevador, estava tudo sob controle de novo.
— Foi incrível, mas a comida era terrível. Estou morrendo de fome — respondi, me permitindo rir depois de ter sobrevivido com sucesso à tentação.
Ele também riu.
— Eu ia falar isso agora, veio pouca comida. Acho que preciso jantar de novo. — Ele colocou a chave na porta do quarto e destrancou. — Que tal nos darmos o luxo de pedir serviço de quarto?
— Para nós dois? — arregalei os olhos, pensando em nós dois comendo juntos trancados dentro de um quarto.
— Ahm... Sim? — ele disse como se fosse óbvio, e era.
Ai, meu Deus. Ele estava me chamando para jantar em seu quarto! Não sabia o motivo de estar fazendo tanto alarde se morava com ele e ficávamos sozinhos sempre. Também não sei por que estava lembrando daquele maldito dia como se estivesse se repetindo. O vestido começou a me pinicar de repente, querendo sair. Lembrei-me automaticamente de uma música da Taylor Swift que me fez querer rir pela coincidência, “only bought this dress so you could take it off”.
Sorri com o pensamento. Toda aquela bagagem de cultura pop do meu tempo parecia tão inalcançável agora... Espera, o que pensaria sobre a música da Taylor Swift?
Droga, eu estava presa em meus devaneios loucos mais uma vez.
Ele me fitava, esperando por alguma resposta. Eu não podia negá-lo, não sendo mais maleável do jeito que me propus ser.
— Claro. — Passei por ele, me sentindo passar pela porta em chamas do inferno e assinando minha sentença.
Quanto drama, .
Um calor me assolou. Sentei-me na cama, tirei meus sapatos que estavam começando a incomodar como o vestido. Só que, ao contrário da peça, era seguro tirá-los e era até um ato que mostrava que estava confortável com ele. Ele também tirou os deles e jogou o paletó em cima da bancada. Comecei a tremer quando seus dedos começaram a abrir os primeiros botões da camisa. Felizmente, ele parou só nos dois primeiros.
— Definitivamente, não nasci para usar esse tipo de roupa — resmungou.
Ele se sentou onde me sentei mais cedo.
— É engraçado a gente junto à noite em um quarto de hotel, parece até aqu...
— Vamos assistir um pouco de televisão — interrompi-o antes que ele falasse o que eu achava que ele ia falar. Agarrei o controle e liguei em qualquer coisa. Meu coração parecia que quebraria minhas costelas pelo nervosismo.
Ele soltou uma risadinha.
— Sabe, , você não pode ter vergonha do nosso passado. Nós somos amigos agora, podemos falar sobre isso casualmente.
— Preciso de um tempo para falar normalmente com você sobre esse assunto em específico — respondi, ríspida. Não desgrudei o olho da TV. Eu falava sobre esse assunto, no entanto, com Lilly, sem problemas. Claro, sempre a poupando dos detalhes sórdidos, porque ela era a irmãzinha dele.
— Tudo bem. Mas você tem que admitir que a gente manda muito bem nesse quesito — provocou com um sorriso de lado.
— No quesito profissional? Concordo plenamente — desviei, sabendo muito bem qual era o quesito.
— Também. Nós somos extremamente profissionais no trabalho e podemos ser na nossa amizade também, por isso acho que não atrapalharia nosso relacionamento tentar uma amizade colorida — brincou.
Veja bem, ele utilizou o exato termo amizade colorida. E eu feito um cordeirinho achando que ele tinha deixado para lá. Respeitado os limites. Só pude concluir que ele tinha passado era de todos os limites.
Uma onda de raiva que subiu por onde o calor já me consumia invadiu cada célula do meu ser e nem pensei antes de jogar o controle remoto nele. Só vi quando atingiu a testa dele, ele fechou os olhos, depois colocou a mão e reclamou de dor.
Eu mirei em seu peito e atingi sua testa! Sou uma negação na mira, com toda a certeza do mundo. Levantei-me de uma vez e corri até ele, abaixei para olhar o estrago. Ele me observou bem de perto, mas nem dei muita fé para os olhos que tanto me assombravam, porque havia um vermelho enorme e um galo começando a se formar em sua testa.
— Ai, droga! — soltei um grito esganiçado. Fiz merda. Prendi-o em um abraço, apoiando sua cabeça em meu peito para tentar aliviar sua dor. — Desculpa. Eu não sei o motivo pelo qual fiz isso, você me provocou, mas você tem feito isso e eu não reagi assim. Acho que fiquei...
Ele colocou o braço em volta da minha cintura e com a voz abafada por estar com a cara enterrada no meu vestido, ele disse:
— Cara... como senti falta de te ter tão perto.
Afastei sua cabeça para olhá-lo e somente naquele momento percebi o quanto estávamos próximos.
— O quê? — perguntei, sem saber o que dizer.
— Eu senti sua falta nesses meses, ok? Quero que saiba que, para mim, também foi horrível viver sob o mesmo teto que você e não falar, não olhar no seu rosto, não poder brincar assim contigo. Porém, o que me doeu mesmo foi não poder te tocar depois de conhecer o jeito que seu corpo reage a mim. Isso sim beirou o insuportável. Por isso, precisei desse tempo para conseguir te olhar sem querer desesperadamente te ter em meus braços.
Minha pele se arrepiou, minha cabeça esvaziou por completo, jogando todos os pensamentos em um looping eterno no meio da escuridão. Eu só conseguia encará-lo por alguns segundos ou minutos, até que retomei minimamente minhas faculdades mentais e respondi:
— Por que está dizendo isso agora?
— Porque me sinto finalmente em paz e pronto para te dizer isso — admitiu. — E porque você me disse para dizer as coisas sóbrio. Geralmente eu teria que beber uma boa quantidade de vodca sueca para admitir isso.
Meus braços o abraçaram de novo. Talvez não coubesse nenhuma resposta no momento, só aquele gesto. Esperava que ele soubesse que apreciava o seu gesto, mesmo incapaz de articular as palavras para externar aquilo de novo. Ele foi tão fofo me dizendo aquilo e eu uma monstra que jogou um controle remoto em sua testa por causa de uma brincadeira. Não o merecia.
Nós dois sofremos tanto nesses meses, eu achei que nunca conseguiríamos evoluir no nosso relacionamento em frangalhos. Porém, aqui estávamos, recomeçando com uma amizade que foi abalada antes mesmo de nascer pela minha ideia de que poderíamos dar algumas escapadas.
Eu o amava, tê-lo próximo de mim de novo era como, de repente, descobrir que ganhei na loteria.
— Diz alguma coisa — ele disse, ainda abafado.
Afastei-o mais uma vez para olhá-lo. Eu não podia revelar meus sentimentos e correr o risco de falar demais para acabar com tudo. Na última vez, eu o afastei por meses por julgar que estava falando a coisa certa.
— Vamos pedir a comida e um balde de gelo para colocar nessa testa — falei, por fim.
Ele sorriu com os olhos brilhando e eu automaticamente também sorri. Eu não tinha resposta de novo e precisei desviar, mesmo assim, ele ainda sorria para mim.
— Gosto de quando cuida de mim e me abraça assim — ele disse e o brilho nos olhos se transformaram em malícia.
— Depois de jogar um controle remoto na sua testa? — rebati, indo pegar o telefone para ligar para a recepção. Escutei sua risada nas minhas costas.
Assistimos outro filme do Al Pacino no mesmo canal que estava passando O Poderoso Chefão no dia anterior enquanto comíamos hambúrguer e batata frita do serviço de quarto. O galo em seu rosto crescia silenciosamente enquanto eu observava pelo canto de olho. Tentei comer o mais rápido possível e apressá-lo para cuidar do machucado. Ele finalmente largou o prato e deitou as costas na cama. Posicionei a bolsa de gelo em sua testa no vermelho arroxeado e fiquei ali sentada no colchão, segurando. Eu me sentia em débito com ele por ter causado o ferimento e tudo que ele passou nesses meses para conseguir me falar o que falou hoje, por isso fiquei imóvel apoiando a bolsa.
Ele se levantou e deitou a cabeça em minhas pernas, puxando minha mão de volta para colocar o gelo. Reprimi um sorriso com a atitude; achava que ele tinha tirado o dia para me matar de todas as formas — daquela vez era de amor.
Tinha vontade de passar a mão pelo contorno do rosto dele ou por aquele cabelo que eu conhecia perfeitamente o cheiro e a maciez. Consigo até me imaginar soltando o cabelo dele do elástico, os fios brilhosos caindo prontos para minhas mãos. Entretanto, eu não conseguia. Ainda não. Como eu disse, seria um caminho a ser percorrido até recuperar um pouco da liberdade que tive um dia.
Era dolorido para mim também conhecer o formato de todos os detalhes dele na palma da mão e não poder relembrá-los através do toque. Pior ainda era saber que tudo aquilo era por minha causa, eu que vim parar aqui, eu que tinha percebido que não podíamos ficar juntos antes e ainda passei aquele dia ignorando minhas responsabilidades. Eu era egoísta e confusa demais para deixá-lo viver com as pessoas de sua época e cumprir sua missão na terra. Tudo porque tinha isso, em mim, de intervir e mudar tudo.
Olhá-lo ali, com a cabeça no meu colo, me trazia angústia e felicidade. Um por causa do outro.
Esperei os vinte minutos indicados, tirei a bolsa de gelo.
— Acabou — anunciei, ele não mexeu um músculo. — ?
Procurei seus olhos, estavam fechados.
Ele tinha dormido em cima de mim.
Ok, eu tinha duas opções: acordá-lo de uma vez ou tentar ajeitá-lo, correndo o risco de ele acordar.
Não tinha a mínima coragem de acordá-lo, eu ficaria com vergonha por ele ter dormido no meu colo e, quando ficava assim, tinha uma forte tendência a fazer merda. Não era uma opção também porque já havia feito merda demais naquele dia jogando o controle em sua testa. Peguei, cuidadosamente, sua cabeça e coloquei o travesseiro que estava atrás de mim embaixo dela. Levantei-me e estudei o que poderia fazer para deixá-lo mais confortável, já que ele dormia atravessado na horizontal da cama com as pernas para fora. Segurei-o pelos ombros e, colocando toda a minha força para carregar uma parte daquele homem gigante, virei-o um pouco em direção à cabeceira — não foi totalmente, mas o suficiente para conseguir colocar suas pernas gigantes e pesadas em cima do colchão.
Meus braços estavam me matando, mas aparentemente tinha sido uma missão bem-sucedida até aquele momento. Abri mais dois botões de sua camisa para deixá-lo mais à vontade, só que acabei ficando extremamente desconfortável de ver sua pele em exibição, tão alcançável... ‘Tá, se controla. Peguei o travesseiro e afastei para se encaixar melhor, não havia mais o que ser feito. Seu rosto sereno descansava, o galo na testa parecia um crime no meio de tanta perfeição. Não consegui resistir e acariciei seu cabelo rapidamente, me deliciando momentaneamente com a sensação de tocar aqueles fios. Pensei em beijar sua testa antes de ir, mas aquilo também era demais. Eu não me sentia merecedora.
Por isso, andei até a porta e fui embora para o quarto ao lado.

***

Mais um desastre para a minha lista de histórias de desastres. Por que eu fazia as coisas sem pensar? Por quê?
Deviam ser as provocações dele que estavam despertando aquele meu lado impulsivo. Ainda diziam por aí que era tímido. Tímido (risos). Ele poderia ser tímido mais novo ou com algumas garotas desconhecidas, mas nós pulamos essa etapa e ele raramente demonstrava timidez comigo.
Tinha sido um dia legal de despedida daquele país. Nunca pensei que veria em roupas formais, então só isso valeu minha estadia. Nossa próxima parada era a Espanha.
Enquanto tirava a maquiagem, lembrei-me que esqueci de falar com Tiago que estávamos indo embora. Não sabia quando ligar para uma pessoa depois de encontrá-la. Ele também não tinha me ligado, então deixaria a ligação para dali a alguns dias... ou meses. Não tinha confiança o suficiente, acho que estaria sendo força-barra demais, nem o conhecia direito. Se eu pudesse, o levaria para a Suécia, para ficarmos mais amigos. Seria tão legal ter um amigo lá além da Lilly e, bom, do .
Na verdade, eu já considerava Lilly, e o resto dos como minha família mesmo. Às vezes eu saía da produtora em dias úteis para almoçar com Lilly, Karin e Andreas. Eles eram tão doces comigo, nem parecia que eu estava ali há pouco tempo. Börje e Karin me tratavam como filha — uma vez, eu estava ajudando-a com as louças e ela sussurrou perto de mim que seria maravilhoso se eu fosse parte da família oficialmente. Não sei se consegui controlar minha cara de espanto, mas preferi só a fitar e dar um sorrisinho. Lembro claramente como ela completou: “Você e o estão destinados um ao outro, só vocês que ainda não sabem o que fazer com isso”.
Toda vez que lembrava, subia um arrepio na espinha. O jeito que ela falou foi como se ela enxergasse nosso desejo, esse amor que me puxava para perto dele, a maldição que nos separava, tudo.
Naquele momento, preferi deixar o tópico e para outra hora. Precisava tomar como prioridade a minha missão e depois não sabia... Voltar à minha realidade? Eu tinha de voltar para casa, afinal. Sentia falta dos meus pais, da minha vó, de Shandi, Raj, Lemmy e até um pouquinho de Anya. Tudo dependeria se corresse como tinha que correr e ele estaria a salvo, uma vez que eu intervisse para poupá-lo da morte precoce. Talvez ficássemos juntos em 2019? Se ele não se lembrasse de mim, será que eu teria uma chance? Não sei, acho que não sou muito o tipo dele, ainda mais tão nova, ele estaria no auge dos seus 50 e poucos anos e andar com uma garota tão nova poderia ficar feio para a imagem dele. Na verdade, se eu não tivesse forçado a entrada na sua vida da maneira que fiz, tinha a impressão de que ele não me olharia da mesma forma que olhava.
Infelizmente, não tinha respostas para o futuro, uma vez que parecia estar o mudando constantemente aqui.
Vinha pensando muito ultimamente sobre minha missão. Não estava pronta para dizer adeus a essa época tão surpreendente e voltar para uma sem graça. Eu queria tanto prender minha alma em 1990, viver ali sem precisar colocar um fim. Porém, as saudades me atraíam de volta para casa como um ímã enferrujado e eu lutava contra cada segundo mais.

Capítulo 15 - Say You Love Me

Espanha

— Já falei com o Börje que estamos aqui, ele disse que vai enviar as caixas que conseguiu e amanhã elas estarão aqui — comentei com enquanto carregávamos nossas malas pelo lobby do hotel.
— Quando você arrumou tempo para isso? — franziu o cenho. — São dez da manhã ainda.
— No aeroporto, quando você foi ao banheiro — expliquei como algo simples.
— Você definitivamente é uma workaholic — soltou uma risadinha.
— Trabalhe enquanto eles descansam, meu querido — sorri de lado.
Ele me lançou o mesmo sorriso. Alcançamos o balcão do lobby e um funcionário nos esperava.
— Fala inglês? — perguntei, em inglês. O funcionário concordou com a cabeça, mas parecia meio aterrorizado. Logo vi em seu crachá que estava em treinamento e entendi tudo. — Prefere que eu fale em português?
Ele fez que sim. As pessoas que falam espanhol não entendem muito bem nós, lusófonos, mas, pelo visto, ele preferia arriscar mais em me entender pouco em português do que em inglês.
— Tudo bem. Meu nome é , tenho reserva de dois quartos — falei devagar para tentar ser compreendida. me observava, com o cotovelo apoiado no balcão e a bochecha apoiada na palma da mão.
O homem murmurou algo que não entendi e se virou para conferir. Eu também não era muito boa em espanhol, senão me arriscaria no portunhol. Era melhor poupar a nós dois desse vexame, no entanto. Virei-me para o homem ao meu lado que tinha um galo cômico na testa causado por mim.
— O que foi? — perguntei, me segurando para não rir do seu machucado.
— Nada. Só gosto de te ouvir falando seu idioma — sorriu. — Parece ser uma língua bonita. Acho que vou cobrar as aulas que você disse que me dava para aquela garota.
Revirei os olhos para essa última frase.
— Eu, particularmente, prefiro sueco — dei um sorrisinho de lado. Como a língua e os naturais da Suécia eram swedish, aproveitei para fazer um trocadilho e deixar claro as minhas intenções com o sorrisinho. Às vezes eu conseguia dar o troco nas cantadas dele, eu não era muito boa — como podemos ver —, por isso não era recorrente.
Ele imitou o meu sorriso e arqueou uma sobrancelha.
— Acho que estou criando um monstro. — Seus olhos faiscaram na minha direção.
O funcionário acabou atrapalhando nosso momento, voltando, desajeitado, com as chaves. Nos deu as boas-vindas em espanhol, nos explicou o sistema do restaurante e outras dependências do hotel, depois entregou as chaves para cada um. Não tinha certeza se havia entendido tudo, mas eu não pretendia utilizar as dependências do hotel mesmo. Não falamos nada no trajeto, mas esse silêncio aos poucos já estava ficando recorrente pela convivência e menos constrangedor. O caminho no elevador também foi tranquilo, nada como aquele dia.
— Até mais — ele disse antes de entrar em seu próprio quarto que era ao lado do meu de novo.
— Até — falei e destranquei a minha porta.
Guardei a mala no armário, arranquei os sapatos fora e me joguei na cama de costas com os braços para cima. Era muito fofinha e aconchegante, mais do que a do hotel de Portugal. Eu gostava de tomar banho quando chegava de viagem. Porém, estava sem disposição alguma, tinham sido dias desgastantes e qualquer descanso merecia ser aproveitado. Por isso, nem percebi quando me rendi ao sono.
Estava sonhando com alguma coisa boa quando fui trazida de volta de supetão e pulei de susto ao ouvir uma voz masculina dentro do quarto. Demorei para assimilar o que estava acontecendo, mas entendi que estava dentro do quarto depois que eu dei duas voltas na chave ao trancar a porta.
— Que merda é essa? — falei em português mesmo. Minha mão estava no meu peito, não sei se para me consolar ou acalmar meu coração que batia incrivelmente rápido.
— Quarto compartilhado — apontou para trás de suas costas, onde havia uma porta pintada de branco que passava facilmente despercebida aos olhos de quem não procurava nada e estava cansada. — Desculpa ter te acordado.
O problema não foi ter me acordado, foi como me acordou.
— Liguei na recepção do hotel para me indicarem alguns lugares legais por aqui, o inglês daquele garoto era péssimo, mas consegui arrancar alguns nomes de seus murmúrios desconexos e ele também mandou me entregarem folhetos — riu, meio sem graça. — Então, estava pensando... — ele parecia meio nervoso também, estava até hesitando. — Já que é nosso dia de folga, podemos escolher alguns deles para visitarmos, o q-que acha?
Sorri. Esqueça tudo que falei sobre ele não ser tímido. Ele estava sendo tímido naquele momento. Era tão bonitinho vê-lo hesitando para me convidar para sair, queria guardar em um potinho e recorrer à lembrança todos os dias antes de dormir. De repente, eu não estava mais tão brava por sua aparição repentina.
— Parece uma boa ideia — forcei um sorriso mínimo quando queria sorrir, mostrando todos os dentes, e me levantei. — Só vou tomar banho, está bem? Me espera aqui.
Ele assentiu e eu saí quase que correndo para o banheiro, com um frio na barriga que me movia mais rápido que o normal. Bati a porta e respirei fundo antes de ter um treco. Vamos, , por que é que você está assim? Não é um encontro romântico, somos só dois amigos saindo para conhecer a cidade. Passei a mão pelo cabelo, os pensamentos indesejados estavam vindo com todas as forças, coisas como: não vou conseguir me controlar e vou beijá-lo; vou ceder e dizer que sou terrivelmente apaixonada por ele; ou até mesmo posso surtar e contar que não sou daquele século.
Calma, vai dar certo. Você é forte, esse nem é um encontro, encontro. Estamos de folga, em um país diferente e em uma cidade bonita. Tudo sob controle.
Menos eu, claramente.
Despi-me antes que demorasse muito e ele começasse a achar que o estava deixando de molho. Tinha uma janela relativamente grande ao lado do box e que dava para uma vista estonteante da cidade, as pessoas andando na rua cada qual com seu destino — algumas com roupas de trabalho, outras apenas passeando; os prédios em volta que pareciam saídos de um filme de tão retrô; sabia que já tinha falado mil vezes o tanto que amava o século 20, mas tinha necessidade de me reafirmar toda vez que parava para observar assim. Queria que aquele fosse meu século, mas, pelo menos, guardaria a memória comigo de como era viver ali. Eu estava vivendo o que nunca consegui experimentar em 2019, sentia que tinha que amadurecer o meu lado menina estudante para virar a garota que trabalhava e morava com um garoto que não era meu namorado.
Aqueles pequenos momentos me provavam o quanto a vida poderia ser boa. Bem ali, admirando a rua enquanto tomava banho, me esperando no quarto para conhecermos parte de Madri. Eu estava muito feliz, eu tinha tudo o que queria naquele momento. Talvez eu mudasse apenas me esperando do lado de fora e o colocasse ali no chuveiro atrás de mim...
Ok, aquele não era um pensamento seguro.
Precisava sair dali.
Enrolei-me no roupão do hotel e enrolei o cabelo na toalha, e passei os olhos inocentemente pelo banheiro procurando pela minha roupa. Não estava lá. Era claro que não estava, eu fui direto para o banheiro.
Merda. Fiquei tão eufórica que esqueci de abrir a mala. Essa minha cabeça de vento...
Não adiantava ficar procurando por uma coisa que obviamente não estava lá, era melhor abrir a porta e sair logo de uma vez. Que mal tinha? Eu não estava nua, ele não podia ver nada. Eu não ligava de aparecer daquele jeito, éramos amigos. Ele mesmo provou esse ponto quando apareceu de toalha na minha frente.
Rodei a maçaneta e caminhei pelo quarto até a mala. Ele tinha ligado a TV e estava distraído, o que me permitiu vasculhar a mala com mais afinco sem me preocupar com ele olhando minha bunda. Eu sabia que em certo momento ele passou a olhá-la, claro, mas podia me iludir achando que não.
— Acho que aparecer nua assim não está no manual da amizade — ele brincou. — Só na colorida, é claro — fez questão de acrescentar.
Levei um susto com sua voz pela segunda vez no dia e me levantei depressa, puxando um vestido comigo. Senti minha bochecha ruborizar tanto a ponto de pinicar. É, pelo visto, eu ligava de aparecer de toalha, sim.
— Eu não estou nua! Estou de roupão — me defendi, tentando não me encolher sobre seu olhar.
— Você está nua aí embaixo? — ele perguntou na maior cara de pau e minha cara toda ficou vermelha. — Vou levar isso como um “sim”. Então, roupão é praticamente pelada.
— Não é mesmo — falei com a voz afetada e pigarreei para corrigir meu tom. Não queria que ele pensasse que eu estava demonstrando fraqueza ou submissão. — Além do mais, não sei o motivo dos seus comentários, aqui não tem nada do que já não tenha visto — empinei o nariz e voltei para o banheiro. Não quis ver a cara daquele abusado, meu recado foi muito bem dado.
Consegui resgatar uma camiseta de manga longa com gola alta preta, as roupas íntimas e o vestido de margaridas com fundo preto que puxei naquela hora. Com sorte, eu tinha organizado minha mala em looks separados e em rolinhos quando passei com ferro minhas roupas antes de deixar Portugal naquela manhã, por isso, quando puxei o vestido, veio a blusa, a calcinha e um sutiã.
Penteei os fios molhados para trás com um pente. era tão engraçadinho, ele sabia exatamente que eu saíra do banheiro tentando passar despercebida e solta logo aquilo; se eu tivesse um controle remoto na mão, teria jogado no outro lado de sua testa para formar um par de galos. E, se fosse o contrário e eu o tivesse confrontado no dia anterior, tinha certeza de que ele teria a cara de pau de desprender a toalha da cintura e falar com inocência que caiu. Ah, ele faria com certeza isso. Se eu o questionasse, ele ainda botaria a culpa em mim e no meu olhar fulminante.
A minha cara ainda estava queimando de vergonha. Ele era um palhaço, mas eu senti o sorriso no meu rosto enquanto me vestia.
— Pronto — anunciei ao abrir a porta. Ele estava atirado no meio da cama, os braços atrás da cabeça, a TV desligada.
Seus olhos me analisaram.
— Gostei do vestido — comentou.
Dei um sorrisinho em agradecimento e abri o armário para pegar minha bolsa. O sapato estava ali entre a porta do armário e a do quarto, ele era preto e fechado, sem salto, era um sapato da moda.
Chamei-o, ele se levantou. Chegou bem perto de mim com todo aquele corpanzil e me encarou bem no fundo dos olhos, mas dessa vez eu estava blindada e desviei o olhar. Eu disse para ele que pararia de surtir efeito uma hora... ele riu baixinho e pegou meu queixo com dois dedos, me obrigando a virar o rosto. Seus olhos, que geralmente eram mais escuros em ambientes fechados, estavam mais claros que o normal e eram inebriantes, mas de novo não fiquei presa a eles. Oh, não, tinha algo bem melhor que merecia minha atenção. Dessa vez, encarei sua boca que estava retorcida em um sorriso e tive a impressão de que o imitei. Ele pendeu a cabeça para o lado esquerdo e o desespero de repente me acometeu. Meu Deus, ele iria me beijar? Provavelmente sim! Ele vinha chegando o rosto perto do meu e tudo gritava para eu sair correndo, mas, mesmo que eu quisesse, não daria tempo de dar o comando para as minhas pernas e esperar que elas me obedecessem. Não quando elas estavam tão molengas, prestes a cederem, pela proximidade dele.
Ele colocou o nariz no meu pescoço e aspirou o meu cheiro.
— Hmm... cheirosa — comentou, se afastando e largando meu queixo.
O alívio me preencheu, mas meu corpo demorou para entender que já podia reagir. Acho que ele estava frustrado por não receber o que queria ao mesmo tempo que estava feliz pelo elogio repentino. Ele estava abrindo a porta atrás de mim e eu estava simplesmente congelada no mesmo lugar, com certeza com uma cara de medo.
Reaja, garota!
— Vai ficar parada aí? — ele chamou, dava para sentir o sorriso no rosto sem nem mesmo olhar para a cara do ser.
Meus sentidos voltaram ao normal com a fala dele. Finalmente. Já não era sem tempo.
Passei por ele, que segurava a porta. Esse homem, um dia, ainda iria acabar comigo e eu iria gostar de cada segundo.

***

Estávamos nós dois parados de frente de uma... ahm, coisa... histórica. Eu estava de braços cruzados e ele, em uma mão, segurava o folheto, na outra, a jaqueta do ombro.
— Templo Debod. Foi feito no século 4 antes de Cristo para reverenciar o deus Amom. Foi desmontado e dado para Espanha em agradecimento pela ajuda econômica, também para outros três países — ele leu o folheto que pegou na recepção do hotel.
— É bonito. Queria entender mais de arquitetura para poder dar uma opinião mais complexa — ri.
— Digo o mesmo. Pelo menos conhecemos. — Ele continuou andando e eu o segui. — Posso conversar com meus amigos arquitetos sobre essa coisa e tentar entender. Depois compartilho com você.
Concordei com a cabeça.
O clima estava ameno, o vento era de chuva e fazia nossos cabelos balançarem. Ainda bem que não tinha escolhido um vestido rodado, aquele era um péssimo dia para qualquer roupa que tivesse chance de voar. Apesar daquele vento, o sol forte de depois das 10h da manhã estava lá — mas não queimava nem um terço do que era para estar queimando. Além disso, o Templo Debod ficava em um parque com muitas árvores e bem movimentado, o Parque Del Oeste. Ele usava óculos de sol no modelo aviador preto — que era o seu favorito, junto com o outro espelhado —, eu usava um óculos escuro gatinho amarelo. Era um óculos que só passaria normalidade ali mesmo. Em 2019, faria algumas pessoas fazerem cara feia. Acho que principalmente os nascidos na segunda metade dos anos 2000, eles eram bem criteriosos com a nossa moda.
Opa, “nossa” não, a desse século.
Um frio subiu à minha barriga com aquela leve apropriação. Estava me sentindo em casa demais, isso era perigoso. Minha casa é junto dos meus amigos, dos meus pais, do meu gato e da minha faculdade, repeti três vezes mentalmente.
Ele desviou o caminho para passar por uma ponte em cima de um laguinho. Isso me fez acordar dos meus devaneios de repente e desviar de um cara correndo que parecia ter pretensão de me atropelar. Eu, hein. Era cada maluco que aparecia quando você estava ocupada com seus próprios pensamentos. Depois de cogitar xingar o “maratonista” em um portunhol fajuto, fiquei apenas com uma encarada e fui atrás de .
Ele estava sentado com as pernas enfiadas na grade de madeira da ponte, a distância que separava os pés dele da água era basicamente o meu braço — e eu tinha bracinhos de dinossauro. Era engraçado notar em eventos do cotidiano como ele era mais alto do que as pessoas que costumava conviver. Sentei-me exatamente como ele, a visão deveria ser como o Bilbo e o Gandalf lado a lado.
— Um maluco quase me atropelou — resmunguei.
Ele riu. Fiz cara feia para ele e fingiu desmanchar o sorriso.
Por um tempo, nós dois ficamos calados. Pela minha visão periférica, ele estava olhando para o lago, já eu estava olhando a quantidade absurda de casais de mãos dadas em todo lugar daquele parque.
— Que estranho — comentei. Ele se virou para me olhar. E aí que eu me dei conta: estávamos perto demais para a nossa própria segurança. Quase que meu reflexo foi tascar um beijo naquela boca linda dos infernos, mas, para não vir a ocorrer, eu engoli em seco. A culpa era minha por ter sentado quadril com quadril com ele, não tinha nem me dado conta de que isso poderia acontecer. Ou tinha, acho que estava meio carente e meu subconsciente estava agindo por conta própria.
Normalidade.
Pare de agir como se quisesse beijá-lo, vocês são amigos. Olha para a testa dele para não encarar a boca.
— Você percebeu a quantidade de casais aqui? — continuei.
— Ah. — Ele se remexeu e tirou mais um folheto do bolso da calça jeans preta. — Acho que por isso.
Peguei de sua mão. O parque tinha fama de ser frequentado por casais. Eles sempre roubando os lugares mais bonitos. Revirei os olhos e entreguei o papel de volta, ele botou de volta no bolso.
Ficamos em silêncio de novo.
— Eu... — falei.
— Eu... — ele falou ao mesmo tempo.
Nós dois paramos e sorrimos.
— Pode falar — eu disse.
— Eu estava pensando esses dias. Você já é minha fã há algum tempo, não é? — perguntou. Anuí com curiosidade para saber onde ele queria chegar. — Por que você nunca falou nada do meu nome verdadeiro quando descobriu?
Boa pergunta. Olhei para o lago. Mais uma coisa que eu sabia e não podia revelar a fonte.
— Não acho que seja da minha conta — fui sincera, em partes. As meias verdades renascendo das cinzas. — Sou sua fã, mas também trabalho para você. Uma hora ou outra, eu sabia que iria descobrir que o seu nome não era de fato , a sua família não te chamaria assim.
— Odeio quando você fala que trabalha para mim no meio da nossa conversa casual — admitiu em um murmúrio.
Respirei fundo e prendi a boca em uma linha fina. Sabia que ficar lembrando da nossa hierarquia na produtora era mais para mim do que para ele. Toda vez que olhava de tão perto lembrava do que eu tinha por ele e aquilo era bem doloroso de lidar, então adotei como meu mecanismo de defesa.
— Eu sei, mas não posso te dizer que fiquei impressionada por ouvir as pessoas te chamando de outro nome — suspirei de novo. Porra, como podia dizer que não fiquei surpresa porque já sabia? Eu queria ser o mais sincera que podia ser. — Bom, vou te falar a verdade. Quando... — não falei que foi naquele ano, então era cem por cento real — ...descobri, eu tive aquele surto de fã.
Ele deu um leve sorriso, mostrando que estava satisfeito com a resposta, e olhou para a frente também.
— Não vai perguntar o motivo? — perguntou.
— Eu sei do motivo, estou em todas entrevistas suas e sei que tirou de uma revista esse nome.
— Não estou falando disso — soou levemente irritado. Então entendi que ele estava falando do motivo de manter o mistério em torno do seu nome.
Me controlei para não suspirar de novo, mas hesitei um pouco. Se fosse alguns anos na frente e eu fosse sincera sobre ser viajante do tempo, eu falaria “porque você adorava debochar de todo mundo”. No entanto, agora não podia falar aquilo.
— Sei que quer manter sua privacidade, é a banda, é você.
Ele me encarou de novo e eu retribuí, sem me incomodar com nossa proximidade.
— E por que você escolheu me chamar de ? — ele perguntou.
— Porque sou sua...
— Se falar que é minha assistente ou que trabalha para mim de novo, eu te jogo nessa água — me interrompeu, sério, mas seu tom era brincalhão.
Abri a boca com o ultraje e dei um empurrão no ombro dele.
— Ia falar que sou sua fã, seu ridículo — resmunguei. Era obviamente mentira, mas ele não precisa saber. — Eu é que vou te jogar daqui!
Ele sorriu minimamente de novo, porém parecia pensativo. Senti-me na obrigação de acrescentar:
— Se te serve de consolo, quando estou muito brava, te chamo pelo seu nome mentalmente. Grito com toda a minha força cerebral: . Passei todo esse período que você pediu espaço te chamando assim, porque eu estava muito irritada com sua atitude — falei de uma vez, sem nem dar abertura para a respiração. Pesquei um pouco de fôlego. — Sei que não tenho direito de ficar irritada por ter pedido isso quando eu mesma fiquei uns três meses te afastando, sem dar nenhuma satisfação. Por isso, te respeitei e continuo respeitando em relação a isso.
Eu estava ofegante de falar tão emendado, mas ainda tinha mais entalado:
— Quando estou absurdamente feliz contigo, às vezes me vem a vontade de te chamar só de . É uma coisa que nunca tive coragem de falar para ninguém, nem para mim direito — admiti.
— Você me chama de tudo, basicamente — ele completou, sorrindo. Concordei. Não passou pela minha cabeça esse ponto de vista antes, mas sim. Procurei sempre, até nos meus pensamentos, tratá-lo como , contudo, era a primeira vez que concluía que me passava todos os nomes dele dependendo da emoção. — Eu entendi, mais ou menos, os três meses que você passou me afastando depois daquele dia que pedi meu espaço. Nós realmente estávamos em sintonias diferentes, depois de te ver com ciúmes aquele dia que conheceu a Natalia, achei que gostava de mim. Aí, nesses três meses, fiquei te observando e concluí que você estava tentando negar esse sentimento. Sendo assim, eu achei que te paqueraria e conquistaria, então você admitiria. Não sabia que queria só sexo no que você chamou de “dia extraordinário”. Fiquei um pouco magoado por estar errado e pelo que mencionei ontem, sobre não poder te ter nos meus braços de novo.
Céus, ele tinha pedido espaço e ficado magoado por estar errado quando estava certo o tempo todo. Eu realmente fiquei tentando negar meu sentimento para que ele não percebesse. Era horrível perceber que fui eu que causei sofrimento a nós dois, mas que ainda não me arrependia. Ele nos trouxe até aqui e estava gostando desse terreno novo.
— Foi o melhor para nós dois, tanto o meu espaço quanto o seu. Ajudou a percebermos que somos duas pessoas diferentes, vivendo na mesma casa e que divergem em várias opiniões — concluí. Resolvi respondê-lo dessa vez, para que não ficasse achando que não dava devida importância às suas confissões. Apesar de que foi uma resposta bem diplomática.
Ele assentiu, olhando pra baixo.
— Enfim, se te deixa confortável me chamar de , tudo bem. Mas e o meu pai? Ninguém sabe que o Börje que trabalha comigo é meu pai.
Dei um sorrisinho, essa era fácil engabelar.
— Basta ter dois olhos funcionando para saber que você e ele têm um parentesco, não é uma surpresa tão grande. — Pensei um pouco em uma adição à minha meia verdade. — Não sabia que era seu pai, mas também não me surpreendeu.
Surpreendeu, sim. Em 1990? Não. Ele não pareceu comprar muito a minha versão, quase deu para visualizar seus olhos semicerrando sob os óculos e depois me fitando por um breve momento.
Ouvi o bip do meu pager, peguei ele da bolsa e dei uma olhada. Era Lilly. O som pareceu o despertar.
— É melhor a gente ir almoçar — falou.
Ele se levantou e me ajudou a levantar, estendendo a mão. Como não fiquei entalada naquelas madeiras ali no processo era um mistério. Olhei para seus pés conforme ia me estabilizando de volta nas minhas pernas.
— Tênis novo? — perguntei, vendo um Nike novinho branco que estava em alta.
Ele concordou com a cabeça, todo orgulhoso. E é claro que eu não poderia perder essa oportunidade. Senti o sorrisinho se formando no meu rosto, aquele de criança que ia fazer travessura. Como estávamos de frente um para o outro, deslizei o olhar calmamente de volta até seu pé, parecia em câmera lenta quando levantei a perna e pisei com tudo, deixando-o com uma pegada marrom horrível. Nosso olhar se encontrou, ele parecia estar processando ainda, por isso aproveitei a chance para conseguir vantagem e corri.
Dei uma espiada por trás dos ombros, na mesma hora que ele virou e gritou “ah, sua pestinha”. Gargalhei e corri, não necessariamente nessa ordem.

***


Nós tínhamos comido um cozido madrilenho no La Bola que era o restaurante mais famoso da cidade — de acordo com o que ele soube com a recepção do hotel. Bebemos vinho tinto e isso contribuiu para que minha barriga pesasse.
Pedi para ele pegar as cartas que tinham mandado da produtora de manhã para mim e me joguei na poltrona do lobby segurando seu casaco. A sensação era de que havia comido uma panela de feijoada: muito bom e ao mesmo tempo causava muito sono. A comida realmente fez jus à reputação do restaurante, mas eu adicionaria apenas que era para comer e depois cair no sono a tarde toda.
Ele veio carregando um pacote fechado ainda e me fitou jogada na poltrona.
— Tudo bem? — perguntou.
Os óculos escuros estavam no topo da cabeça segurando seu cabelo, um detalhe inútil e lindo. Fechei os olhos, deixei a cabeça cair e botei a língua para fora de lado, fingindo que estava morta. Ele riu. A droga da risada dele era meu som favorito no mundo. O bom é que ele não estava mais economizando sua risada e os seus sorrisos perto de mim, visto que eu era uma palhaça fora do circo, entretendo-o o tempo todo com meu jeito destrambelhado. não era tão sério quanto eu pensava, quando ele estava feliz, sorria e ria muito, quando estava insatisfeito, era totalmente apático.
Ele me deu a mão e eu aceitei, mesmo querendo ficar ali, de barriga cheia, sentada, só admirando sua beleza. Tomei as cartas da sua mão e guardei-as no bolso do vestido.
No elevador, ele olhava para cima, o que me deu uma ideia que envolvia me movimentar e de que minha barriga não gostou nada. O outro pé do tênis estava muito branquinho, branquinho demais para o bem da minha saúde mental. Isso que dava ter espírito de porco, você não sossegava até ver objetos arruinados. E eu tinha muito. Aquela vozinha no fundo da cabeça, que te mandava jogar o celular da ponte, estava me mandando pisar bem forte no tênis. Segurei melhor o casaco dele contra o peito. Fui sorrateira, dei dois passos que nos separavam e não esperei para dar uma pisada forte naquele pé enorme que parecia mais um skate.
O elevador apitou, chegando ao andar na mesma hora, mas os olhos dele bem mais espertos dessa vez captaram os meus quando planejei dar os primeiros passos para correr. Ele me pegou no ar e me pôs em seu ombro, feito um saco de batata.
Dei um grito com o susto e com a rapidez que aquilo tinha acontecido.
— Me coloca no chão agora! — gritei bem fino, sem pensar nos outros hóspedes.
— Não — riu com deboche.
Chacoalhei as pernas do jeito que os braços dele me permitiam, ele continuou andando pelo corredor normalmente. Fiquei com medo do vestido mostrar demais, mas, parecendo ler minha mente, ele prensou o pano rente às minhas coxas com seu braço e fazendo minha pele arrepiar.
, me coloca no chão agora! — ordenei, fazendo jus ao que falei momentos atrás.
— Isso, me chama de novo pelo meu nome que me excita — o desgraçado falou.
Soltei outro grito, mas dessa vez pela vergonha que me causou ouvir aquela frase.
Pervertido! — gritei.
O filho da mãe gargalhou.
— Se você prefere ver por esse lado… — completou, me deixando confusa. Ele não tinha falado naquele sentido? Será que a pervertida era mesmo eu?
Ouvi outra voz falando no corredor em espanhol, algo como “não vou trancar”. O ouvi também respondendo “gracias”, sem nem entender, óbvio. Quando ele passou pela porta, visualizei a camareira ali. Ela ria da palhaçada, também riria se não fosse eu a pessoa de cabeça para baixo. A mulher fechou a porta do quarto atrás de nós.
Alô, senhora? Era para você estar chamando a polícia! Esse homem poderia estar me sequestrando!
Ele me jogou na cama, me causando uma leve tontura até o sangue sair todo da minha cabeça.
— Você acha bonito sujar o tênis novo alheio, não é? — perguntou. Fiquei toda arrepiada ao constatar que seu tom era o mesmo do dia que falou como tratava garotas más. Não no sentido ruim como aquele dia, para o meu infortúnio. Desde a hora do banho, meu corpo estava interpretando tudo como se realmente fôssemos partir para algo a mais. Aquilo era assustador.
— Pois está de castigo agora. Vai ficar trancada aqui comigo — disse enquanto ia trancar a porta e depois escondia a chave no bolso traseiro.
Arqueei uma sobrancelha. Quem ele pensava que era para me segurar ali? Ele podia ser tipo vinte vezes o meu tamanho, mas eu não era uma ameba. Pelo contrário, ele sabia que eu era a pessoa mais teimosa do mundo. Ameacei ficar de pé para testar sua reação. Só ameacei mesmo, porque ele se jogou na cama e acabou me levando junto. Foi tão repentino que fiquei sem reação, mas meu corpo entrou em pane. Principalmente porque vinha clamando pelo dele. Eu precisava de um alívio, pelo menos um beijo para me acalmar. Quer dizer, precisaria, se nós não fôssemos amigos. Como éramos, tinha que me concentrar em continuar respirando com normalidade e sem beijos.
Foco, mulher, pelo amor de Deus.
— Eu não estou brincando, senhorita — ele falou e depois me prendeu pela cintura rente ao seu corpo.
Revirei os olhos, tentando soar ultrajada e não excitada.
— Sai, — resmunguei em tom de aviso.
— Me chama daquele jeitinho de novo que te deixo sair — ele disse com pura malícia, se referindo ao que falei quando estava sendo carregada. Agora que ele sabia que eu o chamava pelo nome quando estava brava, não me deixaria mais em paz.
— Você é um pervertido — revirei os olhos mais uma vez.
Ele me prensou mais contra o corpo dele. Estava simplesmente desesperada para sair dali antes que nós dois realmente acabássemos nos atracando de outra maneira. Se dependesse de mim, não demoraria muito.
— ‘Tá, ‘tá — saiu em português mesmo. — — falei com certa vergonha por achar que estava pronunciando errado.
— Hmmm... Esse sotaque torna tudo melhor. — Ele umedeceu os lábios como se o som da minha voz fosse pornográfico. Riu, logo em seguida, me soltou e jogou a chave na colcha da cama.
— Além de pervertido, é patético — comentei, tentando fingir normalidade enquanto meu interior pegava fogo. Rolei para o lado, peguei a chave e coloquei na mesa de cabeceira junto com meus óculos escuros e as cartas. Eu tinha acabado de lembrar que nem precisava da chave por causa do quarto compartilhado, maldito cérebro de gelatina.
Ele piscou um olho para mim e se virou para ligar a TV, como se nada tivesse acontecido, como se eu não estivesse ali tendo que lidar com a fogueira que ele fez questão de alimentar. Depois se sentou na cama ao meu lado, arrancou o tênis e jogou os óculos em qualquer lugar, deitando-se de novo em seguida. Não fui embora, apenas me arrumei para ficar ao lado dele direito, aproveitando a intimidade que estávamos recriando. Não seria legal ir embora logo, também não estava nem um pouco disposta. Passamos alguns minutos assistindo um programa em espanhol que obviamente nenhum dos dois estava entendendo. Quando achei que ele estava dormindo, ouvi-o dizer:
— Fala em brasileiro comigo.
— O quê? — perguntei, sem entender.
— Por favorzinho. Você fala comigo duas línguas minhas, agora quero que fale a sua — fez bico.
Ele se virou de frente para mim, apoiando a lateral da cabeça na palma da mão e o cotovelo no travesseiro. Me observava com aqueles olhos bem atentos. Imitei sua posição.
— Ok. — Respirei fundo, pensando no que ia falar, mas acabou saindo por impulso. — Eu vim de outro século só para ficar perto de você.
Meus pulmões e peito ficaram leves repentinamente. Eu tinha confessado para ele, , que estava acordado e me olhando. Ele levantou as sobrancelhas. Por um instante, achei que ele tinha me entendido. No instante seguinte, seus olhos brilharam em incompreensão. Entendi que a sensação estava vindo do meu coração que parecia que tinha perdido quilos ao admitir aquilo, mesmo que ele não compreendesse o que eu estava dizendo.
— O que significa?
Droga. É claro que ele me perguntaria isso. Eu deveria ter previsto.
— Significa que estou gostando da nossa viagem — menti, em inglês.
— Eu também. Estou me divertindo bem mais do que com meu pai, devo dizer — ele comentou inocentemente.
Eu sorri com sua inocência. A sombra da inocência era tão afável.
— Fala outras coisas, conversa comigo — pediu.
— Você me pediu para falar brasileiro, mas nós, brasileiros, fomos colonizados por Portugal e falamos português, por isso fui capaz de me comunicar com as pessoas no destino anterior. É claro que é português brasileiro e que vocês, gringos, preferem muito mais do que o português europeu.
Ele sorriu, seus olhos brilharam que nem os de uma criança curiosa. Traduzi antes que ele me pedisse.
— Realmente, brasileiros tornam a língua diferente e mais bonita — ele sorriu. Olhou para o lado, parecendo pensar, talvez procurando alguma coisa para me fazer dizer. Estudei seus traços de lado, o cabelo de um lado estava atrás da orelha, o outro caía suavemente emoldurando seu rosto; o nariz era um dos meus detalhes favoritos, era um nariz europeu normal, mas deixava o rosto dele mais bonito; e finalmente seus lábios que eram beijáveis, mas que ele vivia prendendo em uma linha fina porque estava pensativo ou sério demais.
— Você é lindo para caralho, mais do que eu imaginei antes de te ver em carne e osso. E não vou traduzir isso daqui para te irritar porque sou seu inferno astral — ri. — Capricórnio é o inferno astral de aquário, então você sofrerá na minha mão — tagarelei, me sentindo leve como uma pluma.
— O que foi isso? — perguntou.
— Não posso te contar — sorri, misteriosa.
— Engraçadinha. — Ele cerrou os olhos. — Sorte a sua que é melhor te ouvir falando em português do que ouvir a tradução, por isso não faço tanta questão.
Amém por isso. Queria encerrar da melhor maneira possível, já que ele não me cobraria a tradução.
— Sou apaixonada por você — suspirei. — Acho que uma parte sua sabe que sempre foi verdade e que você estava certo o tempo todo.
— “Apaixonado” — ele respondeu todo embolado. — Eu sei o que é isso.
Meu coração deu um pulo que quase saiu pela minha boca. Não tinha escolhido “eu te amo” porque era a frase mais óbvia e ELE SABIA O QUE ERA “APAIXONADA”?
— Vem de paixão, que é parecido com o inglês, eu aprendi isso em um livro que falava sobre as conquistas de Portugal — ele disse, travesso. Qual era a chance daquilo acontecer? Alguém por trás da minha história me odiava muito. — Mas pelo ou com o quê?
— Não vou falar, você disse que não faz questão — respondi, dando de ombros. Não fazia ideia de como minha voz não saiu trêmula porque minhas mãos enterradas na colcha da cama estavam.
— Mas disso eu faço. — Ele se aproximou, até demais.
— Mas não vou dizer — teimei. Em minha defesa, não era teimosia se meu segredo estava em jogo.
Ele aproximou o rosto do meu, o nariz quase tocando o meu. Minhas mãos seguravam forte o tecido, eu queria empurrá-lo para tentar recuperar o controle, mas eu estava presa e estática.
— Se não falar, vai ficar parecendo que é por mim — ele brincou, seu hálito de menta com nicotina batendo no meu rosto.
— Que seja — rosnei entredentes, tentando fingir indiferença.
, ... — ele passou o nariz pela minha bochecha direita, depois pelo meu nariz e sua boca quase roçou perigosamente na minha, depois passou para a esquerda. — É por mim?
— O seu problema é que, às vezes, você é convencido demais — sussurrei, sentindo meu sangue ferver de raiva por ter deixado a situação fugir do meu controle, também do tesão que me queimava feito lava. Não sei de onde veio a coragem para emitir uma resposta. Seu sorriso se tornou quase maligno. Ele se afastou. A gente não podia ficar sozinho que ele me intimidava daquele jeito? Primeiro, me botava em seus ombros, depois de castigo, além de me intimidar, ameaçando meu controle. Eu não podia deixar barato. Ah, mas não podia mesmo.
Ele estava encostado na cabeceira da cama, ainda sustentando aquele sorriso irritante de quem ganhou na loteria porque conseguiu me tirar do sério. É, ele realmente tinha me tirado do sério, mas eu também sabia como o fazer perder as estribeiras. Ele gostava de joguinhos? Pois dois podem jogar.
Ajoelhei na cama, chamando a atenção dele. Passei uma perna pelas suas, sentando-me em seu colo e sem me importar com a barra do vestido subindo até estar perto de ser revelador demais.
— Sabe, ... — fiz a mesma coisa que ele, passei meu nariz em sua bochecha direita. Ele prendeu a respiração e me olhava sem expressão, mas os olhos o entregavam e reluziam feito duas pedras preciosas em minha direção. — Esses joguinhos que anda fazendo comigo, é tudo para me irritar? Ou você pretende ir mesmo além com eles até me ver perdendo a cabeça e implorando por você? Porque isso definitivamente não vai acontecer — meu nariz passou pelo dele, minha boca roçando na sua. — Você disse que somos amigos. — Senti a ereção ameaçando se formar embaixo de mim e eu quase perdi o controle de novo. Não sei quem era essa que me dominou, mas ele estava gostando. Então, foi o gás necessário para continuar. Passei meu nariz pela sua outra bochecha e me aproximei do seu ouvido. — Espero que não faça isso com todas as suas amigas, eu sou muito ciumenta.
Plantei um beijo embaixo de sua orelha, ao mesmo tempo que mexi os quadris bem de leve e quase imperceptível. Ele percebeu, claro, porque fechou os olhos e o que estava embaixo de mim ganhou ainda mais vida.
Saí de seu colo me sentindo melhor que a mulher maravilha e joguei um beijo para ele.
— Isso é para você aprender a não brincar com quem está quieto — avisei antes de abrir a porta do quarto em anexo. — Até depois, baby — chamei-o assim como ele vinha me chamando em tom provocador.
Eu estava tão orgulhosa. Por mais que rebolar em seu colo enquanto o provocava verbalmente violasse os termos de amizade que queria manter com ele, sentia que deveria fazer isso mais vezes. Parar de mostrar só meu lado de boa moça que o deixava fazer o que quisesse comigo.
Sobre o “apaixonada”, eu deixaria para me preocupar depois. Ou nunca.

Capítulo 16 - Hard Luck Woman

Nos outros dias, ele se comportou muito bem e nunca mais tocamos no assunto. Consegui colocá-lo na linha com sucesso. Na verdade, mal tivemos tempo para sair ou fazer nada como no dia de folga. Nós estávamos trabalhando muito. A Espanha tinha sugado muito de nós. Não eram compromissos diversos como em Portugal, eram lojas de discos todos os dias, sem parar. Estava exausta e vinha tentando contatar Lilly para me distrair um pouco do trabalho com uma companhia feminina — porque não tinha graça falar sobre o com o próprio nas nossas refeições que ele ficava lendo —, mas, quando eu bipava, ela me ligava só depois, quando eu não estava, e, quando ela me bipava, eu demorava a ligar e ela não estava também.
Eu estava no telefone em mais uma dessas tentativas. Falhando, aparentemente.
Botei o fone no gancho, joguei o pager em cima da cama depois de bipar Lilly e fui separar minha roupa para sair com . O tempo estava esfriando, então seria calça jeans, botas e camiseta de manga comprida do merchandising do Bathory.
O telefone tocou e saí disparada para atender, já imaginando que seria quem eu vinha tentando contactar esse tempo todo.
— Alô? — eu disse, esbaforida.
Senhorita, uma ligação para você. Se identificou como Lilly , posso passar? — disse o homem do outro lado da linha.
— Sim, por favor.
Não demorou nem meio segundo para sua voz raivosa ecoar pelo fone.
, sua desgraçada. Você passou esses dias todos me evitando? — ela soltou logo de uma vez.
— Oi para você também — falei, rindo. — Achei que a gente nunca iria conseguir se falar.
Pensei que tinha acontecido alguma coisa com vocês, mas meu pai disse que tem falado contigo e com o normalmente.
— É, foi só desencontro mesmo. Mas, me diga aí, como está? O que tem passado ultimamente em Estocolmo?
Bom, se prepare porque tenho algo incrível para te contar ela falou com animação e provavelmente sorrindo pelo seu modo alegre. Conheci um garoto. Quer dizer, não conheci agora, eu já o conheço desde que a gente era pirralho. Ele me disse há uns dias que gosta de mim, falei para ele que... — suspirou, parecendo um pouco menos animada. — Na verdade, eu saí correndo que nem uma franga.
— Cacete, Lilly! — exclamei, chocada que Lilly estava gostando de alguém. Ela vivia reclamando que morreria só. Sim, uma adolescente de recém feitos 17 anos. — Isso é bom, não? Você não gosta dele?
Não sei, até ele me falar isso, não. Agora, não sei dizer.
— Ele não te procurou mais?
Não.
Ela me contou mais sobre o garoto, como estava evitando olhar para ele o tempo todo. A pobrezinha estava apaixonada e muito confusa, tentei ser cuidadosa aconselhando-a e tentando conduzi-la ao entendimento. Não seria eu quem iria falar para ela o que realmente estava sentindo porque não estava em sua pele, mas poderia ajudá-la a compreender com minha pouca experiência. Eu nunca me apaixonei loucamente por um garoto “real” antes, mas já gostei um pouco de alguns no meio do caminho, então tinha uma pequena noção. Ela pediu para não falar mais sobre isso, então respeitei sua vontade.
E o seu maior problema? — perguntou, depois de um tempo calada.
O que passou pela minha cabeça foi ser uma viajante do tempo e a maldição, mas Lilly não sabia de nada, então obviamente era outro tipo de problema. Estava cansada de problemas.
— O quê? — perguntei.
O meu irmão...
— Ah — ri, me preparando mentalmente para fazer um resumo. — Estamos trabalhando bastante, mas sei que não é disso que quer saber. Por isso, vou direto ao assunto: ele não está mais fazendo voto de silêncio, agora ele resolveu que vai ser meu amigo e ao mesmo tempo se insinuar para cima de mim. Toda hora ele estava vindo com joguinhos, porque sabia que me deixava sem jeito. Até que resolvi revidar uns dias atrás.
Espera, espera. Muita informação para minha cabeça absorver. Você revidou os joguinhos sexuais dele, é isso?
Concordei, contando tudo para ela que aconteceu no quarto. Ela já sabia que eu era apaixonada por ele e que ele não podia saber, sempre dizia que nunca entendeu o motivo. Bom, nem poderia entender. Mesmo assim, meu segredo estava a salvo com ela.
, eu não sabia que você era do tipo woman fatale.
— Eu não sei o que me deu naquela hora, mas ele nunca mais fez nada do tipo e nem falou nisso. Acha que ele ficou com raiva?
Claro! Você o deixou de pau duro e foi embora!
Tapei a boca com a mão e ri. O jeito que ela falava do próprio irmão me mostrava como eu era tímida. Sempre me deixava vermelha.
Sabe o que eu acho? Conhecendo-o do jeito que conheço, ele não vai esquecer dessa palavrinha. é um safado, porém ele leva a sério algumas garotas que gostam dele, principalmente você. Ele já deixou claro que quer algo a mais contigo e vocês estão se iludindo com essa coisa de amizade. Não se engane, ele não vai desistir de investir assim tão fácil. Quando voltar vai ser pior, porque ele está determinado. Negar esse fato é mentir para si mesma.
Assobiei.
— Garota... você está mesmo ficando boa em aconselhar.
Ela riu.
Admiro muito esse autocontrole dos dois. Pensei que depois de se segurarem desde aquele dia, não ia durar uma semana nessa viagem para vocês tirarem o atraso que nem coelhinhos.
Eu gargalhei.
— Ai, Lilly, senti falta de ouvir essas sujeiras que você fala.
Ela riu e nós ficamos quietas.
Não acredito que você chamou meu irmão de lindo na cara dele. E ele é tão sonso que disse que não fazia questão de entender, se ele soubesse o que perdeu ia ter um treco. Você é cruel, .
Foi minha vez de rir.
— Ah, lembrei de algo para te contar. Lembra daquele meu amigo de Portugal, o Tiago? — perguntei.
Sim.
Contei para ela o dia que o encontramos e fomos até aquele lugar lotado de garotos na puberdade, também como conheci melhor o Marko.
Esse Marko pareceu estar interessado em você.
— Nah, muito novo para mim. Mas, tenho que te dizer, ele é bonitinho, viu? Putz. Se fosse mais velho — e não fosse se casar logo mais, acrescentei mentalmente —, eu investiria.
Boba. Já que defende tanto que não quer nada com meu irmão, deveria pelo menos apostar em outros caras. Não vá ficar para a titia dos meus filhos.
— Eu gosto muito do teu irmão para pensar em outros caras, Lilly. Só é brincadeira mesmo essa história de investir.
Aí, está vendo? Isso é tão injusto! Me diz que, pelo menos, algum dia, você vai me explicar direito o motivo de não admitir isso em inglês ou sueco para ele?
— Talvez — ri. — Agora tenho que ficar bonitona para conquistar o coração do senhor teu irmão — brinquei.
Espero muito que esteja falando do outro irmão, porque o coração do que eu conheço não deve aguentar mais ser conquistado e só poder admirar de longe você com essa sua bunda grande.
Gargalhei.
— Ei, minha bunda não é grande! — reclamei, brincando.
Minha querida, já viu o padrão europeu? Eu mesma tenho zero e te invejo muito para te ouvir falando que não tem uma bundona.
— Pois vou colocar uma roupa bem apertada que destaque minha bunda, só porque disse isso.
Tadinho do meu irmão... mas você está certa, coisa bonita é para ser valorizada. Um beijo, gata.
— Beijo.
Se demorar para me ligar de novo, juro que pego um avião para qualquer lugar que você esteja e te mato — ela desligou.
Eu amava falar com essa garota, melhorava o meu dia em mil por cento. Ela me fazia rir tanto que me deixava radiante. Além disso, era tão bom ter uma confidente e contar parte da minha bagagem. Lilly podia ter a idade que tinha, mas ela era bem madura.
E estava tão feliz por ela finalmente parecer estar se apaixonando. Ela vinha esperando por aquele momento com tanta ansiedade que até me fazia cogitar a hipótese de apresentá-la para algum dos meus amigos que fiz em Portugal, mas ela foi mais rápida. Só desejava do fundo do meu coração que o garoto não se tratasse de um babaca, porque, se fosse, eu pensaria em um jeito de ele se ver comigo e com os dois irmãos mais velhos dela, principalmente , que sabe ser medonho quando quer. Mais para a frente tiraria algumas informações a mais dela sobre isso.
Iria trocar minha calça jeans pela de vinil preta que deixava minha bunda bem grande, em homenagem à Lilly.
Finalmente íriamos sair para jantar em um lugar que ouviu uma fã indicar enquanto conversavam. Estava uma pilha de nervos nos últimos dias por estar trabalhando muito fisicamente e sem descanso. Porém, também por estar trabalhando com Natalia e sendo obrigada a falar com ela no telefone quase todos os dias. Geralmente, eu falava com Brian, seu assistente, mas muitas vezes acabava tendo que falar depois com a própria. Ela estava sendo extremamente profissional ao telefone, estava até desconfiando de que ela poderia ser uma pessoa legal longe de e de toda a rivalidade que se instaurou entre nós duas. Porém, o meu estresse vinha mais de mim por ficar tão presa a essa rivalidade a ponto de ficar ansiosa falando com ela no telefone. Era esquisito sentir aquilo, mas não tinha nada que eu fizesse que espantasse aquela sensação. Por isso, sair um pouco com me ajudaria a espairecer.
Peguei minha bolsa e atravessei a porta que ligava os dois quartos. Como ele vinha se comportando depois que lhe mostrei que sabia revidar à altura das suas brincadeiras, não voltamos a falar sobre o “apaixonada” que ele me cobrou aquele dia, apesar de que Lilly achava que não cairia no esquecimento. Só o que podia fazer era esperar para ver. Ainda não me contentava com ele não saber praticamente nada em português, mas saber logo o que era “apaixonada”. Era de lascar. ‘Tá, tudo bem que, como ele disse, vinha de “paixão” e em inglês é passion, não muito diferente. Ele era muito esperto, pegava as informações e as ligava muito rápido. Não sei nem porque estava tão surpresa e incrédula.
Ele estava sentado na cama, assistindo futebol na televisão. Mais uma curiosidade sobre : ele gostava muito de ver jogos de futebol em seu tempo livre. Já eu, gostava muito de ver filmes, principalmente os de romance. Nós éramos mesmo bem diferentes, mas acabamos por ser um clichê. Quantas vezes já não vi um casal assim em filmes, livros e até mesmo em fanfics. Era uma pena que não fôssemos um casal, porque seríamos um dos bons, na teoria. Na prática, só pude concluir com nossas tentativas que não tínhamos tanta chance de nos dar bem romanticamente. Como nossa relação estava em outro patamar, nós estávamos nos dando incrivelmente bem naqueles últimos quatro dias. Um respeitava o espaço do outro, apesar de que minha vontade de o beijar ainda era latente. Era como ele disse aquele dia: eu sabia o gosto dele, sabia que quando nossas bocas se encontravam era tão bom que o mundo poderia explodir e eu nem ligaria, por isso sentia falta e desejava loucamente reviver o fenômeno que era encostar nossos lábios. Infelizmente, tinha que me contentar com minha imaginação enquanto o encarava atento a alguma coisa.
Desligou a televisão, levantou-se e ficou de pé a uns cinco passos de onde eu estava parada. Seus olhos me analisaram como se eu fosse um pedaço de carne e ele um cachorro faminto.
— Oh, não. Essa calça de novo? — reclamou, parecendo profundamente magoado com minha escolha.
— Não trouxe muitas roupas na mala, então tenho que repeti-las — retruquei na defensiva.
— O problema não é repetir roupas, eu mesmo faço isso o tempo todo. — Estalou a língua com o incômodo e desviou o olhar para a mesinha de cabeceira atrás de mim. — É esta calça, em particular.
— Qual o problema com minha calça? — resmunguei, olhando para baixo e enxergando apenas uma calça de vinil preta normal que estava na moda e que ele mesmo tinha várias versões masculinas dela.
— Ela é reveladora demais — soou feito meu pai, então entendi do que aquilo se tratava. Ele viu os olhares dos garotos que recebi quando vesti essa calça pela última vez devido ao seu comentário naquela noite no The Cave, agora abominava a peça. Uma atitude possessiva e machista digna de alguém que nasceu nos anos 60, mas é claro que eu não iria tirar a calça, eu tiraria sarro dele.
— Você acha? — perguntei, dando uma voltinha e atraindo sua atenção de volta. — Eu gosto dela. Valoriza minha bunda, não acha? A Lilly acha.
— Acho, e por isso é reveladora demais — resmungou, mas seus olhos estavam vidrados nas minhas pernas.
— Não tem problema ser reveladora demais, afinal, olhar não tira pedaço. — Deslizei minhas mãos pelas minhas coxas para provocar. — Você mesmo está me secando agora e ainda estou inteira — brinquei.
Ele rolou os olhos teatralmente.
— E depois eu sou o convencido — retrucou e cruzou os braços. — Estou falando isso para sua segurança. Nós vamos à uma boate e lá tem muitos tarados que, por mais horrível que seja dizer isso, podem se senti incitados a querer tirar seu pedaço, sim.
— Eu não sou uma donzela indefesa, . Sei me cuidar — respondi, encarando-o de queixo erguido e me sentindo mais alta que ele, garantindo meus direitos. — E achei que tinha dito que nós iríamos jantar.
— Não, eu falei que nós sairíamos na hora do jantar.
É claro que ele não tinha dito isso. Eu tenho absoluta certeza de que ele falou que iríamos sair para jantar hoje, mas não discuti, apesar de estar faminta.
— ‘Tá, então vamos — falei, esperando-o se virar para passar, mas seus olhos ainda miravam minha calça. — Estou começando a achar que o verdadeiro problema da calça é sua vontade enorme de me ver sem ela.
Ele soltou uma risada sarcástica alta.
— Ah, mas você adoraria me ouvir admitindo isso, não é? — Era uma pergunta retórica, por isso não respondi. Porém, sei que ele nunca admitiria por estar com medo de que eu o provocasse daquele jeito para ensinar uma lição novamente. Ele se virou e andou até a porta, eu o segui toda pomposa com minha conclusão.
É, eu adoraria ouvi-lo admitindo que queria me ver sem ela enquanto eu teimava em mantê-la no corpo por orgulho. Grande coisa. Nós dois sabíamos muito bem. Andamos em silêncio pelo corredor até o elevador. Ele notou minha escolha de roupa, afinal. Depois de desligar o telefone com a Lilly, achei que ele nem perceberia que estava usando uma calça que valorizava demais minha bunda. Não que eu estivesse realmente convencida como ele disse, mas tinha certeza de que ele estava pensando no que estava debaixo do pano. Sentia-me um pouco melhor por não ter sido a única a sentir desejo entre nós dois.
Lilly estava certa, nós estávamos nos segurando tanto depois do “dia extraordinário” que era de se admirar que não tenhamos jogado tudo para o ar.
Eu já tinha causado muito impacto com minha presença, então agora só queria viver uma vida pacata e proveitosa em 1990 antes de voltar para casa.
Um táxi tinha acabado de deixar um homem cheio de malas na porta do hotel, nós entramos nele assim que estava vago. Eu já fora a algumas boates brasileiras e inglesas, mas nunca em uma dos anos 90. Apesar de ele ter optado por usar nightclub, sabia que aqueles lugares ainda eram chamados de disco no atual ano. Passei o caminho todo sem saber o que esperar de uma discoteca.
Quando chegamos e entramos, parecia uma boate normal como as que conhecia. Algumas diferenças aqui e ali, como as roupas que todos usavam que não pareciam nada que estávamos no outono, a animação das pessoas, a música sendo menos “industrializada” e com mais conteúdo do que as eletrônicas de 2019. Em suma, eram músicas dançantes que tocavam no rádio no dia a dia, mas o ambiente e as pessoas nos faziam querer dançar. me puxava pelo pulso para dentro da multidão. Alcançamos o balcão das bebidas, ele pediu cerveja, eu pedi água, porque beber de estômago vazio seria um problema.
Eu nunca imaginei em uma discoteca na vida, sempre o considerei bom demais pra coisas mundanas. Nós, fãs, tendemos a ter esse pensamento, ainda mais por ele ter sido inalcançável para mim, eu o adorei demais para imaginá-lo fazendo atividades normais. Porém, ali estava ele, como um jovem normal de 24 anos bebendo cerveja no meio da discoteca enquanto tocava Village People. A verdade era que, por mais que se parecesse com um deus e fosse reconhecido como tal, era mundano demais.
— Quer dançar? — ele praticamente gritou por cima da música. Assenti. Eu não era uma dançarina muito boa, mas era a sensação de estar ali que estava me puxando para a pista de dança com atrás de mim. Ele se manteve atrás de mim, mas só para me acompanhar, nada de corpos colados. Por mais que todo mundo ali parecesse próximo demais e suados, ele respeitou meu espaço de novo.
Não ser boa dançarina não me impedia de balançar meus quadris no ritmo da música que era outra do Village People. Nem de levantar meus braços para senti-la dominando cada pedacinho do meu ser. Reconheci como sendo “Sex Over The Phone”. Já tive uma governanta viciada em Village People, então conhecia a maioria das músicas deles. Virei a cabeça para ver se ele estava dançando também ou eu estava me envergonhando sentindo essa sensação sozinha. Ele não estava, só me observava com um sorriso — não um julgador, apenas um divertido. Ao invés de sentir vergonha dos movimentos dos meus quadris, interpretei aquele sorriso como se ele precisasse de um incentivo. Dei um passo para trás e grudei finalmente nossos corpos. parecia meio congelado de início pela nossa proximidade, por isso rebolei no ritmo da música para tentar arrancar alguma reação dele e passei a mão pelo cabelo para tirá-lo do caminho. Eu só continuei o que estava fazendo antes, mas sua mão só tocou timidamente minha cintura quando a música já estava acabando e ele se balançou levemente comigo. “Let’s put the X in sex” do KISS começou. A escolha de músicas do DJ que envolvia sexo no título quase me fez rir, se tivesse se mantido quieto. Sua mão livre, que estava na minha cintura, segurou meu cabelo para ter acesso à minha orelha e senti a sua respiração bater na minha pele, me arrepiando.
— Se divertindo? — perguntou baixinho.
— Sim! — exclamei para ele me ouvir. — Nunca fui em uma discoteca antes! — confessei. Tinha um globo acima das nossas cabeças e uma pista de dança iluminada abaixo dos nossos pés que não me deixava esquecer desse fato.
— Que bom que está gostando porque vou ter que te deixar sozinha para pegar mais cerveja. Eu já volto — falou no meu ouvido e depois se afastou. Pensei que ele estava entrando no clima quando tocou minha cintura e nos balançamos juntos. Senti-me frustrada por não ter sido bem-sucedida.
No entanto, continuei dançando porque estava gostando da dopamina que meu corpo produzia. Será que o provoquei demais rebolando daquele jeito? Se provoquei, azar o dele. Ele que tivesse falado algo e não simplesmente saído. As músicas foram passando e ele não voltava. Quando fiz menção de me virar para procurá-lo, um desconhecido apareceu no meio do caminho e sorriu para mim. O homem era incrivelmente parecido com o Orlando Bloom, a não ser pelo cabelo rente à cabeça descolorido que me lembrava um pouco o do Eminem nos anos 2000.
Hola, señorita — falou o homem.
— Desculpa, eu não falo espanhol — gritei em inglês por cima da música.
— Ah, uma gringa. — O jeito que falou a última palavra me deixou com um pouco de raiva. Eu me referia a gringo a todo mundo que falava outro idioma que não era português ou espanhol. Mas ele não sabe que sou brasileira porque estou falando inglês, pensei. É, podia deixá-lo pensando que era uma gringa, afinal, eu era uma forasteira mesmo. — Meu nome é Carlos, e o seu?
Não havia problema em contar meu nome para um desconhecido, não é?
— respondi no seu tom de voz, ele não entendeu e aproximou o ouvido. — Meu nome é ! — exclamei para que escutasse.
— Prazer, . — Ele beijou os dois lados do meu rosto. — Quer dançar comigo?
— Eu adoraria, Carlos, mas já estou acompanhada — falei e ele fez um bico. — Na verdade, eu estava indo procurá-lo exatamente na hora que me abordou.
— Eu já estou te observando tem um tempo e você estava dançando sozinha — retrucou com teimosia.
— É, ele realmente está demorando para retornar, mas disse que ia apenas pegar uma cerveja — rebati, de repente me incomodando em dar satisfação de onde estava meu acompanhante para um desconhecido.
— Estou achando que você está mentindo só para me dispensar. — Sua expressão se transformou e ele não parecia mais o Carlos legal, mas um Carlos determinado a dançar comigo a qualquer custo. Percebi que seus olhos estavam vermelhos e ele exalava um cheiro ruim de vodca barata. Mau sinal.
— Não, não estou mentindo. — Fiquei bem séria. — Mas estou te dispensando porque tenho realmente um acompanhante e porque você está bêbado — falei de cara fechada, sem querer dar brecha para ele.
Sua mão tocou meu quadril e eu lhe dei um tapa pela audácia de me tocar. Quem ele estava pensando que era? Eu acabara de dispensá-lo e ele me tocava?
— O que foi, gata? Não gosta de um carinho? — perguntou com um sorriso de lado nada amigável.
— É claro que não! Eu já te disse que estou acompanhada! — gritei, mas não por causa da música alta, era mais porque estava me excedendo com aquele cara chato e precisava garantir que ele me respeitasse.
— É? E cadê seu acompanhante? — perguntou com sarcasmo. — Já tem mais de meia hora que estou te observando! — ele apontou para o relógio em seu pulso. Conferi discretamente e tinha quarenta minutos que tínhamos chegado ali pelo que vi no painel do táxi antes de sair. Então, infelizmente, nisso Carlos estava certo. havia saído há pelo menos trinta minutos e comecei a desconfiar que tinha me abandonado naquele lugar. — Escuta aqui, vamos dançar só enquanto seu acompanhante não chega. Eu te achei gostosa, então não vou desistir a menos que ele apareça aqui para me provar que estou errado. É questão de orgulho, brotinho.
— Você vai desistir sim! Você tem que respeitar a escolha de uma mulher! — exclamei, me excedendo mais ainda. Não suportava homens idiotas que não aceitavam serem negados.
— Eu estou perdendo a paciência aqui — reclamou, cruzando os braços na defensiva. — Se você não dançar comigo, eu vou te carregar pelos cabelos para fora daqui e te mostrar quem manda.
Não tive nem tempo de responder. Mesmo que tivesse, não sei o que responderia, nunca fui ameaçada na vida por um cara. Sempre me impus e evitei esse tipo de situação.
— Quem manda no quê? — uma voz grossa familiar ecoou atrás de mim. Virei-me para encarar um muito bravo, seus olhos fuzilavam Carlos. — Quem é esse, ?
— Esse é o Carlos, que já está de saída. Não é? — perguntei para o desconhecido que olhava para cima, observando com medo. Carlos devia ser uns cinco centímetros maior que eu, então era bem alto perto dele também.
— É — o homem murmurou. — Desculpa aí, cara. Achei que tua mina estava dando mole sozinha. — Ele coçou a nuca. — Erm... Tchau. — Saiu, se perdendo na multidão.
Notou isso? Ele pediu desculpa para que chegara ali a menos de dois minutos. Não para mim, que ele desacreditou, tocou sem permissão e ameaçou. Era assim ser mulher em 1990. Saí cortando a multidão porque já tinha dado de balada para mim. Eu só queria ir para minha casa em 2019, onde uma mulher tinha mais chances de garantir seus direitos sem correr tanto risco de ser carregada pelos cabelos para fora de uma boate. Aquele século se tornou sufocante de repente, assim como a discoteca. Ao chegar do lado de fora, inspirei o ar fresco da noite para dentro dos meus pulmões necessitados. veio logo atrás.
— Você está bem? O que aquele cara te falou? — perguntou, me fitando curvada, segurando meus próprios joelhos, inspirando e expirando loucamente. Eu estava acostumada a ouvir esse tipo de investida e ousadia desde que cheguei ali, mas nunca fui ameaçada.
— ‘Tá tudo bem. Eu tinha tudo sob controle — menti por medo de que ele falasse que me avisou que teriam tarados na discoteca. Oras, não era culpa da minha roupa, era culpa de Carlos que era sem noção, mas não iria discutir com sobre isso. Não quando ele passou mais de trinta minutos sumido, depois de falar que já voltava. — Onde você estava?
— Sob controle? Ele pareceu estar te ameaçando, ! Imagina se eu não tivesse aparecido.
— Eu já te disse que não sou nenhuma donzela indefesa, ! — exclamei, exaltada de novo. Ajeitei a postura para encará-lo. — Vou repetir minha pergunta: onde você estava depois de me abandonar naquela pista de dança?
Ele piscou, tentando acompanhar a mudança súbita do tópico da conversa.
— Fui pegar uma cerveja — murmurou.
— Ah, mas não foi mesmo, não tinha quase ninguém no bar quando... — um carro passou pela gente, porque estávamos perto do estacionamento, iluminando seu rosto e eu entendi tudo. — Você me largou para ir se agarrar com outra mulher? — praticamente cuspi as palavras.
— O quê? — ele perguntou, perdido e impressionado ao mesmo tempo com minha astúcia. Não era astúcia coisa nenhuma, estava bem ali em suas bochechas.
— Sua cara está toda suja de batom, imbecil. — Enfiei a mão dentro da bolsa enquanto ele estava de boca aberta, procurando palavras. Encontrei o espelhinho que carregava e o entreguei. — Olhe aí!
Ele pegou o espelhinho com a mão trêmula e olhou sua situação. Não sei como não percebi no escuro mesmo, era um batom vermelho e estava espalhado ao redor de sua boca, como o Ronald McDonald. Acho que fiquei tão abalada com a ameaça do Carlos que nem estava me importando muito a ponto de ter ciúmes, mas por ter sido abandonada por trinta minutos e ter acontecido o que aconteceu. Era teimosa o bastante para não admitir ali e em voz alta que tive medo de que, se ele não tivesse aparecido mesmo naquele momento, Carlos provavelmente pudesse ter feito algo de ruim comigo.
, eu posso explicar — falou a frase clássica e eu rolei os olhos.
— Não quero explicações — resmunguei, sem disposição nenhuma para ouvir alguma desculpa esfarrapada envolvendo mulher no momento. — Só quero ir para casa — confessei, me sentindo derrotada e cansada. Não foi nenhuma surpresa quando as lágrimas começaram a descer pelas minhas bochechas. Eu tinha sido ameaçada por um homem em uma discoteca e ele pediu desculpa para o homem que me acompanhava. O que eu estava fazendo mesmo nesse lugar? O homem que eu amava era só meu amigo e vivia aos beijos com outras mulheres a ponto de me abandonar em uma pista de dança por trinta minutos e me deixar à mercê dos tarados que ele mesmo me alertou. Funguei. Ele pareceu perceber que eu estava chorando.
— Não chora, por favor — ele falou como em um lamento. — Vem, vou te levar de volta para o hotel — chamou, me pegando pelos ombros. As lágrimas começaram a aumentar a frequência, embaçando minha visão. Por isso, ele me conduziu para dentro do táxi sem que eu nem visse, só o ouvi dizendo o nome do hotel para o taxista. Senti-o me puxar para perto e não me importei com a proximidade. Apenas continuei a chorar. — Você está certa, eu sou mesmo um imbecil — murmurou.
Ignorei o que ele disse porque não estava com a menor vontade de explicar que não era por causa da mulher. Dessa vez, era sobre mim. Sobre estar aqui em 1990 e não no conforto da minha casa. Chorei contra o tecido da sua camiseta e o material colou em seu peito.
Eu não havia percebido na hora da minha conversa com Carlos, mas senti medo desde que a expressão dele mudou e pude farejar o cheiro de bebida. Eu amava , mas a que custo? A ponto de colocar minha segurança em risco e ser enterrada em uma vala qualquer no meio da floresta? Se algum dos não me procurasse e alertasse as autoridades, eu não tinha pais para irem atrás de mim. Seria esquecida. Era por isso que estava chorando feito um bebê.
achava que era por ele estar aos beijos com outra mulher, mas era sobre ele estar aos beijos com outra mulher enquanto um cara perigoso estava de olho em mim. Eu ainda pensei que me passaria como gringa misteriosa e meu subconsciente achou que poderia ser um sinal para conhecer alguém novo. Só porque falei para Lilly que gostava muito de para pensar em outros caras no mesmo dia, deveria ser algum tipo de castigo.
Andei até meu quarto a passos lentos, desanimada com a vida. me observava, eu sabia, podia sentir seu olhar de onde estava. Porém, ainda não estava pronta para conversar. Não naquele momento. Precisava renovar toda a minha motivação para ficar ali com ele e seria uma longa noite pela frente. Ele pareceu sem saber o que fazer quando paramos diante das portas dos nossos respectivos quartos. No entanto, podia afirmar que ele não queria me deixar sozinha de novo, nem que fosse na segurança do meu próprio quarto.
— Eu vou ficar bem — garanti para que ele pelo menos dormisse essa noite. — Amanhã a gente se encontra para o café da manhã.
Ele pareceu hesitar, mas não me impediu de destrancar e entrar no quarto. Lembrei que eu deveria ter pelo menos me forçado a sorrir, duvidava que ele fosse comprar um sorriso depois de me ver debulhando em lágrimas pela primeira vez. Eu costumava chorar muito por sua causa, só que ele nunca viu ou ouviu. Bem, eu achava. Enfim, o seu espanto era justificável. Quando chorava mesmo, eu ficava muito vermelha, parecendo estar prestes a entrar em ebulição. Minha mãe toda vez que me via chorando costumava dizer que ficava horrível.
Arranquei aquela calça ridícula assim que fiquei sozinha. Sei que não foi culpa dela que fui assediada, nem culpa dele por ter me alertado usando-a como pretexto, foi só uma infeliz coincidência que as duas coisas tivessem acontecido no mesmo dia. Vesti meu pijama natalino vermelho que vim parar ali, na tentativa de me sentir o mais em casa possível. Eu sempre recorria àquele pijama quando precisava me sentir quentinha e confortável, como um pedaço da minha casa em 2019 ali no século 20.
Não trouxera minhas pantufas de rena para a viagem, mas elas costumavam me acompanhar sempre em casa. Eu sempre deixava as minhas pantufas no pé da cama, até mesmo antes de sair de casa, era uma mania que adquiri quando criança. Pequenos detalhes assim eram o que me traziam de volta ao meu eu antigo e me ajudavam a não esquecer de quem eu era antes de chegar ali. Foi por isso que bati o pé com Carlos, o meu eu de 1990 sabia que não valia a pena confrontar assediadores ali por ser perigoso, mas o meu eu de 2019 tomou as rédeas e reagiu quando fui tocada. realmente me salvou, porque acho que Carlos iria até o fim depois que me impus.
Não teve um dia que desejei com tanto afinco voltar para casa como desejei aquela noite. Só que a viagem no tempo não funcionava assim e eu nem sei se um dia voltaria para casa. Quer dizer, eu esperava muito que sim. No momento, preferia me contentar com a ideia de que tinha que ficar ali por causa da minha missão de salvá-lo. Não sabia como fazer aquilo ainda, não podia esperar até 2004 na sua morte, mas podia esperar pelo mais um pouco. Eu aguentava, não é? Precisava aguentar por ele. A pergunta mais importante era: será que eu conseguiria viver sem na minha vida de novo?
Realmente não sabia. Apesar de saber tanto sobre o futuro, tinha a impressão de que não sabia de nada sobre o presente.

***


— Bom dia — murmurei ao vê-lo se aproximar na área do café da manhã. Reservei o dia só para entrevistas por telefone, então ele estava usando chinelos, uma calça jeans de lavagem clara, uma camiseta de manga longa do Led Zeppelin e óculos escuros. Não sabia como começar a conversar depois da noite anterior, então optei por questionar os óculos. — E esses óculos, superstar? — brinquei, achando graça.
— Bom dia. Os óculos são porque não dormi nada, preocupado com você. — Puxou a cadeira ao meu lado e se sentou. Meu sensor de proximidade disparou. Engraçado que, especificamente ontem, esse sensor tirou o dia de folga enquanto eu me colava nele para dançar ou chorava em seu peito. — Me desculpa por ter te deixado sozinha. Eu fui pegar cerveja, uma mulher deu em cima de mim descaradamente e ela me mostrou que conseguia dar um nó no cabo da cereja usando a língua... — ele despejou tudo em cima de mim.
Fiz uma careta.
— Para — pedi com a mão também, sentindo minha cabeça latejar com a mera imagem que meu cérebro formou. — Ainda não preciso de explicações.
— Fui um idiota, não é? — ele mordeu o lábio inferior e começou a mexer na revista que eu lia em cima da mesa.
— Foi. Porém, não foi por sua causa que chorei ontem, apesar de ter começado depois que percebi o batom no seu rosto. Você errou em ter me abandonado lá, sendo que me convidou para o lugar e para dançar. Não custava ter tirado alguns segundos para avisar que demoraria um pouco mais porque encontrou uma garota no caminho, eu sei que você tem um fraco por mulheres e entenderia. — Fechei a revista antes que ele acabasse rasgando o papel. Ele se concentrou em beber o café da minha xícara, mas ainda prestava atenção. — Eu chorei porque aquele tal de Carlos me assediou, ele me tocou e ameaçou porque não acreditava que tinha um acompanhante de verdade. — Vi seus olhos arregalados através das lentes dos óculos e aos poucos sua expressão se contorceu em fúria enquanto ele engolia. — Tentei me impor, mas ele disse que me carregaria para fora pelos cabelos e mostraria quem mandava, caso eu não dançasse com ele. Foi quando você chegou — suspirei e olhei para o teto para evitar o choro enquanto ele pousava a xícara de volta no pires. — O que mais me indigna é que ele duvidou de que você era real, me tocou, me ameaçou e, ainda assim, pediu desculpa para você por achar que eu estava sozinha. — Praticamente engoli o choro antes de concluir. — Me senti humilhada, . Nunca me ameaçaram antes.
Ele suspirou do meu lado e seus dedos entrelaçaram os meus. Não dei a devida atenção por estar concentrando todo meu esforço em não chorar.
— Posso ir atrás de todos os homens que se chamam Carlos em Madri... Não, na Espanha... e, quando o encontrar, acabo com aquele filho da puta — falou, me fazendo sorrir ao imaginá-lo batendo porta por porta de todos os milhões de Carlos da lista telefônica. Virei o rosto para fitar o seu. Quando viu o meu sorriso, ele acabou por sorrir também. — É sério. Eu o faria pedir desculpas de joelhos ou pendurado pelos pés na janela. Qualquer coisa para te ver feliz de novo.
— Poupe o seu precioso tempo, eu estou bem — acariciei seu dedinho com meu dedão, inebriada demais pela sua proximidade para me dar conta do que estava fazendo. — Agradeço a oferta, no entanto. É muito fofo da sua parte.
— Você considera fofo pendurar um homem pelos pés na janela enquanto ele te pede desculpas desesperadas? — Virou minha mão para unir palma com palma e entrelaçou nossos dedos de novo.
— Se for você fazendo isso com um assediador, sim. Ainda mais porque ele já ficou apavorado só em te ver — eu ri e ele me acompanhou. — Mas eu estava falando da sua oferta. Não precisa bater ou pendurar alguém para me fazer feliz, você já me fez sorrir e isso significa muito para mim depois de ontem.
Ele me lançou um sorriso orgulhoso.
— Me desculpa por ter sido um babaca — reiterou. — Foi minha culpa a noite ter sido estragada, era para ser divertida, você estava até dançando. — Ele parecia tão arrependido e verdadeiro.
— Está tudo bem, — utilizei seu nome no automático. Depois da conversa daquele dia, percebi que, desde quando ele me pediu para chamá-lo de na casa de seu pai, lentamente ele estava passando a se tornar mais e menos . Não que eu fosse chamá-lo só de , ainda não. Preferia guardar o nome para determinadas situações ou quando estivesse tão absorta, como naquele momento, para utilizar. Meu subconsciente gritou que essa era uma prova de que nossa intimidade estava crescendo. — Só quero esquecer essa noite para poder seguir em frente. Por isso... Que tal você me levar para jantar hoje?
— Jantar jantar? — perguntou. Ele conseguiu fazer uma palavra simples como “jantar” soar indecente só para me irritar. Não estava irritada, no entanto. Apreciava seu gesto para tentar me ajudar a começar a esquecer o que aconteceu, mudando o clima de pena que pairava entre nós para divertido.
— Jantar em um restaurante, nada que você esteja insinuando aí — censurei-o enquanto sorria de lado. Não sabia de onde havia tirado a ideia de jantarmos, provavelmente surgiu junto com minha vontade de superar.
Se ficaria em 1990 tendo que aguentar todo o tipo de adrenalina que não sofri em 25 anos, queria ao menos ficar mais próxima do meu motivo para estar ali — a pessoa à minha frente que estava bebendo meu café de novo com um sorrisinho esperto.
— Não estou insinuando nada. Só apenas deixando claro nosso mal-entendido ontem, que você entendeu que sairíamos para jantar quando eu disse na hora do jantar — respondeu ainda com o sorriso e bebeu mais um pouco do café. Eu tinha acabado de pegar aquela xícara de café, antes que aparecesse, mas como não era muito fã de cafeína e apenas a peguei para despertar, estava cheia.
— Sei — lancei-o um olhar atravessado. — De qualquer forma, sair para jantar na hora do jantar.
— Parece bom para mim — ele deu de ombros. — No horário de sempre?
— Sim.
Ele concordou com a cabeça e continuou bebendo o meu café. Após subirmos, ele entrou em seu quarto para se preparar para a primeira entrevista por telefone, já eu, passei no meu quarto para pegar minha agenda com os compromissos dele. Antes de passar totalmente pela porta que ligava nossos quartos, eu o ouvi no telefone. Não estava na hora da entrevista ainda, por isso me encostei na parede de modo a não ser vista para observar feito uma fofoqueira. Eu sabia que ligações eram pessoais, mas não resisti. Estava chegando logo na hora e não queria atrapalhá-lo. Aparentemente, era uma mulher pelo seu tom doce de falar.
— Laura? É o , da discoteca ontem... É sobre exatamente isso que quero falar, não vou poder sair com você hoje à noite... Não, eu já tinha um compromisso com uma amiga hoje e acabei me esquecendo antes de marcar contigo... Parto para a Alemanha amanhã de manhã... Bom, se você um dia aparecer em Estocolmo, me avise. Fiquei interessado em descobrir melhor e com mais calma como esse truque da cereja funciona... Tudo bem, a gente se vê. Beijo, princesa.
Meu sorriso bobo me entregava. Não me incomodei muito ontem com o batom em seu rosto devido às circunstâncias, ao contrário do que foi com a Natalia e a tal Abigail. Porém, parte de mim, a inconsciente, ficou brava e enciumada, sim. Eu soube disso só ali, porque concluí que tinha o perdoado por ter beijado outra garota no mesmo evento que tinha me levado. Ele desmarcou com outra garota que devia ser muito bonita e habilidosa com a língua para sair comigo.
Ele escolheu a mim.


Continua...



Nota da autora: Tudo em paz e de volta nos eixos em 1990... até rolar esse episódio com a . Essa cena foi uma das mais incômodas (se não A mais) de escrever por ter empatia do desespero dela enquanto mulher. Não estava na história original, mas eu acrescentei em uma das vezes que parei para reler. Eu pretendia deixar os podres do século 20 mais de lado e só mencionar por cima, porque ORT20C era para ser totalmente fofinha, mas assim não seria os anos 90 onde algo assim era recorrente e nem uma história de viagem no tempo. A viagem no tempo a levou até ele, porém desde que pisou em 1990, a segurança que tinha se esvaiu e só agora ela percebeu que estava totalmente por conta própria, sem pai e mãe para procurá-la, caso algo de trágico venha a acontecer. Deve ser uma sensação péssima! mostrou que não é nenhum santo e espero que vocês não se decepcionem totalmente com ele, nunca foi segredo que ele saía com outras mulheres, até porque a volta e meia traz à tona o traço mulherengo dele e suas desconfianças. É importante sempre notar que eles não têm compromisso algum. Mas, na minha humilde opinião de autora, acho que ele vacilou feio em deixar a sozinha para ficar aos beijos depois de convidá-la para sair e eu não teria deixado passar tão fácil. Até porque, por menos, ela morre de ciúmes da Natalia. Só que a nossa mocinha estava mais atribulada com o que aconteceu de fato do que com o que ele estava fazendo (foi tão avassalador que nem coube muito espaço para ciúmes ou colocar culpa nele, coitada). É isso, perdão pela nota gigante, mas só queria deixar claro que essa é uma história que os personagens e o ambiente têm defeitos, e estou falando de tudo: dos ciúmes extremos da , do fato que o é mulherengo e as vezes do lado feio do século 20. Beijinhos.





Nota da beta: Achei suas alterações muito pertinentes, contribuiu com o sentimento de vida real que a história já passa, além de casar super bem com a questão da viagem do tempo. A tem todo o direito de ficar magoada e o que não me invente mais nada agora!


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