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Última atualização: 17/05/2024



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Capítulo 17 - You're All That I Want

Alemanha, dois dias depois.

— Nunca vi tantos rostos na minha vida como estou vendo essas semanas — confessei, depois de fechar mais um encontro com fãs.
— Estou exausto — admitiu enquanto nos organizávamos do lado de fora de outro auditório que aluguei. — Eu gosto muito do meu trabalho, mas tem dias que não durmo a ponto de descansar.
— Está compondo ainda? — perguntei, já imaginando que o motivo da sua falta de sono reparador deveria ter vindo de processo criativo também.
— Sim, estou tendo bastante inspiração ultimamente. O que é bem estranho, mas já estou no ramo há tempo o suficiente para saber que não dá para explicar totalmente de onde vem a inspiração. — Ele pegou uma mala de rodinhas cheia de material.
Arrumei a mochila nas costas. Como não sou artista, preferi não comentar nada.
— Vai voltar para o hotel? — perguntei, me preparando para chamar um táxi.
Ele colocou um cigarro entre os lábios antes de aproximar o isqueiro. vinha diminuído bastante o consumo, o que levava a acreditar que os boatos estavam certos e realmente ele pararia de vez em 1991. O cigarro era mais um agravante para a doença, então estava orgulhosa dele.
— Tenho um amigo para encontrar. — Ele tragou. — Quer vir comigo? — Soltou a fumaça de uma só vez virando o rosto para não ir diretamente em minha cara.
Hesitei por um momento, ele pareceu perceber. Não queria me meter a fundo nas amizades de , parecia que aquilo era o que lhe restava de privacidade desde que entrei em sua vida.
— Ele não vai achar ruim? — perguntei.
— Claro que não — passou o braço pelos meus ombros e franziu a testa como se eu estivesse dizendo futilidades.
Também já perdi a conta de quantos amigos do conheci por conveniência nesse tempo que trabalhava para ele. Muitos músicos em vários países, soube que ele mantinha o contato em promos assim, também em viagens casuais para se encontrar com eles. No táxi, ele me disse que esse era mais um desses amigos, ele fazia parte de uma banda francesa chamada Manifest.
Berlim era minha segunda cidade preferida no mundo, perdendo só para Estocolmo. Tudo ali era cheio de mágica para mim, foi a minha primeira viagem sozinha para o exterior. Observar a paisagem passando pela janela do táxi me trazia um sentimento muito bom, mas também trazia saudades da época com meus pais. Acho que devia estar me sentindo assim como as pessoas se sentiam quando lembravam algo de pais que já se foram. No meu caso, meus pais estavam vivíssimos em algum lugar e nem pensavam em me ter ainda. A esperança de vê-los de novo estava se esvaindo a cada dia que ficava ali.
Eu não deveria estar sofrendo tanto assim pelos meus pais, era acostumada a ficar sem vê-los por meses por conta da faculdade e, antes disso, nós não nos víamos muito pela agenda atribulada. Nunca paravam em casa. Tive que aprender a andar com minhas próprias pernas cedo, então juntei minha mesada e vim para cá na minha primeira viagem sozinha. Minha mãe ficou furiosa, me ligou assim que o avião pousou para brigar comigo por ter saído sozinha do Brasil. Eu tinha 18 anos e sempre fui teimosa, então, quando ela disse “não”, interpretei como um convite.
Lembro que, quando vim, arranjar um namorado era meu propósito de vida. Nunca fui de namorar, mas nessa idade eu ainda tinha força de vontade para continuar insistindo em alguém palpável. Minhas amigas e meus pais me pressionavam para aparecer com uma pessoa fixa, então julguei que pelo menos poderia escolher alguém fora de São Paulo ou do Brasil, uma escolha que me pertencesse por inteiro. Eu também queria um homem daqui só para poder acordar todos os dias e me lembrar daquele país que me deu boas memórias e liberdade só de olhá-lo. É poético, eu sei. Eu tendia a ser mais cheia de propósitos quando mais nova.
Naquele momento, havia um sueco do outro lado do carro, de olho na paisagem, que se infiltrou na minha vida e mudou tudo que acredito.
A vida era mesmo engraçada, em um dia você está apaixonada e frustrada por alguém que já morreu, no outro dia você acorda em 1990. Simples assim. Para ser bem sincera, às vezes eu me perguntava como eu vinha me adaptando ao século 20 e a viagem no tempo tão majestosamente bem, como se eu tivesse tido a oportunidade de me preparar — o que, com certeza, não foi o caso. Você não se olha no espelho e pensa “talvez eu vá ser uma maldita sortuda que vai viajar no tempo”, por mais que você goste muito de consumir conteúdo sobre esse tema, nunca passa pela sua cabeça que pode acontecer contigo. É apenas ficção. Não vou mentir dizendo que nunca quis, inconscientemente pensei que seria legal se fosse realidade, só para variar. Porém, isso é o tipo de coisa que a gente sabe que não acontece, quem dirá com uma garota qualquer.
Bem, voltando ao carro. Era a segunda vez que visitava a cidade, os meus planos de 18 anos não tinham dado certo, não tinha um nativo do meu lado com uma aliança no dedo igual a minha, mas estava aqui dentro do veículo com o homem que viajei quase trinta anos para encontrar. E, bom, apesar das coisas não terem dado certo romanticamente para a gente, nós estávamos nos dando muito bem e eu não me lembrava de estar mais rendida por alguém.
A cidade passando pela janela do táxi ficava ainda mais bonita por isso, porque estava enxergando com olhos apaixonados. Lisboa, Londres e Madri eram belas? Sim, mas Berlim tinha meu coração desde a primeira vez que botei meus pés fora do avião.
Nada jamais vai se comparar à Estocolmo no meu coração, é claro. Além de linda, surpreendente e cheia de pessoas bonitas como elfos, era a minha cidade preferida por me acolher como nunca me senti acolhida em Birmingham — que vinha sendo minha casa desde que comecei a faculdade. Acredito que boa parte disso seja por causa dos e de Solveig. Berlim era linda, mas não tinha meu peludo e nem minha família de escandinavos favoritos. E eu sentia falta de cada elemento que compunha aquele lugar maravilhoso.
Em falar em Solveig, Lilly e Andreas tinham ficado por conta de cuidar do cachorro. me disse que Solveig era acostumado a ficar na casa dos devido à sua frequência de viagens, também contou que quando ele ficava fora menos tempo, Lilly e Andreas acabavam se mudando temporariamente para casa dele para olhar o cão. Falei com Lilly aquele dia e acabei me esquecendo de perguntar sobre Solveig, o que significava que logo mais teria que entrar no looping de bipar e esperar sua ligação de novo.
Desde que dei uma lição em , não tivemos mais joguinhos, mas algumas cantadas sutis ainda apareciam de vez em quando. Ele estava mais próximo de mim e cuidadoso depois da noite do assédio, estava calculando todos os seus movimentos para não ser o motivo de me fazer chorar copiosamente de novo. Talvez ele concordasse com mamãe sobre eu ficar horrível quando choro e por isso estava temoroso.
Ultimamente, vinha pensando em como tudo que pensava me levava até ele. E isso estava me irritando profundamente. tinha se tornado minha vida desde antes de chegar aqui, mas agora tudo que eu fazia era de algum modo ligado a ele. De certa forma, sentia que tinha perdido minha essência, não sabia mais separar a -que-ama-o- e a eu. Isso me incomodava, me fazia notar que precisava de um pouco de espaço, viver minha própria vida e por isso estava ansiosa para me mudar para o meu próprio apartamento, pagar minhas próprias contas, ser dona do meu próprio nariz. Também precisava começar a criar raízes aqui. Dava para perceber como estava apegada a todos aqueles que me acolheram no século 20 ao decorrer daqueles dias, então, se eu continuaria ali, nada mais justo que levar a vida como indicava meus documentos.
Estava ali no meu passaporte: Luz , nascida em 29 de dezembro de 1964, em São Paulo, Brasil.
Caramba, eu era mais velha que meus pais!
Despertei do meu transe quando ouvi falando em alemão com o taxista. Eu nunca ia me acostumar com tudo que esse homem sabe fazer. Por mais que não fosse a primeira vez que presenciava, não fazia ideia de que ele falava a língua e descobrir foi um tanto quanto surpreendente. Nota mental: perguntar como e quando ele aprendeu a falar essa terceira língua. Só mais uma curiosidade no meio de milhões que colecionava sobre ele e as bilhões que ainda estavam esperando para serem descobertas.
Descemos perto de onde tinham derrubado o muro de Berlim no ano anterior, um dos símbolos da Guerra Fria. Tinham várias pessoas ali tirando foto no local e precisamos analisar seus rostos para reconhecer o amigo dele. O que eu estava fazendo procurando uma pessoa que nunca vi? Também não sabia, mas na minha cabeça fez sentido, porque minha mente produziu um rosto. Logo ele abriu um sorriso ao avistar um homem que não era nada como imaginei, me pegou pelo pulso e fomos ao seu encontro.
— Pierre, cara! — falou enquanto cumprimentava o amigo com aquele cumprimento típico de homem que não mudava conforme as décadas passavam. Esse cumprimento deve ser primitivo, os homens da caverna deviam utilizá-lo.
— E aí, ! — o outro respondeu enquanto sorria. Ele tinha um cabelo ondulado bem bonito e castanho bem escuro. Vestia uma jaqueta preta com o zíper fechado e um colete jeans por cima, uma bandana preta em volta do pescoço e uma calça jeans azul que combinava com o colete. Achei seu bigode engraçado.
Quando eles se soltaram, o tal Pierre olhou para mim e arqueou uma sobrancelha.
— E você é a namorada? — perguntou.
Achei meio mal-educado não ter me dado um “oi” antes de perguntar esse tipo de coisa, mas devia ser exagero meu. Dei um sorriso simpático sem mostrar os dentes.
. E, na verdade, eu sou... — minha boca se fechou depois que olhei para que nos observava normalmente, lembrei que não poderia falar que era assistente dele porque não estávamos trabalhando e ele me odiaria por trazer isso à tona. Já vinha se tornando um hábito me apresentar para as pessoas como assistente, visto que estávamos trabalhando demais nos últimos dias. — Amiga do , também trabalho com ele.
Acrescentar que trabalho com ele não era nada que fugisse dos limites, também era para mostrar que existiam limites. Muitas vezes nós escutamos os casinhos das pessoas se denominando “amigos”, os amados amigos coloridos que falava, então acrescentar que trabalhávamos juntos talvez corroborasse que éramos apenas bons amigos.
— Ah! Prazer, sou Pierre Beaurepaire. — Ele beijou minhas duas bochechas. Gostei dele, era intimista, ao contrário de muitos europeus que vinha conhecendo ao longo da jornada. E não exageradamente que nem Sebastian. A mera lembrança do amigo de Börje beijando minha mão com aquele olhar cheio de intenções ainda me causava arrepios.
— Ele faz parte do Manifest, como te disse no caminho. Esses bastardos franceses fazem uma barulheira que chamam de música — brincou, o humor dele se alterava e ficava meio ácido dependendo da companhia, me deixando fascinada. Ele usava dessa acidez comigo para outras coisas...
Usava.
Reprimi um suspiro enquanto sorria para os dois.
Eu gostava dos joguinhos? Para ser sincera, sim. Sentia falta? Para caralho. Só podia me odiar naquele momento. Na hora, pareceu boa ideia, mas jamais imaginei que ele levaria tão a sério.
Enfim, isso não vinha ao caso, voltando de novo ao que acontecia na minha presença.
— Quando você vai nos ver tocar? Sinto sua falta nos shows e nas festas do pessoal — disse Pierre. — Não é porque mora na porra da Suécia que vai se esconder de nós aqui de baixo.
— Estou trabalhando bastante no novo álbum, compondo e tal. Além de estarmos trabalhando com a promo do disco, também estou com umas ideias para fazer uns videoclipes de algumas músicas do disco atual. Isso está me deixando pirado.
— Pois a próxima reunião vai ser em Estocolmo, vou carregar todo mundo para lá e te arrancar da caverna que você vive. A vai ajudar, não é?
Ele olhou para mim, sorrindo.
— Claro — sorri também e dei de ombros. Ele tinha um sorriso contagiante.
soltou uma risadinha e encarou meu sorriso por uns três segundos extras, que foi o suficiente para me fazer estremecer sob seu olhar.
— E a Natalia? Ela sumiu das festas também — Pierre nos arrancou do nosso momento a força.
Aconteceu feito cena de filme. O sorriso se desmanchou em câmera lenta e fechei a cara ao ouvir o nome dela casualmente. A imaturidade tomando conta de mim de novo. Eu ainda vinha falando com a empresa que Natalia trabalhava nos últimos dois dias, estava acostumada com sua voz e seu nome. Porém, tive a impressão de que ele perguntou como se desse a entender que eles eram algo a mais, como se ele soubesse sempre onde ela estava, assim como me perguntou se eu era a namorada. Sabia que era coisa da minha cabeça, mas acabou por me deixar muito brava.
— Isso você vai ter que perguntar para ela. Encontrei-a em Portugal e parecia estar trabalhando muito, como sempre.
Pierre me olhava de canto. Ele era uma daquelas pessoas que mesmo sérias, tinham o sorriso no rosto. Apesar de muito simpático, não gostei nada de como me observava no meu momento imaturo. Só queria me esconder para não ser julgada como mimada e ciumenta.
Natalia era uma mulher imponente. Tenho que admitir: ela era foda. Era muito bonita, também era bem-sucedida e simpática com todo mundo que não fosse eu. Ela tinha um chamativo, quando entrava em algum lugar, atraía todos os olhares e sabia manter uma conversa que te fazia ficar entretido por horas a fio. Comigo, ela não era nada assim, mas não me impedia de admitir suas qualidades. Eu não era cínica a ponto de fazer isso. Porém, tinha que admitir que todo o conjunto somado à minha desconfiança de algo entre eles, culminava no meu ciúme doentio. Eu sabia que as qualidades dela não afetavam as minhas e que provavelmente estava louca, imaginando que existia relacionamento ali, mas era mais forte que eu, ok?
Soltei um suspiro. Eu andava bem suspiradora nesses meses.
Meu pager tocou na cintura da minha calça.
— Licença, é importante — falei, dando as costas para eles e andando rápido até um telefone público bem perto de onde os dois conversavam. Eu tinha me livrado de conversar com eles sobre ela. Não que eu fosse falar algo, o meu sentimento por ela não tinha mudado, apesar de que estávamos trabalhando bastante juntas como duas profissionais. Trabalho era trabalho. Tolerar alguém que estava determinado a querer me mandar de volta com a força do pensamento para onde vim era outra coisa.
E, infelizmente para ela, eu não iria a lugar algum, por enquanto.
Conversei com Börje no telefone público, olhando o movimento e enrolando o fio do fone no dedo. Ele falava sobre umas burocracias que eu teria que passar para o filho dele assinar e que ia enviar por fax para o hotel. Fiquei de dar o número do fax assim que chegasse ao hotel. Não sabia se iria lembrar, porque minha agenda ficou no táxi, mas pagamos a mais para o taxista entregar tudo a um funcionário do hotel que estava nos ajudando.
Eu estava voltando para perto deles quando a conversa me chamou atenção. Pelo teor, nenhum dos dois me viu aproximar, por isso desacelerei os passos. Não sou boba de chegar e perder o assunto. Além de suspiradora, também estava bastante fofoqueira. Deveria ser a convivência com Lilly, quando juntava nós duas, ninguém tinha chance.
— Não que eu tenha algo a ver, mas tua garota parece não gostar muito que fale sobre a Natalia — observou Pierre.
Trinquei o maxilar. Eu não sabia o que diabos deu a entender para ele que eu era namorada do , mesmo eu tendo dito que não era.
— É, as duas não se bicam. A não fala sobre isso, talvez ela ache que não sei, mas eu soube desde a primeira vez que elas se encontraram. — Pigarreou. Ele nem ao menos negou que tínhamos algo, isso me deixou irritada, mas continuei escutando. — A Natalia a atiça demais. Dá para ver as faíscas quando as duas estão perto. Já falei várias vezes que não é legal estar no meio dessa rixa, mas a Natalia continua.
— Pobre , está no meio de duas mulheres lindas brigando por causa dele. — Pude sentir daqui o sarcasmo pingando da sua voz e eu rolei os olhos. Realmente, não é e nunca será a vítima nessa história. — Você continua um canalha, não é? Aposto que essa competição não começou do nada. Conhecendo você, tenho certeza de que vem alimentando as esperanças das duas e de mais meia dúzia de mulheres. E a parece ser uma menina muito boa, não merece ficar no meio dessa coisa que você e a Natalia têm — Pierre respondeu em um tom pesaroso.
Coisa que você e a Natalia têm?
— Não sou tão filho da puta assim, cara. No segundo que a se envolvesse, seria o fim.
Quase que eu dei meia volta e fugi para o hotel para pensar nessa fala sozinha. Porém, acabou me vendo pelos ombros do amigo e eu tive que fingir normalidade. Meus olhos, que queriam se arregalar, tiveram que fingir casualidade, minhas mãos, que queriam se fechar em forma de soco, foram para o bolso de trás da calça jeans. Não sei se eu aparentava ter escutado algo importante porque me sentia assim, mas nenhum dos dois pareceu perceber.
A paranoia teve que ser engolida por um buraco negro, mas eu tinha certeza de que na primeira oportunidade me mataria de pensar nisso.
Cheguei perto, Pierre segurava uma máquina fotográfica e me entregou para tirar foto dos dois. Quando coloquei meu olho no lugar que ficava o vidro para tentar enquadrar a foto, se abaixou para ficar na altura de Pierre e me lembrei imediatamente dela. Eu tinha tirado aquela foto? Lembro que ele tinha postado no Twitter, eu até retweetei. Seria mais uma coincidência para conta?
Pierre pediu para tirar uma foto de nós dois, se aproximou de mim e passou o braço pelas minhas costas, pousando a mão na minha cintura e provocando uma queimação na pele daquele local. Ele sorriu e eu tive que forçar um sorriso amarelo também, para não ficar feio. Na hora que Pierre disse que ia tirar, o vento soprou fazendo uma mecha do cabelo de ricochetear minha cara e me arrancando uma risada sincera — o que o fez rir também.
Infelizmente, por se tratar de uma câmera analógica, eu não saberia do resultado até ser revelado. Porém, acreditava que tenha ficado uma foto muito esquisita e engraçada.
Eles me convidaram para ir em um pub. Concordei, afinal eu não tinha a menor chance de voltar para o hotel sem parecer uma chata. Frequentar bares e pubs nunca foi do meu feitio, mas aparentemente os amigos do eram pessoas que não sabiam sair sem beber. Não só eles, sabia que essa geração era muito assim porque meus pais e seus amigos também tinham esse costume. , que já tinha largado quase totalmente esse hábito, frequentava esses locais com os amigos para se divertir e sair com uma mulher a tiracolo.
Nos meses que a gente parou de se falar, ele saía com frequência para esse tipo de compromisso. Sabia perfeitamente que ele só bebia socialmente, mas às vezes eu ia lavar as roupas quando ele demorava a lavar e roubava alguma peça da noitada para cheirar, só para garantir que ele não tinha se embebedado que nem aquele dia na casa da família dele. Eu juro. Falando assim, parecia que eu era uma maníaca, mas eu me preocupava que a versão alcoólatra tomasse conta de novo que nem nos anos 80, eu tinha lido muito sobre como foi ruim para ele gravar os primeiros álbuns e não lembrar de nada. Fora os olhares cansados e tristes que Lilly e Andreas me lançaram aquele dia. Então é só por preocupação. Preferia acreditar que não era para me martirizar toda vez que sentia cheiro de perfumes com notas bem femininas e tentava colocar na minha cabeça de uma vez por todas que ele não era meu. Afinal, eu precisava dormir de noite e isso não me ajudaria em nada. Eu não queria parecer uma maníaca e fazer isso conscientemente era pior ainda.
Nós fomos andando até o tal pub porque era perto, eu estava um pouco ansiosa por causa da conversa e seu significado, queria até roer minhas unhas que já estavam roídas desde a noite do The Cave em Portugal. Só que não tão ansiosa quanto deveria estar porque estava me segurando para não pensar nisso enquanto os dois estavam perto de mim. Uma fila se formava na entrada, eles dois conversavam animadamente enquanto eu tentava prestar atenção, mas era o frio que passou a dominar meus pensamentos e todo meu corpo. O outono europeu era um pouco cruel, a gente se acostumava com o calor para subitamente vir esse vento nos castigar. Depois de um tempo tentando ignorar o frio, comecei inevitavelmente a bater os dentes. Que vergonha, eu estava de cardigã, blusa de manga longa e mesmo assim não era mais o suficiente.
percebeu na mesma hora. Ele tirou a jaqueta de couro com spikes para me cobrir. Nem tentei recusar, achei que a qualquer momento viraria picolé. Vesti a peça e passou os dois braços pelos meus ombros, me abraçando forte por trás e apoiando o queixo no topo da minha cabeça. A frente do seu corpo perfeitamente moldada às minhas costas fez meu coração dar um pulo. Imediatamente olhei para o francês que parecia alheio à nossa pequena demonstração de afeto. Estava ciente que minha intimidade com era diferenciada por termos um passado não muito distante, mas aquilo podia soar estranho para qualquer espectador desavisado. Tenho certeza de que isso contou mais uns dez pontos para a opinião dele de ser a “garota” do meu chefe. Só esperava que ele não saísse falando por aí, porque eu não queria ficar com fama de namorada dele e acabar o atrapalhando em seus lances.
Ah, quer saber? Que se dane. O abraço estava quentinho e eu não dispensaria por nada, nem por futuros boatos. Pode falar por aí, se não quisesse negar, problema dele. Até parece que pararia de chover mulheres ao redor dele porque supostamente ele estava ficando com alguém. Já eu queria permanecer solteira mesmo depois do episódio horrendo em Madri, então não havia problema que a fofoca se sustentasse. Além do mais, se chegasse aos ouvidos da Natalia, talvez eu me divertisse um pouco que nem ela faz às minhas custas.
Recuperando as funções dos meus membros de volta, me soltou para que a gente pudesse entrar no lugar. Lá dentro era quente e uma música alemã tradicional tocava animada. Sentamo-nos perto do bar, Pierre e ficaram de frente um para o outro — o que me deixou no meio deles. estava com uma camiseta de botões daquelas bem revestidas de lenhador, abotoada até o meio do peito e por baixo outra camiseta preta com uma estampa de uma banda que ele deve ter ganhado.
Eu adorava cerveja alemã, por isso pedi uma caneca gigante. Pierre me acompanhou. Já o outro pediu apenas Coca-Cola. Uma moça ruiva parou em nossa mesa, que logo descobri se tratar da namorada de Pierre, e ele imediatamente se levantou para buscar uma cadeira para ela enquanto nós a cumprimentávamos.
Céline era uma moça legal, seu estilo era incrível, mas eu não estava muito para papo e sim para beber. Prestei atenção em pouca coisa que falaram e participei menos ainda, eles pareceram perceber que eu não queria falar nada, por ora. Eu deveria estar soando antipática, mas aquele assunto da Natalia de antes pesou meu humor de uma forma que não queria. Era para ser divertido, mas estava de mau-humor, por mais que estivesse tentando esquecer naquele momento.
Enquanto isso, entornei várias canecas. Como dizem: beber para esquecer. Só conseguia pensar que estava cometendo o mesmo erro de quando levei ... Opa, , para a cama. Mesmo assim, bebi para lembrar desse momento e não das minhas paranoias. Percebi, uma hora, que ele me olhava, preocupado. Eu não estava nem aí. Quando cheguei ao ápice da embriaguez, comecei a participar ativamente da conversa e fazer piadas que escutei na faculdade. Eles riam de mim. Pierre e Céline me chamavam de “engraçada” em francês e eu gargalhava escandalosamente com o som da palavra.
Eu estava tão alta que começou a fumar um cigarro e eu senti uma vontade fodida de fumar também. Por isso, arranquei o cigarro dos lábios dele.
, você nem fuma — ele sorriu, todo paciente e tentou pegar de volta. — Me dê isso aqui. — Desviei, jogando o tronco para trás, e ele bufou com diversão. — Me dê isso, baby. Você não fuma e vai desperdiçar meu cigarro.
— Cala a boca ou eu calo com um beijo — respondi, sem perceber o que estava falando, e segurei o cigarro possessivamente.
Ele arqueou as duas sobrancelhas em surpresa. Os outros dois riram, como estavam fazendo desde antes. Em algum lugar dessa esfera que chamava de cabeça, eu sabia que estava fazendo bosta e que ia resultar em uma bosta enorme no final. Mas, é claro, eu estava bêbada demais para tentar me parar.
Só podia torcer para não entregar os pontos. Aquilo era extremamente perigoso.
Eu nem traguei o cigarro, apenas puxei e assoprei a fumaça diversas vezes, tossindo às vezes. Ao terminar e jogar a guimba fora, me levantei da mesa, as palavras saíam emboladas, mas eu tinha quase certeza que disse “estou indo embora. Foi um prazer” para Pierre e Céline. Não me despedi propriamente de ninguém, só saí andando de um jeito estranho que fazia sentido. Eu tinha que voltar sozinha para o hotel, iria me trancar no quarto para não correr o risco de acabar o dia sem prejuízos maiores.
Senti uma mão se apossando da minha cintura, mostrando que eu teria companhia, e olhei para cima porque conhecia aquele toque muito bem.
— Com licença, vá ficar com seus amigos — falei. — Eu me... me... — Olhei para ele com dúvida de como falar essa palavra em inglês. — Viro? — falei em português.
— Vem, baby, vou te levar de volta — ele disse, me puxando pela cintura e sorrindo.
— Na-na-ni-na-não — mexi o dedo em negação na frente do seu rosto. — Não vou estragar a sua noite. Eu posso perfeitamente ir sozinha.
— Pode sim — respondeu, sarcástico, e rolando os olhos.
— Claro que posso! Olha aqui. — Me afastei dele para ficar de frente, tentei fazer um 4 com as pernas. Não me sustentei, vi o chão chegar bem perto e fechei os olhos. Bati contra algo. Abri os olhos e lembrei que ele estava na minha frente. O chão nem estava perto, foi puramente fruto da minha imaginação embriagada.
Ele sorriu triunfante e compreensivo ao mesmo tempo, provando estar certo. Droga, eu estava realmente ruim. Pior do que da outra vez. Não reclamei quando ele me guiou pela cintura dessa vez. Pegamos um táxi para ir até o hotel, não sei se o caminho foi longo ou curto, mas sei que balançava muito para o bem do meu estômago enjoado. me olhava com receio de que eu fosse vomitar nele a qualquer momento e ele não estava errado. Mal deu tempo de o taxista parar na frente do hotel que abri a porta e comecei a vomitar tudo que comi desde 1993... Ou no ano que nasci aqui. Já nem sabia mais. segurava meu cabelo, a gente estava metade no táxi e metade fora. Ouvi quando o motorista praguejou quando me viu vomitando com a porta aberta e provavelmente respingando dentro do automóvel, ainda bem que não era Uber porque ele se lembraria de me avaliar com 1 estrela.
Tentei pular o vômito e ir em direção ao hotel quando acabei, mas agora além de embriagada, eu estava fraca. Tomar porre é um saco. Foi tudo muito rápido, eu caí no chão e acho que menos de segundos depois me levantou nos braços. Ele me carregava que nem noiva, por isso abracei seu pescoço e descansei a cabeça em seu peito. Eu estava muito zonza até para rir da situação.
— Ultimamente também estou sendo muito carregada — complementei meu pensamento de mais cedo, mas verbalmente.
Ele apenas sorriu e entrou no elevador comigo, provavelmente deixando um rastro de pessoas curiosas assistindo aquela cena para trás. Estava me sentindo dormente, mas feliz em estar sendo carregada por ele.
— Quando eu bebi demais, naquela outra vez, foi menos que hoje, mas eu te agarrei no elevador. Lembra? — falei, desencostando o ouvido de seu peito para olhar seu rosto.
— Lembro.
— Acho que estraguei nossas vidas naquele dia. Parece que estou vivendo sem parar desde então — sorri com tristeza. — E aqui estamos mais uma vez dentro de um elevador...
— Dessa vez, é diferente. Não vai acontecer nada — ele disse, pragmático.
O elevador tinha um espelho discreto e pude ver o esforço que ele fazia para me segurar daquele jeito. Queria pedir para descer, mas ele não deixaria. Espera. Ele tinha dito que não iria acontecer nada? Quem deveria ditar isso era eu, deveria se ocupar sendo louco por mim.
— Por quê? Estou feia? Estou, não é? Acabei de vomitar minhas tripas — resmunguei, me escondendo em sua blusa.
— Você realmente vomitou suas tripas — ele riu.
Ignorei o fato de ter ignorado minhas perguntas. Era irrelevante até mesmo para o estado em que me encontrava. Quando estava muito bêbada, tendia a ser briguenta, dramática, irreverente e mais impulsiva. Era bom ignorar esse tópico porque despertaria meu lado briguenta e irreverente. Ele já conhecia o meu lado impulsiva, até mesmo o mais impulsivo de quando estava bêbada. Saímos do elevador. Esperava que o dramático ficasse de fora, pelo menos por aquela noite. Se eu já me achava mimada e ciumenta sóbria, bêbada era vinte vezes pior.
— Se quiser me soltar... Eu posso andar sozinha — falei. Ele fez menção de me soltar, mas me agarrei ainda mais ao seu pescoço, não querendo ficar longe dele e soando hipócrita. — É, acho que preciso ficar mais um pouquinho. — O maldito sorriu e continuou andando. Ele estava se divertindo. Parecia que aquela noite estava especialmente engraçada. Certeza de que no dia seguinte, quando os flashes viessem à minha mente, eu iria me arrepender seriamente de cada gracinha feita.
— Onde está sua chave? — ele me perguntou, parado de frente à minha porta.
— Hm... Não faço ideia. — Tentei deslizar as mãos pelos bolsos da calça, mas me remexi demais e ele tentou me equilibrar nos braços feito um malabarista. Por sorte, eu não caí de novo. Não sentia muita coisa, mas sentia alguns pontos pinicarem por causa da queda lá embaixo e não seria legal se eles se multiplicassem.
— Deixa para lá, melhor irmos para o meu mesmo. — Ele me ajeitou de volta, como se eu pesasse dez quilos. Detalhe: ele nem era malhado para isso. — Pega no bolso de trás, o esquerdo.
Tirei um dos braços de seu pescoço e deslizei minha mão por suas costas, quando cheguei em seu bumbum parecia fora de cogitação não me aproveitar, então dei um beliscão e ele deu um pulinho. Assisti quando ele fechou os olhos e riu baixinho com vergonha. A paciência dele merecia ser premiada porque até o meu eu bêbado reconhecia que estava se esforçando para ser irritante.
Ergui a chave, ele se aproximou da porta e lutei para encaixar na fechadura. Meu Deus, estava tudo embaçado. só podia ser louco de me deixar responsável por enfiar a chave em um buraco nesse estado. Senti-me enfiando a linha em uma agulha. Quando finalmente ouvi o destrancar, nós dois suspiramos, aliviados. O interior do quarto se revelou, ele fechou a porta com o pé. Pensei que ele ia me soltar, mas me carregou até o banheiro e me colocou sentada na tampa do vaso sanitário.
— Pretende vomitar mais? — ele perguntou, sério, abaixado e analisando meu rosto perto demais.
Fiz que não com a cabeça, encarando-o como uma criança quando o pai dá bronca.
— Consegue tirar sua roupa e tomar banho sozinha?
Agarrei sua jaqueta e me atrapalhei um pouco, mas consegui tirá-la e o cardigã de uma vez só. Fui passar a blusa pela cabeça, me embolei e virei para ele, um pedido de socorro mudo, com a metade na cabeça e a outra metade no tronco. Ele veio me ajudar a tirar e jogou-a no chão com as outras peças.
Notei que ele estava sério demais.
Mordi meu lábio inferior, não sabia qual era a forma apropriada de interpretar sua expressão. Ele estava bravo comigo? Era porque eu não conseguia tirar minha própria roupa? Eu conseguia sim, coloquei a mão no cós da minha calça e ele me fitava com os braços agora cruzados e a postura ereta. Abri o botão e o zíper, na hora de deslizar não foi, eu estava sentada, ergui os quadris e ela passou. Chutei a calça e me levantei para a parte do banho. Um par de olhos me assistia, então mantive minha calcinha e o sutiã porque ficar pelada era inconcebível, ainda mais bêbada. Tropecei na entrada do box e me segurei nas paredes internas.
Ops.
Ele resmungou alguma coisa, virei para olhar o que era e lá estava o homem tirando sua própria roupa. Grudei as costas na parede do registro, será que nós íamos...? Não, não, não poderia ser tão fácil. Quer dizer, quem eu queria enganar? Meu cérebro bêbado e meu corpo conspiravam perfeitamente ao ver o corpo nu de , não daria para ficar no meio dessa batalha. Olhei para baixo para averiguar qual era minha roupa íntima do dia, era preta e lisa. Nada mau, mas também nada bom. Ele entrou no cubículo. Sua roupa íntima também era preta. Franzi o cenho, a gente estava combinando. Não era engraçado? Eu queria rir espalhafatosamente, mas estava congelada no lugar.
Girou o registro e a água caiu na minha frente, molhando-o. Não sei o que era pior: seco ou molhado, ver a água deslizando por aquele peito e depois pela barriga era hipnotizante. Sua mão agarrou meu pulso e me puxou, colando nossos corpos. Agora, nós dois estávamos debaixo da água e eu podia ver as gotinhas mancharem seu rosto.
— Eu deveria me vingar pela água gelada daquele dia, mas não estou disposto a morrer congelado em pleno outono — ele disse e depois me analisou. Eu olhava para cima para o observar sem piscar. — O que foi?
— Por que você entrou? — perguntei, curiosa.
— Porque você não tem condições de ficar sozinha, não é óbvio? — Ele riu como se a situação fosse realmente engraçada. — Você fez isso por mim aquele dia, posso retribuir o favor.
— Por que a gente está tão perto assim? — ignorei suas menções ao dia que ele estava bêbado porque tinha muitas perguntas sobre o que estava acontecendo ali na minha frente. Meu cérebro até ficou confuso tentando acompanhar tantas perguntas seguidas, mas balancei a cabeça para me concentrar de novo nele.
— Era só para te colocar na água. — Ele se afastou. A falta do seu corpo me causou um formigamento ruim, somado à dor da minha queda, parecia uma alergia.
Não podia pedir para voltar. Tinha que me limpar primeiro porque abominava fedor de vômito com bebida, ficar com resquícios pelo corpo, então, era insuportável — eu não estava sentindo, mas, quando coloquei shampoo no cabelo, percebi que provavelmente meu cabelo deslizou no vômito da jaqueta quando ele soltou. Esfreguei alucinadamente aquele shampoo de frutas que tinha o cheirinho dele. Só parei mesmo quando meu couro cabeludo começou a doer para, então, colocar o condicionador.
Virei-me para ele, meus olhos foram diretos em seus lábios roxos. Lá estava ele, com frio, só para me ajudar a tomar banho. Eu definitivamente não merecia aquele ser humano. Alcancei sua mão que pendia ao lado do corpo e o puxei de volta para a água, retribuindo o gesto. Levei um tempo para me acostumar com ele tão perto de novo.
Minhas mãos não queriam ficar ali observando como eu, elas queriam tocar o cabelo dele metade molhado e metade seco, deslizar, se embrenhar. Então espirrei o shampoo na mão de novo e ele não demorou nem meio segundo para entender minha intenção, enquanto eu mesma ainda não sabia o que pretendia.
Ajoelhou-se aos meus pés para que pudesse lavar o seu cabelo. Por algum motivo, senti-me poderosa. Quer dizer, era um poder tremendo que te dominava ao observar seu homem ajoelhado diante de você. Sacodi a cabeça para parar de pensar nisso. Não era muito grande a diferença de ajoelhado para o meu tamanho, mas me abaixei um pouco até ficar com o rosto na altura do seu e esfregar seu cabelo. Peguei o condicionador e espalhei nas pontas, da mesma forma que fizera com o meu.
Nós já dormimos juntos mais de uma vez, sabíamos o que a roupa de baixo molhada escondia, ele sabia o que fazer para me enlouquecer e eu sei que ele revirava os olhos quando atingia o ápice. Porém, de alguma forma, presenciar aquilo parecia ainda mais íntimo. A atmosfera estava inexplicavelmente pesada.
Ele me fitava, o carinho transmitido por aqueles olhos chegou a me comover. Eu só tinha parado para perceber o quanto ele me olhava com respeito e admiração uma vez, quando estabeleci a distância entre a gente no restaurante em Estocolmo. Assustei-me um pouco com a dimensão desse sentimento de novo, mas, como não estava em dia com minhas faculdades mentais, não fugi. Pelo contrário, era mais um daqueles momentos que minha vontade de beijá-lo era absurda a ponto de me sentir hipnotizada pelos seus lábios. E, bom, assim o faria.
Minhas mãos seguraram cada lado do seu rosto e retribuí seu olhar na mesma intensidade, mas com amor e devoção. Ficamos assim por alguns minutos, só atentos a cada detalhe, mas sem realmente assimilar qualquer coisa que não fosse a boca um do outro. Minha boca foi a primeira a se render a batalha e se colou na sua de uma vez só. Foi apenas um estalar, não durou cinco segundos porque ele se levantou e se afastou. Seu rosto sem expressão, os olhos escurecendo. Era nítido que tinha passado dos limites, dos meus e dos dele. Nessa parte que geralmente fico quieta por ter sido rejeitada, termino o que tenho que fazer e vou dormir. Só que aquele era um dia atípico, certo? Então desliguei o registro e comecei a chorar de soluçar, surpreendendo até a mim mesma. Que merda estava acontecendo?
Ele veio até mim e começou a procurar meu rosto escondido nas palmas das mãos.
— O que foi? Baby, o que foi? — ele disparou enquanto suas mãos tentavam ser delicadas em afastar as minhas. Deixei-o e ele levantou meu rosto, cuidadosamente, como se eu fosse um cristal. Olhei-o em um misto de vergonha, curiosidade e desespero. — , o que raios está acontecendo?
Senti o peso de tudo que estava em mim, eu me sentia negada por ele e isso se somou ao que escutei sobre ele e a Natalia mais cedo. Em algum lugar, eu sabia que deveria ter ficado calada, mas mais lágrimas desceram. Não tinha chance contra o turbilhão que me dominou para desabafar.
... — solucei e minha voz estava embargada. — Seja sincero comigo, você a prefere, não é?
Ele franziu o cenho, estudando minha expressão, até entender quem era o ser do sexo feminino a quem me referia. Cara, eu ficaria tão brava comigo no dia seguinte quando lembrasse daquele showzinho barato. Definitivamente era meu lado dramática mostrando suas garras.
— Não tenho como responder isso, vocês têm significados diferentes na minha vida.
Eu não queria ouvir essa resposta. Não depois de saber que eles provavelmente tinham algo a mais. O lado irreverente tomou a frente.
— E o que eu significo para você? — falei, meio murcha e a voz baixinha.
— O que você quis que significasse, . Você é uma amiga que é quase minha irmã.
Abri a boca em um “O” e soltei um grito fino de puro choque. Me desvencilhei de suas mãos, saindo do box e escorregando no tapete no caminho. Ele disse que eu era a irmã dele? Então, basicamente, estava na mesma posição que a Lilly? Isso era um pesadelo! Caí pela segunda vez no dia, agora de bunda no chão, como se não pudesse ficar pior. Quem escreveu aquilo ali foi o Stephen King ou a Sophie Kinsella? Porque sempre achei que o terror e o humor fossem gêneros que andassem juntos, mas naquele momento tive certeza. Senti suas mãos debaixo do meu braço, se ele estava achando que ia me pegar, não ia, me debati alucinadamente sem saber nem o motivo.
! Para! — ele disse, passando por mim e se agachando na minha frente. — Eu vou falar a verdade, mas não quero que me culpe depois, ok? Você garantiu que nada mudaria entre a gente na nossa primeira noite juntos, mas tudo mudou para mim. Depois de nos afastarmos duas vezes e ter sofrido com isso, percebi com clareza que eu gosto de você.
O quê?!
— Você está mentindo! — falei, emburrada, parecendo uma criança de 9 anos. Fazia sentido, deveria ser por aquilo que estava me portando daquele jeito e que ele dizia que gostava de mim como irmã.
— Sabe muito bem que não estou. — Suspirou, um poço de paciência. – Como é mesmo aquela palavra que você usou aquele dia na sua língua e que reconheci?
— Apaixonado? — perguntei em português com receio por não ser essa e estar trazendo de volta o temido assunto.
— Sim. É assim que me sinto. Fiz aquela brincadeira contigo, mas quem está sou eu.
Natalia, bebida, vômito, tudo saiu da minha mente em um passe de mágica ao ouvir aquilo. Puf. Uma nova pessoa. Descruzei os braços. Não me lembrava se ele já tinha falado isso em alto e bom tom, não lembrava muito no atual momento, então era novidade. Desde o fatídico dia, eu meio que ignorei que isso pudesse vir a existir, para me machucar menos e um pouco por falta de autoestima. Não era algo que você queria ter em mente quando vai afastar alguém que gosta. Também não era algo que eu queria ficar sabendo e provavelmente o culparia depois, ele tinha razão, mas essa minha versão bêbada e seus diversos lados...
— A gente não pode ficar junto — resmunguei minha resposta automática, ainda parecendo uma criança.
— É, você já deixou bem claro isso — ele disse, se levantando e estendendo os braços para me ajudar. Aceitei e ele me segurou até a gente alcançar a cama, onde me joguei que nem uma manga podre. Tentei me arrumar para ficar encostada na cabeceira, devo ter rastejado que nem uma cobra, porque me imaginei como uma. Ele estava mexendo na mala. Não parecia com raiva, nem nada. Acho que ele sempre esperava aquela minha resposta. Eu poderia articular algo diferente, mas não dava para esperar muito de bêbado. Tinha o passe livre até estar conscientemente bem para me arrepender de tudo que poderia ter feito e falado. — Como eu te disse antes, eu te entendo. Nós dois queremos algo diferente um do outro e acabamos magoados depois de ceder só para transar. Não quero mais me afastar... Então, é melhor continuarmos como estamos, apenas amigos.
Ele continuou a mexer na mala, me deixando pensativa sozinha. Foi difícil escutar isso, não pensei que ele finalmente concordar comigo me traria tanta dor. Limpei minhas lágrimas, mas meu rosto ainda estava molhado e meus olhos ardiam. Imaginei que também deveria estar vermelha porque era assim que o meu processo de chorar funcionava. Era a segunda vez que ele me veria chorando em menos de uma semana, então precisava me esconder para que não notasse finalmente que eu era horrível quando fazia aquilo. Um dos óculos escuros dele estava na cabeceira, o preto, então tateei em busca, achei e imediatamente coloquei.
Era assim que as celebridades, que nem ele, se sentiam usando óculos escuros em ambientes fechados? Era assim que ele me viu no restaurante do hotel na manhã pós-discoteca?
Ele veio andando até mim. Comecei a rir com a memória dele usando óculos no café da manhã.
— Vista-as. Se quiser tirar também... — ele deixou no ar, mas eu captei para minha surpresa.
— Não, prefiro que elas fiquem aqui, quietinhas, no meu corpo — falei, rápido demais e na defensiva. Era melhor as partes de baixo ficarem aqui do que irem embora e me darem mais chance de fazer merda. Sabia que havia falado que tinha passe livre, mas não podia acordar me odiando a ponto de voltar para 2019 porque fiquei pelada na cama do de novo.
Me sacudi, tentando vestir a calça que me entregou, um par de mãos mais fortes e habilidosas ajudou. A camiseta ele já foi enfiando sozinho pela minha cabeça, só ergui os braços. Depois, alcançou uma toalha e começou a secar meu cabelo.
— Acho que ninguém cuidou de mim assim antes — falei, observando-o e lembrando finalmente da noite que ele estava bêbado.
— Mas você já cuidou assim de mim, lembra?
— É claro que lembro, mas foi diferente. É diferente quando é você que está no lugar.
Ele sorriu com compreensão e colocou a toalha de volta no ombro.
— Vou trocar a minha roupa, se comporte e fique quietinha até eu voltar. Ok?
Concordei com a cabeça. Ele pegou o montinho de roupa e se trancou no banheiro. Baforei na minha mão para conferir como estava a situação. Podre. Puro álcool com vômito. Precisava dar um jeito naquilo, não podia nem falar com ele daquele jeito. Não sabia porque achei que podia beijá-lo. Ele devia estar achando que, além de bêbada, eu era porca.
O vi saindo com um pente na mão, vestia samba canção e uma camiseta preta desgastada. O seu cabelo já estava penteado para trás.
— Chega um pouco para a frente — pediu. Me arrastei de novo e levei boa parte do lençol e da colcha com a bunda. Tentei arrumar, não deu muito certo. Ele se encaixou atrás de mim, suas pernas grandes me envolveram, e posicionou minha cabeça para começar a pentear meu cabelo delicadamente. Ele desembaraçou de um jeito tão leve que nem parecia que estava uma maçaroca depois de tanto esfregar com shampoo.
Estava nervosa pensando se deveria arruinar o momento ou se aproveitava. Era mais um momento como o do chuveiro, mas sem o contato visual. Agora era um clima estilo Ghost, quando o Patrick Swayze ajuda a Demi Moore esculpir o vaso de cerâmica, sabe? Só que a Demi Moore bebeu além da conta e o Patrick estava desfazendo o ninho que se tornou o cabelo dela. É, não conseguiria arruinar isso. Mas queria muito rir porque me comparei à Demi Moore. Não iria rir só porque estava presa demais às mãos masculinas passeando deliciosamente pelo meu cabelo molhado. Ouvi quando pousou o pente na mesinha de cabeceira.
Alguém tocando no meu cabelo e o penteando me causava muito sono. Porém, não tinha percebido o quanto estava cansada até deixar minhas costas descansarem no peito dele. passou os braços debaixo dos meus seios em um abraço e depositou um beijo no meu cabelo. Era isso que eu queria sentir todos os dias da minha vida, o sentimento de finalmente estar em casa.
Espera aí...
Fiquei incrédula ao perceber que senti isso em seu abraço, visto que estava desejando voltar para 2019 exatamente por saudades dessa sensação.
— Devo perguntar o motivo dos óculos? — ele disse, sorrindo perto do meu ouvido direito. Me arrepiei, mas tentei não estremecer.
— Estou feia — murmurei, ainda meio em choque pela sensação.
— Impossível. — Ele tirou os óculos do meu rosto. — Não tem nada que possa te deixar feia, nem vomitar suas tripas.
Ouvi os óculos sendo jogado de volta na mesa de cabeceira de madeira crua. Ele puxou meu queixo, me fazendo virar a cabeça e pousá-la em seu ombro. Meu coração acelerou a ponto de machucar meu peito, tenho quase certeza de que o ouvi martelando contra minhas costelas. Ele depositou vários beijos pelo lado direito do meu rosto, causando formigamentos na minha pele. Quando ele chegou perto dos meus lábios, eu endureci. Senti o sangue sumir do corpo.
— Calma, não vou beijar sua boca. — Ele depositou um beijo na minha orelha. Com a mesma velocidade que se foi, o sangue voltou à tona e uma onda de calor inexplicável subiu. Em uma bagunça dos meus próprios membros, me sentei de novo entre suas pernas, agora de frente para ele. Meus pensamentos estavam nebulosos, só reconheci o desejo latente porque meu corpo todo funcionava em função dele. Suspirei, mais uma característica bêbada minha para a conta: tarada. Olhar para a cara dele estava ajudando menos ainda. Ele estava sem nenhum traço de desejo, apenas o que vi no banheiro somado à preocupação. Eu estava testando sua paciência e ele continuava ali, sendo perfeito.
— Droga, , você não facilita para mim. Por que você tem se comportado como um príncipe encantado? — reclamei, emburrada como uma criança de novo.
— Príncipe encantado? — ele riu como se fosse a coisa mais absurda que já escutou na vida.
Porém, o lado irreverente não me deixaria me esconder.
— É... Urgh, eu te odeio. — Empurrei seu peito e me levantei, trocando menos as pernas do que antes. O banho devia ter me feito bem. Bati a porta do banheiro, colocando a distância segura entre a gente, antes que eu perdesse a cabeça. Usei a escova de dentes que o hotel fornecia de brinde para tentar melhorar a situação e me distrair. Era humanamente impossível ficar longe dele, ainda mais com ele querendo cuidar de mim e me olhando daquele jeito. Era até ridículo reclamar daquilo, mas era pelo nosso bem. Ele estava conseguindo me ver como amiga, eu estava o vendo como a pessoa que amo. Não sabia se conseguiria me controlar, não depois de ouvir que ele era apaixonado por mim.
Precisava de algo para me distrair. Pensa... Pensa... Ah! Ele não falou o que sentia por Natalia, então podia assumir que ele negou meu beijo por causa dela aliado à sua resposta misteriosa de mais cedo. Apesar de que, uma parte de mim, estava convencida de que ele só fez aquilo para respeitar meus limites sóbrios. Droga, eu era uma chata sóbria. Voltando ao tópico Natalia, se nós temos significados diferentes, ele podia ser apaixonado por mim — como disse —, mas poderia ser muito mais apaixonado por ela — como eu achava que tinha escutado.
Fechei os olhos. Que droga. Eu queria tanto tocar o foda-se e me jogar nele. Meu autocontrole estava quase pedindo arrego, mas é claro que ele não faria nada de extremo porque eu estava bêbada demais. Ainda maisv do jeito que ele se preocupava tanto comigo...
Aproveitei que estava ali e joguei um pouco do desodorante dele, mas não foi nada bom, porque para piorar minha capacidade de tomar decisões, eu estava intoxicada pelo cheiro dele. E meu fogo estava, cada vez mais, insuportável.
Que se dane essa merda. Tenho passe livre, sim.
Saí do banheiro já com o indicador apontado para ele.
— Escuta aqui, — inquiri, praticamente marchando até a beirada da cama em que ele estava.
— Escutar o quê? — respondeu, assustado.
Ele franziu o cenho quando cheguei perto dele e comecei a cutucar seu peito com meu indicador.
— Se você me negar de novo, eu juro, nem sei o que sou capaz de fazer.
O ouvi questionar algo que não entendi por estar ocupada demais passando meus braços por trás do seu pescoço. Acabei por abafar suas palavras quando o beijei. Ele demorou um pouco para corresponder e eu quase desisti de ficar ali beijando uma pessoa que nem queria. Então ele reagiu, jogou uma perna para fora da cama e me deitou. Minha bunda estava em seu colo, minhas costas parcialmente na cama, minha cabeça e meu pescoço descansavam na parte de dentro do seu antebraço. Fui correspondida. Ah, se fui. Sua língua acariciava a minha com saudade, ele combinou com um carinho na lateral do meu corpo por cima da blusa que me derreteu inteira. Eu acariciei a raiz do seu cabelo enquanto me concentrava em retribuir os movimentos da sua língua, totalmente em êxtase.
Não acreditava que eu estava fazendo aquilo. Não acreditava que estava gostando daquilo. Tinha consciência do peso que aquilo poderia ter no futuro, na nossa história, mesmo assim estava ali fazendo tudo de errado de novo.
Porém, tinha que admitir o que ele queria que eu admitisse aquele dia: nós dois juntos mandávamos muito bem. Acho que nossas bocas foram feitas uma para a outra, porque juntas se complementavam de um jeito muito irritantemente perfeito. O gosto dele era tão característico que nem se fizesse todo o esforço do mundo, eu conseguiria resumir em palavras. Ele sugou meu lábio inferior com calma e se afastou quando o ar ficou escasso nos nossos pulmões. Minha boca implorou pela sua de novo, mas ofegávamos como se tivéssemos corrido vinte quilômetros. Eu acabei ficando estatelada na cama por alguns minutos em silêncio, meus olhos arregalados olhando para o teto, meu peito subindo e descendo veloz e meus pensamentos praticamente correndo de um lado para o outro no meu crânio. Ele percorreu seus dedos começando pela minha barriga, passando pelo meu peito, meu pescoço, meu maxilar e terminando com um carinho na minha bochecha.
— Ia falar “um beijo pelos seus pensamentos”, mas, depois disso, acho que essa é a hora que você sai correndo ou diz algo para me afastar. — Ele quebrou o silêncio, seu rosto estava ainda próximo do meu.
E foi feito um soco no estômago.
Me senti mal. De verdade. Ele merecia, pelo menos, um pouco de clemência.
— Bom, posso te dar um beijo pelos meus pensamentos — fitei-o. — Até porque eu estava pensando que você é um grande gostoso. — Lá estava o meu mais recém-descoberto traço de tarada. Joguei todo o resto da minha dignidade para o alto e recebi uma gargalhada em troca. Eu faria infinitas vezes só para ser recompensada assim.
— Se você lembrar dessa fala amanhã, tenho certeza de que vai surtar — ele continuou rindo.
— Espero mesmo que não me lembre. Até porque tem mais de onde saiu isso, tipo, ahm... — fingi pensar, mas a resposta estava pronta há tempos — ...eu perdoo você não estar me beijando agora porque está rindo de mim e sua risada sempre foi o meu som favorito no mundo.
Ele ficou sério, todo o traço de humor se esvaindo de seu rosto e agora apenas concentrado em mim. Fechei meus olhos e admiti logo de uma vez:
— Eu reconheço tudo que você falou. Não pense que não gosto de ouvir que você é apaixonado por mim, é só que... Será mais fácil ficar longe se eu pensar que não é.
Respirei com alívio por ter soltado uma das coisas que me afligia. Ele estalou os lábios contra os meus.
— O beijo pelos seus pensamentos — ele deu um sorrisinho quase invisível.
— Não vai perguntar o motivo da minha decisão? — estranhei.
— Não, baby. Já disse que te entendo. Pode não ser pelos mesmos motivos ou por todos eles, mas estou me esforçando para entender.
— Vai ficar com raiva de mim? — Me desesperei com a lembrança da última vez ele parou de falar comigo. Acabei até por me sentar entre suas pernas de novo.
— Claro que não! Eu concordei em tentar ser seu amigo, lembra? Estou me saindo bem, fora isso daqui que aconteceu.
Ele se remexeu, passando uma perna por cima de mim. Percebi que ia sair, mas segurei seus pulsos.
— Não vou provocar mais, prometo — falei, olhando séria para seus olhos escuro pela parca iluminação.
Ele beijou minha testa, depois minha boca, me fazendo arregalar os olhos.
— É apenas um beijo de amigos — explicou. — Quer dizer, na definição de amizade entre nós dois. Devo acrescentar porque não saio beijando minhas amigas por aí, já entendi muito bem que você é muito ciumenta — brincou, me fazendo soltar seus pulsos para rir com vergonha. A vontade era de me esconder entre os travesseiros ao ouvi-lo brincar logo com esse momento. Porém, já era sem tempo que ele falasse algo sobre aquilo, talvez significasse que ele voltaria com as brincadeirinhas e as provocações.
Levantou-se e foi apagar a luz do banheiro. Sentei-me na cama com os pés no chão carpetado. Céus, esse beijo tinha piorado meu fogo totalmente, transformando-o em uma fogueira. Olhá-lo ali de pé me fez fantasiar em correr, pular nele, enroscar minhas pernas em sua cintura e implorar para fazer tudo comigo. Por mais um dia extraordinário, qualquer coisa que o fizesse estar entre minhas pernas de novo, de novo e de novo.
Balancei a cabeça, espantando esses pensamentos impuros.
— Posso dormir aqui? — perguntei porque não queria que aquela noite acabasse comigo sozinha me arrependendo no quarto ao lado com meu cérebro embriagado. Também, ao me sentir em casa no seu abraço, eu iria fazer de tudo para ter a sensação novamente feito uma viciada, até implorar de joelhos se ele quisesse.
— Achei que já ia fazer isso — ele disse, se deitando do lado esquerdo da cama. Diminuiu a temperatura do ar-condicionado. — Vem se esconder do frio debaixo do cobertor comigo.
Ele se enfiou debaixo da colcha branca que cobria a cama. Sorri. Era uma proposta irrecusável. Obedeci-o, estávamos cobertos dos pés até a cabeça, um de frente para o outro, como se estivéssemos nos escondendo.
— Vou voltar a ser uma chata amanhã — lamentei em forma de sussurro.
Ele sorriu.
— Tenho que confessar que vou sentir falta dessa sua falta de filtro — sussurrou de volta e seus olhos brilhavam mais do que o normal.
— Em falar em sentir falta, não fala para minha versão sóbria que te contei — sussurrei, como se fosse um segredo de outra pessoa e não meu —, mas ela sente falta dos seus joguinhos depois daquele dia.
— Conta para ela que largar um homem depois de provocá-lo inocentemente... — deixou claro o sarcasmo — ...é um vacilo. Aquela menina malcriada.
Ele riu ao me ver gargalhando. Eu fui mesmo malcriada, me auto boicotei. Se soubesse que, em pouco tempo depois, já sentiria falta das piadinhas dele a ponto de dar o braço a torcer e admitir em voz alta, nunca o teria feito. Por mais irritada que estivesse.
— Então você está me castigando? — perguntei no mesmo tom de voz, apesar de ter quebrado o clima com minha gargalhada alta.
— Estou, só vou voltar quando me pedir — declarou, com um sorrisinho vitorioso.
— Ela não vai te pedir — ri ao perceber que falei de mim na terceira pessoa.
— Ah, vai. Conheço aquela teimosa — piscou o olho esquerdo para mim e automaticamente fiquei ainda mais baqueada pela presença dele debaixo do cobertor comigo, sussurrando feito dois adolescentes se escondendo dos pais no quarto ao lado. Estava sentindo que ele também estava começando a me conhecer. Para ser mais específica, ele estava começando a me desvendar e isso era extremamente perigoso. Se ele descobrisse que o amava, iria ser um estalar de dedos para descobrir todo o resto dos meus segredos: inclusive ser uma viajante do tempo.
Ele tocou minha bochecha e fez um carinho nela com o dedão. Isso me encorajou a fazer um último movimento: encostei meus lábios nos seus. Já que eu não estava mais com hálito de vômito, decidi deixar o incidente no chuveiro para trás por entender seus motivos. Foi apenas um selinho, não tinha coragem de ir além daquilo de novo porque era para ser um “beijo de amigos”, como ele intitulou. Também serviu para fechar a noite. Minhas pálpebras estavam pesadas, parecia uma boa hora para me render ao sono. Ele pareceu gostar porque, quando me afastei, ele teve que fazer um esforço para parar de mirar minha boca e voltar a atenção para os meus olhos.
— Até um dia, senhor gostosão — me despedi, rindo.
Ele também riu, porém o riso foi diminuindo gradativamente até que se tornou um sorriso e foi a última coisa que vi.
Porém, ouvi-o dizendo, um pouco depois:
— Sua risada também é meu som favorito. Eu sou completamente obcecado pelo seu sorriso, ele faz o meu dia bem mais feliz — ele disse me abraçando. — Durma bem, baby.
Estava muito atordoada para dar o devido valor a essa declaração. Dormi abraçada e com o nariz enfiado no melhor lugar que eu poderia pedir: o cabelo dele. Espero que não tenha roncado, eu tendia a fazer isso quando estava muito confortável — o que era, com certeza, o caso.

Capítulo 18 - My Heart... So Blue

Abri os olhos devagar. A claridade me fez querer fechar de novo, mas o cheiro me chamou atenção. Funguei, tentando sentir de onde vinha e quase certeza que era de mim, puxei a blusa que vestia e realmente era. Ok, por que eu estava cheirando a ? Puxei o cobertor e olhei para baixo, eu estava vestida dele de novo. A primeira coisa que passou pela minha cabeça: alguma coisa me fez voltar para o dia que cheguei. Depois raciocinei que não eram essas roupas, então só podia significar uma coisa...
Joguei-me no chão, olhando, assustada, o que me cercava. Ele estava em um canto lendo um livro sentado no sofázinho de frente para o armário e arqueou uma sobrancelha ao me ver no chão.
— O que você fez comigo? — perguntei com a voz fina e afetada. Outch. Isso fez minha cabeça doer. Coloquei a mão no lado para segurar um pouco da dor, como se fosse possível. Tem cara de ser bebida. — Eu bebi? — perguntei, já sabendo da resposta, visto que estava no quarto dele, vestindo as roupas dele, sem lembrar de nada da noite anterior.
— Bom dia, bela adormecida. Sim, você bebeu. E eu... é... — titubeou — ...tive que cuidar de você. Não sei se é a palavra certa para descrever. — Ele tirou uma das mãos do livro para coçar a nuca.
O quê?!
— Cuidou como? — olhei para as roupas dele e assumi que deduzi o pior. Assumi não. É claro que deduzi o pior, olha o jeito que ele falou! Minha expressão se contorceu em puro choque.
— Não me aproveitei de você, se é isso que está pensando — se defendeu. Sim, era exatamente o que eu estava pensando porque ele não sabia se expressar! — Primeiro: você estava muito bêbada. Segundo: como eu disse ontem, concordei em ser apenas seu amigo. Isso seria errado em todos os sentidos.
Após ele soltar isso, meu cérebro começou a soltar flashes da noite anterior: Pierre falando que eu não merecia ficar no meio do lance do com a Natalia; o quão fiquei chateada e como descontei naquela cerveja alemã deliciosa; eu roubando o cigarro da boca de e ameaçando-o de calar sua boca com um beijo; Pierre e a namorada me achando engraçada; segurando meu cabelo enquanto me via vomitar loucamente na frente do hotel; ele me carregando...
— Ah, droga — resmunguei, encostando a testa no carpete para esconder o rosto. — Eu vomitei na sua frente?
— Sim — ouvi sua voz confirmando. — Vomitou suas tripas, como você mesma disse.
Tive vontade de chorar pela humilhação.
— Por que eu dormi aqui? — perguntei, pensando seriamente se era da minha vontade saber o motivo.
— Te ajudei a tomar banho, depois você se jogou aí na cama. Acho que estava ruim demais para ir embora, porque me pediu para ficar — ele explicou no tom que se fala com uma criança.
Mesmo assim com o tom contido e paciente, o pânico tomou de conta do meu sistema mais uma vez.
— Eu fiquei nua na sua frente? — falei com a mesma voz fina enquanto levantava a cabeça, completamente horrorizada ao me imaginar totalmente pelada na frente de alguém, quem dirá de enquanto estava bêbada.
— Claro que não! Ninguém ficou sem roupa! Calma! — ele ergueu a mão esquerda, em um gesto para acalmar. — Nós estávamos de roupa de baixo o tempo todo.
Não sei como ele achava que eu iria me acalmar quando estava tão bêbada a ponto de ter certeza de que falei e fiz merda, podendo até ser pior: podia ter revelado algum dos segredos que ele não poderia saber — ser viajante no tempo, minha data de nascimento real, amá-lo... a lista era gigante.
Sua fala me despertou outra onda de flashes. Dessa vez, me ajudava a tirar minha roupa, ele tirava sua própria roupa, o chuveiro molhava-o, um puxão nos uniu, eu questionei, ele foi para o outro lado do box e sentia muito frio, chamei-o para passar shampoo no cabelo dele, não resisti ao que vi em seus olhos e colei minha boca na sua.
— Não, não, não. — Segurei minha cabeça e me sentei com a memória. — Eu te beijei depois de vomitar?
Ele deu uma risadinha. Não tinha como piorar.
... Seja sincero comigo, você a prefere, não é?”
Eu lembro que chorei, chorei muito, a julgar pelos meus olhos inchados. Ao perguntar isso a ele, respondeu que eu era como a Lilly em sua vida, sua irmã. Gritei. Levei uma rasteira do tapete e é por isso que minha bunda doí naquele exato segundo, junto com os machucados da queda na frente do hotel.
“(...) eu gosto de você.”
Arregalei os olhos e tapei minha boca com a mão. Não acredito que o ouvi dizer isso no pior estado que eu poderia estar. Ele me observava com um sorrisinho esperto enquanto ao mesmo tempo fingia estar atento ao seu livro, sua pose indicava que ele tinha uma mera ideia de cada cena que estava passando pela minha mente e se orgulhava em me ver chocada comigo mesma. Como se ele já soubesse que isso iria acontecer desde que me viu bebendo além da conta. Minha vontade era de arrancar esse maldito sorriso na porrada... Ou no beijo.
Beijo.
“Se você me negar de novo, eu juro, nem sei o que sou capaz de fazer”.
Eu o beijei de verdade! Soltei um grito abafado pela minha mão. Céus, por que quando enchia o rabo de cachaça, eu ficava beijoqueira? Essa não costumava ser minha característica antes de conhecê-lo.
— O quê? — ele já parecia saber a resposta dessa pergunta pelo divertimento em seus olhos.
Catei o resto da minha dignidade, em silêncio, e procurei com os olhos no banheiro minha roupa, não estava. Ele provavelmente mandou tudo para a lavanderia porque as peças deveriam estar cheia de vômito. Levantei-me, a enxaqueca era insuportável, mas passei por ele e apenas murmurei “Estou de folga hoje” sem nem olhar em sua cara. Era domingo e a agenda estava livre, então a folga significava que não queria saber dele e tinha certeza de que entendeu.
Bati a porta quando saí e me veio à mente, imediatamente, a porcaria da chave que esqueci. Tentei a maçaneta, trancada. Claro. Se tinha um deus me observando, ele deveria estar rindo muito da situação que me meti. A cada segundo eu tinha mais certeza. Isso era castigo por me dar passe livre ou seja lá o que pensei. Os pensamentos ainda estavam confusos e outros chegavam causando mais confusão. Encostei a cabeça na porta, criando coragem para voltar lá. Quem eu queria enganar? Essa coragem nunca viria. Por isso, rastejei meus pés descalços de volta à porta ao lado.
Girei a maçaneta e o observei antes de entrar. Ele parecia confuso, mas parecia ter voltado a ler de novo e não parecia surpreso com minha aparição. Ele apontou para a mesinha de cabeceira perto do lado que eu dormia, sabia muito bem o motivo que me fizera voltar. era uma merda de um sabe-tudo, isso sim. Alguém precisava dar um prêmio para ele e um para mim de maior fracassada.
Peguei a chave e vi os óculos escuros jogado de qualquer jeito ali.
“Devo perguntar o motivo dos óculos?”
Urgh. Balancei a cabeça para espantar a memória. Vergonha alheia de mim mesma, estou descobrindo cada vez mais que isso é possível. Passei por ele de novo e tropecei na barra da calça, é claro que o meu amado espectador riu baixinho. Quem estava surpresa por fazer papel de palhaça novamente?
— Para com isso e vamos tomar café da manhã — comentou, me olhando e tentando parar de sorrir.
— Não, não quero te ver mais hoje. Preciso recuperar minha dignidade — resmunguei, abrindo de novo a porta.
Entrei no meu quarto e me joguei na cama. Não iria tirar a roupa dele porque queria aquele cheiro em mim, para sempre. Eu estou brava com ele e comigo, mas não com cheiro bom. Peguei o controle que estava em cima da cama e liguei a TV.
Quer dizer, não estava mesmo com raiva dele. Não era nada por ele estar se divertindo às minhas custas ou por ser um “sabe-tudo”. Era essa repulsão de mim pelo que eu fazia com ele. Ouvi-lo dizer que gostava de mim, me pedindo para repetir a palavra em português, depois do meu showzinho de drama barato, me causava dor. Eu o provoquei e depois ainda disse que não podíamos ficar juntos. Ficava pisando nele toda maldita hora.
Lágrimas rolaram pelo meu rosto. Eu era uma péssima pessoa.
Não, baby. Já disse que te entendo. Pode não ser pelos mesmos motivos ou por todos eles, mas estou me esforçando para entender”.
Se você soubesse, , tinha certeza de que nunca mais olharia na minha cara. Me chamaria de louca, trocaria a fechadura e o número de telefone. Você não gostaria de mim depois de descobrir quem eu sou ou de onde vim.
Realmente não sabia mais o que fazer para impedi-lo de nutrir sentimentos. Eu estava tentando! Só que tropeçava e caía de boca na boca dele. Pio do que falei aquele dia, eu não conseguia. Não conseguia afastá-lo de mim mais. Nós chegamos a um ponto que simplesmente não dava mais para fugir sem abalar de vez nosso relacionamento. Podia incentivá-l a continuar saindo com outras mulheres...
Como diabos iria jogar na mão de outra mulher se só a mera ideia me dava enjoo?
“Sua risada também é meu som favorito. Eu sou completamente obcecado pelo seu sorriso, ele faz o meu dia bem mais feliz. Durma bem, baby.
Comecei a chorar copiosamente, apoiando meu rosto nos meus joelhos dobrados e abraçando-os. Lembranças dos dias tristes passaram pela minha mente, os dias que dormia chorando abraçada em Solveig. Seu pelo ficava molhado pelas minhas lágrimas e ele nunca reclamou, sempre me consolou. Queria meu amigo de quatro patas agora ou só Lilly para me chamar de bobona enquanto me consolava.
Desejei que tudo fosse não se passasse de uma fanfic, que não fosse verdade. Tudo era melhor quando só precisava ler e não viver a minha própria história.

***


Acordei com uma música familiar. Era a TV reprisando Dirty Dancing. Ver o Patrick Swayze me trouxe a lembrança de compará-lo ao e eu à Demi Moore.
Suspirei e coloquei um travesseiro em cima da cabeça. Uma parte de mim queria reviver o dia anterior em um looping infinito, a outra queria aniquilar minha existência de todos os séculos. A -estraga-prazeres tinha que recolher os cacos que a -bêbada tinha deixado. Eu e minhas malditas multifaces.
Minha boca estava seca, nem três litros de água deveriam ser capazes de acabar com a sede. Tirei o travesseiro devagar e olhei para a janela em cima da minha cabeça, estava de noite — o que significava que dormi demais. Levantei-me e fui até o banheiro, deixei um copo na pia e enchi na torneira. Tomei quatro desses, só parei quando me deu vontade de vomitar.
O espelho acima da pia mostrou minha verdadeira situação, fiquei mais abalada ainda. Meus olhos estavam inchados, parecendo que apanhei, meu cabelo todo embaraçado porque dormi com ele molhado. Encarei o box igual ao do quarto ao lado e depois a banheira perto de mim. Fiz cara feia ao primeiro devido aos acontecimentos da noite anterior que pareciam bem vivos, seria então a banheira. Abri o registro, joguei um vidro com o líquido que fazia a espuma e deixei-a encher enquanto esperava, me sentei na tampa do vaso sanitário e encostei a cabeça na parede.
Não iria prometer beber de novo. Sei que iria mesmo. Também não iria fingir que estava bem para mim mesma, queria viver meu martírio como castigo por pensar que podia ficar com ele. Queria me maltratar. Então, pensava que ele era apaixonado por mim, mas que ele podia ficar com outra mulher livremente porque era assim que funcionavam as coisas. Pensei nos dias que fiquei em casa sozinha, nas camisetas com cheiro de perfume feminino, na Abigail, na mulher da cereja enquanto fui assediada, em Pierre falando que ele alimentou minhas esperanças e de mais várias mulheres. Precisava pressionar a ferida, fazê-la sangrar, para poder limpar, colocar o curativo e continuar sendo quem eu sou. Quem ensaiei para ser.
É difícil. Não tenho nem mais lágrimas, estava me sentindo apenas humilhada e exausta.
Eu era tão pequena e indefesa perto dele agora. Ele parecia o sol. Bonito e mortal. E, com certeza, eu não estava usando uma camada sequer de protetor solar.
Uma risada descontrolada e sem motivo irrompeu pelo meu peito, me assustando um pouco. Eu queria chorar e estava tendo um ataque de risos. Isso não era nada saudável.
Amar também não era saudável. Tinha um gosto amargo, como jiló.
Suspirei, me recuperando das risadas. Tão rápido o ataque de risos veio, tão rápido foi embora. Eu deveria me sentir bem, mas estava pior. Precisava de um método mais irrefutável para me fazer sentir dor. Arranquei a camisa com um pouco de violência, arrisquei dar uma fungada no cheiro, só para terminar a punição.
Ele achava que não gostava de ouvi-lo dizendo que gostava de mim. Dei um sorrisinho triste. Se fosse em outras circunstâncias, eu estaria dando cambalhotas em cima da cama sem parar de alegria.
Joguei a camiseta em qualquer lugar quando fui mutar a televisão. Um pouco de rádio parecia ser o que eu precisava para curar a ressaca e levantar meu astral. My heart... So blue do Erasure era anunciada para tocar depois do comercial, aquela estação gostava muito dessa música. Bom, era minha canção de cantarolar no banho e eu iria tomar banho. Timing perfeito.
Lembrei de quando ele falou que a música ficou na cabeça dele e de quando a cantei tomando banho, sabendo que ele escutava. Apertei os lábios em uma linha fina. Pelo visto, o dia seria regado a lembranças. Pensei que só seriam flashes da noite anterior, mas até diálogos de meses atrás estavam vindo me atazanar.
Aproveitando que a música tinha acabado de começar, corri até o banheiro e arranquei o resto da roupa, depois entrei na banheira.
Comecei a praticamente gritar a letra.
Ouvi batidas fortes na porta um pouco depois. Fortes chances de serem os papéis para assinar que Börje mencionou. Vesti o roupão e corri do jeito que meus pés molhados permitiam, não queria que a música acabasse antes de voltar. Destranquei e as borboletas no meu estômago reconheceram a pessoa antes mesmo da porta se abrir totalmente.
Era , claro.
Eu nunca tinha retornado com o número do fax para Börje.
Não queria soar mal-educada, apesar de ter sido clara ao dizer que não queria vê-lo. Abri mais a porta para que entrasse. Eu não poderia me esconder por muito tempo, afinal.
Ele fechou a porta atrás de si e veio andando atrás de mim. A música já estava no final e acabei desligando o rádio porque não queria ouvir mais nada com ele ali. Depois vinha alguma música romântica, como Forever do KISS no outro dia e o clima ficaria mais pesado do que já estava.
— Vou terminar meu banho — declarei, jogando a porta do banheiro para trás e vendo que uma fresta tinha ficado aberta. Não me incomodava. Ele não espiaria mesmo.
Relaxei de volta na banheira, a água estava em uma temperatura agradável. Ouvi o som da televisão de novo, estava no final do filme que me acordou, Lisa dizia para Baby que iria cuidar dela — o Johnny tinha ido embora.
A droga da música estava na minha cabeça. Eu deveria cantá-la? Era muito estranho depois de ter a lembrança de nós dois na casa do pai dele? Bom, não é como se eu nunca cantasse essa música em casa, eu cantei no dia extraordinário e... É, iria cantar sim. Parte de mim queria que ele ouvisse mesmo, mas isso não me deu coragem para falar mais alto ou gritar como estava fazendo anteriormente, então comecei em um tom entre o baixo e o normal:
I've got her picture it's there on the wall. I can't remember why I keep it at all. The doors are cold and all the windows seem grey. I write the book, there's so much more I should say.
Suspirei, passeei as mãos na espuma.
Wave goodbye. See my heart...so blue. Wave goodbye. Lost for you.
Cantarolei o resto da música enquanto me ensaboava. Acabei ao mesmo tempo que estava limpa, arranquei a tampa do ralo e observei, enrolada em uma toalha, a água ir embora. Não sei se queria encarar o que me esperava lá fora. Ali, na minha bolha, estava tão confortável. Já me sentia melhor, com certeza uma sensação que só cantando essa música e um banho quentinho poderia me proporcionar. Troquei a toalha pelo roupão e, de frente para o espelho, tentei dar um jeito no meu cabelo horrível. Dormir com o cabelo molhado era um pesadelo. Teria sorte em conseguir desembaraçá-lo sem arrancar um tufo do tamanho de um esquilo.
Olhando pelo lado bom, eu teria esse tempo aqui antes de ter que falar com ele. O que eu diria? Será que eu teria realmente algo para dizer? Talvez ele nem quisesse que eu falasse nada, só diria que havia uma passagem para Estocolmo comprada para mim e, que quando ele chegasse, teria que ter esvaziado tudo, que não queria me ver nunca mais. Eu meio que insinuei que ele tinha abusado de mim e estava sóbria. Não sei, se estivesse na pele dele, eu iria querer me ver. Não sei nem se queria continuar me olhando no espelho, porque estava extremamente envergonhada ao lembrar da cena.
O que eu ia fazer se esse fosse o caso? Pediria abrigo para o pai dele? Fora de cogitação, eu acho. Gostava muito dos , mas seria inconveniente ficar lá. E o Börje era praticamente o melhor amigo do .
Queria chorar de desespero. Quando me tornara tão chorona? Eu evitava chorar porque sempre me vinha minha mãe falando mal da minha cara de choro. Parecia que realmente tudo mudou desde que fui para lá.
Coragem, . Você é só mais uma adulta que bebeu demais. Acontece todos os dias, nada novo sob o sol. Ele nem parecia estar se importando tanto assim quando entrou.
Esse era um pensamento bom.
Mantive-o na cabeça enquanto terminava de pentear o cabelo, depois fiz um coque e escovei os dentes.
Apareci fora do banheiro, chamando sua atenção. Meu coração deu uma leve acelerada, mas me senti um pouco mais confiante em estar perto dele. Talvez minha dignidade tivesse sido mesmo restaurada, pelo menos um pouco.
— Estava com saudades de te ouvir cantando essa música cafona — comentou, hesitante de como deveria se comportar para que eu não saísse correndo.
A parte da frente de seu cabelo estava presa para trás com uma liga, ele adorava fazer esse penteado. Era fofo e me distraía. Escondi um sorrisinho que implorava para aparecer. Aquela ínfima parte de mim que queria fazê-lo escutar se alegrou. Sentei-me na cama, de frente para ele, que estava na poltrona ao lado da televisão velha.
— Achei que tinha dito que não queria te ver mais hoje — falei, soando um pouco grossa e percebendo logo em seguida. Aquilo tinha soado melhor na minha cabeça. Era para sair como uma brincadeira.
Ele reagiu com desconforto. Imediatamente eu quis retirar o que disse, mas ele falou primeiro:
— Eu me preocupei com você durante o dia inteiro — declarou, cabisbaixo.
Ele tinha se preocupado comigo, com minha situação e eu me preocupando com a possibilidade de ser mandada para casa. Que bobona, como dizia Lilly. Estava me sentindo culpada, não iria mentir.
— Só bebi demais, não precisava se preocupar. Já sou maior de idade em todos os países — respondi, tentando brincar de novo, mas a voz estava um pouco trêmula. Logo vi minha mão deslizando no colchão, implorando para tocá-lo de novo. Pigarreei e fechei-a em um soco.
— Precisava sim. Mal dormi porque fiquei com medo que se engasgasse e mais um milhões de tragédias que me passaram pela cabeça. Se isso acontecesse com você fora do meu controle, nunca me perdoaria.
Senti meu interior se derreter. Ele era fofo e se preocupava comigo, mas de um jeito meio trágico. Tinha que ter algo que pudesse ser feito para retribuí-lo, eu não me reconhecia na pessoa fria que só o enxotava. Já revelei muito do que sentia enquanto estava bêbada.
O beijo de “amigo” me veio à mente. Eu tinha gostado muito disso, ele pareceu gostar também. A gente poderia fazer funcionar desse jeito, se trabalhássemos direitinho, em conjunto e com limites. Amigos que se beijam e que tenham sentimentos um pelo outro. Era um jeito de deixar meu coração em paz, de se adequar às minhas limitações e dar o que ele parecia precisar tanto. Era uma adaptação da nossa realidade. Contanto que tirássemos o beijo mais profundo da nossa lista porque era demais, poderia viver com aquilo.
Agachei-me entre suas pernas, dando a devida seriedade para o assunto. Tinha algumas coisas que eu precisava esclarecer e que também precisava me desculpar. Então utilizei seu método de enumerar os assuntos de mais cedo:
— Primeiro, obrigada por cuidar de mim e se preocupar comigo — falei, olhando em seus olhos. — Segundo, desculpa pelo escândalo, eu não estava muito bem das ideias, mesmo assim não tenho direito de te perguntar quem prefere, não é justo porque sei que nós duas somos diferentes para você. Terceiro, agora que sei dos seus sentimentos por mim, por mais estranho que pareça, não quero que a noite de ontem não signifique nada exatamente por causa disso. — Me controlei para não fazer uma careta. Esperava que tivesse feito sentido para ele, assim como fez na minha cabeça. — Quero que saiba que não quero te atrapalhar de se relacionar com ninguém que esteja se relacionando. Nós só temos que achar um jeito de adaptar nossa amizade a tudo, ao que você sente, ao que eu preciso. Mas, por favor, sem os demais privilégios de casal. Quer dizer, pode me beijar, mas como amigo, nada de beijos que signifique mais do que isso. Isso faz sentido?
Ele me encarava, sua expressão era séria e compenetrada. A humilhação do dia anterior tinha ficado pior, já que dei sentido — sóbria — para ela. Depois de alguns minutos assim, eu fechei os olhos e falei:
— Desculpa, eu sou uma doida. Não tenho moral nenhuma para exigir nada de você depois de nos colocar nessa situação...
Ameacei me levantar. Ele apertou minha mão, me fazendo voltar para a mesma posição.
— Já posso usufruir dos meus privilégios, então? — ele perguntou, por fim.
Foi como se o dia tivesse finalmente nascido dentro de mim. Ele decidiu abraçar minha loucura. Não queria parecer entusiasmada demais, então me limitei a concordar com a cabeça e sorrir. Ele levantou meu rosto pelo queixo, minhas mãos começaram a suar. Prendi a respiração, ansiosa para saber o que seria de nós a partir desse momento da história.
— Espero que não deixe seus outros amigos fazerem isso, afinal, tenho ciúmes — ele brincou, sorrindo, e, logo em seguida, encostou os lábios nos meus.
Era exatamente o que eu queria esse tempo todo. Nossa amizade era diferente, a gente se gostava demais, então esse beijo parecia natural.
Também gostei de vê-lo jogar minha fala contra mim de novo.
Quando se afastou, eu me ergui e encostei nossas bocas de novo, em agradecimento por me entender. E mais outra vez porque o amo e estou feliz por pelo menos poder sentir seus lábios nos meus.
Sei que mais tarde, assim que ele passasse por aquela porta, eu sentiria mais vergonha por tudo que fiz enquanto estava fora de mim. Porém, por enquanto, eu aproveitaria o momento. Ainda doía em mim não poder oferecer tudo que aqueles olhos me imploravam e o que meu corpo clamava, mas dava para ser feliz assim. Sabia que sim. Ele também parecia satisfeito de me ver decidindo novos termos entre a gente.
Sentei-me em seu colo, sem nenhum tipo de malícia, só por me sentir livre para fazer depois que ele me colocou ontem. Abracei-o e descansei minha cabeça em seu pescoço, aspirando seu cheiro viciante. Ele me recebeu bem, com um pouco de hesitação no começo, mas logo relaxou, me mostrando que também me queria ali.
— Qual seu filme preferido? — sussurrei, olhando de relance os créditos de Dirty Dancing subirem pela tela. O quarto estava escuro, a única luz era aquela.
— Hm... Acho que Dr. Strangelove. E o seu?
Pensei em um bem inteligente para falar, mas acabei na estaca zero. Eu não tinha um filme antigo favorito, então precisava inventar um.
Dirty Dancing — me rendi ao que estava na minha cara. Era até um bom filme para falar que era favorito, gostava de ver o Patrick dançando, a Jennifer era linda e a maioria das músicas sabia decorada. Eu já o havia visto várias vezes para ser considerado como um filme qualquer. Apesar de que eu era muito fã dos filmes da Lindsay Lohan, especialmente Confissões de uma adolescente em crise, ela devia ser um bebê em 1990. Fora de cogitação. era espertinho demais, qualquer coisa poderia fazê-lo levantar suspeitas.
— Esse que estava passando na televisão? — perguntou, com um toque de sarcasmo. Concordei, querendo rir e me entregar. Eu achei que era uma pessoa criativa, agora vejo que não. — E por quê?
Droga, . Claro que você tinha que questionar, não é? Pensei rápido para não ficar estranho minha ausência de respostas.
— Quando me casar, quero que meu marido aprenda a dançar Time of my life e reproduza essa cena do final comigo — inventei. Quer dizer, não inventei, já vi casais na internet fazendo isso. Porém, foi a coisa mais idiota que eu poderia dizer no momento. Nem se eu revelasse que vim diretamente de 2019 seria pior que isso.
Ele gargalhou, eu também tive muita vontade, mas me mantive séria para o bem do meu orgulho. Cara, eu definitivamente não era criativa, estava ali a prova. Poderia inventar mil coisas, mas decidia recorrer a pior. Seu peito se balançava e tive uma vontade imensa de estapeá-lo.
— Coitado do seu futuro marido — comentou, em meio ao riso. — Espero que me convide para presenciar essa barbárie.
Espero é que você seja o noivo.
— Não, engraçadinhos não entram — falei, me fingindo de brava.
— Sou seu melhor amigo, você não faria a desfeita de me deixar de fora.
Opa, opa, opa.
— E você é meu melhor amigo?
— Você está sentada no meu colo e estamos vestidos. Se não fosse por ser minha melhor amiga, pode ter certeza de que não teria mais pano aqui no meio.
Minha pele se arrepiou e minha boca se escancarou. Ele riu e deslizou a mão pela minha coxa para me provocar.
— Estou com medo de você — comentei, ameaçando sair. — Agora acho que concordo, estou desconfiando se roupão é realmente o suficiente.
Ele riu de novo e me apertou contra si.
— Se não fosse o suficiente... — interrompi-o com o dedo em sua boca.
— Chega — declarei, mirando seus lábios ao mesmo tempo que tentava fixar o olhar em seus olhos. — Você é meu melhor amigo porque posso fazer isso quantas vezes quiser, sem terminarmos nos atracando. Já entendi.
Encostei nossas bocas. Ele sorriu, meio misterioso, e eu também, mas feito a bobona que Lilly dizia que sou.
— Sabia que minha melhor amiga é sua irmã? — perguntei.
— Claro, vocês duas falam no telefone feito duas velhas fofoqueiras quase todos os dias.
Dei um tapa em seu peito, fingindo ultraje.
— Lilly deve ter rezado muito para que mandassem alguém como você para fofocar, fazer compras e toda essa bobagem de garotas que nós três da família nunca tivemos paciência. — Ele acariciou minha mão em seu peito com seu dedão.
Que gracinha. Eu amava Lilly com todas as minhas forças, ela me salvou, se não fosse por essa menina, acho que iria explodir. Solveig era um bom ouvinte, mas ele não falava como ela. E como aquela maluca falava. Engraçado, porque nunca pensei em ter amizade com uma adolescente, mas ela me surpreendeu. Eu não me via mais sem ela.
Minha barriga roncou tão alto que até ele pareceu ouvir. Seu olhar estava na faixa do roupão.
— Vá se vestir, vou te levar para jantar — deu um tapinha na minha coxa. Levantei-me e fui até o armário tirar minhas roupas de baixo da mala. Fui até o banheiro para colocá-las, eram de renda dessa vez; há poucos dias, lavei todas juntas com um sabão para chuveiro e estavam cheirosas. As demais peças mandei para a lavanderia do hotel, eles devolviam até passadas, uma mordomia.
Depois de vesti-las, fui ainda de roupão de novo para o armário, ele me observava com a mão apoiando o rosto e o cotovelo apoiado no braço da poltrona. Parecia muito me assistir, como se eu fosse um filme. Achei cômico, mas não quis falar nada porque talvez ficasse com vergonha e nunca mais fizesse isso.
— Vamos para onde? — perguntei, segurando a porta aberta do armário.
— Só descer.
Ele estava falando do restaurante do hotel. Concordei com a cabeça. Não sei se estava muito bem para comer, mas seria bom ir até o restaurante do hotel. Ir a um restaurante caro com certeza o faria desperdiçar dinheiro.
Joguei as roupas no sofázinho atrás de mim. Será que ele se importaria se eu me trocasse ali? Como tinha me visto no dia anterior naquelas condições, acho que pareceria que não me sentia confortável perto dele se eu entrasse no banheiro para me vestir — sendo que obviamente eu estava de roupas íntimas —, parece até que não confio nele. A gente estava fazendo aquilo, estávamos confiando um no outro. Peguei o cordão do roupão e antes de puxá-lo, perguntei:
— Posso?
Ele concordou com a cabeça, sem sair da posição. Soava como um grande passo. Virei-me para o sofá — onde estava a roupa —, porque não tinha coragem de fazer isso retribuindo seu olhar, era revelador demais. Desamarrei o roupão e abri-o, deixando deslizar pelo meu corpo e cair em meus pés. Eu tinha plena consciência de que no lugar que ele estava, dava para ver mais minha bunda do que a parte da frente do meu corpo. Era uma das partes que tinha insegurança, as europeias — como a Lilly disse — geralmente não possuíam tanta carne naquele local, o que me tornava meio fora da curva por ter essa quantidade, além das celulites e algumas estrias que acompanhavam. Não era possível me esconder, a calcinha era lilás e a renda quase transparente. Teria que confiar que ele não me acharia estranha, não precisava me tampar, ele já até me vira em situações mais comprometedoras. E se ele me achou estranha pelada? Duvido, ele parecia estar muito afim, e ele disse que era apaixonado por mim. Mesmo assim, enfiei primeiro a calça no estilo alfaiataria em xadrez de preto e cinza, com pressa para cobrir aquela parte.
Virei-me para ele, abotoando-a. Estava meio nervosa para ver sua reação. Ele apenas tinha um brilho nos olhos e um sorriso discreto, não revelava muito.
— O que foi? — perguntei, meio receosa.
— Você é linda — disse, simplesmente, me surpreendendo. Parecia que ele lera minha mente. Deveria era estar escrito na minha testa (ou na minha bunda) que eu estava insegura.
— E você é cego — sorri, recorrendo ao humor para me salvar. — Não era para você ficar me observando. Anda, vira para lá.
— Sério que entre a mulher se vestindo na minha frente e a parede, você vai me fazer escolher a segunda opção? — brincou também, mas depois se virou.
Vesti minha camiseta do último álbum que era a minha favorita, eu tinha umas três ou mais dessa estampa. Esse álbum sempre foi e iria ser meu favorito. Em seguida, vesti um casaco preto aberto e de lã.
— Pode olhar agora — falei, chamando sua atenção de volta para mim.
Queria pegar a mão dele no caminho, mas me contive. Não tinha certeza se era um privilégio de casal andar de mãos dadas publicamente ou algo que nós podíamos e estávamos dispostos a fazer.
Será que a gente deveria conversar sobre isso? Tinha realmente necessidade?
Concluí que, se ele pegasse minha mão, eu não falaria nada. Apenas aproveitaria cada segundo.

***


Estávamos esperando pela comida, pedi uma salada com frango e ele rosbife. Então decidi puxar papo para deixar o clima mais tranquilo.
— Por que aprendeu a falar alemão? — perguntei, bebendo minha Coca-Cola de cereja.
Ele direcionou o olhar para mim.
— Hmmm... — Não estava pensando, estava surpreso por me ouvir falando depois do nosso momento de silêncio desconfortável. — A tradução que fizeram do Richard Wagner é uma merda. Aquele cara é um gênio, então aprendi a língua dele para apreciar o trabalho. Também é um idioma fascinante. — Bebeu sua água com gás, me imitando.
— Acho uma língua bonita.
O silêncio se instaurou entre a gente de novo, mas ele me olhava parecendo pensar no que queria saber sobre mim como se eu ainda guardasse muitos segredos. Mal sabia ele que, além dos que eu não podia contar de jeito nenhum, já havia entregado a minha alma de bandeja em suas mãos.
é seu nome completo? — ele perguntou, seus olhos brilharam em súbita curiosidade.
Luz — respondi.
— Devo ressaltar o quanto seu nome é tão poético. — Ele deixou o copo e ergueu a mão. — — falou meio cantado. — Rima com bastante coisa.
Ri. Não conseguia visualizar nenhuma possível combinação, mas, ainda assim, me sentia lisonjeada. Ele que era o artista e se ele dizia que meu nome era poético e rimava, quem era eu para discordar?
— Acho que você é o primeiro a gostar do meu nome, além dos meus pais.
Já tentei de todos os jeitos gostar, mas aquele era definitivamente meu ponto fraco. Acho que minha mãe tem muito mau gosto para o ter escolhido. Ele bebeu o líquido do copo enquanto sorria e me fitava.
não me parece muito brasileiro, na verdade, é um sobrenome sueco comum — franziu as sobrancelhas.
— Sim, acho que algum dos meus antepassados era seu conterrâneo.
— E esse seu nome do meio? Não sabia que você tinha um.
— É um sobrenome, veio da minha mãe. Não gosto muito de usá-lo, mas traduzindo é Light.
Luz . É um nome bonito, que combina perfeitamente entre si e com você — ele disse, olhando para um ponto qualquer. Minhas bochechas coraram. O jeito que ele falou me deu a ideia de que ele não esqueceria do meu nome inteiro e ficaria o repetindo mentalmente. Gostei de ter tido essa impressão e bebi do meu copo. Ele virou de volta, de repente. — E você, por que fala sueco?
Bem, por sua causa.
— Hm... Na verdade, eu não posso dizer que falo, aprendi um pouco em um intensivo e mais um pouco vivendo com vocês, no trabalho, no mercado.
— Acho que você fala muito bem. Esses dias, eu e Börje estávamos discutindo isso, acho que por ser brasileira, você tem um sotaque bem diferente, que a gente nunca ouviu. É bem curioso e gostoso de se ouvir.
Minha cara estava completamente vermelha, eu podia sentir.
— Não acredito que você discutiu sobre meu sotaque com meu outro chefe — falei, rindo.
— Como seu outro chefe também é meu pai, a gente discute várias coisas, já discutimos maneiras de te pedir em casamento — provocou. Aquele, sim, era um assunto aleatório e inusitado, mas conseguia ver perfeitamente os dois discutindo isso e rindo da minha cara.
Ele gostava tanto de me ver vermelha que fazia de propósito, aquele sorriso presunçoso entregava as suas intenções. Eu sabia que era brincadeira, mesmo assim, ficava mortificada e dava o que ele queria.
— Porém, depois de ouvir que o noivo terá que dançar aquilo, honestamente, eu desisti de encabeçar a lista de pretendentes — continuou, se divertindo às custas da minha vergonha. — Mas nunca direi isso a ele, porque tenho certeza de que ele e Karin iriam até se voluntariar para nos ajudar com isso. Meu pai, o seu outro chefe, está disposto a fazer de tudo para te ter na família.
Filho da puta.
Dei língua para ele, que retribuiu com um sorriso cruel. Se eu escolhesse cair na sua brincadeira de verdade, as coisas se tornariam perigosas demais e ele sabia disso pela forma que sorriu. Era uma enrascada.
Ainda bem que o garçom chegou com os pratos, porque juro que poderia esganá-lo se ele falasse mais alguma coisa sobre casamento, Dirty Dancing, qualquer coisa que me deixasse mais vermelha que estava — como se fosse possível.
Jantamos enquanto discutíamos coisas bestas e aleatórias. sempre tinha curiosidades legais para ensinar, era uma característica marcante dele. Eu adorava vê-lo divagar para me explicar o que sabia e ele sabia muita coisa.
Eu tinha ansiedade só de pensar em como seria não estar mais aqui, não poder ouvir sua voz e ver o brilho nos seus olhos enquanto falava sobre assuntos que dominava. Provavelmente iria adoecer. Conseguia me ver miserável, me arrastando na minha rotina sem graça, para a faculdade e para o zoológico. E ele? Tenho certeza de que não seria indolor ficar sem mim também, nesse ponto do nosso relacionamento, onde já vivemos uma história e ainda tinha o fato de que ele estava apaixonado por mim.
Céus, estava apaixonado por mim! Eu consegui fisgar meu ídolo sem nem ao menos tentar. Na verdade, eu meio que tentei fazer tudo para que aquilo não acontecesse, ao mesmo tempo que acreditei que não havia chances. Quer dizer, como alguém toda destrambelhada feito eu conquistaria alguém tão cobiçado feito ele? Não dá, a equação não bate. Eu deveria ter mais amor-próprio, mas ao me imaginar perto das mulheres com quem ele se relacionava, ficava meio difícil.
Só que ele estava apaixonado por mim, logo por mim.
Nós subimos de volta para os quartos. Minha cabeça doía, ele me acompanhou até o meu porque ficou preocupado. Fui até o banheiro sentindo a cabeça latejar e tomei dois comprimidos de um remédio que estava na necessaire. Achei que ia me livrar da enxaqueca daquela vez, mas fazia parte do processo natural de cura do meu corpo.
Troquei minha roupa pela dele que estava no chão, depois carreguei minha pilha de roupas para deixar no sofá. Ele estava sentado na cama.
— Está tudo bem? — ele perguntou, minha cara não deveria estar nada boa.
— Não. Mas vou ficar — murmurei, meio atordoada.
Comecei a ajeitar a cama. Minha cabeça latejava conforme meu corpo se movia.
— Não estou muito confortável com a ideia de te deixar sozinha.
Também não queria que isso acontecesse. Queria dormir só mais uma vez com ele do meu lado, só para garantir que iria me sentir em casa de novo.
— Pode ficar, se quiser.
E, por favor, queira.
Ele tirou a camiseta e a calça de couro sintético. Eu queria aproveitar para admirar seu corpo assim como ele tinha feito com o meu, mas minha cabeça estava doendo demais para isso. Deitei-me na cama enquanto ele apagava as luzes. Meu coração queria reagir quando senti ele se posicionando nas minhas costas, mas só realmente aconteceu quando ele me abraçou. Ele botou a mão no lugar exato que meu coração martelava alucinadamente para alcançá-lo e seus dedos acariciaram minha pele, como se fosse para corresponder.
Sua outra mão acariciou meu cabelo e ouvi-o murmurar: se piorar, me acorda. Não o acordaria, claro, mas fiz que sim. Dormir mais um dia com ele me faria ficar mal-acostumada, com toda a certeza do mundo.

Capítulo 19 - Jealous Guy

Suécia

Eu e Lilly viemos separando vários anúncios de apartamentos no jornal. Ela marcou com um círculo em canetinha rosa todos os lugares que concordamos que eram razoáveis. Naquele momento, ela estava revisando as oportunidades no chão da casa do irmão — o qual estava sendo ranzinza enquanto estava trancado no estúdio e praticando uma flauta “diferentona”. O assunto ainda não era muito, digamos que formidável, para ele.
Solveig se remexeu no meio das minhas pernas cruzadas, se espreguiçando.
Era tão bom estar de volta. Ainda mais cercado por Lilly e Solveig no chão da minha futura antiga casa.
Passei a primeira noite de volta na residência da família , especificamente no quarto de Lilly, já que ela me alugou a noite inteira para me atualizar sobre tudo com detalhes. Karin ficou emocionada ao nos ver, fez para o jantar uma receita que tinha aprendido recentemente na TV — bolo de carne —, o que foi bem especial, porque me fez lembrar da receita da minha vó e eu tive vontade de chorar por aquilo. Solveig fez até xixi quando nos viu, pulou no meu colo e ficou com ciúmes porque ele preferiu me cumprimentar primeiro. Andreas foi outro que ficou bem feliz em nos ver de volta, quer dizer, em me ver, porque, como ele disse, assim Lilly pararia de encher o saco o dia todo falando o quanto sentia a minha falta.
Tudo em Estocolmo realmente me soava como família e isso fazia com que eu me sentisse amparada por mais longe do meu século que estivesse. Ao contrário da primeira vez que voltamos da promo, eu sabia que tinham pessoas (e um cachorro) que me aguardavam e gostavam de mim. E, bem, eu estava feliz para caralho com aquilo.
Não demorou muito para restabelecer minha rotina — quer dizer, mais ou menos, eu tinha o bônus de ser a intitulada “melhor amiga” do meu chefe, que mal falava comigo quando saímos dali. Além disso, eu realmente fiquei mal-acostumada depois de dormir com ele no hotel duas vezes seguidas, então insisti para que parasse de dormir no sofá e viesse dormir comigo. Ele aceitou tranquilamente. Imaginava que sua coluna tivesse tido parte naquela decisão. Aquele parecia até um grande passo, mas foi tão natural quanto beijá-lo, uma necessidade que apareceu e acabou mesmo se instalando. O que eu poderia fazer? Eu nunca tivera uma companhia que me mostrasse que dormir de conchinha pudesse ser algo extremamente viciante e quentinho — especialmente no frio do outono! —, então eu acabei por me dar o luxo de ter e ele acabou embarcando naquela comigo. Afinal, era por um bem coletivo.
Isso não significava que não houvesse contratempos.
Em uma daquelas noites, aconteceu algo que nos deixou extremamente sem graça, mesmo tendo a maturidade para, no fim, relevar. Ele se posicionou atrás de mim — como já tinha se tornado um costume desde o dia do hotel —, eu estava meio dormindo, então encaixei a parte traseira toda do meu corpo nele, sem raciocinar. Quer dizer, geralmente quem fazia a aproximação era ele e eu sabia que era o mais confortável para ele porque isso poderia acontecer, mas na hora eu não pensei em nada. Quando senti algo me cutucando de volta, aí sim me dei conta e pulei da cama — como se houvesse literalmente uma maldita cobra na cama. Sei que eu exagerei na reação, até porque Solveig fez questão de mostrar isso quando começou a rosnar para ele, achando que realmente tinha algum tipo de ameaça vindo de seu próprio dono. Acho que minha cara e a dele conseguiram alcançar todos os tipos de tonalidades provenientes da vergonha, como se nós não tivéssemos 24 e 25 anos e soubéssemos que aquilo poderia acontecer a qualquer momento. Ele me pediu desculpa umas trinta vezes e eu concordei com a cabeça para mostrar que estava tudo bem. Eu não poderia culpá-lo, porque minha reação também não foi nada à altura, mas fui pega de surpresa.
O dia entrou para minha memória como o que fiquei roxa de vergonha e vi outra pessoa na mesma situação.
Ao longo desses dias, ele também me mostrou algumas das letras do disco que lançaria no ano seguinte e perguntou minha opinião. Porém, eu amava aquele álbum com todas as minhas forças, era até injusto opinar. Apesar de saber que, dali a alguns anos, ele não iria gostar daquela fase da banda, decidi não tentar intervir para ajudá-lo a fazer algo diferente — como fiz com a letra daquela música, quando a achei no quarto/estúdio dele. Estava um pouco arrependida de ter interferido no seu processo criativo porque achava que não era o que um viajante deveria fazer, e, sim, deixar as coisas tomarem seu curso, por isso preferi falar apenas que tinha amado.
Também começou a temporada de gravação em estúdio, que ficava no centro de Estocolmo, um pouco longe do escritório e de casa. Era Börje quem o ajudava, eu nunca precisei ir. No fim do dia, quando estávamos deitados no escuro, ouvia-o sempre reclamar: “acho que esse disco está depressivo demais”. E, todas as vezes, eu dizia que era bobagem e estava incrível, assim como todos as suas outras criações — o que era verdade, ele realmente era um músico talentoso e eu o admirava com toda a minha força.
Porém, quando colocava algo na cabeça... Não tinha o que eu pudesse fazer para convencê-lo do contrário. Ao ver que estava errado, demorava um tempão para assumir. Essa era uma característica que eu sabia que ele tinha antes mesmo de chegar ali, porque ele disse em uma entrevista e era impossível não concordar quando você o conhecia melhor. Então, tinha esperança de que, um dia, ele fosse perceber que o disco foi especial à sua maneira, assim como todos eram para a história da banda e dele. Esperava que ele estivesse vivo para ver se concretizar, eu queria, ao menos, ter notícias de que ele se orgulhava da sua música quando voltasse para 2019, por mais que ele viesse a parar em certo ponto.
Ele me fez uma surpresa, me levando em um belo dia ao balcão de uma companhia aérea para comprar passagens com destino a São Paulo, a data estava marcada para o dia 1º de dezembro. Quando cheguei em casa e liguei para Lilly, descobri que todos os já tinham passagens para irem também. Quase caí para trás. Aquilo foi legal nos primeiros dias, admitia, mas vinha atacando a minha ansiedade. Não sabia se era uma boa ideia estar no meio de uma viagem em família. Meus maiores medos eram de me sentir intrusa e de decepcioná-los por ser o meu país em questão.
Natalia ainda estava trabalhando comigo, mas só falávamos pelo telefone porque ela estava na França. A memória das palavras de Pierre era algo que me assombrava muito ainda, mas a garota estava longe demais e eu e estávamos incrivelmente bem, então vinha tentando apagar aquilo da minha mente. Era um processo lento e dolorido, mas eu estava trabalhando nele.
Quando saía para trabalhar ou para farrear, eu limpava o estúdio dele durante todos aqueles meses, mas nunca mais encontrei suas anotações sobre as músicas que deveriam ser do futuro — que ele disse em entrevistas ter escrito apenas em ‘93, ‘94 e ‘95. Acreditava que até aquele momento ele não sonhava em ter uma carreira solo, nunca o perguntei, porque não sabia nem qual desculpa inventar para justificar a pergunta. Só curiosidade repentina não colaria.
Aquelas folhas pareciam ter aberto um buraco no chão e sumido, não sabia se ele tinha jogado fora, botado fogo, escondido ou levado para outro lugar. Eu esperava muito que ele tivesse tocado fogo e começado do zero, sem o que escrevi, mas sabia que no final sairia do mesmo jeito que coloquei. Isso ainda me deixava confusa, porque, se tive o poder de interferir em algo que vi que aconteceu em 2019, então eu desconfiava que tive um papel significativo na vida dele. Ou seja, talvez, o meu plano tivesse chances e eu pudesse salvá-lo.
Voltando ao apartamento, eu mal via a hora de ter meu lugar para poder pegar todos os livros na Stadsbiblioteket — a biblioteca pública de Estocolmo, absurdamente grande, um dos lugares mais bonitos que já vira na vida —, que andei filtrando sobre viagem no tempo. Anotei todos os nomes, mas não poderia pegá-los porque não queria chamar a atenção dele. Sentia que estava bem próxima de entender algumas daquelas incertezas e aquilo me deixaria melhor.
— Temos três visitas marcadas para hoje — Lilly disse.
— Ótimo! — falei. — Se eu gostar de algum, não vou nem visitar os de amanhã. O apartamento vai me escolher.
Ela sorriu.
— Certo. Então vamos indo ou nos atrasaremos — lembrou.
Concordei, indo no quarto pegar meias de lã novas e um casaco fino. Lilly estava batendo na porta do quarto para chamar o ser humano mais ranzinza da face da terra. Escutei-o falando para entrar, mas ela não respondeu, o que o fez sair pela porta. Observei-o pela minha visão periférica aguçada, ele estava de cabelo preso, usava shorts — mesmo que a temperatura fosse de 7ºC —, uma camiseta cinza e uma camisa de flanela xadrez por cima.
— Estamos saindo — ela resmungou. Claramente estava sem paciência alguma para lidar com uma versão cricri do seu irmão mais velho.
Ele suspirou pesadamente e concordou.
— Bom passeio — respondeu. Virei-me para ele, assustada com o que ele disse e até duvidando um pouco do que escutei. Só de olhar era possível perceber que sabia muito bem aonde a gente ia, mas resolveu dar uma trégua depois de tanta discussão.
Ele beijou as duas bochechas de Lilly, depois veio até onde eu estava, me deu um selinho e voltou para o estúdio.
— Nunca vou entender vocês dois — ouvi a menina resmungar enquanto eu ia até ela.
— Beijo de amigos — respondi, dando de ombros.
— Ué, mas a gente não se beija — ela riu com sarcasmo. — Vocês é que ficam arrumando motivo para se beijarem, acham que eu não sei?
— Beije-a, . Ela está morrendo de ciúmes — ouvi-o gritando do quarto.
— Até parece que você a dividiria comigo, do jeito que é possessivo quando se trata da sua querida melhor amiga, nunca permitiria que isso acontecesse — ela gritou de volta ainda com sarcasmo. Desde que ela tinha descoberto que ele nos intitulou melhores amigos, estava realmente um poço de ciúmes. — Sorte a sua que eu que não quero.
— Vamos logo, Lilly — falei, me virando e a pegando pelo braço para acabar com aquela discussão chata entre irmãos. Quem convivia com os sabia que eles adoravam simplesmente encher o saco um do outro. E, se eu bem conhecia os dois, a discussão se estenderia por horas.
Quando e eu chegamos em casa depois da viagem, esperei até ele se deitar na cama comigo e Solveig — o que o deixava devidamente relaxado —, para então dar a notícia que iria me mudar. Ele ficou muito, muito, muito bravo. Expliquei que amava morar ali, mas que eventualmente precisaria do meu espaço porque tirava toda a intimidade dele — talvez eu tenha usado palavras como: “vou me mudar para você poder voltar a trazer garotas para a sua casa”. E ele não gostou nadinha. Na verdade, ele levou até como um insulto. Então, toda vez que o assunto vinha à tona, ele agia como um menino mimado ou como se eu estivesse pisando no seu dedinho do pé. Me equivoquei um pouco em ter usado essas palavras, mas era a verdade, ele podia gostar de mim e ter uma vida sexual ativa à parte. era homem, ainda mais na virada dos anos 80 para os 90 que as coisas eram bem doidas. E eu estava tentando ser mente aberta quanto àquilo, só para variar. Não estava funcionando tão bem assim na minha mente quanto funcionou nas minhas palavras. No entanto, não queria estar mais na cama dele, esperando, enquanto o bendito estava na rua com outra mulher. Aquilo ia ser como continuar a pisar no meu dedinho.
Lilly e eu visitamos os dois primeiros apartamentos. O primeiro parecia bastante um abatedouro e o segundo era tão perto do metrô que balançava a construção. Cruzei os dedos para que o terceiro fosse o apartamento da minha vida, eu não queria perder meu dia seguinte de trabalho procurando novamente. Ainda mais que tinha voltado à produtora e tudo estava um caos.
Subi as escadas com Lilly na minha frente e o corretor liderava o caminho. Quando entrei pela porta, não senti a conexão que esperava, mas, ao andar pela casa, percebi que tinha cara de lar e simpatizei. Eram três quartos, eu nem tinha o que colocar nesse tanto de cômodo, mas não era um empecilho, sempre se arrumava alguma bagunça aqui ou ali para ocupar um quarto.
Ficava em Hässelby. Era perto do apartamento de , que ficava próximo a parte de Vällingby e tudo o que eu poderia pedir naquele momento. O corretor disse que eu não precisaria comprar móveis, o senhorio informou que, se quisesse manter os móveis, ele não os mandaria para o depósito. Eram bons móveis, então estava ótimo. No primeiro quarto do corredor havia um escritório com cadeira, mesa, gaveteiro e uma estante; o segundo era um quarto que parecia ter pertencido a uma criança — que poderia vir a ser meu quarto de hóspedes. No terceiro, a suíte, que era jeitosa, uma cama de carvalho ocupava o quarto quase inteiro, guarda-roupa de madeira escura do lado direito e mesas de cabeceira de ambos os lados. A sala era de madeira clara, os estofados eram brancos e pareciam recém-limpos, eu só precisaria comprar uma TV e um videocassete para torná-la perfeita. A cozinha era legal, tudo bem novo, na medida do possível. O banheiro social não tinha banheira, mas o da suíte tinha — só não era daquelas gigantes da casa do Börje, é claro.
Lilly também havia gostado, o que ajudou muito na minha decisão. O corretor avisou que era possível pegar a chave dois dias depois, caso fizesse o depósito do primeiro mês naquele dia. Então decidi ficar.
Senti um frio na barriga e percebi o quanto aquilo significava, nunca tinha alugado um lugar só para mim antes. Eu oficialmente era uma adulta, com contas de casa que dependiam unicamente de mim.
Saí do prédio receosa. Esperava estar a ponto de saltitar, mas, na verdade, estava tudo confuso dentro de mim. Quis chorar, gritar, rir, fugir, tudo ao mesmo tempo, mas saltitar não. Uma partezinha minha ainda queria ficar com .
Depois de ir ao banco fazer o depósito, eu e Lilly nos sentamos para tomar um café.
— O que foi, ? — ela perguntou, depois de me observar sem parar por um tempo.
— Hã? — virei para ela, fingindo que não tinha percebido seus olhos em mim. Ela levantou as sobrancelhas, questionando. — Nada — respondi rápido.
— Sei — ela respondeu, com o sarcasmo típico da família. Lilly andava muito sarcástica, o que provava que ela vinha me observando há um tempo e percebido que eu estava escondendo algo.
O atendente apareceu e pedi um latte, ela pediu chocolate quente e torradas.
— E então? — ela disse, pousando a bolsa no chão.
— Ah, sei lá, nem eu mesma estou entendendo. São um monte de emoções conflitantes. Nem sei se quero mesmo morar sozinha, afinal de contas.
Ela suspirou e concordou com a cabeça, mostrando que entendia minha preocupação.
— Imagino que seja difícil dar esse passo. Mas pensa que você precisa do seu próprio espaço. Também não sei se é bom vocês dois morarem juntos mais. Está explícito que o quer muito... — pigarreou porque umas pessoas passaram por nós, entrando no café — te comer. Se um dia você não estiver pensando direito e ceder, tenho certeza de que você gostaria de ter um lugar só seu para fugir depois. Te conheço.
Neguei.
— Eu não deixaria isso acontecer, mas você tem um bom ponto.
Ela arqueou apenas uma sobrancelha, mostrando que acreditava fielmente que isso iria acontecer uma hora ou outra.
— É o melhor para a privacidade de vocês dois. Vocês começaram da maneira errada: morando junto logo de cara, sem nem se conhecerem. É claro que ia dar errado. Você sempre foi apaixonada por ele e, quero dizer, olhe só para você, você é linda e uma pessoa incrível, como não poderia acontecer o que aconteceu? Foi natural que vocês se desentendessem depois, imagina conviver com um estranho quando ambos não têm o hábito de dormir com a mesma pessoa por vários dias seguidos, quem dirá viver na mesma casa. — Ela puxou o ar e expirou, parecendo refletir. Lilly aconselhava muito bem para uma adolescente, eu ficava de cara. — Agora que resolveram tentar ser amigos depois de tudo que aconteceu, incluindo ele te deixar sozinha naquela pista de dança, eu acho que você não deveria demonstrar exclusividade e tanta vulnerabilidade por ele, a menos que ele mostre que é recíproco. Se nós bem o conhecemos, ele está saindo com outras garotas e, se está chateado assim, é porque não terá mais quem o espere em casa para aquecer sua cama. E eu sei que você não está satisfeita com a ideia de que ele tem outras garotas, mesmo que diga que está tudo bem. Dê um gelo nele, , a menos que ele retribua seus sacrifícios da mesma forma. Você tem que se dar o valor. — Ela jogou o cabelo para trás do ombro e piscou um olho para mim.
Eu não tinha o que responder, aquilo foi um balde de água fria em mim. Tinha sorte de não estar com a boca escancarada naquele momento. Ela tinha razão, eu tinha que tratá-lo com menos entrega, até porque nós éramos apenas amigos. Ele vinha saindo aos finais de semana, não me interessava com quem, já que eu estava prestes a me mudar, mas percebi que ele ao menos se esforçava para voltar para casa e não dormir fora. Talvez, porque, como disse Lilly, ele tivesse uma trouxa para esquentar sua cama.
O atendente chegou com nossos pedidos e pousou na mesa, interrompendo meus pensamentos. Misturei o latte, pensativa de novo. Lilly era uma amiga incrível por me aconselhar assim sem tomar o partido do seu irmão e eu sentia que estava traindo-a por não contar o que ouvi saindo da boca de Pierre. Ainda mais porque era um assunto que andava me pesando toda vez que me vinha à mente, eu queria entender muito o que significava. Antes que ela me questionasse de novo pela forma que estava me olhando, resolvi abrir o jogo:
— Então, mudando mais ou menos de assunto, tenho que admitir que não te contei uma coisa. Não me mate, eu só queria esquecer porque verdadeiramente não é da minha conta e eu descobri xeretando. Mas como não está funcionando, preciso externar.
Ela concordou, tomando o conteúdo da xícara, mostrando que poderia continuar.
— Quando estávamos na Alemanha e encontramos um amigo do seu irmão, o ouvi dizendo que eu não merecia estar no meio da coisa que a Natalia e o têm. Eu fiquei pensando o que poderia ser isso, pela maneira que ele respondeu...
Pousou a xícara e demorou exatos três segundos para o seu olhar passar a ser recheado de pena. Minha cabeça esvaziou, levando todas as emoções e deixando apenas uma: desespero. Ela nunca me olhara daquele jeito, o que significava que não vinha coisa boa. Eu definitivamente não gostava de receber olhar de pena, nem mesmo da pessoa mais legal do mundo, que era a Lilly.
— Natalia é amiga da minha família há muito tempo, ela e o , bem... Sempre foi meio chiclete o relacionamento deles. Desde adolescentes, sempre vão e voltam, mas nunca pararam de se falar. Ela sabe que como namorados não se dão tão bem, por isso o lance deles agora é mais casual. Sabe como é, não é? Ela viaja muito, quando aparece em Estocolmo e os dois estão entediados, eles procuram conforto um no outro. Os dois possuem objetivos diferentes na vida e nenhum é prioridade para o outro.
Provavelmente minha cara de merda se fez bem visível. Não, Lilly, eu não sei como é esse rolo casual deles. Ela pareceu meio assustada, então me ajeitei na cadeira para tentar melhorar. Bem, aquilo explicava muita coisa. Queria estar com raiva por ela não ter me contado antes, mas estava brava por estar certa, por saber que tinha algo ali e ter lutado para desacreditar de mim. Uma lágrima escorreu pela minha bochecha e limpei com a manga do casaco. Tinha sido uma sequência de baldes frios jogados na minha cara por ela. E, dessa vez, não era de uma maneira boa.
— Calma, ok? Eles não estão juntos, você me ouviu. — Pegou minha mão em cima da mesa, tentando me tranquilizar.
— Não estou chorando por isso, Lilly. Estou chorando porque dói estar certa quando não se quer estar — falei, querendo chorar mais. Minhas unhas machucavam a palma da mão que ela não segurava. — Então eles nunca foram só amigos, hein? Sempre teve um sentimento antigo por trás.
Ela suspirou, fechou os olhos e concordou.
— Não deveria estar sendo eu a te dar essa notícia e vou estapeá-lo por isso. — Ela abriu as pálpebras de novo.
Então era isso, eles realmente tinham algo. Não era coisa da minha cabeça. Queria poder gritar com ele que estava envolvida até o último fio de cabelo naquilo sem ter escolhido estar, mas já deixei claro como cristal que não tínhamos nada, então não fazia o menor sentido. Eu teria que aguentar Natalia jogando na minha cara que ela o tinha e sabendo que era verdade.
Doía como o inferno saber que ele estava apaixonado por mim, mas, na primeira oportunidade, poderia correr para os braços dela porque a amava.
Pois bem, definitivamente não era problema meu quem ele estava fodendo. Por isso, forcei um sorriso e bebi meu latte.
— Estou com medo desse seu sorriso — ela comentou, soltando minha mão e me analisando.
— Acho que é apenas a TPM me fazendo piorar tudo — menti, fungando para engolir o choro. Não era uma mentira tão grande assim, eu estava sentindo cólicas e sabia o que me aguardava em breve.
— Você não toma pílula contínua?
— Acabei largando, não tenho mais motivo para tomar.
Não vai rolar nada entre a gente, por isso ele poderia afogar o ganso em quem bem entendesse. E, também, eu não tinha interesse em namorar outras pessoas tendo só ele na minha mente, então, como dizia meu querido amigo Raj: segue o plano. Eu só precisava salvá-lo, que se fodesse o resto.
Ela concordou com a cabeça, o que mostrava que não iria falar mais. Pela sua expressão, vi que ela se convenceu de que, no momento, eu era uma causa perdida. Terminamos de beber e, ela, de comer, pagamos a conta e voltamos para a casa dele. Não tocamos mais no assunto.
foi deixar a irmã em casa, fiquei sozinha com Solveig e com o sentimento ruim de não pertencer mais àquela casa. Queria pegar minhas coisas e sair correndo dali. Lilly bem que disse que eu ia querer fugir dele, mas nós nem havíamos feito nada para que aquilo acontecesse.
Ela sussurrou, em meu ouvido, antes de ir:
— Não se preocupe, é você que está aqui, não ela.
Mas como me convencer daquilo?
Quando chegou em casa, eu já estava de pijama e esperando-o para jantar. Fiz uma receita de nhoque que vi na televisão naquele meio tempo. Ele jogou as chaves na bancada da cozinha, tirou o casaco e pendurou no cabideiro. Estava de calça de moletom, a mesma camiseta e o cabelo preso no rabo de cavalo baixo. Eu estava sentada em um dos bancos na bancada da cozinha.
— Oi. — Beijou minha cabeça.
Percebi que meu humor estava bem afetado quando ele se aproximou.
— Olá — respondi, meio vazia.
Ele pegou um dos pratos que estava na minha frente e começou a mexer na panela.
— O que foi? — ele disse.
— Por que você ficou com raiva quando insinuei que outras mulheres poderiam frequentar a sua casa? — falei, analisando o material da bancada que acabara de limpar. Nem sabia que eu ainda estava pensando naquilo até sair pela minha boca, mas parte de mim queria ouvir dele algo que me fizesse culpá-lo.
— Porque não quero que você vá embora por um motivo banal desses. — Entregou-me o prato, peguei e ele alcançou o outro para começar a preenchê-lo.
— Não é um motivo banal! Não quero que eu seja seu empecilho, só isso — gesticulei exageradamente.
— Já entendi, baby. Só que eu não preciso trazer mulheres para cá para me relacionar com elas, é isso que quer ouvir para ficar?
Meus olhos se encheram de lágrimas, ele tocou diretamente na ferida sem nem saber. Sentou-se ao meu lado com o seu prato. Eu não queria ficar na casa dele enquanto ele estava com outra mulher, assim como costumava ser antigamente. Ainda mais sabendo que, se a Natalia estalasse os dedos, ele iria feito um cachorrinho e que mantinha aquilo porque provavelmente a amava. De repente, comecei a ver tudo vermelho por causa da raiva. Eu não queria mais noites regadas a lágrimas na cama dele pensando nele com mulheres sem rostos ou simplesmente com ela.
Desci do banco e mordi o lábio inferior, me controlando.
Eu não podia ficar mais ali, não quando aquilo era tão importante para mim.
Repensar na sua fala foi o gatilho perfeito para me fazer explodir.
— Que merda, ! — gritei e joguei o prato na pia, por pouco não o quebrando. Ele se sobressaltou e me olhou, atônito. — Eu não vou ficar aqui para esquentar sua cama! Então traga mulheres, faça dessa casa um maldito harém, não é da minha conta!
Saí correndo e Solveig veio atrás, fechei a porta atrás dele. As lágrimas desciam furiosamente. Tudo o que eu não queria fazer, fiz. Urrei de ódio. Por que eu tinha que gritar daquele jeito? E o que foi aquilo de falar para ele fazer um harém? Cara, eu nunca reagi tão mal por estar com ciúmes. Tinha algo gritando dentro de mim para não o deixar cair nas mãos de outras de novo e acabar esfacelando meu coração de uma vez por todas. Depois de ouvir Lilly falando aquilo, eu interpretei como se, principalmente a Natalia, pudesse fazer tudo o que construí, ruir. Não podia o querer para mim, era o que eu me dizia todos os dias, mesmo assim, criei o monstro que queria que ele fosse só meu. Um monstro feio e egoísta que morava dentro de mim e gritava para que ele fosse meu.
E. Ele. Não. Podia. Ser. Meu.
Era o monstro contra minha razão. Uma briga épica.
Sentei-me no chão perto da cama e abracei as pernas, enterrando o rosto nos joelhos.
Eu era uma ridícula.
Uns cinco minutos depois, bateu. Sem me esperar responder, abriu a porta e entrou.
— Pode me explicar o que diabos foi isso? — disse, em seguida se arrastou pelo colchão para me alcançar e pousar minha cabeça em suas pernas. Não demonstrei resistência e percebi que isso não o surpreendeu.
— Nada, deve ser só TPM — menti, assim como fiz com a Lilly. Não queria que ele me visse sentindo o ciúme doentio que vinha nutrindo por ele. Pior ainda seria explicar o motivo. Eu odiava botar a culpa em TPM, ainda mais sendo uma garota do século 21 que sabia o quanto as pessoas tendiam a justificar qualquer comportamento fora da curva com aquilo, mas me livraria de algumas perguntas porque todo mundo por ali parecia entender que era um limite a ser respeitado.
Ele acariciava meu cabelo enquanto eu me encarregava de molhar sua calça com minhas lágrimas egoístas. Eu não o merecia, não depois daquilo que fiz na cozinha. Estava extremamente envergonhada, mas ainda chorava porque o queria só para mim.
Eu entendia que passara por alguns eventos que poderiam ter culminado naquilo. Houve o tempo que fiquei desejando-o com todas minhas forças e recebendo só frustração em troca ao saber que ele não estava mais vivo, então, de repente, tinha uma chance de conhecê-lo e ele demonstrava atração por mim. Um novo mundo se abriu ao meu redor: eu morava com ele, eu trabalhava com ele, eu dormi com ele. É claro que pensei que ele era meu. Desde então, no entanto, ele fez de tudo para me provar que não era o caso. E, se eu não queria nada, como ele mesmo disse naquele dia extraordinário: iria procurar quem quisesse. Só aquilo já era o suficiente para me convencer de onde saiu meu ciúme.
Não estava dizendo que estava certa, apenas que entendia de onde vinha. Só que não acabava por aí, depois que ele disse que gostava de mim e que passamos a ficar mais próximos, eu meio que alimentei mais a esperança de que ele era meu e, após Lilly revelar o que revelou mais cedo e da fala dele na cozinha, foi que me dei conta de que ele não era meu.
E doía lá no fundo.
— Não tenho muita experiência nesse ramo, mas estou aqui — ele disse com a voz calma. — Para o que você precisar, estarei aqui.
Ele era um fofo e disfarcei um sorriso bobo que teimava em se formar.
O pior de tudo é que ficar estressada estava realmente piorando minhas dores em uma velocidade assustadora.
Parei de tomar remédio quando acabou minha cartela na Espanha, fiquei com preguiça de comprar mais e pensei que não poderia ser tão ruim assim. Bem, eu estava errada e com amnésia. Estava sentindo pontadas que realmente estavam me maltratando e que provavelmente pioraram com todo o contexto da conversa com Lilly e ele.
Me encolhi e senti seu olhar preocupado pesar sobre mim. Provavelmente ele nunca me vira explodir antes daquela maneira, por isso toda a preocupação. Quer dizer, se eu explodi daquele jeito, eu imaginava que ele tenha pensado que eu devia estar com uma baita dor. Mal sabia ele que não era pela dor e que, desde que cheguei ali, me tornei uma mentirosa que deixaria minha amiga Shandi impressionada.
Ele passou os braços por baixo das minhas axilas, de modo que conseguisse me erguer. Soltei um resmungo pela dor que aquilo me proporcionou, mas deixei-o me pegar com cuidado e colocar na cama. Solveig se ajeitou debaixo de mim quando abracei meus joelhos de novo, mas agora feito uma bola. deixou o quarto com um aviso de que já voltava.
Não ia pedir que ele fosse para o sofá só porque estava com raiva de algo que ele nem mesmo sabia. Já não bastava estar sentindo isso quando não queria estar. Fora que ele não sairia dali, não depois de saber que estava com dor. Talvez, se eu falasse que não queria olhar para ele porque estava de TPM, ele fosse sozinho, mas jamais faria aquilo. Chega de palhaçada, tinha que acabar com os ciúmes para poder conviver com ele normalmente.
chegou praticamente correndo com uma bolsa de água quente — como fazia muito frio por ali, era padrão dormir com elas debaixo dos cobertores. Entregou-me e fez uma análise rápida da minha situação, escondi meu rosto no travesseiro com vergonha. Ele se deitou de frente para mim, me encarando.
— Estou bem — falei com a voz abafada pelo travesseiro. — Desculpa pela coisa do harém, mas você pode, se quiser. Você já é adulto e a casa é sua.
Senti-o reprimindo uma risada enquanto se ajeitava na cama para apagar a luz do abajur.
Só de pensar que outra mulher poderia ocupar meu lugar naquela cama e ouvir sua risada, senti calafrios.
— Não quero transformar minha casa em um harém. Fico feliz em ter apenas você aqui comigo — ele sussurrou no escuro.
Eu sorri com tristeza. Também estive bem satisfeita em poder dormir com ele todos os dias, mas precisava seguir o que Lilly falou. Se ele não quisesse se comprometer comigo do mesmo jeito que estava comprometida, então iria lutar sozinha para aplacar meu ciúme e seguir em frente com minha vida em 1990 para saber o que poderia fazer para salvá-lo.
— Eu sei, meu bem — falei e minha mão encontrou seu cabelo que gentilmente acariciei. — E, quando você não tiver ninguém para dormir junto, sinta-se sempre convidado para ir dormir de conchinha comigo na minha casa nova.
Sabia que era egoísta, até porque era só amiga dele, mas precisava seguir pelo menos pensando nos conselhos da Lilly. Seria escolha dele, minha parte racional torcia para que ele escolhesse continuar se encontrando com outras mulheres, mas a emocional torcia para que ele fosse dormir comigo todas as noites e escolhesse a mim.
Ele acariciou meu cabelo de volta e plantou um beijo na minha testa.
— Não estou pronto para te deixar ir. — Sua voz estava grossa, o que mostrava que ele estava falando mesmo sério. — Não depois de conviver com você todos os dias desde que te conheci.
Uma lágrima silenciosa brotou no meu olho e depois seguiu seu rumo pela minha bochecha. Após um tempo em silêncio, sua mão, que foi desacelerando o carinho que fazia no meu cabelo, parou.
— Também não estou pronta para ir — sussurrei em meio ao escuro.
E pensei em todos os sentidos que essa frase tinha e o peso dela por um bom tempo antes de pegar no sono.

Capítulo 20 - Moonlight Swim

Poucos dias depois, eu estava devidamente instalada na minha nova casa. Podia dizer que estava feliz em ser dona do meu próprio espaço, mas principalmente mais feliz ainda de não estar sozinha nele. Eu tinha companhia, Lilly estava no quarto de hóspedes e com Solveig dividiam a cama comigo durante a noite.
É, a gente não estava mesmo pronto para desgrudar um do outro.
E ganhei de bônus a Lilly, dessa vez.
Estava sendo maravilhoso conviver com esses dois a maior parte do tempo, com exceção de quando eles tornavam minha vida um inferno com suas discussões típicas de irmãos. Eu não tive irmãos, mas me pegava indagando se eu também teria essas briguinhas quando estivesse entediada. Quando juntava Andreas, eu concluía que provavelmente sim.
Estava terminando de fechar minhas malas para nossa viagem, que seria aquela manhã. Passaríamos para deixar Solveig na casa de um amigo do , depois voltaríamos para pedir um táxi e nos encontrarmos com o resto da família no aeroporto. Minhas mãos geladas eram prova do nervosismo que eu estava sentindo sobre viajar com os . Viagem em família era difícil com a minha família, imagina com a família dos meus melhores amigos.
Olhei para as malas de Lilly, também ali na sala desde o dia que chegou, e lembrei o quanto isso estava me deixando ansiosa ao longo dos dias para que chegasse logo. Ela me encheu o saco desde que me mudei para sairmos às compras atrás de biquínis e roupas para o calor, mas eu disse a ela que nós acharíamos peças muito mais bonitas e baratas no Brasil. Porém, para acalmar o monstro consumidor que morava naquela menina, nós compramos pelo menos um biquíni e algumas peças de verão que estavam na liquidação pelo inverno que se aproximava.
Naqueles dias, ela andava nas nuvens porque beijou o garoto que me contara pelo telefone durante a viagem da promo. Era bonitinho de se ver, mas às vezes a gente tinha que gritar para ela evitar de queimar o pano da cozinha na chama do fogão ou de fechar a torneira depois que tinha enchido o copo d’água. Coisas de adolescentes apaixonadas...
Conectei a guia com o peitoral de Solveig para corrermos naquela manhã fria. A cidade ainda parecia dormir porque finalmente parecíamos, aos poucos, estar chegando à época da escuridão nórdica. No entanto, alguns comércios já se organizavam para abrir — provando que não era tão cedo quanto parecia. A calçada estava livre e eu não tinha que desviar de pessoas, então me desliguei completamente. Solveig me acompanhava como um escudeiro fiel.
Hässelby era um bom lugar para se morar. Um pouco longe do centro, mas perto da Hässelby Strand que tinha a linha verde do metrô e te levava até lá em mais ou menos quarenta minutos. O meu prédio era cercado por outros prédios, mas as lojas térreas que eram o charme. Havia uma livraria-café que era a minha favorita, visualmente falando; ela era a cara do século 20 com seus livros usados e cheirinho de café passado. Eu ainda não tinha tido a chance de me sentar para conhecer mais, mas era um compromisso certo para quando voltássemos. Havia também um mercado que fazia pães deliciosos, sempre levava para nós duas depois de voltar do estúdio.
Os trabalhos naqueles últimos dias caíram do céu direto na minha mesa, Börje me fez acelerar para não carregar nada para as “nossas férias”, palavras dele. Tentei argumentar que não precisavam ser minhas férias porque não trabalhei o suficiente para tirá-las, mas ele se ressentiu e imediatamente me toquei que não era confortável para ninguém daquela família me ver assumindo posição de funcionária fora de hora.
Aquelas férias estavam me enlouquecendo desde o dia que se concretizaram. Porém, naquela semana que havia se passado, eu estava uma pilha. Nunca pensei que viajar dava tanto trabalho, ainda mais para o meu próprio país. Tive que ir atrás de uma agência para nos encaminhar a um lugar com praia, mas em uma cidade do interior e sem muito movimento porque conhecia bem aquela família; Rio, Salvador ou Nordeste seriam muito badalados para eles. Sabia que queriam apenas sentir a água do mar e o sol. Decidi com a vendedora que o interior de São Paulo seria um bom lugar para passarmos nossa estadia e ela me entregou tudo pronto, hotel, lugares para visitar — eu não quis visita guiada, se eles quisessem, era melhor pagar à parte para não ter que assumir um compromisso todos os dias — e me deu um mapa da cidade. Aluguei apenas três quartos porque era época de alta temporada, então foi o que deu para fazer. Por isso, Lilly e eu dividiríamos um, e Andreas outro, e Börje e Karin ficariam com o terceiro quarto.
E eu só esperava desesperadamente não decepcioná-los.
Tentei parar de me aproximar muito de e não demonstrar muita “vulnerabilidade” — como disse Lilly —, mas foi inevitável, afinal nós continuamos a dormir na mesma cama todos os dias. Eu sabia que, se me deixasse ser dominada pelas emoções de novo, seria bem capaz que eu fizesse xixi nele para marcar território (nojento, eu sei, mas irracional do jeito que eu vinha sendo, era bem capaz). Porém, gostava de pensar que estava tudo sob controle. Ele passou os últimos dias indo da minha casa para o estúdio, nada de harém aí no meio. Isso já era uma prova concreta de que ele tinha feito sua escolha e me deixava no céu ter sido eu.
Ele apareceu junto com a Lilly, na minha casa, quando tinha mal vinte e quatro horas que eu estava lá, porque liguei para o Andreas vir matar uma aranha. Eu sabia que, se ligasse para qualquer um dos dois, ia chegar nele. Porém, era realmente uma aranha medonha que tinha sumido em casa, então pensei que Andreas seria o menos pior. Desde então, Lilly e estavam ali.
Corri de volta para casa quando percebi que iria me atrasar e já estava muito longe. As ruas ainda estavam vazias, mas a cidade estava mais acordada que antes.
Solveig começou a rosnar e trouxe minha atenção de volta, acabei dando de cara com um homem. Virei-me para pedir desculpa, segurando a guia de Solveig rente às minhas costas para ele não vir a morder o homem de meia-idade. Ao olhar o homem, percebi que o conhecia. Ele tirou o chapéu branco e sorriu, usava um sobretudo e óculos escuros de armação branca. Não sei de onde vinha essa minha memória, mas não parecia muito distante. Odiava a sensação de perder uma lembrança. Sem responder ao cumprimento dele, fui embora, arrastando o cachorro que queria destroçar o homem a qualquer custo.
Devido à sensação estranha de conhecê-lo, passei a só andar observando tudo até o meu apartamento. Tudo bem que provavelmente ele não chegaria perto mais, por causa de Solveig, mas queria vê-lo de novo para tentar me lembrar.
Coloquei a coleira de volta no lugar, arranquei o tênis e saí batendo na porta de Lilly para acordá-la. Ela não gostou muito, mas pareceu ter levantado, por isso fui para meu quarto. Fiz cócegas no pé do homem na minha cama, ele acordou para recolher a perna e sorriu ao me ver.
— Estamos atrasados — falei para ele, retribuindo o sorriso.
— Bom dia, baby — ele falou com a sua voz grossa matinal. — O que são essas roupas?
— Bom dia. Saí para correr com Solveig, só para dar uma aquecida — respondi enquanto procurava algumas roupas no guarda-roupa.
— Aquecida? Deve estar menos dois graus lá fora.
— Está mesmo frio, mas você sabe que eu estou uma pilha de nervos por causa dessa viagem e correr me ajudou a espairecer um pouquinho.
Preferi deixar o homem desconhecido para lá ou despertaria a curiosidade e a proteção desnecessária dele.
— Está tudo certo, não tem mais o que se preocupar. Agora só precisamos entrar no avião — falou enquanto se levantava.
Ele também não sabia exatamente que eu estava com medo de decepcionar sua família ou diria que estava sendo tola. Não era uma preocupação em vão, mas ele também não entenderia. De repente, me sentia mal pela quantidade de coisas que estava escolhendo não compartilhar com ele.
Ok, ok. Eu realmente estava uma pilha de nervos.
Fui tomar banho enquanto ele arrumava o café da manhã.
Era bom sentir a água morna varrendo o suor. Eu sentia falta de suar. Ultimamente vinha nevando e a neve na Suécia era muito densa. Apesar de ainda não ter chegado o inverno, eu já podia adivinhar o motivo de tantas pessoas ficarem deprimidas no inverno nórdico, era muito escuro e frio. Se eu pudesse resumir, diria que era bonito, ao mesmo tempo que era triste.
Vesti minha roupa quentinha, sequei o cabelo, mal comi e saí correndo com as coisas de Solveig para o carro. trouxe-o na coleira.
Tudo isso aconteceu em menos de vinte minutos, outros dez passaram até chegar à casa do amigo de , que se chamava Erik. Levei-o até lá dentro e ele cheirou tudo para ver se era do seu agrado.
Era uma casa confortável, ele morava com a namorada, Evelina, e pareciam incrivelmente simpáticos. Ainda bem, porque fiquei lá esperando por um tempo e só fui embora quando o cachorro se sentiu à vontade para se deitar no sofá. Expliquei, mais de uma vez, como funcionava a rotina e eles foram compreensivos.
O resto se passou como um borrão, em menos de duas horas nos reunimos na sala de embarque e estava tudo certo. Estávamos prontos para ir e meu coração batia muito rápido, não dava para acreditar que estava indo de volta para o meu país em uma década diferente. Eu ainda não tinha escolhido as palavras certas para descrever o que estava sentindo quanto àquilo, também não sabia se era algo positivo ou negativo. Parecia só um sentimento que me pesava e causava muita ansiedade, a ponto de me fazer querer vomitar todo o café da manhã.
Fizemos uma breve escala em Paris para mudar de avião, o atual ia direto para São Paulo capital. Nos entregaram fones de ouvido — o que me causou admiração porque pensei que era um costume apenas do século 21 —, dividi o meu com , ele estava ao lado de Lilly e Andreas estava ao lado de uma mulher desconhecida. O casal estava mais para a frente, onde tinha mais espaço para as pernas. Obriguei a escutar todo o álbum de 1986 do Erasure no walkman que Lilly me emprestou, mas ele odiou e ainda riu da minha cara de emocionada ao escutá-lo. Acreditava que ele realmente estava se tornando fã da banda, porque daquela vez não tinha me chamado de cafona. Na verdade, peguei-o cantarolando My Heart... So Blue algumas vezes, em dias diferentes, enquanto estava lavando a roupa. Uma lavagem cerebral, talvez?
Quando chegamos, Andreas estava no corredor e me chamou. Eu estava escorada em um lado de e sua irmã no outro, nós três dormimos assim. Sorri com ternura ao perceber. Como eles ainda dormiam, peguei a filmadora na bolsa e pedi para Andreas filmar nós três. Mais um momento que merecia ficar guardado para eles.
Depois de acordar os dois e passarmos quase quatro horas dentro de um ônibus executivo — que devo dizer que era uma versão bem desconfortável comparado aos que eu conhecia —, nós finalmente chegamos à cidade que era nosso destino. A pousada que íamos ficar tinha uma van particular para levar os hóspedes, o que foi muito, muito, muito bem recebido.
Nós estávamos exaustos, já era noite, mesmo assim, eles insistiram para jantarmos na praia. Como o lugar era aberto diretamente para a praia, eles serviam a comida lá.
Era um lugar bem pomposo para as minhas expectativas, o interior era puxado para a decoração de móveis feitos de bambu e madeira de demolição. Tinham livros espalhados pela área de convívio, sofás, redes, pufes e aqueles sinos de vento nas janelas. Um gazebo onde tinha um som de fita cassete, mas também tinha um toca-discos com uma variedade grande de discos, soube que as pessoas usavam o lugar para dançar com frequência. Bom, eu não sabia dançar, mas pretendia passar um tempo no gazebo olhando o mar e ouvindo um pouco de música.
Uma piscina cercava a pousada, em frente ao mar. Nossos quartos tinham uma cama de casal de madeira de demolição, TV, frigobar e um banheiro relativamente grande.
Nós subimos para nos adequar ao ambiente. A roupa de inverno não combinava nada com o clima.
— Amarra para mim? — pedi à Lilly para amarrar meu único biquíni. Ela tinha comprado um azul turquesa que era de feche, estava linda usando-o acompanhado de um short bem anos 90 e uma regata cheia de furinhos preta que aparecia a parte de cima.
Ela amarrou e me virou em sua direção para analisar.
— Ficou ótimo! — exclamou enquanto eu me sentia muito exposta por ter tanta pele ao ar livre depois de um tempo.
Virei para o espelho do banheiro, era um biquíni amarelo. Não me sentia muito confortável nele, mostrava muita mais coisa do que me acostumei a mostrar. Porém, não insisti no maiô todo fechado da vovó porque precisava superar aquilo e me adequar à moda da década. Vesti a parte de cima da saída de praia de renda branca, que estava na minha cintura.
Lilly encostou a cabeça no meu ombro com um sorriso bobo.
— Já estou amando estar no seu país — ela disse, me olhando através do espelho. — Tudo parece ser mais bonito.
Sorri com sinceridade, me sentindo um pouco melhor de saber que o lugar a agradou.
— Você mal pode esperar para ver isso daqui de dia. Ah, e amanhã também vamos comprar mais roupas — falei, entusiasmada, pegando o hidratante de cima da bancada e passando na mão.
Seus olhos brilharam, devolvendo meu entusiasmo. Compras, com certeza, eram o nosso fraco.
Descemos as escadas e os outros já estavam lá. Todos eles estavam mais vestidos que nós duas, estava de regata preta e short jeans bem curto — também estilo começo dos anos 90.
Não tinha muito vento e estava bem abafado, o suor já respondia brotando na minha pele. Havia alguns outros hóspedes espalhados por ali, uns jogavam bola, outros estavam na água, tinha gente na areia e sentado nas mesas como a família . O local da praia era um tanto quanto escuro, a iluminação que vinha era da parte de dentro da pousada — ou resort, como seria mais bem apelidado —, especificamente da área da piscina, então deixava tudo com o ar agradável.
, Börje e Karin estavam cada qual com suas cadeiras, já Andreas estava em uma espreguiçadeira e havia uma vaga ao seu lado, Lilly logo se apossou.
Encarei-os como se fossem um bando de loucos.
— Não vão entrar no mar? — perguntei, apontando para trás.
Onde esses gringos estavam com a cabeça? A primeira coisa que pensava quando via o mar era mergulhar.
— Talvez amanhã — Börje respondeu, se referindo a ele e à mulher. Ela sorriu do seu jeito adorável.
— Sim, talvez amanhã quando tiver sol — Karin disse.
Olhei para Andreas que franziu o nariz e disse:
— A água deve estar fria.
— Ah, não, não — falei, indo em sua direção. — Vocês são descendentes de vikings, essa desculpinha não cola depois que eu vi o quanto o país de vocês pode ser frio.
Puxei ele e Lilly, que se levantaram com a ajuda das mãos que estendi. Virei-me para , esperando que fizesse o mesmo.
— Vá com eles, vou pedir comida para nós — ele disse, piscando um olho.
— ‘Tá — falei a primeira palavra em português mesmo —, o que você quiser, eu quero. E eles também — continuei em sueco. Pisquei de volta, depois acenei para os mais velhos e saí carregando os dois.
Antes de chegar à água, Lilly tirou a roupa de cima e Andreas estava apenas de short verde. Puxei os dois pelas mãos de novo e corremos até o mar.
Quando nossos pés alcançaram a areia molhada, uma nostalgia tomou conta. Não fazia ideia da minha saudade pelo oceano, até senti-lo.
— Não acredito! — Andreas disse, espantado. — A água está quente!
— Aqui nem o coração tem como ser de gelo, Andreas, porque até isso o calor derrete — brinquei.
Eles dois riram.
— Vamos! — chamei, andando na frente, até onde a água batia em minha cintura e depois mergulhando para furar uma onda. Essa sensação era tão boa, me lembrava a infância, a época que, na minha cabeça, eu era uma sereia e tinha que nadar para minha cauda não aparecer. Meu pai sempre ria da minha criatividade. Ah, quanta saudade dele...
As ondas ali eram bem sem graça para quem gostava de surfar, a maré era tranquila e parecia mais uma piscina gigante. Não havia buracos para se preocupar, então fiquei em pé, admirando o reflexo da lua na água. Senti uma movimentação ao meu lado e percebi que era Lilly, logo depois Andreas nos alcançou.
— Minha nossa — ela disse. — Já li em livros como a lua e o mar se completam, mas era algo que nunca esperei presenciar tão de perto.
— Não entendo como dizem coisas tão ruins do Brasil lá pela Europa — ele completou. — Eu poderia morar aqui nessa praia para sempre.
— Aqui é um paraíso — comentei. — As coisas são geralmente bem diferentes nas capitais, mas as pessoas exageram mesmo e vocês não precisam saber disso. Se concentrem aqui.
— Tem cidades tipo Estocolmo aqui? Tipo, totalmente sem graça? — ele perguntou com uma careta.
— Claro — ri. — Somos bem versáteis.
— Nisso, tenho que concordar. Você é incrivelmente versátil — Lilly disse, me abraçando e nos carregando para debaixo do nível da água.
Quando nos cansamos de jogar conversa fora, eles começaram a boiar e fiquei fingindo segurá-los. Algumas outras pessoas perturbaram nosso silêncio ficando perto demais e falando alto, mas os dois não se importaram muito, portanto também não liguei. A noite estava linda demais para ativar meu lado barraqueira e brigar com conterrâneos que falavam parecendo que estavam em uma feira.
Passar por São Paulo capital era o ponto de maior tensão, para mim — até por ser minha cidade natal —, mas naquele momento estava tudo bem.
Ouvi um assovio, olhei e era na beira da água acenando para voltarmos.
— Não queria sair daqui. Está quentinho — Lilly choramingou.
— Também não, mas minha barriga clama por algo que não seja comida de avião — Andreas disse, andando em direção à areia e nos impulsionando a segui-lo.
Pegaram suas roupas que ainda estavam ali no caminho. Quando chegaram, já foram indo para cima da mesa em que Börje e Karin comiam. estava, agora, em uma das espreguiçadeiras com um prato na mão, me aproximei dele. Ele parecia tão pacífico ali, comendo sozinho, completamente alheio às risadas de Börje com a fome maluca dos outros filhos.
— A gente geralmente tira a roupa de cima antes de entrar na água — brincou quando parei ao seu lado. Olhei pra baixo e o que eu usava estava totalmente grudado ao meu corpo, mostrando o meu contorno. Dei um sorrisinho envergonhado, eu tinha me esquecido completamente que usava roupa por cima da roupa de banho. Ele ter notado fazia minhas bochechas ruborizarem e dei graças por estar relativamente escuro.
Queria espiar o que tinha em seu prato para não ter que esperar seus irmãos se servirem. Por isso, deitei meu corpo em cima do seu, encharcando-o.
— Vim trazer o mar até você, já que me enrolou — falei, tentando olhar por cima de sua mão, mas ele segurava a louça acima da minha cabeça e seus olhos miravam minha boca. — O que tem aí?
Ele abaixou o prato e era camarão, salmão, lula e acho que tinha mais um peixe ali. Frutos do mar diferentes — tipo lula — não estavam no meu top 100 comidas favoritas, provei quando era pequena e desde então vinha evitando. Porém, eu realmente estava de bom humor, porque peguei o garfo de sua mão, espetei um pedaço de sei-lá-o-quê e enfiei-o na boca. É... Nada mau, era melhor do que me lembrava, mas também não era bom. O peixe que comi em Portugal me agradava. Isso daqui que comi não era tão apetitoso, parecia mais uma borracha.
Também o servi de um pedaço, ele sorriu — gostando daquilo —, por isso continuei alimentando-o e me alimentando. Enquanto isso, Börje estava contando uma história sobre seu tempo de banda, que era basicamente: um amigo apareceu com sopa de frutos do mar de procedência duvidosa para dividir, mas eles estavam com muita fome porque tinham tocado por duas horas consecutivas e acabaram comendo; no fim, eles tiveram intoxicação alimentar e foram todos parar no hospital. Ele não comeu frutos do mar por mais de vinte anos depois.
Comecei a ficar com frio e quando seus braços passaram a não ser suficientes para me esquentar, achou melhor subirmos. Estavam todos cansados e, apesar de ser nove horas da noite, nós estávamos horas bem à frente no fuso horário.
O quarto de Börje e Karin era no térreo por ser maior, mas os outros dois eram no segundo andar.
— Podem ir, nós já vamos — ele disse para os irmãos assim que subimos as escadas. Arqueei uma sobrancelha, questionando-o. Os dois obedeceram sem falar nada, estavam bem cansados para isso.
Ele se encostou no parapeito da escada e me puxou para o meio de suas pernas, nos grudando.
— Você realmente me surpreendeu na escolha do lugar.
Sorri da mesma maneira que fiz com Lilly, toda orgulhosa de mim mesma.
— Ei, foi você que me trouxe aqui, afinal. E eu conheço muito bem os — falei, tocando nas pontas do seu cabelo distraidamente.
— O que vamos fazer amanhã? — ele perguntou.
— Vou sair bem cedinho, para o centro, comprar roupa com a Lilly, acho que Börje e Karin vão junto para visitar as feiras de artesanato.
— E nós dois? — murmurou.
Espera, como assim nós dois? Franzi o cenho, não fazendo ideia do que ele queria dizer com aquilo. Nós não passávamos tempo sozinhos, a não ser para dormir. Por que ele queria ficar sozinho comigo logo agora?
— Hm. Não sei. O que quer fazer? — perguntei de uma forma neutra, sem levantar suspeitas.
— Me surpreenda, você é boa nisso — sorriu com malícia.
Soltei uma risada nervosa. Ai, meu Deus, o que foi esse sorriso? Comecei a ficar nervosa, mas continuei a tentar não demonstrar.
— Essa sua mania de querer ser surpreendido a todo momento. Não é assim que as coisas funcionam.
Ele sorriu de um modo diferente, com os olhos brilhando, enquanto roçava seus lábios nos meus. Era mais uma daquelas horas que ele investia com todo o seu charme para cima de mim. E meu coração que aguentasse o tranco.
— Tenho uma tarefa para você: amanhã, quando acordar e não me encontrar aqui, ligue para Erik e pergunte pelo meu cachorro — direcionei uma conversa antes que eu perdesse a cabeça.
Só não pedia para ele ligar naquele momento atrás de notícias do Solveig porque estava tarde demais. Ele concordou, parecia mais concentrado na minha boca do que me ouvindo. A tonalidade do seu olho estava escura pela baixa iluminação, mas ainda brilhava. Ele apertou o abraço, as mãos perto da base das minhas costas — se controlando ao máximo para respeitar o limite. Resolvi provocá-lo um pouquinho também, já que a conversa não funcionou. Corri minha mão pelo seu cabelo por completo, plantei um beijo bem onde seu pomo de adão se destacava, ele soltou a respiração de uma vez e seus olhos fecharam. Senti algo despontar na minha barriga.
Opa.
Aquilo era um sinal claro de que era hora de ir, antes que as coisas corressem o risco de ficar sérias.
— Preciso ir — murmurei.
Ele abriu os olhos e suspirou.
— Desculpa — pediu, sincero. — Vou tentar me controlar mais.
— Está tudo bem, é normal isso. Quer dizer, quando isso já aconteceu outra vez e quase nos matou de vergonha — tentei quebrar o gelo.
Ele sacou tudo e ruborizou. Pelo visto, não tinha ficado só na minha memória.
— O que quer para esquecer esse incidente? — ele perguntou, rindo.
— Tenho certeza de que posso pensar em mais uma coisa, visto que agora você está me devendo dois favores.
— Dois? — ele franziu o cenho.
Minha mão agarrou seu queixo e fez um carinho ali onde pontinhos de barba ameaçavam aparecer.
— Sim, baby, você perdeu na sinuca, para mim, na frente dos meninos.
Ele pareceu pensar, logo o entendimento tomou de conta das suas feições. Sorriu de lado.
— Ah, o dia que você matou todo mundo do coração com aquelas roupas.
— Não acredito que se lembra das minhas roupas — soltei uma risadinha. — Você é o único homem no meu círculo que lembra da situação pelas roupas que uma garota estava usando — brinquei.
— Não. Lembro da situação que a senhorita escolheu para usar aquelas roupas e como aqueles meninos ficaram babando, especialmente aquele que fomos ver tocando...
— O Marko?
— O finlandês.
Concordei com a cabeça, pensando para onde iria aquela conversa. Se tinha mesmo um toque de ciúmes ou eu estava inventando. com ciúmes me divertia, lembrava que ele tinha ficado exatamente daquele jeito quando viu o Marko conversando comigo naquela noite.
— Pois então. Marko. Aquele garoto gosta de você, , eu aposto... sei lá... minha guitarra nisso.
Gargalhei baixo para não incomodar os outros hóspedes.
— Você não presta.
Me pressionei contra seu corpo para pousar um selinho, o que me cutucou ainda continuava lá e tive vontade de ofegar com o quão parecia... grande. Ok, eu sabia muito bem o tamanho daquilo, por que estava surpresa? Talvez porque já fazia tanto tempo que a memória ficou prejudicada. Senti minhas bochechas esquentarem ao pensar que gostaria de vê-lo sem roupa mais uma vez, só para relembrar.
— Vamos? — chamei antes que perdesse a cabeça de vez, ele desfez o abraço e me seguiu.
Meu quarto era o primeiro para meu alívio.
— Boa noite — ele beijou o topo da minha cabeça.
— Boa noite, — dei um sorrisinho fechado e entrei no quarto. Vi seu sorriso bobo antes de fechar a porta. Ele gostava tanto quando o chamava assim que optei por guardar para usar nessas situações especiais. Deixava-o todo bobalhão.
Por uma pequena fresta, joguei um beijo para ele, que pegou no ar e fingiu guardar no bolso. O sorriso bobo foi meu. A gente parecia diferente, sem toda aquela carga da nossa rotina. Ele parecia mais leve e eu também me sentia assim.
Tomei um banho rápido, Lilly estava no quinto sono e não pude secar meu cabelo. Ela nem trocou de roupa, estava dormindo com a molhada mesmo, cutuquei-a e perguntei se não ia vestir uma roupa seca, ela disse algo que interpretei como “não”. Diminuí o ar-condicionado e fui deitar no meu lado da cama, empurrando-a com a bunda no caminho para ir para o seu lugar da cama.
Aquele cansaço provocado pela água salgada era tão bom que ultrapassava o jetlag. Esperava que o cansaço não fosse tanto a ponto de não me fazer conseguir acordar no dia seguinte. Pensei em ligar na recepção e pedir para colocarem um despertador às sete horas — era assim que se fazia em hotéis quando não havia celular —, mas fiquei com preguiça de me mover para alcançar o telefone.
Fechei os olhos e só o que consegui pensar foi que eu estava de volta no meu país e, céus, esperava que ele reservasse lembranças boas para mim.

Capítulo 21 - My Baby Shot Me Down

Andreas e nem deram sinal de vida. Börje passou pelo quarto deles, às oito e meia, bateu e não obteve resposta. Duvido que lembrassem de levantar-se sequer para tomar café.
Lilly, por outro lado, me acordou não era nem sete da manhã. Pulou da cama porque lembrou que dormiu de biquíni molhado e foi correndo para o chuveiro. Tentei voltar a dormir, mas não valia a pena tentar atrasar minha estadia naquela cama macia, nós teríamos que sair dali a alguns minutos mesmo.
Fiquei algum tempo tentando arrumar meu cabelo que odiava ser molhado e depois amassado pelo travesseiro, o resultado nunca era dos melhores depois. Vesti um short igual ao da Lilly da noite anterior, uma camiseta grande do Hard Rock Café que comprei no brechó e sandálias. Ela estava de vestido longo com estampa rosa e vermelha e o adicional de seu cabelo loiro molhado, aparentando ser mais velha do que era.
Nós encontramos Börje e Karin no restaurante. Conversamos sobre como as frutas tinham gosto diferente ali, mesmo que algumas das frutas no mercado da Suécia fossem provenientes da América do Sul. Expliquei o processo de exportação e o quanto afetava a qualidade da fruta (aprendi na faculdade, mas é claro que não revelaria a fonte). Karin concordou e disse que queria ter um jardim com todas aquelas frutas para evitar aquilo, mas, infelizmente, países frios não eram bons como os tropicais para aquela finalidade.
Deixamos os dois na feira de artesanato, estavam em uma das visitas guiadas pagas e eles passariam o dia todo com o resto do grupo comandado pelo guia.
Lilly e eu experimentamos várias roupas de praia, tipo: vestido, regatas, short e roupa de banho. No final, levamos uma quantidade até que razoável. Ela ficou chocada com os biquínis da nossa moda, não sabia que as pessoas conseguiam mostrar tanto, mas quis tentar também. Tive vontade de falar que ela não tinha visto nada, mas controlei a boca no mesmo segundo.
Eram onze horas quando voltamos com um saco gigante de roupas. Realmente estava me sentindo de férias, porque só o que conseguia pensar era em vestir qualquer coisa dali e tomar bastante sol. Nada de ansiedade por estar no meio da família dos outros ou preocupação com o que ficou na minha mesa do escritório, conforme pensei que seria.
Ela vestiu seu traje de banho novo, era laranja e… como posso dizer? Acho que pequeno. Não no tamanho, ele era feito para o corpo dela, mas o modelo em si era bem revelador. Como estávamos em 1990, o fio dental era quase unanimidade e ela escolheu logo um laranja neon para destacar em sua pele. Na verdade, ela tinha escolhido vários desse modelo só que de cores diferentes, para ficar com uma marquinha uniforme.
Meu maiô me encarava, ele era um asa delta preto e tinha um decote generoso. Era ideia de Lilly, claro. Eu pensei: por que não dar férias para a minha insegurança também? Parecia uma ideia boa, mas não tinha mais certeza. Não queria ter que entrar na água com meu short jeans porque demoraria demais para secar, mas também não podia ficar alii trancada para sempre.
Ela esmurrou a porta, me chamando para ir. Então teria que ser assim mesmo. Vesti o maiô e o short, com pressa. Não parecia muito ruim no espelho. Na verdade, eu estava até que bonita. Então eu poderia repensar a decisão de não entrar na água com o short, já que era uma combinação que deu certo.
Peguei minha bolsa com coisas essenciais e percebi que Lilly não colocou nem uma roupa por cima, só carregou sua canga com a bandeira do Brasil na cintura. Ela parecia confiante, então me forcei a imitá-la. Era melhor me espelhar mais nela e menos em mim, para não correr o risco de voltar para o quarto e tirar aquele maiô.
No caminho para a área externa, nós recebemos vários olhares incisivos, mas ela não pareceu ligar. Eu fiquei observando para ver se nenhum tarado iria tentar alguma gracinha, porque ela era uma adolescente e era meu dever protegê-la.
Os irmãos estavam na área da piscina, havia mais algumas pessoas ali e atrás deles a praia estava lotada. lia um livro, de óculos escuros espelhados, na espreguiçadeira, e usava a mesma roupa da noite anterior. Andreas estava sentado na borda da piscina e com os pés dentro da água. Quando nos viu chegar, o mais novo teve um sobressalto.
— Lilly? — Vi sua boca mexer, mas não deu para ouvir por causa das outras pessoas presentes.
Segurei o riso, enquanto Lilly desfilava. Parecia uma cena de filme.
O mais velho levantou o olhar quando escutou o outro falando, baixou o livro para nos assistir. Andreas estava em choque olhando para Lilly, por isso, ao invés de passar por ele, preferi assistir aquilo ao lado de . Pousei a bolsa no chão ao seu lado e ele abaixou os óculos para a ponta do nariz, me encarando. Não lhe dei atenção, porque Lilly estava tirando a canga da cintura e aquilo parecia melhorar a cada segundo. O irmão do meio se levantou em um movimento rápido, chamando nossa atenção.
— Lilly, que porra é essa? — ele disse, indicando o corpo dela com a mão.
— Roupa de banho — respondeu, como se fosse óbvio.
— Você esqueceu o resto dela no quarto? — perguntou, rabugento. De repente, ele ganhou uns 30 anos a mais.
— Cala a boca e me ajuda a passar protetor — ela respondeu, meio irritada.
— Lilly... — ameaçou.
— Andreas, agora — ela finalizou, olhando-o bem séria. Ele bufou e obedeceu.
Como a cena parecia ter acabado, me virei, meio rindo, para o irmão mais velho que estava na minha frente.
— Espero que o senhor esteja besuntado de protetor solar, exposto assim — comentei.
— Estou, e você? — ele falou, descansando o livro na espreguiçadeira de bambu coberta por uma toalha.
— Para a sua sorte, não — sorri de lado, me abaixando para pegar o tubo e entregando para ele.
— Realmente, é o meu dia de sorte. — Se levantou, imitando meu sorriso. Pegou o tubo, deu a volta e se posicionou atrás de mim. — Quer que passe em tudo?
— Ah. Sim, por favor. — Lembrei que ainda estava vestida com o short, então, respirei fundo e o desabotoei, deixando cair aos meus pés, para chutar para o lado. Não podia pensar demais, não podia. Quando ele acabasse, eu o pegaria de volta.
— Isso vai ser divertido. — Ouvi dizer atrás de mim. Minha barriga doía de ansiedade e insegurança, mas fiquei jurando mentalmente que eu não estava tão ruim quanto minha mente projetava. Estava sentindo a pontada de confiança que roubei de Lilly.
Ele passou, delicadamente, o conteúdo pelos meus ombros enquanto eu segurava o rabo de cavalo. Seu toque era uma tortura, minha pele respondia e me rendia mais, para o meu desespero. Ele desceu pelas costas, os braços e senti-o se ajoelhar. Estava bem de frente para meus glúteos, engoli em seco pensando em todas as estrias da minha adolescência, toda a celulite produzida pela minha alimentação ruim e que ele já tinha provavelmente visto nas outras vezes.
— Sou mesmo um filho da puta sortudo. O que aquele garoto finlandês não daria para estar no meu lugar? — riu enquanto passava o protetor ali. Era um fio dental discreto, não era tão enterrado, mas tinha bastante pele exposta para ele espalhar. Dei um sorrisinho, sentindo realmente que não deveria ser tão ruim como eu me via. Eu não era alta e esguia, tinha curvas, e estava tudo bem, eu deveria me orgulhar mais das minhas raízes latinas. Lembrei de Lilly elogiando minha bunda várias vezes e, bom, parei de me reprimir.
Tive coragem para olhá-lo por cima dos ombros, ele parecia bem feliz. Como uma criança com açúcar.
— Acho que você tem razão, provavelmente vou me lembrar dessa situação por causa da sua roupa — comentou, lembrando mais uma vez da nossa conversa ontem. — Ela é muito boa para ser esquecida.
— Vai ficar só esfregando minha bunda? — brinquei.
— É que essa área precisa de atenção especial, você não vai querer ficar queimada logo aqui, sem nem poder se sentar.
Soltei uma risada.
— Não quero ficar queimada em lugar nenhum, na verdade.
Ele deu uma batidinha na minha bunda, bem de leve. Meu coração errou uma batida com a surpresa. Ai, meu Deus, ele nunca tinha feito isso. Eu gostei. Era isso mesmo? Era por isso que eu estava sorrindo? Deveria ser, eu bem que queria aquilo de novo. Minhas bochechas coraram com o pensamento dele fazendo de novo. Céus, meus pensamentos estavam tão pervertidos, a ponto de me fazerem ruborizar sem parar.
O assisti se arrastar para a frente do meu corpo, começou pelo peito do meu pé, passou nas minhas pernas e uns dois minutos depois estava em pé na minha frente, tendo que flexionar os joelhos para passar em meu peito. Fitei-o, ainda envergonhada, mas ele estava concentrado no que fazia.
Segurei sua mão no lugar, quando ele ameaçou parar e sair. ‘Tá, por que fiz isso? Ele me olhava, com expectativa. Inventa algo, uma piada. Isso! Geralmente uma piada me salvava.
— Então, acho que ficar queimada especificamente aqui seria bem desagradável. Você me entende, não é? — tentei brincar, mas saiu como uma provocação. Não conseguia ver seus olhos para me certificar de como ele recebeu aquilo, mas vi seu sorriso de lado, o que já era satisfatório para mim.
— Claro, baby. — Continuou espalhando por um tempo, me olhando. Quando pareceu demais para um pedaço de pele só, ele despejou mais da embalagem em sua mão, começou a espalhar no meu rosto com as pontas dos dedos.
— Pega leve aí ou eu vou ficar com mancha de protetor — comentei. Ele espalhava parecendo que o rosto pertencia à uma criança. No final, senti uma linha de protetor na minha bochecha e no nariz. Claro que ele ia me provocar. Espalhei tudo de uma vez quando me largou. Vi-o guardar o protetor dentro da bolsa e se virar para beijar a ponta do meu nariz.
— Linda — murmurou, me abraçando. Fiquei sem graça de novo, mas meu rosto estava enterrado em seu peito/barriga.
— Gostou do meu maiô? — perguntei. Não vou mentir, além da minha opinião e da de Lilly, eu levava muito a dele em consideração. Para a escolha daquele maiô e das outras peças reservadas para os outros dias, pensei um pouco nele.
— Você nem imagina o quanto. Quer dizer, ele dá muita corda para a imaginação, mas eu ainda prefiro te ver sem ele.
Dei um tapa em suas costas enquanto gargalhava espalhafatosamente.
— Ainda estou pensando em algo para nós dois. Mais tarde você vai ficar sabendo — avisei-o.
Eu tinha alguns planos que, para se concretizarem, precisavam de um local privado. Planos estes que bolei antes de dormir depois do nosso momento na escada. Só aí já dava para saber o teor deles.
— Mal posso esperar. — Se afastou o suficiente para me olhar. — Liguei para Erik, disse que Solveig roubou o lugar dele na cama ao lado da Evelina e o fez dormir no sofá — riu. — Comeu pouco, mas quis passear. Passei o número do meu quarto e ele vai ligar, caso aconteça algo.
Sorri, Solveig preferia mesmo dormir com as mulheres.
Comer pouco me preocupava, mas sabia que animais de estimação tendiam a fazer isso quando os donos não estavam por perto.
— Então, que tal se você me mostrar o mar agora? — ele sugeriu.
— Tem muita gente — observei.
— Não tem problema. — Soltou-me por completo, dessa vez. Ele começou a tirar a camiseta e aproveitei a oportunidade para colocar a bolsa debaixo do guarda-sol porque tinha uma garrafa de água e levei seu livro também. Arranquei de lá a filmadora de Börje, discretamente, e liguei, apontando para os dois irmãos que discutiam.
Andreas, no entanto, viu a lente e imediatamente pegou a canga para cobrir Lilly, isso a deixou furiosa.
— Para de tentar me cobrir! — ela disse, quase gritando.
— Como você espera que nossos parentes te vejam assim? Eles não têm a mente aberta.
Isso até que era verdade.
— Quem não tem a mente aberta é você.
Isso também era verdade.
Os dois continuaram discutindo, por isso virei a câmera para a piscina e depois para , que dobrava suas roupas, fingindo ser asseado. Quem via nem pensava que sua casa era uma bagunça.
Ele vestia uma sunga preta que ficava muito bem nele. Tive que fingir estar interessada na filmagem para disfarçar que estava o secando através da lente. De repente, subiu um calor, né, menina? Ele veio andando em minha direção com as roupas em uma pilha.
Puxou a lente da câmera para o seu rosto e sorriu.
— Acho que você deveria filmar mais a minha cara — brincou.
Opa. Pega no flagra. Desliguei a câmera e me virei para guardá-la. Atrás de mim, os dois ainda discutiam e o terceiro irmão se intrometeu:
— Eu e a estamos indo para a água. Em algum momento, parem de discutir para pelo menos pedir o nosso almoço, ok?
Os dois resmungaram algo que deveria ser concordância. Passei na frente e ele me seguiu. Senti-o tocar minha cintura, mas não a minha mão, como eu esperava.
Conforme andávamos em direção ao azul que era ainda mais transparente de dia, senti a necessidade de correr e levá-lo comigo. Por que não? Fiz com Lilly e Andreas, faria com ele também. Parei antes da metade do caminho, ele se atrapalhou todo para parar também. Agarrei sua mão, atendendo minhas expectativas e falei olhando em seus olhos:
— Vem comigo.
Corri, carregando-o pela mão atrás de mim. Passamos direto pelo raso e o fiz mergulhar para atravessar algumas ondas. Ele emergiu e abracei seu pescoço.
— Correr em direção ao mar é melhor que andar, anotado — ele disse, sorrindo.
Concordei e prendi minhas pernas em sua cintura porque o local não me dava pé.
— É tão estranho estar no calor em dezembro — comentou.
— Nessa época, em alguns lugares da Suécia já dá para ver a aurora boreal, mas aqui nós temos o calor — respondi, olhando para o sol. — É mesmo estranho.
— Qual você prefere?
— A aurora boreal, claro. Apesar de nunca ter visto uma, eu acho o fenômeno mais bonito.
— Podemos ir atrás de alguma cidade para ver uma quando voltarmos para a Escandinávia. Apesar de que eu preferiria ficar aqui, no calor.
— Você se cansaria dele, é sempre assim. Vocês, vikings, precisam do frio. É o que te alimenta. — Ele riu. — Também álcool, guerras e mulheres — brinquei.
— Você parece entender de vikings. Então, acho melhor seguir sua receita à risca. Se não tenho frio, nem álcool e nem guerras, preciso muito do último elemento. — Apertou minha coxa e falou no meu ouvido. — E você é a única mulher que estou vendo nos próximos um metro e meio. O que significa...
Prendi a respiração, esperando pelas próximas palavras dele, mas ele me segurou só com uma mão e a outra começou a fazer cócegas na minha barriga. Soltei outra gargalhada escandalosa e comecei a me remexer. Vi, de relance, algumas pessoas se afastando da gente.
— Significa que você se alimenta de gargalhadas de mulheres? — perguntei, quando ele parou e voltou a me sustentar com ambas as mãos.
— Sim. Estou alimentado, por enquanto. Mas volto para pegar mais — falou, passando seu nariz pelo meu. Fechei os olhos, me recuperando da onda de risos.
Depois de alguns minutos observando o movimento, ouvi Andreas nos chamar, o que significava que ele e Lilly tinham parado de brigar e resolvido comer. Precisávamos ir o quanto antes, porque havia fortes chances de eles começarem outra briga antes de a gente chegar.
Almoçamos no mesmo lugar de antes. Depois de comer, Lilly ficou tomando sol de costas na beira da piscina, Andreas foi para o mar — mesmo me ouvindo falar mil vezes que era para esperar a digestão. Me deitei em uma espreguiçadeira e em outra. Coloquei os meus óculos de sol e fiquei o observando ler o livro, mas, em algum ponto, acabei dormindo.
Não sonhei, mas, de tão cansada, acordei horas depois com o corpo quente. O sol já tinha ido embora, procurei algum rosto familiar e encontrei Lilly dentro da piscina.
— Oi, bela adormecida — ela disse, igualzinha ao irmão alguns meses atrás, apoiando os braços na borda.
— Oi, sereia — respondi, ainda meio atordoada.
Ela riu. Eu poderia falar “pequena sereia”, mas o filme que deixou a princesa famosa ainda não tinha sido lançado em cassete na Suécia. Afinal, ele havia sido lançado em 1989 e demorava mais ainda para sair em fita cassete.
— Cadê todo mundo? — perguntei.
— Os dois patetas estão no mar, papai e Karin não chegaram até agora.
Concordei com a cabeça. Um cara de cabelo preto e sunga azul piscina atrás dela não parava de nos encarar, especialmente Lilly. Achei estranho porque era um olhar vidrado e me levantei, ajoelhando para sussurrar.
— Vem comigo para dentro, depois te explico.
A menina não disse nada, apenas saiu da piscina e pegou a bolsa na mesa debaixo do guarda-sol. Andei lado a lado com ela, de braços dados. Quando passamos pela porta, considerei seguro comentar:
— Tinha um homem olhando estranho para você na piscina.
Um brilho de entendimento atingiu seus olhos azuis.
— Você também achou? Entrei na piscina porque fiquei sem graça do tanto que estava descarado.
— Por que não chamou seus irmãos?
— Sei me defender, .
Eu já tinha escutado algo parecido a essa frase saindo da minha própria boca no dia que fui assediada. Imaginar Lilly na mesma situação meio que mexeu comigo.
— Não sabe não, mocinha. Se esse homem te agarra pelo braço e te leva para Deus-sabe-onde? A polícia aqui não é tão eficaz quanto na Suécia, você pode sumir para sempre! — me desesperei ao imaginar.
— Calma! — ela disse, se assustando.
Respirei fundo.
— Me promete que vai ficar sempre perto de alguém, nem que seja de mim — pedi. — É menos improvável que ele faça algo com nós duas juntas.
— Está bem, eu prometo — me tranquilizou, se sentando no sofá pequeno revestido para pessoas molhadas se sentarem.
Lembrei que queria pedir indicações na recepção de lugares mais reservados para levar , então iria aproveitar para fazer aquilo.
— Me espera aqui — falei, dando as costas. Tentando confiar que o cara não iria aparecer do nada. Ela era uma criança, não sabia se defender coisíssima nenhuma, ainda mais naquele século recheado de gente maluca e sem respeito.
Ao me aproximar do pequeno balcão, uma moça que parecia ter minha idade se levantou. Ela sorriu imediatamente.
— No que posso ajudar, senhorita? — perguntou.
— Preciso te fazer um pedido meio particular — falei baixo.
Ela pareceu se divertir com minha frase. Me estiquei ainda mais sobre o balcão para sussurrar.
— Pode dizer — ela falou, sem se intimidar pela minha proximidade.
— Tem algum lugar bonito por aqui sem movimentação, tipo, onde poucas pessoas frequentam?
Ela pareceu pensar. Fiquei nervosa por estar perguntando isso a alguém.
— Um lugar romântico, você quer dizer?
— Pode ser, contanto que seja extremamente privativo.
Eu tinha planos que requeriam isso, aliás.
— Ok, vamos considerar que está procurando um lugar romântico e não um lugar para desovar um corpo — ela brincou. — Tem um lago de água doce perto da praia, alguns minutos a pé. Uns vinte, mais ou menos.
— Como chego lá? — perguntei, curiosa.
— Um momento. — Ela se abaixou, pegou um bloquinho de notas e desenhou uma seta escrito praia e vinte minutos. — Vai ter uma barraca de um restaurante abandonado chamado Pedra Na Rede — desenhou também. — É lá que você vai virar, anda um pouco mais até encontrar um morro e do lado vai ter uma entradinha com uma escada de pedra. — Novamente a caneta deslizou pelo papel. — Você vai encontrar o lago. É o lugar menos conhecido popularmente que eu sei, mas é importante que vá depois das dez para garantir.
Entregou-me o papel.
— Obrigada — sorri, sincera, guardando o papel no bolso da calça. — Você salvou minha vida.
— De nada — retribuiu o sorriso. — É sempre um prazer ajudar um casal bonito.
Arqueei uma sobrancelha. Do que ela estava falando?
— Já te vi com seu namorado, aquele gringo altão do cabelo grande. Vocês combinam muito — ela explicou.
Esperava que aquilo contasse ao meu favor para que ela não indicasse o lugar para mais ninguém ou comentasse com algum curioso.
— Ele não é meu namorado, é meu... — pigarreei, tomando coragem para dizer isso sem soar patética — melhor amigo. Porém, preciso da sua ajuda para não contar sobre esse lugar para ninguém essa noite.
Sinceridade era o melhor jeito de pedir algo, mesmo que fosse embaraçoso. Vi em suas feições que me entendia e o alívio tomou de conta.
— Pode deixar.
Sorri de novo.
— Muitíssimo obrigada — respondi, me virando.
— Divirtam-se — ela disse nas minhas costas.
Bem, era esse o intuito.

***


— Aonde você vai? — Lilly disse, deitada na cama, me observando no banheiro. — Está bem óbvio que não vai só jantar com a gente.
— Sair.
— Com o , suponho.
— Sim — falei, prendendo uma mecha do meu cabelo para trás com a presilha e depois retirando-a por não gostar de como ficou.
— Vai me trocar pelo meu irmão de novo — choramingou.
Sorri pelos ciúmes dela e me virei para encará-la. Ela ainda não tinha superado que nós dois éramos melhores amigos, mesmo eu dizendo que ela veio primeiro e seria sempre a primeira no meu coração. Afinal, foi grande parte por ela que, nos meses que fiquei sem falar com seu irmão, eu não voltei para 2019.
— Nós vamos só dar um passeio, você nem vai notar minha ausência — justifiquei.
— Claro que vou! O que farei sem você, meu amor, minha melhor amiga? — brincou, girando na cama.
— Tem uns jogos de tabuleiro lá embaixo, chama o Andreas para jogar com você — brinquei.
— Ah, que bacana. Jogar jogos de tabuleiro com o irmão do meio enquanto minha melhor amiga vai dar uns pega no meu irmão mais velho. Tudo o que eu queria — ela disse com sarcasmo.
Enrubesci. Ela andava quieta com aquela boca, desde que começou a se envolver com o garoto da escola, mas isso não queria dizer que ficaria assim para sempre.
— Ei, não vou dar “uns pega” — fiz aspas com os dedos — em ninguém! Vou só cobrar uns favores que ele está me devendo.
Ela fez aquela cara de falsa desconfiança, igualzinha à que ele fazia. Que coisinha irritante.
— Isso soou como favores sexuais — ela disse, meio rindo.
Joguei um pacote de algodão que estava ao alcance no meio da cara dela, mas a maldita pegou-o no ar.
— Garota! — gritei, rindo.
Rimos juntas por alguns minutos. Quando paramos, fiquei séria.
— Vou ter que falar com Andreas sobre aquele homem ou você vai cumprir a promessa? — perguntei.
— Vou cumprir — ela pareceu se incomodar com meu tom. — Não quero nenhum dos meus irmãos envolvidos nisso, sabe como Andreas é, não vai nem me deixar usar shorts. vai começar a ficar chato também, então é melhor evitar.
Concordei.
— Vem, vamos jantar — belisquei a pele de sua perna e me levantei.
Ela me seguiu. Börje e Karin se juntaram a nós nessa refeição, então nos sentamos no interior do restaurante, que era esplêndido à noite. Eles pediram uma garrafa de vinho chileno, mas dispensei, porque queria estar bem sóbria para não abusar das minhas pretensões. Os cinco pediram a coisa mais inusitada que já vi gringos pedirem em um cardápio: arroz carreteiro. Segurei o riso quando o prato chegou e eles olharam como se fosse de outro planeta. Expliquei o que era para tentar amenizar a dúvida deles em comer.
Eles provaram, com cuidado.
— Hmm, é muito bom — Karin disse, após dar uma garfada.
Os outros se manifestaram positivamente também. Observei-os com um sorriso enquanto comia minha sopa de legumes, era só no Brasil que tinha esse gostinho de sopa característico que me fazia tanta falta, então valia mais a pena para mim.
Quando terminamos, eles foram se sentar na área de convivência onde outras pessoas também conversavam. Quando ameaçou segui-los, puxei-o pelo braço.
— Você vem comigo.
Ele usava um short diferente, era preto, sua regata do merchandising da banda característica. Sorriu para mim, com malícia, mas não disse nada, só se deixou ser carregado.
Estávamos fazendo nosso caminho pela praia, ele andava com os pés sendo banhados pela água e eu estava na areia.
— Não me canso de admirar esse lugar, é tão incrível — comentou, olhando o céu.
Ele estava coberto de razão, a natureza nunca falhava em seu trabalho, principalmente ali. Admirei também, apesar de que minha cabeça estava longe, pensando exatamente no que iríamos fazer. Queria tanto chegar logo, mas não podia apressar meus passos e deixar tanto na cara o meu desespero.
Vi a barraca em minha frente, conferi o relógio em meu pulso e tinham se passado exatos vinte minutos, conforme a recepcionista tinha dito. Conferi o mapa.
— O que é isso? — perguntou, se referindo ao papel.
— Uma pessoa desenhou esse mapa para mim — expliquei, analisando o papel.
— Então foi tudo estrategicamente arquitetado.
Fiz que sim.
Ah, mas você não faz ideia.
— Estou ficando ansioso para essa surpresa.
Eu também, tive vontade de responder. Ao invés disso, só segui pelo caminho indicado. Passamos pelo corredor ao lado do morro e subimos as escadas que eram bem escondidas. O lugar entrou no meu campo de visão e, uau, era de tirar o fôlego.
— Porra... — ele xingou ao terminar de subir e poder ver com clareza.
Concordei, hipnotizada. Nós estávamos em um pedaço de pedra que tinha uns dois postes fracos iluminando, um pouco à frente tinha o deck de madeira que dava no lago. Árvores e plantas cercavam o lugar na areia dando uma aparência linda.
Não era um lago tão grande, era discreto. A água também era quase cristalina, mas as pedras no fundo davam uma impressão de esverdeado. A lua fazia a maior parte da iluminação.
Eu tomei banho, mas ainda usava a mesma roupa de mais cedo. Então, coloquei o papel de volta no bolso.
Ele andou até o deck e pegou na água.
— Como pode ser tão transparente?
Sentei-me no início do corredor do deck que se estendia até uma parte do lago. Observei a lua, emocionada com o privilégio de estar ali.
Ele se ajoelhou atrás de mim e beijou minha bochecha.
— Posso falar agora que me surpreendeu mais uma vez? — perguntou no meu ouvido.
— Até eu me surpreendi — balancei a cabeça para desviar da vista e virei a cabeça para encará-lo. — Bom, não precisava ser isso tudo, eu só queria um lugar para poder reivindicar meus prêmios. Acho que está na hora, não é?
Ele soltou uma risadinha.
— Me diga em que esse pobre servo pode te servir, minha rainha — falou, fazendo uma reverência toda desengonçada.
Estava na hora de falar o que vinha pensando. ‘Tá, não sabia se estava preparada. Meu coração estava disparado e minhas mãos começaram a suar. Para variar, tentei disfarçar.
— Vem aqui para a frente — pedi.
Ele obedeceu, passou por cima de mim e ameaçou se abaixar.
— Não, fique de pé — falei, impedindo-o. — Primeiramente, isso é por ter duvidado indiretamente das minhas habilidades na sinuca.
— Nunca duvidei — disse, sorrindo, sarcástico.
— Tira a roupa — ordenei. Ele arqueou uma sobrancelha. — Toda. E agora.
Ele olhou no fundo dos meus olhos, daquele jeito que me deixava nervosa e imóvel. Tirou a blusa bem devagar, quebrando o nosso contato visual só para passá-la pela cabeça. Não podia pensar muito no que estava acontecendo porque ainda corria o risco de desistir, achando que era demais. Ele tirou o short e, na hora de tirar sua roupa íntima, virou a cabeça para confirmar se eu tinha certeza. Deus me acuda, mas balancei a cabeça dando-lhe a confirmação. Abaixou a peça e chutou a roupa para o lado.
Desviei o olhar para apreciá-lo em toda sua glória. Meu corpo se acendeu, percebi que mordi meu lábio inferior em resposta. Que homem. Queria beijar cada pedacinho daquela pele e me senti salivar em expectativa para isso.
— E então? — perguntou, sem se deixar abalar pelo meu olhar sedento e descarado.
— Para a água, mas andando bem devagar até o finalzinho — indiquei o corredor. Isso me daria alguns momentos de degustação.
Ele sorriu de lado e se virou para começar o trajeto. Fitei-o, atenta a cada movimento, eu estava de pernas cruzadas e com os braços embaixo delas. Assistindo, de camarote, ele desfilando com toda aquela altura sem ser nem um pouco desajeitado. O desejo era tanto que doía, ver e não poder tirar uma casquinha sequer. Eu me odiava, só podia.
Chegando ao final, ele virou a cabeça para me esperar dar a ordem.
— Pula — ordenei, com a cabeça vazia de pensamentos e lotada de hormônio.
Ele pulou. Levantei-me e fui a uma mistura de andar e correr para conseguir vê-lo.
— E aí, qual o próximo passo? — falou quando me aproximei. A água deslizando pelo seu rosto.
Sentei-me na beira do deck, minhas pernas para fora.
— Por enquanto, é só.
Ele nadou até mim, segurou nos meus tornozelos. Queria que o mundo parasse exatamente aqui, que não tivesse mais humanidade depois disso. Eu me recusava a aceitar que esse homem não viveria para ver... sei lá, um iPhone. Não me parecia o tipo de coisa que seria interessante para ele, não sei o que realmente seria, mas queria muito ouvi-lo reclamando de smartphones.
— soprei.
— ele respondeu com os olhos nos meus.
— Se pudesse saber algo do futuro, o que iria querer saber?
— Hmmm... — ponderou por alguns segundos. — O futuro da banda, se vou conseguir conduzir mais tempo.
Ah, que pergunta inocente. Esperava algo sobre carros voadores ou chips implantados, o povo do século 20 tinha umas expectativas sobre 2000 que nós — povo da época — nunca iríamos entender como e onde falhamos.
— Tenho certeza de que sim — arrisquei essa resposta.
— E como vou morrer também.
Prendi a respiração. Todo o divertimento do momento deixando meu corpo. Não tinha pensado nisso antes, mas algo em mim temia essa pergunta.
— Que mórbido — comentei, me esforçando para a voz sair normal, mas ainda pareceu um sussurro.
Ele deu de ombros.
— E você?
Obriguei meus pulmões e o cérebro voltarem a funcionar para respondê-lo.
— Não posso escolher só uma coisa.
— Não vale. Escolhe algo — retrucou.
— Se um dia voltarei para casa — soltei qualquer coisa.
Ele ficou sério.
— Diz sua casa aqui?
Concordei, mas era mentira, me referi ao meu tempo. Só que ele não precisava saber, é claro.
— Você quer isso? — ele franziu o cenho e seu olhar acabou endurecendo, mostrando que não estava satisfeito em saber daquilo.
— Não, não quero tanto mais, mas às vezes pode ser o meu destino. Todo sonho acaba, um dia a gente tem que acordar — justifiquei.
— Espero que não, nem consigo visualizar o futuro sem a sua presença — disse, a testa ainda franzida e os olhos preocupados.
Suspirei, me segurando para não chorar imaginando o meu futuro sem graça e sem ele. Eu sofreria tanto que não gostava nem de pensar, preferia ficar adiando esse momento.
— É difícil vir para tão perto da sua casa, não é?
— Digamos que sim — falei, pesarosa.
— Por que você fugiu, ? Você nunca me disse o real motivo.
Como responder essa pergunta sem mentir?
— Por você — admiti. Ele imediatamente pareceu confuso. — Eu menti sobre a intensidade disso quando comemos naquele restaurante no dia que cheguei. Desde a primeira vez que fiquei sabendo mais sobre você, quis loucamente te conhecer. Larguei tudo para isso, por você.
Cada vez estava revelando mais sobre a minha verdadeira história, reconhecia. Não iria falar de onde viera, a menos que fosse necessário, mas me fazia bem entregar minha alma assim como recebia a dele.
— Isso é sério? — ele murmurou com a voz grossa.
— Claro que é.
— Quando pretendia me contar isso?
Sorri, me permitindo relaxar um pouco.
— Quando tivesse chance de você não sair correndo porque descobriu que sou uma fã doente.
— É, faz sentido. Eu realmente ficaria com medo naquela época — riu. — Mas agora soa extremamente excitante.
Apoiei as mãos atrás de mim e me inclinei um pouco para trás. Ele ergueu minha perna e beijou os dedos do meu pé. Encarei-o, sentindo uma cócega gostosa. Subiu os beijos calmamente. Fiquei bem curiosa para saber onde ele queria chegar. Segurei a respiração quando ele chegou na área interna da minha coxa e fechei os olhos. O sangue do meu corpo desceu todo para os pontos que ele beijava e esqueci de tudo, menos daquela boca, que passou para minha outra coxa.
Pelo menos alguém ali tinha consciência.
— Vai me deixar sozinho aqui até quando? — perguntou, me assustando. Abri os olhos, meio atordoada.
Tentei me recuperar, abaixar o fogo. Jogar copos de água internos, abanar, qualquer coisa.
— Na verdade, pretendia fugir com suas roupas e te deixar aí — brinquei.
Ele gargalhou.
— Entra aqui — pediu.
Passei minhas pernas de volta para o deck e me levantei. Tirei meu short, olhando-o nos olhos.
— Quem diria que a vista poderia ficar melhor — comentou. Minhas bochechas esquentaram, mas não dava para ver porque estava escuro e já estavam vermelhas pelo sol.
— Para com isso — falei, toda abobalhada.
Sentei e deixei meu corpo cair na água funda de uma vez.
— Pronto, estou aqui. O que quer de mim? — perguntei.
— Hoje quem está exigindo é você.
— Então vou aproveitar essa água que está perfeita. — Enrosquei minhas pernas em seu abdômen e deitei o tronco de braços abertos para boiar.
Ele passou alguns minutos calado, meus olhos estavam fechados para relaxar completamente. Então não me importei.
Senti sua mão contornando meu corpo depois de segundos ou minutos. Minha pele arrepiou automaticamente. Ele estava todo cheio de mãos para cima de mim de repente.
— Esse realmente é um maiô legal — comentou.
— É, eu sei — falei, cheia de confiança que poderia ser falsa, mas existia.
Quando o toque chegou nas minhas coxas, me levantei para não sofrer de novo. Ele estava com a lua em suas costas, pensei que aquela vista, sim, era linda. Merecia uma foto.
Então era o momento perfeito.
— Está na hora de pagar a segunda dívida.
Por incrível que parecesse, também planejei o que viria a seguir.
— Às suas ordens.
— Me beija — pedi.
Ele me deu um selinho, sem fazer a menor ideia das minhas intenções.
— De verdade — expliquei. Arqueou uma sobrancelha, desconfiado. Voltei com minhas pernas ao redor dele e abracei seu pescoço. — Eu quero que me beije de verdade, como se me devorasse assim como você vem fazendo com seus olhos esse tempo todo — sussurrei, nariz com nariz.
Ele inclinou a cabeça, seus olhos brilhavam e me preparei para sentir seu gosto familiar.
Não fez cerimônias, já invadiu minha boca com a língua, quase me fazendo explodir em deleite. Senti sua mão em meu rosto, a outra apertava minha coxa no limite dos glúteos. Se segurando. Soltei um braço de seu pescoço e alcancei sua mão, arrastei-a para o lugar almejado, ele apertou a pele com vontade. Com a outra mão, ele me trouxe mais para junto de si e me engoliu com sua boca. Apertei-o entre minhas pernas e o devorei de volta, sua língua batalhando com a minha como se qualquer deslize meu fosse fazê-la chegar à garganta. Aquele gosto de tabaco e dele dominando minhas papilas, me transformando em uma viciada. Porra, ele era absolutamente delicioso.
Eu poderia ficar horas ali, mas meu corpo precisava de ar. Descolei nossas bocas, ele me encarou com os lábios levemente inchados.
— Não se assuste se escorregar — avisou.
Não precisei de muito para entender o que queria dizer. Eu quis muito deixar o corpo cair e sentir o quanto seu corpo me desejava, mas aquilo já era demais. Estava excitada demais para o bem de nós dois. Bom, eu tinha acabado de beijá-lo, não era muito parâmetro para dizer o que era demais e o que não era. Porém, pensar isso, era demais.
— Quer que eu saia? — perguntei, espantando meus pensamentos.
Ele fez que não. Ainda bem, não sei se conseguiria me desgrudar tão cedo. Beijei, mordi e chupei a pele do seu pescoço, completamente inebriada pela chance de prová-lo ainda mais. Seus olhos estavam fechados e a boca entreaberta. Corri meu nariz até parar em seu ouvido, onde sussurrei:
— Se te disser o que estou pensando, você me recompensa com um beijo?
Concordou sem abrir os olhos.
— Estou pensando de novo em como... — afastei seu cabelo e plantei um beijo atrás de sua orelha — você é gostoso. — Senti seu corpo se mexer, acompanhando sua risada baixa. Eu planejei falar isso, adorava como ele ficava quando ouvia. — Não sei como te ver assim, sem querer sentar em você.
Ele me puxou suavemente pelo cabelo para podermos nos encarar, mordeu o lábio inferior ao me analisar e seus olhos brilharam sob a luz da lua. Parecia prestes a me devorar, assim como pedi que o fizesse.
— E por que não me mostra?
Ele parecia incrivelmente entregue. Era apenas falar “sim”, que ele me atacaria. A Lilly tinha razão, ele esteve na espreita, querendo dar o bote. E eu o queria de volta na mesma intensidade, mas eu não podia correr o risco de colocar tudo a perder. De arruinar o que trabalhei tanto. De deixá-lo cair na tentação, para depois sofrer. Como ela disse, de não ter para onde fugir, já que nós não vivíamos um sem o outro.
Desprendi minhas pernas de seu tronco e afastei-me pela água com receio.
— Melhor ficarmos assim — falei, boiando. — Para o nosso bem.
Ele se aproximou devagar.
— Está com medo, ? De mim ou do que você está sentindo por mim? — perguntou, parecendo ler minha mente. Meu corpo se acendeu, esperando que me tocasse. Porém, meu cérebro estava preparado para reagir.
— De nós dois — respondi em quase um sussurro.
— A ideia de existir um “nós dois” te assusta? Por quê? Você não guarda boas memórias das nossas aventuras juntos? — Ele estava chegando muito perto e parecia saber que estava prestes a encurralar sua presa.
— É errado, .
Ele parou subitamente como se tivesse levado um tapa na cara, seu rosto ficou inexpressivo.
Isso não parecia nada bom.
— Eu não quis dizer assim, nesse sentido — apressei-me em explicar. Suspirei. Meu Deus, onde estava com a cabeça? — Desculpa. Sou uma tola.
— Então me explica que merda significa tudo isso — esbravejou. Abrindo os braços e me assustando.
Finalmente ele tinha ficado com raiva. Achei que tinha acabado totalmente com os sentimentos dele e o deixado só um bobo apaixonado. Era isso que a gente precisava para nos impedir de cometer um erro gigante.
— Não sei. Droga, realmente não sei — falei, sem saber o que dizer.
— Você precisa me dizer, . Tentei nos rotular melhores amigos porque fala que não quer andar por aí de casal, mas você me agarra e fala essas coisas para mim. Eu não sou de ferro! — gritou a última frase. — Sinceramente, depois de hoje, não sei mais o que a gente é, mas sei que estou cansado de ouvir você se arrependendo de mim. Eu não quero ser mais um erro seu. Ouvir isso de você até me dói, sabia?
Prendi meus lábios em uma linha fina. Não sabia se tinha resposta para aquilo, estava acontecendo exatamente o que temi. Ele estava ainda mais apaixonado do que pensei — o que provavelmente destruiria sua vida quando eu fosse embora. Eu deveria ter percebido isso quando ele fez exatamente o que Lilly disse e abdicou de outras por mim. Na verdade, deveria ter percebido que essa era uma decisão que ele só tomaria se estivesse completamente rendido. Eu nunca deveria ter desejado isso se tivesse percebido.
— Sei. Eu... sinto a mesma coisa — respondi.
— Não parece. Você me permite e depois me machuca por chegar perto. Brinca com os meus sentimentos como se eles não existissem. Caralho, é um crime tão grande querer ficar com você?
Ele estava muito bravo, as rugas da sua testa não sumiam do tanto que franzia. Estava tudo errado e pensar naquilo me deixava muito brava comigo mesma.
— Não era para isso estar acontecendo, eu tentei evitar. Nós dois não poderia chegar perto de se concretizar, só vai resultar em sofrimento como está sendo agora — falei com pesar.
— E você ainda ousa me chamar de mórbido! Não sou eu que pensa em uma possibilidade do futuro como se pudesse prevê-lo, uma chance em cada 1 milhão, 1%, sei lá, qualquer merda de probabilidade — suspirou, passando a mão no cabelo. — Bom, é isso. Está aí. É isso que quero saber do futuro.
Ergui uma sobrancelha. Foi bem aleatório, mas preferi ficar calada para receber toda a raiva que pudesse despejar. Eu merecia cada sílaba.
— Queria saber como vamos estar daqui a alguns meses para poder te provar que está errada. Sabe por quê? Porque isso daqui não vai continuar por muito tempo. Depois de hoje, a gente pode ficar se agarrando pelos cantos, não é? E, em seguida, você bate o martelo se podemos fazer mais, de acordo com a dimensão do seu desejo. Eu que me foda. Até onde nossa amizade vai chegar? Até quando você vai achar que isso que nós estamos fazendo é um erro? Até encontrar um cara que seja o certo para você e possa me jogar fora? — Ele puxou o ar e olhou para cima, parecendo incomodado com sua imaginação. — Eu nunca tive a mínima chance, não é? Você nunca cogitou aí dentro em me deixar tentar provar que posso ser esse cara certo, o que vale a pena. Apenas me rotulou como o errado que te dá tesão. Por quê? Por que, apesar de conviver comigo todos os dias nos últimos meses, eu ainda não sou nada além do maldito da banda que você gosta? — Ele olhou de volta para mim. — Me fala, porra! Por que eu não sirvo para você?! — gritou com os olhos injetados de indignação.
— Eu... — falei, deixando o resto da frase morrer. Ele me deixou sem palavras e isso machucava.
— Tentei fazer as coisas nos seus termos, tentei mesmo. Agora não dá mais, não com você me falando que imaginar nós dois juntos é um erro. Pensei que poderia tolerar tudo para estar perto de você, mas não consigo, simplesmente não dá para te beijar assim sem querer ser visto como mais que seu mero fantoche.
Me senti mal por estar pensando que éramos um erro do tempo ao longo desses meses, não queria ter o encarado daquela maneira, assim, enquanto estava abrindo seu coração. Eu estava ali, naquele segundo, naquela data, não era certo viver na sombra do meu eu do futuro, sempre desconfiando do momento que iria embora. Fui ali por ele e o magoei por exatamente o mesmo motivo.
— Desculpa — falei.
— Não me peça desculpa — ele rosnou com ultraje. — Me diga que vai tentar pensar na gente de um jeito diferente, que vai me dar uma chance como o homem que é apaixonado por você e não pela merda do personagem que eu inventei para a mídia — retrucou.
Engoli em seco. Ele nunca entenderia que estava fazendo isso para poupá-lo, não porque ele era o , mas porque era a droga da minha alma gêmea e por isso nós estávamos fadados ao fracasso. Como eu poderia explicar para ele que a garota por quem se apaixonou nem tinha nascido ainda? Talvez, se ele soubesse, eu perderia o encanto.
— Preciso de um tempo para digerir isso — murmurei.
— Sem problemas, leve o tempo que precisar.
Ele nadou para o raso, onde começava a areia na lateral do lago. Quis chamá-lo de volta para não deixar nossa noite acabar daquela forma, mas não tinha coragem de pedir mais nada. A água ainda estava boa, o céu estava limpo, nós estávamos sozinhos e brigados. Ele estava bravo, eu tinha culpa dentro de mim.
Segui-o, ele vestia de volta sua roupa. Estava tudo errado, não era nada disso que planejei. Arquitetei tudo para ficarmos só os dois e retomar as promessas antigas porque achei que seria engraçado. Não acreditava que ele me deixaria assim.
— Acho que você é um mal-agradecido — reclamei antes que pudesse controlar minha boca. Olhei para baixo e eu estava em pé na areia e com as mãos na cintura. Ele estava em cima do deck.
Virou-se para mim, com a camiseta na mão.
— O quê? — perguntou, o cenho ainda franzido como se tivesse me ouvindo falar que vi marcianos destruindo sua casa.
— Você me pediu para arrumar algo para nós. Fui atrás desse lugar para a gente poder ficar sozinho e ter essa coisa — falei apontando para ele e para mim —, que a gente tem. Você escolheu abraçar meus termos de amizade, por livre e espontânea vontade, e eu não vou levar a culpa sozinha por isso! — suspirei. — Aí você simplesmente resolve discutir nossa relação em um lugar como esse, acabando com tudo que organizei para a noite e me deixando com uma culpa gigante nos ombros.
Ele ficou sem reação, mas dava para enxergar a irritação em pequenos detalhes do seu corpo — como os músculos tensionados, também o maxilar.
Andei até o deck em passos apressados para ficar de frente para ele. Se queria discutir, ótimo, estava certo de defender o seu ponto, mas eu também iria defender o meu.
Quando cheguei bem perto dele, apontei o dedo em seu peito — porque tinha essa mania ridícula quando estava com muita raiva. Olhando para cima e na ponta dos pés, foi a minha vez de esbravejar:
— Não acha que já penso na gente de um jeito diferente? , eu estou aqui com você quando poderíamos estar com sua família, no mar, fazendo qualquer coisa. Eu reservei esse tempo exclusivamente para você, para termos privacidade! Por que dois melhores amigos precisariam desse tipo de privacidade da família, se eles não tivessem algo a mais? Quando digo que somos um erro é porque não podemos ficar juntos como um casal. Você foi compreensivo quando eu te disse isso na Alemanha, você disse que estava tentando entender que tenho meus motivos e, agora, de repente, não pode mais? E, porra, ainda assim, estou aqui, não estou? Pisando e dançando em cima do que acredito para ser sincera e te deixar ver como me sinto em relação a você. Eu quero que veja porque você não é só mais um. Acha mesmo que tem espaço na minha vida para um cara qualquer sequer se aproximar quando tudo que penso é em você? Em todos esses meses, você teve outras mulheres, e não te julgo por isso, mas eu sequer olhei para outro homem com um terço da devoção que tenho por ti. Como pode ter a ousadia de achar que estou te usando, seu babaca? Você me ouviu, eu abdiquei da minha vida para te conhecer. E posso te garantir que você não é um mero pedaço de carne aos meus olhos! Eu me apaixonei por você quando você só era o inalcançável, mas também me apaixonei mais uma vez quando você se tornou o . Não sou essa vadia egoísta que acha que sou, eu definitivamente sinto toda essa merda.
Dei as costas para ele. Agora estava com raiva, humilhada e triste. Porém, decidida a não chorar daquela vez. Quem não queria mais ficar naquele lugar era eu.
— Vamos embora — resmunguei, marchando para o caminho de onde viemos depois de pegar meu short.
Não conversamos durante o caminho, só o ouvi andando atrás de mim. Era melhor assim. Parece que demoramos o triplo no trajeto, por causa do clima pesado.
Ao ver o hotel, quase saí correndo em direção, porém isso não seria muito maduro da minha parte. Eu só queria me trancar no quarto e passar um tempo longe dele, precisava respirar meu próprio ar para digerir e repensar o nosso relacionamento em paz. Porém, antes de disparar escada acima, esperei-o no primeiro degrau.
Aproximou-se e arranquei o papel com o mapa desenhado do bolso. Enfiei-o em sua mão.
— Vou pensar no que me disse, mas você também vai processar o que falei. Então, não me procure. — Virei e subi o restante dos degraus apressadamente.
Fechei a porta sem olhar para trás. Lilly não estava no quarto, provavelmente estava no de Andreas — o que não era bom, porque ela veria o irmão emburrado, então correria para lá. Porém, não estava com cabeça para ficar esperando, sentada e pacientemente, pelos questionamentos dela.
Tomei um banho e me livrei do maiô molhado, coloquei meu pijama confortável e deitei no escuro total. Precisava zerar meus pensamentos para poder dormir. Olhei no relógio e eram meia noite e vinte. Enfiei a cara no travesseiro e a senti arder pela quantidade de sol do dia.
O que mais me doía era saber que ele estava certo sobre aquela loucura ruir a qualquer momento. Eu sabia, desde aquele dia que propus, que aquilo não fazia sentido. Que, em certo ponto, a gente precisaria de mais. Lilly ainda disse que amigos não se beijam, eu deveria ter escutado. Vivi no meu mundinho feliz, onde, querendo ou não, me aproveitei dele. Fiz por egoísmo porque não fui forte o suficiente para me manter longe. Ele aceitou só para ficar perto de mim, é claro, não percebi que ele poderia concordar com qualquer coisa só para ficar por perto.
Precisava desse contato com ele, não conseguia resistir, era automático vê-lo e beijá-lo, dormir sentindo seu calor e me sentar em seu colo para conversar. Porém, se isso o magoava, eu não poderia deixar assim.
Merda.
Ele tinha entendido tudo errado.
E eu era a culpada por ter deixado brecha para aquilo.
O que eu poderia ter feito? Dizer que ele sempre foi o cara certo, mas que o fato de eu ter vindo de 2019 tornava tudo errado?
Lilly irrompeu pela porta que nem um foguete, era meia noite e trinta. Eu conferi no relógio perto da minha cabeça.
— O que aconteceu? — exigiu saber, logo em seguida acendendo a luz.
Resmunguei por ser invadida pela claridade.
— Fala, ! — gritou.
— A gente brigou.
— Porra, de novo?! Dessa vez, por causa de quê? — Senti o colchão afundar com seu peso.
Desenterrei a cara do travesseiro para resumir tudo o que tínhamos despejado um em cima do outro.
— Que confusão... — falou, por fim. Os olhos perdidos na cortina.
Concordei, enfiando a cabeça no travesseiro. Se até ela achava, então eu estava em uma enrascada.
— Eu pedi um tempo para poder digerir o que ele disse.
— Vou repetir o que sempre falo: um dia vou descobrir o motivo que você tem que tornar tudo complicado, vai ser um dos melhores dias da minha vida. As coisas seriam tão mais simples se largasse tudo e ficasse com ele, sem nenhuma culpa.
Virei o rosto e tirei o cabelo da frente, ela agora estava sentada em cima de seu travesseiro e do meu lado. Pensei que poderia compartilhar mais um pouco do que eu escondia e acabei deixando sair:
— Ele não precisa de mim, Lilly. Ele acha que precisa porque está apaixonado pela ideia de me ter. Seu irmão é solitário, está fadado à vida de ter várias mulheres para se satisfazer e é melhor assim para nós dois.
— Agora você está sendo absurda. De onde veio isso?
— Às vezes, eu acho que não consigo mudar o futuro dele. Não sei mais por quanto tempo posso ficar aqui até a bomba explodir. Porque, com certeza, vai explodir. E ele vai sofrer tanto por minha causa. Eu não me importo em sofrer sozinha, mas dói imaginar deixá-lo com toda essa dor. — Percebi que estava falando em códigos e ela provavelmente me acharia doida. Suspirei, tentando seguir de acordo com a realidade que ela conhecia. — Acho que ele deveria aproveitar a ínfima chance que tem de voltar para a Natalia, porque tem mais chances que ela dê o que ele me pediu: um futuro. E que eu não esteja mais por perto para assistir esse show de horrores.
Agora Lilly que parecia ter levado um tapa na cara. Droga, isso era uma competição de quantos membros da mesma família eu poderia ofender com as minhas palavras? Porque estava funcionando. O próximo round seria quem? Andreas ou Börje?
— Então isso é sobre a Natalia? — ela falou com uma voz fina e ultrajada. — Sabia que deveria ficar de olho desde aquele dia. Pensei que ficar na sua casa seria um exagero, mas você ficou mal depois que falei aquilo. Eu vi — ela suspirou. — Carreguei-o até sua casa no dia da aranha para te provar que aquele sonso faria de tudo por você, que ele te escolheu. Ele nunca mais a viu, . Ele literalmente só saiu da sua casa para trabalhar e passear com o Solveig, como você poderia duvidar disso? Ele não é um ser irracional que faz tudo em prol de seres do sexo feminino e não pode manter um relacionamento. Se ele gosta de você, deixe-o lutar por você! E posso te garantir que a inimiga aqui não é a Natalia, e sim você.
Ela cruzou os braços e ficou quieta por uns instantes enquanto olhava para suas pernas. Até quebrar o silêncio novamente:
— Te ouvindo falar isso me faz achar que vai nos deixar, e o pior, por causa de coisas que sua cabeça criou. É tão simples: esquece ela, agarra ele e não a deixa ter uma chance sequer. Não desiste agora.
— Queria te explicar tudo, queria te fazer entender o motivo de ser melhor para todo mundo nessa história que eu desista e simplesmente suma, mas não posso. Ainda não.
Ela bufou.
— Descansa e amanhã a gente conversa, quando reconhecer o quanto está sendo uma bobona.
Estava com um pouco de raiva dela também por botar toda a sua expectativa em mim, mas sabia que a raiva vinha da minha decepção comigo mesma. Queria ser compreendida, mas não podia contar o que se passava, e isso me frustrava demais.
Que noite de merda.

Capítulo 22 - I don’t want to miss a thing

Nos dois dias seguintes, pedi para entregarem o almoço e a janta no quarto. Lilly não quis mais conversar comigo, talvez porque viu que aquelas ideias ainda estavam bem vivas na minha cabeça. Tentou me fazer sair do quarto no começo, mas me enterrei na cama a ponto de me fundir ao colchão. Ela não entendia que eu precisava de um tempo para tomar decisões que mudariam tudo.
Estava apenas seguindo com o que falei: pensando sobre nós dois e se poderia lhe dar o que pediu.
Até aquele momento, cheguei à conclusão de que:
Bom, nada.
Não cheguei à conclusão alguma.
Estava evitando um pouco o assunto, para ser sincera. Quando ele surgia, vinha acompanhado de frustração e medo.
Me sentia inútil. A viajante do tempo mais perdida e sem rumo da história. Era tão diferente dos romances que li, a realidade era cruel e qualquer passo em falso poderia estragar tudo.
Aquilo que disse para Lilly andava me assombrando um pouco, nunca tinha pensado muito a fundo sobre ele ser solitário até ter vociferado isto. Na verdade, eu sabia tão pouco sobre a vida pessoal dele, nem sei se ele teve alguma namorada duradoura durante os anos 90. Sabia apenas que ele morreu sozinho, sabia também que foi escolha dele não ter alguém.
Eu sei que deveria ter pensado melhor em como seria para ele depois da minha partida, mas em algum momento parei de pensar em partir como escolha própria porque simplesmente não tinha mais pressa. O ano de 1990 se tornou minha segunda casa e eu me sentia com a vida mais estabelecida ali do que em 2019. Porém, isso não significava que não sabia que poderia ter que partir logo, como eu disse para a Lilly: a bomba ia explodir uma hora. Entender como tudo funcionava era fundamental para evitar o despreparo em que me encontrava, portanto precisava trabalhar melhor para ver como ele ficaria e garantir que ele tivesse amparo para aumentar o tempo de vida dele.
Também gostava de pensar que quando a saudade batesse mais profundamente e as coisas se tornassem mais intoleráveis, eu poderia apertar algum botão e voltar para 2019. Não pretendia passar a vida inteira ali, só pretendia descobrir o que era preciso para salvá-lo e dar no pé. Encontrá-lo em 2019, se tudo desse certo, e sair para tomar um café como velhos amigos. E, se eu falhasse, não queria estar ali para sentir o peso da derrota e da ausência dele. Não existia vida para mim sem no século 20. Eu tinha vários motivos para ficar, mas zero para permanecer depois que ele fosse. Ainda mais se Lilly e os outros descobrissem que eu tive a chance de salvá-lo, mas estava mais ocupada pensando em meios de enfiar a língua na boca dele.
Andei chorando, mas em momentos estratégicos. Quando começava a relembrar que ele achava que eu o estava usando sem sentir nada além de desejo e depois Lilly me falando para não desistir, aí algumas lágrimas vinham. Também chorei quando minha ansiedade me traía e gritava que já era tarde demais, que eu tinha estragado sua vida sendo fraca ao permitir com que se apaixonasse por mim. É, aí sim, eu me debulhei em lágrimas.
No terceiro dia, a porta se abriu e fingi que estava dormindo enquanto passava o jornal da manhã na televisão. Ouvi passos e a cortina foi aberta pela primeira vez em mais de 48 horas. Fiz uma careta involuntária. A paz claramente chegou ao fim.
— Chega, . Acabou a fossa — Lilly disse, com raiva. — Levanta e toma um banho, porque seu cabelo está horrível.
— Não — resmunguei, enfiando o cobertor na cara, já que o ar-condicionado estava ligado.
— Karin está vindo falar com você, então ou toma banho ou encara ela desse jeito aí.
Grunhi, puxando o tecido que me cobria para encará-la.
— Achei que a gente ia conversar só depois que eu reconhecesse que estou sendo uma bobona — resmunguei, levantando em seguida, porque me arrepiava a ideia de logo a Karin me ver naquele estado.
Precisava fingir que estava, pelo menos, limpa.
— Te dei um tempo e ele acabou. Agora você vai se tocar disso à força. — Ela estava séria e de braços cruzados. Peguei umas roupas na mala e fui direto tomar banho com medo da carranca dela.
Não acreditava que estava sendo tirada à força da minha ermida. Tentei enrolar no banho para desmanchar todo o ninho que formou no meu cabelo aqueles dias, mas Lilly socou a porta e reclamou coisas em sueco que não entendi. Não pareciam ser amigáveis, no entanto.
Vesti um vestido longo verde-água e bem fresco que era bem aberto em cima, por isso coloquei a parte de cima de um biquíni — pela falta de um sutiã que combinasse — e sentei-me na cama.
— Vou chamá-la — ela anunciou e saiu.
Nem sabia o que falar para justificar minha ausência, não podia simplesmente dizer que estava repensando minha relação com o filho do marido dela (não conseguia falar “enteado” porque parecia que ela e ele tinham quase a mesma idade). Uma desculpa teria que vir na hora, caso ela me pressionasse. Ela não faria aquilo, era uma das pessoas mais reservadas que conhecia e nunca a vi pressionando para invadir a intimidade alheia. Por isso era tão fácil lidar com ela e Börje. Eles gostavam de mim e não me cobravam justificativas.
Logo, as duas entraram pela porta.
— Olá! — ela falou com um sorriso cativante. Sorri pela primeira vez naquele tempo e foi estranho, senti minha pele do rosto repuxando demais. Provavelmente porque esfreguei demais a bucha no rosto durante o banho, mas fiz isso até não me sentir mais suja. Eu não fiquei dois dias sem tomar banho, só sem lavar o cabelo, mas me senti suja por ficar o dia todo trancada ali, evitando meus pensamentos.
Sentou-se ao meu lado e Lilly estava atrás de mim.
— Oi — respondi em um muxoxo.
— O que houve, querida? — perguntou com preocupação, pegando minha mão esquerda nas suas. — Está doente?
— Não. — Prendi meus lábios em uma linha fina. — Só não estou com muita vontade de sol ultimamente.
— Pegou uma insolação? Precisa ir para o hospital? — Ela parecia genuinamente preocupada com minha saúde.
Neguei.
— Estou apenas de péssimo humor, Karin — lamentei e ela sorriu. O que foi estranho, mas, quando ela começou a falar, entendi o motivo.
— Tenho um programa perfeito para melhorar seu humor. disse, uma vez, que você tem interesse. Você vem, não é? — ela disse, com os olhos claros brilhando em expectativa.
Ah, não. Não sabia se estava pronta para largar meu lugarzinho seguro tão cedo.
— Sim — falei no automático, contrariando todos os meus sentimentos internos para atender seu pedido. Era impossível negar algo a ela, ainda mais com aquele sorriso de pôr-do-sol.
Lilly soltou uma risada de escárnio atrás de mim.
— Só você para tirá-la desse quarto — comentou com ciúmes, se levantando. Lilly parecia uma pilha de emoções e eu não sabia se estava preparada também para encará-la tão cedo. Do mesmo jeito que me senti frustrada por ela estar depositando toda a sua expectativa em mim, ela devia estar se sentindo frustrada por parecer fácil demais e estar sendo eu a colocar uma pedra enorme no meu próprio caminho. Ela achava que era apenas a Natalia, mas o meu ciúme não chegava nem aos pés da seriedade da maldição. Eu apenas sugeri que ele ficasse com ela, já que os dois pertenciam ao século 20, mas ela não percebeu isso, porque não sabia da história inteira.
Pensar naquela noite de novo estava me dando dor de cabeça e não fazia nem uma hora que eu estava acordada.
Karin se levantou, Lilly estava em pé ao lado dela e as duas me encaravam. Olhos verdes e azuis fixos em mim, esperando uma resposta. Acho que, nem se eu quisesse, conseguiria descrever a pressão que se instaurou nos meus ombros.
— Agora? — perguntei, hesitando. Só queria alguns minutos para repensar tudo e finalmente decidir algo. Era assim que tudo funcionava comigo, nos últimos minutos e por pressão.
As duas fizeram que sim. Não havia mesmo tempo nem para me martirizar mais um pouquinho? Eu podia ser rápida.
Suspirei e, com as mãos tremendo, peguei a bolsa de praia que Lilly estava usando — mas que era minha — e saí pela porta com elas ao meu encalço.
Era trágico pensar que desperdicei dois dias da nossa curta estadia enfurnada no quarto, mas precisava muito ficar sozinha. Na verdade, fazia um tempo que não tinha espaço para mim. Brigas não me faziam bem — acho que para ninguém —, então precisei digerir para tomar uma posição. A decisão não tinha vindo ainda, por isso minhas mãos suaram de nervoso ao sair pela porta que me isolou por preciosas horas de vê-lo passando por ali. A ansiedade dando seus primeiros sinais.
Nós três fomos andando até o gazebo que estava vazio.
— Vou escolher uma música para nós — disse a mais velha, indo até onde ficava todo o equipamento de som.
Lilly se sentou no chão e eu também.
— O que vamos fazer? — perguntei. Meio nervosa pelo que poderia ter dito a ela.
— Não faço ideia — respondeu, fria.
— Está com raiva de mim? — franzi o cenho. Eu estava ali, não estava? Achei que era o suficiente para ela, me ver tentando depois de dois dias inerte.
— Depende do que vai decidir fazer. Se ficar no quarto, estou. Se for fugir e deixar a gente, estou mais ainda. Mas se não, não estou.
Não tive tempo de responder, os três homens de quase dois metros entraram no local. Meu estômago criou asas e quase saiu voando pela minha boca, pensei que não seria de todo mal sair voando junto por aí. Börje acenou para mim, sorri fraco e acenei de volta. Atrás dele estava Andreas, que se sentou ao meu lado.
— Oi, sumida — ele disse, me dando um abraço desajeitado pela posição.
— Olá — passei meu braço em volta de suas costas e descansei minha cabeça em seu ombro.
O objeto dos meus anseios desfilava em uma calça jeans de lavagem clara e uma regata improvisada de uma camiseta velha dos Beatles, seus olhos escondidos pelos óculos escuros. Lembrei do dia que estava bêbada e coloquei aquela armação na cara, para fingir que era ele. Meu rosto estava começando a esquentar por causa da lembrança e desviei o olhar. Porém, deu para ver que ele se sentou ao lado da irmã pela visão periférica. Perto demais.
Mordi as pelinhas do meu lábio inferior. Aquela ansiedade ia me matar. O perfume do seu desodorante combinado ao shampoo de frutas invadiu minhas narinas e me causou enjoo. Me esforçar para não o olhar só piorava a expectativa. Ele não ia falar nada? Estávamos de volta aos velhos tempos quando ele era apático? Espera. Eu queria que ele falasse comigo tão cedo?
As perguntas giravam à minha volta, me deixando mais confusa.
— Trouxe vocês aqui hoje para fazer algo diferente — Karin disse com bastante entusiasmo. Börje estava atrás dela. — Vamos dançar!
Lilly pareceu se animar ao meu lado.
— Eu e Börje mostraremos, primeiro, como é. Depois, vocês vão reproduzir.
Ela fez um sinal para ele começar a música, colocou um disco na vitrola e o som invadiu nossos ouvidos. Era The Five Satins, A Night to Remember. Droga, The Five Satins e gazebo cheiravam muito à Dirty Dancing. Será que tinha contado sobre querer dançar no meu casamento que nem os personagens do filme?
Eu iria matá-lo, caso a resposta fosse “sim”. Já estava me arrependendo de novo daquele momento e da minha falta de criatividade. Porém, eu estava de ressaca e no colo dele depois de propor para sermos amigos que se beijam, não poderia exigir muito do meu pobre cérebro. Eu bem que deveria ter exigido mais, porque não estaria naquela situação naquele momento.
Börje ergueu a mão, pedindo pela dela, e recebeu-a. Os dois chegaram ao meio do gazebo e começaram a deslizar com graciosidade pelo espaço. Karin usava um vestido de malha fresca vermelho de bolinhas, o laço atrás de seu pescoço me agradava, parecia diretamente dos anos 50. Ele estava em suas roupas de verão, bermuda caqui, regata e uma camisa de botões levinha com a manga dobrada até os cotovelos.
Dizer que eles dançavam bem não fazia jus ao que acontecia na minha frente. Era perfeita a sincronia, acho que tinham aprendido juntos, porque nada mais justificava o fato de eles saberem exatamente o que o outro faria, o próximo passo que iam dar juntos. Eu nunca acertaria fazer algo sequer um terço parecido com aquilo.
A música era bem rápida, então, quando pararam, meu coração, que queria sair voando pela minha boca, voou e foi parar no chão. Eu quase podia vê-lo ali, todo murcho e esfacelado. Morreu pela ansiedade de estar perto da pessoa que mais estive perto nos últimos tempos. Descanse em paz, guerreiro.
Céus, quanto drama...
— Agora se juntem com o par de vocês — Karin disse, de frente para nós.
— Eu vou com o Andreas! — Lilly gritou, se jogando em cima de mim para pegar a mão do irmão.
Lancei para ela um legítimo olhar assassino. Que traidora! Era para a gente fazer aquilo juntas e ela me esfaqueou pelas costas!
Eles se levantaram e eu fiquei sentada, pensando se dava para fugir. Se, por um acaso, uma fada madrinha estivesse dando bobeira por ali e me levasse de volta para 2019. Não foi assim que cheguei ali, mas eu acreditava em qualquer coisa para simplesmente sumir. Até no meu botão imaginário de voltar para 2019.
Vi pernas gigantes se materializarem em minha frente. Ok, estava em minha frente. Ele estava estendendo sua mão para me ajudar a levantar. Hesitei em aceitar, só que soaria rude negar. Ele me deu impulso para me levantar, mas acabei me atrapalhando na barra do vestido e quase caí. Quase. Se não fosse pelos braços também gigantes e irritantes dele. E de novo. Eu ainda não me esqueci que estivemos nessa mesma situação quando eu tinha acabado de chegar e dormi com ele no mesmo quarto de hotel. Murmurei um agradecimento sem nem olhar diretamente para seu rosto, tinha medo do que podia achar ali, se encontrasse ausência de emoções como nos velhos tempos, seria tarde demais para tentar consertar.
Caminhamos até o meio do círculo, onde Lilly e Andreas já estavam. Börje estava no toca discos de novo e Karin foi arrumar os outros dois na posição correta. Fiquei procurando lugares para pousar meus olhos e não ceder à tentação de olhá-lo, troquei o peso de uma perna para outra e suspirei, sem tentar esconder meu desconforto. Ela veio até nós para nos posicionar alguns minutos depois.
— Vão dançar quantas pessoas aqui para estarem longe desse jeito? — ela reclamou, nos puxando pelo cotovelo e nos aproximando.
Ficamos colados e meu coração voltou à vida com força total, a ponto de me martelar para alcançá-lo. Ela posicionou uma mão dele na minha cintura e a outra ficou no ar onde a minha se encaixou.
Ela se afastou e olhou nós quatro.
— Agora os pés de vocês têm que estar em harmonia, quando um for para trás, o outro vai para a frente, vice-versa — seus pés se mexiam, exemplificando.
Ela fez um sinal para o marido continuar com a música. Dessa vez era A Nite Like This. Eu era muito fã da música deles, sabia de cor. Claro que conheci a primeira vez em Dirty Dancing porque a trilha sonora me chamou atenção, mas desde então passei a ouvi-los e admirá-los. Esse tipo de música era bem a cara de Börje, pelo que conhecia de seu gosto musical, então podia ter uma pequena chance de não ser pelo que poderia ter dito.
— Podem começar — ela disse.
No primeiro passo, pisei no pé dele em cheio. É claro.
— Ai! — ele reclamou.
— Desculpa. — Mordi o lábio e olhei para os nossos pés para tomar mais cuidado.
Karin se aproximou e disse no meu ouvido com certa diversão:
— Não, não. Olhe nos olhos do seu parceiro, .
Quase como Johnny falou pra Baby.
Cara, eu ia matá-lo. O tom de diversão dela mostrava que sabia de tudo.
Fada madrinha e botão, podem vir agora.
Ergui a cabeça enquanto ela arrumava minha postura. Deixei-o me afundar em seus olhos e começar aquele transe tão familiar, que só ele sabia fazer. Nossos pés começaram a se sincronizar. Não encontrei ausência de emoções ali. Na verdade, vi várias emoções conflitantes — consegui identificar cautela, tristeza e admiração. Lembrei do quanto que ele estava machucado quando falei que éramos um erro. Eu odiava estar aqui, mais um belo dia, para esmagar suas esperanças. Pisotear seu coração só para poder dormir à noite, quando eu pensasse que superei mais um dia mantendo-o em uma coleira.
Eu não precisava fazer mais aquilo.
Podia ser a garota certa para ele.
Aproveite o presente, ouvi minha mente sussurrar.
Ele valia a tentativa, nós merecíamos uma tentativa.
Não acreditava que a decisão seria tão fácil assim, depois de lutar com afinco contra ela esse tempo todo.
Só que parecia tão... natural que aquilo acontecesse.
A música parou.
— Agora a virada — Karin disse, dessa vez com Börje em sua frente na posição.
Ela exemplificou de novo, não parecia tão difícil, talvez porque eu estava meio atordoada com o que estava acontecendo dentro de mim e na minha frente. A vontade ainda era de sair correndo para o quarto e me proteger, mas aos poucos ela se esvaía.
Ele voltou a música e nós tentamos reproduzir, nos atrapalhando um pouco e finalmente vi um sorriso em seus lábios. Percebi ali o quanto senti falta de vê-lo em míseras quarenta e oito horas e não foi pouco. Acho que sorri de volta, não tinha certeza, porque me senti anestesiada demais para me lembrar. Tentamos de novo e pisei em seu outro pé, murmurei “desculpa” e ele concordou com a cabeça. Na terceira vez, deu certo.
Queria começar a falar, mas palavras, naquele exato segundo, arruinariam a conexão.
Ficamos assim por um tempo, até nos cansar e Karin dizer que era suficiente.
Todos nós ficamos jogando conversa fora por algumas horas. Eu tinha total consciência do homem que agora estava sentado ao meu lado. Tentei prestar atenção de volta no assunto, mas só consegui pegar metade dele porque o cheiro de shampoo de frutas me fazia flutuar. Tinha algo de muito errado comigo naquele dia. O casal contava sobre os lugares que andavam visitando com os guias e imaginei que eles deveriam estar se divertindo muito, o que me faria sorrir com orgulho de mim mesma, se não estivesse toda estranha.
Andreas, Lilly e preferiam o mesmo compromisso: praia, piscina e sol. Nesses dias que se passaram, Lilly e Andreas haviam ficado bastante no sol e estavam mais queimados do que bronzeados, mas era o oposto.
Eles combinaram de almoçar, então todos saíram e fiquei para trás, sentada no chão. O vento balançava meu cabelo e pensei como era bom sentir o mar tão perto de novo, refletir olhando aquele azul que não tinha fim.
Será que estava mesmo disposta a renunciar tudo o que criei? Simplesmente jogar tudo fora e ficar com ele? Bom, vontade não faltava e nunca faltou. Ele iria sofrer quando notasse que eu sumi, mas isso já ia acontecer, porque ele estava perdidamente apaixonado por mim. Querendo protegê-lo, fiz o que não era para ser feito. Só que precisava me dar um desconto e pensar no que Lilly disse naquele dia: como poderia não ter acontecido o que aconteceu? Era óbvio que a gente teria se envolvido, depois ter brigado e daí ter nascido uma amizade.
A gente se conhecia tão bem e eu o amava tanto... Como poderia dar errado?
Alô, . E a maldição?
A maldição...
O dono dos meus pensamentos subiu as escadas.
— Você não vem almoçar? — perguntou.
Neguei com a cabeça.
— Posso me sentar ou não quer falar comigo?
Quase o beijei e me arrastei para o seu colo para chorar por tudo que tinha sentido naqueles dias para evitar uma conversa de adulto, mas me controlei.
— Sente-se — falei, a voz fina demais me fez pigarrear para tentar corrigi-la.
Ele se sentou de frente para mim e tirou os óculos que tinha colocado de novo antes de sair.
— Está tudo bem? — ele me olhou, preocupado.
— Sim — pigarreei de novo para controlar a afinação da minha voz. Vamos lá, voz. Não me faça soar mais patética do que já sou. — E você?
Minhas mãos voltaram a suar.
— É... Estou levando como posso — ele suspirou e encarou o teto do gazebo. — Seria muito ruim a gente voltar naquele assunto?
Concordei, tentando não pensar demais. Ele voltou seus olhos para mim e agora eles pareciam carregar apenas cautela.
— Desculpa não ter te procurado esses dias, Lilly disse que eu era a última pessoa que você iria querer ver.
Ele estava totalmente certo, até porque pedi para que não me procurasse. Eu precisava de um tempo para respirar e roubava todo meu ar com sua presença imponente, ainda mais depois da nossa briga.
— Também quero que me perdoe por ter estragado com a sua surpresa para nós dois. Tem toda razão de dizer que não percebi o que você vinha fazendo pela gente. Só não consigo aceitar que faz isso pensando em nós como um erro. — Olhou agora para o lado, indicando que estava nervoso. — E fui extremamente errado em insinuar que você estava me usando. Eu vou tentar me conformar com o que você pode oferecer, está bem?
Ele parecia mais triste ao dizer a última frase. Apoiei minhas mãos nos seus joelhos, por reflexo, e cheguei para a frente para encará-lo mais de perto, fazendo-o virar para me fitar de volta. Nossos narizes quase se tocavam.
— Você não pode aceitar migalhas, . Nem de mim, nem de ninguém. Você estava certo em questionar e pedir por mais, só não em como fez isso, duvidando dos meus sentimentos. Apesar de nunca ter comentado deles contigo, sei que uma parte sua sempre soube que eu sentia algo, você mesmo me disse depois do dia extraordinário. Sabia que eu sentia algo não só pelo , mas por você. E você tinha razão. Me desculpa por ter feito o que fiz e da maneira como fiz, mas esse foi o jeito que encontrei de me manter longe, mesmo querendo ficar desesperadamente perto — suspirei e fechei os olhos por um instante. Voltar àquele assunto era extremamente incômodo. — Você serve para mim, meu amor. Na verdade, nunca ninguém serviu ou vai servir melhor. Por isso... sim, nós podemos tentar.
É isso. O band-aid tinha sido arrancado. Não tinha mais como voltar atrás e eu estava extremamente aliviada com aquilo.
Seus olhos se iluminaram. Minha seriedade durou até seu sorriso entrar em cena, o meu surgiu involuntariamente em resposta. Eu era mesmo uma boba apaixonada, não sabia como cheguei a achar que poderia esconder aquilo alguns meses atrás. Estava na minha cara o tempo todo.
— O que isso significa, especificamente? — ele perguntou, colocando suas mãos em cima das minhas, com cautela. — Porque acho que estou fantasiando demais.
— Significa que a gente vai tentar fazer o “nós dois” acontecer — falei.
Aquilo fez a animação dele dar as caras e me dominar. Era incrível como só ele conseguia mudar meu humor assim.
Ele segurou meu maxilar com as duas mãos e encostou nossos lábios de uma maneira delicada, seus olhos estavam abertos e até eles sorriam. Os dias felizes estavam de volta... Ah, como senti falta de sentir aquilo, todo o pacote de sensações. Entrelacei os dedos em seu cabelo e fechei os olhos — como um sinal para aprofundar nosso contato. Foi a minha língua que pediu passagem daquela vez e eu que me entreguei primeiro. A culpa sumiu, não tive um pensamento, a não ser que precisava dele cercando cada centímetro da minha pele para me sentir segura de novo.
Ele, que agora era o mais perto que eu conhecia de casa.
Corri minhas mãos por seus braços, puxando-os para me envolver.
O beijo foi desacelerando e se partiu. Eu fiz o que queria: me arrastei e sentei em suas pernas cruzadas. Enterrei o rosto no seu pescoço e passei meus braços por ele, aspirando o melhor cheiro que já senti na vida — shampoo de frutas, desodorante masculino, tabaco e ele. Quase chorei com o alívio de me sentir viva novamente. Nada seria forte o suficiente para me tirar de 1990 ou para levá-lo de mim quando nós nos segurávamos assim. Nada.
— Obrigado por me deixar tentar ser o cara certo para você, eu vou fazer de tudo para merecer isso — ele murmurou.
— Não precisa me agradecer por fazer o que também quero. — Beijei as costas de sua mão. — Esse lugar não combina com tristeza, briga e culpa. Sendo o certo ou errado, é você que eu quero. Espero que seja mesmo o certo e me queira de volta.
Não tinha espaço para a dúvida naquele rosto iluminado. Se oferecesse para matá-lo depois, ele concordaria facilmente. Como fez naquele momento.
Andreas entrou correndo e ergueu uma sobrancelha ao me ver toda enroscada e em cima do seu irmão mais velho. Devia ter pensado que eu era louca, em um momento estava trancada no quarto sem vontade de vê-lo e de repente estava em seu colo. Porém, ele não parecia exatamente surpreso. Não sei se porque soubesse que nós dois não vivíamos um sem o outro ou porque conhecesse a lábia do seu irmão e soubesse desde o princípio que ele daria um jeito de nos fazer se acertar. Lembrava que um dos meus maiores medos era ser vista apenas como mais uma garota do para eles, mas agora, olhando nos olhos do Andreas, sabia que havia noventa por cento de chance que ele acreditava mais na primeira opção do que na segunda. O que mostrava que eles já estavam me conhecendo bem até demais para ser mais uma.
— Börje pediu para chamar vocês, o almoço está servido — falou, hesitante.
Quebrei nosso contato e me levantei com um pouco de vergonha, ele se levantou em seguida. Nós o seguimos, me puxou pela cintura para o seu lado e andamos assim até dentro do restaurante. Os três deram um sorrisinho ao nos verem e tentaram disfarçar ao mesmo tempo. O empurrei para o lado, mortificada pela vergonha.
— Ora, ora... — Lilly disse, quando sentei na cadeira do lado dela. Andreas estava do meu outro lado.
Olhei feio para ela, porque não tinha perdoado aquela traição.
Já Karin me ofereceu um sorriso confortador, como se estivesse contente em me ter de volta. Aquilo me fez ficar feliz de estar de volta no meio deles também. No momento, fiquei até um pouco grata pela oportunidade de tê-los na minha vida, eles eram incríveis e me receberam como parte deles, querendo conhecer até mesmo meu país. Eu não teria percebido isso se fosse pelos meus dias anestesiada, então fiquei grata por eles de certa forma também.
Eu estava feliz, era o que eu poderia dizer. Estava distribuindo gratidão.
— Tudo de volta aos eixos? — foi Börje que perguntou, para o meu espanto.
O filho sorriu de lado e concordou com a cabeça. Meu rosto esquentou e tive uma vontade súbita de soltar mais uma das minhas gargalhadas, mas mordi meus lábios para controlar e me limitei a concordar também.
— O que vão fazer hoje? — Lilly perguntou.
— Vamos fazer a trilha do pico — Börje respondeu enquanto mexia no prato com o garfo.
— Você não está muito velho para esse tipo de coisa? — ela riu e ele também.
Se eu falasse isso para o meu pai, a última coisa que ele faria seria rir.
— Vou fazer em tempo recorde e você vai ter que massagear os meus pés por duvidar do seu velho.
— Feito. Karin vai cronometrar para mim, não é? — ela disse, olhando para a Karin com olhos brilhantes.
— Com prazer — respondeu, sem tirar os olhos da comida.
Eu fiz meu prato e eles comeram em silêncio por alguns minutos.
— E os jovens, o que vão fazer nessa tarde? — o pai perguntou.
— Pretendemos ir à uma cachoeira, já que não lembramos de ver uma durante a vida inteira. — Foi Andreas que respondeu.
Momentos assim que eu percebia a dissonância entre a realidade deles e a minha, vi tantas cachoeiras ao longo dos meus medíocres 25 anos que não conseguia nem contar. Podia dizer que fui uma criança bem feliz.
Não sabia se eu estava convidada para aquele compromisso, então preferi comer minha comida calada. Era desconfortável comer sem a companhia do meu jornal do almoço e minha nova melhor amiga, a TV. Pelo menos, ela não me traía, diferente de certa Lilly...
Tentei evitar . Pelo menos, durante a refeição para não formar um clima com sua família. Porém, seu olhar furtivo me atraía. Levantei os olhos a ponto de flagrá-lo em um desses momentos com um sorriso quase imperceptível em minha direção enquanto mastigava. Minha pele se arrepiou e senti meu pescoço começar a ficar vermelho, mas retribuí o sorriso.
Sua boca se mexeu sem emitir som, mas consegui decifrar “Você vem?” em sueco. Adorava quando ele falava em sueco comigo, tinha certeza de que deixava o francês no chinelo quando se tratava de sedução. Não eram muitas as vezes que acontecia esse tipo de interação entre nós dois, só no meio de conversas com a família dele.
Concordei com a cabeça. Era como se ele tivesse lido meus pensamentos de minutos antes de novo. A nossa conexão era admirável. Ele aumentou só um pouquinho o sorriso.
— O que acha, ? — seu pai perguntou.
— Desculpe, o quê? — respondeu, parando de olhar para mim.
Prendi os lábios de novo para não rir, por ser o motivo da sua distração. Estava meio insegura de como seriam os meus próximos passos com ele, não sabia se estava ou um dia estaria pronta para estar cem por cento com alguém, do jeito que nunca estive. Sei que o melhor, por ora, era deixar rolar. Não queria apressar as coisas também.
Suspirei.
Era tão terrível ser indecisa e confusa, péssimos defeitos para ter. Se eu pudesse escolher outros, acho que escolheria os dele, humor ácido e essa coisa de passar a mão no cabelo para jogá-lo para trás toda hora — não sabia se dava para considerar aquilo como um, mas a escolha era minha e isso era algo que o deixava mais perigosamente atraente.
Fiquei presa em meus pensamentos até a hora que eles começaram a levantar. O casal se despediu de nós e o resto de nós seguiu em silêncio até os quartos.
Lilly fechou a porta atrás de si.
— Desembucha — exigiu.
Cruzei meus braços na frente do peito.
— Agora quer falar comigo? — perguntei, sendo um pouco dura.
— Já falei: se não continuar sendo uma cuzona, sim — ela atacou de volta.
Estalei os dedos da mão. Não ia brigar com ela. Ela não entendia os meus motivos, mas era eu que não queria abrir a boca e contá-los. Simples.
— Nós dois vamos tentar, está bem? — contornei a situação, sabendo que ia amansá-la assim.
Seu rosto se iluminou de repente e de uma forma que parecia a Times Square.
— Não acredito — sua voz saiu esganiçada. Ela saiu pulando pelo quarto. — Eu estou tão feliz por vocês! — ela gritou entre os pulos.
Ri da sua reação. Ela era, com certeza, a nossa maior shipper.
Quando tudo se acalmou, comentei sobre os meus medos, de não ter reação perto dele quando nós finalmente podemos ficar juntos ou de não saber como tudo iria funcionar porque nunca namorei de fato. Não que nós fôssemos namorar a partir dali, nós não discutimos nada disso e achava que nem deveríamos por enquanto. Definitivamente não queria assustá-lo quanto a isso. E está aí mais um medo: de que ele se sinta preso a mim a ponto de querer fugir. Lilly respondeu que não mudaria muito porque nós já tínhamos uma amizade quase que colorida.
— O que vai mudar é que a partir de agora você não precisa mais sentir culpa por querer tocá-lo e estar junto dele. Porque, quem ama, não deveria jamais se repelir.
Guardei essa fala no meu coração. Foi realmente ali que tudo mudou, quando os dias felizes finalmente atingiram o seu ápice.
Estava ciente da minha culpa no futuro quando, não só , mas sua família inteira ficasse de luto por uma pessoa que nunca existiu. Porém, me doía ainda visualizar o rosto de Lilly sofrendo ao me olhar naqueles dois dias, o dele questionando o motivo de não ser suficiente para mim. Eu não podia mais fugir e ignorar minhas responsabilidades ali. Estava criando raízes e isso era assustador para cacete.
Vesti a parte de baixo do biquíni preto asa delta — que também foi escolha de Lilly. Na verdade, se dependesse de mim, eu estava realmente cogitando só levar maiôs de natação, mas ela arrancou todos da minha mão. Troquei o vestido por um short de malha branco, sem blusa, porque precisava sentir o sol na minha pele. Prendi o cabelo para trás com o óculos escuro e deixei Lilly carregar nossa bolsa.
Encontramos os garotos do lado de fora. Eles estavam com as mesmas roupas de mais cedo. Perguntei aonde íamos exatamente e Andreas disse que tinha uma cachoeira perto de outra praia. Não fazia ideia de onde era o lugar. Não tinha smartphone com GPS para me dar a informação mastigada.
Andamos mais de uma hora para chegar ao lugar, ainda bem que Lilly tinha me besuntado de protetor no quarto porque o que estava queimando poderia estar fritando. não me pegou pela cintura que nem mais cedo, mal chegou perto de mim — o que era ótimo, porque eu estava meio esbaforida pelo calor.
Quando chegamos e a vista entrou no meu campo de visão, senti-me grata pelo esforço de poder ser recompensada com aquela paisagem. Era estonteante, a queda d’água percorria um longo caminho de pedras antes de cair e formar um pequeno lago. Não havia muitas pessoas ali, apenas umas sete, bem espalhadas.
— Esse lugar fica realmente cada vez melhor — ouvi dizer ao meu lado.
Não poderia concordar mais.
Arrancamos nossas roupas rapidamente assim que encontramos um lugar seguro para acomodar os pertences. Era como se a água doce nos chamasse e tivéssemos pressa em atendê-la. Os vi pular quase ao mesmo tempo, mas fiquei incerta se deveria. Ouvi a voz da minha vó dizendo que um primo de sua amiga tinha morrido de traumatismo craniano ao bater com a cabeça em uma pedra, exatamente naquela situação. Poderia ser história de vó para nos manter na linha, mas me fez hesitar.
Sentei-me na pedra, com cautela. emergiu e me encarou, mais uma vez lindo com aquele cabelo molhado para trás, realçando seu rosto esculpido minuciosamente por Odin.
— O que foi? — perguntou. — Não vai pular?
— Tenho medo — respondi, fazendo uma careta ao encarar as pedras perto dele.
Ele riu baixinho, também olhando para as pedras.
— Já estou me sentindo a donzela em perigo, então não ria.
Riu de novo com a minha fala, fiz minha melhor cara de brava e mesmo assim não convenci ninguém. Seus olhos passaram a analisar o que estava embaixo de mim, mas mesmo sabendo que não estavam em mim, me segurei para não tampar minha pele exposta. Tive vontade de me socar por querer fazer isso, nós vamos regredir a esse ponto por causa de medos bobos? Não é como se estivéssemos começando do zero.
— Escorrega pelas pedras que dá para chegar — comentou.
Interrompi meu pensamento para ficar receosa. Não tinha certeza se iria dar certo, mas sabia que não corria o risco de me acidentar nas pedras do chão, porque o vi se posicionar estrategicamente para me aparar. Tive a impressão de que era mais seguro pular do que fazer aquilo, mas a voz da minha vó nunca me permitiria. Dei um impulso com os braços e minha bunda começou a deslizar pelas pedras molhadas, comecei a rir conforme ia para a frente. Afundei em seus braços e ele logo me trouxe para cima, me esperando com um sorriso no rosto.
— E a donzela em perigo se salvou. Mais uma vez.
Empinei o nariz.
— Nós mantemos vocês, homens, por perto só para pensarem quando estamos cansadas — desdenhei de brincadeira.
Ele fez aquela cara irritante para duvidar de mim, levantava uma sobrancelha e quase fechava o olho do outro lado, sua boca em uma linha fina meio rindo.
— Achei que vocês nos mantinham por causa do que temos entre as pernas — comentou.
Corei, mas minhas bochechas vermelhas do sol não o permitiriam ver.
— Existem alternativas para isso daí, querido — desdenhei, tentando contornar a situação e sair por cima.
— Você quer dizer um vibrador? — ele desdenhou, praticamente gritando as duas últimas palavras.
Bati a palma da mão na testa, incapaz de lidar com aquele diálogo depois de dias presa no quarto, sozinha.
— Como que a gente chegou nesse assunto? — reclamei. — De qualquer forma, chega, antes sequer que comece.
— Um vibrador não pode fazer do jeito que eu faço — se gabou. Parecendo realmente afetado por eu ter trazido a existência de um vibrador à tona.
, não quero presenciar uma competição entre suas habilidades na cama e as de um dos meus objetos. Na verdade, isso só prova o quão sua masculinidade é frágil — adverti, passando por ele e abrindo espaço com os braços para me afastar. Isso não o impediu de vir atrás de mim. É claro que não.
— Espera, você tem um?! — perguntou atrás de mim e riu com incredulidade. — Não acredito que nunca me mostrou!
— Por que diabos eu te mostraria isso? Não é porque você dorme comigo que tenha que saber ou conhecer cada passo meu.
Eu não tinha um em 1990, mas ele não precisava saber disso.
— Porque a gente poderia ter se divertido tanto nesses últimos meses. É assim que você se mantém longe de mim? É em mim que você pensa quando está usando-o?
Soltei uma gargalhada alta e sarcástica, fazendo os passarinhos ali perto voarem. Não dava para acreditar no tamanho da ousadia daquele ser humano para fazer aquelas perguntas. Sério. Me virei para ele, dessa vez com o rosto queimando.
— Não, é no Peter Steele e no negócio enorme dele — brinquei. É claro que ele não saberia quem é o Peter Steele porque a banda Type O Negative começou a fazer sucesso ao longo dos anos 90, muito menos saberia que ele posou para a Playgirl em 1995 e um exemplar desses em 2019 era quase considerado patrimônio cultural, mas que eu o tinha na minha mesinha de cabeceira depois de gastar um bom dinheiro. É claro que falei só para irritá-lo, ele só não percebia porque estava cego demais com a masculinidade frágil dele por conta de um objeto que nem existia.
Me virei de costas de novo, andando pela água e o sentindo vir atrás de novo.
— Quem é Peter Steele e como você sabe o tamanho do pau dele? — perguntou cheio de ciúmes e quase me fazendo rir, mas me contive. Aquele diálogo estava muito bom para ser estragado com o som da minha risada.
— Porque eu já vi, oras. Detesto acabar com sua expectativa, mas o seu não foi o primeiro que vi na vida, amor — falei com toda a paciência do mundo e ele grunhiu atrás de mim. — Assim como meus peitos não são os primeiros e nem os últimos que você botou os olhos — alfinetei.
Virei-me indo na direção de Andreas e Lilly. Senti sua mão grande me puxar pelo braço e quando vi estávamos debaixo da queda de água, onde tinha um recuo na pedra que lembrava a entrada de uma caverna. Encarei-o com petulância por ter desviado meu caminho, mas com medo de dar o braço a torcer e mostrar mais que esse assunto me balançava. Quer dizer, ele sabia, ele me conhecia bem.
Seus olhos estavam em uma tonalidade nova, aquilo me prendeu porque nunca os vi daquele jeito. Nem sabia que poderiam atingir aquela tonalidade. Quando pensava na cor que eles estavam, imaginava uma cor fria, ainda mais para demonstrar emoções, mas ele me mostrou que não, que os seus eram quentes. Dei passos para trás sem nem perceber, só senti quando minhas costas bateram na pedra. Lembrei de piscar quando o vi vindo para perto de mim.
Aquela queda d’água atrás dele o tornava irresistível. Até quando ele teria esse efeito em mim? Me sentia ainda mais suscetível, mais sensível à sua presença. Era como se o calor da sua pele estivesse em mim antes mesmo de seu corpo colidir com o meu, minhas entranhas se retorciam em expectativa.
Não passava uma agulha entre nós dois depois de ele colar seu peito no meu, seu rosto carregava aquele divertimento irritante, mas sedutor para cacete. Nosso contato visual era tão intenso que o senti vislumbrar minha alma, mas ele também me proporcionava o acesso à sua.
Ele se curvou até seu rosto estar na altura do meu, passou o nariz pelo meu, seguiu pela minha bochecha esquerda e quebrou nosso contato visual para alcançar meu ouvido. Estava começando a desconfiar que ele tinha algo com sussurrar ali, parecia saber que aquilo era muito eficaz em deixar minhas pernas bambas, talvez fosse aquilo que lhe desse o gás necessário.
— Por que você me mantém, se não tem interesse no que posso te proporcionar, ? — retomou o assunto. — Por que você não simplesmente corre para esse Peter sei-lá-o-quê?
Minha pele se arrepiou. Ele segurou o meu queixo e a outra mão se apoiou na pedra ao lado da minha cabeça. Uma pequena parte minha ficou irritada por ele estar retomando aquilo, mas meu interior fervilhava para provocá-lo de volta, para ter mais.
— E quem disse que não tenho interesse? — respondi, minha voz estava um pouco rouca pela excitação. — Não deveria continuar esse assunto irrelevante, mas apenas falei que existem alternativas, não que as preferia.
Ele estagnou. Alguns segundos depois, escutei sua risadinha que seria irritante em outra ocasião, mas naquele momento só colocou lenha na fogueira.
— É mesmo?
Concordei com a cabeça, sem nem piscar esperando para ver até onde a gente ia daquela vez.
Ele se apertou contra mim e sua ereção estava na parte de cima da minha barriga. Tenho que admitir que me sentir desejada assim, com toda essa frequência, contribuía diretamente para melhorar minha autoestima afetada pela projeção de inúmeras inseguranças.
— Então não preciso mais esconder isso — continuava sussurrando.
— Não — respondi, fechando os olhos para tentar me acalmar e não fazer besteira ali no meio de um lugar público. Para ser bem sincera, eu estava desesperada, aquele assunto trouxe todas as sensações de tê-lo e eu estava até com o corpo formigando ao senti-lo contra mim sem vergonha nenhuma.
— Hmmm... — ele gemeu, beijando meu pescoço e piorando tudo que lutei para botar no lugar. — Porra, ... — xingou enquanto pressionava ainda mais sua rigidez contra mim e continuava com os beijos, me enlouquecendo de vez e me fazendo arfar. — Senti sua falta, sabia? De ter você e essa sua boca esperta nos meus braços.
Abri os olhos. Ele desenterrou o rosto do meu pescoço para me olhar com luxúria.
— Sabia, porque eu também senti falta de estar nos seus braços — falei um segundo antes de alcançar seus lábios com os meus. Se ele continuasse me olhando como se estivesse sentindo tudo que estou, eu avançaria todos os sinais ali mesmo.
Não demorou muito para virar um beijo tentador, suas mãos atrevidas passearam pelo meu corpo, apertaram meus braços, a lateral do meu corpo, minha cintura, meus quadris, minha bunda. Uma delas foi além, pegou o meu seio por baixo do pano e as pontas dos seus dedos tocaram levemente meu mamilo. Fiquei chocada a ponto de parar de beijá-lo porque fazia tempo que não sentia esse tipo de toque, ele imediatamente recolheu a mão. Não era isso que eu queria. Definitivamente não. Agarrei sua mão e a posicionei de volta, seus olhos pediam permissão agora, então fiz que sim com a cabeça.
Ele alcançou meus lábios com os seus de novo e sua língua encontrou com a minha no mesmo ritmo que estava antes, como se não tivéssemos interrompido. Sua mão só sustentava o peso do meu seio e o apertava levemente, a princípio. Senti seu receio pelo modo como reagi e coloquei a minha em cima da sua para incitá-lo. Sua provocação voltara com tudo, então seu dedo deslizou com facilidade por causa da água pela minha auréola e rodeou meu mamilo.
Soprou um palavrão com sua boca na minha e começou a se esfregar na minha barriga, procurando alívio como podia.
— Está sentindo isso? Está sentindo como estou? — perguntou enquanto continuava movendo os quadris e os dedos, com o último resquício de sanidade fiz que sim sem abrir os olhos. Sua outra mão me pegou pelo maxilar e ele lambeu meus lábios. — É como vem me deixando desde a primeira vez que pus os olhos em você.
A mão que segurava meu rosto deslizou pelo meu corpo acendendo cada partezinha até invadir a parte inferior da roupa de banho, sua boca reprimiu meu grito de surpresa e afastei as pernas como pude, permitindo-o tocar o ponto que mais pulsava no meu corpo. Sua língua me mantinha ocupada, me calando, e eu agradeci mentalmente por aquilo. Se alguém soubesse o que estava rolando ali, seria um escândalo. Ele combinou os movimentos das duas mãos. Eu passei a arder. Minha mão tocou a parte de trás da sua cabeça e gemi contra seus lábios. Partiu o beijo para olhar nos meus olhos enquanto escorregava dois dedos para dentro de mim.
— Puta que pariu — xinguei em português baixinho e ele aumentou a velocidade de tudo, dos dois dedos que me penetravam, do dedão que me provocava, dos dedos que rodeavam meu mamilo e até dos quadris que esfregavam o quão louco pelo meu prazer ele estava. — Não para, , por favor... não para — pedi com a voz fininha, revirei os olhos e rebolei no ritmo dos seus dedos, prestes a me jogar do abismo.
— Não pararia nem se alguém chegasse aqui e me pegasse com os dedos dentro de você, baby. — Ele mordeu o lóbulo da minha orelha e seus dedos se dobraram levemente no meu interior, me fazendo perder todos os sentidos. Só lembro de ter colocado a mão na boca para abafar o gemido alto e tudo escurecer ao meu redor.
Ele tirou a mão da parte de cima do meu biquíni para amparar o peso do meu corpo enquanto eu me desfazia.
— Você fica adorável quando está com ciúmes dos meus olhos nos peitos de outras mulheres — sussurrou no meu ouvido. — Mas o que não percebeu é que, quando você está no ambiente, eles sempre pertenceram só a você. Quando eles se prendem a esses seus olhos grandes, é como se estivessem enxergando o céu.
Sorri preguiçosamente com o que ele disse. O que eu podia fazer? Ele sabia como usar as palavras comigo. Abri os olhos devagar, me acostumando de novo à luz forte do sol e me tocando de onde estávamos. Ele ainda me segurava contra a pedra, me dando a liberdade de recuperar aos poucos a habilidade de me sustentar através das minhas próprias pernas.
O que diabos foi aquilo? Cacete... Eu sabia que sentia falta dos toques dele, mas não a ponto de ser tão... Uau.
Ele voltou à sua altura normal, se esticando por ter ficado muito tempo curvado e me largando à minha própria sorte. Quis o seu calor de volta no mesmo segundo. Meu corpo febril tremia.
— A gente precisa voltar, antes que sintam nossa falta — chamou.
Arrumei minhas vestes no lugar, para não correr risco de sair por ali mostrando algo que não deveria, depois o segui. Só percebi o quanto era perigoso alguém nos ver ali quando passamos pela queda d’água novamente e aquilo me reacendeu em uma velocidade absurda. Sorri perversamente ao constatar, ele acordou uma parte minha que dormia há muito tempo.
— Espera — puxei sua mão e ele se virou para me olhar. — Como estou? — falei, arrumando meu cabelo molhado, inutilmente.
— Linda. Como sempre — ele piscou e sorriu de lado.
Revirei os olhos, sorrindo. Tão clichê e mesmo assim me derretia. Eu caía tão fácil no seu papo, era até ridículo.
Vi Lilly acenando para nós, indicando onde estavam. Se sabiam o que tinha acontecido, nunca nos disseram.

Capítulo 23 - Let it be me

>— ? — Andreas chamou, me assustando.
Estava só eu e ele no espaço de convivência, nós dois ocupávamos o mesmo sofá. Eu tinha uma revista de moda na mão e pensava que ele estivesse cochilando.
Virei minha cabeça para fitá-lo.
— Hum?
— De onde você veio? — perguntou, olhando para a frente.
Arqueei uma sobrancelha. Onde ele queria chegar com aquilo?
— Sou daqui, ué, da terra que você está pisando — respondi como se fosse óbvio.
— Às vezes parece que você veio de outro lugar — disse. Franzi o cenho sem saber o que fazer ou dizer e ele pareceu perceber. Coçou a nuca. — Quer dizer, não me leve a mal, é um elogio. Só que, cada vez mais que te conheço, tenho a impressão de que veio de um mundo muito, muito distante.
Controlei minha respiração, soltando uma risada horrível, pareceu um relinchado.
— Tipo alienígena? — desconversei, fingindo normalidade.
Que tipo de papo era aquele? Ele estava sonhando ou eu estava sonhando que tinha dito algo para ele?
Os e suas mil maneiras de me botar contra a parede.
— É… pode ser — deu um sorriso amarelo, não estava nada convencido, mas parecia querer abandonar o assunto.
Resolvi não falar nada para não me complicar. Esperava que dali a uma hora ele não lembrasse nada do assunto. Voltei os olhos para a revista. Não sabia se queria saber o motivo daquilo, tinha medo de que ele estivesse sabendo de algo que me entregasse. Estava totalmente sem reação, meu cérebro só sabia gritar “fomos descobertos!” sem parar. E se ele realmente soubesse de algo? Meu Deus, eu estava fodida. Andreas não era muito de fofocar, mas, se isso chegasse aos ouvidos dos outros, especialmente de , eu teria um sério problema para me preocupar.
Olhei de novo para ele e agora parecia estar preso entre o limbo de acordado e dormindo. Então tudo poderia soar como um sonho para ele, caso ele pensasse naquilo depois.
e seu pai, que tinham saído para conversar, regressaram. Os dois se sentaram no sofá da frente e assisti o filho mais velho pescar o maço de cigarros no bolso do short. Ele já cheirava a cigarro quando se aproximou, fumar outro só podia significar que estava nervoso. Ele tragava tranquilamente. Só que eu estava formada em interpretar alguns sinais do corpo dele — já que ele costumava esconder suas emoções debaixo de muitas camadas — e os vincos da testa nunca mentiam.
Os dois conversavam baixo, falando sueco de maneira rápida — não como faziam quando eu estava perto, para facilitar a compreensão. Fingi não prestar atenção e ler minha revista. Estava cagando para qual era o look do verão de 1990, mas era uma boa desculpa para ficar ouvindo o que falavam.
Ouvi “sua mãe” no meio de uma frase. As mãos fortes se apertaram. Andreas devia estar mesmo cochilando ou em seu outro mundo, porque tinha certeza de que teria escutado aquela parte muito bem. A relação deles com ela no presente nunca foi abordada antes perto de mim por Börje. Sabia o que ela tinha feito, quando e o ressentimento que carregavam, mas na minha cabeça não havia mais contato. O que, aparentemente, não era verdade.
Falaram mais, mas não escutei absolutamente nada. Fiquei tão curiosa que minha vontade era puxar em um canto e perguntar o que estava acontecendo. As palavras da revista deslizavam pelos meus olhos e vez ou outra tentava checar Andreas — que continuava na mesma posição.
Vi Karin caminhando até nós e, ali, com seu cabelo vermelho longo voando pelos ombros, dava para perceber o quanto ela era jovem. Ela não era tão jovem quanto nós, devia ter uns trinta e poucos anos — o que era bem mais nova que Börje. Isso me fez questionar a idade da mãe dos filhos dele.
Se perdi algo, nem me dei conta. Só voltei a prestar atenção nos dois quando ela se aproximou e beijou o topo da cabeça do marido. fumava outro cigarro, minha vontade de arrancar aquilo da sua boca aumentou. Uma pessoa que tem problema no coração nunca deveria fumar, quem dirá com aquela frequência. Será que ele não sabia que o pulmão e o coração são bem interligados?
Andreas se assustou com a chegada da mulher e se endireitou ao meu lado. A presença dele parecia estar me incomodando desde o papo sobre não ser dali e esperava que a sensação de “perigo” passasse logo,, porque eu gostava muito de Andreas. Não suportaria ficar sempre com um pé atrás com ele.
Lilly chegou com seu bronzeado estilo camarão, carregando o que eu julgava ser baralho e botou na mesa de centro.
— O que acham? — perguntou, se sentando no tapete.
— Parece uma boa ideia — disse Karin, também se sentando.
Assenti, mostrando que iria participar. parecia distante e ignorou, Andreas fez um barulho que provavelmente era concordando e Börje me imitou.
Ela embaralhou de um jeito diferente e distribuiu as cartas. Quando falei que não sabia jogar aquele jogo, ela me explicou pacientemente. Não tinha certeza se entendi, a minha cabeça estava mais atribulada com o seu irmão. Não sabia nem se pegara todas as cartas.
Durante o jogo, ele ficou com o cenho franzido, olhando para as cartas, mas não parecia nem enxergá-las, pela maneira nebulosa que sua íris estava. Meu coração ficou apertado, ver aquilo sem poder fazer nada me deixava impaciente. Ainda mais sabendo que tinha algo a ver com a mãe dele. Eu queria segurá-lo nos meus braços e pedir para que ele compartilhasse tudo comigo, para depois procurar qualquer solução possível e impossível no mundo para não o ver mais assim.
O dia tinha sido bem legal na cachoeira, nós nos divertimos muito com Lilly e Andreas depois do pequeno incidente de trás da queda de água, mas o estado dele estava broxando meu estado de espírito. Só eu e ele parecíamos presos naquela atmosfera ali, sendo que ele aparentemente nem notou minha presença dentro da bolha. Lilly e Andreas me corrigiram algumas vezes, mentalizei a cada segundo que alguém batesse e terminasse aquele jogo. Karin finalmente o fez.
pediu licença e quase pulei do sofá para segui-lo. É claro que me contive, não seria educado sair correndo atrás dele, desesperada. Esperei nada pacientemente pelo que deveria ter sido cinco minutos enquanto as pessoas conversavam ao meu redor, se organizando para jogar novamente.
Queria passar um tempo com eles — o resto da família —, mas aquele não parecia o momento para fingir que estava ali quando minha mente estava lá fora. Por isso, pedi licença e ignorei a olhada que recebi de Lilly ao sair.
Ele estava sentado de costas em uma das espreguiçadeiras perto da piscina, vislumbrava o mar escuro e o céu estrelado.
Passei a mão pelo seu cabelo e sentei-me à sua frente.
Ele fumava mais um cigarro.
— Oi — falei.
— Olá — ele respondeu.
Apagou o que restava do cigarro, virou-se para pegar outro do maço e afastei sua mão.
— O que está acontecendo? — perguntei, olhando diretamente em seus olhos. Só podia ter algo muito sério o incomodando.
— Por quê? — respondeu com outra pergunta, o que provava que tinha realmente algo.
— Você está fumando muito — arqueei a sobrancelha e olhei para sua mão para ele se tocar do que estava prestes a fazer se eu não tivesse interrompido.
Ele largou o maço ao lado de sua perna e suspirou. Mau sinal. Vinha coisa ruim por aí pela maneira que seus olhos ficaram perdidos e os músculos mais tensionados.
— Minha mãe está doente e quer que a gente vá vê-la — cedeu logo de uma vez.
— O que ela tem? — perguntei, tentando disfarçar a dimensão da minha curiosidade.
— Câncer.
Fiquei sem reação. Aquilo era realmente péssimo.
— E como você está se sentindo em relação a isso? — perguntei depois de pensar um pouco como prosseguir com cautela.
— Sinceramente? — Concordei com a cabeça, ele poderia ser o mais sincero possível comigo, eu estava ali por ele. — Não sei, . Ela fez mal para mim, meu pai e meus irmãos... Eu... Eu odeio aquela mulher. Mas não a ponto de querer que ela morra.
— Entendo. Querendo ou não, ela é sua mãe. É normal sentir isso. — Toquei nas pontas do meu cabelo com nervosismo.
— Eu deveria querer a morte dela, esse seria o certo — falou, abaixando a cabeça.
— É, mas você não quer. Você tem um coração bom, . — Soltei o cabelo e segurei sua mão.
Ele deu um sorrisinho quase invisível.
— Tenho que pensar para saber o que fazer, se vou mesmo visitá-la depois de tanto tempo ou se deixo para lá.
Concordei com a cabeça. Ele teria uma longa jornada para tomar uma decisão e isso só cabia a ele.
— Quer que eu saia? — perguntei.
Ele virou o rosto de uma vez para me encarar.
— Não, amor. Nesse minuto, eu não quero nem pensar em nada disso. Quero ficar com você e esquecer de tudo.
Cheguei mais perto e beijei sua bochecha, deixando-o todo sem graça. Pensei, mais uma vez, em fazer piadinha, mas com o que me preocupou antes desse lance todo, para descontrair um pouco.
— Seu irmão me chamou de alienígena hoje — comentei.
Ele arqueou uma sobrancelha, questionando, depois sorriu. Apoiou as mãos atrás do corpo, ficando um pouco envergado. Cruzei as pernas e virei totalmente para ele.
— Ele disse que não pareço daqui, desse mundo — ri, meio nervosa.
— Eu concordo. — Prendi os lábios em uma linha fina e ele continuou: — Você é boa demais para a gente.
— Vou te contar um segredo, então. Meu povo me mandou aqui para seduzir e sequestrar um e, como você foi o que caiu fácil no meu encanto, foi o escolhido — soltei outra risada, dessa vez mais natural. Coloquei o cabelo atrás do ombro, para tentar passar confiança para ele.
— Pois diga a eles que vou por livre e espontânea vontade, se isso significa ficar para sempre com você — murmurou, totalmente entregue, enquanto me fitava com o olhar divertido.
Nós dois estávamos feitos dois bobos apaixonados um pelo outro, chegava a ser engraçado. Senti sua mão passear pela lateral da minha coxa. Ele não tinha mais as linhas na testa, então queria dizer que ele estava relaxando.
Deixei-o fazer um carinho ali enquanto admirava a lua. Pela visão periférica, vi que ele também a contemplava. Sua presença e seu toque, aos poucos, vinham se tornando familiares novamente e eu podia desfrutá-los da maneira que merecia.
Agora percebo o quanto fui tola por acreditar que poderia me manter em segredo para sempre. É claro que eu nunca iria me disfarçar totalmente, uma parte minha se expunha conforme eu me entregava a eles e saía do meu personagem. Uma parte irracional minha ficava feliz por estar deixando sair o meu eu verdadeiro, mas a racional sabia que a hora de contar de onde vinha estava cada vez mais perto e aquilo me dava um frio na barriga.
— Tenho uma ideia — ele disse, de repente. Virei-me para olhá-lo. — Mas, antes, você quer voltar lá para dentro?
Examinei sua expressão antes de responder, ele não parecia nem um pouco a fim de voltar e jogar com sua família, não quando seus olhos carregavam aquele tipo de excitação. Balancei a cabeça, dizendo que não. Menos de um segundo depois, ele ficou de pé.
— Vamos fazer algo de errado. — Puxou minha mão e me carregou noite adentro.
Fiquei de guarda perto da entrada do gazebo enquanto ele roubava o som portátil e algumas fitas. O problema é que ele ainda inventou de escolher a dedo as fitas, enquanto a cada sopro mais forte do vento meu coração quase saltava pela boca.
Não sou o tipo de pessoa fora da lei. Porém, quando finalmente ele apareceu todo cheio de sorrisos, vi que tinha compensado.
Corremos por um bom tempo, rindo. Eu ria sem saber o motivo — não tinha ninguém atrás da gente —, talvez por simplesmente por ele estar feliz ou por alívio de estarmos finalmente vivendo de verdade. Já tinha quase 1km de praia deserta atrás da gente, mas ele escolheu aquele pedaço em específico para cair de joelhos na areia. Descansou as fitas e o aparelho ali. Sentei-me ao lado e peguei uma das fitas enquanto ele trabalhava em tirar areia do som portátil para ligar.
— KISS? — revirei os olhos. — Por que não estou surpresa?
— Porque KISS é a melhor banda do mundo — ele respondeu como se fosse óbvio.
— Motörhead é a melhor banda do mundo — resmunguei, jogando a fita perto das outras.
— Vou ficar te devendo Motörhead, mas... — ele botou uma fita dentro do aparelho e apertou o play — trouxe as baladinhas que você gosta.
Esperei Erasure, porque era bem a cara dele usar essas classificações com a banda. Mas, uma outra música familiar começou a tocar e meu peito ficou quente com a sensação.
— Isso é... The Five Satins? — falei, sem saber o que aquilo significava.
Ele se levantou, tirou a areia dos joelhos e me olhou.
— Desconheço prova de amor maior que essa — disse com aquele nariz empinado e metido. Eu o colocaria no lugar pela provocação, mas ele estendeu a mão e vi que realmente era uma prova de amor.
Porém, antes de acreditar, preferi desacreditar.
— O quê? — questionei.
— Vamos dançar — falou de novo como se estivesse me contando a cor do mar atrás dele.
— A gente não sabe dançar — soltei uma risadinha nervosa. — Nós só tivemos uma aula.
Minha respiração estava falha. Acho que a Lilly tinha me dado uma paulada na cabeça mais cedo e eu estava sonhando com esse dia.
— Ninguém precisa saber disso.
Encarei a mão masculina que pendia à minha frente. Aceitei-a com certo receio.
Quando nossas peles se tocaram, ele me ergueu facilmente e não podíamos estar mais colados do que aquilo, nem mais cedo na cachoeira ou no gazebo. Seu coração batia tão calmo enquanto o meu estava aos tropeços. Ele usou o indicador para levantar o meu queixo e, vendo seus olhos escondidos pela pupila dilatada, eu pensei que não havia mais nada que eu queria ver em 1990, só aquilo já bastava para eu voltar feliz. Se era um sonho e o sol iria me acordar, Lilly ou até mesmo Anya, que fosse naquele momento.
— Esse foi o mais perto que consegui daquele seu filme — ele comentou, largando meu queixo. — Você pode até se casar com outra pessoa, mas quero ser o primeiro a tentar fazer essa dança ridícula.
Soltei uma gargalhada espalhafatosa. Eu nem estava me reconhecendo fazendo isso.
— Mas a gente nem sabe a coreografia! — falei (ou gritei).
— Sabemos que existe um salto — ele completou e abriu um sorriso.
, isso é suicídio ou... homicídio — ri.
Ele pegou minha mão e nos posicionou conforme a aula mais cedo. A sensação que eu ia desmaiar começou a me invadir, mas nada me tiraria aquele momento. Nem a fada madrinha do futuro. Deslizávamos pela areia, ele me conduzia sem nunca quebrar nosso contato visual e desfazer aquele sorrisinho. Seria seguro chorar ali? Estaria de acordo com o decoro?
Pisei em seu pé e ele deu um pulo com a dor. Foi tão engraçado e repentino que ronquei ao rir, mas não me importei nem um pouquinho.
— Eu sabia que isso não ia dar certo — falei.
Ele persistiu, agarrou minha mão.
— Você só erra quando começa a se preocupar com o seu pé. Se concentra aqui, nos meus olhos.
Não sei mais quem disse isso, se foi o Patrick Swayze ou o próprio .
In the Still of the Night começou e conforme ele continuava a me fazer deslizar para lá e para cá, tive certeza de que não precisava de nenhum Time of my life para concretizar meu desejo. Talvez eu tivesse até uma nova música favorita do filme.
Fui me acalmando aos poucos e ele pareceu sentir.
— Preparada para o salto?
Olhei-o com desdém.
— Você é louco — usei a frase da Baby depois que o Johnny quebrou a janela do carro, antes da cena do tronco de árvore.
Ele piscou para mim e foi se afastando, andando de costas. Ele estava totalmente fora das suas faculdades mentais se achava que aquilo daria certo.
— Pode vir! — ele gritou.
— Eu não vou! — gritei de volta.
Por que a gente não podia continuar abraçadinhos e seguros utilizando a areia fofa da melhor forma? Tinha certeza que cair violentamente faria até a areia machucar, por mais inofensiva que ela parecesse.
— E eu não desistirei — ele sorriu de lado e me chamou com o dedo. — Venha aqui, senhorita.
Eu não parava de me arrepender por ter falado aquilo de dança de casamento, desde o momento que saiu da minha boca. Onde é que fui me meter? Cavei minha própria cova. Morrerei da forma mais ridícula, quebrando meu pescoço naquela praia linda porque em um surto de príncipe encantado quis atender meus desejos.
Ele fez uma careta de impaciência.
— Se a gente se machucar, quero dizer que avisei — falei, derrotada, me preparando para correr a distância.
Ele fingiu bocejar.
Saí correndo com toda a minha força. Ele se preparou para me aparar, ou melhor, achou que estava se preparando. O vento cortava minha pele e me senti flutuar com as borboletas no meu estômago misturadas com a maresia e um pouco de ansiedade boa. Me senti tão viva naquele momento. Imaginava que era daquele jeito que você se sentia antes da morte, então estava explicado. Senti suas mãos na minha cintura me pararem e, em seguida, ele me ergueu no ar.
Mentira, é claro, não somos Johnny e Baby, nem perto disso. Por isso, nós caímos que nem duas mangas podres em cima da areia e começamos a gargalhar histericamente.
Eu não conseguia falar e ele também não.
Estava difícil até de encontrar ar toda vez que o via se contorcer para rir mais. Aquilo foi catastrófico e vergonhoso, mas como éramos as únicas duas pessoas na praia deserta, o que nos restou foi rir. Minha barriga doía pelo esforço das risadas e pensei que a morte viria era de uma crise de risos, já que o “salto” não tinha sido suficiente. A queda foi tão a minha cara que me surpreendi ter sido sugerida por ele. Meu pé só saiu do chão porque pulei, na esperança que fosse me levantar e ele tentou mesmo, mas, pela falta de jeito, só resultou naquilo.
— Na minha cabeça deu tão certo — ele comentou em meio às risadas.
Não dava para saber onde começava ele ou eu, todos os nossos membros estavam em uma mistura estranha e engraçada.
Ri tanto que estava me dando vontade de fazer xixi, então era hora de me recuperar para não acabar acontecendo um desastre.
— Só na sua — respondi, ainda rindo. Quando que duas pessoas despreparadas conseguiriam fazer um salto daqueles? Foi a maior saga no filme para ele acontecer no final e o bonitinho achava que seria fácil?
Levantei-me antes que acabasse olhando mais para ele e fazendo xixi nas calças. A lua me chamou atenção de novo. Cruzei os braços enquanto a encarava, lua cheia gigante refletindo no mar — o maior clichê de todos os tempos. Eu nunca imaginei que estaria envolvida em uma história de amor assim. Parecia que foi tudo muito bem pensado para me trazer até ali e me mostrar o que era amor de verdade. O amor que senti em 2019 não era nada comparado ao que sentia no presente.
O vento soprou um pouco forte, mas minhas costas esquentaram com ele me abraçando por trás. Pousou um beijo no meu cabelo e fechei os olhos, me concentrando nas sensações do momento, seu peito rígido, nas ondas quebrando e fazendo algumas gotinhas minúsculas nos molharem, suas mãos deslizando pelos meus braços nus e a areia nos meus pés. Pela segunda vez, me senti viva depois de dias. Dias? De meses. Meses que me reprimi ao máximo de sentir tudo que aquela viagem no tempo reservou para mim.
— Não sei se prefiro a lua ou você — falou o rei da comédia, quebrando meu encanto.
— Ainda bem que sua arte é a música, se fosse viver contando piada morreria de fome — zombei.
— Como você pôde pensar que é uma piada? Claramente é uma cantada — ele disse em um tom falso de ofensa.
— Cantada? Então piorou — soltei uma risada por pensar em que planeta isso seria uma cantada. — Ainda bem que já estou na sua ou você teria muito trabalho pela frente.
Ele me puxou pelo cós do short e de repente eu estava de frente para ele. A luz da lua iluminava metade do seu rosto, fazendo um de seus olhos brilharem. Ele estava surreal de tão bonito. Fiquei inebriada pela sua presença, capturada, apreendida, tomada, aprisionada. Mil sinônimos não seriam suficientes para descrever o que passou por mim. A vontade de vocalizar, no entanto, foi mais forte:
— Acho que você é o homem mais bonito que vai existir em todos os séculos — comentei, me sentindo zonza enquanto minha mão tocava seu rosto.
Ele bufou e rolou os olhos, parecendo ter escutado o maior absurdo, mas isso não me despertou do meu transe.
— Claro que não, alguns diriam que foram os Beatles, outros o Elvis, mas não eu — comentou.
— Porque eles nunca te viram através dos meus olhos — essa frase saiu diretamente do meu coração, sem nenhum filtro no caminho para adaptá-la ou impedi-la. Era amor cru e em sua mais pura essência.
Eu estava séria e ele também estava, mas aos poucos um sorriso quase imperceptível foi aparecendo. Ele parecia um pouco mais cheio de si, seu ego ficou palpável entre nós. No entanto, não me incomodei dessa vez, queria que ele soubesse o quanto era lindo, a ponto de me deixar sem chão.
Não notei que seus olhos começaram a me encarar diferente. Só quando me puxou pela nuca e me beijou. Subitamente, minha pele parecia queimar pedindo mais. Tudo que minhas mãos alcançaram, eu toquei, finalmente despertando do transe. Devo até ter soado um pouco rude, mas aquilo precisava ser feito antes que perdesse a cabeça de vez. Eu o queria tanto que até doía.
Parei de beijá-lo para tirar sua blusa, mas logo estava de volta onde parei. Era meio desconfortável para ele se abaixar tanto para me beijar, eu percebi isso, então me joguei propositalmente na areia de costas, com calma, trazendo-o comigo. Fez menção de interromper nossas bocas, mas não deixei, minha pele se arrepiava só de pensar que pararíamos naquele ponto.
Ele começou a entrar no clima, tirando meu short, e depois de colocá-lo ao lado dos nossos corpos, deslizou suas mãos quentes pelo meu tronco por cima do tecido do maiô. Gemi, tentando controlar o desejo que se acumulava entre minhas pernas. Ele tornou a tarefa impossível quando olhou diretamente nos meus olhos e sussurrou:
Underbar flicka*.
Fechei os olhos em puro deleite e mordi meu lábio inferior. Não tinha nada mais afrodisíaco do que aquele homem falando seu próprio idioma. A entonação da voz dele era diferente, não sei como era possível, mas ela ficava mais grossa. Eu o amava falando inglês, alemão e “apaixonado” em português, mas quando ele falava sueco parecia que ecoava no ambiente e o nó de excitação no meu ventre respondia prontamente.
Ele encostou seu abdômen no meu, se apoiando nos braços que estavam na areia, e me fitou. Um sorriso de lado brotou em seus lábios enquanto os olhos pareciam carregar constelações. Eu me perdi ali. Perdi a noção do tempo, do espaço, da maldição que nos cercava, tudo. Só restava eu e ele em uma praia deserta, sem nada para nos atrapalhar. Foi assim que eu percebi que não pertencia a lugar algum que não fosse com ele, ali em seus braços. Fosse naquela praia, em casa na Suécia ou até mesmo em 2019, contanto que eu estivesse em seus braços para sempre, tudo ficaria bem. Eu estava completamente ferrada por isso.
Senti-o endurecer entre minhas coxas e apertei minhas pernas contra seus quadris. Nossos olhos estavam naquela conexão esquisita que pertencia só a nós dois. Quando seus olhos me fisgavam, eu até me esquecia de respirar. Era bizarro. Ele se esfregou em mim e eu tive que lembrar meus pulmões do que era ar quando ofeguei. Céus, ele me desejava e muito. Aproximei meus quadris dos dele e gemi ao sentir toda sua extensão na parte que mais ansiava por ele. Seu sorriso de lado se alargou ao dizer:
— Você gosta disso, não é? Gosta de sentir o quão eu estou desesperado por você.
Ele se esfregou mais uma vez e meu interior ardeu em chamas. Eu ia enlouquecer de vez, juro. Aquilo era bom demais para eu estar me permitindo experimentar de novo. Na minha cabeça, eu não o merecia, mas gostava de tocá-lo como se merecesse.
Não. Não iria pensar daquele jeito ou iria estragar tudo.
— Gosto — admiti e pesquei seu lábio inferior com meus dentes. Ele sorriu enquanto eu o mordiscava e depois o lambia. — Eu gosto de me sentir desejada por você.
Ele enterrou as mãos por baixo dos meus ombros, me abraçando e deixando seu peso cair em cima de mim. Beijou-me com ternura, como se sentisse saudade. Em certo ponto, ele pegou uma das minhas mãos e enfiou pelo cós do short. Eu interrompi o beijo para arquejar com a sensação de tateá-lo, ele estava quente e duro feito pedra. Encarei suas pupilas dilatadas, sem saber como ele queria que eu reagisse.
— É por você. Eu te quero. Porra, , eu quero você como nunca quis ninguém. Só escondi isso durante esses meses porque respeitei a sua decisão, mas não teve um dia que não te desejei — sussurrou como se fosse um segredo e interrompeu nossa conexão visual para deslizar o nariz até meu ouvido. — Foi doloroso te ter nos meus braços todos os dias sem poder te beijar, te tocar... Porém, só aumentou a expectativa para quando chegasse o momento. E vou esperar por esse momento, nem que seja a última coisa que eu faça na minha vida.
Eu concordei com a cabeça. Também senti tudo isso, mesmo lutando para não sentir com toda minha força. O tanto que pensei em beijá-lo durante aqueles joguinhos, em como desejei arrancar suas roupas enquanto estava bêbada e implorá-lo para me possuir. Quando aconteceu o incidente na cama, eu senti meu rosto esquentando de vergonha por querê-lo e notar que seu corpo me queria também, mesmo que eu fizesse de tudo para tachar como errado. Foram tantos momentos em que estive sedenta e eu podia revivê-los se somente fechasse meus olhos. Porém, não os fechei, mantive-os bem abertos para o próximo movimento e fui eu que comecei a mexer minha mão que ainda estava entre a sua dentro da roupa.
Ele gemeu quando me pus a acariciá-lo. Minha outra mão trabalhou em abrir o botão, descer o zíper e com os pés deslizei a peça e a roupa de banho até suas coxas. Eu queria mostrar que ele também foi desejado.
— Eu estou aqui agora. Mostre, para mim, o que tanto você quis fazer nesses meses — falei.
Ele desenterrou a cabeça do meu pescoço e se apoiou nos braços para fixar o olhar em mim. Seus olhos me questionavam enquanto eu me concentrava ao máximo para parecer decidida. Não iria me arrepender ou fingir que nada acontecera no dia seguinte, eu o queria e tomei a decisão de dar esse passo mais uma vez. Nós não éramos mais um lance qualquer dele ou meu, eu sentia que, se fingisse que nada acontecera depois do que estaria prestes a acontecer, o perderei para sempre. A mera ideia me assombrava muito. Eu não faria isso de novo depois de tudo que passamos, não tinha coragem e nem energia mais sobrando para isso.
É como Lilly disse: O que vai mudar é que a partir de agora você não precisa mais sentir culpa por querer tocá-lo e estar junto dele. Porque quem ama, não deveria jamais se repelir.
E eu definitivamente estava cansada de sentir culpa por querer tocá-lo e estar com ele, mais exausta ainda de me repelir. Continuava movendo minha mão e assistia suas pálpebras se fechando.
— Tem certeza, baby? — perguntou com a voz grossa de excitação.
Tirei minha outra mão da areia, deslizei-a pela suas costas nuas e parei na parte de trás da sua cabeça. Trouxe-o para perto do meu rosto e sussurrei:
— Você foi tão paciente, amor. Obrigada por respeitar meu tempo, mas chegou a hora. Eu preciso de você.
Ele se afastou de novo e tirou minha mão que o segurava. Seus olhos, agora abertos, me estudavam para ter a mais absoluta certeza. Sorri para ele e concordei com a cabeça, ele sorriu seu sorriso mais bonito em troca. Se, todas as vezes que eu o desse passe livre, ele sorrisse daquele jeito, eu jurava que largaria tudo para só fazer aquilo da minha vida.
Outro beijo se iniciou e ele foi calmo, mas com uma pitada de desespero. Me esfreguei nele e meu corpo todo se arrepiou ao constatar que a única coisa que nos separava era o maiô. Um mero tecido. Nada de ser uma viajante do tempo, de carregar uma maldição comigo, de não saber como salvá-lo ou dos meus outros diversos medos. Senti sua mão deslizando por entre a gente e afastando a minha roupa de banho, me permitindo continuar a movimentar contra sua ereção sem nada no caminho. Eu não fui gentil, prendi minhas pernas em seus quadris e comecei a me esfregar nele com vontade. Gemi em seus lábios ao sentir finalmente pele com pele friccionando e ele gemeu de volta. Nós dois estávamos fervendo.
Ele segurava o tecido do meu maiô com uma mão e apoiava o seu peso na areia em outro braço. Continuava me beijando, mas agora sem a calma, porque nossas línguas batalhavam uma batalha repleta de saudade e desejo.
Eu não podia continuar com aquilo por mais tempo, não quando meu corpo estava chegando ao ápice sozinho. Puxei seu cabelo apenas para desgrudá-lo de mim um pouco porque ele não parecia dar falta nem de oxigênio. Meu interior se contorceu ao observá-lo. Sua aparência era selvagem: o cabelo bagunçado, os lábios inchados e as pupilas dilatadas.
— Agora — praticamente implorei.
Ele concordou com a cabeça. Tudo que se seguiu a partir dali parecia ter sido executado no automático. Afastou os quadris, limpou a mão no short que estava em suas coxas e se posicionou na minha entrada. Nós dois nos fitamos e eu mordi o lábio inferior ao me dar conta mais uma vez o quanto ele era absurdamente lindo.
Tudo o que lutei dias antes para me convencer de que ele não poderia ser meu foi levado pela maré para o fundo do oceano. O jeito que ele me olhava só mostrava que eu estive em negação aquele tempo todo, ele vinha se entregando a mim há muito tempo. Não era daquele dia ou do anterior. Algo me dizia que aquilo nasceu do que vi em seus olhos naquele restaurante quando chegamos à Suécia pela primeira vez. E cresceu tanto que se tornou poderoso, o que temi durante muito, muito tempo, mas que naquele momento só fez com que me sentisse especial.
Meu melhor amigo.
Meu ídolo.
Meu amor.
Meu.
Ele se enterrou em mim e nós dois gememos com alívio. Aquilo foi tão bom que, por um momento, fiquei totalmente sem ação enquanto olhava a lua em suas costas. Quando ele começou a se movimentar, eu voltei ao meu corpo. Incrível como tanto tempo se passou e ele ainda não deixava nada a desejar, parecia ainda saber muito bem o que fazer para me tirar a paz. É claro, ele tem bastante experiência nisso, meu cérebro sussurrou. O modo que ele investia, girava o quadril, retirava e repetia me intrigava. Devia ser um crime ser tão bom naquilo.
Eu não poderia ficar parada enquanto ele conduzia um espetáculo sozinho. Distribuí chupões leves pelo seu pescoço e ele rosnou em resposta. Sua mão livre puxou uma das alças do meu maiô com certa brutalidade, liberando meu seio para depois o apalpar e provocar o mamilo com os dedos em formato de pinça. Gemi alto, não dando a mínima sobre nós estarmos em um lugar público e que aquilo poderia atrair curiosos. Que se foda tudo, eu tinha o amor da minha vida bem onde desejei e só aquilo importava.
Puxei seu cabelo com força e chupei com mais violência a sua pele, descontando todo o prazer que ele estava me fazendo sentir ali. Suas mãos deslizaram pela lateral do meu corpo e se fecharam em torno da minha cintura, ele sussurrou perto do meu ouvido: Du är så het**, baby. Ergui os quadris, sentindo o ápice me dominar. Ele percebeu e aumentou a frequência e a profundidade das investidas. Eu me senti sendo carregada em uma nuvem diretamente para a perdição, sem nem fazer uma curvinha no meio do caminho. Oh, e a sensação era simplesmente sublime. Foi como se todas as barreiras que lutei para manter de pé estivessem sendo seguradas por um fio finíssimo e prestes a cair. A ansiedade pelo estrondo disso dentro de mim fazia todas as minhas células trabalharem ao máximo.
Até que estava caindo...
Caindo...
E caindo...
Baby, eu e-estou perto... — ele murmurou em inglês, depois erguendo a cabeça e olhando nos meus olhos. Era para ele ter me resgatado da minha queda, mas a sua fala me fez despencar ainda mais. Eu queria que ele afundasse no abismo junto comigo, por isso segurei-o firme com os braços em volta do seu pescoço.
— Eu também. Oh, meu bom Deus! Eu também, — interrompi-o com a voz fina e praticamente gritando súplicas divinas. Eu até riria do que saiu da minha boca e me desculparia com Deus por isso, se já não estivesse sentindo o misto de sensações como uma onda vindo me afogar. Meu peito subiu e desceu sem parar, lutando para acompanhar o tsunami que acontecia dentro de mim. Apesar das súplicas, quando eu joguei a cabeça para trás, o gemido que meus lábios deixaram escapar não foi nada casto. Eu me desfiz sob olhos que me acompanhavam de perto.
Ele não demorou muito a me seguir, vi a ruguinha entre suas sobrancelhas se formar e ele segurar a respiração enquanto revirava os olhos. Parecia estar se jogando de cabeça do penhasco que o carreguei e se deleitando com todas as sensações que aquilo lhe causava. Cada mísero detalhe durante o seu orgasmo era incrível, eu também assistia vidrada. Aquela parte ínfima dentro do seu olhar que lutava para ter atenção, finalmente parecia ter encontrado libertação e floresceu diante dos meus olhos. Quando finalmente ele soltou todo o ar, senti-o pulsar dentro de mim por alguns segundos e a sua satisfação me preencher.
E quando o encanto acabou, eu me senti finalmente em completo êxtase.
Ele soltou o seu peso que segurava todo esse tempo na areia ao meu lado, saindo de dentro de mim de uma vez.
Cacete... — xingou com a voz grossa e de olhos fechados. Sorri. Eu me sentia repentinamente a mulher mais feliz do mundo. — Garota, você vai acabar comigo — riu.
Ajeitei meu maiô, dolorosamente ciente da areia embaixo de mim.
— ‘Tá, isso daqui foi muito bom — concluí, olhando as estrelas que pareciam perto demais da gente e me lembrando das constelações em seus olhos. Cara, como eu podia ter lutado contra tudo aquilo quando ele me olhava daquele jeito? Eu fui tão... Argh, nem tenho palavras para descrever tamanha burrice. — Eu nem sabia que tinha expectativas para uma próxima vez nossa até o que aconteceu agora superar todas elas.
Vi pela visão periférica ele rindo e acertando o short no lugar. Me arrastou para o seu abraço e descansei a cabeça em seu peito. Fechei os olhos para me concentrar apenas em seu coração batendo e em sua respiração ficando cada vez menos ofegante. Meu cérebro não conseguiu pensar em nada, estava vazio finalmente. Já meu olfato estava dominado pelo cheiro dele misturado a maresia e... um pouquinho com o que tinha acabado de acontecer. É, definitivamente nós cheirávamos ao característico suor com prazer juntos.
O som parou. Para que voltasse, precisávamos trocar a fita e ninguém parecia disposto. Eu deveria me ocupar com isso para não deixar o silêncio dominar ou talvez, ao menos, pensar que minhas partes íntimas estavam cheias de areia de uma forma não saudável. Porém, eu estava confortável assim e ele também.
Não pensar em nada era tão renovador, acho que tive essa chance poucas vezes na vida. Desde minha chegada, eu pensei e senti demais, mas com minha mente vazia, pude escutar a única coisa que importava: o meu amor. Aquilo que estava fazendo meu coração palpitar por estar deitada no peito dele, depois de dias me culpando por algo que estava parecendo tão simples e natural. Eu o amava e era uma tonta de achar que poderia ser sua amiga, quando nós sempre fomos amantes desde que botei os olhos nele em 2019.
Aos poucos, meus pensamentos habituais retornaram. Preocupações como o furto do som, a areia grudada entre minhas pernas, sua família que deixamos sem nem dar satisfação retornavam ao meu cérebro de uma vez feito uma avalanche.
Fechei os olhos e me concentrei mais uma vez no momento. Eu e ele em uma praia deserta, seus braços ao redor de mim transmitindo calor e proteção, a sensação de satisfação que deixava meu corpo molenga, as ondas quebrando, as gotículas de água salgada se misturando ao suor na minha pele, nossas pernas entrelaçadas e o coração dele batendo rápido em uma canção própria.
Eu só queria poder morar naquela noite para sempre.
Mas estava ficando tarde e logo estranhariam nosso sumiço.
Antes de nos levantarmos para retornar ao resort, eu aproveitaria mais alguns minutos de paz. Afinal, depois de todos esses meses, eu até que merecia.

***


Dei uma topada na porta com meu dedinho e não consegui segurar o gemido de dor. Como se não tivesse acontecido nada, fechei-a e tentei andar silenciosamente.
? — Lilly perguntou em meio ao escuro.
— Sim?
— É bom ter uma história boa para me contar, senhorita fugitiva.
Não sabia por qual motivo me dei o trabalho de esperar que ela não fosse notar minha chegada. Ela acendeu a luminária de cabeceira. Me senti uma adolescente chegando escondida em casa e pega no flagra. Ainda mais vendo aquele sorriso irritante igualzinho ao do irmão dela que estava há pouco entre minhas pernas. Me senti corar ao constatar isso.
— Vou só tomar um banho. — Recolhi meu pijama da mala que estava ali perto da televisão e entrei no banheiro. Ela não se opôs.
Tomei um banho gelado para tentar diminuir a sensação de estar flutuando e voltar para a realidade. Funcionou bem pouco, provavelmente demoraria para minha ficha cair que nós demos aquele passo de novo. Penteei o cabelo molhado, botei meu pijama e a sensação da areia fora da minha pele foi tão aconchegante que eu estava pronta para dormir. Escovei meus dentes depressa porque tudo o que queria era cair na cama e adiantar o dia seguinte para vê-lo de novo. Meu Deus, eu me sentia mais apaixonada. Nem sabia que era possível.
— Conta — ordenou ela, acendendo o abajur, assim que me deitei de barriga para baixo.
Resmunguei um palavrão em português. Eu esperava que ela tivesse dormido naquele meio-tempo, mas é claro que não deixaria para lá assim.
— Ok, mas desliga a luz porque assim me esqueço que estou falando com a irmã do garoto em questão — me rendi.
— Posso te chamar de cunhada? — ela perguntou com olhos esperançosos.
— Ha, ha. Não — fingi mau-humor, mas acabei sorrindo feito trouxa.
Com a luz apagada, escolhi as palavras certas para resumir as últimas horas.

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* Underbar flicka significa “menina linda/maravilhosa” em sueco.
** Du är så het é uma expressão em sueco que equivale a “You’re so hot” em inglês.

Capítulo 24 - Love You To Death

Assim que Lilly abriu a porta, demos de cara com , que estava nos esperando do lado de fora do quarto, encostado no parapeito da escada.
— Bom dia, meu querido irmão mais velho. Imagino que tenha dormido muito bem — ela disse, o sorrisinho de lado usado na ocasião perfeita. Dessa vez, eu não senti nem uma ponta de vergonha porque estava ocupada me divertindo. A melhor vingança para um sorrisinho de lado dos era outro lançando um igual.
— Dormi tão bem que até ignorei os roncos do Dre — ele respondeu, os olhos cobertos por óculos escuros.
— Então você entrou em coma, deveria começar a se preocupar — ela riu enquanto descia as escadas.
E, de repente, estávamos sozinhos. Ele pegou minha mão e me puxou em sua direção.
— Oi — falei, o nariz encostando no dele.
— Oi — respondeu. — Devolvi o som hoje cedo, caso esteja preocupada. Mas pretendo pegá-lo emprestado de novo mais tarde.
— Eu estava e ainda estou. Isso é abusar da sorte. — Me afastei um pouco para ele ver a preocupação na minha cara.
— Deixa comigo, baby — ele disse, como se isso fosse me confortar.
Ele beijou minha bochecha, me tranquilizando. Estremeci, flashes da noite passada vieram à tona e fiquei um pouco tímida. Ele não percebeu e começou a distribuir beijos ao longo do meu rosto.
Por que parecia tão diferente das outras vezes? Quer dizer, todo o contexto mudou, já o conhecia muito bem, meu amor quadruplicou de tamanho e ele me retribuía romanticamente. Antes eu me sentia mais um casinho, no momento, parecia que ele estava me tratando como namorada.
Calma, . Não crie esperanças com tão pouco.
— Está com fome? — ele perguntou, me encarando.
— Ahm, pode ser — respondi, coçando a nuca.
Fazia sentido minha resposta? Nem me lembrava qual era a pergunta.
Ainda estava presa em nos imaginar como namorados.
— Então vamos — ele me puxou pela mão.
Peguei comidas que não combinavam entre si e parecia que eu estava me assistindo fazendo tudo. Estava me lembrando, a cada minuto, para não criar esperanças tão rápido, mas era inevitável. Comi em silêncio, pensando que a presença dele parecia queimar ao meu lado. Não lembrava a piadinha que Börje fez e que todos riram, mas ri também, quando me citou, sorri feito besta para ele. Ele pareceu não perceber, mas eu percebi e me soquei mentalmente.
Fiquei repetindo para mim mesma feito um mantra: ele é o mesmo de sempre, você é a mesma. Nada mudou por causa da noite passada. Você não está mais apaixonada do que estava e nós não seremos namorados. Ele é seu melhor amigo, seu ídolo, o amor da sua vida, mas não seu namorado. Nós fizemos, e daí? Já fizemos uma vez quando eu jurava que seria só uma noite e outras vezes que provaram que não dava para tê-lo só por uma noite. E, além do mais, ele vivia fazendo isso com outras mulheres e não as namorava.
Espera.
Fiquei com a impressão de que ele estava me tratando mais carinhosamente porque ele queria apenas repetir a dose e precisava preparar o terreno para aquilo.
Será?
Se fosse, ele não precisava. Não é como se eu precisasse ser conquistada, ele já tinha me ganhado há muito tempo.
Tomei sol o dia todo enquanto o via indo e voltando do mar com Andreas. Evitei-o, é claro. Minha mente parecia um campo de batalha, meu exército lutando contra meus pensamentos ilusórios. Eu e Lilly conversamos sobre tudo, para me distrair — ah, menos sobre o que descobri de sua mãe no dia anterior, porque ela não parecia saber ainda e não cabia a mim contar.
, Andreas e outros gringos da praia começaram a jogar futebol na areia em algum momento. Foi um festival de gargalhada para nós duas, eles eram incrivelmente ruins e Lilly entendia de futebol a ponto de saber o nome de jogadores para compará-los aos seus irmãos pernas-de-pau cada vez que eles iam fazer um lance.
Andreas disse que nos dedicaria o gol, mas nunca aconteceu. No final, o placar foi zero a zero e nós nos divertimos horrores às custas deles.
No final da tarde, nós nos arrumamos para subir de volta até o hotel. passou os braços suados pelos meus ombros e sorriu, me fazendo estremecer ao tê-lo tão perto depois de horas separados.
— Você está besuntada de óleo — resmungou.
— E você está todo suado — forcei uma cara de nojo, mas verdade seja dita: eu estava adorando vê-lo assim, suado, com as bochechas rosadas e o cabelo todo bagunçado.
— Bem lembrado. — Me deu um abraço de urso e eu soltei uma sequência de gargalhadas escandalosas.
Andreas passou por nós falando um sonoro “Blé”. Lilly riu, cúmplice. Quando ele me soltou, ela apertou minha bochecha e a dele, dizendo:
— Tão bonitinhos juntos.
Fiquei vermelha e congelei, mas minhas pernas continuaram andando quando ela se virou. Eu mentiria se eu não dissesse que ouvir isso fez minha esperança de sermos um casal se acender de novo.
Ele apertou minha mão e pude perceber que notou minha mudança de comportamento. Abafei o sorriso bobo que ameaçava aparecer nos meus lábios, para que ele não desconfiasse mais ainda.
Lilly continuou caminhando ao lado de Andreas, de costas para a gente, totalmente alheia ao furacão que suas palavras despertaram no meu interior.
Nos separamos na porta dos quartos, mais uma vez. Porém, quando abrimos, Karin estava sentada na cama, mexendo em sacolas.
— Olá, meninas! — ela disse, sorridente.
— Oi! — falamos juntas em sueco.
— Trouxe roupas novas! — mostrou as sacolas que estavam no chão e que mexia quando entramos.
Karin tinha um bom gosto, então eu não estava preocupada em ter que fingir que gostei.
— Essas são da . Essas para você, Lilly — ela nos entregou as sacolas de papel.
Despejei o conteúdo na cama. Um vestido incrível saiu de lá, mais um robe que só cobria os braços e as costas e ia até os joelhos, era preto transparente, além de um maiô à la Pamela Anderson em S.O.S. Malibu na cor verde neon.
Era tudo lindo, apesar de que eu teria que trabalhar minha autoconfiança para não me achar esquisita quando estivesse com aquele maiô. O que, de fato, mais me chamou atenção foi o vestido. Mostarda, tinha o decote bem profundo, as mangas bufantes e a saia rodada até a metade das minhas pernas, provavelmente. Deveria ter custado uma fortuna, mas já aprendi que eles ficavam chateados se você dissesse “não precisava”. Eles sempre me presenteavam, às vezes, passeando pela rua, acontecia de ver os itens nas vitrines com preços absurdos, mas eles não gostavam de falar sobre o custo.
— O vestido é... belo — falei, erguendo-o na altura da cabeça. — Obrigada.
— Ele é a sua cara, contrasta com a cor do seu cabelo — ela disse, sorrindo com suas bochechas vermelhas cheias de sardas por conta do sol.
Lilly tinha ganhado mais uma coleção de biquínis no estilo que ela mais gostava, os que cobriam só o essencial. Ela parecia bem satisfeita, afinal tinha estoque pelo resto da vida.
— Obrigada, Karin. São meus biquínis favoritos! Se eu levar isso para Estocolmo, farei inveja nas minhas amigas, ou melhor, farei inveja em todas as suecas — soltou uma risadinha maléfica. — Mal posso esperar pelo verão.
Nós duas rimos. Ela, com certeza, faria sucesso com esses biquínis.
— Como foi o dia? — Lilly perguntou à Karin.
— Muito sol, muitos lugares novos. É incrível como esse lugar é pequeno, mas tão repleto de pontos para conhecer, tenho a impressão de que nunca vai acabar. — Ela dobrou as sacolas de papel. — E vocês, o mesmo de sempre?
Concordei com a cabeça.
— Tenho medo desse bronzeado seu, não me parece nada saudável — ela disse para Lilly. A menina respondeu com um gesto super adulto: mostrando a língua. Karin riu.
— Vou tomar um banho. Obrigada pelos presentes, Karin — anunciou Lilly, se trancando no banheiro em seguida.
Karin mudou a posição que estava sentada, de repente parecia mais séria.
— Como você está? — ela perguntou. — Eu ainda estou preocupada com esses dias que você passou aqui dentro.
Seus olhos verdes brilhavam com a preocupação, confirmando o que disse. Eu queria ser verdadeira com ela também, mas nem sabia por onde começar.
— Agora estou bem — murmurei, olhando para o chão.
Dava para explicar tudo utilizando Outlander como referência para alguém nos anos 90? Nope.
— Eu e ... — suspirei. Às vezes me sentia patética dizendo o nome verdadeiro dele, porque eu nunca o usava — brigamos. Foi uma espécie de briga. Na verdade, tinha algumas coisas que a gente queria que mudasse, então levei um tempo para saber se valia a pena.
— Vocês estão juntos, claro — ela disse, meio supondo, meio comentando.
— Ah, sim. Está tudo certo entre a gente, valia a pena sim — sorri e olhei o relógio na parede, eu tinha que me apressar. — Inclusive, você pode avisar à Lilly que vou ter que sair com ele? Não vai dar tempo de esperá-la tomar banho, também preciso tomar um agora.
— Claro — ela disse. — Só mais uma coisa. — Ela pegou algo atrás de suas costas. — Guardei para te dar longe de Lilly, provavelmente ela vai querer xeretar tudo que tiver aqui, se souber da existência.
Peguei um caderno que parecia uma agenda de suas mãos, era amarelo com glitter e tinha a palavra “diário” escrita.
— Me disseram que estava escrito Diary, por isso comprei. Algo me disse que gostaria.
Que presente... inusitado. Eu tinha gostado muito. Nunca havia passado pela minha mente escrever um diário, mas sabia que poderia usá-lo para outros fins, tipo minha pesquisa sobre a viagem do tempo. Um caderno especial com um propósito especial. Um diário sobre viagem no tempo.
Cerquei seu corpo frágil com meus braços. Karin era realmente uma pessoa incrível. Sentia muitas vezes que ela me tratava como se fosse minha mãe e, em momentos como esse, é que eu notava isso. Não tive irmãos e minha relação com meus pais não foi lá muito próxima, já que eles trabalhavam muito e em vários lugares, gravando tudo quanto tipo de coisa. Troquei de babás a vida inteira até ter idade para ficar sozinha com os funcionários da casa, então esse tipo de afeto era meio desconhecido.
Meus pais deviam ser até mais novos que Karin agora, começando suas carreiras no teatro.
— Adorei. Vou usá-lo com carinho. Muito obrigada — falei, abraçando agora o objeto. Guardei-o enrolado em um monte de roupas para não chamar atenção dos olhos curiosos da Lilly.
— Vá lá, pombinha — ela sorriu, jogando um beijo. Joguei outro de volta e passei pela porta.
Peguei minhas roupas, uma toalha do hotel e umas amostras de sabonete, shampoo e condicionador, depois segui para a ducha comunitária feminina.
Passei pelo quarto dos meninos, mas Andreas estava tomando banho e deu um grito quando me viu. Quem mandou tomar banho de porta aberta? Maluco. A porta estava destrancada e obviamente ele estava sujeito a isso. Não vi nada, porque a cortina cobria a parte de seu corpo abaixo do pescoço, mas, se tivesse visto, ele escutaria um sermão por me deixar traumatizada.
Voltando ao meu foco, a ducha estava vazia. Para a minha felicidade, já que não gosto muito de ficar pelada perto de outras pessoas desconhecidas, sempre achei isso estranho até com conhecidos.
Quando acabei meu banho gelado, vesti meu maiô novo e o robe que acabara de ganhar. Era uma combinação bem pensada, mas minha nossa, eu me sentia um farol — fiquei com um pouco de vergonha por chamar tanta atenção com aquele maiô tão cavado e tão verde. A cor confrontava a minha paleta de cores e acho que por isso parecia tão chamativa.
Deixei minhas roupas usadas dentro do armário comunitário, não tinha chave porque, aparentemente, roubo de algo tão insignificante como roupa não era uma preocupação deste século.
Enquanto esperava , tentei não me esconder de todas as maneiras possíveis. As pessoas passavam por mim e tenho certeza de que me olhavam por causa do maiô. Me senti roubando o guarda-roupa da Lilly, mirando em uma grande gostosa que nem ela e acertando em... bem, eu.
Senti uma mão calejada deslizando pela minha cintura e me sobressaltei, acabei por me esconder do jeito que estava tentando evitar. Tentei relaxar um pouco quando vi que sorria.
— Fiu, fiu — ele imitou um assovio com o cigarro entre os lábios.
Senti até meu dedão do pé ruborizando. Se ele havia dito que ia lembrar daquele maiô, imagina esse daqui. Iria ficar cravado diretamente na memória dele do lado do dia que “quase matei os meus amigos portugueses e o finlandês”.
— Não se esconda, baby. — Ele pegou minhas mãos nas suas. — Você é gostosa para caralho.
Ele apagou o cigarro na lixeira ao meu lado e tentei me esconder fechando o robe transparente. Quando percebi, cruzei os braços.
Ele agarrou minha nuca com uma de suas mãos, me fazendo descruzar os braços e agarrar seus ombros. Sua boca praticamente me engoliu, ele me beijava com toda sua força de vontade. Minhas pernas quase vacilaram, mas ele me amparou com sua mão esquerda pela base das costas como se soubesse que eu pudesse derreter com seu beijo a qualquer momento. Sua língua batalhava contra e a favor da minha ao mesmo tempo, tive a impressão de que eu não sairia ilesa daquele confronto. Quando ele me soltou, eu ofegava e meu coração martelava a ponto de escutá-los nos meus ouvidos.
— Tudo isso por causa do maiô? — perguntei feito uma sonsa, com a voz trêmula. É claro que não era por causa de um pedaço de tecido, depois daquele beijo, tinha certeza de que ele queria me ver sem ele o mais rápido possível.
— Não, isso vem da minha vontade de você. — Deu-me um selinho, falando exatamente o que pensei. — Passei o dia inteiro pensando em como preciso de você de novo, acho que me estragou para sempre.
As reações do meu corpo, naquele momento, foram idênticas às de quando ouvi pela primeira vez um garoto falando que me queria. Eu, uma garota de 25 anos, que não era virgem há um tempo.
Patética, eu sei.
— Deixa disso, é claro que não te estraguei para sempre — me forcei a responder no automático e toquei seu rosto, apreciando aqueles olhos com mais adoração que o momento pedia.
Bem que eu queria ter te estragado para sempre, mas não sou tão experiente sexualmente falando para me equiparar a um terço do seu histórico, pensei com tristeza.
Ele tinha ficado marcado como o melhor homem que já tive, mas eu não deveria estar nem no seu top 50.
Ele não respondeu, apenas estalou os lábios nos meus.
— Vem, preparei algo — anunciou ao me soltar.
Passou o braço pelo meu antebraço e fomos caminhando pela praia, em silêncio. Conheci o caminho na metade. Era o lago do outro dia, o mesmo que brigamos dias atrás. Apesar de que tinha boas expectativas para aquele momento, depois do beijo, da sua frase e de o que aconteceu no dia anterior.
Subimos no deck e a água transparente me chamou atenção novamente. Ele espalhou algumas coisas pela madeira do chão: o som portátil que estava em seu bolso e que eu não havia percebido e as fitas.
Repentinamente, KISS começou a tocar.
— Claro — falei. — Pelo menos, hoje não tive que participar do sequestro.
Ele deu uma piscadela. Eu tinha escapado ontem dessa fita por causa do The Five Satins, mas já tinha uma leve desconfiança que ele colocaria assim que tivesse a oportunidade. I Want You do álbum Rock and Roll Over tocava. Por coincidência, esse era meu disco favorito da banda.
Sentei-me no chão do deck com as pernas na água, ele se sentou ao meu lado. Passamos um tempo olhando para a água e ouvindo a música.
Aquele disco era extremamente explícito como quase tudo do KISS. Só que, depois da última noite, eu estava ficando cada segundo mais mortificada escutando a letra.
Eu precisava começar a falar para espantar a vergonha que me consumia feito uma fogueira.
— Você contou para o seu pai e para a Karin sobre minha vontade de dançar a coreografia final de Dirty Dancing no meu casamento, não é? — quebrei o silêncio. Até me surpreendi que saiu uma pergunta que surgiu na minha cabeça no dia anterior. Com a vergonha que eu estava sentindo, era para ter saído nada com nada.
Ele me encarou.
— Não — respondeu rápido demais.
— Então por que ela entrou no meu quarto ontem me chamando para algo que você mencionou que tenho interesse e acabamos aprendendo a dançar ao som de The Five Satins e em cima de um gazebo? — retribuí o olhar.
Coçou o nariz, parecendo dessa vez pensar em uma resposta.
— Um belo dia meu pai estava ouvindo The Five Satins no carro comigo, então lembrei do dia do filme e falei sobre ter te contado quando a gente brincou em maneiras que seria possível te pedir em casamento e talvez, só talvez, eu tenha deixado escapar esse detalhe.
Filho da puta. Eu sabia desde o início. Dei um tapa em seu braço.
— Detalhe? Não acredito que você fez isso! — praguejei.
— Ai! — ele botou a mão no braço onde o tapa tinha acertado.
— Eu nunca entendi essa brincadeirinha tosca de vocês.
— Porque você parece o tipo de garota que sonha acordada com um príncipe encantado e um casamento gigantesco, aí Börje me perguntou como eu te pediria em casamento se fosse eu o “sortudo” — ele fez aspas com os dedos e levou mais um tapa pela audácia. — Acabou se transformando em uma brincadeira em situações que eu poderia te pedir em casamento — ele riu. — Olha, mas o gazebo foi coincidência. Me dá um desconto, eu nem lembrava que tinha gazebo no filme.
— Que brincadeira mais sem graça — fuzilei-o com os olhos. — E ela disse para eu olhar nos seus olhos que nem eles falam no filme, que nem você disse ontem à noite! — dei outro tapa nele, e outro, e outro. — Seu cafajeste!
— Ela disse isso? Eu também nem lembrava que tinha essa cena no filme — falou, rindo, e com a maior cara de pau do mundo, deixando transparente como a água abaixo de nós que estava mentindo.
— Mentiroso! Você ficou repetindo o gesto o dia todo e rindo depois da gente ter visto de novo lá em casa, algumas semanas atrás. — Semicerrei os olhos, pegando-o na mentira.
Ele começou a rir mais ainda e eu comecei a distribuir tapas em seu braço de novo.
— Desculpa, , mas você é tão cafona. Esse filme e aquela bandinha... — zombou, de graça, para me irritar mais.
— Você não disse isso. — Parei de estapeá-lo.
Ele estava começando a gostar de Erasure e ainda fez aquela cena toda na praia ontem por causa de Dirty Dancing. Agora estava se achando no direito de me chamar de cafona de novo?
— Ca-fo-na — ele disse cada sílaba pausadamente, ainda rindo da minha cara.
No segundo seguinte, ele estava na água, de roupa e tudo. E minhas mãos que eram as culpadas. Nem eu mesma acreditei que fiz aquilo, cobri a boca com a mão e comecei a rir enquanto ele emergia com cara de poucos amigos.
Eu não conseguia parar de gargalhar, até minha barriga tinha começado a doer e meus olhos se encheram de lágrimas. Simplesmente não conseguia parar e eu nem estava mais vendo a cara de raiva dele pela visão turva, mas a memória ainda estava ali para não me deixar esquecer tão cedo. Percebi que ele se aproximava e limpei as lágrimas para tentar vê-lo melhor.
Ele tocou nas minhas pernas com as mãos molhadas, então saquei imediatamente suas pretensões. Não que não fosse óbvio que ele ia fazer aquilo, mas eu estava mais concentrada em rir do que me preocupar com a possibilidade.
— Não, não, não! Desculpa, desculpa, desculpa! — gritei, rindo, tentando tirar suas mãos das minhas panturrilhas. Porém, no segundo seguinte, ele já tinha me puxado para dentro da água e só me restou emergir. — Você é um homem morto depois disso daqui — falei, séria.
Ele riu e saiu nadando pelo lago.
— Só se você me alcançar — falou alto para eu escutar.
— É melhor saber nadar como um atleta, porque você está ferrado.
Mergulhei na água para ficar mais fácil de alcançá-lo. Aquilo era questão de orgulho, fui chamada de cafona e jogada na água, com minha roupa nova! O intuito do maiô era realmente molhar, mas a outra peça não precisava ter o mesmo fim. Voltei para a superfície ao sentir as ondinhas da água que indicavam sua proximidade. A penumbra não me ajudava a saber onde ele estava ao certo. Aquele filho da mãe estava brincando com minha cara! Dei uma volta tentando achá-lo, mas foram dois minutos perdidos. Até que ele me abraçou por trás e me ergueu, soltei um gritinho pelo susto.
— Me solta! — berrei, rindo.
Ele estava andando até a areia enquanto me carregava.
— Eu estou ferrado, é? — ele perguntou, atrás da minha cabeça. Esperneei para me soltar, mas ele já tinha me colocado com cuidado na areia de pedrinhas. Joguei meus braços em sua direção para outra sessão de tapas, mas ele prendeu meus pulsos ao lado da minha cabeça.
Desisti de alcançá-lo, porque comecei a rir mais ainda.
— Você vai pagar caro, — falei, tentando respirar enquanto ria.
Ele começou a beijar meu pescoço, me causando ondas de arrepios pelo corpo.
— Shhh — ele pediu silêncio, com a cara enterrada na minha pele. — Essa é a melhor música do álbum.
Concentrei-me em ouvir o que estava tocando um pouco longe, ele cantou:
Well, come on baby, don’t leave me sad. ‘Cause you’re good lookin’, the best I’ve had.
Reconheci como sendo Makin’ Love, ele confirmou ao cantar o refrão enquanto descia os beijos pelo tecido verde. Meu mamilo foi o primeiro a reagir à sua boca, depois minha pele toda se arrepiou novamente pela excitação e eu mordi o lábio inferior em expectativa.
Apertei os dedos do pé quando o senti no meu baixo ventre. Acho que aquela seria minha nova música favorita do álbum, Hard Luck Woman não estava mais com nada. Conforme a música foi terminando, ele parou com os beijos e ergueu os olhos até vislumbrar o meu rosto. Eu só pensei: esse homem no meio das minhas pernas fica um pedaço de mau caminho. Suas mãos largaram meus pulsos para contornar a lateral do meu corpo. Segurou minhas coxas, de forma que eu flexionasse meus joelhos e o desse um acesso melhor.
Ele plantou apenas um beijo no ponto que mais pulsava do meu corpo e eu arqueei minhas costas, soltando um gemido em seguida.
— Posso? — ele perguntou, abafado.
— Pelo o amor de Deus, sim — murmurei, implorando praticamente.
Ele deslizou a língua por cima do pano e eu juro que poderia atingir o ápice só assim. Porém, ele afastou o maiô e passeou sua língua livremente, devagar, desfrutando. Gemi de novo. Aquele maldito sabia exatamente onde estar para me fazer hiperventilar. Minhas costas arquearam e peguei uma quantidade de areia com pedrinhas com ambas as mãos. Senti-o me acariciando no quadril com a mão enquanto sua língua me acariciava do jeito mais devasso que já experimentei. A tortura se estendeu por alguns minutos que eu quase não consegui me segurar, meus gemidos altos eram prova disso, até que, quando ele me penetrou com dois dedos hábeis que provocavam exatamente aquele pontinho necessitado que esperava ansioso por eles, aí eu soube que nunca tive chance. Meu coração acelerou feito uma britadeira, minha respiração ficou descompassada e minha consciência foi para o espaço. De repente, todo meu corpo ficou mudo e só a sensação da sua língua, dos seus dedos e de sua respiração contra minha pele reverberavam dentro de mim por alguns segundos. Foi incrivelmente novo. E como um balde de água fria, todos os meus sentidos voltaram, o coração batendo alucinado, a respiração necessitada e o corpo pegando fogo. A consciência me fez prendê-lo com as minhas coxas e gritar o seu nome enquanto me desmanchava para ele.
Senti-o desenterrando a cabeça das minhas pernas ao perceber que eu já havia terminado, mas não saindo do lugar. Abri meus olhos, com algum esforço, para ver o que estava fazendo e vi a coisa mais explícita da minha vida. Ele estava lambendo os dedos que enfiou em mim. Gemi de novo, cerrando as pálpebras, me sentindo culpada por ter gostado de vê-lo fazendo isso.
— Você não precisava fazer isso — murmurei languidamente.
— Preciso sim, você é deliciosa. Esse é o néctar dos deuses — brincou com satisfação notável em seu tom de voz.
Pervertido.
Sorri de olhos fechados, toda envergonhada. Ele ajeitou de volta o maiô e pousou minhas pernas, com um cuidado desnecessário, de volta na areia. Abri os olhos e ele estava ao meu lado, sentado sobre os joelhos, suas roupas pingavam.
Comecei a rir da sua situação.
— Suas roupas estão encharcadas — expliquei o motivo da minha risada.
Ele revirou os olhos, sorrindo. O vento estava até forte, deixando o cabelo dele quase seco e meus pelos eriçados pelo frio.
— Engraçadinha.
— Você mereceu, pensei que já tínhamos passado da fase de chamar minha banda favorita de cafona.
— Jamais — respondeu, empinando o nariz. Belisquei a pele do seu antebraço e ele pulou para longe. — Ai! Quando você se tornou tão violenta?
— No momento que você contou meu pior segredo para sua família. Agora, para me vingar, vou ter que contar sobre o que armou ontem na praia e como deu errado.
— Sua pestinha. — Jogou seu corpo em cima de mim e começou a fazer cócegas na minha barriga, onde sabia que era meu ponto fraco.
Quando sua mão parou e eu recuperei o fôlego, ele disse:
— O que a senhoria deseja em troca de não falar nada? — repetiu o que havia me proposto no dia que chegamos ali. Lilly já sabia, mas havia me prometido de pés juntos que não ia falar nada para Börje e Andreas.
— Hmmm... — fingi pensar, eu não queria deixar aquele lugar tão cedo, mas estava quase batendo os dentes pelo vento que soprava. Então falei: — Quero que você me carregue até o hotel e me alimente de muito chocolate, porque estou com frio.
— Justo. — Estalou um beijo na minha boca e se levantou, pensei que ia me levar consigo, mas saiu correndo em direção ao deck. Meu queixo começou a bater com a ausência do calor dele. Queria ficar naquele lugar até de manhãzinha para aproveitar sua companhia, mas tinha a impressão de que só a nossa temperatura não seria suficiente para nos salvar de uma possível hipotermia. Talvez, se ele fizesse mais daquilo com a língua, poderia ser que eu sobrevivesse, só que ele congelaria no processo.
— Vamos? — chamou, oferecendo a mão e depois me puxando pelo braço.
Fui o caminho inteiro em suas costas, assim como pedi, e levando o som portátil junto comigo. Ele estava claramente sofrendo para me carregar, mas todas as vezes que sugeri ir andando com minhas próprias pernas, ouvi o bonitinho resmungar. Era só uma brincadeira, não achei que fosse levar tão a sério a ponto de andar vários minutos desse jeito. No final do caminho, comecei a provocá-lo distribuindo beijos pelo seu pescoço e mordendo o lóbulo de sua orelha, mas ele não cedeu.
Precisava de outro banho gelado para me aquietar e de uma dose de “semancol” para não transparecer meu estado apaixonado demais, senão isso poderia fazer com que ele fugisse. Passei nos armários comunitários para pegar a roupa que deixei e ele me acompanhou até minha porta. Beijou minha testa calmamente enquanto seu corpo todo tremia. Uma pontinha minha ficou feliz em pensar que ele também estava sentindo o que acelerou meu coração o dia inteiro.
É, é claro que provavelmente não.
Entrei no quarto e acendi a luz. Lilly não estava lá, apesar de o relógio marcar duas da manhã. O tempo voou enquanto estávamos juntos. Fiquei um pouco desesperada quando pensei em tudo que poderia acontecer quando uma adolescente não estava na cama às duas da madrugada, mas as batidas na porta me tranquilizaram que pudesse ser ela. Abri e era a mesma pessoa que acabara de me deixar ali. Antes que abrisse a boca para perguntar o que estava acontecendo, ele ergueu um bilhete com fita adesiva no topo.

O outro quarto é de vocês hoje. Aproveitem porque é um sacrifício aguentar os roncos do Dre.
OBS: não insistam em gastar tempo batendo na porta, gastem-no se amando.
Xx
Lilly


— Isto estava na porta do meu quarto — comentou.
Senti vontade de rir da perspicácia deles. Os irmãos dele armaram para a gente. Aqueles pirralhos... eles se veriam comigo.
Abri mais a porta para ele passar, já que não tinha para onde ir. Ele entrou no quarto e jogou o papel no lixo. Girei a tranca porque não dava para confiar na Lilly com portas destrancadas. Só quando o silêncio ficou pesado demais é que me toquei, lá estava nós dois sozinhos em um quarto de hotel de novo, como tudo isso começou e como veio sendo uma parte da nossa história. Muita coisa aconteceu entre nós em hotéis.
Ele ficou sem saber o que fazer, não poderia se sentar na cama e molhar os lençóis. Só tinha uma alternativa plausível desde que entramos pela porta: se livrar de todo o pano molhado que nos cobria. Eu estava ciente e ansiosa para isso. Deixei a manga do robe cair pelos meus braços e o vi segurar com força a madeira do móvel da TV atrás dele. A peça caiu no chão e ele puxou o ar com afinco. Passei a alça do maiô por um braço e calmamente a outra pelo outro, sua respiração estava irregular enquanto eu prendia a minha, o tecido passou pelos meus seios, revelando-os. As pontas dos seus dedos estavam brancas por causa da força que ele empregava ali ao me assistir me despindo. Deslizei o resto pelo meu tronco e depois minhas pernas, chutando-o para longe.
Nunca tinha deixado alguém me ver assim, tão exposta. Eu até fazia questão que as luzes ficassem apagadas pela insegurança, mas dessa vez o abajur do lado de Lilly provocava uma iluminação amarelada e romântica. Um frio percorreu minha espinha pelo medo de ele me achar feia ou de notar todas as imperfeições que me assombravam, mas ele só parecia dominado por um desejo primitivo e muito nervosismo. Soltei a presilha que prendia todo o meu cabelo, os fios banharam parte das minhas costas e meu peito. Assim, eu estava ali, simplesmente pronta.
Totalmente entregue.
Seus olhos brilhavam tanto que pensei que estava a ponto de chorar, não parecia que ia, mas, ainda assim, foi como se ele estivesse enxergando uma miragem. Minha pele estava até ficando vermelha pela vergonha por causa daquilo. Não tinha um corpo perfeito, porém, para ele, eu estava além da perfeição e me assustei um pouco em ver isso em seus olhos. Eu era suficiente e jamais me imaginei sendo isso para alguém.
Subitamente, a expressão dele se contorceu em pura agonia. Fiquei um pouco nervosa e decidi cobrar alguma atitude.
— Faça algu... — quebrei o silêncio.
— Eu te amo — ele me interrompeu, me surpreendendo em escutar essas três palavras saindo da sua boca depois que espantei, por tanto tempo, essa possibilidade para baixo do tapete. Duvidei seriamente do que meus ouvidos escutaram. Acho que eu estava levando a sério aquele negócio de namoro a ponto de ouvir coisas.
Tinho consciência de que precisava fazer algo, que precisava reagir, pedir para repetir, mas eu simplesmente travei com a possibilidade de ser real pela maneira que ele me olhava. Seu olhar agora era de libertação total depois de muita repressão, assim como vi em seus olhos no dia anterior. Já eu, fui invadida por um turbilhão de pensamentos, alguns eram positivos e demonstravam felicidade pela possibilidade em ser correspondida, outros lembravam que isso gritava perigo e que era exatamente o que eu vinha tentando evitar. Era exatamente o que faltava para a maldição se concretizar e eu queria ficar com mais receio, mas só fiquei estática. Cada sílaba roubada da minha boca, esperando ansiosamente o seu próximo passo.
Ele percorreu a distância que nos separava e deixou o corpo cair nos joelhos diante de mim. Suas mãos abraçaram meus quadris e ele encostou a lateral da cabeça na minha barriga.
Jag älskar dig så mycket — sussurrou.
Eu te amo tanto.
E tudo que eu consegui pensar foi: droga, eu passei minha vida toda esperando isso. Alguém que me amasse. Alguém não, ele. Eu esperei por ele.
Passei os dedos pelo seu cabelo e o fiz olhar meu rosto. Não podia colocar em palavras o que eu estava sentindo ao vê-lo ali, se entregando para mim depois que me entreguei. Parecia errado e certo ao mesmo tempo. Segurei suas bochechas com as palmas da mão e lá estava a cor nova na íris dele novamente.
Meu interior estava em guerra novamente. Não sabia se poderia aceitá-lo, não sabendo que podia partir seu coração no futuro. Porém, eu cheguei à conclusão egoísta de que, se fosse para partir no presente ou no futuro, eu preferia não estar mais ali para vê-lo sofrer do que fazer aquilo logo quando ele estava de joelhos diante de mim. Eu o queria, eu o amava mais do que tudo e eu corresponderia somente ao meu coração nesse segundo.
Abaixei até ficar na sua altura e selei nossos lábios, torcendo para que ele entendesse a dimensão do meu amor, porque as palavras me faltavam.
Foi o beijo mais carinhoso da nossa história até ali, sua língua agora acariciava a minha e parecia que um poderia quebrar o outro com qualquer movimento brusco. Puxei seu maxilar para cima, pedindo-o silenciosamente para ficar de pé, ele obedeceu sem separar nossas bocas. Suas mãos estavam na minha cintura e meus braços abraçavam seu pescoço. Meu coração não estava acelerado como eu esperava, ele batia calmo e finalmente em paz, talvez para combinar com todo meu corpo dormente pela sensação de ser finalmente correspondida. O senti dando passos para trás e me levando, até cairmos juntos na cama, eu por cima dele. Arranquei sua camisa de flanela molhada e joguei em qualquer lugar. Depois sua camiseta seguiu o mesmo caminho e parti o beijo para me sentar em seu quadril quando ele se ajeitou no colchão.
Fiz questão de olhar no fundo dos seus olhos, começando aquele transe familiar onde ele via minha alma, e mentalizei com toda a minha força:
Eu amo seu cheiro, seus olhos , seu cabelo , seu nariz empinado, sua boca fina, sua teimosia, sua voz, suas mãos calejadas pelas cordas dos milhares instrumentos que você toca, seu jeito quando se concentra para compor, sua calmaria, seu abraço, sua timidez e por vezes a falta dela, sua risada, seu humor ácido ou aquela sua cara irritante de desconfiança. Eu amo quando fala meu nome, quando cantarola minha música favorita, quando me pede para fazer panquecas com geleia de morango para o café da manhã, quando fala sua língua materna, quando joga o cabelo para trás ou até mesmo quando prende ele, quando coloca seus óculos escuros, quando fecha os olhos para apreciar a música, quando faz a barba de manhã, quando me chama de “cafona”, quando me vê sorrindo e também sorri, quando fica envergonhado, quando menciona com paixão Wagner, Nietzsche, KISS, Beatles ou até mesmo a Kate Bush que é sua crush famosa secreta e você acha que não sei...
Eu amo você por inteiro, pelo que você foi, pelo que você será e principalmente pelo que você é. Eu te amei desde a primeira vez que te vi usando roupas de couro com o cabelo cheio de laquê e amarei até a última memória que guardarei de você quando me for, porque eu fui feita para você assim como você foi feito para mim. Nós dois somos as duas metades de um inteiro e nosso amor viverá para sempre.
Ele apertou minha cintura, mostrando que via, que sentia. Levantei-me um pouco para desabotoar seu short e me livrar dele com a roupa de banho. Eu precisava mostrar com ações. Voltei à minha posição e o lancei um último olhar antes de fazer o que pretendia, querendo que ele me desvendasse apenas com esse singelo gesto. É claro que ele percebeu, ele era a única pessoa que me enxergava totalmente através dos meus olhos. Ele arfou sob meu olhar, em uma resposta muda de que estava pronto. Desconfiava que ele estava pronto desde quando me satisfez. E eu também queria o satisfazer, de corpo e alma. Ao posicioná-lo de modo a me invadir, eu não fui devagar, sentei sobre seus quadris de uma vez e logo em seguida comecei a me movimentar arrancando gemidos de nós dois.
Por favor, por favor... Sinta o que estou sentindo, sinta o quanto te amo, sinta tudo que abdiquei e fiz para estar aqui. Com você e por você.
Suas mãos no meu quadril faziam pressão para ir mais rápido. E, por um momento, foi como se nosso tempo juntos estivesse acabando porque me dei conta de que simplesmente ele não voltava para o ponto que nós nos conhecemos, apenas ficava a cada segundo mais escasso. Apressei meus movimentos, inundada de amor por ele que ameaçava escorrer pelos meus olhos. Eu precisava que ele sentisse o que eu estava sentindo, a dor do talvez não estar mais ali no dia seguinte, acompanhado do amor que me trouxe até aquele século e que só cresceu. Apertei minhas unhas em seu peito e o fiz me encarar de novo.
Eu te amo com todo o meu coração.
Os seus olhos pareciam estar em chamas, um calor que me abraçou e me prendeu. Minha respiração estava acelerada, meus músculos queimavam pela velocidade dos meus movimentos. Ele tinha a boca aberta para ofegar e gemer.
Eu podia magoá-lo e arruinar sua vida com a maldição que carregava, mas eu estava ali e iria ficar tudo bem.
Eu vou fazer ficar tudo bem.
... — ele gritou por mim de olhos fechados e eu apertei meu interior ao redor dele, o encurralando. Esse foi o momento que ele perdeu todo o autocontrole e ergueu as ancas para se chocar contra mim em um ritmo frenético.
Os barulhos no ambiente eram altos: o ranger da cama, o choque entre nossas carnes e nossas respirações descompassadas. Tenho certeza de que era possível nos ouvir no quarto do térreo ou até mesmo no corredor, mas não poderia me importar menos.
— Eu estou aqui, . E eu vou te amar até a morte — confessei em um suspiro antes que pudesse me conter e enquanto me entregava àquela sensação familiar de explodir em milhares de fragmentos microscópicos.
Seu corpo convulsionou embaixo de mim, ele jogou a cabeça para trás, abriu a boca para gemer e revirou os olhos enquanto me preenchia.
Desmoronei em seu peito, sem nem ao menos tirá-lo de dentro de mim. Ele beijou o topo da minha cabeça e me cercou com um abraço quentinho e protetor.
Ele me amava. O me amava.
Ele me correspondia.
Sorri com tanta felicidade que não cabia em mim.
Permiti que minha cabeça descansasse com alívio contra o peito febril dele.
— Você é tudo que eu sempre quis e nunca percebi — ele admitiu em forma de sussurro enquanto tentava restabelecer uma respiração normal e eu sorri mais ainda, me sentindo tão incrível e única que poderia chorar se tivesse forças. — Eu te amo. Eu te amo para caralho. Achei que estivesse no meu controle me apaixonar por você depois daquela primeira noite, mas eu nunca tive a mínima chance. Peço perdão por ter me comprometido em não sentir nada e ter acabado aqui, de joelhos, dizendo que te amo, mas é que... você... você é diferente de tudo que eu estou acostumado. Tudo que você faz é tão confuso e me deixa louco tentando entender, só que me faz tão feliz. Eu sou feliz vivendo a vida que você virou de cabeça para baixo, dá para acreditar? — soltou uma risadinha baixa. — Você me dá dor de cabeça com toda a sua bagunça interior, mas ao mesmo tempo me mostra que eu sou alguém digno de amar. Eu nem lembrava mais que era capaz disso, mas você me devolveu essa capacidade. O jeito que me fez sentir agora... , é como se eu carregasse o universo todinho nas minhas mãos, como se eu pudesse tudo. Nunca me senti assim com nenhuma mulher antes.
Levantei o rosto, leve como uma pluma depois da sua declaração, para encará-lo.
— Sabe por quê? — sussurrei de volta, ele negou e seus olhos brilharam em curiosidade. — Porque nenhuma delas te amou como eu amo, . Da maneira mais destrambelhada, pura e intensa que existe.
Assisti-o sorrindo o seu sorriso mais sincero e finalmente uma lágrima rolou pela minha bochecha, ele a limpou com o dedão.
— Eu nunca me achei digna de só pensar que um dia você poderia me amar, no máximo apenas que você pudesse estar atraído. Acho que um pouquinho por falta de autoestima e mais por ninguém o ter feito antes. Me surpreendi quando você disse que gostava de mim e agora de novo. — Outra lágrima rolou agora pela minha outra bochecha enquanto eu sorria e ele a limpou também. — Quero que você saiba que é meu primeiro. Por mais que você não tenha sido o primeiro beijo ou meu primeiro homem, ninguém nunca disse nada tão bonito como você diz, ninguém me respeitou do jeito que você me respeita ou me olhou do jeito que me olha. Você é o primeiro a me amar e eu vou me lembrar para sempre.
Nós ficamos alguns segundos ou minutos presos na conexão dos nossos olhos, apenas encarando um ao outro. Ele sorria enquanto acariciava meu rosto com o mesmo dedão que usou para limpar minhas lágrimas.
? — ele me chamou depois de um tempo. Assenti para mostrar que estava ouvindo. — Então me deixe... — ele acariciou minha bochecha. — Me deixe te compensar e te amar como homem algum jamais amou.
E eu deixei.

Capítulo 25 - Time After Time

A cortina do quarto foi puxada e o sol invadiu meus olhos através das pálpebras. Grunhi.
— Lilly, eu juro que dessa vez vou te mat... — resmunguei.
— Sou eu, baby me interrompeu.
Abri os olhos, sem enxergá-lo porque a claridade vinha das suas costas com tudo, transformando-o em apenas uma silhueta. Ele se sentou na beirada da cama, puxando, sem querer, o pouco do lençol que me cobria e me lembrando que eu estava pelada. Levantei e puxei o lençol de volta, me tapando.
Ele sorriu, provavelmente pensando que já vira tudo que tinha ali embaixo com detalhes depois da noite anterior e que eu era uma tola por não me dar conta daquilo.
— Trouxe seu favorito, foi um pouco difícil de fazê-los me entenderem, mas acho que deu certo. — Pegou a bandeja de café-da-manhã que estava na mesa de cabeceira e colocou em cima de mim.
Não acreditava que ele tinha me trazido café na cama. Nem conseguia imaginá-lo tentando falar em português com a cozinha.
Olhei o que tinha na bandeja.
— Achocolatado e pão tostado com queijo — falei, incrédula. — Como é que você pediu isso, ?
— Eu tentei sozinho no começo. A recepcionista, que estava tomando café lá dentro, acabou ficando com pena de mim e resolveu ajudar. Disse até que já havia ajudado minha namorada — soltou uma risadinha ao falar a última palavra.
Eu tinha falado para ela que éramos melhores amigos. Enrubesci. Ele devia achar que falei que éramos namorados.
— Eu não disse... — deixei a frase morrer no ar.
— Coma — ele mandou, sorrindo.
Alcancei o pão com uma mão enquanto a outra segurava o lençol para não correr o risco de mostrar algo. Relembrar o que aconteceu estava deixando cada centímetro da minha pele vermelha, ele disse que me amava. Céus, ele me amava. E eu gostei de ouvir aquilo. Não era para ele me amar. Era para ser indolor, se eu precisasse ir embora. Espera. “Se”? Então eu tinha mesmo planos de ficar? Lembrar das palavras da maldição incrustradas no meu cérebro me deixou meio enjoada.
— O que foi? — ele perguntou enquanto me fitava.
— Nada — respondi rápido demais.
Ele me olhou com aquela cara irritante de desconfiança. Joguei um travesseiro na sua cara e deixei cair o lençol. Não demorei um segundo inteiro para pegar de volta, mas claro que ele viu e estava me olhando com malícia.
— Você é um safado — resmunguei, dando um gole no leite.
— E você gosta — respondeu com um sorriso, se sentando ao meu lado.
Ele alcançou o controle da TV e ligou-a. Um grupo de jovens apareceu na tela e a legenda do programa indicava que era uma manifestação em São Paulo capital. Alguns jovens foram selecionados para falar mais sobre o que acontecia, aparentemente se tratava de insatisfação com o governo Collor. Uma jovem de cabelo pintado de vermelho e com o lápis de olho borrado começou a reclamar do atual presidente e da falta de incentivo à cultura. Eu conheceria aquele cabelo vermelho com a raiz castanha escura em qualquer época.
— Mãe? — perguntei, assustada.
Só me toquei do que tinha feito quando vi o homem ao meu lado virar todo o tronco para me encarar.
— É a sua mãe? — ele perguntou, meio incrédulo.
— Ahm...
Talvez não tivesse piadinha que pudesse me salvar. Bem que eu queria que tivesse. Ela falava enquanto um banner indicava seu nome: Rosane Luz. Nós tínhamos o mesmo sobrenome, então não dava para falar que era outra pessoa desconhecida.
— É a prima de segundo grau da minha mãe — inventei.
Ele repetiu a mesma cara de minutos atrás.
— Vocês parecem até irmãs! — ele comentou, observando as feições da minha mãe.
Droga. Fazia tempo que não cometia um deslize daqueles. Era por isso que ficar tão perto de São Paulo me causava nervoso.
— É que eu pareço muito com minha mãe e ela também. São as características da família — inventei de novo.
A câmera virou para um jovem de cabelo preto e óculos tartaruga fundo de garrafa. Ele ainda não tinha feito a cirurgia para correção de grau, sabia disso porque meu pai só tinha parado de precisar de óculos e lentes de contato em 2005. O meu pai. Eles tinham mentido para mim dizendo que ainda não namoravam em 1990. O banner apareceu com as letras: Roberto . A menina — que era minha mãe — o abraçou por trás enquanto falava utilizando gírias da época e me deixando de cabelo em pé pela infeliz coincidência.
— Seu sobrenome deve ser bem popular por aqui — ele comentou, estranhando.
— É. Recebemos muitos imigrantes europeus há um tempão — falei, entredentes.
Não acredito que eles tinham mentido sobre a data que começaram a namorar. Se um dia eu os visse de novo, com certeza iria cobrar sobre aquele ali.
Meus pais tinham quase a mesma idade que eu e estavam na TV. Minha pele tinha evoluído de quente pela vergonha para gelada feito neve. Peguei o controle de sua mão e desliguei o aparelho. Foi meio mal-educado da minha parte, mas não pude suportar olhar meus pais e perceber que eles eram mais novos que eu.
— Preciso tomar banho — falei, levantando e arrastando o lençol junto comigo para dentro do banheiro.
Não podia crer que encontrei meus pais antes de ter nascido. Meus olhos se encheram de lágrimas. Não percebi o quanto sentia saudades de ouvir suas vozes até aquele momento. Eu realmente parecia muito com minha mãe. A gente tinha a mesma cor de cabelo, mas ela nunca gostou e pintava de vermelho um pouco mais escuro do que agora, os nossos olhos eram e grandes e o rosto também tinha o mesmo formato. Só o nariz era herdado do meu pai. Minha mãe em 1990 era curvilínea que nem eu, mas só tinha lembranças da sua versão esbelta porque fez algumas cirurgias plásticas nos anos 2000.
Lembrei do quanto odiava viagens em família como aquela porque sempre tinha uma pessoa com câmera filmando ou tirando fotos sem permissão de mim, dos meus pais e dos meus avós. As fotos e filmagens eram para ser recordações, tipo o que gravo com a filmadora do Börje para que eles vejam o quanto fomos felizes e queiram guardar. Já o que faziam com minha família saía nas revistas e na TV, provavelmente para lançar uma fofoca qualquer. Eu quase não tinha tempo com meus pais e eles ainda estragavam o pouco que me restava.
Tomei banho em silêncio, lembrando da minha infância e da adolescência. Eu sentia tanta falta de falar com meus pais, mesmo que por chamada de vídeo. Eles sempre me perguntavam como estava a faculdade e se estava saindo com alguém, mesmo que eu sempre respondesse que preferia a paixão platônica.
Eu tinha conhecido alguém, pai e mãe, e ontem mesmo ele disse que me amava, pensei.
Queria poder levá-lo em casa e ouvir minha mãe falar que ele era muito alto para mim, impressionar meu pai com as músicas que ele mesmo fazia, conseguia até mesmo ouvi-lo falar com meus pais sobre livros e música durante o almoço de domingo. Ele nunca poderia dormir no meu quarto, suas pernas ficariam fora da cama, eu faria piadinha sobre ela ser pequena demais para abrigar “um viking” e ele me chamaria de cafona por isso. Seria tão bom apresentar meus pais aos , Karin podia cozinhar as comidas típicas que amava fazer, meu pai alugaria Börje por um bom tempo porque ele adorava conversar com outro homem da mesma idade, minha mãe falaria da beleza de Lilly e sobre a timidez de Andreas.
Provavelmente, se estivesse vivo em 2019 e eu o levasse em casa, receberia um sermão por namorar um cara tão mais velho, ainda mais um músico. Eles falariam que fui fazer faculdade fora do país só para ficar perto dele, que mora na Suécia, ou que largaria os estudos para virar groupie. Era a cara principalmente da minha mãe, meu pai só seguia o barco. Eu gostaria, apesar de tudo. O amaria do mesmo jeitinho que amo agora. Adoraria chegar nos lugares com uma versão sua de mais de 50 anos e exibi-lo para todos como mérito por ele estar ali agora.
Queria poder fundir minha vida do século 21 com a do século 20. Queria não ter que escolher entre um e outro.
Saí do banheiro com uma toalha enrolada no corpo e outra na cabeça. Me assustei ao ver Lilly, que estava sentada na cama.
— Meu pai o chamou — comentou antes que eu pudesse questionar. Procurei alguma roupa para vestir na mala. — Como foi ontem? — perguntou, nas minhas costas.
Pesquei algumas peças e me virei para ela. Me sentia sensível demais pelo que aconteceu entre nós dois e por ter visto meus pais na televisão, mas formulei uma resposta:
— Ah, Lilly... — falei com um sorriso bobo no rosto, me esquecendo do episódio da televisão e relembrando o dia anterior. — Foi incrível. Sério. O seu irmão me fez sentir tão especial que eu estou nas nuvens até agora.
Ela sorriu a ponto de mostrar todos os dentes.
— Eu bem sabia que seria bom deixar vocês terem privacidade por uma noite depois de se acertarem. E, olha só, você nem está fugindo! Temos um avanço.
Ouvi minha risada feliz ecoar pelo quarto.
— Aliás, você e Andreas são bem engraçadinhos, né? Tem muito cara de ideia sua mesmo.
— Dessa vez, não. Por incrível que pareça — ela riu. — Ele que me pediu para dormir lá para que a gente pudesse continuar com o baralho e de quebra deixar o quarto para vocês. Eu só respondi: que ideia ótima, querido irmão do meio.
— Quando eu o encontrar, vou torcer o pescoço daquele moleque e ainda fazê-lo abaixar para eu alcançar — falei, entrando no banheiro de novo, mas sem fechar a porta.
— Não acredito que hoje é o nosso último dia aqui — a ouvi resmungar do quarto. — Queria morar nesse lugar e nunca mais voltar para a escola.
— Até parece, você ama a escola — falei, enfiando a camiseta pela cabeça.
— Ultimamente ando odiando a escola.
Ela não ama ir para a escola e encontrar aquele garoto que vivia falando?
— Por quê? — perguntei, curiosa.
— Não tenho mais motivos para gostar e de quebra ainda tenho que ver a cara do Gunnar por horas.
Saí do banheiro após me vestir. Até onde eu sabia ela e aquele garoto tinham acabado de se beijar.
— Ele está namorando uma garota mais velha — explicou. — Aparentemente, ela dá para ele, por isso é melhor do que eu.
Encarei-a com pesar. Desilusão amorosa na adolescência doía muito, os hormônios se encarregavam disso. Ela fitava os próprios pés, pensativa e triste. Era nesses momentos que pensava que, se eu pudesse largar tudo para afastar Lilly de toda a feiura do mundo, eu faria sem nem pensar duas vezes. Decepção não combinava com seu rosto lindo.
— Ele queria que eu fizesse, mas falei que não conseguia agora, talvez quando tivéssemos mais tempo juntos. Fui burra, eu cresci com três homens, sei que eles não esperam merda nenhuma.
Sentei-me ao lado dela, surpresa com o rumo que a história da paixonite dela tinha tomado.
— Você não foi burra. Ele que é um canalha escroto — xinguei, ela me olhou com os olhos cheio de lágrimas e soltou uma risadinha. Passei a mão no seu cabelo . — Lembra que te falei que tem que ser com a pessoa certa?
Ela anuiu.
— Então, comigo não foi. Na verdade, me forcei a fazer isso com alguns caras até perceber que eu só precisava fazer se encontrasse alguém que me fizesse querer mesmo. Não porque escutava meus pais me cobrando um namorado ou minhas amigas pressionando para me apaixonar por alguém real, que não tivesse fãs espalhadas mundo afora — sorri com tristeza. — Se você não encontrar alguém que te faça se sentir a mulher mais incrível, assim como estou me sentindo agora, nem vale a pena. Lembre-se sempre disso.
Ela me abraçou e sua bochecha molhou meu ombro. Retribuí o abraço. Era bom aconselhá-la, mesmo eu não sabendo o que diabos estava fazendo da minha vida.
— Ele é realmente um canalha escroto — murmurou. — E baba demais enquanto beija.
Sorri, me sentindo bem por aconselhar alguém, por mais que eu guardasse uma grande bagunça interna. Ainda mais depois de escutar a declaração de e ver meus pais na TV.
— Lilly? — chamei, despistando meus pensamentos.
Ela se afastou para me olhar.
— Obrigada por ser minha irmã mais nova, sua pirralha adorável.
— Ei, eu não sou sua irmã mais nova, eu sou sua cunhada — falou com ênfase na última palavra.
Olhei-a de rabo de olho, fingindo repreensão. Depois nós duas caímos na risada.

***


Evitei ficar sozinha com durante todo o dia. Pensei que poderia ficar perto do restante da família um pouco, antes de irmos embora. Todos nós ficamos na praia, o mar não me parecia tão chamativo quanto costumava ser, então fiquei na sombra do guarda-sol junto com Börje e Karin enquanto os outros aproveitavam a água. Eles conversaram comigo praticamente o tempo todo, me impedindo de pensar demais, então me senti grata por ter companhia e não estar sozinha.
Depois de jantar, Lilly fechou sua mala e saiu do quarto, me deixando sozinha assistindo televisão. Procurei meus pais mais uma vez pelos canais, mas é claro que não achei, o protesto era pequeno e não devia ter durado muito. Algo em mim tinha esperanças de vê-los de novo, nem que fosse pela tela granulada da TV.
bateu à porta meia-noite, trazendo uma variedade considerável de comidas feitas de chocolate. Ele lembrou do que pedi, quando eu mesma nem lembrava mais. Comi um pouco de cada enquanto assistíamos Gatinhas e Gatões, já ele fingia assistir porque estava em português, mas o obriguei a prestar atenção depois que ele chamou o filme de “outra porcaria cafona”.
Eu estava no meio de suas pernas, enquanto ele estava sentado com as costas apoiadas na cabeceira de madeira, minha cabeça descansava no seu peito. Ri em várias partes do e isso me causou uma nostalgia. A Lara Jean pedia para o Peter Kavinsky assistir ao filme no contrato de Para Todos os Garotos que Já Amei e esse era um dos meus filmes favoritos, em memória à minha paixonite pelo Noah Centineo. Olhei para , com receio que me perguntasse qual o motivo da minha risada, mas ele dormia serenamente. Logo ele, que sofria com insônia, estava dormindo a ponto de não acordar com minha risada. Virei de volta para a televisão e continuei assistindo em silêncio, sem interromper seu sono.
Lilly abriu a porta com tudo e gesticulei exageradamente na mesma hora para ela sair, ela botou a palma da mão na boca e fechou-a.
Geralmente eu dormia muito e meu sono era pesado, só de manhã que barulhos ou o sol começavam a me incomodar. Porém, aquela madrugada parecia ser minha vez de ficar acordada enquanto ele dormia. Isso porque estava começando a ficar mais incomodada com a minha decisão de ficar. Não podia perder a razão por causa de um futuro incerto quando eu tinha a minha realidade para voltar, mas eu poderia escolher ficar e amá-lo até 2004, podia fazê-lo tomar seus remédios, levá-lo ao médico com frequência e repetir exames, quando ele passasse mal, eu estaria lá para chamar a ambulância. Tinha que pensar também que ele podia não me querer por perto em algum ponto desses quatorze anos, ele nem parecia querer alguém fixo agora...
Por que estava fantasiando em ser a parceira dele? Que seja, eu seria a amiga de novo, contanto que no dia de sua morte eu estivesse por perto ou alertasse alguém mais perto da data.
Suspirei.
O que eu faria?
Deixá-lo ali para voltar a viver em 2019 parecia tortura depois de escutá-lo dizer que me amava e o quanto amava. Eu amo meus pais, minha avó, Shandi e Lemmy, mais do que sou capaz de mensurar. Porém, eu mereço ser feliz e fazer o homem da minha vida feliz também. Entre voltar e visualizá-lo sofrendo por minha causa ou de ficar e fazê-lo tomar seus remédios até 2004, eu preferia muito mais a segunda opção com certo peso na consciência. Meus pais não se lembrariam, pelo que eu entendi, não podia haver duas de mim, então eu nunca nasceria, se escolhesse continuar vivendo em 1990; em suma, a única pessoa a sofrer seria eu. Ao contrário de se eu fosse embora, então sofreria eu, ele, Lilly...
Por mais que eu vá sofrer depois que ele morrer e não possa voltar para meu século, ele não sofreria.
Tudo seria mais fácil se eu pudesse voltar para 2019 mais uma vez, trazer a cura para ele e me despedir uma única vez daqueles que eu amo. Porém, como eu poderia voltar para 1990 de novo?
Tinha que ter uma resposta nos livros. O Google não poderia ser a primeira ferramenta sabe-tudo da humanidade. Antes, a gente fazia dever de casa com enciclopédias, então a biblioteca tinha que ter a resposta que procurava.
Divaguei por um tempo, tentei me lembrar se havia visto algo naquele site, mas lembrava que não tinha muito conteúdo.
Quando estava começando a amanhecer, finalmente adormeci.

Capítulo 26 - You’re gonna break my heart again

Era bem cedo quando Lilly veio bater na porta para começar a arrumar tudo. saiu do quarto reclamando sobre estar velho demais para dormir envergado.
Despedi-me da moça gentil da recepção — em inglês e ao lado de —, deixando claro o quanto estava agradecida por ter ajudado meu melhor amigo com a cozinha. Não queria que ele pensasse que eu estava nos considerando namorados devido aos acontecimentos recentes. Ainda achava que ele poderia ver outras mulheres porque realmente não tínhamos definido nada. Talvez eu estivesse pensando aquilo por ter medo que ficar sério o afugentasse, mas me parecia o mais sensato a se pensar naquele momento.
Passamos por todo o processo de voltar para casa durante as dezesseis horas seguintes. Quando pousamos em Estocolmo, eu, Lilly e compartilhamos um táxi para ir para a minha casa. Porém, eles concluíram que me deixariam sozinha a partir dali e só passariam lá para recolher os pertences.
Não tinha certeza se estava pronta para ficar sozinha com meus pensamentos, então quase implorei para ele ficar, mas ele disse que estava fazendo aquilo porque precisava compor — o que era estranho porque ele costumava escrever na minha casa e com muito afinco. Eu não sabia o que ele precisava tão desesperadamente compor, sendo que o disco novo — o que lançaria ano seguinte —, estava pronto e seu próximo álbum seria apenas em 1994.
Não sabia se ele queria esconder que ia se encontrar com outra, mas não queria segredos entre nós, mesmo aquele. Por isso, quando desci com ele para vê-lo entrando no carro, lembrei-o:
— Nós ainda podemos ver outras pessoas. Você é um homem livre, . Não se sinta preso a mim.
Ele não respondeu ou demonstrou emoção alguma, mostrando que isso o tinha atingido. Apenas deu partida no carro para ir buscar Solveig e me deixou lá sem saber o que, de fato, o incomodou. Respirei fundo para despistar a vontade de criar caso por aquilo, ainda mais depois de dar o sinal verde.
Os próximos dias foram tediosos. Consegui pegar os livros da lista que escondi no escritório. A produtora estava a todo vapor e eu não tinha tempo nem para almoçar direito, quem dirá para ler os livros no horário de trabalho. vinha trabalhando muito no estúdio em Vällingby, por isso não aparecia no escritório da produtora para pegar suas próprias correspondências há dias, então elas estavam acumulando a ponto de não caber na minha mesa e joguei-as no chão para acumular mais. Ele me ligava pela noite, mas não conversávamos muito porque ele dizia que precisava trabalhar e eu aceitava porque queria ler.
Todo o tempo livre que tive, me dediquei aos livros. Li tanta coisa absurda sobre viagem no tempo que comecei a me questionar se realmente tinha vindo de 2019 ou se estava em coma o tempo todo. Porém, consegui encontrar algumas informações úteis em um livro velho de 1890 que me causou muita alergia.
Descobri que tive contato com um dos guardiões do portal da viagem no tempo — que era Solveig, o elefante do zoológico que fornecia desejos. Ele sabia que eu precisava viajar no tempo para concluir meu propósito e por isso que me concedeu a chave: o site. Como eu sabia que era Solveig? O livro falava que as divindades ou guardiões vêm para a Terra em forma de animais e, para mim, ele apareceu em forma de elefante. Não sei se ele tinha feito outras pessoas viajarem no tempo, mas ele era uma das raras criaturas que tinha esse poder e, aliado ao poder de conceder outros desejos, tornava-se muito poderoso e extremamente sábio. Ou seja, dentro do elefante, tinha uma criatura racional que sabia muito bem o que estava fazendo e que se infiltrava na sua cabeça de uma forma nada convencional. Doideira, não é? Ele sabia do meu futuro, não importa qual realidade eu escolhesse e sempre tinha a melhor decisão para mim. Era de deixar o queixo caído.
Acreditei na veracidade do livro ao ver as partes da maldição que eu conhecia, além da hipótese de Solveig ser meu guardião porque, de fato, ele era um animal com uma certa fama. Aparentemente, se eu decidisse voltar para o meu tempo, poderia não ter a chance de viajar no tempo de novo. Porém, havia um capítulo sobre o que fazer, que talvez me fizesse voltar, que eu não lera ainda.
Liguei para Tiago nesse meio tempo porque me senti solitária, Lilly andava saindo com algumas amigas da escola e resolvi não me meter na vida dela para cobrar atenção. Ele me disse que estava concentrado na nova banda que Fernando montou, justamente a banda que eu gostava tanto no meu tempo. Perguntou também se poderia passar meu número para o Marko porque ele viria para a Suécia distribuir a demo da banda dele e falei que não havia problema. Marko ligou no dia seguinte, me avisando das datas, e agradecendo, porque ofereci meu quarto de hóspedes.
Os não comemoravam o Natal porque era um feriado cristão e eles não eram, mas se reuniram dia 29 por causa do meu aniversário de 26 anos e decoraram a sala para me fazer lembrar do Natal. Karin fez um jantar com peru e um bolo gigante, eles empilharam presentes ao lado da lareira acesa com direito a meias para cada integrante da família e tudo. Parecia um sonho. Só poderia dizer que fiquei emocionada e não foi pouco.
Eu estava na cozinha, ajudando Karin com a louça, quando chegou depois de perder todo o jantar. Ele fedia a bebida e cigarro quando me abraçou. Desejou feliz aniversário e me entregou um presente, mas fiquei com tanta raiva por ele não estar ali com a gente que nem abri — deixei ao lado da minha bolsa junto com a sacola dos outros objetos que ganhei e que haviam sido abertos. Ele subiu as escadas e sumiu no andar de cima, então não me senti na obrigação de me despedir. Aquela era a primeira vez que nos víamos desde a viagem — que tinha sido nos primeiros dias do mês.
Peguei tudo para ir embora, mas a nevasca me impediu. Börje disse que não era seguro e provavelmente não haveria táxis rodando, porque a polícia não permitia durante o mau tempo. Geralmente, uma nevasca poderia durar apenas três horas, então me sentei no sofá e fiquei assistindo TV com Andreas e Lilly, mas meu nervosismo era tão grande por estar lá em cima e mal ter falado comigo depois de semanas sem nos ver, que me impediu de prestar atenção.
Às onze da noite, minha pressão despencou, minha pele ficou pegajosa e andei a passos lentos até o banheiro, evitando desmaiar no meio do percurso. Meu rosto estava verde, um verde muito nojento, que me fez vomitar o jantar inteiro. Já vomitei por causa de ansiedade algumas vezes na vida, mas nunca me senti tão abatida por isso quanto naquele momento. Foi avassalador, me deixou realmente muito mal. Lavei o rosto, tentando recuperar minha pressão habitual e abri a porta, Lilly estava lá, segurando uma escova de dente — o que mostrava que tinha me escutado, apesar da minha tentativa em fazer o mínimo de barulho possível.
Ela subiu as escadas comigo, mesmo eu falando que não estava tão ruim a ponto de ser segurada. Pediu para que me deitasse em sua cama, e obedeci, porque realmente estava me sentindo mal por ter vomitado todo o jantar que fizeram para o meu aniversário, e ela acariciou meu cabelo.
— Você tem um cabelo muito bonito, — ela disse enquanto o colocava sobre seu colo.
— Obrigada — respondi com um sorriso tímido e triste.
— Não fica triste. Eu sei o quanto vomitar é ruim, mas passou — ela disse com um sorriso cuidadoso. — Você está se sentindo melhor, certo?
— Não me sinto muito confortável ainda, até porque vomitei todo o jantar que Karin fez para mim — murmurei, admirando sua beleza. Lilly era tão linda e, preocupada comigo, dava vontade de colocá-la em um potinho.
— Tenho certeza de que ela não se incomodaria de fazer outro — ela riu. — A Karin te mima demais! Ela te adora. Por mais que tenha sido sugestão do meu pai fazer uma espécie de Natal para o seu aniversário, ela que preparou quase tudo sozinha.
— Eles são adoráveis, e você também, por se preocuparem comigo — falei, mirando seus olhos azuis.
— Eu sei que a gente não tem estado muito próxima desde o dia que chegamos de viagem e que estou te devendo algumas ligações, mas eu estou aqui para o que precisar, está bem? Mesmo que eu esteja passando tempo com minhas amigas, você pode sempre me bipar e eu dou um jeito de retornar.
— Eu sei, e obrigada por estar disponível para mim — falei em um tom mais melancólico do que gostaria. — Eu também sempre estarei disponível para você, Lilly. Você é minha única amiga por aqui.
Agora foi ela que sorriu um meio sorriso. O silêncio se instaurou por alguns segundos enquanto continuava acariciando meu cabelo.
— O que está te deixando triste, ? Não é possível que você esteja assim porque o jantar te fez mal. — Ela tinha o cenho franzido e os mesmos vincos na testa que todos os .
— É que... — suspirei. Nada passava despercebido por ela. — Seu irmão mal falou comigo — comentei, preferindo encarar o teto. — Na porra do dia do meu aniversário.
Ela também suspirou.
— Ele é um otário.
— E ele ainda teve a cara de pau de dizer que me amava na viagem. Deve usar isso com todas — senti o gosto amargo das palavras assim que as proferi, como se estivesse traindo aquele momento por falar aquilo. Eu não me importava.
Ela arregalou os olhos. Ignorei, porque não era esse o ponto, eu estava repentinamente muito brava.
— Sabe que depois que chegou aqui ele só trabalhou, não marcou de me encontrar uma vez? Nem mesmo na produtora ele apareceu! Aí, depois de semanas, ele me vê, me abraça e deseja feliz aniversário.. Nem um beijo sequer.
— Ele disse que te amava? Por que não me contou isso?
— Acho que ele está mesmo com outra e não quer me falar — ignorei-a de novo.
— Ei — censurou. Olhei para ela. — Calma. Presta atenção — ela pediu. — Ele me fez jurar que não ia te contar, mas vou ter que falar, porque não me aguento. O coração dele não vai bem. Ele anda fazendo alguns exames para saber o que pode ser feito, mas nada ainda.
Sentei-me no colchão. Ela falou exatamente igual ao Börje em uma entrevista sobre a morte de e isso me chamou atenção. Ele disse que falou com ao telefone e ouviu que não estava muito bem, que o coração doía e estava fazendo exames. Todos os alarmes ativaram dentro de mim e minha pressão caiu de novo, fazendo o quarto girar. Jesus, que sensação é essa? Eu nunca tive problema com queda de pressão.
? Está tudo bem? Você está verde — ela disse. Olhei minhas mãos e lá estava aquela cor horrorosa de vitamina de abacate muito diluída de novo, corri desajeitadamente para o banheiro dela e vomitei mais, sem pensar muito. Senti que ela segurou meu cabelo no processo. Eu nem sabia que tinha mais o que vomitar, mas saiu.
Quando terminei, ela me ajudou a levantar e escovei os dentes com a mesma escova que me deu mais cedo.
— Definitivamente a comida não te fez muito bem — ela comentou, me ajudando a voltar para o quarto.
— Preciso falar com ele — murmurei.
Preciso saber o que está acontecendo, completei mentalmente.
— Não é melhor deixar para depois? Você não parece muito bem e ele vai querer me matar por te contado.
— Eu consigo — falei, decidida. Ela passou reto pelo quarto e me acompanhou até o corredor. Me observou para garantir que não ia acontecer nada no meio do caminho.
Ele estava no mesmo quarto que tomamos banho quando bebeu demais.
Que ironia.
Bati e o ouvi pedindo para abrir. Ele estava deitado no escuro com o rádio ligado, resmungou quando acendi a luz. Fechei a porta atrás de mim. Calculei muito o que falar para não mostrar que sabia e prejudicar sua irmã.
— Por que você está bebendo? — perguntei quando parei ao pé da cama, indo direto ao assunto.
— Ah, é você — falou, como se estivesse esperando outra pessoa.
— Por quê? — insisti.
— Saí com uns amigos — ele comentou como se não fosse grande coisa e me incomodou profundamente.
, você não bebe mais assim, a ponto de cheirar longe a bebida. O que está acontecendo? — falei com calma, querendo estabelecer um diálogo antes de sair esbravejando e correr o risco de brigarmos feio.
— Agora você me chama de de novo? — falou com cinismo.
Realmente tinha um tempo que não o chamava de sem ser nos meus pensamentos. Porém, eu estava com raiva dele e ainda meio enjoada.
— Sim, mas posso começar a te chamar de babaca se não começar a falar — deixei sair sem nem pensar muito e me arrependendo um pouco em seguida. Porém, se ele poderia ser cínico, eu poderia ser grossa.
Bufou.
— Não vou rebater e arriscar começar uma briga só porque é seu aniversário. — Sentou-se na cama e mudou de estação ao começar Cry so easy do Erasure. Ele ter mudado só me fez ficar fervendo de ódio porque ele sabia o quanto Erasure e aquele álbum significavam para mim.
— Então você lembra que hoje é meu aniversário? — fingi uma falsa surpresa. — Depois de perder o jantar inteiro, me abraçar e correr para o quarto?
Ele não respondeu, ficou olhando para o carpete.
— Você sequer me beijou — comentei com a voz embargada.
— É esse o problema? — ele perguntou, levantando-se e vindo na minha direção.
Sua boca alcançou a minha e eu o empurrei. Quem ele pensava que era para me beijar? Ele perdeu todo o direito que tinha quando só me abraçou lá embaixo.
— Para. Quero saber o motivo disso tudo — falei, com a mão espalmada no seu peito. — Você, além de ter problema com bebida, toma remédios — lembrei-o com a feição séria.
Ele passou as duas mãos pelo cabelo, impaciente.
— Não estou com cabeça para isso — resmungou e se distanciou.
Não pensei que as próximas palavras sairiam da minha boca até elas saírem:
— Você está com outra, não é? Por isso não quer falar e ficar comigo.
Ele soltou uma risada sarcástica que cortou o ar e partiu meu coração ao meio feito uma navalha afiada demais.
— E desde quando você se importa com isso? Não falou aquele dia que sou um homem livre? — ele perguntou e agora o sarcasmo pingava da sua voz, mostrando que ele realmente achou ruim minha escolha de palavras aquele dia.
— Falei aquilo porque você parecia estar escondendo algo indo embora daquele jeito. Não quero que me esconda nada — revelei, tentando apaziguar o clima. Não funcionou muito, no entanto.
— Aí você simplesmente deduziu que eu estava indo comer outra mulher menos de 72 horas depois de falar que te amava — adivinhou, seus olhos estavam escuros e seu tom era mais frio do que a neve lá fora. Eu me arrependi de ter tocado naquele assunto a cada segundo que a conversa se sustentava.
— Sim — eu disse, desviando o olhar, derrotada. — Não quero que ache que está me traindo.
— Mas estaria te traindo, a gente está junto. , eu te amo, porra! — esbravejou, como se fosse óbvio. — Como eu poderia ficar com outra mulher depois de tudo o que a gente viveu aquela noite?
— Não, não estamos juntos. A gente nem conversou sobre isso. Era só uma tentativa o que aconteceu na praia, você pode pular fora quando quiser — falei com medo de que isso, de alguma forma, ficasse no meio e me impedisse de ficar perto dele no futuro.
Ele prendeu a boca em uma linha fina, mostrando que o machuquei com aquela frase. Uma lágrima rolou pela sua bochecha — e eu arfei em surpresa ao enxergá-la manchando seu rosto. Me senti a pessoa mais cruel do mundo. Eu só queria que ele percebesse que não tinha problema estar com outra mulher, apenas que não queria que me escondesse nada, nem aquilo e nem o problema no coração.
— Por favor, saia — pediu, virando o rosto para encarar a cortina creme.
— Eu não... — comecei a tentar me explicar.
Por favor — me interrompeu, com a voz embargada.
Queria muito abraçá-lo e deixar com que chorasse em mim enquanto eu mesma chorava por não ter me explicado direito, por só querer saber o que tinha de errado, por ele não ter falado sobre o coração.
Mas só deixei o quarto chorando silenciosamente. Desci as escadas e limpei o rosto ao ver que Andreas ainda estava ali. Peguei minha bolsa e a sacola com os presentes, inclusive o dele, que ainda estava fechado.
— Se a Lilly perguntar por mim, avisa que vou ligar — murmurei, vestindo todo o meu aparato de inverno que estava no cabideiro.
Vi nos olhos dele que sabia que eu não estava bem, mas apenas se limitou em concordar com a cabeça.
Saí em direção à neve, sem ligar se a nevasca tinha acabado ou não.
Eu só precisava sair dali o mais rápido possível.

***


Depois do ocorrido, entrei em uma maré de tristeza e ansiedade tão grande que não me permitia comer nada, apenas vomitar esporadicamente ao longo do dia. A família toda viajou para Malmö no Ano Novo, Börje me convidou no escritório para ir e depois Karin ligou para reiterar, mas Lilly já sabia do que tinha acontecido e pediu para não insistirem. Aluguei as fitas cassetes de Gatinhas e Gatões, Dirty Dancing e Grease para não passar a virada de ano sozinha.
Ele não me ligou nem para me pedir para ficar com Solveig.
Não conseguia entender, tinha que ter algum motivo. Por que ele não me contou sobre a saúde na época que falávamos todos os dias ao telefone? Ele falava sobre o estúdio, sobre estar compondo novas músicas com um estilo diferente, até os lugares novos que tinha ido com o cachorro, mas nunca sobre a saúde.
E, assim, de pijama vermelho com estampa natalina, pantufas de rena e a Sandy em Grease cantando Hopelessly Devoted To You no vídeo cassete, o ano se tornou 1991. Tentei pensar diferente sobre o tempo estar passando, mas não funcionava assim quando você sabia o dia que a pessoa que amava iria morrer. Provavelmente ele não apareceria para falar comigo nem como fantasma depois da nossa briga.
Li o capítulo sobre regressar ao próprio tempo durante o mês de janeiro, aparentemente eu só precisava escrever na folha anexa o meu próprio nome e o ano. O estranho é que essa folha, no final do livro, não era amarelada que nem as outras, ela era muito nova. Tive a impressão de que era como se ela me esperasse. Destaquei-a e guardei dentro do diário que ganhei de Karin, onde continha minhas informações essenciais sobre o tema. Havia relatos de pessoas que conseguiram viajar no tempo uma outra vez, mas você não tinha como escolher quantas vezes você passaria pelo portal até alcançar seu objetivo, só o guardião poderia decidir. Além disso, você teria que convencer o guardião para dar uma segunda chance. Eu nem sabia como convenci uma primeira, quem dirá uma segunda.
Marko chegou dia 25 de janeiro. Ele ficou com o quarto de hóspedes, disse não ligar para a decoração infantil. Na verdade, ele mal ficou em casa até aquele momento, me disse que estava trabalhando muito para a banda dele dar certo.
E aquela correspondência maldita ao lado da minha mesa na produtora ainda estava ali, me dando raiva toda vez que eu olhava para ela. Era uma pilha que só crescia e se espalhava mais pela sala. Pensei em ligar para e mandá-lo ter responsabilidade com seus fãs, mas sabia que ele não queria falar comigo. Então, depois do trabalho, eu deixaria tudo em sua casa. Contudo, fiquei presa no escritório esperando um distribuidor alemão ligar para falar sobre a capa do novo disco que estava em fase final de mixagem.
Eram duas da manhã quando peguei um táxi segurando um saco preto de lixo com todas as cartas e objetos que mandavam para ele. Não que as coisas fossem lixo, mas eram tantas, que foi o único tipo de saco que coube tudo. Eu planejava deixar no capacho, mas vi que não parecia ter ninguém em casa e Solveig ficou chorando por baixo da porta quando sentiu meu cheiro. Eu estava com tantas saudades daquele cachorro que pensei que não teria problema em usar a minha chave para fazer um carinho rápido.
Abri a porta, com cuidado, mas só o abajur da sala estava aceso. Aquela casa estava um verdadeiro caos. Tudo estava revirado, parecia que não via uma boa limpeza desde que saí dali. Solveig pulou em mim e fiz carinho no meio de suas orelhas. Ele pegou a vasilha de comida — como costumava fazer toda vez que alguém diferente chegava, mesmo tendo acabado de comer —, fiquei com pena e fui enchê-la. Era triste pensar que virei praticamente uma estranha para ele.
Ao colocar a vasilha no lugar certo, dei de cara com uma roupa íntima feminina. Era um fio dental de renda preta bem ali no meio do chão. Levantei-a com a ponta dos dedos até os olhos, porque na minha cabeça poderia ser minha ou de Lilly. No fundo, eu sabia que não teria chance de ser nossa porque tinha plena ciência de onde todas minhas calcinhas estavam e Lilly não andava muito por ali para sair largando roupas no chão, ela não era assim, a não ser no próprio quarto. Eu não queria acreditar, toda a nossa briga me veio à mente e simplesmente não compreendi o motivo de fazer tanta questão se estava mesmo se encontrando com outra mulher. Aquilo doeu. Foi uma dor seca e oca no âmago do meu ser. Quanto mais eu observava a pedaço de pano, mais tinha vontade de me largar no chão e me fundir a ele. Foi um turbilhão de sentimentos que me fizeram ficar tão confusa a ponto de continuar a observando incansavelmente.
Só fez sentido a quem pertencia quando a dona veio andando até a sala, desfilando com minha camiseta favorita dele e as pernas nuas. O arrepio que me subiu pela espinha foi arrebatador, mas me mantive com a postura ereta.
, você por aqui? — fingiu falsa surpresa ao me ver. — Quanto tempo, minha baixinha favorita! — sorriu perversamente, mas foi só quando abriu a boca de novo que a facada me atingiu: — me disse alguns dias atrás que você se mudou daqui. O pobrezinho estava tão carente e triste, eu tive que me dispor a consolar. Agorinha mesmo, tenho certeza de que ele nem se lembrou que estava com o coração partido por sua causa porque o fiz gritar meu nome tão alto, mas tão alto... Bem, costuma ser assim entre a gente desde que nós éramos adolescentes, mas ainda continua melhorando. Não que seja da sua conta o que acontece entre nós dois, não é mesmo? — ela sorriu de novo, como se estivesse contando uma piada. — Mas achei que você gostaria de saber.
Minhas mãos começaram a suar frio. Não tive reação quando Natalia me abraçou. Não tinha nem palavras para dizer. Estava vazia. Só sentia a dor me cortar em duas.
— Com quem você está falando? — saiu do banheiro com uma toalha presa na cintura. Seu cabelo longo estava pingando e as gotas deslizavam pela sua pele calmamente, alheias ao peso do ar no ambiente. Era muito tarde para um banho no frio que fazia, eu quis dizer, eu quis questionar, mas não saía nada. Eu olhava para ela fixamente, pensando o quão bonito e cruel um ser humano poderia ser.
Ela sabia exatamente tudo o que queria e o que tinha conseguido ao me ver daquele jeito, completamente humilhada. Natalia não era como eu, ela era poderosa, ela era uma mulher que corria atrás de cada um de seus propósitos, eu vi em seus olhos claros que eu só era mais um obstáculo na frente de um deles.
— Ops. Creio que isso seja meu — ela disse e pegou a calcinha que ainda pendia no meu indicador.
A fala de Pierre sobre eu ser muito boa para ficar no meio deles dois brotou, de repente, no meu cérebro, depois Lilly me olhando com pena antes de me contar a história deles dois. Foi só aí que me lembrei de fugir. Não lembro da reação dele, só a cara de triunfo dela que ficou gravada na minha mente. Lembro também de bater a porta para Solveig não sair atrás de mim, percorri pelo menos 1km na neve sem sentir nada, só o súbito ímpeto de correr. Quando parei para respirar, lembrei do dia que ele falou que me amava, de como eu quis mostrar para ele o que senti todo esse tempo e como me senti especial ao vê-lo confessando o que sentia, o quanto lutei comigo mesma para finalmente abraçar o seu amor.
Vomitei no meio da rua.
Não era justo.
Depois de vomitar minha alma (eu bem que queria que essa metáfora fosse verdadeira e carregasse meu coração para fora em um desses jatos), Acenei para um táxi. Eu queria tanto um celular para ligar pra Lilly, seria tão mais fácil. Malditos telefones celulares que custavam um rim em 1991. Dei o endereço da casa dos para o homem porque aquele lugar seria o menos óbvio de me achar e porque não sabia se queria encarar Marko daquele jeito.
Não queria acordar toda a família, então procurei pedrinhas debaixo da camada branca que cobria o jardim e torci para que chamassem a atenção de Lilly ao bater na janela do quarto. Depois de alguns minutos e algumas pedrinhas, ela acendeu a luz e olhou para fora. Acenei e ela correu cômodo adentro. Dois minutos depois, a porta principal foi aberta.
— O que aconteceu? — sussurrou, assustada. — Você está toda molhada!
— Posso entrar? — pedi, tentando soar normal.
Ela anuiu e me deu passagem. Ajudou-me a tirar os casacos, o cachecol, a touca, as luvas e os sapatos. Senti alívio por ser dominada pelo ar quente do aquecedor central e não mais pela neve derretida do casaco.
Pedi silêncio e indiquei o segundo andar, ela me acompanhou e fechou a porta do seu quarto quando passei.
— Estou ficando assustada. Você chega toda molhada de madrugada e completamente muda.
— Ele estava me traindo esse tempo todo — sussurrei. Uma tonelada se concentrou nos meus ombros após admitir o que vi e as lágrimas finalmente começaram a cair. — Com a Natalia, ainda por cima!
Eu sabia. Sempre soube.
— O quê? — ela se sentou na cama, eu continuei em pé no centro do tapete, provavelmente o molhando.
Comecei a soluçar de tanto chorar, mas ainda assim tentei explicar:
— Eu achei uma calcinha perto da vasilha do Solveig, achei que pudesse ser sua ou minha, achei até que pudesse ser dele — ri sem humor algum. — Eu não piso naquele apartamento há um bom tempo. Aí ela apareceu usando apenas uma camiseta dele e, Lilly, ela me disse que o estava consolando... — funguei — e depois ele saiu do banheiro, molhado, com uma toalha... como... como se eles tivessem acabado de foder.
Expliquei tudo rápido e embolado por conta do choro, mas seus olhos ficaram nublados, mostrando que ela entendera cada sílaba.
— Eu... sinto muito — ela disse, mostrando que estava sem palavras. Sentei-me na cama e ela me abraçou. — Isso é culpa minha, aquele dia você se preocupou e eu fiz pouco caso. Ainda o levei para sua casa, depois de conversar com ele sobre vocês duas. Eu confiei naquele idiota porque sabia que ele poderia te amar e ele simplesmente estragou tudo.
Senti seu corpo tremendo, indicando que ela estava chorando também. Ela não tinha culpa alguma, mas não consegui dizer nada, só continuei chorando copiosamente e assistindo minhas lágrimas molharem seu cabelo loiro por longos minutos. Devo ter dormido assim, eu andava bem sonolenta por causa da fraqueza. Quando acordei, estava deitada em sua cama e ela não estava em lugar algum.
No entanto, ouvi vozes vindas do corredor.
— Se ele aparecer de novo, não diga que ela está aqui — Lilly sussurrou.
— Ele vai descobrir, Lilly. Ele está feito maluco atrás dela, nunca o vi assim — Andreas respondeu.
— Que ele se foda. Não vou deixá-lo chegar perto dela depois de ter feito isso.
Andreas ficou em silêncio. Eu tremi sob o cobertor com culpa por ser o tópico do assunto. Não queria dar trabalho para eles, mas me sentia incapaz de ir embora e lidar sozinha com esmurrando minha porta. Eu cederia, com certeza. E não queria ceder tão fácil, mas não tinha sequer forças para lutar, por isso precisava de Lilly para lutar por mim.
— Arruma algo para ela comer, mas não conta para Karin que a viu. Finge que é para mim — instruiu. Ouvi passos ficando longe e a maçaneta sendo girada.
Não queria falar sobre nada, então fingi que estava dormindo. Ela se movimentou pelo quarto algumas vezes até Andreas bater de leve na porta. Agradeceu e ouvi a porta batendo. Uma mão fria tocou meu braço e eu abri os olhos.
— Oi — disse, com um sorriso triste. — Como você está?
— Queria dizer “bem”, mas realmente não estou me sentindo assim — murmurei.
— Se você falasse que está bem e desse aquele sorriso horrendo daquele dia de novo, aí que eu te carregaria para o hospital agora — disse, se referindo ao dia que eu soube a primeira vez que os dois não foram só amigos na infância.
Sentei-me na beira da cama e ela me entregou um prato com torradas, encarei a comida e senti enjoo. Quando me passou o copo com achocolatado, o cheiro me lembrou o dia que ele trouxe café da manhã e contou que foi ajudado pela recepcionista que conhecia sua namorada.
Pousei a louça na mesinha de cabeceira com pressa e corri para o banheiro. Vomitei bile — vinha sendo assim ultimamente, a comida me fazia querer botar tudo para fora antes mesmo de chegar à minha boca. Ela me olhou com preocupação quando apareci na porta do banheiro. Eu sentia como se o peso dos meus ossos fossem demais para carregar. Flashes da madrugada surgiram trazendo junto mais enjoo. Arrastei meus pés e deixei o meu corpo cair na cama de qualquer jeito.
— Você perdeu muito peso — observou com uma cara de dó. — Quanto tempo faz que não come direito?
— Desde aquele jantar do meu aniversário. Quando ele mudou comigo — murmurei.
Algo passou pelos seus olhos, mas logo sumiu. Minhas pálpebras estavam pesadas de tanto chorar e cansaço para me importar.
— Posso dormir só mais um pouco antes de ir para casa? — pedi. Eu realmente não queria dar trabalho e causar mais problema para eles com a Karin. Então eu só dormiria um pouquinho e depois seguiria para casa. Quando chegasse lá, eu instruiria Marko a não abrir a porta de jeito nenhum e nós ficaríamos assim até ele desistir.
É... poderia dar certo.
— Claro, meu amor — ela disse, sorrindo como se estivesse falando com uma criança. — Vou cuidar de você.

Capítulo 27 - Why Can't I Have You

Escutei gritos no andar inferior. O relógio da cabeceira indicava nove horas da noite. Eu tinha mesmo dormido por tanto tempo? Andei até o corredor para entender o que estava acontecendo. No parapeito da escada, vislumbrei Lilly gritando com o irmão mais velho, que estava sentado cabisbaixo no sofá e Andreas parecia estar guardando a escada como um companheiro fiel.
Meu peito doeu ao processar a cena.
— A nem comendo direito está desde aquele seu showzinho no aniversário dela — ela disse e passou a mão pelo cabelo, exasperada. — Por que você não contou que está se sentindo mal desde o dia que a gente chegou do Brasil, ou melhor, desde que teve que ir ver a mamãe? — gritou essa última parte. — Por que não evitou tudo isso?! Era só ter falado que seu coração está em uma fase ruim, , ela entenderia…
Andreas foi o primeiro que me viu e imediatamente ficou tenso — o que chamou a atenção do outro irmão. Vi seus olhos brilharem tristes e surpresos ao ver minha figura imóvel no segundo andar.
Ele se levantou de supetão. Seu cabelo estava preso, usava uma blusa de manga longa e gola alta preta e calça jeans clara. Me senti culpada por pensar em como ele estava bonito em um momento tenso como aquele. Lilly me olhou e depois se virou para ele.
— Você nem ouse — ameaçou com o indicador na direção do irmão mais velho. — Te proíbo a chegar perto dela.
, meu amor... — ele sussurrou e fechou os olhos com alívio e dor. — Eu te procurei por toda parte...
Ele foi ver a mãe dele naquele dia? Por que ele não pôde me contar isso?, minha mente gritou.
Eu sabia sobre a situação dela, ele tinha me dito na praia quando descobriu. Pensei que a gente pudesse passar por qualquer coisa juntos, inclusive aquilo.
A minha pressão despencou de novo, me arrastei de volta até o quarto para molhar o rosto e tentar fazer os pontos pretos sumirem da minha visão. Por que ele iria querer me contar? A amiguinha de infância deve o estar ajudando a passar por tudo. Ela está cuidando bem dele.
Ele ainda disse que estaria me traindo se tivesse outra mulher… Pousei a mão gelada na testa. Eu tinha dito que ele podia ter outra mulher, fui eu que deixei. Nunca falei nada sobre a Natalia ser minha exceção porque eles têm um passado.
Não tinha o direito de estar brava quando fui eu quem falou que não tínhamos nada.
Droga, , você fez outra bagunça.
Ainda assim, não conseguia olhá-lo sem imaginar os dois juntos. Não conseguia esquecer aquela cena grotesca que presenciei, ainda mais somada às palavras cruéis dela.
Sentei-me na tampa do vaso sanitário e meu olhar se prendeu no nada. Lilly apareceu depois de um tempo.
— Desculpa por aquilo. Esqueci que ele tem a chave, mas Andreas ficou na escada para impedir que ele subisse o tempo todo — explicou.
— É, eu vi — sorri, triste, e me sentindo um peso para eles. — Obrigada vocês dois por tudo. Seu pai e Karin não estão em casa?
— Não, eles saíram de tarde para visitar alguns amigos. Nem sonham que você está aqui.
Concordei com a cabeça. Ela tirou uma sacola de dentro do armário do banheiro e a abraçou, protegendo-a do meu olhar curioso.
— Por favor, não me mate por perguntar isso, mas você lembra quando foi o seu último período? — perguntou, receosa.
Tentei me lembrar de algo recente, mas nada veio.
— Aquela semana que achamos o apartamento, eu acho — falei, estranhando. — O que é isso que você está segurando?
— Já tem dois meses, — observou e me entregou a sacola.
Tinham três embalagens de teste de gravidez ali dentro. Gelei.
— Não... Você acha que... — falei, deixando o resto da sentença morrer. Nada na minha cabeça de novo, apenas uma casca oca.
— Só para a gente descartar e saber o que está te fazendo ter essas quedas de pressão. Posso estar errada.
Fui acometida com as lembranças dos dias de praia e que não usamos proteção porque eu tinha dito para ele que tomava pílula meses atrás. Só que eu tinha parado e nunca comentei nada... então as chances realmente existiam.
Droga.
Ela saiu do banheiro para eu poder fazer o xixi, chamei-a quando mergulhei os três testes no copinho. Pedi, mentalmente, que fosse só a ansiedade me fazendo vomitar.
Por favor, só ansiedade, repeti feito um mantra.
Depois de alguns minutos da minha vida passando pelos meus olhos, os dois riscos apareceram em todos os três. Fraquinhos, mas estavam ali. Lilly me olhou e ela tinha lágrimas nos olhos.
, caralho, você está grávida! — falou com um sorriso incrédulo no rosto e mais lágrimas nos olhos que começavam a escorrer. Depois me abraçou.
Meu Deus.
Eu.
Grávida.
Pisquei com incredulidade.
A fraqueza se esvaiu.
Minha boca estava seca.
Não, não era possível.
Eu não me via como uma mãe.
Nunca me vi.
Eu era uma viajante do tempo, eu não poderia ser mãe.
— Diz alguma coisa — ela pediu, me soltando e com o maior sorriso do mundo. — Você vai ter um bebê, garota!
— Eu não posso ter essa criança — sussurrei, o desespero tomando de conta de mim. — Eu definitivamente não posso ter um bebê.
— Por quê? — ela perguntou, o sorriso lentamente sumindo assim como seu brilho. — , você não está pensando em…
Ela deixou a frase morrer, mas eu sabia o que ela pensou. Queria dizer para ela que nem tinha me passado tal opção pela cabeça ainda, só desespero por ser quem eu era e estar naquela situação.
Eu não era capaz de sofrer mais aquilo sozinha. Não conseguia carregar tudo sem a ajuda de alguém.
Era agora.
Pensei que nunca saberia quando o momento chegaria, mas eu soube que era aquele.
Eu contaria para Lilly que vim de 2019.
Céus, eu tremia tanto que nem sabia que era possível. Finalmente, compartilharia com alguém.
— Lilly, preciso te contar uma coisa absurda. Mas você precisa ir até a minha casa comigo antes.
Ela ficou em silêncio, percebi o tanto de possibilidades que passaram pela sua cabeça. Apesar de querer muito falar algo, ela apenas concordou, por incrível que pareça. Acho que ela sentiu a seriedade no meu tom de voz.
Arrumei a bagunça que fizemos no banheiro dela e guardei as fitas dos testes dentro da bolsa junto com as caixas para ninguém desconfiar de nada.
Ela não falou nada no táxi durante o trajeto. Estalei os dedos, não sabia o que estava me deixando mais nervosa: estar grávida, contar para Lilly a verdade ou os acontecimentos da noite anterior. Senti uma vontade enorme de vomitar.

Por favor, agora não. É uma péssima hora.
Chegamos ao apartamento e o Marko não estava lá. Agradeci aos céus, eu não poderia lidar com ele. Joguei a bolsa em qualquer lugar e corri até o escritório, destranquei a gaveta da mesa e tirei o diário amarelo com glitter.
Fitei seus olhos azuis com seriedade e hesitação, meus dedos seguravam firmes o caderno. Ela estava sentada no sofá com ansiedade nos olhos.
— Preciso que você esqueça tudo que acredita um pouco — falei, ela ficou um pouco tensa, mas concordou. — Você é a única que pode saber disso, por enquanto.
Ela concordou de novo, dessa vez um pouco impaciente.
— É sério, me fala que você não vai me achar doida — pedi, colocando o caderno contra o peito.
— Eu não vou te achar doida, não depois de tudo que aconteceu agorinha. , o que tem de errado com essa criança? Olha, se você não quiser ter, eu vou te apoiar, mas…
— Eu sou uma viajante do tempo — fui direto ao ponto, cortando-a. Ela arqueou uma sobrancelha. — Nasci em 1993. Eu não fugi de casa, eu só sumi do meu apartamento. Há pouco tempo, ganhei bolsa para estudar biologia na faculdade de Birmingham, na Inglaterra. É lá que moro, no ano de 2019.
Ela franziu o cenho como se eu tivesse falado português. Então resolvi continuar falando:
— Eu me apaixonei pelo seu irmão através das músicas dele e entrevistas que tinham na internet. No futuro, todos terão acessos a computadores e celulares, mas mais na frente até os celulares acessarão a internet. A internet vai ter todas as informações que precisar, você pode até mesmo comprar itens por lá. Foi através desse meio que viajei no tempo e vim encontrá-lo... — resumi.
Ela ficou me encarando por alguns segundos que pareceram horas.
— Ok, deixe-me ver se entendi: você está dizendo que viajou de 2019 até 1990? — ela disse com cautela como se eu fosse insana, mas concordei.
— Sim, eu vim do século 21 e, Lilly, tudo é completamente diferente por lá. — Sentei-me ao lado dela.
— Se isso é verdade, por que diabos você viria parar logo em 1990? — Seus olhos azuis faiscavam, a curiosidade substituindo a incredulidade.
— Porque eu estava completamente apaixonada pelo seu irmão e dei sorte ou azar, como preferir chamar, de encontrar com uma divindade que me mandou para cá para conhecê-lo.
Contei todo o processo que me fez parar ali, adaptando para que ela entendesse melhor o quão poderosa era a internet. Aparentemente, mais poderosa do que eu considerava por ter vindo me jogar ali.
— O que não estou entendendo é que, se você ficou tão obcecada pelo , por que só não escreveu uma carta para ele como qualquer outro fã? Ele teria te respondido e vocês poderiam sair para pelo menos tomar um café, não precisava de tudo isso para encontrá-lo... — Ela pareceu refletir um instante. — É porque ele está velho demais para você?
Foi aí que eu soube que essa seria a pior parte. Tenho consciência que meu olhar se encheu de pena antes de dar a pior notícia que um irmão pode receber.
— Seu irmão morreu em 2004, Lilly. Aos trinta e oito anos — murmurei.
Lágrimas silenciosas começaram a rolar por suas bochechas segundos depois, como se ela desconfiasse minimamente do que eu falaria. Ela abaixou o tronco e colocou as mãos sobre as orelhas.
, de onde você tirou isso? — sua voz saiu fraca, como eu nunca vi. — Não tem a mínima graça.
— Wikipedia. Porém, o mundo todo ficou sabendo quando ele morreu. Ele conquistou uma fama considerável com a banda. Eu só tinha 10 anos, então só soube em 2019, quando virei fã dele.
— Acho que você está delirando por causa da fraqueza — ela respondeu, sem me olhar. Só agora ela veio se dar conta de todo o absurdo que lhe contei e a dor de ver isso era quase palpável.
— Queria estar, mas infelizmente essa é a verdade. — Me empertiguei ao seu lado, pousando o caderninho nas coxas. Eu tinha que contar tudo. — Encontrei um livro na biblioteca que me ajudou a descobrir como mais ou menos funciona, está tudo aqui, se quiser ver. Fiz algumas linhas do tempo também.
Ela corrigiu a postura e pegou o objeto da minha perna. Folheou por alguns minutos.
— Por que está me contando tudo isso agora? É mesmo verdade? É por isso que você é tão diferente da gente?
— Sim, é tudo verdade, por isso pareço diferente das pessoas da época. E estou te contando porque estou no meu limite, são tantas incertezas... Agora mesmo não sei se esse bebê vai sobreviver quando eu passar pelo portal e voltar para 2019 — revelei, me surpreendendo com a minha própria fala. Eu tinha acabado de ler sobre regressar ao passado, mas não tinha certeza do que poderia acontecer comigo durante a passagem.
Ela se sobressaltou.
— Você pretende voltar? Vai nos abandonar? — ela se desesperou, agora parecendo acreditar totalmente.
Até que foi fácil fazê-la acreditar em mim, mais fácil do que pensei. Eu sabia que trazer a morte de seu irmão à tona me daria mais crédito, por mais dolorido que tenha sido.
— Calma — pedi. — Eu pretendo passar pelo portal de novo e ir para 2019, mas se houver um jeito de voltar para salvar seu irmão. Até agora, eu só tomei essa decisão. Só que o tempo está passando, Lilly, e eu preciso ir logo, se quero ter mais chances — expliquei.
Mesmo que eu não pudesse ficar com ele pela sua escolha, eu poderia salvá-lo. Era melhor viver ali, em 1991, sabendo que ele estava vivo, do que viver em 2019 sabendo que eu o deixei morrer sem nem ao menos tentar.
— Não, . Você pode ficar aqui, tenho certeza de que ele vai ser mais feliz se te tiver até o último dia dele do que se viver para sempre... — ela pigarreou. — Digo, ter vocês dois.
— Preciso tentar — ignorei a última parte para o bem da minha sanidade.
O telefone tocou, nos assustando. Ela atendeu. Enquanto isso, fui guardar o diário de volta na gaveta e tranquei-o antes que outra pessoa soubesse da existência dele. Parecia que uma tonelada foi tirada das minhas costas depois de compartilhar minha origem com alguém daqui. Era uma sensação tão boa no meio do caos.
O que caiu por terra quando ouvi um grito. Ao voltar para sala, ela estava catatônica enquanto segurava o fone no ouvido.
— O que foi? — perguntei. Ela nem parecia ter escutado. Peguei o telefone e coloquei no meu próprio ouvido. — É a . Pode repetir?
— reconheci a voz de Dre. — passou mal e foi trazido para o hospital. Ele não está nada bem. É o coração de novo. Ele começou a sentir muita dor no peito quando chegou em casa. Não sei se ele vai...
A última frase morreu no ar, mas entendi perfeitamente que ele não sabia se o irmão sobreviveria. Antes do meu mundo ruir, agi com clareza e perguntei o nome do hospital. Anotei no bloco de notas que ficava ao pé do telefone e desliguei ao garantir que ele estava bem amparado pelos outros Forsberg que logo chegariam lá.
Precisava pensar rápido nos próximos passos.
De repente, tinha de novo a forte impressão que minha presença ali estava mexendo com a ordem das coisas. As músicas, as filmagens, a foto de Pierre…
Não podia esperar e ver se ele realmente iria morrer para só depois ir embora. Seria tarde demais. Se eu fosse logo, talvez ele pelo menos vivesse até 2004 de novo. Tinha que tentar salvá-lo de alguma forma. Sabia qual era minha missão desde o começo, então não estava triste por viajar de novo. Só precisava ser convincente o suficiente com a divindade para voltar.
Eu conseguiria.
A menina ainda estava parada feito uma estátua no meio da sala. Toquei seu ombro.
Precisava de, no mínimo, a ajuda dela para fazer aquilo funcionar.
— Lilly. Você tem que me ajudar — falei, despertando-a.
— Você disse que ele iria sobreviver até 2004. Então ele vai sair dessa, não é? — ela disse, encarando a parede.
— Queria dizer que sim, mas não tenho mais certeza de nada — suspirei. — Vou voltar hoje, não dá mais para esperar. Achei que tinha tempo para repensar minha decisão, mas agora vejo que não. Então preciso que vá até a casa dele e recolha todos os exames que achar. Até mesmo os que não são recentes. Enquanto isso, me prepararei.
Ela não se moveu.
Agora, Lilly. Por favor, corra — pedi, tentando manter minha voz tranquila.
Ela pegou sua bolsa e disparou pela porta.
Aquelas foram as 24 horas mais turbulentas da minha existência. Fui traída, descobri que estava grávida e o pai da criança estava morrendo. Minha vida realmente tinha se tornado uma maldita fanfic — era esse o preço que eu pagava por ter procurado tanto uma, até encontrar.
Toquei minha barriga que continuava do mesmo tamanho de sempre, mas agora eu sabia que tinha algo ali.
— Oi, b-bebê — falei e saiu tudo tremido, transparecendo o quanto estava aterrorizada. Pigarreei para corrigir meu tom, não poderia passar medo. — Nós dois precisamos conversar. Não sei se vou te machucar fazendo essa viagem, mas tenho que salvar o seu pai. Aquele cara que eu viajei trinta anos só para conhecer... Ele não merece morrer até ter pelo menos 90 anos e fazer muitas músicas. Se você sumir, bebê, saiba que por mais que tenha me feito ficar muito enjoada, você foi fruto de um amor lindo e que meio que te amei de um jeito estranho por alguns minutos entre descobrir sua existência e viajar no tempo. Eu amo seu pai e você é um pedacinho meu e dele, então eu devo te amar também, não é? Espero que sim, ainda não sei o que estou sentindo em relação a isso... Se você sobreviver, prometo tentar meu máximo em ser uma mãe legal e presente, ao contrário do que aconteceu comigo. Vou falar sobre o seu pai todas as noites antes de te botar para dormir, ele vai ser o viking mais legal de todas as histórias sobre vikings. A gente pode dar um jeito em qualquer ano, 1991 ou 2019. Eu não sei como funciona esse lance de maternidade, mas acho que pode ser legal ter uma companhia. Então aguenta firme, ok? Prometo te recompensar com um nome legal.
Marko entrou em casa e me encarou como se estivesse diante de uma cena constrangedora. Tirei as mãos de uma vez só da minha barriga e me forcei a sorrir.
— Marko, oi — o saudei.
— Oi. — Ele pousou as chaves que emprestei e a carteira na mesinha do telefone. — Fiquei te esperando até tarde ontem para contar que esteve aqui atrás de você duas vezes. Uma antes de dormir e na outra ele me acordou tocando a campainha que nem maluco. Nas duas vezes, o filho da puta olhou para a minha cara e simplesmente saiu, sem falar nada. Isso foi engraçado na primeira vez quando eu estava acordado, mas, quando ele me acordou daquele jeito, pensei seriamente em correr atrás e esmurrá-lo.
Parei de absorver depois do “duas vezes”.
— Que horas foi isso? — perguntei por curiosidade.
— A primeira foi umas oito da noite. A segunda foi de madrugada, quase de manhã.
Merda.
Sabia exatamente o que ele pensou ao ver Marko.
Ele entendeu tudo errado. Ainda mais depois de me ouvir falando tanto que não éramos exclusivos.
— O não é muito meu fã, não é? — ele perguntou.
— O problema não é você, ele gostou de te ver tocar aquele dia. Ele acha que você gosta de mim desde então e a gente meio que tem um lance agora.
Ele pareceu refletir por alguns segundos.
— Eu realmente te acho muito bonita, . Para falar a verdade, eu até que estava a fim de você naquela época, mas o Fernando e o Tiago disseram que era muito provável ter algo rolando entre vocês dois. Então desisti. Te respeito muito e respeito ele também, afinal a banda dele é uma das minhas inspirações para fazer música. Não quero atrapalhar.
Sorri. Ele era muito fofo, eu sabia que ele não queria nada ou nem teria o deixado ficar na minha casa, nem tinha cabeça para lidar com alguém com sentimentos por mim enquanto sofria por outro.
— Não é culpa sua. Fique tranquilo, você pode ficar quanto tempo quiser.
Ele sorriu de volta.
— Passei só para trocar de roupa e ver se dava a sorte de te pegar acordada. Tenho que sair de novo.
Concordei com a cabeça. Ele passou por mim e entrou no quarto. Recolhi algumas coisas necessárias e guardei tudo dentro de uma mochila, tomei banho e escrevi algumas instruções para Lilly. A filmadora do Börje rolou pelo colchão quando mexi na bolsa de praia, pensei em tentar ver a última fita, mas não daria tempo. Porém, eu poderia gravar uma breve mensagem para o . Ele merecia algumas explicações. Liguei-a, coloquei na prateleira do guarda-roupa que ficava mais próxima ao meu rosto e virei a lente para mim. Era um vídeo sem cortes, não queria apagar os últimos acontecimentos da fita só porque errei algo.
Oi. É a . Como dizem nos filmes: se você está vendo isso, é porque provavelmente eu morri. No caso, eu só sumi. É... Eu sou uma viajante do tempo. Não menti quando falei que fugi de casa. Só que minha casa é em Birmingham, na Inglaterra, onde faço faculdade de Biologia, em 2019. Eu nasci somente em 1993, daqui a dois anos, mas isso não me impediu de me apaixonar. Me apaixonei por você por causa da sua música, de entrevistas gravadas e, bem, porque você é simplesmente incrível. Eu fiquei fissurada em você, queria um meio de estabelecer contato para aliviar toda a paixão que estava entalada em mim e acabei, sem querer, entrando em contato com um guardião do portal da viagem no tempo. Seu pai me encontrou de pijama e pantufas de rena em Portugal aquele dia, assim que eu tinha acabado de chegar, e Tiago me ajudou a chegar até aquele lugar. Por isso precisei das suas roupas. Espero que agora tudo que aconteceu faça sentido na sua cabeça, aposto que tinha algumas lacunas a serem preenchidas desde aquele dia.
“Por que precisei voltar tanto no tempo para te encontrar? Infelizmente, você morreu muito novo e eu nunca aceitei isso. Ainda não aceito, por isso estou voltando para 2019, achando que consigo te salvar. Não posso esperar para ver se você vai sair do hospital, porque acho que talvez eu esteja interferindo na ordem dos acontecimentos com minha presença e você não sobreviva. Então, preciso pelo menos sair de 1991 agora para que você aguente um pouco mais, pelo menos até o ano que morreu na ordem natural. Talvez a gente se veja de novo, se eu conseguir convencer o guardião a me deixar mais uma vez voltar no tempo…
“Eu só quero te pedir uma coisa antes de ir: não sofra por mim. Antes de viajar, eu recebi um aviso de uma maldição, ela dizia que se um dia eu decidisse voltar para o meu tempo, você se lembraria e sofreria com minha falta até o resto da vida. Eu tentei fazer com que você não se apaixonasse. Ah, , eu tentei tanto... Quem dirá que me amasse... Acho que a oportunidade real nunca nem me passou pela cabeça. Até te dei um fora quando percebi que tinha feito merda dormindo contigo nas primeiras vezes. Naquela época, eu era muito inocente e tomada pelas próprias emoções, até interferi em uma composição sua porque sei qual é a letra da música final. Demorei para aprender que o melhor era deixar que tudo seguisse o próprio fluxo, mas não me arrependo, principalmente de ter me apaixonado ainda mais por você.
“Eu sofri tanto aquele tempo que ficamos sem nos falar direito morando debaixo do mesmo teto que só percebi que não poderia deixar acontecer de novo quando voltamos a nos falar, na parte 2 da promo. A partir daí, tentei estabelecer uma relação confortável para nós dois, mas vejo que fui egoísta ao dizer que você era só meu melhor amigo enquanto vivíamos como um casal. Como você disse aquele dia no lago: nós nunca fomos um erro. Eu pensei, sim, que nós éramos um erro do tempo, mas nós somos um acerto. E só pude saber finalmente disso quando te escutei falando que me amava... Desculpa por estar chorando, é mais difícil falar sobre isso do que imaginei.
“Pensei que poderia viver contigo até o ano da sua morte, que te incentivaria a tomar todos seus remédios e ir ao médico frequentemente. Só que depois de ler tantas entrevistas suas no meu tempo, lembrei que você foi bem mulherengo, não gostava de se prender e eu não queria fazer isso com você porque significava interferir mais e correr o risco de ser expulsa da sua vida em algum ponto. Quando te vi indo embora aquele dia, pensei que ia se encontrar com outra mulher, não imaginei que a mulher era sua mãe. Eu só não queria que você fugisse ou escondesse de mim que tinha outra, . Por isso falei aquilo e... deu no que deu, não é?
“Lilly falou no meu aniversário que você não estava bem, coincidentemente desde esse dia não paro de me arrastar para todos os cantos com enjoo. Hoje, quando você saiu da casa do seu pai, ela me trouxe três testes de gravidez e eu achei que ela estava louca, que era só nervosismo, mas pensei um pouco e realmente fazia sentido. Não tomo o anticoncepcional desde a Espanha, porque tinha prometido a mim mesma não nos deixar mais chegar a esse ponto. Dá para acreditar? Eu comecei a tomar exatamente porque sabia que não aguentaria muito tempo e caí logo nessa. Quando apareceram as duas famosas linhas em todos os três, pensei que não estava pronta para ser mãe, mas acabei de conversar com nosso... Erm... bebê... pela primeira vez e disse que amo você, então aprenderei a amá-lo também. Droga, estou chorando de novo! Não se preocupe, é d-de felicidade. Acho que estou feliz de carregar uma parte sua comigo, por mais que isso soe egoísta e eu tenha que ficar de vez em 2019. Saiba que se ele sobreviver à viagem no tempo e vocês não se conhecerem, eu prometo falar de você pelo resto da minha vida. Você não será esquecido, .
“Bem, mudando o assunto para o que está acontecendo agora, me vejo na posição de acrescentar, não que tenha necessidade disso, mas se bem te conheço, você vai ficar remoendo a culpa até a eternidade, então saiba que te perdoo por ter ficado aquele dia com a Natalia. Não tínhamos nada, então você sempre foi livre para ficar com quem quisesse, mas sei o quanto ainda esse assunto é proibido entre nós desde a nossa briga.
“O Marko, o ‘garoto finlandês’, disse que você passou aqui em casa para me procurar às oito da noite, quando eu ainda estava na produtora. Não que eu te deva satisfações, mas ele é só meu hóspede, seu bobo. Eu nunca me envolveria com mais ninguém, não tenho nem cabeça para isso com tudo que está acontecendo. No entanto, te incentivo fortemente a fazer isso depois que eu me for e não se prender a mim. Sei que vai ficar confuso e feito doido atrás de mim depois de ver isso, mas por favor, não me procure. Eu vou te achar um dia e te explicar melhor, se tudo der certo, é uma promessa. Por enquanto, você precisa me deixar ir. Te amo, , para sempre, não importa qual ano seja.”

Desliguei a câmera e coloquei todas as fitas gravadas em cima da cama.
Era isso, eu estava pronta.
Lilly chegou no quarto aos tropeços e carregando um monte de pastas com exames.
— Você tem certeza de que quer fazer isso? — ela perguntou, com receio.
— Sim, vai dar certo — tentei motivá-la, mas meu coração martelava contra minha caixa torácica com a ansiedade de não saber o que me esperava pela frente. — A gente se vê em 2019. — Arrisquei um sorriso. Abracei-a com força. Aquela menina significou tanto para mim, que sem ela não teria sobrevivido 1990. Ela assumiu meu lado tantas vezes e me proporcionou tantos momentos bons. Devia muito a ela. — Preciso que você saia de novo. Se eu não voltar em quatro meses, por favor, entregue as chaves do apartamento de volta para o proprietário. Enquanto isso, use o dinheiro da minha conta para pagar as despesas dele e do que mais precisar. Deixei todas as instruções por escrito em cima da cama. Também deixei todas as fitas das gravações que fiz com a filmadora do seu pai, tem uma que está escrito Dias felizes e lá tem as filmagens do Brasil e uma mensagem para o seu irmão. Por favor, mostre para ele. Ah, e inventa alguma justificativa para o Marko, faça ele acreditar que está tudo bem ficar o quanto quiser. Pode ser?
Puxei o ar depois de falar muito rápido. Ela apenas concordou com a cabeça.
— Obrigada por tudo — falei ao sentir uma lágrima rolando pelo meu rosto.
— Eu te amo, garota. Cuida bem do meu sobrinho, porque ele vai sobreviver, e diga que ele tem a tia mais incrível de toda Estocolmo — ela disse, chorando e sorrindo ao mesmo tempo.
Fiquei envergonhada ao me imaginar com um bebê a tiracolo. Apesar de tudo, o assunto ainda precisava ser digerido.
Quando ia saindo, lembrei de algo.
— Lilly — chamei. Ela voltou e apoiou a mão no batente para me olhar. — Não fala para ninguém quando ele vai morrer. É melhor que esse seja nosso segredo.
Ela assentiu e saiu, fechando a porta. Abri o caderninho e escrevi com uma caneta rosa meu nome e 2019 ao lado, na folha branca.
— Adeus, século 20 — e fechei os olhos.

Capítulo 28 - Still Loving You

2019

Acordei parecendo que tinha batido a cabeça com muita força. Tive o impulso de gritar, mas me controlei no último segundo porque sabia as circunstâncias que me levaram a estar deitada na sala do meu antigo apartamento. Ou atual. Escutei o miado nostálgico de Lemmy e o senti se enroscando nas minhas pernas. Ele parecia saber que eu tinha vivido uma vida inteira antes de aparecer ali para estar me recepcionando daquele jeito.
— Por que você está deitada no chão? — Anya perguntou, me encarando com curiosidade.
Sentei-me no chão e senti o peso da mochila deslizando pelas minhas costas. Ela havia atravessado comigo, fiquei feliz ao constatar. As coisas estavam se encaminhando para dar certo.
— Você está diferente — ela analisou minha aparência. — Fez algo no cabelo?
Toquei as pontas do meu cabelo, ele estava uns oito dedos mais longo do que quando saí.
— Não — menti. — Que dia é hoje mesmo?
— Sábado, 6 de abril — respondeu, ainda me analisando. — Você perdeu muito peso, está tudo bem?
— Tem tempo que você não repara em mim, hein? — despistei, me levantando. Anya raramente demonstrava preocupação comigo e quis abraçá-la por estar fazendo isso naquele momento, porque realmente não tinha nada bem, mas precisava continuar agindo como se estivesse tudo normal. Ao menos para ela.
Hoje era só o dia posterior ao que saí. Lembrava de ter ido na sexta, dia 5, depois de trabalhar no zoológico. Passei por ela e entrei no meu próprio quarto. O que costumava ser, porque parecia que eu tinha entrado em um lugar desconhecido. Os bichos de pelúcia em cima da cama me encaravam e me julgavam pelo que fiz.
Peguei meu celular em cima da cabeceira e abri a conversa com a Shandi.
Me encontra no refeitório, às 11.
Se Lilly tinha ficado com meu segredo em 1991, eu o deixaria em 2019 com Shandi também para o caso de conseguir atingir meu objetivo.
Era muito cedo no Brasil, mas, desde que vi a versão Menudos dos meus pais na TV, senti que precisava falar com eles ao menos uma vez. Minha mãe, a versão que eu estava acostumada, atendeu o telefone com sono e o cabelo vermelho escuro preso no alto da cabeça.
— Oi, mãe — falei, quase chorando ao ver uma imagem tão familiar.
? Aconteceu alguma coisa? — ela murmurou através da tela.
— Não, eu só senti saudades de vocês — funguei. — Vi um vídeo de vocês na televisão esses dias. Por que nunca me contou que começaram a namorar em 1990?
Não começamos, seu pai me enrolou de ‘89 até 1990, então o botei para correr. Só nos vimos de novo no set, começo de ‘93. — Ela mexeu no cabelo — Algum tempo antes de quando você foi concebida — riu.
Senti minhas bochechas esquentarem.
— Eu não precisava saber disso. Cadê o pai, em falar nisso?
Ela virou a câmera para o meu pai, que em 2019 era grisalho e tinha rugas. Ele roncava e eu soltei uma risadinha baixa por isso. Voltou a câmera de volta para seu rosto.
Como vão as coisas na faculdade? Você parece diferente. Finalmente arrumou um namorado?
Bufei. É claro que ela ia notar e fazer a pergunta de sempre. Porém, não era porque o tempo era outro que eu não podia falar tudo que pensei no dia que os vi. Ela provavelmente nunca iria conhecê-lo, mas merecia saber que meu coração agora pertencia a alguém que iria me fazer atravessar o século pela segunda vez.
— Na verdade, mamãe, eu arrumei sim — sorri. — Ele é sueco e mede quase dois metros, acredita? O nome dele é . Ele é músico e muito talentoso, ele compõe, canta, toca quase todos os instrumentos e ainda participa da produção das suas próprias músicas. Sua irmã se chama Lilly e ela é uma amazona, deve ter mais de um e oitenta, com certeza, e é a pessoa mais sincera e amiga que conheço. Seu outro irmão se chama Andreas e ele é muito tímido, mas uma pessoa muito boa, que prefere não se intrometer na vida de ninguém, mas às vezes faz de uma forma cômica. Seu pai, Börje, me olha como se me conhecesse desde sempre e me abraça como se eu fosse sua filha; ele salvou minha vida um dia desses. Karin, a madrasta, eu nem gosto de chamá-la assim, porque ela parece nossa irmã mais velha, mas se preocupa como uma mãe e ela faz comidas típicas maravilhosas; ela é um amor. Ah, mamãe... vocês adorariam conhecê-los!
Espera, espera. Quase dois metros? , esse rapaz é muito alto. Ele dá basicamente duas de você empilhadas. Como ele é, visualmente falando? Preciso de uma imagem na minha cabeça.
Alarguei mais o sorriso. Falei por minutos sobre tudo que o envolvia, mas ela só se ateve à descrição dele. A boa e velha Rosane Luz , senhoras e senhores.
— Ele tem um cabelo longo e que cheira a shampoo de frutas. Olhos que mudam de acordo com as emoções dele. Basicamente é o homem mais bonito do mundo.
Ei, eu ouvi isso ouvi meu pai falando com a voz de quem acabou de acordar. Ela riu e o mostrou. Quem é esse cara que é mais bonito que eu?
— É o amor da minha vida, pai — brinquei. A metade dos genes do bebê que cresce na barriga da sua filha, completei mentalmente. Passei a mão trêmula pela minha barriga, tentando me acostumar com a ideia ao mesmo tempo sem saber se ainda havia alguém ali.
Meu Deus, já está sério assim? E você só conta para a gente agora?
— Queria ter certeza — inventei.
Minha mãe voltou o celular para seu próprio rosto.
Nas férias, vamos te visitar e você nos leva para conhecer a família dele. Vou tentar decorar o nome de todos até lá, para não fazer desfeita. Já sei que o dele é .
Suspirei audivelmente.
, estou achando que você perdeu muito peso. Lembre que aqui nós temos um ditado que é “saco vazio não para em pé”.
Ri a ponto de sentir meu corpo sacudindo com a risada. Fazia um tempo que não ria assim.
— Vou tentar comer melhor, a partir de agora — prometi. — Mãe?
— Hm? — ela disse, quase dormindo.
— Se você pudesse dizer algo a um neto seu algum dia, o que diria?
Ela franziu o cenho, revelando os detalhes da idade em sua pele.
Que pergunta estranha — pareceu pensar um pouco. — Acho que eu diria que ele tem uma das melhores mães do mundo.
— Por quê?
Porque sei que você nunca cometeria os mesmos erros que os meus — bocejou. — Preciso ir ou vou dormir com o celular na mão. Mande um beijo para Shandi e para o seu . Usem proteção, hein?
E desligou.
Ela nunca me esperava dizer tchau. Mesmo assim, eu disse para a tela do celular:
— Adeus, mamãe e papai. Por mais que tenhamos menos momentos juntos que eu gostaria, vou sempre guardá-los comigo. Espero que eu seja uma boa mãe para o seu neto, assim como você disse. Vou tentar me esforçar muito para isso.
Uma lágrima escorreu, solitária, pelo meu rosto e eu quase senti vividamente o dedão dele a limpando. O nó no meu peito só se contraiu ainda mais.
Onde quer que você esteja, aguente firme mais um pouco.

***


Liguei no hospital universitário e marquei uma consulta tanto com um ginecologista e obstetra, quanto com um cardiologista, naquela tarde. Pesquisei sobre a Lilly no Google, mas só encontrei coisas dos anos 2000, quando produziu algumas músicas suas. Resisti ao pesquisar o nome dele porque queria ouvir da própria Lilly o que aconteceu.
Errei o caminho até o campus cinco vezes, até mesmo seguindo o GPS. A tecnologia parecia um bicho de sete cabeças agora. Quando vi os cachos da minha melhor amiga se destacando no meio das mesas, senti alívio a ponto de querer chorar de novo. Acho que os hormônios já estavam piorando minhas emoções. Isso era possível?
Shandi ficou boquiaberta quando me viu.
— Por que parece que tem meses desde que te vi e não horas? — ela disse, chocada.
— Oi para você também — falei, me segurando para só sentar e não a abraçar com toda a força que me restava. Eu tinha sentido tanto sua falta, pensei tanto nela como minha motivação para voltar para 2019 e ela agora estava bem ali na minha frente. Com uma cara de quem não estava entendendo nada e com raiva por isso.
— Explica isso porque não pode ser coisa da minha cabeça. Seu cabelo está maior e não é aplique, eu tenho o talento de reconhecer aplique por melhor que ele seja, e você está meio magra demais. — Soltei uma risadinha de sua reação. — Suas roupas… Você roubou isso de algum dos figurinos dos seus pais? É a cara dos anos oitenta.
Ela era boa.
— Noventa. Começo dos anos noventa — corrigi.
Ela deu de ombros, mostrando que era irrelevante. Pensei em começar dos primórdios e isso queria dizer antes de sair dali.
— Você lembra que eu estava procurando uma fanfic ontem? — arrisquei.
Ela concordou.
— Por mais que você não tenha falado, eu percebi que você tinha um homem novo — revelou.
— O nome dele é . É o stage name dele.
Ela pediu para continuar com a mão.
— Tem um novo elefante lá no zoológico chamado Solveig. Eu li na ficha dele que é um animal famoso, porque as pessoas acreditam veementemente que ele te proporciona coisas que você quer muito no seu subconsciente. Muitas delas levam comidas e objetos para tentar conseguir. Eu não levei nada, apenas conversei olhando nos olhos dele sobre estar apaixonada por um cara que morreu em 2004, o . Juro que ele pareceu me entender de alguma forma. Pela noite, continuei à procura de uma fanfic com o , que não existe, mas na última página do Google vi esse link. Abri, porque tinha esperança que fosse, mas era um portal do tempo, então digitei o nome dele, o ano que queria encontrá-lo e onde — mexi nos talheres que estavam na minha frente, criando coragem para falar aquilo pela terceira vez no dia. — Eu viajei no tempo, Shandi. O conheci. Conheci a família dele. Conheci Estocolmo, Berlim, Londres, Lisboa e Madri de 1990. Fiquei até o começo de 1991.
Ela começou a gargalhar e o som de sua risada me irritou profundamente.
— Você não acredita — constatei o óbvio. — Você mesma falou do meu cabelo, de como estou. Eu sou uma nova pessoa hoje. Vou até mesmo ter um bebê! — revelei logo de uma vez por ter ficado nervosa com sua reação, chamando atenção de outras pessoas em volta.
Isso a fez parar de rir.
— Você? Ter um bebê? — ela juntou as sobrancelhas ruivas. — Quando?
— Não sei quando ou se vou mesmo, vou ao médico essa tarde para descobrir.
— Quem é o pai desse bebê, ?
— O — falei como se fosse óbvio, na defensiva. — Pode ter sido por descuido que engravidei, mas eu te garanto que não o faria com outra pessoa. Ele é o pai.
Ela bufou.
— Isso deve ser gravidez psicológica. Como você mesma disse, ele morreu em 2004. — Isso vindo da boca dela machucou, mas não tive tempo para reagir porque ela se aproximou de mim para sussurrar: — Você está bem? Devo te levar em um psicólogo? No psiquiatra? Ouvi dizer que o psiquiatra do hospital universitário é muito bom.
Não sei onde estava com a cabeça quando pensei que seria fácil convencê-la, assim como foi com a Lilly. Ela acreditou porque falei a data da morte do seu irmão, mas com Shandi não tinha nada para convencê-la de que não estava ficando louca.
A não ser por uma coisa.
— Se não acredita, vá comigo na consulta com o ginecologista hoje à tarde e veja com seus próprios olhos que estou carregando mesmo um bebê. Se for verdade e ele estiver aqui, você terá que acreditar em mim. Também tenho um horário com o cardiologista, vou mostrar os exames dele que trouxe comigo.
— Supondo que você realmente tenha “viajado no tempo” — ela disse, fazendo aspas com os dedos e eu quis sacudi-la até ela transformar aquela frase em uma certeza. — Você pretende viajar de novo para... impedir a morte dele?
— Sim, eu voltei porque quero salvá-lo. Ele estava morrendo quando deixei 1991 e acho que é por minha causa.
Ela fez um barulho com a língua, pensativa.
— Acho que não é bom interferir assim, se ele tem que morrer, a morte não perdoa. Se ele não morrer, o mundo pode mudar drasticamente, que nem em novembro de 63 do Stephen King.
— Não quero saber se o mundo vai mudar ou acabar. Meu mundo é ele, Shandi. Se ele não estiver vivo, eu não vou ser feliz — encostei as costas no encosto da cadeira de plástico. — Preciso tentar por nós três. E eu preciso da sua ajuda.
— Eu? — seus olhos se arregalaram. — Como?
— Preciso que você resolva algumas pendências minhas quando eu for embora de novo, tipo inventar alguma desculpa para os meus pais e para a Anya. Sei lá. Acho que vocês nem vão se lembrar de mim quando eu desaparecer, de acordo com o que li. Porém, se não for verdade e me procurarem, arrume uma desculpa qualquer.
— Vou ter que falar para seus pais que você desapareceu? , eles vão achar que eu te matei ou algo assim, até a Interpol deve aparecer para me interrogar porque você é estrangeira. Eu não sou boa com interrogações, nunca participei de uma, mas você sabe que não lido bem com a influência de autoridades e vai ser um desastre — ela se desesperou.
— Calma. Você consegue — falei, sorrindo, tentando encorajá-la, mas achando graça porque ela realmente não lidava bem com a influência de autoridades. — Eu contei para minha mãe, hoje de manhã, sobre estar “namorando” — fiz aspas com os dedos que nem ela. — Apenas diga que fugi com ele para a Suécia, que resolvi largar a faculdade para acompanhá-lo na vida de músico. Eles dois vão ficar muito decepcionados, não vão querer falar comigo tão cedo. Meus pais têm uns parâmetros meio radicais demais.
Ela suspirou.
— Ok, eu posso tentar. Se isso for verdade mesmo, o que ainda acho que não é e na verdade você está precisando de ajuda médica.
— Em falar nisso, precisamos ir ou não vamos chegar a tempo no hospital — avisei.
— Você não vai comer?
Olhei para o prato de comida da pessoa ao meu lado. O enjoo deu as caras na mesma hora, me levando a tampar o nariz e fazer careta.
— Não estou tendo experiências boas com comida ultimamente.
Ela sorriu.
— Isso é coisa de grávida — disse, com um brilho esperto nos olhos que ainda teimavam em ter um quê de descrença.
— É... — falei, sorrindo triste.
Espero ainda estar.
Não desejei esse bebê e não me sentia preparada para tê-lo, mas não queria que ele sumisse, a existência dele era a prova viva do que passei. Mesmo que eu ficasse ali, presa, queria me lembrar do amor do pai dele toda vez que o olhasse.
— Ok, eu vou com você. No caminho, você vai me contar tudo. Até os detalhes sórdidos — piscou, eu senti minhas bochechas esquentarem. — Também vai me explicar o que pretende fazer para salvar esse homem. E vai me mostrar uma foto dele porque quero ver se vale a pena mesmo todo o desespero a ponto de se esquecer de usar proteção e engravidar em uma década que não é a sua.
Soltei uma risada com sua última frase. Eu tinha algumas fotos dele salvas no meu celular, então não seria problema.
Concordei com a cabeça e nos levantamos. Seguimos para fora do prédio.
Resumi tudo para dar tempo de contar no trajeto do transporte público até o hospital. Ela pareceu em choque, questionou algumas coisas e concluiu que, se não fosse verdade, eu tinha talento, porque era realmente uma boa história.
Ao chegar ao hospital, me encaminharam primeiro para a ginecologista. Tive a consulta, contei a ela que não sabia de quantas semanas estava ou se realmente estava grávida, mas que estava com a menstruação bastante atrasada. Ela me encaminhou para fazer um exame de imagem que era o meio mais urgente de confirmar e ver se estava tudo bem.
Uma enfermeira me pediu para trocar minha roupa pelo avental, minhas mãos tremiam pela expectativa e me atrapalhei com o laço. Deitei-me na cadeira do ultrassom e Shandi segurou minha mão, tentando me acalmar.
O médico não demorou a chegar. Ele nos cumprimentou, perguntou se estávamos esperando um bebê juntas, ela negou, disse que era apenas a amiga.
— Com quantas semanas você acha que pode estar? — ele me perguntou, antes de inserir o aparelho transvaginal.
— Não faço ideia — respondi com a voz trêmula.
Ele inseriu o aparelho, me causando um desconforto. Uma mancha apareceu na tela.
Por favor, bebê. Que seja você.
Me assustei um pouco pelo desejo em estar realmente grávida, poucos momentos antes eu nem sabia se conseguiria ser mãe um dia. Eu nem sabia se tinha o instinto maternal guardado em algum lugar do meu ser.
— Aí está ele ou ela — falou.
Bom, agora eu espero muito que sim.
Sorri a ponto das minhas bochechas doerem. Aquele era um dos momentos mais felizes da minha vida, eu podia sentir. Shandi apertou minha mão, mostrando que também estava emocionada.
— Ele realmente existe — comentou, chocada.
O médico pressionou um botão e um barulho ecoou pela sala.
— Essas são as batidas do coração dele. É um coração bem forte.
Meus olhos se encheram de lágrimas que, no segundo seguinte, escorreram pelo meu rosto. Ele podia sobreviver, ele podia viajar no tempo comigo.
— São em torno de oito ou mais semanas pelo tamanho do saco gestacional. A partir desse momento, você pode fazer o teste de sexagem fetal e saber se é menino ou menina. Não é necessário, caso não queira.
Ele removeu o aparelho e fez o procedimento de limpeza. A ausência do som do coraçãozinho do bebê me angustiou.
— Eu quero. Também quero uma foto desse exame.
O vi concordar com a cabeça.
— Uma enfermeira vai te levar para colher o sangue e trazer a imagem. Você pode vestir sua roupa.
Entrei no banheiro e olhei para a minha barriga.
— Obrigada por ter ficado — sussurrei. — Nós vamos salvá-lo juntos, prometo. Continue sendo forte aí dentro.
Troquei de roupa, depois fui levada até o laboratório para colher o sangue e ela me entregou um envelope. Olhei e lá estava a imagem da tela, um bebê bem pequenininho e indefeso. Um bebê que atravessou o século.
— Agora eu acredito — Shandi disse, olhando para a imagem.
Sorri para ela. Tudo tinha realmente acontecido. Uma parte pequena de mim, que também duvidou, estava em êxtase.
Levei os exames para o cardiologista e pedi que ele ignorasse as datas, porque a máquina estava quebrada. Claramente aqueles eram exames muito antigos, mas ele resolveu ignorar.
Ele me explicou que era um caso de arritmia cardíaca, ele me perguntou se houve uma parada. Eu tentei lembrar o que Andreas tinha falado no telefone, era algo sobre isso. Então fiz que sim.
— Em casos que existe o risco de morte, precisa haver a monitoração constante através de um aparelho chamado Cardioversor e Desfibrilador Implantável. — Anotei no meu caderno para lembrar de procurar o nome em sueco. — Esse aparelho funciona como marcapasso quando os batimentos diminuem, mas nos casos de arritmias fatais ele age de outras maneiras para recuperar o ritmo do coração.
— Então ele pode sobreviver com esse aparelho? — perguntei.
— Sim, mas um cardiologista tem que monitorá-lo e esse aparelho precisa ser implantado o mais rápido possível.
Concordei com a cabeça.
— Será que o senhor pode escrever isso em um relatório?
Ele anuiu e começou a digitar no computador. Alguns minutos depois, saí com os papéis na mão. Shandi me ajudou a arrumar tudo dentro da mochila.
Passei o resto do final de semana com ela no meu quarto, nós pesquisamos tudo disponível sobre viagem no tempo. Era exatamente o mesmo caso dos livros da biblioteca, gente doida falando sobre um assunto absurdo. Porém, encontrei fóruns que falassem sobre o elefante Solveig, muita gente realmente acreditava que ele era uma criatura mística, enviada pelos deuses para atender os anseios da humanidade e por isso poderia ser um dos guardiões do portal da viagem no tempo. Não tinha nenhuma pessoa falando que conseguiu viajar no tempo, só que olhou nos olhos do elefante e conseguiu coisas materiais ou curas milagrosas para doenças. Algumas diziam que quem conseguia algo era muito especial aos olhos de Solveig, só pessoas com um verdadeiro propósito atingiam o objetivo.
Não encontrei nada sobre o viajante do tempo atrapalhar o curso dos acontecimentos, mas ficou implícito que, querendo ou não, eu atrapalharia com todo o meu conhecimento do futuro, mas não só com a minha presença. Seria mais um caso de escolher ou não o que fazer das pessoas em coisas pequenas que meti o dedo. Se minha interferência fosse em algo grande, aí sim, poderia atrapalhar o curso de acontecimentos — como pretendia fazer para salvá-lo. Então, para resumir o que eu entendi: a culpa de ele ter passado mal não tinha sido minha porque eu ainda não tinha feito nada de “uau”.
Pretendia saber mais quando encontrasse a Lilly. Se ela se lembraria ou não de mim. Se ela lembrasse, vi algo sobre uma teoria de criar realidades conforme você viaja no tempo e talvez a minha realidade atual seja a que deixei em 1991, por isso a música tinha minha intervenção e ele falava de mim em outras que compôs. A teoria também falava que, quando acontece a viagem, a pessoa deixa de existir para que não haja duas dela, o que explica a informação do site e que eu nem terei nascido para os meus pais caso decida viver em 1991; mas, se eu quiser voltar para 2019, seria como se tudo tivesse voltado ao normal como agora.
Tentei ssar o site do portal, mas o link estava quebrado. A folha que utilizei para retornar ainda estava dobrada dentro do Diário, mas não era uma chave para viajar de novo, apenas uma para voltar para o meu tempo.
Não sei de onde tirei forças para ir trabalhar no zoológico na segunda, provavelmente da minha curiosidade para com o elefante. Apareci cedo, na hora da aula mesmo. Vesti o uniforme e peguei a ficha dele, caminhei até o abrigo. Lá estava a criatura gigante, em toda o seu esplendor. Ele bufou quando me viu, como se lembrasse de mim e me desprezasse por ter voltado para aquela realidade depois de ele ter todo um trabalho para me enviar para os anos 90. Olhei em seus olhos com toda sinceridade que tinha, sem duvidar por um segundo do poder dele.
— Você me colocou em uma enrascada das grandes — falei, meio rindo. — Parece ter muito tempo que não conversamos. Eu lembro que só te pedi para achar uma fanfic, mas você criou uma e me colocou como personagem principal. Conheci o amor da minha vida e o mundo na década de 90... — suspirei. — Sei que parece absurdo me ver de volta, ainda mais você que deve saber de tudo de alguma forma, mas preciso impedir a morte dele. Por favor, me deixa voltar mais uma vez, faça o que quiser, só me mande para qualquer ano que eu possa salvar a sua vida. Depois posso até ficar perdida no espaço-tempo, ou seja lá como você chama isso, contanto que ele possa ver o próprio filho e viver mais, estarei feliz. Consigo me virar, você sabe — falei tudo rápido demais e depois puxei o ar, esperando alguma reação sua.
Ele me ignorou e virou para procurar comida, como da primeira vez. Não era como se eu estivesse esperando que um elefante começasse a conversar comigo.
— Por favor, abra aquele portal mais uma vez — falei antes de deixá-lo sozinho. — Só mais uma vez.
Os dias passaram arrastados. Fiz uma prova na quarta-feira que antes me preocupava muito, mas que eu não poderia me importar menos agora. Os enjoos continuavam, mas a frequência dos vômitos diminuiu e se limitou mais a acontecer pela manhã com o remédio de enjoo que a médica passou. Eu iria para a Suécia na quinta, que também era o dia que saía o resultado do exame.
Durante o voo, rezei para que Lilly lembrasse de mim e não saísse correndo. Ao aterrissar, olhei a notificação do e-mail no celular e era do laboratório. Minhas mãos ficaram geladas e o sangue deixou meu corpo.
Feminino.
Era uma menina!
Suspirei e pensei em ser mãe de uma garotinha. O quão surreal era isso? Alguns dias atrás, eu nem sonhava com a ideia de ser mãe e estava em êxtase ao descobrir o sexo do bebê. Rapidamente pensei em nomes legais para ela enquanto passava pela fila da segurança do aeroporto. Peguei o celular e pesquisei nomes femininos famosos na Suécia, porque ela cumpriu o nosso trato e teria um nome bacana. Deslizei o dedo pela tela e um me chamou a atenção. Arqueei as sobrancelhas. Será? Olhei para minha barriga e perguntei mentalmente:
Que tal Emma?
Ela obviamente não respondeu, mas decidi que iria chamá-la assim até encontrar e perguntar a opinião dele.
Ao sair do aeroporto, chamei um Uber e dei o endereço dos para o motorista colocar no GPS. Esperava que Karin tivesse mantido a casa depois de Börje morrer em 2017, porque, caso contrário, não sabia nem por onde começar a procurar por Lilly e Andreas.
Toquei a campainha do casarão que parecia muito com o que era, mas com alguns toques mais modernos. Uma moça atendeu e disse que apenas trabalhava na casa, mas que Karin ainda morava ali. Perguntei se ela sabia o endereço de Lilly e ela disse que em alguns dias da semana também trabalhava para a menina — ou melhor, mulher, agora em 2019. Eu nunca me acostumaria em ver Lilly assim, mais velha do que eu.
Anotei o endereço nas notas do celular e chamei outro motorista pelo aplicativo, quase o agradeci por não demorar quase nada para percorrer os quarteirões que separavam as duas casas. Eu estava enjoada e com um pouco de azia no banco de trás, mas a ansiedade estava me fazendo prestar atenção total ao caminho.
Era um prédio discreto, o portão estava aberto, então tomei a liberdade de entrar e seguir para o terceiro andar. Toquei a campainha.
Esteja em casa.
Esteja em casa.
Lembre-se de mim.
Eu não tinha condições financeiras e psicológicas de pagar uma acomodação até conseguir outro voo. Usei quase todo o dinheiro da minha poupança para comprar a passagem de ida, saquei o resto e troquei por coroas suecas para o caso de ficar perdida se viajasse de novo. Era melhor me prevenir.
Uma mulher de cabelo escuro avermelhado abriu a porta. Eu só a reconheci por causa dos olhos, que eram os mesmos que atormentavam meus pensamentos dia e noite. Ela botou a palma da mão na boca e arregalou os tais olhos quando entrei em seu campo de visão.
— Oi, Lilly — falei, sorrindo com lágrimas nos olhos ao perceber que ela me reconhecia. Foram os dias mais longos da minha vida depois que a deixei em 1991, não tive disposição nem para chorar direito, mas agora via que estava guardando as lágrimas para quando a encontrasse.
? — ela perguntou, chocada.
Eu concordei com a cabeça. Ela agarrou meu pulso esquerdo e me puxou para dentro, fechando a porta atrás de mim. Abraçou-me com toda sua força e depois me analisou dos pés à cabeça.
— Eu sabia que você apareceria algum momento desse ano, mas sei lá, depois de tanto tempo, a gente até desacredita do que viveu. — Ela pegou minhas mãos para me olhar melhor. — Garota, você não mudou mesmo nada em 30 anos — brincou.
— Nem você — também brinquei.
— Aham, me engana que eu gosto — falou, andando até a poltrona. Me indicou o sofá da frente e eu me sentei.
Passeei os olhos pelos porta-retratos no aparador, vi em todos eles duas crianças que aparentavam ter em torno dos 8 e 12 anos, ela e um homem familiar.
— São seus filhos? — apontei.
— Sim — ela disse, com entusiasmo. — Foram acampar com o pai, Dre e o filho dele. Estou no meu momento de paz.
— Andreas também é pai?
— Sim — ela riu. — De um adolescente chato de 14 anos.
Minha mente gritava para perguntar sobre o outro irmão. Me mexi desconfortável no estofado de couro e vi a compreensão manchar seus olhos.
— O se foi. Ele morreu mesmo em 2004, se é o que está se perguntando — ela suspirou e encarou o teto. — Você não me disse o dia, então não pude ficar vigiando cada passo que ele dava. Eu ia tanto na casa dele quando virou o ano que uma hora fiquei sem justificativas e ele me mandou ir à merda. Ele ficou tão rabugento depois que você se foi.
Minha boca se curvou em um sorriso triste. Estava feliz por ele ter superado aquele episódio em 1991, mas uma parte de mim esperava mesmo que eu tivesse mexido com a ordem e ele tivesse sobrevivido até agora para me encontrar aqui. Aparentemente, eu não alterei nada mesmo e o que eu li estava certo. Então já tínhamos uma certeza: ele iria morrer em 2004. Se eu o salvasse, iria mudar drasticamente a ordem da vida dele e talvez tivessem consequências. Memórias de Shandi falando que a morte vem cobrar de qualquer forma me deram calafrios.
— Tenho uma caixa para você — ela disse e se levantou. Meu coração sobressaltou com a ansiedade.
Ela voltou, carregando uma caixa de papelão velha, e colocou na mesinha de centro, na nossa frente. Parei minha mão no ar. Eu precisava perguntar antes.
— Ele sofreu?
Ela soltou uma risada seca.
— Se ele sofreu? , para caralho. Ele se tornou a pessoa mais triste que eu já vi caminhar por aí depois que eu mostrei a fita. Ele não itou, te procurou até o fim. Ainda mais porque você falou que estava... — ela arregalou os olhos. — Ai, merda, eu me esqueci de perguntar sobre o bebê. Ele... Ele... — ela parecia não encontrar as palavras certas para não me atingir.
— É ela, descobri quando o avião aterrissou — comentei, sentindo as lágrimas rolarem livremente pelas minhas bochechas. — O nome dela é Emma.
Ele sofreu por mim. Tudo que eu não queria. Tudo que tentei evitar ao máximo. No final, não teve escapatória. Eu meio que sabia disso quando fiquei entre itá-lo ou não na praia, mesmo assim mandei tudo pelos ares. E eu não estava arrependida.
— Que nome lindo — ela disse, sorrindo. — Ele teria gostado.
Prendi os lábios em uma linha fina. Eu realmente esperava que sim. Ela enfiou a mão na caixa e me entregou a camisa xadrez de flanela dele, algumas camisetas da banda, alguns bonés, óculos de grau e livros. Pousei as coisas ao meu lado, no sofá, conforme ela ia entregando.
Ela parou um pouco.
— Ao longo dos anos 90, ele vivia com bonés na cabeça, mas com a viseira para trás. Acho que era moda, não me lembro bem. Ele começou a usar óculos de grau para leitura em ‘95. Esses são os livros que estavam ao lado da cama dele. Recolhi tudo e guardei para você ter memórias dele. Mas isso daqui é o mais importante — ela enfiou a mão na caixa de novo e me entregou algumas folhas soltas e três blocos de notas.
Percebi que eram letras de músicas pelos rabiscos que eu sabia que ele fazia. Passei os olhos.
Ela pegou um LP que reconheci como o segundo da sua carreira solo. Ela enumerou algumas músicas* do verso.
— Você foi a inspiração dele, isso é tudo sobre o que ele sentiu. Eu até circulei e guardei essa cópia para não esquecer. O rascunho está todo aí.
A letra que achei aquele dia ainda tinha minhas alterações, apesar de o papel estar bem envelhecido. Sorri ao ver o “OK” ao lado delas. Lembrava de todas elas pela quantidade de vezes que ouvi. Acho que isso era um sinal, significava que a minha viagem no tempo já fazia parte da nossa história, todas aquelas músicas exatamente como eu lembrava eram prova disso.
Enxuguei as lágrimas. Precisava me recompor ou acabaria desabando de vez.
— Você conseguiu se desfazer do apartamento como pedi?
Ela me olhou com aquele olhar de pena, como o dia que mencionei o que Pierre tinha dito sobre seu irmão e Natalia.
— Ele nunca me deixou tirar suas coisas de lá, . Assim que saiu do hospital, ele se mudou para o seu apartamento e morreu sozinho em Hässelby.
Ao ouvir o nome do bairro, ouvi um tique ecoar pelo meu cérebro. Eu sabia que ele morreria em Hässelby, estava no Wikipedia e seu pai mencionou em entrevistas também. Ele morreu sozinho no meu apartamento com as minhas coisas. Ele sofreu por mim até seus últimos dias.
— Ele deixou isso para você — ela estendeu um envelope, peguei-o.
Meu nome e sobrenome estavam escritos com sua caligrafia atrapalhada. Tirei o papel de dentro e era uma carta escrita através da máquina de escrever.

“Querida viajante do tempo,

Aquela sua música cafona e irritante tocou na rádio essa semana, desde então ela não sai mais da minha cabeça. Hoje de manhã, eu tropecei nas suas pantufas de rena e quase levei a queda mais engraçada da minha vida. Você teria rido. Na verdade, eu cheguei até a ouvir suas risadas espalhafatosas. Elas ainda são o meu som favorito.
Aluguei a fita de “Gatinhas e Gatões”, assisti tudo sem dormir porque queria ter argumentos para provar que é um filme ruim quando você voltasse. Porém, sei que no fim você daria um jeito de me fazer falar ao menos uma coisa boa. Não tenho coragem de ver “Dirty Dancing
sem você, sem te irritar imitando a parte que o Patrick Swayze pede para Jennifer Grey olhar nos olhos dele, mas aluguei a fita também e venho renovando para caso você volte. E eu me agarro à esperança todos os dias de que isso vai acontecer, porque é a única motivação que me faz levantar da cama. Todos os dias, meu primeiro pensamento é: hoje pode ser o dia que ela vai voltar. Isso me mantém seguindo em frente.
Você não faz ideia de como é difícil te esquecer quando te vejo em todos os lugares. Ainda assim, não tenho coragem de me livrar de nada seu. Sinto sua falta, a todo segundo. Lembro dos dias que dormíamos juntos, quando a insônia aparecia e me levava a te observar enquanto estava adormecida, eu já sentia saudades de você nesses momentos.
Pensei em me matar, mas não tenho coragem porque tudo o que fez terá sido em vão e porque quero estar aqui quando você voltar. Encontrei seu cartão da biblioteca e peguei os mesmos livros para arranjar alguma solução, mas são livros que só falam coisas malucas e sem utilidade para quem não sabe de nada. Sei que você não queria que eu te procurasse, mas dói ter ficado, dói saber que perdi a minha melhor amiga e ela carregava um filho meu. Pensei também que a gente poderia arrumar um túmulo para vocês, para concentrar o nosso sofrimento em algo e poder viver o luto, mas sempre saberei que estão por aí, em algum lugar do futuro que jamais alcançarei, então ele se tornará inútil.
Provavelmente está lendo isso depois que morri, então me sinto um pouco menos estranho em admitir isso: eu tentei o celibato por um tempo porque te amo, mas também fiquei puto por ser chamado de mulherengo. Não deu certo, acho que tenho que te dar razão nisso. Fiquei entediado e fui atrás de umas mulheres, tive alguns encontros em algumas cidades ao redor do mundo, mas não foram para frente. Elas não são você. Eu disse que achava que você tinha me arruinado para sempre aquele dia, mas agora tenho certeza. Uma vez enquanto gozava chamei o seu nome e acabei levando um tapa na cara muito dolorido de outra mulher, mas totalmente merecido.
Imagino como deve estar sendo sua vida. Se você conheceu outra pessoa que te fez desistir de voltar para mim, se terminou a faculdade, se ainda lembra de nós dois, se nosso filho parece com você, até mesmo se sua casa tem cerca branca que nem aqueles filmes americanos. Não sei porque estou gastando meu tempo pensando na cerca da sua casa, quando deveria estar pensando na sua bela bunda. Eu tenho tendência a só fazer merda mesmo, você sabe bem.
Transformei sua gravação em cassete, para eu poder deixar ligado no videocassete e ouvir sua voz. Nas primeiras vezes, Solveig virava a cabeça para a televisão, mas agora até ele sabe que você não está mais aqui. Você explicou tanta coisa naquela mensagem que fiquei até confuso na primeira vez que vi, agora já decorei cada palavra.
Quando penso que você sempre me amou, mas me rejeitava porque tinha medo de que eu me apaixonasse, eu explodo em gargalhadas. Até os vizinhos devem escutar.
Baby, eu me apaixonei d\esde que te vi usando as minhas roupas. Desde a primeira vez que sorriu olhando nos meus olhos, eu venho escrevendo músicas sobre você. É um inferno. Vou lançar algumas ano que vem para chegarem, de alguma forma, em você. Espero que goste e que grude na sua mente, assim como você grudou na minha desde que apareceu.
Imagino que tudo em 2019 deva ser melhor para você e o nosso filho. Me sinto um cretino quando desejo que você volte. Mas queria muito te ver de novo, nem que seja para me despedir.
Te amo muito.



19/02/1996”


Sorri enquanto quase me engasgava com meu próprio choro. Aquela carta era tão a cara dele que me fazia rir e chorar ao mesmo tempo. Só ele conseguia escrever uma carta tão sensível e ainda assim mencionar minha bunda. Sentia que uma partezinha egoísta minha ficou com ciúmes de quando ele falou de outras mulheres, mas, para ele, se passaram anos desde que sumi, então ficava feliz que ele pelo menos tentou me tirar da cabeça e se relacionou de novo. Mesmo que ele não tenha amado mais ninguém até o fim da vida, ficava feliz que ele pelo menos me amou.
Lilly estava chorando tanto quanto eu depois de me ouvir ler a carta em voz alta.
— Não acredito que ele escreveu que disse o seu nome enquanto comia outra mulher — ela riu baixinho. — Aquele filho da mãe sabe escrever músicas lindas falando sobre você, mas não sabe escrever uma carta de amor decente.
— Me deixa melhor saber que ele tenha se relacionado e não se guardado até a morte me esperando, isso não pareceria muito com o que eu conheço. — Mordi o lábio inferior, pensando se eu queria saber da pergunta que estava prestes a fazer... É, eu queria. Era para o bem dele. — Ele namorou sério alguém?
— Sim. Ele voltou com a Natalia por um tempo, em ‘93, mas soube que ele levou um pé na bunda por não a deixar pisar o pé no seu apartamento depois que ela tentou jogar algumas coisas suas no lixo e nunca mais quiseram nada romântico um com o outro — revirou os olhos. — Ele era um saco com suas coisas. Tentei tirar essas pantufas do lugar várias vezes, mas ele ficava furioso. Ele poderia ter mesmo caído para aprender a lição.
Sorri ao imaginar os dois irmãos brigando por causa das minhas pantufas de rena. Ela tirou as pantufas velhas e surradas da caixa e me entregou. Céus, essas pantufas tinham muita história para contar.
Eu deveria perguntar como foi a morte dele para ver se condizia com o que o médico me explicou, mas tinha medo de que isso a machucasse.
Ela tirou uma embalagem de presente quadrada e reconheci como sendo o embrulho que ele me entregou no dia do meu aniversário que nunca abri.
Desfiz o laço e rasguei o papel que já estava se desfazendo. Abri a caixa e tinha um porta-retrato com nossa foto na Alemanha, tirada pelo amigo francês dele, Pierre. A câmera capturou exatamente a hora que o vento fez o cabelo dele bater na minha cara e transformar minha cara amarrada em risada, ele ria e seus olhos estavam olhando pra baixo — onde a cena acontecia.
Ele tinha me dado uma foto nossa no dia que o acusei de estar com outra mulher. Meu Deus, eu me sentia péssima. Mostrei pra Lilly e ela pegou o porta-retrato de madeira escura da minha mão. Ela segurava e olhava aquela foto como se fosse uma mãe vendo fotos dos filhos quando eram crianças.
— Ele era tão jovem aqui. Ainda parecia um bebê — ela murmurou sem me encarar.
Ela pousou o porta-retratos na mesinha e pôs em minhas mãos outro embrulho surrado, mas que parecia relativamente mais novo.
Rasguei o papel e desdobrei o tecido, era uma roupa de bebê creme. Comecei a soluçar por causa do choro instantaneamente. Ela se levantou da poltrona e se sentou ao meu lado no sofá, seus braços me envolveram. Ainda parecia o mesmo abraço que ela me dava quando era adolescente. O nosso vínculo não diminuiu conforme as décadas foram passando para ela e isso aqueceu meu interior.
Aquela roupinha, tão pequena, destroçou o resto do meu coração. Em algum ponto, ele havia comprado um presente para a própria filha. Minhas lágrimas pingavam e a molhavam. Ele tinha itado a paternidade, apesar de todos seus traumas. De repente, eu queria tanto vê-lo com ela nos braços que conseguia visualizar a cena perfeitamente — como se acontecesse na minha frente.
— Eu me lembro desse presente, ele comprou uma semana antes de morrer — ela comentou, a migalha que não estava destroçada do meu coração se partiu.
Lilly me soltou e recolheu item por item, guardando na caixa, em silêncio. Era nítido o quanto aquilo também era difícil para ela. Afinal, era seu irmão.
— Sinto muito por ele... E pelo seu pai — lembrei que Börje morreu em 2017. Não conseguia mais imaginar um mundo sem e sem Börje, os dois já faziam parte do meu dia a dia e prevalecia o sentimento de que estavam em algum lugar ssível agora.
— Obrigada — ela me olhou com os olhos vermelhos. — Você pretende...?
Ela se referia a viajar de novo.
— Não sei se tenho permissão para ssar o portal de novo. Não quis conferir antes de vir aqui e te ver. Era a última coisa do meu planejamento — expliquei.
— Como você vai saber?
— Eu ainda tenho o site no meu histórico, mas ele não abria da última que tentei, antes de falar com o elefante que fez tudo isso acontecer.
— Foi um elefante que te levou para os anos 90? — ela riu, descrente.
— Sim. Aparentemente ele te proporciona o que você quer, quando nem você mesma sabe — soltei uma risadinha. — Você se incomoda se eu checar aqui?
Ela fez que não, então peguei meu celular e vasculhei o histórico. Apertei no link e apareceu o ícone de carregando. Já era diferente da outra vez que olhei por esse detalhe, antes ia direto para o aviso de link quebrado. Ela também fitava a tela do meu celular, com expectativa.
A página de fundo preto foi lentamente aparecendo, aparentava tão diferente da outra vez. Só tinha algumas letras no centro e um botão. Comecei a ler em voz alta:

Instruções
Caro, viajante do tempo. Você ganhou mais uma chance de cruzar o portal. Parabéns!
Sua punição é viajar sem chave de volta para 2004, 1997 e 1988. Você terá duas chances de salvar o amor da sua vida, em 2004 e 1997, e poder encontrá-lo em 2019, caso assim deseje, mas essa também será sua punição. O guardião da viagem no tempo que decidirá qual é o momento que você vai viajar entre os três anos da punição, mas por intuição você saberá também. Observe que você vai viajar de qualquer forma entre esses anos como castigo. Ou seja, não importa se você ainda não conseguiu realizar sua missão. Porém, como bônus, em 1988, terá que fazê-lo se apaixonar mais uma vez por você para ganhar a chance de voltar para o momento em que saiu a primeira vez, em 1991. Ao chegar em 1991 de novo, sua chave de volta para 2019 funcionará novamente. Ou seja, a sua única escolha, no final, será voltar para casa em 2019 ou permanecer em 1991.
OBS.: É obrigatório interagir com a pessoa em todos os anos.

Aperte o botão para iniciar.

Lilly pegou minha mão quando acabei de ler.
— Você não precisa fazer isso, se não quiser. É mais seguro permanecer aqui — aconselhou. — Eu e Andreas podemos te ajudar a cuidar da bebê.
— Preciso ir. Prometi à Emma que nós nos aventuraríamos para salvar o viking mais bonito de toda a Suécia — brinquei, arrancando um sorriso sincero dela. — Ele precisa conhecê-la, Lilly — falei sério.
Ela concordou com a cabeça.
— Eu posso? — falou com a mão no ar. Analisei seus olhos e entendi que estava pedindo permissão para tocar minha barriga. Assenti, mesmo achando estranho a ideia de alguém falando com minha barriga além de eu mesma. Ela pousou a palma no meu ventre plano. — Oi, neném. Quem está falando é a sua tia mais legal. Fui a primeira a desconfiar que você estava aqui na barriga da sua mamãe, lá em 1991, então já sei que seremos próximas. Seu pai é um chato, mas tenho a impressão de que você vai gostar dele exatamente por isso. Estou me coçando de ansiedade para ver você transformando aquela cara rabugenta em um sorriso. Sua mãe é incrível, dá para imaginar que ela veio até aqui só para salvar aquele cara? Ela é tipo uma super-heroína por isso e por aguentar ele — riu. — Ela também é minha melhor amiga, sempre foi e será — sorri para ela e depois voltei a observar sua mão em minha barriga. — Sorte a nossa por ela ter escolhido a nossa família. Ela também tem sorte por você ser uma menina, meninos dão muito trabalho, estou falando tanto do seu pai, seu tio e seu avô quanto do seu outro tio e seus primos. Seja forte e aguente mais um pouco aí dentro, nós seremos felizes todos juntos.
Ela pegou minha mão esquerda de novo.
— Agora é com você — ela disse.
Assenti. Engolindo em seco. Peguei o celular com a mão direita e passei uma mensagem para Shandi.

Boa notícia: encontrei a irmã dele. O ano da morte ainda é o mesmo. O guardião (o elefante estranho, como você o apelidou) me deu a chance de salvá-lo em 2004 e em 1997. Porém, também vou para 1988 e terei que fazê-lo se apaixonar por mim para voltar de onde saí pela primeira vez, em 1991. É complexo, mas acho que consegui entender. Obrigada de todo o coração por me ajudar, se não fosse por você, eu não teria chegado até aqui. Estou tão ansiosa para vê-lo de novo que não poderei esperar sua resposta, preciso ir antes que esse portal feche de novo. Foi incrível te conhecer, obrigada por insistir em mim quando ninguém insistiu. Quando eu era só uma garota qualquer fugindo da fama dos pais e com essa mania de me apaixonar por famosos, foi você que me encontrou e me colocou debaixo da sua asa. E eu sinto muito que não tivemos a oportunidade de nos tornar ainda mais próximas, parte disso é culpa minha por me fechar em um casulo e não ter te deixado entrar completamente. Espero que você encontre um amigo digno do seu amor e saiba que sou grata por ter sido eu essa pessoa pelo tempo que permaneci. Você é uma pessoa incrível, Shandi. Por favor, caso seja necessário, lembre-se da história que combinamos para os meus pais e não deixe minha avó de fora. Mande um beijo para Raj e seus pais. Adeus.

Pousei o celular na minha perna com os olhos marejados, o tecido da calça jeans o impediu de deslizar. Eu sentiria falta de Shandi para todo o sempre. Por acaso, meus olhos pararam nos porta-retratos em cima do aparador mais uma vez e reconheci o homem com ela e as crianças.
— O seu marido é o Marko?
Ela riu e apertou minha mão.
— Sim. A gente se conheceu depois que você sumiu e me deixou a tarefa de avisá-lo. No fim, não consegui mentir e falei a verdade, obviamente ele não acreditou de primeira. Aliás, o único que acreditou de primeira foi o Andreas, ele disse algo como “eu sabia que ela não era daqui”.
Lembrei do dia que ele me perguntou de onde eu era, no Brasil, e quase me matou de susto. Pelo visto, ele nunca esqueceu.
— Ele voltou para a Finlândia um dia depois. A gente trocou números de telefone antes dele ir, mas ele só me ligou em 1999, porque me confundiu com outra Lilly — riu baixinho com o olhar contemplativo. — Depois disso, ele me ligou quase todos os dias por um mês e passávamos horas falando sobre futilidades. No mês seguinte, ele se mudou para Estocolmo e começamos a namorar. Casamo-nos em 2005. Björn nasceu em 2007 e Sven em 2012.
— Fico tão feliz por vocês, Lilly — comentei. — Nem nos meus sonhos mais loucos eu iria imaginar vocês juntos. Mas, com certeza, formam uma família linda.
— Obrigada — ela sorriu e suas bochechas estavam vermelhas.
— Vou ter que me controlar muito para não abrir minha boca quando voltar no tempo. Ainda mais porque você é teimosa e arranca as coisas de mim sem que eu perceba.
Ela soltou uma risada alta agora.
— É melhor eu ir — falei, séria. — Vou te procurar primeiro porque tenho medo de como seu irmão possa reagir. O coração dele vai estar em um momento muito delicado, se eu cair mesmo em 2004.
Ela concordou com a cabeça.
— Eu ainda estarei morando na casa do meu pai. Então você pode me achar lá.
Abri a bolsa com o relatório do médico e todas as outras coisas que reuni para sobreviver. Peguei o celular e desbloqueei a tela — o que fez o site abrir novamente.
— A gente se vê em 2004 — pisquei um olho para ela.
— Imagino quantas vezes vou te ouvir falando isso — brincou.
— Muitas, mas você não se lembrará — soltei uma risada. Ela também riu e estalou um beijo carinhoso na minha bochecha.
— Boa viagem, ... e Emma — olhou para minha barriga.
— Obrigada, Lilly. Por cuidar das coisas depois que sumi. Por guardar as coisas dele para mim durante tanto tempo. Por se lembrar de mim. Tudo. Eu amo você.
— Também amo você — ela disse, me dando uma última boa olhada e se levantando para sair do cômodo.
Ela ainda lembrava do meu pedido para que ela saísse da primeira vez. Senti um sorriso nostálgico se formando no meu rosto. O tempo era mesmo louco.
— E lá vamos nós mais uma vez — sussurrei e apertei o botão.


* (N/A: Foram retirados os nomes das músicas da história original porque é uma fanfic interativa, mas se te bateu a curiosidade são When our day is through, Cherrybutt & Firefly, Fade away, Deep, Just the same e You just got to live do álbum Purity of Essence)

Capítulo 29 - Slipping Through My Fingers

2004

Mais uma vez, a dor na minha cabeça indicava que eu tinha batido muito forte contra algo. No entanto, abaixo de mim o solo era fofo e eu me sentei para observá-lo. Era a grama verde. Eu estava cercada de árvores cheias de folhas e flores, o que indicava que provavelmente era primavera. Fiquei de pé e passei as alças da mochila pelos braços. Meu estômago embrulhou imediatamente quando comecei a andar.
Não vomite. Não vomite. Não vomite.
Mentalizei enquanto andava entre as árvores e pelo caminho de concreto coberto de frutinhas caídas. Não tinha ninguém para me receber dessa vez, nem os curiosos da primeira vez que viajei e nem a Anya.
Precisava manter a calma e entender onde estava.
Caminhei por alguns minutos tentando segurar a vontade de vomitar, até que avistei o hospital Sabbatsberg. Então eu estava em Estocolmo, aparentemente no Vasaparken. Agradeci mentalmente quem estava controlando aquilo por ter facilitado minha vida e não ter me mandado para outro continente.
Fiz sinal para um táxi quando alcancei a pista. Informei o endereço dos novamente e percorremos o caminho tranquilamente por vinte e cinco minutos. Estava com a cabeça na lua quando o carro parou. A casa estava diferente novamente, meio velha, meio nova.
Paguei o taxista utilizando o dinheiro que saquei antes de visitar Lilly. Mas antes de sair confirmei algo:
— Pode me dizer a data de hoje?
— 23 de maio — ele disse.
— De qual ano?
— 2004 — franziu o cenho, estranhando a pergunta.
— Obrigada — sorri e me pus para fora do carro quase saltitando. Eu viajei mais uma vez! Estava em 2004 para salvá-lo e garantir que ele estivesse em 2019.
Analisei o que me cercava. Eu me lembrava de estar ali quando era criança. Me lembrava das roupas das pessoas na rua, dos carros tecnológicos que agora eram consideravelmente velhos, de tudo um pouco. Era como uma memória distante, mas ela existia porque estive naquele ano em certo ponto da minha vida. Tinha um toque nostálgico e melancólico estar ali sem ser em uma casca de garotinha, como se fosse uma anomalia no curso normal da vida.
Senti o frio na barriga me dominando mais uma vez antes de tocar a campainha. Apertei o botão pequeno dourado e o barulho ecoou pelo interior da casa.
Quando a porta se abriu, vi mais uma versão de Lilly e esqueci tudo o que estava pensando para sorrir meu maior sorriso. Ela tinha vinte e poucos anos e parecia mais com a versão que deixei naquele quarto.
Ouvi um grito e ela parecia estar em choque.
— O que... O quê? É... Você? — gaguejou. Seus olhos estavam arregalados.
Assenti.
— Sou eu.
— Não é possível, você disse que só me encontraria em 2019. Só se... Eu não vivi até 2019? — ela ainda estava incrédula.
— Você viveu. Acabei de te ver lá. — Meu corpo se arrepiou por causa do vento frio que antecedia a chuva. — Posso entrar? — pedi.
Ela me deu passagem e fechou a porta. Sentei-me no sofá, sem esperar ser convidada. Eu já me sentia em casa ali.
— Andreas! — ela gritou no pé da escada. — Desculpa, preciso de alguém para dizer que não estou louca — explicou. — Andreas! Corre aqui!
Concordei com a cabeça enquanto ainda sorria para mostrar que não havia problema. Eu mesma não acreditaria se tivesse em sua pele.
Andreas desceu a escada correndo e escorregando sobre suas meias brancas para ver o que Lilly apontava. Seus olhos também se arregalaram ao me ver.
— Não pode ser — ele murmurou.
— Oi, Andreas. Quanto tempo! — falei, tentando normalizar a situação.
— Eu não estou louca, não é? — Lilly perguntou a ele.
— Se você estiver, eu também estou. — Seus olhos estavam vidrados em mim, sem nem piscar.
Os dois me olhavam como se eu fosse um monstro no meio da sala de estar. Fiquei um pouco incomodada, mas sabia que fazia parte do processo deles de aceitação. Fora que realmente era uma situação absurda, tinha que reconhecer. Era um dia como qualquer outro para eles e de repente alguém que sumiu há mais de dez anos aparecia na porta da sua casa, sem envelhecer nada.
Ela caminhou devagar até mim, deixando Andreas que ainda estava feito estátua para trás, sentou-se no sofá com cuidado e me analisou.
— Você não mudou nada — comentou mais uma vez.
— Já te ouvi falando isso hoje — brinquei.
Ela sorriu e me abraçou como se eu fosse quebrar se me apertasse um pouco mais. Eu tomei a liberdade de apertá-la e senti sua risada feliz no meu ombro.
— Eu sabia que você não era daquela década. Até disse aquela vez e você brincou, perguntou se era tipo uma alienígena, e fiquei pensando que eu devia estar ficando doido por pensar isso. Aliás, você não é uma alienígena, é? — Andreas disse atrás do encosto do sofá, acabando com o nosso momento. Me separei de Lilly para encará-lo.
— Não, seu bobo. Sou só uma humana que deu sorte de ter a oportunidade de viajar no tempo.
Ele suspirou, aliviado.
— Que bom, já estava nervoso com uma possível invasão alienígena. Se eles estivessem tão bem disfarçados, estaríamos muito ferrados... — divagou e eu sorri com sua imaginação fértil.
Lilly pegou minha mão como ela tinha feito várias vezes em 2019, atraindo minha atenção.
— Se você veio de 2019, então já sabe se o bebê conseguiu atravessar o século contigo, não é? — ela perguntou com os olhos brilhando em esperança.
— Sim. E vocês serão tios de uma menina — dei a notícia com um sorriso ansioso e assisti os dois pares de olhos iguais se acenderem. — Por enquanto, o nome dela é Emma.
Ela se jogou para trás com as costas no assento do sofá e comemorou com os braços, como fazia quando era adolescente. Andreas sorriu com esperança. Estava tudo incrivelmente feliz, até ele me trazer de volta para realidade perguntando:
— Como você viajou no tempo?
Contei uma versão resumida de toda a história até chegar ali, tentando explicar mais ou menos como era a realidade dali a alguns anos.
— Eu tenho filhos? — Lilly perguntou, alegre.
— Tem dois meninos. Andreas também tem um filho — contei o que eu podia para não interferir na vida deles. Não queria que houvesse uma consequência por causa disso. Eles não me cobraram mais informações e eu fiquei aliviada.
— Então, se você está aqui, é porque veio salvar o , certo? — confirmou ele com cautela.
— Sim. Como eu disse, tenho duas chances para salvá-lo em anos diferentes. Não sei o motivo de ganhar essas duas chances, espero descobrir logo — falei e suspirei com pesar. — As coisas não são tão óbvias assim quando tem uma divindade controlando seu futuro.
Eu queria poder saber mais, mas agora não tenho mais meus meios de comunicação para entrar naquele site e procurar qualquer informação que tenha escapado da minha atenção. Era só eu e o que sobrou da minha memória dali em diante.
— O vai surtar — ela disse enquanto seus olhos brilhavam ansiosos e mordia o lábio inferior. — Ele vai literalmente surtar. Já tem tanto tempo que ele vem te esperando. Foi tudo tão triste. Nunca mais o vi sorrindo como sorria quando você estava aqui.
— É por isso que disse para a Lilly de 2019 que era melhor vir para cá primeiro. Já sei que ele está morando no meu antigo apartamento em Hässelby e que não teve coragem nem de doar minhas coisas. Ele vai reagir de maneira intensa, então ir até lá primeiro seria correr o risco de fazê-lo passar mal quando me visse.
Eles assentiram e os semblantes deles foram tomados por seriedade.
— Você quer que eu ligue para ele vir aqui agora? — Lilly perguntou.
— Pode ser, se não for incômodo.
Não fazia diferença ser naquele momento ou depois, a gente precisava só arrancar o band-aid uma hora. Não poderia demorar muito porque tinha certeza de que ele nos odiaria se descobrisse que me escondi por muito tempo. Ah, e porque ele morreria dia 6 de junho e eu só tinha basicamente uma semana para fazer tudo dar certo.
Lilly pegou o celular de flip que estava em uma das prateleiras da estante de livros e discou o número.
— Oi, — disse depois de a chamada ser atendida. — Tem como você correr para cá? Hm... É meio urgente, sim, se puder vir bem rápido seria bom... Não posso dizer, só quando chegar... Ok, vou ficar te esperando.
Ela fechou o aparelho e nos olhou, apreensiva.
— Ele ficou meio bravo porque estava trabalhando, mas está a caminho. O que a gente faz agora?
— Temos que ter muita cautela mesmo. Eu vou ficar escondida no topo da escada e vocês tentam preparar o terreno — expliquei. — Não deem muito na cara para ele não se desesperar.
Eles concordaram.
— Quanto tempo ele demora para chegar aqui? — perguntei.
— Uns cinco minutos — foi Andreas que respondeu.
Gelei. Não sabia se estava preparada para aquilo acontecer em cinco minutos. Meu estômago embrulhou de novo, mas não tinha tempo nem de pensar em botar para fora. Subi os degraus e fiquei no corredor dos quartos, onde ele não poderia me ver. Aquela área estava diferente dos anos 90, achava que era a pintura, antes era um tom terroso e agora era cinza.
Não demorou nem cinco minutos para ouvir a porta se abrindo e passos irrompendo firmes por ela.
Que porra você fez, garota? — ouvi a voz dele. — É bom ser uma merda gigantesca, porque eu estava trabalhando.
Calma. Se acalma — ela pediu. — Você quer uma água com açúcar?
Lilly estava deixando muito na cara oferecendo logo isso do nada, mas me controlei para grunhir de nervosismo baixinho com a ansiedade que me dominava.
Para que diabos vou querer uma água com açúcar antes de saber o que aconteceu? — ele perguntou em um tom afetado. — Lilly, se você está me oferecendo água com açúcar é porque vou ficar mais puto. Conta logo o que é.
Enquanto você não se acalmar, a gente não vai te mostrar — Andreas disse.
E você está metido nisso também? Cara... Que porra vocês aprontaram? É o meu pai? Ele morreu?!
Não! — Lilly exclamou. — Se acalma, não é nada grave como você está pensando.
Então significa que você poderia ter me esperado sair do estúdio, o que automaticamente me deixa com mais raiva.
Para de ficar com raiva! — Andreas levantou a voz.
Então fala o que é! — ele também levantou a voz.
Aquilo não estava indo nada bem.
Sente-se. Quando você se acalmar, a gente fala o que é — Andreas pediu.
Passaram-se alguns segundos de silêncio.
A gente realmente não vai falar enquanto você não estiver sentado e calmo naquele sofá.
Vocês são dois idiotas — ele disse e ouvi passos de novo.
Ok, parece que deu certo. Passaram-se alguns minutos.
Sobre o que é? Não precisa falar tudo, só fala o tema — ele disse, quebrando o silêncio.
Não dá. É um assunto que te deixa muito estressado — Andreas disse.
Acho que dá para falar sobre o que é, sim, Andreas — Lilly disse.
Arregalei os olhos, com medo do que viria a seguir. Por favor, cuidado com o que vocês vão falar, pensei.
É sobre a — ela disse, com cautela.
O que tem ela? — ele perguntou, parecendo realmente ter ficado mais bravo pelo tom de voz.
É sobre ela. Você vai saber quando se acalmar — ela rebateu.
Lilly, eu juro, se você mexeu em alguma coisa dela de novo... É melhor falar logo. — Sua voz estava mais grossa e severa.
Ela bem que disse em 2019 que ele não deixava ninguém mexer nos meus pertences. Tive vontade de rir, por mais que aquilo parecesse um pouco doentio da parte dele, eu achava um pouco fofo no calor do momento.
Eu não fiz nada e você só me acusa! Quem está ficando puta agora sou eu — grunhiu.
Então fala e acabe logo com isso, oras — pediu. — Não vou calar a boca agora que sei que é sobre a . Vocês vão ter que falar.
Chega! Você é muito insuportável! — Andreas exclamou, sem paciência. — Pode sair.
Respirei fundo e me apoiei no parapeito, para ficar visível. Ele realmente estava sentado no sofá, no que ficava encostado para parede e virado para a escada, com Lilly ao seu lado. Andreas estava sentado no sofá que eu e ela estávamos minutos atrás.
Eu sabia como ele estaria porque vi fotos, mas, ainda assim, levei o mesmo susto que o da primeira vez em que o vi naquela loja de discos.
Dessa vez, no entanto, eu não desmaiei.
Ele estava bem mais velho, agora tinha um cavanhaque longo a ponto de fazer uma trança e prendê-la. Seu cabelo estava gigante, as pontas passavam da cintura. Os vincos da sua testa estavam bem visíveis por causa da surpresa e da idade.
Nós dois nos olhávamos incrédulos e assustados. Nunca pensei que realmente chegaria até ali.
— Oi, meu amor. — Tentei sorrir, mas meus lábios tremiam assim como o resto do meu corpo.
Resolvi descer os degraus para me aproximar. Ele pareceu acordar de um transe quando comecei a me movimentar e andou com passos apressados até o pé da escada. Nós chegamos ao mesmo lugar no mesmo segundo. Aquele perfume familiar invadiu minhas narinas, mas dessa vez com um cheiro desconhecido, algo como um desodorante novo. Seus olhos estavam naquela tonalidade nova da cachoeira e tinham algumas rugas em volta. Vi argolas reluzirem em suas orelhas com o sol que entrava pela janela ao lado da escada. Ele também parecia me analisar, mas como se eu fosse o monstro de minutos atrás. Nos seus olhos, eu vi tanta incredulidade como se alguém estivesse tentando se passar por mim em uma brincadeira de mau gosto.
Peguei sua mão e a coloquei na minha bochecha.
— Sim, sou eu. Me olhe. Me sinta — falei, tentando tirar alguma reação dele. Ele estava sem emoção como antigamente e aquilo me preocupava.
Seu dedão acariciou minha bochecha.
... — Ele fechou os olhos como se estivesse com dor. — Você realmente me achou.
Meu sorriso foi amoroso ao perceber que ele ainda lembrava da minha promessa na mensagem gravada.
— Eu disse que te acharia, . — Encaixei a palma da mão nas costas da sua que tocava meu rosto.
Ele sorriu, revelando mais as rugas ao redor dos olhos agora abertos.
— Eu... Eu posso te beijar? — ele perguntou, com receio.
Senti as borboletas no estômago como se tudo fosse novo de novo.
— Por que não poderia? — perguntei.
— Porque eu pareço ser o teu maldito pai — brincou, rindo. Os irmãos dele também riram atrás.
— Para o seu azar, eu já tenho um pai — brinquei também, agarrando seu cabelo e aproximando nossos narizes. — Mas você pode ser algo como um sugar daddy — brinquei.
— Eu serei o que você quiser — ele piscou, utilizando todo o seu charme enquanto mirava meus lábios, e depois colou nossas bocas.
Esse foi o nosso beijo mais intenso. Nem o do dia que ele falou que me amava tinha tanta saudade misturada com amor. Não teve necessidade nem de aprofundar porque ele já tinha começado com a língua na minha. Sua mão amparou a parte de trás da minha cabeça e ele parecia querer se fundir a mim através das nossas bocas, me deixando sem ar e flutuando ao mesmo tempo com a sensação. Eu sabia que ele tinha sofrido todos esses anos, mas só agora pude sentir o peso daquilo nele.
— Ei, arrumem um quarto! — Lilly gritou e uma almofada atingiu a gente.
Interrompi o beijo quando fui lembrada que tinha plateia e ele encostou a testa na minha.
— Ah, ... Eu te amo tanto. Nem um pouco menos depois de todos esses anos — disse enquanto eu assistia de perto as lágrimas molhando suas bochechas. — Estou me perguntando se você é real.
— Eu também te amo muito, mesmo que só tenham se passado dias para mim — sorri. — Sim, eu sou real. Parabéns, você se apaixonou por uma viajante do tempo!
Ele também sorriu.
— Com tanta gente por aí, você escolher logo a mim... Eu, honestamente, não sei o que fiz para merecer — riu, mas depois seu sorriso foi se desmanchando aos poucos. — Agora que você está aqui, eu tenho alguns esclarecimentos para dar. Aquele dia que você apareceu, em ‘91... — ele começou.
— Shhh. Você não tem que explicar — interrompi, já sabendo que ele falaria sobre a noite que tudo virou de cabeça para baixo e o momento seria arruinado. Não queria falar sobre Natalia quando estava tão emocionada em vê-lo, trazê-la à tona só tendia a estragar tudo entre a gente.
— Não, você tem o direito de saber. Eu tentei ligar para sua casa e ninguém atendeu, então fui até lá e aquele
— Veja lá como vai falar do meu namorado! — Lilly advertiu de longe.
Ah, é. Eles já namoravam. Iam até casar ano que vem, pelo que ela disse. Ele separou nossas testas e virou um pouco a cabeça, para que os irmãos escutassem:
— Foda-se. Aquele finlandês desgraçado — xingou.
Lilly fez cara feia e jogou outra almofada. Sorri ao ver que eles ainda brigavam como antigamente. Algumas coisas nunca mudavam, não é?
— Ele estava lá e eu comecei a ver tudo vermelho. Não quis saber de nada. Só te ouvi falando que a gente não tinha exclusividade e tudo passou a ter sentido. — Exatamente como eu pensei. — Eu ia te pedir desculpa por como agi no dia do seu aniversário e pedir para ficar na sua casa, cheguei até a levar minhas coisas na hora, porque a Natalia estava em Estocolmo e não tinha casa para ficar, então eu cedi a minha. Na época, os pais dela tinham se mudado para outra cidade, sei lá, nem me lembro mais. Já sabia que você iria surtar se soubesse que nós dois estávamos sozinhos no mesmo ambiente, então peguei minhas coisas e fui para lá. Depois de encontrar aquele garoto, fiquei com ódio, tanto ódio que fui me encontrar com ela e outros amigos em um pub. Acabou que saímos de lá tarde e resolvi ficar em casa mesmo. — Ele passou a mão pelo cabelo, mostrando que estava desconfortável. — Nada aconteceu, eu juro. Eu jamais te trairia. Ela tentou e saiu espalhando as próprias roupas pelo chão enquanto isso, mas eu não fiz nada, a não ser dar um basta naquilo. Acho que a culpa foi minha, não devo ter sido tão direto. Eu terminei tudo que a gente tinha além da nossa amizade naquela noite e falei o que eu sentia, o que aconteceu quando você chegou e depois na praia, tudo. Ela disse depois que compreendia, já havia percebido que eu sentia algo a mais por você desde a primeira vez que me viu sorrindo ao olhar para você, mas é claro que ficou chateada por ter sido negada e eu já deveria ter imaginado que algo poderia sair daí. A Natalia nunca tinha reagido assim com namorada nenhuma minha, então esperei que ela pudesse mesmo entender, só fui inocente de não ter analisado que ela, por esse mesmo motivo, poderia arranjar problemas. — Ele suspirou e olhou para as escadas atrás de mim. — Depois que você apareceu, tudo aconteceu tão rápido... Quando te vi ali em cima tão triste, senti como eu era um filho da puta de não ter evitado aquela situação. Desculpa. Desculpa ter duvidado de você. Desculpa por não vir para casa do meu pai. — Ele fechou os olhos e soltou o ar. — Me perdoa, amor.
Tudo não tinha passado de um mal-entendido, por isso sorri, deixando o peso daquilo sair dos meus ombros.
— Já te perdoei, seu bobo, eu disse naquela mensagem. — Limpei as lágrimas de sua bochecha com as costas da mão.
— É, eu sei, eu já…
— Você decorou. Fiquei sabendo disso — interrompi.
— Dre…
— Não foi ele — interrompi de novo. — Você que me contou, na carta que deixou. — Continuei acariciando seu rosto. — Falando nisso, eu ri na parte que você levou um tapa porque falou meu nome enquanto estava com outra mulher.
Ele enrubesceu no mesmo segundo enquanto meu sorriso se alargava. Lilly e Andreas começaram a gargalhar.
— Não acredito que você escreveu isso, seu canalha — Andreas disse em meio às gargalhadas.
— Porra, mas que merda de cabeça oca a minha. Não raciocinei que você voltaria depois de ler aquilo. — Ele pousou a palma da mão na testa. — Eu sou um tolo, ainda não sei como funciona esse negócio de viagem no tempo. Desculpa também por não ter te poupado de saber isso. No dia que escrevi aquela carta, imaginei que te arrancaria uma risada ao saber disso.
— ‘Tá tudo bem, eu ri mesmo. E espero que depois dela você tenha gastado mais tempo pensando na minha bunda e não na cerca da minha casa. Eu morava em um apartamento em 2019.
Ele sorriu de olhos fechados.
— Isso posso garantir que sim — respondeu, envergonhado e orgulhoso ao mesmo tempo. — Oh, se sim...
Dei um leve empurrão em seu ombro entendendo a conotação dele ao responder aquilo. Aquele homem sempre seria pervertido?
Lembrei que carregava minha mochila com todo o aparato que preparei. Tirei-a das costas e puxei uma das pastas que recebi do hospital. Trouxe exclusivamente para mostrar para eles. Puxei a folha que continham as fotos do ultrassom e o entreguei. Ele pegou e franziu a testa.
— É o...? — ele perguntou, em choque.
— Sim, é a nossa filha — respondi, sentindo as lágrimas finalmente caindo.
— É uma menina? — ele perguntou com o maior sorriso que já vi em seu rosto e deixou o papel cair. — Eu sabia!
Concordei com a cabeça, sentindo a emoção do momento me atingindo feito uma onda de calor.
— Sim, eu a chamo de Emma — comentei, limpando minhas bochechas com os dedos. — Mas a gente pode mudar, se quiser.
— Não, Emma é perfeito — disse enquanto me abraçava. O senti me erguendo do chão. — Você conseguiu, ! Você voltou para mim com ela. — Ele me apertou num abraço de urso.
Soltei um gritinho, balançando as pernas no ar. Realmente me senti a super-heroína que Lilly falou em 2019. Ela e Andreas sorriam enquanto nos observavam.
— Solta ela, seu louco. Você pode machucar a bebê — Lilly gritou.
Ele me pôs de volta no chão e se ajoelhou ao pé da escada, ficou de frente para a minha barriga, como no dia que disse que me amava. Senti calafrios, mas dessa vez eram de felicidade. Ele abraçou minhas pernas e colocou o ouvido ali.
— Oi, pequena. É o seu pai. Consegue me ouvir? — ele esperou algum sinal, com expectativa.
— Ela é muito pequena ainda, só tem mais ou menos oito semanas — comentei, acariciando seu cabelo macio. Senti tanta falta daqueles fios sedosos. Apesar de que agora ele tinha bem menos cabelo, ainda era o mesmo.
— Acho que ela me escuta, sim. De algum jeito — respondeu, sorrindo. — Tive mais de dez anos para digerir a notícia da sua existência, mesmo assim, ainda não caiu a ficha. Até comprei um maldito livro sobre fetos. — O som da sua risada indicava que ele estava absurdamente feliz, eu sabia identificar, mas ela era diferente do que eu conhecia, mais rouca. — Tentei me preparar para te conhecer. Uma parte minha não acreditou que vocês realmente viriam um dia. Você já é uma garota forte. Estou tão orgulhoso de você, min lilla stjärna. Obrigado por aguentar firme aí dentro.
Ele havia a chamado de “minha estrelinha”, só consegui continuar a sorrir um sorriso carregado de emoção e vi de longe Lilly limpando as próprias lágrimas. Os olhos de Andreas brilhavam tanto que pude ver de onde estava.
Ele acariciou de leve minha barriga com sua mão grande e depois se levantou. Sua outra mão segurou meu maxilar.
— Eu te amo tanto, — ele disse, me fisgando com seus olhos como antigamente.
— Eu também te amo, .
Todo o seu sofrimento desses anos refletia ali e meu coração sentiu como se ele estivesse transmitindo para mim. O alívio de me ver também estava presente junto com o amor que sentia. Era um recado de que ele sofreu muito, mas que nunca deixou o sentimento morrer. De repente, um pouco de tristeza surgiu gradativamente, mudando a tonalidade de sua íris.
— Só que... se você está aqui, significa que estou morrendo — comentou, os lados de sua boca agora para baixo —, não é?
Prendi os lábios em uma linha fina e assenti devagar. A felicidade no ambiente acabou, deixando um clima tenso. Eu adiaria mais aquele momento, mas ele preferiu ir direto ao ponto. Era até melhor mesmo. Quanto mais cedo nós começássemos a saga de salvá-lo, mais chance teria de dar certo.
— Quando? — ele murmurou a pergunta, parecendo ter levado um soco pela minha confirmação.
— Não quero falar a data que tenho para não apavorar vocês. Vamos fazer tudo com calma e tentar te salvar. Você tem tomado seus remédios?
— Não — respondeu sem nem precisar pensar, dando de ombros.
Revirei os olhos e bufei. É claro que não, ele tomava mais porque sabia que eu controlava a medicação. Deve ter deixado de tomar assim que sumi.
— Então vamos ao médico. Mostrei seus exames antigos para um cardiologista em 2019 e ele disse que existe um jeito de controlar sua arritmia. Você só precisa fazer uma cirurgia e implantar um aparelho que vai reagir aos seus batimentos. É uma solução relativamente fácil, .
Ele fez uma careta.
— É por isso que a Lilly está torrando minha paciência, não é? Ela sabe — ele desviou do que falei. Lilly encarou os próprios pés.
— Ela sabia que seria esse ano, mas não quando. — Toquei seu rosto. — Você me ouviu? Temos que ir ao médico o mais rápido possível. Eu vim aqui só para isso.
, se eu estou morrendo, não tem o que fazer. Todo mundo morre um dia.
Senti o sangue deixando meu corpo. Tirei a mão de seu rosto como se a pele queimasse. Ele não podia estar falando sério.
— Você está me dizendo que vai desistir sem nem tentar antes? — perguntei com um toque de irritação na voz. — Eu saí de ‘91, fui até 2019 e voltei para 2004 para te ver desistir assim?
— Sinto muito, mas... — deixou a frase morrer.
Soltei uma risada, seca e sem humor. Só podia ser brincadeira.
— Eu sofri uma punição por voltar no tempo de novo, sabia? — contei, passando a mão pelo meu cabelo e fechando os olhos. — Não vim para ficar. Vou para ‘97 e passar por tudo isso aqui mais uma vez. Depois, mais uma parada em ‘88 e terei que fazer você se apaixonar por mim para merecer voltar para o dia que te deixei em ‘91, aí vou ter que me decidir entre ficar em 1991 ou voltar para 2019 e te encontrar lá. Você não tem noção de como isso está sendo e vai ser exaustivo. Eu arrisquei a vida da sua filha para vir aqui, te salvar. E você vai simplesmente desistir, porra?!
Abri os olhos. Ele me encarava com repreensão.
— Você vai embora de novo?
— É assim que funciona — falei com um mau-humor aparente. — É o preço que vou pagar para voltar no tempo e te salvar.
— Ah, não. Não, não, não. Eu não vou deixar você sair daqui — ele começou a ficar nervoso e uma crise de tosse se iniciou. — Você não pode... me… abandonar. Não agora que te... tenho de... volta.
Aquilo me assustou terrivelmente porque evoluiu muito rápido. Em um piscar de olhos, ele tossia sem parar e buscava o ar como se estivesse sendo roubado. Lilly e Andreas se levantaram dos seus lugares e vieram a passos rápidos para conferir se o irmão estava bem. Não preciso dizer que o olhar deles não foi nada bom ao vê-lo curvado, segurando o próprio peito. Enquanto isso, eu permanecia atônita. Era minha culpa, agora todos ficariam preocupados com a morte dele porque cheguei 13 anos depois anunciando que ele morreria em breve. De todas as roubadas que me meti, essa estava ganhando como a pior a cada segundo que se passava.
Eu não conseguia nem me mexer ou reagir.
— Chama uma ambulância, rápido — Andreas falou para Lilly. Tentando acalmar o irmão que se contorcia mais em busca do ar.
Eu nunca imaginei que seria a culpada por vê-lo assim. Por isso, não apareci para ele logo de cara. Fiz tudo com calma e tentando minimizar as consequências. Depois que ele reagiu bem à minha presença, não me importei mais. Não pensei que saber que eu iria embora que o faria passar mal, eu teria adiado a notícia se tivesse ideia.
As lágrimas continuaram seu caminho, descendo dos meus olhos. Continuei sem ação enquanto assistia ele ficando roxo diante de mim.
— Meu peito, Andreas, está... doendo... tanto — ele balbuciou para o irmão que o segurava e eu tive vontade de tirar aquilo dele para colocar em mim.
Percebi que essa era mesmo uma punição, afinal. Não tem nada mais cruel do que ver o homem que ama morrendo na sua frente. A cada contorcida e respiração ruidosa, uma faca perfurava meu peito e fazia meu coração sangrar.
Os paramédicos irromperam pela porta depois de poucos minutos que Lilly tinha desligado a chamada. Bom, pareceram poucos minutos da minha perspectiva de mera espectadora. Ele não tossia mais, mas estava esgotado, com dor e claramente sem ar. Colocaram o balão de oxigênio em seu rosto e o deitaram na maca móvel. Deixaram apenas uma pessoa entrar com ele na ambulância e eu entrei sem nem ao menos conversar com seus irmãos. Um dos paramédicos perguntava algumas informações e Andreas respondia rápido, enquanto Lilly chorava se abraçando.
Os olhos dele estavam quase fechados, ele encarava o teto com o olhar vazio, sem enxergar de fato. Peguei sua mão para tentar me reconfortar, mas estava tão, tão, tão fria que me apavorei e comecei a soluçar.
Eu precisava prometer que ainda havia chances para nós, eu faria tudo certinho para voltar de onde fui embora e só lá tomaria minha decisão.
— Eu não vou embora, você ainda vai ficar comigo. Vou voltar para ‘91 e tomar uma decisão. Você vai ver sua filha nascer de algum jeito, como era para ser desde o início — eu disse aos tropeços. — Resista, meu amor.
Eles fecharam as portas da ambulância. Chorei o caminho inteiro enquanto olhava para ele, procurando uma reação sequer, o mínimo sinal de que ele me sentia ali ainda.
Não podia ser, não era hoje. Era apenas dia 6 de junho, minha lembrança não podia estar errada.
Corri pelo hospital, segurando sua mão, enquanto o levavam pelos corredores. Falavam comigo, mas eu não entendia nada, como se não soubesse falar mais o idioma deles ou qualquer um. Uma enfermeira notou meu estado, me segurou e eu gritei ao vê-lo indo embora sem mim. Ele não podia ficar sem mim, ia ser pior, ele ia achar que o deixei. Ele ia se desesperar. Ela me colocou sentada em uma cadeira devido ao meu estado de histeria e, quando percebi, estava sozinha de novo. Sem ele.
Lilly, Andreas, Börje e Karin chegaram correndo, em algum momento. Quase não reconheci os dois últimos, só me lembrei por causa das fotos. Eles não sabiam se estavam mais assustados em me ver ou pelo meu estado, percebi pelas suas expressões. Falaram comigo, mas eu não conseguia entender, meu cérebro gritava mais alto com todos seus alarmes de “perigo!”. Börje e Andreas correram atrás de algum funcionário. Karin se sentou ao meu lado e passou o braço pelos meus ombros, me abraçando de lado e passando um pouco de confiança. Lilly se ajoelhou na minha frente e começou a despejar perguntas em cima de mim pelo modo que sua boca se mexia. Fechei os olhos, não queria ler seus lábios, eu estava exausta demais para conversar. Ela balançou minhas mãos e ouvi sua voz em uma bolha:
! Ai, meu Deus! Você está sangrando! — ela gritou.
Olhei para as minhas pernas e vi o sangue manchando o azul da calça jeans. Não... Não podia... Não podia ser o que parecia. Não pode estar acontecendo quando tudo já estava desmoronando.
As lágrimas cessaram porque o desespero bateu cem vezes pior.
Ela estava em perigo. Tentei alcançá-la e falar como se minhas palavras fossem a segurar ali dentro:
Por favor, não me abandone também.
O grito de Lilly atraiu funcionários do hospital. Em um segundo, uma maca apareceu na minha frente, me arrastaram para ela e eu coloquei as mãos na barriga, tentando mentalizar, com mais vigor, para ela escutar:
Não me abandone, não me abandone, não me abandone.
Tudo aconteceu tão rápido, acho que por isso que senti minha consciência deixando meu corpo e o permitindo descansar depois de dias incrivelmente regados a adrenalina.

***

Quando acordei, estava em um quarto e de camisola hospitalar. Tinham tantos fios ligados em mim que puxei alguns aparelhos ao levantar as mãos. Como vim acompanhar e acabei assim? A consciência me embebedou amargamente com os últimos acontecimentos conforme o quarto ia entrando no meu campo de visão.
O bebê.
Peguei na barriga, tentando sentir se ela estava lá. Uma mãe sabia, não é?
— Você acordou — um homem com um jaleco de médico entrou pela porta, sorrindo. — Como se sente?
— O meu bebê...? — perguntei logo de cara, com certo receio de receber uma notícia ruim com a presença dele.
— Seu bebê está bem — ele disse enquanto checava os aparelhos e escrevia na prancheta. — Foi um sangramento por conta do estresse.
Suspirei, sentindo o alívio me trazer de volta à vida.
— Onde ele está? — perguntei por , mas o médico pareceu não entender, já que claramente eu não estava falando do bebê pela minha expressão confusa. Lilly passou pela porta e veio direto segurar minha mão.
— Vou pedir para trazerem o aparelho de ultrassom para dar mais uma conferida nos batimentos do bebê, só para deixá-la mais tranquila — ele avisou para Lilly. — Com licença — pediu e depois saiu.
— Lilly, onde está o ? — perguntei, olhando em seus olhos que estavam injetados com desespero.
— Ele vai ficar bem. Está em um quarto no final do corredor.
— Fizeram a cirurgia nele? O que aconteceu?
— Eu soube que tiveram que usar um desfibrilador para estabilizá-lo depois que chegou aqui e que agora ele está entubado. Ele teve uma parada, , e falaram que tivemos sorte de o suporte chegar a tempo.
— Não. — Comecei a ficar impaciente de novo e procurei pela mochila. — Lilly, precisam implantar aquele aparelho o mais rápido possível ou ele vai morrer.
— O médico não quer nem submetê-lo a uma cirurgia de emergência, — ela disse com um olhar de pesar, as lágrimas nublando sua visão. — É tarde demais.
Não.
Eu não podia estar ali só para o ver morrer.
Não podia ser.
Uma enfermeira entrou carregando um carrinho com o aparelho de ultrassom bem maior do que eu estava acostumada. O médico veio logo atrás.
— Ele está acordado? — perguntei para Lilly, tentando me manter calma pela Emma e não correr o risco de sangrar de novo. Se eu entrasse em uma discussão com um médico, provavelmente seria ignorada por não ter um diploma de medicina e por estar alterada. Precisava pensar em outro meio.
— Não. — Ela aparentava estar sofrendo tanto, mas tanto, que foi o suficiente para me convencer de que não tinha mais o que ser feito. Eu sofri mais por vê-la assim pelo irmão do que pensei na morte dele em si, porque eu sabia que ainda tinha um jeito. Algo em mim urrou para que a poupasse desse sofrimento.
— Eu tenho mais uma chance, Lilly — falei, sem dar a mínima para a enfermeira que levantava a camisola até a metade da minha barriga e me expunha.
O médico espirrou o gel no aparelho e depois pressionou contra a pele onde provavelmente ficava meu útero. Senti uma fisgada, mas não muito forte. Ele pareceu perceber pela minha careta momentânea.
Os batimentos do bebê irromperam pelo aparelho e Lilly sorriu com tristeza. Parei de olhá-la para suspirar com o alívio que aquele coraçãozinho acelerado me proporcionou.
Ela estava bem e ainda ali, dentro de mim.
O médico analisou a imagem, depois tirou o aparelho. O som sumiu e eu senti saudades como da primeira vez. Minha menina era realmente forte.
— Eu vou salvá-lo em ‘97 e ele vai viver para me ver em 2019 — continuei, procurando os olhos tão familiares de Lilly.
Ela estava claramente receosa em me olhar, prendeu o lábio inferior em uma linha fina para tomar coragem antes de se virar.
— Queria te pedir para ficar, . Só que você disse que não tem escolha e, mesmo que tivesse, iria de qualquer forma, porque é teimosa como eu. — Ela sorriu quase imperceptivelmente. — Então o que posso te dizer é: salve-o. Salve-o por onde passar... Não deixe meu irmão morrer depois de viver a vida toda sozinho, esperando você. Ele merece, ao menos, ter essa experiência de ouvir o som do coração do bebê de vocês.
Apertei sua mão para ela ver que eu iria até o fim do mundo para atender seu desejo.
— Você precisa descansar para essa dor ir embora. É perigoso se estressar e ter mais sangramentos, ainda mais na primeira gestação. As chances de perder o bebê diminuem somente na 15ª semana — o médico se manifestou. — Vou te passar uma vitamina para ajudar tudo a correr bem a partir de agora.
Ele deixou o quarto. Ao ver a porta se fechando, comecei a desconectar os fios de mim.
— O que você está fazendo? — ela perguntou com o cenho franzido.
— Você vai me levar para vê-lo — respondi.
— Nem pensar, você ouviu o médico.
— Lilly, eu posso ir embora a qualquer momento. As instruções foram claras, não decido quanto tempo tenho. Posso ficar até o final do ano ou ter mais cinco minutos, não é minha teimosia que decide, é o tal guardião que controla tudo isso. Então preciso vê-lo, porque minha intuição está gritando que tenho pouco tempo.
Ela não disse nada, mas pude ver em sua expressão que estava relutante. Depois que arranquei todos os fios, ela percebeu que nesse momento minha teimosia realmente me tiraria de lá, com ou sem ela, nem que eu tivesse de entrar em todos os quartos do corredor. Me ajudou a desconectar a agulha do braço. Senti a camisola cair pelas pernas e lembrei do que estava faltando.
— Droga. Minhas roupas — praguejei.
— Te deixo lá e vejo o que posso fazer — ela disse. — Posso buscar outras na casa dele.
Assenti. Parecia um bom plano. Peguei a mochila que estava no armário e coloquei nas costas, só para garantir que eu não viajaria sem ela. Ela abriu a porta e olhou de um lado para o outro, se assegurando de que não tinha nenhum funcionário para nos impedir. Passou o braço pelo meu e me ajudou a percorrer o caminho. Minhas pernas doíam como se eu estivesse com muita cólica. Aquilo que eu estava fazendo era tão arriscado...
Eu não podia pensar demais.
Entrei no quarto que Lilly me levou. A primeira pessoa que vi foi Karin que veio em minha direção, preocupada, me perguntando se eu estava bem e eu fiz que sim com a cabeça no automático. Lilly pediu para os três saírem por um instante e nos deixarem sozinhos. Fiquei com medo de me aproximar da maca em que ele estava deitado porque o projetei sem vida, como se fosse de cera. Porém, quando eles deixaram o quarto, eu forcei meus pés a andarem até ele.
Soltei o ar que nem sabia que estava prendendo ao ver seu rosto um pouco corado. Ele parecia estar dormindo serenamente. Toquei sua bochecha e o senti morno, com vida. Seu cabelo longo estava espalhado pelo lençol do travesseiro, toquei os fios também e só de mexer neles o cheiro do shampoo de frutas se manifestou. Por fim, beijei sua testa.
Era uma despedida. Ele não morreria agora, mas, quando acordasse, eu não estaria mais lá. Imaginei seu desespero quando constatasse isso e uma lágrima escorreu pelo meu rosto indo parar no dele — como se ele a tivesse compartilhado comigo. Era tão triste ver sua história acabando assim... Depois de tantos anos de sofrimento me procurando, quando finalmente nos encontramos, eu tinha que partir, deixando-o com a certeza de que sua hora estava chegando. Conseguia visualizá-lo se isolando depois de sair do hospital e passando por tudo sozinho, conforme Börje disse que aconteceria. Mais lágrimas minhas pingaram em seu rosto.
E, assim, veio uma lição da decisão de me mandar para cá. Antes, eu pensava que poderia simplesmente salvá-lo e voltar para 2019, perto de todos aqueles que eu conhecia e me estabelecer lá com um mais velho. Porém, eu pertencia ao século 20. Era o meu destino viver tudo aquilo ao lado dele.
Quero ir até o fim daquela jornada e permanecer na minha realidade.
— Ao contrário do que Lilly disse, não é tarde demais. Eu vou te salvar em ‘97. Você vai ver sua filha nem que seja em 2019. — Sorri com tristeza. — Não vai acontecer, porque vou conseguir voltar para ‘91, mas é só uma garantia de que tudo vai dar certo.
Acariciei sua bochecha molhada pelas minhas lágrimas.
— Olhando pelo lado bom de ter recebido este ano como parte da minha punição, foi que eu sempre achei essa sua versão mais velha sexy — brinquei, esperando fazê-lo acordar para rir da minha palhaçada. — Vou me lembrar desse cavanhaque como motivação quando estiver presa com sua versão jovem e inconsequente dos anos 80.
Ele permaneceu ali, sereno, como se sua vida estivesse em modo de repouso.
— Eu te amo — murmurei.
Foi a última lembrança que tive de 2004.

Capítulo 30 - Cherrybutt & Firefly pt. 1

1997

Meu cérebro pulsou naquela dor familiar ao mesmo tempo que meu estômago roncou. Devia fazer quase 24 horas que eu não ingeria nada. Levantei-me, sentindo as pedrinhas do asfalto me machucarem. Nada de Vasaparken e sua grama fofa dessa vez. As gotas caíram na minha cabeça e percebi que se tratava da chuva. Olhei em volta e eu estava entre dois prédios, em um beco.
Pela noite.
No frio.
De camisola hospitalar.
Ajeitei a mochila nas costas e corri para fora do beco, esperando encontrar alguma placa que mostrasse onde estava.
A vitrine de uma loja de eletrônicos tinha TVs antigas — para mim, mas elas estavam novinhas — e que mostravam o tempo. Embaixo, enxerguei a data e a hora.
13 de novembro de 1997. 20:02.
Reconheci o lugar que estava como sendo parte do meu antigo bairro, Hässelby, porque era onde tinha a livraria com cafeteria que eu queria tanto visitar. Minha esperança ressurgiu, eu estava perto de casa. Na minha cabeça, pesei todos os prós e contras da situação, concluindo que compensava mais ir direto ao ponto, ao invés de ir até a casa dos . Até porque não parecia ter nenhum táxi — além do mais, duvido que parariam para mim naquele estado.
As pessoas começaram a me encarar por causa da minha escolha de roupa para enfrentar aquele vento congelante de outono. Envolvi meu corpo com os braços e comecei a lutar contra ele.
Obrigada por me colocar nessa situação, viu?, mentalizei para quem estava controlando aquilo.
Atravessei duas quadras batendo o queixo e ficando toda molhada pela chuva que praticamente me atacava. Um homem saiu do prédio que eu morava e levou um susto comigo. Provavelmente, ele pensou que eu tinha acabado de fugir de um hospital. Mesmo assim, ele deixou a porta do prédio aberta para mim.
Subi as escadas com um pouco de nostalgia misturada com ansiedade por poder encontrá-lo com alguma mulher, como naquele dia. Toquei a campainha e ninguém respondeu.
Insisti várias vezes, mas nada se movimentou dentro da casa.
Minha barriga reclamou por estar vazia — o que era novidade, porque fazia tempo que ela não clamava por comida assim — e me premiou com enjoo por não atender de imediato. Ela devia ter reconhecido o caminho de casa e sabia que ali estava meu banheiro, pronto para me receber. Sentei-me no tapete de entrada todo destruído, porque já tinha sete anos que ele fazia o trabalho de receber pisadas. Eu poderia descer e finalmente provar o chocolate quente daquela cafeteria que cheirava tão bem enquanto aproveitava o ar quente do aquecedor. Porém, lembrar do tempo e da camisola me tiraram toda a vontade de me mover. Meu corpo estava cansado, viajar no tempo consumia toda a minha energia.
Enterrei a cabeça nas mãos e acabei cochilando.
Ouvi alguém falando ao entrar no prédio, mas me recusei a tirar as mãos do rosto porque tinha esperanças de conseguir cochilar de novo.
— Ei, moça. Está tudo bem? — ouvi aquela voz familiar preencher meus ouvidos e meu corpo reagir a ela.
Ele não precisava nem ter falado, seu cheiro já dominava meu olfato e dava pane nos meus outros sentidos. Seu coração ainda não tinha risco de colapsar e matá-lo, então me senti ansiosa para a surpresa. Tirei as mãos do rosto e levantei a cabeça devagar, tendo um vislumbre de seus coturnos, sua calça preta, seu cabelo gigante em cima do moletom cinza e sua cara de choque.
Ele deu alguns passos para trás, com medo.
? — ele perguntou para ter certeza de que não era mesmo um monstro.
Me levantei.
— Em carne e osso e camisola hospitalar — brinquei.
Ele estava lindo com aquele boné com a viseira para trás, assim como a Lilly disse que costumava usar ao longo dessa década.
Ouvi o baque de algumas latas quando a sacola de papel foi parar no chão. Ele correu até mim e me abraçou com saudade. Seus dedos fizeram carinho nas minhas costas.
Comecei a chorar, pela emoção de vê-lo mais uma vez, de sentir seu abraço depois de vê-lo quase morrer, da exaustão que estava sendo pular de ano em ano. Ele me soltou e me fitou com os olhos em uma tonalidade mais escura.
— Onde você se meteu esse tempo todo, hein, garota? — perguntou, ainda incrédulo. — Você está igual ao último dia que te vi!
— Ah, ... Eu tenho tanto para te contar — balbuciei em meio às lágrimas.
Ele me estudou, deslizando os olhos pelo meu corpo.
— Caralho, você está toda molhada! Deve estar morrendo de frio. Vem, vamos entrar. — Ele colocou a chave na tranca ao lado da minha cintura e ouvi o clique. Senti-o me puxar para dentro e trancar a porta.
Dizer que o apartamento estava uma bagunça era bondade. Estava um caos e cheirava mal, porém o sentimento de lar ainda prevalecia. Ele me sentou no sofá e passou uma manta pelos meus braços, depois foi girar a válvula do aquecedor.
O vi parar no corredor, seus olhos mostravam o seu receio de se aproximar. Ele ainda não estava convencido de que eu estava ali. Sorri e o chamei com o dedo. Ele veio a passos lentos, como se eu fosse sumir a qualquer movimento brusco. Eu também me sentia assim. Sentou-se ao meu lado e se virou em minha direção. Ergui a mão para tocar no boné.
— Bem que a Lilly disse que você seria adepto do boné — comentei. Ele fez menção de tirar e eu toquei na sua mão para impedir. Parecia até que tinha dado choque porque ele pulou. — Deixa, é charmoso — falei, pacientemente.
Minhas mãos deslizaram por uma mecha de seu cabelo que já ia até abaixo da cintura. Seu peito se movia rápido pela respiração. Enxerguei alguns detalhes da idade, mas obviamente menos do que em 2004. Ele estava diferente, mas ainda era bem jovem. O ar quente já começava a tomar conta do ambiente, então tirei a manta dos ombros e me desfiz da mochila. Eu estava sentindo tantas saudades dele e de sentir seu calor por inteiro, que passei as pernas pelas suas e me encaixei em seu colo.
— Eu estou aqui, meu amor — falei, tentando arrancar alguma reação dele de novo. Encostei nossas testas. — Eu disse que te acharia e te achei. Por favor, diz alguma coisa.
Suas mãos pousaram na minha cintura.
— Acho que... estou sonhando de novo — ele murmurou para si e fechou os olhos.
— Ei — chamei-o, sorrindo com ternura. — Não é um sonho. Você não sonharia comigo de camisola parecendo ter fugido de um hospital.
Ele sorriu, com as pálpebras ainda fechadas.
— Da última vez, você estava com aquele seu pijama de natal cafona e a gente causou um estrago — confidenciou.
— Só você para ter sonhos eróticos comigo usando meu pijama mais confortável — soltei uma risada alta.
— Eu acabaria com qualquer outro que tivesse um sonho erótico com você. — Ele também riu. Vi o sorriso sumindo quando ele abriu os olhos. A tonalidade nova estava lá novamente, me levando a crer que era assim que eles reagiam a mim agora. — Você está realmente aqui?
Concordei com a cabeça, não conseguindo desviar o olhar de seus lábios que pareciam tão familiares e, ao mesmo tempo, convidativos. Ele colocou meu cabelo para trás da orelha e depois puxou minha nuca devagar em sua direção. Dessa vez, não tinha a Lilly e o Andreas para nos atrapalhar, então me senti livre para beijá-lo como se tivesse anos que não fazíamos isso. Nós ficamos ali por vários minutos, fazendo o reconhecimento um do outro. Ele, para ter certeza de que eu estava realmente ali, eu, para ter certeza de que ele estava vivo. Porém, minha barriga resolveu atrapalhar o momento com sua reclamação. Eu ia ignorar, mas ele sorriu e partiu o beijo.
— No hospital não tinha comida? — ele brincou.
— Não, por que você acha que estou aqui?
— Porque você me acha gostoso.
— É, e é exatamente por isso que vou comer você inteirinho — fingi morder seu pescoço. Sua risada me sacudiu. Ele me colocou de volta no sofá e se levantou.
— Acabei de me lembrar que deixei a porra das compras no corredor — resmungou e foi em direção à porta. — Céus, o que você faz comigo... — Sorri ao observá-lo indo pegar a sacola do chão.
O de 1997 reagiu melhor do que pensei. Parecia até estar me esperando de alguma forma. Sei que ele nunca parou de me esperar, mas o de agora tinha mais esperanças em me ver do que o de 2004, talvez pela minha partida estar relativamente mais recente.
Acho que foi bom ter ido direto ao ponto, não teve nada para causar expectativa e ele pareceu mais calmo. Talvez fosse também aquela parte que nos faz reagir racionalmente ao ver alguém no estado que eu estava, molhada e praticamente pelada porque a chuva deve ter feito a camisola ficar transparente.
Ele entrou com a sacola e fechou a porta de novo.
— O que você quer comer? — perguntou atrás do balcão da cozinha americana.
— Hmmm... Você por acaso não teria achocolatado e pão tostado com queijo, não é?
Ele revirou os olhos enquanto sorria.
— Velhos hábitos que nunca mudam.
— Ei, só se passaram dias para mim! — me defendi.
Ele começou a andar pela cozinha enquanto preparava o que pedi. Às vezes, parava, conferia se eu ainda estava ali e sorria ao constatar que sim. Eu estava mesmo na sala, observando-o de volta com o mesmo sorriso. Dava para notar que era mesmo só para garantir que eu ainda estava ali e isso sustentava meu sorriso e aquecia meu coração.
Percebi que ele não perguntou sobre a gravidez de novo, me fazendo desconfiar que ele estava evitando para não correr o risco de me magoar. Ou talvez ainda não tivesse caído a ficha para perguntar aquele tipo de coisa.
Ele me entregou o prato e a xícara, depois se sentou de volta ao meu lado. Comi com tanta vontade que faltei engolir a louça junto. Ele me observava com curiosidade.
— Cara, isso daqui está muito bom — falei com a boca cheia, arrancando-lhe outro sorriso.
— Parece que você não come há dias — comentou, os braços e pernas cruzados.
— Não só parece. Desde aquele jantar do meu aniversário, nada me causou fome ou parou no meu estômago.
O seu sorriso desmanchou e ele ficou tenso.
, queria pedir perdão por... — ele começou a falar, deixando o ambiente meio triste.
Por isso, cortei-o, levantando a mão enquanto bebia o resto do achocolatado. Pousei a xícara em cima de uma revista erótica que estava na mesinha do telefone. Preferi nem comentar sobre aquilo. Baixei a mão quando me virei de volta, em um gesto para não ligar.
— Você já me contou tudo em 2004 — comentei. Ele franziu o cenho. — Estou sendo punida por ter viajado uma segunda vez, por isso parei em 2004 depois de 2019.
Ele ainda não parecia ter entendido muito bem. Então resumi tudo mais uma vez, agora contando sobre ele ter quase morrido e não poder fazer a cirurgia. Ocultei as partes que continham o bebê de propósito.
— E por que você está de camisola, se eu que passei mal? — questionou, muito certeiro.
Olhei em seus olhos, esperando que ele entendesse. Mas nada. Então peguei sua mão e a coloquei na minha barriga, bem onde ela crescia.
Ele arregalou os olhos.
— Você ainda está...? — ele perguntou, com cautela.
— Grávida? Sim. E você é o pai, caso não saiba — brinquei.
Ele abriu aquele sorriso gigante de novo e acariciou minha barriga.
— Nós vamos ser pais mesmo? — ele sussurrou, encantado.
— Sim, meu amor. E de uma menina — contei mais uma vez, sentindo meu coração bater nos meus ouvidos pela ansiedade.
Ele pareceu ainda mais encantado.
— Eu sabia — ele comentou, ainda olhando para a minha barriga. — Sabia que seria uma menina.
Se abaixou para colocar o ouvido ali, como em 2004. Ele abraçou minha cintura.
— Oi, bebê. Consegue me ouvir aí de dentro?
Sorri por ele ter feito e falado a mesma coisa. Dessa vez, eu não comentei sobre ela ainda ser nova demais sequer para que eu a sinta se mexendo, quem dirá para ouvir ruídos externos.
— Só para saber o quanto você já é importante para mim, você conseguiu fazer a sua tia Lilly me convencer a comprar um livro sobre bebês. Ela acha que pode me convencer a fazer tudo, mas dessa vez sei que concordei por culpa sua. Eu queria saber tudo sobre seu crescimento para momentos como este, para me preparar caso tivéssemos que conversar. E vou te dizer, as coisas que li naquele livro... — bufou. — Espero que você me recompense sendo a minha garotinha para sempre.
Nós dois rimos.
— Fico muito feliz em saber que você ainda está aqui, estrelinha — sussurrou em sueco, como se fosse um segredo.
Ele subiu o olhar até me encarar com um sorrisão enorme.
— O nome dela é Emma. Você disse que gostou em 2004, mas, se quiser, a gente ainda pode mudar.
Seus olhos brilharam.
— Eu gosto de Emma. É pequeno e bonito. — Acariciou minha barriga.
Quando tirou sua mão que me tocava, eu senti falta do calor dela. Ele estava tão quentinho e eu fria feito uma pedra de gelo.
— Acho melhor você tomar um banho e tirar essa roupa molhada, não quero que fique gripada — ele também pareceu notar nossa diferença de temperatura.
Era realmente uma boa ideia, eu não tomava banho há algum tempo e estava praticamente implorando por uma água quente.
— Você me emprestaria uma roupa minha? — brinquei. Ele parecia confuso. — Lilly me contou que você não deixa ninguém tocar nas minhas coisas.
Ele sorriu, todo envergonhado.
— Aquela fofoqueira. Vocês duas, aliás. Duas fofoqueiras, como antigamente.
Fiquei séria, pensando o quanto ele deveria estar sofrendo por mim e tratei logo de censurá-lo:
— Você não precisava ter feito isso. Só te fez sofrer mais.
— Eu sabia que esse dia chegaria e queria fazer com que você se sentisse em casa de novo — admitiu.
Quis abraçá-lo, mas achei que já o tocara demais e ele poderia me achar pegajosa. Ele era um fofo, eu não conseguia lidar com o quanto senti sua falta.
— Você poderia ter pelo menos guardado as pantufas. Não precisava tropeçar e quase cair à toa — comentei o que tinha em sua carta e especialmente em uma de suas músicas.
Ele imediatamente se alegrou.
— Você ouviu as músicas?
— Sim. Eu já tinha escutado quando te conheci, na verdade, e a das pantufas é uma das minhas favoritas. Confesso que, em 2019, já fantasiei em ser o motivo das suas canções de amor.
Ele sorriu de lado.
— Você já fantasiava comigo antes de me conhecer? — me provocou com malícia em cada sílaba. Era bom tê-lo de volta, agindo com a malícia de sempre.
Imitei seu sorriso, disposta a entrar no seu jogo.
Toda noite — sussurrei para provocá-lo.
Ele fechou os olhos e sua expressão era de ter provado algodão doce. Literalmente dar doce para uma criança.
— Vou pegar suas roupas, antes que eu fique e perca a cabeça — falou, indo até onde era meu quarto e, atualmente, o dele.
A mobília ainda era a mesma, mas a TV era “nova”. Não sei como ele assistia algo sem se distrair com aquelas latas de refrigerante emoldurando a tela.
Notei, só agora, a ausência de Solveig e fiquei triste. Se ele me escreveu aquela carta em 1996, o cachorro não deve ter morrido há muito tempo. Lembrei de todos os nossos momentos juntos, especialmente quando me pediu espaço e ele me fez companhia. Eu lembraria dele para sempre.
voltou com uma toalha e o meu pijama velho. Tive vontade de soltar um grito de felicidade ao vê-lo. Era realmente como estar de volta em casa, assim como ele disse.
Tomei banho no banheiro do corredor com um sabonete mais cabeludo que um kiwi e usei seu shampoo de frutas. Apesar de o meu shampoo ainda estar ali, achei melhor não arriscar porque ele parecia em muito mau estado. O pijama cheirava a guardado, mas limpo, então me senti feliz em estar dentro dele.
Procurei-o pela casa, desviando das pilhas de roupas no caminho. Ele estava de calça de pijama e sem camisa ou o boné — que agora parecia fazer parte dele —, deitado na cama relativamente arrumada. Usando os óculos de grau que Lilly me entregou em 2019, analisava alguns papeis. Encostei no batente e o admirei. O único lado bom daquelas viagens no tempo era poder apreciá-lo em todas as suas fases, então continuei aproveitando para olhar cada detalhezinho seu. Ele não notou minha presença durante alguns minutos. Quando notou, me olhou por trás das lentes e sorriu. Sentei-me ao seu lado e ele tirou os óculos.
— Estou ficando velho — explicou, colocando a armação na mesinha.
— É, você está... Mas nem um pouco menos atraente, devo ressaltar — comentei e me aproximei. Fiquei de joelhos no colchão e depois apoiei as mãos também para sussurrar em seu ouvido: — Será que você pode usar esses óculos durante?
Ele gargalhou. Sorri ao vê-lo tão feliz.
— Eu criei um monstro — ele disse, como nos velhos tempos.
Ia me ajeitar na cama, mas lembrei que aqueles lençóis poderiam não estar muito limpos. Seria bem a cara dele.
— Se esses lençóis tiverem fluidos corporais de outras mulheres, eu não responderei por mim — saiu como uma ameaça.
— Não se preocupe, eu troquei tudo exclusivamente para você enquanto estava no banho — respondeu, procurando algo nas gavetas da mesinha. Ele ergueu um livro e o analisou, depois me entregou.
Peguei o livro sobre bebês e gestantes, agora foi minha vez de gargalhar.
— Ela realmente te fez comprar esse livro — comentei.
Elas. Foi um complô entre tia e sobrinha — resmungou, escondendo o sorriso.
— Você pode ler para a gente, que tal? — sugeri.
Ele pegou o livro e colocou de volta os óculos. Sentei-me com as costas na cabeceira de madeira para me concentrar. Pousou a cabeça no meu colo, me surpreendendo. Achei um gesto tão fofo que senti lágrimas brotando nos meus olhos. Provavelmente a culpa era dos hormônios.
Começou a ler, às vezes parava e virava para comentar algo. Sorri, deslizando os dedos pela barba — que parecia estar começando a crescer agora, por isso os fios eram curtos e finos.
— Em 2004, você deixou um cavanhaque crescer a ponto de fazer uma trança. Acho que era moda na época — interrompi.
Ele desviou os olhos do livro.
— Não é uma má ideia. Mas acho que as mulheres não devem gostar muito. Elas reclamam que pinica o rosto quando está assim.
— Eu gostei. Queria que me pinicasse em um lugar específico... — provoquei.
Ele abriu a boca em um “O”, sem acreditar no que falei.
— Emma, tape os ouvidos. A sua mãe enlouqueceu — falou com minha barriga.
Rimos por um tempo e depois ele continuou a ler. Esperava que ela ainda estivesse ouvindo atentamente, apesar de não ter como, porque eu estava simplesmente presa em cada pedacinho desse homem. Era tudo novo e conhecido ao mesmo tempo, fiquei pensando se nós ainda tínhamos a mesma sintonia — saber o que o outro quer sem dizer uma palavra sequer. Será que ele estava sentindo aquela onda de calor dominá-lo pouco a pouco como eu?
Eu estava tão cansada, mas a curiosidade de saber se ainda era o meu ali depois de todos os anos e de várias mulheres que passaram pelos seus braços me manteve ligada. Deslizei uma mão pela sua barriga, passei pelo caminho da felicidade abaixo do umbigo. Ele pareceu não se importar. Adentrei o cós da calça e o peguei.
Ele me encarou, sério. Sua pupila estava dilatando pelo desejo repentino.
— Leia — ordenei e fui obedecida.
Movimentei minha mão enquanto ele lia sobre cordão umbilical. Me senti a maior pervertida do universo. Em certo ponto, ele soltou um gemido longo e fechou os olhos, se rendendo.
Puxei sua calça para baixo e revelei a ereção. Meu fogo só aumentou com a visão. Tomei o livro de suas mãos e o joguei pela cama, depois o puxei pelo braço ao meu encontro. O assisti jogando os óculos na mesma direção do livro. Ajoelhou-se entre minhas pernas e me beijou na boca, senti-o puxando minha calça e eu passei a blusa pelos braços e pescoço.
Depois de se desfazer do meu pijama, ele continuou a me beijar e eu continuei a masturbá-lo com toda minha força de vontade. Seus gemidos abafados pela minha boca ficavam cada vez mais frequentes e necessitados. Eu estava queimando em expectativa pelo prazer dele, queria provar a mim mesma que ele ainda era meu como antigamente, apesar do tempo que se passou para ele. Queria provar também que ele não era aquela casca oca que deixei em 2004, mas um homem saudável e responsivo aos meus estímulos. E ele atendia a cada um dos meus anseios sem nem saber, me deixando cada vez mais satisfeita. Senti seus músculos que me tocavam enrijecerem gradativamente e seus quadris acompanharem o ritmo da minha mão.
— Porra... — ele xingou com a boca ainda na minha. — Baby, se você continuar, eu vou...
Percebi que estabeleci tanto controle sobre ele, deixando-o tão vulnerável aos meus movimentos, que me senti nada menos do que extremamente poderosa. Eu não ia além daquilo por querer somente agradá-lo. Então sussurrei contra sua boca, o interrompendo:
— Diz o meu nome, que nem você fez para merecer o tapa daquela mulher.
Vi seu sorriso pervertido se formando lentamente conforme a compreensão o invadia.
Assisti-o revirando os olhos alguns segundos depois.
— Ah, , eu senti tanto... a sua... falta — ele gemeu baixinho, se libertando na minha mão, no que sobrou da minha roupa e um pouco na pele da barriga também.
Deixou o corpo cair até sua cabeça estar de novo no meu colo e me abraçou. Ele estava com a cara enfiada na parte limpa da minha barriga.
— Espero muito que esteja dormindo e não tenha presenciado essa obscenidade — falou com minha barriga, a voz abafada por ela.
Ri baixinho e afastei sua cabeça para me olhar.
— Preciso me limpar — anunciei. Ele se virou e caiu de costas do outro lado do colchão.
Fui até o banheiro, lavei a mão e me limpei. Ele tinha tirado o livro, os óculos e meu pijama de cima da cama. Deitei-me ao seu lado, com a cabeça em seu peito, nossas pernas se entrelaçando.
— Não imaginei que tivesse de te encarar depois que você lesse aquela carta — resmungou de novo, como sua versão do futuro.
Resolvi fazer a mesma piada também.
— Você gastou menos tempo pensando na cerca da minha casa e mais na minha bunda depois dela?
— Isso posso garantir que sim — ele respondeu a mesma coisa. — Oh, se sim.
Sorri antes de fechar os olhos.
O meu , no fundo, sempre seria o mesmo.

Capítulo 31 - Cherrybutt & Firefly pt. 2

1997

Acordei tendo que correr para o banheiro por conta do enjoo. Vomitei todo o pouco conteúdo que tinha no meu estômago e quis chorar por isso. Descansei a bochecha na tampa do vaso depois de apertar a descarga.
Senti acariciar meu cabelo. Ouvi sua voz grossa matinal me perguntando se tinha acabado, fiz que sim com a cabeça, cansada demais até para verbalizar. Ele enfiou um braço por trás dos meus joelhos e outro atrás dos meus ombros para me erguer. Senti-o me carregando de volta para a cama enquanto meus olhos estavam fechados. Ele beijou minha testa e me cobriu.
Quando meus olhos abriram de novo, parecia mais tarde. Conferi o horário no despertador e eram duas da tarde. Sentei-me no colchão com os pés para fora da cama e os senti tocando em algo fofo. Conferi do que se tratava e eram as malditas pantufas. Sorri com ternura. Não era à toa que ele tropeçou e quase caiu, elas estavam no mesmo lugar que eu deixava todos os dias antes de trabalhar.
Levantei da cama, seduzida pelo cheiro de comida e praticamente o seguindo. Eu estava com fome de novo. Era um avanço e tanto.
Ele estava carregando uma pilha de roupas quando toquei suas costas. Me olhou por cima dos ombros e sorriu.
— Bom dia, minha dorminhoca favorita — disse e foi com a pilha em direção à cozinha.
Segui-o. Ele lutou para enfiar uma parte das roupas dentro da máquina de lavar. Jogou sabão, depois amaciante e a colocou para funcionar. Havia roupa espalhada por toda a cozinha. Porém, percebi que o chão do resto da casa estava livre.
— Você me observa como se não me visse há anos e não há dias — comentou, apoiando a mão no balcão do fogão e me fitando.
— Nunca vi você nessa idade ao vivo, tenho que aproveitar.
Ele sorriu.
— E, seis anos depois, o que acha? — perguntou, dando uma voltinha em si mesmo.
Chequei-o de novo com um sorriso de lado.
— Depois de te ver agora e em 2004, concluí que o tempo foi mesmo bondoso com você — concluí, cruzando os braços na frente do peito.
Acompanhei seu rosto ser dominado pela vergonha enquanto ele se aproximava.
— Acho que você está deixando sua opinião se afetar por essa cabecinha apaixonada. — Beijou o topo da minha cabeça enquanto me abraçava.
— Pode ser, nunca fiz um bom trabalho escondendo que só dá você aqui dentro — apontei para minha cabeça. Ele sorriu. — Mas não fique se achando, muitas vezes se trata de uma dor de cabeça.
Sua risada ecoou pela cozinha até a sala, fazendo seu peito sacudir. Ele me soltou e lembrei o que eu queria inicialmente.
— Não sei quanto tempo vou ficar, mas preciso de uma escova de dente — falei.
Ele me entregou uma embalagem que estava em cima do balcão com uma escova novinha roxa.
— Fui ao mercado e comprei algumas coisas enquanto você dormia — explicou.
Assenti, extremamente grata por ele ser tão atencioso, e fui escovar os dentes. Ele fazia barulho em outro cômodo. Vesti uma camiseta branca que estava pendurada no gancho atrás da porta. Passei o pente no meu cabelo revoltado por ter dormido molhado, prendi-o com o elástico dele. O reflexo no espelho refletia uma mulher meio abatida, mas que parecia ter voltado à vida. Ainda parecia magra demais para o meu normal, como minha mãe e todo mundo que teve a oportunidade fez questão de mencionar. Porém, gostei do que vi, gostei de estar em 1997.
Ele estava na sala, catando o lixo com um saco preto. Então me sentei no sofá e peguei a tal revista erótica para folhear, atraindo sua atenção.
— Você lia coisas mais promissoras antigamente — comentei, soltando a risada pelo nariz.
Ele pegou a revista da minha mão enquanto também ria e a jogou dentro do saco.
— Sabe como é, sou um homem no auge de seus trinta e um anos e não tenho uma namorada, às vezes a solidão bate — brincou, fechando a boca do saco.
— Ei, não a jogue fora! O que você vai fazer quando eu for embora? — brinquei de volta. Ele ficou sério de repente, me surpreendendo.
— Você pretende ir embora? — foi direto, olhando nos meus olhos.
Ah, não. Aquilo não tinha terminado bem da outra vez.
— Eu te contei ontem que preciso ir para 1988 — expliquei, com calma e com medo de que tudo desmoronasse de novo.
— Não posso te perder de novo — sussurrou para si mesmo. — Eu não vou aguentar passar por aquele inferno mais uma vez.
— Você não vai me perder. Quer dizer, você vai achar que me perdeu quando eu sumir. Porém, acho que vou criar outra linha da história quando finalmente chegar em ‘91 de novo e nós vamos ficar juntos nessa. Eu não vou precisar ir para 2019 e você não vai precisar sofrer até lá. Vai dar tudo certo — dessa vez, falei tudo rápido demais.
Ele ficou ali, parado, sem emoção alguma. Levantei e tirei o saco de sua mão. Passei meus braços em volta do seu tronco e murmurei:
— Da última vez, eu te perdi por esse motivo. Por favor, não faça isso comigo de novo.
Ele acariciou meu cabelo.
— É que… dói tanto sentir sua falta. Foi tudo tão difícil depois que te ouvi naquela gravação. O mundo acabou e mesmo assim tive que continuar vivendo dia após dia com esperança de que chegasse o momento que você voltaria para mim.
— Eu sei, eu sei. Nós vamos fazer tudo certo dessa vez e você não vai precisar sofrer tanto, ok? — perguntei, olhando para cima e procurando seus olhos mais uma vez.
Ele me fitou de volta.
— Ok. — Beijou a ponta do meu nariz.
Descansei o rosto em seu abdômen de novo e ficamos assim por alguns minutos. Ele quebrou o silêncio me chamando para comer.
Nós comemos enquanto eu explicava mais uma vez a cirurgia que ele precisava fazer para ter a chance de me encontrar em 2019. Enquanto eu tentava encaixar as louças acumuladas dentro da máquina, ele ligou para Lilly e pediu para ela ir até lá. Quando ouvi o interfone, corri para o quarto e vesti uma roupa. A ouvi perguntando que bicho o tinha mordido para limpar a casa e apareci, sorrindo, no corredor.
— Eu não acredito! — ela gritou e arregalou os olhos como das últimas duas vezes. Correu e me abraçou. — ? O que você está fazendo aqui, sua maluca?! Espera, é você mesmo?
— Sou eu! Lilly, você não vai acreditar... Eu vi fotos dos seus filhos e do seu marido, em 2019 — falei de uma vez, como se fosse a primeira vez que nos encontrávamos. Para ela, era. Então agi como se também fosse.
— Eu tenho filhos?! — ela praticamente gritou, no meu ombro.
— Dois! Eles são a cara do Börje — ri. Ela me soltou e me encarou.
— Então são a minha cara! — falou como se fosse óbvio. Concordei com a cabeça.
Ela me abraçou mais uma vez.
— Você realmente não mudou nada — ela disse, me analisando.
— E você vem dizendo muito isso — brinquei e nós duas rimos.
Ela me perguntou sobre o bebê e contei tudo junto. 2019, 2004. Eu estava ficando cansada de contar a mesma história, mas eles sempre pareciam tão interessados e curiosos que me faziam colocar entusiasmo.
Foi difícil para ela voltar ao trabalho porque não queria me largar por nada, mas nós também iríamos sair e dar um pulo no hospital de novo. Ele estava com seu boné, uma calça cargo verde escuro e camisa preta de manga comprida. Me pediu para vestir roupas quentes, mas pensava que era por causa do clima. Quase não acreditei quando ele me entregou um dos capacetes que estava em cima de uma Harley Davidson brilhante. Ele bateu no banco para eu subir, mas meu maxilar estava praticamente no chão de tanta incredulidade.
Ele subiu na motocicleta e a ligou, fazendo um estrondo enorme ecoar pela garagem.
— Estou de cara como sua versão de 1997 é badass! — gritei por cima do barulho, enfiando o capacete na cabeça.
— Sua carruagem te aguarda, princesa — brincou.
— E que carruagem... — Subi no banco atrás dele.
— Se segura — ele avisou.
— Eu não te soltaria por nada — murmurei enquanto sorria e me abraçava a ele.

***


Nunca andei em uma motocicleta antes. Tinha sido uma experiência fantástica, por mais que meu cabelo tenha virado um ninho e meus olhos tenham ficado incrivelmente secos. Eu amava seu Volvo conversível, mas aquela motocicleta? Ela combinava perfeitamente com o que ele se tornou.
Ao chegar ao hospital, expliquei o relatório para o médico, tentando traduzir para o sueco com a ajuda de . Ele disse que só poderiam fazer a cirurgia depois de confirmar a arritmia através de exames recentes.
Esperei-o do lado de fora enquanto ele fazia alguns desses exames, mas acabei lembrando que poderíamos aproveitar que estávamos ali e fazer um novo ultrassom. Para ver se Emma tinha reagido bem a outra viagem, também para ele vê-la pela primeira vez. A voz de Lilly dizendo que ele merecia ouvir o coração do bebê voltou às minhas memórias.
Perguntei se tinha disponibilidade, já que aquele andar era só de exames. A moça do balcão concordou com certa relutância porque precisava de encaminhamento médico, mas no fim me fez preencher alguns papeis. saiu pelas portas duplas na mesma hora que a enfermeira me chamou. Puxei-o pela mão e o carreguei de volta para dentro. Mal sabia ele o que o esperava.
Deitei-me na cadeira de exame enquanto pensava que aquela era a terceira vez que eu a veria. Eu não estava nem um pouco menos ansiosa.
— O que está acontecendo? — ele perguntou ao meu lado enquanto ainda segurava minha mão.
— Você vai ver — falei, tentando controlar a ansiedade que estava puxando um leve enjoo.
Uma médica entrou no quarto e sorriu para nós enquanto se sentava no banquinho. Ela preparou o aparelho, logo em seguida.
— Olá, . E esse seria o pai do bebê? — ela perguntou enquanto tentava achar uma posição que mostrasse meu útero.
Ele concordou com a cabeça, sorrindo seu sorriso mais feliz.
— Ele é — murmurei, olhando para ele.
Depois de Shandi e Lilly passarem por aquilo, finalmente era o “pai do bebê” ao meu lado. Eu não poderia estar mais radiante.
— Bem, mocinha. Estamos em torno da nona semana pelo que você colocou na ficha, certo? Agora alguns órgãos do bebê de vocês estão entrando em formação, como o pâncreas e o fígado. — Ela reposicionou o aparelho e mostrou a silhueta da cabeça de um bebezinho e seu corpo pequeno que nem tinha muita forma ainda.
apertou minha mão indicando sua surpresa. Ela pressionou o botão e os batimentos rápidos apareceram.
— Isso é o que parece ser? — ele perguntou e eu virei no minuto exato para presenciar seu sorriso gigante para a tela.
— O coração do seu bebê — ela confirmou.
Senti suas lágrimas pingarem no meu cabelo e comecei a chorar também. Ele parecia orgulhoso, como se estivesse esperando mesmo anos por aquilo. A médica ainda deixou o som ecoar por um tempo para não acabar com o momento. Ele beijou minha testa e seus olhos brilharam enquanto fisgavam os meus. Quando os batimentos cessaram, ele quebrou nosso contato e franziu o cenho, vi em sua postura que também sentiu saudades daquele som.
Ela imprimiu uma imagem do exame e nos entregou.
— O que anda sentindo? — me perguntou.
Enumerei nos dedos enquanto falava alguns dos sintomas daquela confusão de hormônios que me tornei e ela sorriu.
— Então está tudo nos conformes. Lembre-se que é importante ir ao médico com regularidade — falou, se levantando. — Parabéns, mamãe e papai.
Ele agradeceu, sorrindo, enquanto me ajudava a ajeitar a roupa e ela saía.
— O que você achou? — perguntei, mal me aguentando para saber o que ele achou.
— Acho que ela vai puxar a você.
Bufei e revirei os olhos.
— Duvido. Ainda mais depois de ver os filhos da Lilly, a genética de vocês é incrivelmente forte — resmunguei em um tom engraçado.
Ofereceu-me a mão para me ajudar a sair da cadeira.
— Mas a personalidade, com certeza, vai ser a sua. Para ser o meu verdadeiro inferno — brincou.
Gargalhei enquanto andávamos até a saída do hospital. É, provavelmente ele estava certo. Eu não me importaria se Emma fosse uma menininha com mais traços dele do que meus. Ela seria linda aos meus olhos de qualquer forma.
Eu me sentia relativamente ansiosa. Estava ansiosa para voltar à 1991, voltar à minha vida normal e descansar enquanto aproveitava essa ansiedade para a chegada dela. Aliás, enquanto nós esperávamos.
E ele tinha escutado aquele coraçãozinho forte, provando que ela ia muito bem, que crescia rapidamente. Cruzei os dedos para que aquele fosse um dos motivos que o desse forças para lutar e não desistir, como ele pensou em fazer em 2004.
Desligou a ignição da moto quando chegamos à garagem e tirou o capacete. Seu cabelo caiu em cascata e ele ajeitou o boné. Fiquei parada enquanto o observava saindo da moto. Ele notou e perguntou:
— O quê?
— É que eu me senti no videoclipe de Killed by Death do Motörhead.
Sua risada ecoou pela garagem.
— Quando eu morrer, quero sair da cova na minha Davidson que nem o Lemmy Kilmister.
Eu sorri genuinamente com a nostalgia de ouvir aquele nome.
— Eu tinha um gato chamado Lemmy, em 2019 — confessei, passando a perna pela moto enquanto ele ajudava.
— E você o deixou para trás?
— Ele gostava mais da minha colega de apartamento do que de mim — sorri de novo, mas um sorriso triste. — Não sei o que vai acontecer com a minha memória para aqueles que me conheciam, mas tem uma porcentagem de chance daquela nunca ter nem existido. Às vezes, eu prefiro pensar assim para sofrer menos com a saudade que vou sentir daquela realidade e da falta de resposta que vou ter a partir de agora — desabafei.
Nós subimos as escadas, ele me abraçou de lado e beijou o topo da minha cabeça. Não disse nada, afinal, o que ele poderia dizer?
Me desfiz do suéter ao chegar em casa e liguei o aquecedor. Ele jogou as chaves no balcão da cozinha.
— Tenho uma festa agora de noite para ir — avisou. Concordei com a cabeça. A vida dele não podia parar por minha causa, então continuei calada. — Você quer vir junto? Nós podemos dar uma passada rápida lá para não te cansar muito.
— Não quero me meter nos seus compromissos — falei, tirando o tênis.
— Bobagem, eu que estou te convidando. Um grande amigo meu é o dono da casa e adoraria que ele te conhecesse.
Estudei-o por alguns segundos enquanto tirava as meias. Parecia alguém importante para ele pelo brilho nos seus olhos, por isso fiz que sim com a cabeça, mas em parte também porque não estava com muita vontade de ficar sozinha. Sabia que as memórias dos meus dias de solidão na cama dele e as outras memórias voltariam com tudo. Eu não pensaria que ele pudesse estar me traindo como naquela época, mas em mim. Eu pensaria em tudo que passei, o quanto meus problemas de 1990 pareciam brincadeira de criança comparados aos atuais e definitivamente não estava pronta para pisar no freio ainda.
Tomei um banho e fui analisar minhas roupas que estavam em um cantinho do armário. Por esse lado, era bom que ele tivesse guardado minhas coisas ao longo de todos aqueles anos. Lembro como se fosse hoje o quanto foi difícil montar um guarda-roupa do zero quando cheguei à primeira vez em 1990. Ainda mais porque tive que contar com minha memória como meu referencial de moda, tudo que observei em filmes, fotos e filmagens dos anos 90. Porém, já tinham se passado sete anos, então tinha um pouco de receio de estar fora de moda com todas as peças e suas combinações. Algo amarelo chamou minha atenção e tirei o cabide do lugar para conferir. Era o vestido que ganhei de Karin na viagem. Nunca o usei e ele ainda parecia novo.
Vesti a meia-calça para garantir que o vento de outono não me mataria de frio. Passei o vestido mostarda pela cabeça e chamei para me ajudar a fechar o zíper. Ele apareceu nas minhas costas e ajeitou o tecido, olhei nosso reflexo no espelho enquanto seus dedos mornos deslizavam com o zíper pelas minhas costas. Plantou um beijo no meu pescoço e me vi sorrindo sem nem perceber.
— O que acha? — perguntei, ainda nos observando.
Ele me olhou como se eu fosse a mulher bonita que já viu e meu rosto esquentou com essa constatação.
— Linda. Você, com certeza, vai ser a pessoa mais bem vestida. — Ele sorriu, suas mãos pousaram na minha cintura e ele também olhou para o nosso reflexo. — É esse o conceito popular de a dama e o vagabundo?
Ri genuinamente, de olhos fechados, da sua comparação brega.
— Acha que estou arrumada demais? Posso trocar por algo mais simples.
— Não, meu amor. Você está perfeita — ele disse e me virou pela cintura. — Você é perfeita.
Ele usava uma camiseta branca, uma camisa preta de flanela por cima com os botões abertos e calça de camurça preta. Seus dedos tocaram meu queixo e seus olhos miravam meus lábios, ele se abaixou e passou o nariz pelo meu. Tirei seu boné e o coloquei na minha cabeça.
— Agora pareço mais casual? — perguntei, sem enxergar nada por causa da viseira na frente dos olhos.
Ele pegou o boné e colocou de volta na própria cabeça enquanto ria. Beijou a ponta do meu nariz e depois se afastou para me olhar.
— Já estamos atrasados — ele comentou. — Está pronta?
Concordei com a cabeça enquanto ia para a sala pegar meu casaco. Olhei-o de soslaio vestir uma jaqueta de moto clube.
— Cara, essa sua versão badass está definitivamente me deixando excitada — comentei com um sorriso malicioso.
Ele fechou os olhos e sorriu com sinceridade, assim como eu tinha feito há pouco, e ficando um pouquinho envergonhado também. Era muito fácil agradá-lo com palavras, eu nem me esforçava mais. Já peguei o jeito.
— Por mais que eu esteja muito tentado a nos trancar naquele quarto depois de ouvir essa declaração, nós precisamos ir. — Ele abriu a porta e me deu passagem. Pegou meu braço antes que eu saísse para o corredor. — Mas, mais tarde, você me aguarde.
Sorri e me desvencilhei.
Ah, eu mal posso esperar para experimentar tudo que você tem para oferecer, .

***


Tinha uma quantidade de pessoas considerável para se dizer que estava cheio. Muitos homens, mas só algumas mulheres. Eu realmente era a pessoa mais bem-vestida dali, até porque se tratava de uma festa majoritariamente de pessoas envolvidas com música de Estocolmo e alguns outros países europeus, pelo que ele informou enquanto estávamos entrando na casa. Ele cumprimentou alguns amigos enquanto entrávamos e senti a nostalgia de estar com ele no meio de pessoas da indústria musical.
Encontramos o tal grande amigo um pouco depois. Eles se cumprimentaram com o aperto de mão e abraço masculino.
— Rex, essa é a — ele disse, com a mão na minha cintura fazendo um carinho ali —, minha… — ele pareceu sem saber como me definir, já que agora eu não era mais uma mera assistente ou amiga.
Bom, já eu, não tinha dúvida alguma.
Puxei o ar para me dar mais coragem de finalmente dar esse passo.
— Namorada. Prazer — falei e apertei sua mão.
O amigo arregalou os olhos verdes.
— É mesmo ela? — ele perguntou, olhando para , que confirmou. Virou-se para mim de novo. — É um prazer finalmente te conhecer. Ouvi falar muito em você. Muito mesmo. A musa inspiradora do ... — ele sorriu com entusiasmo.
Fiquei envergonhada por ouvir isso de novo de alguém que não era a Lilly e um pouco receosa por talvez ele saber que eu era de outro século, mas disfarcei. Depois de jogarmos conversa fora, falei para que precisava ir ao banheiro. Tive uma lembrança vívida de quando o francês perguntou se eu era namorada dele lá em 1990 e eu tive a necessidade de garantir que não era, mesmo o homem duvidando.
Sorri.
Shania Twain tocava alto na caixa de som e realmente nada poderia descrever melhor aquela lembrança do que aquela parte da música, “Looks like we made it, look how far we’ve come my baby”. Tanta coisa tinha se passado e acontecido, nós tínhamos evoluído tanto. Antes, minha preocupação era justamente sobre como me denominar, e, atualmente, conseguia dizer que somos o que somos. Nós teríamos um bebê juntos. Via o quanto eu tinha medo de ser negada, de passar dos limites, quando ele já gostava de mim. Parecia até bobo. Nós realmente percorremos um longo caminho até ali.
Depois de encontrar o banheiro e usá-lo, procurei no meio das pessoas. Achei-o meio largado em um banco de madeira, sua perna esquerda estava dobrada e apoiada no joelho da outra, ele tinha as mãos na parte de trás da cabeça e sorria para um homem ao seu lado. Senti meu coração aquecer com seu sorriso mesmo de longe. Céus, eu realmente amava aquele homem.
Alguém tocou meu ombro e me virei para ver de quem se tratava. Me surpreendi com uma versão mais velha do que eu estava acostumada de Natalia. Meu instinto selvagem já ativou, mas eu soube contornar a situação.
? Você... está de volta? — ela perguntou, sua postura indicava que estava nervosa.
— Veja se não é minha gigante favorita — imitei-a como no último dia que nos vimos. Para mim, fazia apenas dias, mas para ela eram anos. Mesmo assim, vi a compreensão em seus olhos. Ela não parecia nada contente. — Sentiu minha falta? — Arqueei uma sobrancelha.
Não demorou nem meio minuto para ela se recuperar da minha aparição repentina.
— O pior é que senti, sabia? — ela sorriu seu sorriso falso de Barbie. — Foi muito fácil conseguir o de volta em ‘93, queria que você estivesse lá para deixá-lo um pouco mais confuso e fazer com que me sentisse mais desafiada. Pensei que ele demoraria mais a te superar, mas, assim que você saiu, ele voltou para quem sempre corre no fim das contas — ela foi direto para a alfinetada, sem enrolações dessa vez. Eu nem me surpreendi, sabia que ela mostraria as garras de novo quando nos víssemos. Era uma pena que ela tivesse esperado seis anos para fazer aquilo, achei que perdeu um pouco o timing.
— Ouvi dizer que você terminou com ele porque não podia entrar na minha antiga casa e tocar nas minhas coisas. — Ri com sarcasmo. — Então, tecnicamente, eu estive entre vocês dois todo esse tempo.
Ela se forçou a sorrir.
— Você parece magra demais — criticou, me analisando.
— E você parece que envelheceu um pouco demais nesses últimos anos. Quem sabe uma plástica ajudaria a retardar isso daí — apontei um ponto do seu rosto, só para provocá-la e ela o tocou com os dedos. Vi seus olhos faiscarem com a raiva. — Tenho que ir, o está me esperando, mas foi bom falar com você. Ah, e, Natalia, uma dica de uma mulher para outra: pare de se orgulhar de ser a pessoa para quem ele volta depois de tudo, você merece mais do que ser a segunda opção de um homem.
Pisquei um olho e abandonei-a com toda sua fúria. Eu fui sincera nessa última parte, mas sabia que ela não levou na boa. Mal podia esperar para encontrá-la de novo em 1991, quando ela achou que abalou nosso relacionamento com aquilo, e jogar umas verdades na cara dela. Senti minhas costas queimarem com seu olhar fulminante.
Ignorando-a, sentei-me no colo dele, atraindo sua atenção, e o beijei com devoção. Seu gosto era tão bom, eu estava viciada de novo. Sentia que não nos beijamos vezes o suficiente para me satisfazer, por isso intensifiquei com minha mão espalmada atrás da sua cabeça. Ele tocava a lateral do meu rosto e correspondia na mesma proporção. Era um ato de adoração. Depois de alguns minutos, foi ele que partiu nossas bocas para buscar o ar.
— O que é isso? — ele perguntou com os lábios vermelhos e sorrindo.
— Nada. — Ajeitei seu boné. — Eu só te amo muito e senti sua falta nesses minutos que passaram.
Ele passou uma mão pela minha coxa coberta pela meia-calça e descansou a outra no meu quadril. O vi sorrindo enquanto olhava para trás dos meus ombros. O perfume de Natalia voltou para minhas narinas, indicando sua presença, e me virei para olhá-la.
— Oi, — ela disse, séria, o encarando. — Será que a gente pode conversar em particular?
É claro que ela teria os culhões para não deixar passar minha alfinetada. Não sei por que estou surpresa em ouvir sua voz de novo, mas estou intrigada com o que ela vai falar.
— Pode falar aqui, Natalia. A gente não tem nada para conversar que precise ser em particular — brincou com as últimas palavras.
Ela ficou desconfortável por não saber o que dizer e eu fiquei com um pouco de dó. E dó era um sentimento tão feio de se sentir pela Natalia, ela definitivamente merecia mais.
— É que... Estive pensando e não achei certo como paramos de nos falar. Nós sempre tivemos essa coisa legal de amparar o outro quando está precisando, acho que a gente deveria tentar... sabe... sair e conversar mais de novo — ela disse em um grunhido, parecendo sentir dor por eu estar ouvindo. Eu quase soltei uma risada escandalosa, mas me contive bem a tempo. É sério que ela mandou logo essa? Em sete anos, a Natalia tinha descido bastante o nível, ela sempre esteve em um pedestal, mas ela parecia um tanto quanto desesperada.
— Isso que a gente tinha acabou há um tempão, Natalia. Você terminou comigo e de uma maneira bem fria, aliás. Mas por que o repentino interesse na minha amizade? — Ele a estudou por um momento. — Está querendo marcar território só porque sabe agora que a está de volta?
Ela pareceu querer começar a cuspir fogo depois dessa pergunta. Prendi meus lábios de novo para não correr o risco de começar a rir da reação dela. Ela estava em ebulição bem ali na minha frente por algo que ele disse, assim como eu ficava quando eles dois apareciam juntos no começo. Eu iria para o inferno por estar apreciando aquele momento.
— Meio tarde para arrependimentos, princesa — ele completou, seus olhos brilhavam com o divertimento na pouca luz.
— Vocês se merecem mesmo — ela falou entredentes. — São dois idiotas. Você tem um péssimo gosto para mulheres, , eu já deveria saber quando te flagraram com a Blenda Blomqvist — dito isso, saiu.
Enterrei meu nariz entre seu ombro e pescoço e comecei a gargalhar. Ele também ria junto.
— Em mais de 20 anos que conheço a Natalia, nunca a vi agir assim — disse, baixinho. — Antes ela ficava cheia de si porque te intimidava. Agora ela está se intimidando contigo a ponto de dizer que está arrependida por ter terminado comigo quatro anos atrás!
— Acho que foi porque eu falei que ela tinha envelhecido agorinha — continuei rindo escondido.
— Você é má. — Ele continuou passando a mão pela minha perna e a enfiou debaixo do vestido. — Também gosto da sua versão badass de ‘97 — ele brincou com o que eu disse mais cedo, me fazendo soltar uma gargalhada.
— Quem é Blenda Blomqvist? — resolvi perguntar depois de cessar a gargalhada.
— É uma história antiga…
— Eu tenho tempo.
Ele suspirou e seu sorriso foi diminuindo.
— Ela e a Natalia competiam pelo posto de garota mais popular da escola. Quando a Natalia terminou comigo pela primeira vez, porque a peguei marcando de sair com um garoto mais velho, menos de duas horas depois, eu fui pego erm... digamos que no ato... com a Blenda no vestiário da escola — explicou e meus olhos se arregalaram ao imaginar a cena. — Eu não me orgulho disso, foi algo que aconteceu puramente por vingança, tanto do meu lado, quanto da Blenda, que odiava a Natalia.
Meu Deus, a história desses dois era mesmo extensa. Acho que foi por isso que Lilly disse que eles não se davam tão bem juntos.
— A Natalia foi sua primeira namorada? — resolvi perguntar para matar a curiosidade. Ele concordou com a cabeça. — Então foi com ela que aconteceu o que aconteceu quando você contou sobre sua primeira vez assim que eu tinha acabado de chegar? — Ele concordou e se virou para me olhar nos olhos. Saber disso me baqueou um pouco. A insegurança me abraçava como uma velha amiga.
— Não vá por esse caminho de novo, baby. Mesmo que eu tenha um passado com ela, você é a única no meu coração agora. — Deixou uma trilha de beijos pelo meu pescoço, fazendo a pele ali arrepiar. Ele tocou minha pelve com o indicador por cima do tecido grosso da meia-calça, mesmo assim foi o suficiente para me fazer parar de pensar no que estava pensando e prestar total atenção nele. Encarei-o com anseio, até me esquecendo do assunto.
— Será que nós dois podemos ter aquela conversa em particular agora ou está muito cedo? — sussurrei, observando suas pupilas dilatadas.
— Agora parece ótimo. Com a senhorita, eu realmente tenho muitos assuntos para tratar em particular — ele murmurou enquanto apertava minha bunda.
Levantei de seu colo sentindo o coração palpitar. Ele se levantou e me levou pela mão para o corredor que tinha o banheiro. Me senti uma adolescente de filme em uma festa quando entrei no quarto que aparentava ser de visitas.
— Seu amigo não vai se importar se a gente entrar aqui? — resolvi perguntar porque o quarto parecia impecável e nós, com certeza, iríamos bagunçá-lo.
— Nem um pouco — ele disse, girando a chave.
— A gente pode ir para casa... — sugeri, com um pouco de medo de sermos pegos ou incomodarmos.
Ele se colou em mim e senti sua ereção firme nas minhas costas. Soltei uma risadinha baixa.
— Isso parece urgente.
Baby, você está prestes a descobrir o quanto — sua voz estava igualmente baixa e grossa.
Ele tateou em busca do meu zíper no escuro e o abriu quando encontrou. Minha pele se arrepiou com o toque dos seus dedos. Suas mãos passaram por dentro do tecido e seguraram meus seios.
— Eu te amo — ele sussurrou em sueco no meu ouvido e dois de seus dedos apertaram de leve meu mamilo esquerdo. — Senti muito a sua falta todos os dias da minha vida.
Gemi baixinho. Ele passou o vestido pelos meus braços e a peça escorregou para o chão, beijou a linha da minha coluna até estar ajoelhado para descer minha meia-calça e depois a roupa íntima. Ficou de pé novamente e sussurrou de novo em meu ouvido:
— Quero tentar algo que nunca fizemos antes juntos. Me pare se não for confortável, ok?
Assenti veemente. Deitou-me devagar na cama de barriga para baixo e perto da borda. Depois suas mãos pegaram minha cintura e ergueram meus quadris para cima, de modo a apoiar o peso nos joelhos. Eu me senti exposta, mas não de uma maneira ruim, pelo contrário. Ele pareceu me analisar por alguns segundos, aproveitando a pouca luz que vinha de trás da persiana. Ao contrário do que pensei, não estava insegura em ficar daquele jeito para ele. Na verdade, tinha vontade de me exibir mais, então me ajeitei no colchão para ficar ainda mais empinada. Senti suas mãos quentes deslizarem pela pele fria das minhas nádegas, provocando um arrepio pelo choque térmico.
— Seria essa a visão do paraíso? — comentou enquanto me acariciava, comecei a rir.
— Ora, não sabia que você tinha se tornado um homem religioso nesses anos — respondi com sarcasmo. Quando eu saí dali, ele criticava a existência até do próprio diabo, mesmo tendo um histórico de músicas sobre ele.
— Não me tornei, mas depois de te ver empinada assim para mim, sinto que tenho que ficar de joelhos e agradecer...
Comecei a rir.
— Você é um safado e vai para o inferno.
— E você gosta — ele repetiu o que disse nos dias da praia e eu sorri de lado. Porém, dessa vez, também assenti enquanto mordia o lábio inferior, ansiosa para ver o que viria a seguir. Eu estava excitada só de ter seus olhos em mim nessa posição. Mesmo sem vê-lo, conseguia sentir que estava sendo admirada e aquilo estava acabando comigo.
Ele testou minha excitação e, ao constatar que eu estava mais do que pronta, deslizou dois dedos para dentro de mim sem cerimônia. Gemi alto, depois botando a mão na boca e mordendo meus dedos para que as pessoas lá fora não me escutassem. Senti-o começar a provocar com o dedão o ponto que mais implorava por ele no meu corpo e eu me controlei ao máximo para não ceder tão cedo, mas estava desde o dia anterior o comendo com os olhos, ansiando pela minha vez. Ele movimentou a mão em uma sincronia perfeita e eu a acompanhei com meus quadris, quase me perdendo junto.
— Me conte, amor. Será que depois de tantos anos eu ainda sei tocar minha garota? — ele perguntou e aumentou a velocidade de tudo. Eu apenas gemi baixinho contra minha mão. — Responda.
— S-sim. Puta merda, sim! — praticamente gritei, ainda abafada pela minha mão e ele soltou aquela risadinha sacana extremamente sedutora. Seus dedos da outra mão apertaram minha carne.
— Tire essa mão daí, quero que todo mundo escute o que estamos fazendo dentro desse quarto — mandou. Sem pensar muito, eu dei o braço a torcer e tirei. — Boa menina.
Ele tirou os dedos de mim e eu protestei com um suspiro nada contente. Estiquei os braços, preparada para me virar e xingá-lo. Foi no mesmo exato segundo que senti sua língua circular minha entrada, eu me engasguei com a surpresa. Nem tive a chance de me preparar. Passeou por toda a extensão e depois se concentrou só naquele ponto. Nem preciso dizer que provavelmente a festa inteira deve ter me escutado com facilidade. Eu iria muito me arrepender daquilo depois, mas naquele momento não importava. Só o que importava eram os movimentos daquela língua que era hábil demais para o meu mais puro inferno. Não devo ter demorado nem dois minutos, quando ele sugou minha pele sensível, eu gritei.
Ouvi-o fazendo barulho atrás de mim, mas meu cérebro estava entorpecido demais para tentar saber o que era, concentrado apenas em me sustentar naquela posição. Logo em seguida, senti-o quente, agora pele com pele.
— Fantasiei tanto em te foder assim que estou até nervoso — confessou.
Comecei a rir de novo e ele me acompanhou. Ele parecia precisar de um incentivo.
? — chamei-o com minha voz bem baixinha.
— Sim? — ele parecia nervoso pela excitação.
— Me fode do jeito que só você sabe — pedi enquanto sorria para a escuridão.
O ouvi soltando uma risada safada e me invadindo de uma vez só. Fácil. Gememos aliviados ao mesmo tempo. Seus quadris começaram a se mover e a se chocar contra mim em um ritmo frenético. Eu percebia que, para ele, já fazia tanto tempo desde que estivemos juntos, que a necessidade o deixava maluco. Nós dois gemíamos, sem nem ligar para quem estivesse fazendo barulho no corredor. Eu nem tentei tapar a boca daquela vez, estava ainda concentrada em me manter naquela posição por mais alguns minutos e aproveitar a sensação de tê-lo dentro de mim de novo, depois de algum tempo e alguns obstáculos no meio do caminho. Tentei segurar o orgasmo a ponto de torcer os dedos dos pés, mas a posição provocava exatamente uma pequena parte irresistível dentro de mim. Ele apertou a pele da minha cintura com um pouco de força e achei que fosse impossível, mas estocou ainda mais fundo.
Ele deslizou as mãos e apertou minha bunda com vontade, me incentivando a deixar ir.
Gritei o nome dele, sentindo o meu interior implodir. Ele soltou um gemido longo e me acompanhou.
Meus joelhos cederam e o senti caindo em cima de mim, para depois se ajeitar ao meu lado na colcha de cama já bagunçada. A sensação era tão boa, diferente do cuidado das últimas vezes na praia e exatamente o que eu precisava agora.
— Acho que se o de ‘91 ficar sabendo disso, ele vai ficar com muito ciúmes — quebrei o silêncio que se instaurou enquanto tentávamos restabelecer uma respiração normal.
Ele riu.
— Com certeza, ele tem motivos.
Ouvi mais passos e vozes no corredor.
— Não acredito que a gente fez isso na casa do seu amigo durante uma festa — ri. — Vou ter que contar para sua versão de ‘91 o quão badass você se tornou.
Ele acariciou meu ombro, parecendo pensativo demais.
— Fico pensando em quando você alterar tudo saindo daqui, eu vou me esquecer disso e só você terá lembranças... — seu tom de voz indicava tristeza — Eu não quero me esquecer, . Tem sido o melhor dia da minha vida desde que você me deixou.
Me virei para ele e acariciei seu cabelo longo. Nunca tinha parado para pensar na viagem do tempo na perspectiva dele. Realmente as memórias que estava fazendo viveriam só em mim, assim que eu entrasse em outra realidade. De repente, a atmosfera se tornou melancólica.
— Eu vou te fazer viver tudo de novo, vou te ensinar como me tocar, agir, falar. Tudo. Nós faremos uma reprodução perfeita, como no teatro — falei, quebrando o silêncio pesado. Estava mesmo disposta a viver tudo de novo com ele, se ele também estivesse disposto a viver comigo.
Ele sorriu e enterrou a cabeça no meu peito, suas mãos espalmaram minhas costas.
— Obrigado por voltar para mim — ele murmurou, abafado, pela minha pele.
— Eu me perderia no tempo mil vezes para voltar para você — admiti, sorrindo um sorriso carregado de história até vir parar ali.


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Nota da autora: Uma att dupla e fofinha para esquentar o coração de vocês depois do capítulo 29. Espero que tenham gostado 💜. Não posso dizer muito, só que vamos ter mais da Sonne em 1997, afinal ela ainda tem que salvar o Ace para encontrá-lo em 2019, caso tudo dê errado em 1988. É isto, vejo vocês na próxima ;)





Nota da beta: A cada viagem dela temos uma emoção diferente, fico até com medo de saber o que nos espera na próxima hahaha ❤️

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.

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