Enviada em: 16/05/2018

Prólogo

“Dédalo era um artífice habilidosíssimo, que ao cair no desagrado do Rei Minos, foi aprisionado em uma torre. Impossível seria sua fuga pelo mar, portanto, como o inventor que era, teve êxito em fabricar asas, para que ele e seu filho Ícaro pudessem voar para longe de sua prisão. Disse o pai ao menino: “Ícaro, meu filho, recomendo-te que voes a uma altura moderada, pois se voares muito baixo, a umidade emperrará tuas asas, e se voares muito alto, o calor as derreterá. Conserva-te perto de mim e estarás em segurança.” Porém, Ícaro não seguiu as orientações de seu pai e exultante com o voo, começou a afastar-se em direção ao sol ardente, que amoleceu a cera que prendia as penas de suas asas e o fez mergulhar em direção às águas do mar.”
Quando eu tinha sete anos, minha mãe, cansada de minhas traquinagens, leu para mim esse conto da mitologia grega. O objetivo dela provavelmente era me mostrar que quando não a obedecesse, haveriam consequências. Assim como o filho de Dédalo, eu também era atraído pelo sol, pelo calor. Contudo, apesar do que mamãe quisesse me ensinar, o que levei desse mito não foi a obediência e sim o isolamento. Eu me identifiquei com Ícaro e não temia as brasas e o calor como deveria. E também, assim como ele, eu sabia que algum dia isto seria minha ruína.
A escolha de ser bombeiro me confirmou isso. Já que todos os dias eu me arriscava a estar tão perto do fogo, sem temer o calor e as chamas, eu não sentenciaria ninguém a estar comigo quando o fizesse. Já vi famílias demais sendo arruinadas por muito menos para conseguir manter um relacionamento meramente superficial.
Mesmo assim, eu não me arrependo de minha escolha. Pode ser uma jornada solitária, mas minha recompensa é algo que poucas pessoas podem experimentar na vida. Não são os agradecimentos das pessoas que resgato junto com minha equipe, ou minhas emoções pessoais por estar salvando alguém. É algo muito mais que isso. O que me traz a sensação de que tudo isso vale a pena é o sopro de vida das vítimas. A forma como, ao serem retiradas quase que literalmente do inferno, apesar de todos os ferimentos e em meio a sua dor, sempre há um momento de alívio, tão breve que quase passa de maneira imperceptível por nossos olhos.
Isso sim me faz acreditar que pode existir uma força maior regendo o universo. Talvez anjos que soprem a dor de quem perdeu tudo, quem sabe? E nem que por poucos minutos, por meio de suas auras, eles trazem o céu para a terra.


Parte 1

Ponto de vista:

- Assistiu ao jogo de ontem? – Mike perguntou e descartou uma carta na mesa.
- Não. – Menti, segurando o riso. Esperei o homem expirar em alívio para continuar. – Eu assisti um massacre e não um jogo. – Descartei um seis de Copas.
- Ah, vai se foder, ! – Respondeu, bufando e soltando suas cartas de qualquer maneira na mesa.
Travis, Louis e Danny gargalharam com a reação do garoto. Mike era o mais novo a entrar no corpo de bombeiros, e fora facilmente acolhido pelo grupo mais antigo como se fosse um irmão mais novo. Isso tinha suas vantagens, mas também não facilitávamos para o moleque. Eu podia ver fogo saindo por suas ventas. Torcer por um time que sempre perdia era teimosia, mas continuar apostando nele vez após vez que ele perdia era burrice mesmo. Fiz questão de apontar isso em voz alta, recebendo um olhar fuzilador dele.
- Tô fora. - Anunciou, começando a se levantar.
- Ok, ok paramos. – Eu disse, levantando as mãos em rendição. - Não precisa se afastar.
Mike me avaliou com o olhar, tentando enxergar alguma coisa por trás de minhas palavras. Por fim, deu-se por vencido e se sentou novamente na cadeira de plástico. Carteado era apenas uma das atividades que usávamos para relaxar e passar o tempo entre as chamadas de emergência. Estava sendo uma noite bem tranquila, com somente duas ocorrências menores e isoladas e, mesmo assim, não podíamos nunca esmorecer ou baixar a guarda. Lancei um olhar ao garoto que observava o teto parecendo entediado. Senti o riso começando a voltar e tentei disfarçar com uma tosse, mas os olhares risonhos de Travis e o morder de lábios de Danny não deixaram mais eu me conter. Ao mesmo tempo, nós três começamos a gargalhar novamente e recebi um tapa do mais jovem em minha nuca.
- Desisto de vocês. - Revirou os olhos. - Depois eu que sou infantil.
- Vocês não cansam de brigar, não? - Elisa, recém-chegada no local, questionou, com as mãos na cintura.
Elisa é nossa chefe, capitã do esquadrão. Eu ia lhe responder sarcasticamente, mas o soar da sirene fez com que largássemos tudo de qualquer jeito e nos apressássemos em preparar o equipamento. Terminando de me paramentar, corri com meus companheiros e nossa chefe em direção ao caminhão vermelho.
- Incêndio residencial na Rua Wilkins. O tanque de abastecimento está completo, equipamentos todos nos conformes. Boa sorte.
- Valeu, Joe! – Respondi, entrando no veículo e sentando-me no banco do motorista, onde era meu lugar.
Bati a porta e coloquei o cinto e apressando-me em dar partida no veículo. Logo estávamos andando pelas ruas de Chicago e eu rapidamente atingi velocidade. Pedi para Trev ligar a sirene e assim que ele o fez, aconteceu de novo. Minhas pupilas se dilataram e eu senti a familiar descarga de adrenalina percorrendo meu corpo. Inalei profundamente em êxtase. Eu era viciado em tudo aquilo.
Desde que decidi ser um bombeiro, eu soube que seria assim toda vez: a adrenalina, o “rush” passando por minhas veias e a emoção de salvar a vida de alguém que muitas vezes já não tinha esperança. O porque de eu ter escolhido essa profissão? Quando criança, eu assisti um incêndio em frente à casa em que eu morava, observei os bombeiros entrarem no prédio tomado por chamas e saírem de lá carregando sobreviventes nos braços. Achei um ato heroico e comecei a anunciar para minha mãe que queria ser bombeiro. Eu sempre fui muito solitário. Criado somente por minha mãe, filho único, sem muitos amigos. E eu sabia que para me colocar em risco todos os dias nessa profissão eu não poderia ter muitos vínculos, pois não saberia lidar com uma namorada louca de preocupação cada vez que eu saísse para atender um chamado; já não bastava mamãe. Por isso – e por ver famílias e mais famílias se desfazerem a cada incêndio que íamos apagar – decidi me manter longe disso e as coisas iam muito bem assim.
- A fumaça já tá começando a escurecer, o incêndio deve ter começado faz algum tempo. – Trev disse assim que nos aproximamos da casa.
Estacionei do outro lado da rua e todos nós descemos, indo até a lateral do caminhão para pegar os equipamentos.
- Certo, todos com as máscaras. – Elisa ordenou, entregando um comunicador para cada um. – Trev, você e Mike entram pela frente, Danny e Louis, vão pela lateral e vasculhem o segundo andar. , preciso de você aqui comigo. Como a casa é pequena, acredito que vocês quatro deem conta. Qualquer coisa, tô com o comunicador. Quando eu puder ligar a mangueira, me avisem.
Os quatro bombeiros assentiram e colocaram suas máscaras, partindo em direção a casa e entrando. Aos poucos, vizinhos curiosos começaram a se aglomerar ao redor do caminhão. Elisa e eu permanecemos ali, observando a casa ser tomada pelo fogo, procurando uma saída fácil caso as coisas dificultassem. Eu fiquei próximo a mangueira, preparado caso precisasse usa-la a qualquer momento.
- Mike e Danny, status. – Elisa pediu, olhando para todas as janelas da casa, procurando algum sinal de socorro.
- Andar de baixo está livre. – Mike disse, sua voz abafada. – Acredito que o incêndio tenha começado no andar de cima.
- Ponto de início do incêndio encontrado, chefe. – Danny informou. – Uma prancha de cabelo ligada no banheiro.
- Encontrei vítimas, chefe! – Travis anunciou por seu comunicador.
- Vou solicitar ambulâncias. – Avisei e Elisa assentiu para mim. Saí correndo para o caminhão e apertei o botão do comunicador interno. – Incêndio na Rua Wilkins, número 67, solicito ambulâncias para vítimas.
- Quatro minutos. – Anunciou o plantonista e eu saí do caminhão, voltando para onde Elisa estava.
- Travis? – Ouvi-a chamar por meu colega.
- O casal mais velho foi encontrado já sem vida, o fogo tomou o quarto deles. – Travis avisou e eu bufei, frustrado.
- Mais alguém na casa? – Dessa vez fui que questionei, mas não obtive resposta.
– Travis? Mike? Danny? – Elisa insistiu. Nada, nenhuma resposta. – ALGUÉM, CARAMBA!
- Tem uma vítima presa, chefe. – Louis anunciou, finalmente. – Estamos tentando remove-la, mas os escombros são muitos.
- Estamos saindo com uma sobrevivente. – Mike anunciou e eu suspirei, aliviado.
- Chefe, precisamos de ajuda! – Louis e Danny pediram quase ao mesmo tempo.
Olhei para Elisa e antes mesmo que ela ordenasse, eu já corria em direção a casa. Coloquei minha máscara ao redor de meu pescoço, me preparando para entrar. Mike e Travis apareceram em meio a fumaça, saindo pela porta principal da casa. Travis carregava uma mulher de cabelos longos desacordada em seu colo. No mesmo instante, ouvimos o barulho da ambulância e logo os paramédicos desceram, correndo até a vítima para atende-la.
- Travis. – Chamei-o e ele se virou para mim, desvencilhando-se de seus equipamentos. – Eu vou entrar. Você tá no comando da mangueira agora. Se precisar, ligue-a. Não me decepcione. – Falei de maneira séria para ele e me virei, respirando fundo antes de abaixar minha máscara e andar em direção a fumaça, entrando na casa tomada por chamas.
Assim que entrei, minha visão escureceu um pouco. Mesmo com as roupas adequadas, o calor era intenso. O andar de baixo estava menos afetado, por hora, já que o incêndio se iniciou no andar de cima. Procurei as escadas com o olhar e quando as encontrei, andei lentamente até ela, subindo-a.
- Danny? Louis? – Chamei pelo comunicador.
- No fundo do corredor, . – Louis anunciou.
Quando pisei no último degrau e avistei o corredor, meu coração pulou uma batida. O corredor estava completa e totalmente laranja. Se não saíssemos dali o mais rápido possível, morreríamos. Andei lentamente até o fim do corredor, encontrando Louis e Danny tentando mover escombros para retirar a última vítima.
- A chapinha estava no banheiro ao lado do quarto, é o terceiro cômodo mais atingido. – Danny explicou enquanto abria espaço para que eu passasse.
- Certo. Danny, me ajude a levantar esse armário. Precisamos sair daqui, antes que comece a...
No momento seguinte, ouvimos um barulho de desabamento.
- Puta que pariu. Vamos, Danny! – Pedi, colocando minhas mãos em um dos lados do armário, vendo Danny fazer o mesmo. – Louis, prepare-se para puxá-la.
O bombeiro assentiu e ficou em formação. Assim que levantamos o armário o suficiente, ele se abaixou e, com certo esforço, conseguiu retirar a vítima de baixo do móvel.
- Ela ainda tá viva, mas por pouco. – Louis disse, ajeitando-a em seus braços. – Vou descer.
- , status. - A voz de Elisa soou pelo comunicador.
- Acabamos de resgatar a segunda vítima, vamos sair. - Avisei, voltando-me para meus colegas. - Já checaram os outros cômodos? Todos limpos?
- Todos limpos, . Precisamos sair daqui. – Danny disse, dirigindo-se a porta, pronto para se retirar do cômodo, porém, o piso do corredor desabou por completo, deixando-nos presos no quarto.
- Mas que merda! – Exclamei, frustrado. Alcancei o comunicador em minha roupa e apertei o botão. – Elisa, precisamos da escada na janela esquerda do segundo andar, estamos presos!
- Agora mesmo! – Travis disse pelo comunicador e eu e Danny nos dirigimos até a escada, ficando o mais longe possível do corredor.
A fumaça espessa nublava nosso caminho, tornando difícil nossa movimentação. Nos estávamos quase que completamente entregues ao instinto. Mesmo assim, conseguimos distinguir parcialmente os contornos da escada quando esta subiu em direção à janela do quarto.
- Danny, vá primeiro. – Ordenei, sentindo meu velho conhecido instinto se manifestando através de um arrepio em minha nuca.
- Mas, ... – Contrariou-me e eu revirei os olhos.
- Só vai, Daniel. – Repeti e ele assentiu a contragosto, subindo na janela e virando-se em seguida para colocar seus pés nos degraus e descer.
Enquanto ele descia, me permiti olhar ao redor, observando o cômodo onde estava. Apesar da fumaça, consegui distinguir um porta retrato intacto na cabeceira da cama. Sem pensar duas vezes, me aproximei e peguei o objeto, colocando-o em um dos bolsos do meu uniforme. Não sei o que me compeliu a fazer tal coisa; talvez o fato de que aquela família perderia tudo no incêndio e, caso alguém sobrevivesse, eu gostaria de poder entregar essa fotografia.
- ? ? – Ouvi Travis chamar e no momento em que fui responder o chão ao meu lado ruiu, desabando. – !
Olhei para os lados um pouco aflito e examinei o chão. Ensinavam toda a forma de procedimento na academia. Tínhamos aulas e aulas sobre como agir em cada situação, aprendíamos a entender o fogo, suas múltiplas origens e facetas. E, mesmo assim, no meio de um incêndio as coisas eram diferentes. Nosso trabalho era fundamentalmente prático. Em um momento como aquele, qualquer passo que eu desse poderia ser fatal. Ossos do ofício, eu diria. Quem me mandou escolher um trabalho que diariamente me punha em risco ou em situações como a presente, em que eu parecia que iria ser engolido pelo rombo em meio ao piso instável?! Deus... Por que meu sonho não foi ser um professor, para ensinar as mentes das gerações futuras, ou até mesmo um psicólogo, ou escritor?!
- ! Não me faça entrar aí e... – Elisa gritou, trazendo-me de volta a meu problema atual.
- O chão desabou, tô tentando encontrar um lugar pra pisar. – Expliquei, sem receber resposta. Respirei fundo e, segurando o porta retrato com a foto da família, quase como um amuleto, fechei meus olhos e deslizei minha bota no solo, sentindo as áreas que me pareciam mais firmes e conseguindo avançar um passo em direção à janela. Suspirei aliviado ao pisar no chão. – Tô saindo! – Anunciei e subi na janela, virando-me e pisando nos degraus da escada.
Assim que meus pés tocaram o chão, corri em direção aos paramédicos que atendiam às duas vítimas. Tirei minha máscara quando parei ao lado deles, respirando fundo o ar puro novamente enquanto prestava atenção no que acontecia ao meu redor.
- A pulsação está muito fraca. - Uma das paramédicas falou. - Queimaduras no rosto e braços, impossível entubar, ela inalou muita fumaça.
- Mesma coisa com essa aqui, mas tem queimaduras pelo corpo inteiro. - A paramédica que atendia a outra vítima disse.
- Certo, precisamos correr pro hospital! - O outro paramédico disse assim que, junto com sua parceira, empurrou a maca móvel até a entrada da ambulância, colocando uma das vítimas para dentro.
- Ambas as ambulâncias pro Angel’s Memorials, ok? - A paramédica que atendia a outra vítima disse e os demais assentiram.
- Encontramos vocês lá. - Eu disse a eles, despedindo-me e dando alguns passos rápidos em direção ao caminhão. - Eu vou pro hospital, quem quiser que me acompanhe! - Anunciei aos meus colegas assim que fechei a porta e girei a chave do caminhão, ligando-o.
- Você virou capitão e ninguém me avisou? - Elisa perguntou, séria, mas eu sabia que ela não estava ofendida. Revirei os olhos.
- Ninguém se opõe? - Questionei novamente ao não obter resposta dos demais. Eles balançaram a cabeça em negação e Elisa deu de ombros. - Ótimo.
Em alguns minutos chegamos ao hospital. Eu carregava o porta retratos da família ainda dentro de minha roupa. Quando passamos pela porta, seguimos para o pronto socorro. Assim que um dos médicos nos viu, veio até nós.
- Elisa, . Pessoal. - Ele cumprimentou-nos, tirando as luvas que usava.
- Dr. James. Como elas estão? - Fui o primeiro a perguntar.
- As duas tem ferimentos muito sérios, queimaduras extensas de terceiro grau. Não podemos entubar nenhuma delas, então as duas estão em coma induzido e respiram com a ajuda de aparelhos. - Explicou, seu olhar passando por mim e por meus colegas. - As debridações da pele estão sendo feitas aos poucos e só depois vamos saber se elas vão precisar de cirurgia. Vocês têm alguma informação sobre elas?
Assenti e abri meu uniforme, tirando o porta retratos, estendendo-o ao médico.
- Peguei no quarto de uma delas. Acredito que sejam irmãs...
- Os pais faleceram na cena? - Dr. James questionou, observando a foto.
- Estavam mortos quando entramos na casa, Dr. - Elisa respondeu, suspirando em seguida.
- Certo, vou fazer o impossível pra salvar as duas. Nossa equipe assume a partir daqui.
- Pode nos manter informados? - Questionei.
- Claro, mando notícias. - O médico disse, devolvendo-me o porta retratos e se afastando de nós.
Guardei o objeto em minha roupa novamente e ergui meu olhar, encontrando, encontrando Travis e Elisa me encarando.
- O que foi? - Perguntei, começando a andar ao lado dos dois, sendo acompanhado pelo restante da equipe.
- Por que você tá guardando esse porta retrato? - Travis perguntou.
- A pergunta certa é: Por que você pegou esse porta retrato? - Elisa quis saber.
- A casa inteira foi destruída, provavelmente, quando elas estiverem bem, vão querer uma foto da família. - Respondi, dando de ombros.
Travis e Elisa se entreolharam. Ele estreitou os olhos para mim e acabou por concordar. Saímos todos do hospital e entramos no caminhão.
- Dirige aí. - Eu disse, jogando a chave para Mike assim que fechei a porta. Ele me olhou surpreso.
- Eu? - Perguntou, estranhando.
- Tem outro Mike aqui, criança? Vai logo! - Revirei os olhos, jogando-me no banco e encostando a cabeça na janela, fechando os olhos.
Eu não conseguia pensar em outra coisa a não ser nas duas garotas que perderam os pais no incêndio. Dificilmente um caso me afetava tanto, a ponto de eu não conseguir pensar em outra coisa. Mas, estranhamente, isso estava acontecendo. Eu mal tinha saído do hospital e já ansiava por notícias das duas. Por mais que, com meu conhecimento e experiência, eu achasse difícil que ambas sobrevivessem, eu tinha esperanças.
- ! - Travis disse, chamando minha atenção.
Só então me dei conta de que não nos movimentávamos mais. Olhei para os lados, encontrando o caminhão já vazio.
- Eu dormi? - Perguntei assim que desci do caminhão, desfazendo-me de minha roupa e meus equipamentos em seguida.
- Não sei, cara. - Travis respondeu, dando de ombros. - Só sei que precisamos descansar, ainda temos... - Ele olhou para o relógio na parede. - Cinco horas de turno. Elisa e os caras já até entraram.
Balancei a cabeça em concordância e seguimos os dois para dentro. Eu passei direto pela sala e fui até o banheiro. Depois de tomar um banho, voltei para a sala, jogando-me no sofá, fazendo Elisa, que estava cochilando, se sobressaltar com a movimentação.
- Delicadeza em pessoa. - Ela disse, pegando sua almofada e virando-se para o outro lado.
- Por que não vai dormir nas beliches? - Perguntei, pegando o ipad que alguém esqueceu em cima da mesa, procurando algum jogo para me distrair.
- Tô esperando ligação d... - Ela ia terminar a frase, mas foi interrompida pelo toque de seu celular. - É do hospital. - Disse, levantando-se e aceitando a chamada. - Sim, James? - Virei meu rosto imediatamente para ela. - Ah, sim. Obrigada por avisar. Certo. Certo. Obrigada. Boa noite pra você também. - Elisa desligou o telefone voltou a se sentar no sofá.
- O que aconteceu? - Travis perguntou. Eu nem havia percebido que ele estava ali também.
- Uma delas faleceu. Sara era o nome dela. A que sobreviveu se chama . - Elisa disse, suspirando em seguida. - Eles não encontraram familiares próximos e ainda está em coma induzido, vai passar por cirurgia amanhã.
Para nossa alegria - ou não, mais uma vez o ruído alto da campainha soou indicando outro chamado.
- Ah, qual é?! De novo?! – Praguejou Elisa, girando no sofá e levantando-se ao mesmo tempo que eu.
- Vamos lá, preguiçosa. – Zombei, correndo para descer no mastro e repor os aparatos que eu já havia descartado.
Apesar de minha brincadeira, todos chegamos ao caminhão ao mesmo tempo, esperando as instruções de Joe. Ele era quem costumava nos passar as informações acerca do que havia acontecido, a proporção e o equipamento a ser usado.
- Não precisam de tanta pressa. Não é nada como o fogo de mais cedo, precisamos somente de um Bombeiro nível um e um nível dois para supervisionar. - A voz de Joe ressoou pelo alto falante.
Ouvimos uma comemoração animada de Elisa ao voltar para o sofá da sala.
- Adiós, otários! – Disse ela, fazendo uma dancinha. Revirei os olhos com o nível de infantilidade que eu tinha que lidar ali. - Mike, isso significa que você vai, e Travis, Danny ou irão supervisioná-lo.
Arrumei os palitos que usávamos para tirar a sorte e felizmente dessa vez não fora eu o sorteado. Danny praguejou, subindo novamente no veículo.
- Mas eu pensei que eu já era um nível dois! - Mike reclamou, esfregando os olhos.
- Criança... – Balancei a cabeça, rindo. – Algum dia você chega lá. – Repliquei com um tom paternalista, dando dois tapinhas em seu ombro.
- Isso tem volta, . – O garoto fechou a cara e rebateu, batendo a porta do caminhão como um adolescente emburrado.
- Tô morrendo de medo! – Berrei com a voz afetada, vendo-lhes se afastarem para o que quer que fosse a emergência.
O turno estava acabando, e não haveriam mais chamados para mim. A pobre da Elisa que teria que esperar a chegada do pessoal do outro turno. Aproveitei o momento para passar em casa e me preparar para ir ao hospital, visitar a vítima sobrevivente que resgatamos mais cedo. Talvez eu até passasse a noite lá, já que esse caso estava mexendo com minha cabeça de uma forma muito desconcertante.
Eu conhecia a solidão, ela era uma velha amiga, e talvez era isso que estava fazendo eu me identificar tanto com a moça que perdera toda sua família de uma vez só por causa de uma maldita prancha de cabelo. Às vezes, a vida é fodida nesse nível. Eu sabia disso mais do que ninguém, após ter presenciado tantas mortes que foram consequência de banalidades diárias.

Mais tarde, cheguei ao hospital revigorado, após ter dormido um pouco. Cumprimentei o pessoal do setor de queimados. Eram todos muito gente boa e eu mesmo já tinha sido tratado por eles, uma vez que já atingi a cota de queimaduras de todos os graus possíveis.
Cheguei ao quarto de um pouco tímido, ainda incerto sobre invadir seu espaço, mesmo sabendo que ela não tinha mais ninguém. O rosto sereno da mulher me transmitiu certa paz. Apesar de ela estar cheia de aparelhos que a ajudavam a respirar, seu rosto estava calmo. Dr. James, que eu nem percebera que estava ali, me observou fitar a mulher através do vidro com certa cautela.
- , tome cuidado. - Advertiu-me. Olhei para ele franzindo o cenho. - Desculpe-me me meter nisso, , mas a questão é que eu já vi esse mesmo olhar em muitos de meus internos.
- Que olhar? – Perguntei, receoso.
- Um olhar de preocupação acima do normal, . - Ele respondeu, parando ao meu lado e observando-a também. - Não devemos nos apegar aos pacientes ou vítimas. Entendo que você está assim já que ela perdeu toda sua família, mas... Isso não costuma acabar bem. Você sabe quais são as regras para nosso ramo de trabalho.
- Eu sei, mas...
- Só tome cuidado, ok? Não quero que você também se dê mal por causa disso. É algo básico não se apegar, mas na prática deixa de ser tão simples. Se limitar a empatia é uma arte que nem mesmo eu domino por completo ainda. - Comentou, suspirando em seguida.
- Eu prometo que somente estou fazendo companhia até ela acordar, não me apeguei, nem ao menos a conheço. – Respondi, nem eu acreditando em minhas próprias palavras. – Além do mais, aqui tem televisão de graça, o que mais eu poderia querer?!
- ... – Sussurrou, balançando a cabeça incrédulo, quase rindo.
- O que?! Não é como se ela fosse usar até acordar. E quando o fizer, estarei fora daqui, bem rapidinho.
Dr. James revirou os olhos. Pegou o pager em seu bolso que começou a bipar e apertou um botão, encerrando o barulho.
- Tenho que ir. Vou fingir que você está respeitando o horário de visitas agora e que irá respeitar nos outros dias. - Ele disse, rindo baixo ao se afastar.
Abri um sorriso amarelo, já sabendo que aquela era uma promessa que eu não poderia manter. Eu era bombeiro, afinal! Não tinha como controlar meus horários malucos. Voltei minha atenção para . Deus, aquela mulher sofreria tanto quando acordasse, e me peguei inconscientemente torcendo para estar ao seu lado quando isso acontecesse.
Dei alguns passos e entrei no quarto silenciosamente, como se qualquer barulho que eu fizesse pudesse acorda-la. Peguei o porta retrato que trazia em meu bolso e coloquei-o ao lado de sua cama. Me sentei na poltrona ao lado da cama onde estava deitada. Apesar de estar familiarizado com casos assim, assustei-me um pouco com sua forma pequena, encolhida no meio da grande cama hospitalar, com os braços, pescoço e até algumas partes do rosto envolvidos por faixas e pomadas medicamentosas.
Seus cabelos escuros contrastavam com sua pele clara e não pude deixar de observar o quão bonita e delicada ela era. Deitada ali, parecia indefesa, o que me fez sentir mais apego ainda por ela. Não pude deixar de imaginar sua personalidade. Seria ela delicada, bad girl, independente, desastrada ou tudo isso ao mesmo tempo? Talvez ela fosse como um furacão, daquelas garotas que passam por sua vida e você nem sabe o que te atingiu. Eu não tinha ideia da resposta, mas queria muito descobrir.
O interessante é que eu sabia diversos fatos objetivos sobre a mulher, mas nada me auxiliava a entendê-la realmente por dentro. Sua personalidade, seu caráter, seu coração e as profundezas de sua mente. Estereótipos somente serviriam para me fazer especular mais e mais quanto à sua personalidade.
Foi então que me vi conversando com ela. Comecei lhe contar como estavam as coisas desde que o incêndio ocorreu. Depois, me senti confortável para falar sobre coisas que eu nunca havia compartilhado com ninguém. Nunca tivera ninguém para me ouvir, e por mais egoísta que pudesse parecer, era muito bom ter alguém ali, para dizer o que nunca foi dito, colocar para fora a frustração que nem mesmo eu tinha noção da dimensão até aquele momento.
Apesar disso, eu também estava ali por ela, para cuidar dela enquanto estava em um estado que talvez não tivesse retorno. Fazendo companhia a seu corpo, mesmo que sua mente estivesse ausente. Enquanto tentava mostrar a ela que ainda havia algo a se agarrar para sobreviver, me mostrava o contrário sobre mim. Eu mesmo não tinha isso, fora minha pobre mãe que sofria diariamente com minha profissão. Ser bombeiro era um caminho sem volta e por mais recompensador que fosse, para tudo havia um preço. Pela primeira vez em minha vida perguntei-me se o que eu impusera a mim mesmo não era alto demais para pagar. Pela primeira vez, me vi querendo ter um relacionamento com alguém. Pela primeira vez, desejei ter alguém me esperando quando voltasse para casa.

Primeiro mês...

- Nós vamos ver o jogo na casa do Mike, você vem, ? - Perguntou Elisa ao abrir a porta da sala, colocando sua cabeça para dentro.
Em seguida, ela entrou por completo e jogou-se no sofá de nossa sede, praticamente deitando e ocupando o móvel inteiro.
- Meu Deus, você é muito folgada! Vai sujar todo o sofá! - Eu disse, rindo ao observa-la. Ela ainda vestia o traje que usou no incêndio e ele estava cheio de poeira preta. Elisa revirou os olhos aguardando que eu lhe respondesse. Limpei a garganta pensando em qual desculpa eu inventaria dessa vez. - Er... Eu não posso. - Repliquei, coçando minha nuca.
- Ah é? Por que, ?! - Questionou, levantando a sobrancelha para mim.
- Minha irmã pediu para eu cuidar do meu sobrinho hoje. A babá deu o cano nela. - Falei a primeira coisa que veio à minha cabeça.
- Primeiro, você tem irmã? Não sabia. - Rebateu, olhando-me de maneira desconfiada. - E segundo... Desde quando você tem alguma habilidade com crianças, ?!
- Ei! Eu sou muito habilidoso, sim! Adoro os pirralhos. - Respondi, sorrindo amarelo.
Elisa revirou os olhos e sentou-se ereta no sofá. Ela cruzou os braços e continuou a me encarar, desconfiada. Um segundo depois e sua expressão se tornou incrédula.
- Você vai vê-la, não é?! De novo, pela milésima vez na semana... - Ela disse, séria. - Isso é perigoso, . Somos como médicos, se apegar assim.... Não faz bem e...
- Não vem com isso de novo, Elisa, eu já disse que não é nada demais. A família dela toda morreu, o mínimo que eu posso fazer é...
- Você já salvou a vida dela, ! - Elisa respondeu, levantando um pouco a voz. - Pense nisso, por favor. Digo isso porque me importo contigo.
- Eu sei que se importa, mas eu vou ficar bem. - Suspirei estendendo-lhe a mão para que levantasse. - Você não precisa se preocupar comigo.
- É com essa atitude que eu me preocupo. - Murmurou, bufando. - Agora vamos, vai se lavar se não sua chefe vai te dar uma bronca por ter sujado o sofá.
- O quê?! Eu disse que você ia acabar manchando! - Balancei a cabeça contrariado, segurando o riso.
- Shhh! - Sibilou com o indicador em seus lábios e um meio sorriso, saindo da sala e voltando uns segundos depois somente para deixar um detergente e uma escovinha em minha mão.
- Por que eu ainda te aguento, meu Deus? - Murmurei para mim mesmo, aproximando-me do sofá.
- Por que eu sou um amor. - Ela respondeu, balançando os ombros, sorridente, retirando-se dali em seguida.

xxx


- Como estamos hoje, ? - Perguntei mesmo sabendo que não receberia resposta.
Assim como quase todas as tardes que eu tinha de folga, acomodei-me na poltrona ao lado de sua cama e liguei a televisão em qualquer canal, só para acabar com o silêncio.
- Ah, não acredito! A Origem. De novo. Assisti essa bosta ontem. - Ri sozinho, dando de ombros.
Fitei a pequena tela por uns minutos, vendo Leonardo Di Caprio fazer sua arte. Assim como muitas outras vezes, não aguentei ficar calado diante daquele silêncio. Era como se eu precisasse conversar com para me certificar de que ela ainda estava ali. Mesmo em coma, eu gostava de pensar que ela conseguia me ouvir, mesmo que distante.
- , você já pensou sobre o quanto essa história é louca?! Quer dizer, ele parte do princípio que uma máquina nos permite entrar na cabeça de outra pessoa enquanto ela está sonhando. Mas será que todos sonham da mesma forma?
Continuei meu monólogo, fazendo pausas somente para assistir o filme ou para comer o salgadinho que eu comprei na máquina de comida. Naqueles dias eu estava me alimentando basicamente de comida de hospital. Não que eu me saísse muito melhor em casa, sendo o desastre que era na cozinha. Minha mãe vive me provocando que é por isso que virei bombeiro. Para apagar os meus próprios incêndios quando fosse tentar preparar algo, nem que fosse fritar um ovo. Eu odiava não ter capacidade para cozinhar porque, em contrapartida, eu amava comer. Então quando não era chamado para alguma refeição na casa de um amigo ou minha mãe, eu vivia de take-outs, cereal e alimentos que viessem prontos. Pode zombar, sei que sou uma decepção de ser humano.
Algumas horas depois, como de costume, fui ao shopping próximo ao hospital para comer uma refeição de verdade - ou não, já que escolhi McDonalds. Mike vivia me irritando com seu gosto culinário dito “sofisticado”, mas para mim ele não sabia apreciar a arte da comida fast-food. Quem poderia dizer que as lagostas que ele tanto prezava eram melhores do que meu hambúrguer triplo com cheddar e bacon?!
Acabei pegando também um milk-shake, que consegui contrabandear para o quarto da . O hospital não permitia comida trazida de fora, mas eu simplesmente não dava a mínima para as regras. Você pensaria que um bombeiro seria daquelas pessoas que amam seguir regras, certo? Pois é.
- Fico me perguntando se você realmente me ouve. Não sei se seria algo bom ou ruim, porque a quantidade de coisas que eu já disse aqui... – Dei uma risada, parando para sugar um pouco mais de meu milk-shake. – Olha, tudo isso fica entre nós, ok, parceira? – Sorri tristemente para ela, virando-me um pouco em sua direção.
Porém, o movimento saiu pela culatra, já que meus pés apoiados na cama escorregaram, quase me fazendo cair da poltrona.
- Ufa, - suspirei, rindo de nervoso – essa foi por pouco. – Disse com um sorriso murchando ao notar o resto de milk-shake que agora escorria pelo braço de correndo perigosamente em direção à cama. - Mas que mer... – Comecei a praguejar, forçando um sorriso assim que vi através do vidro a enfermeira indicando que seria a próxima que ela checaria os sinais vitais.
Pensando rápido, me vi entre duas escolhas, lamber sua pele - o que seria muito invasivo considerando que a mulher nem me conhece e vamos combinar que não se lambe qualquer pessoa - ou limpa-la com a manga de minha camisa, e foi isso que fiz rapidamente.
- Senhor , como estamos hoj... O que está fazendo?
- Ah, nada, só checando o pulso da . - Respondi a primeira coisa que veio em minha mente e sorri amarelo para ela.
- Ah, da próxima vez, tente um pouco mais embaixo, de preferência abaixo do cotovelo, no pulso dela mesmo. – Disse, com um olhar divertido.
- E eu já disse que pode me chamar de , Jane! – Desconversei, enquanto a via trabalhar nos curativos. – Infelizmente é provável que nos vejamos por um tempo.
- Paciência, Senhor... . – Completou com um revirar de olhos ao ver minha careta. – Ela irá acordar em seu próprio tempo, o senhor verá.
- Eu espero... Mas ainda sim, Jane, consegue imaginar a dor de acordar e descobrir que toda sua família se foi?!
A mulher me lançou um olhar triste, desviando por uns segundos de sua prancheta e olhando para o rosto sereno de .
- Às vezes eu acredito que ela já saiba... Quer dizer, talvez seja esse o motivo de estar demorando a acordar.
Sua última frase me deixou intrigado. Será que Jane estava certa e sentia que não tinha pelo que lutar?

Segundo mês...

- Boa noite, ! - Cumprimentei com falsa animação, me preparando para mais um dia com ela. Sentei-me na cadeira ao lado de sua cama hospitalar e peguei o livro que tinha trazido. - Hoje trouxe uma surpresa. Vi umas moças falando sobre esse livro no metrô e resolvi comprar pra ler pra você. Não sei se é do tipo que você gosta, quer dizer, eu ao menos sei se você gosta de ler... Enfim. - Limpei minha garganta, constrangido.
Como é que eu conseguia me enrolar daquela forma sozinho?! Imagina se ela acordasse, aí sim eu seria uma negação. Quando ela acordar... Me corrigi silenciosamente, balançando a cabeça.
- O livro se chama... - Franzi a testa, achando que não foi uma boa ideia. - A garota do calendário. “Amor verdadeiro não existe”. – Comecei a ler, ajeitando-me em uma posição mais confortável. – “Passei anos imaginando que existisse. Na verdade, achei que tivesse encontrado”. Nossa, essa moça não se decide. – Comentei, rindo um pouco.
Continuei lendo, tentando fazer uma voz afetada. Com eu podia tudo, não era como se ela fosse acordar e lembrar de todas as minhas bobagens. Certo? CERTO? Deus, eu esperava estar certo.
- “Ele era a estrela do time de beisebol. O melhor que a escola já teve. Grande, tinha mais músculos que cérebro e o pinto...” – Franzi a testa, sem acreditar no livro que eu escolhera. – “...do tamanho de um amendoim com casca”. Ok, chega de leitura por hoje, .
Suspirei, olhando para a forma inalterada de . Fora a melhora estética e a aparência mais saudável, ela parecia a mesma de meses atrás quando eu auxiliara em seu resgate.
Frustrante. Não importava quantas vezes eu importunasse Dr. James, sua resposta era sempre a mesma: vai acordar quando estiver pronta. Seus ferimentos superficiais, externos podem ter sido curados, mas o trauma também foi interno, e essa, infelizmente, é uma batalha que ela precisa lutar sozinha.
Eu relutava em aceitar o fato de que não havia absolutamente nada a se fazer para que ela abrisse os olhos e pudesse recomeçar sua vida. Mas com Jane e Dr. James repetindo isso tantas vezes eu estava começando a acreditar em sua palavra, e o pior, perder a fé na recuperação de .

Terceiro mês...

E mais uma vez, entrei naquele maldito hospital, me arrastando até aquela merda de quarto, acenando desanimado para a segurança Sadie, o enfermeiro John, a interna Cathy, e até para alguns dos pacientes que já me conheciam. Desde que eu começara minhas visitas regulares a , muitos vieram e se foram, fosse vivos ou em um saco preto direto para o necrotério.
Não vou mentir, era desanimador. Por mais que eu fosse o cara mais otimista do mundo, eu podia ver as chances de melhora do quadro de se esvaindo diante de meus olhos, dia após dia. Com meu trabalho, ser realista era mandatório, o que somente aumentava meu desespero.
Era muito curioso, tentar imaginar o que se passava dentro de sua cabeça enquanto estava em coma. Mas as reflexões que isso me rendera nos primeiros meses, já haviam passado do nível interessante para extremamente frustrante. Eu percebia o olhar dos médicos e enfermeiros com certa pena de mim por estar nessa situação, tão apegado à uma mulher em coma. Só queria gritar para que todos cuidassem de suas vidas e me deixassem em paz.
No trabalho era a mesma coisa. Minha chefe e os rapazes já havia desisto de argumentar comigo e do jeito que eu andava, sempre irritado, com os nervos à flor da pele, era o melhor a ser feito. Eles somente trocavam olhares quando pensavam que eu não estava olhando, e isso já me levava ao limite de minha curta paciência.
Minha distração, é óbvio, tinha que acabar me acompanhando no trabalho. É importante que um bombeiro esteja em seu melhor equilíbrio quando atendendo a chamados. Nós cuidamos de situações de pura tensão em que, enquanto a maioria se desespera ou somente não tem o conhecimento necessário para apaziguar a situação, temos que ser frios e calculistas ao máximo. Faz sentido, afinal, somente o frio vence o fogo. Era por isso que assim que Jane entrou no quarto para sua checagem diária, a partir do coletado diariamente pela enfermeira do turno anterior, eu estava ostentando uma bandagem em meu braço direito.
- ! Você não deveria estar cuidando desse machucado na ala de queimaduras?
- Eu já conheço o procedimento, Jane. Vim só dar uma passada aqui pra ver a . – Repliquei, dando espaço para que a mulher examinasse a paciente. – Voltarei para lá em alguns minutos.
- A Sadie não te avisou? Tem alguém aqui para vê-lo.
- A mim? – Indaguei, com o cenho franzido. – Talvez seja alguém do trabalho.
A enfermeira virou para mim, sorrindo e olhando para trás de meu ombro, com um olhar divertido.
- Ah, aí está ela. - Comentou, quase rindo.
Virei-me sem entender de que merda ela estava falando e me deparei com ninguém mais ninguém menos do que a pessoa mais assustadora do mundo. Porém, também a que eu mais amava.
- Mãe! O que faz aqui? – Perguntei, andando até ela e passando meu braço livre de queimaduras pelos ombros da senhora emburrada que andava comigo pelo corredor.
- ! Como pode me perguntar isso? Vim te ver, é claro! Você não dá mais nenhuma atenção para sua pobre mãe...
Suspirou dramaticamente, me fazendo inspirar fundo e segurar o riso. Se minha mãe não fosse contadora em seus tempos de trabalho, com certeza seria uma baita de uma atriz. Só nunca contei a ela sobre esse talento para não levar uma surra. Não se engane, a mulher era pequena, mas era uma fera com unhas e uma habilidade impressionante de puxar minha orelha até deixa-la roxa.
- Mas eu liguei pra você ontem, mãe!
- Isso é o que você diz. – Falou, revirando os olhos. – Normalmente isso estaria perfeito, mas eu ligo para o seu trabalho e tenho que descobrir por aquela sua chefe, que é muito simpática, aliás. Eu sempre te digo que você tinha que dar mais valor àquela moça, rapazinho! Você se isola muito do mundo, cadê a humildade? Não criei filho nenhum para sair pelo mundo parecendo orgulhoso. Eu até gosto de Orgulho e Preconceito, aquele filme é muito jóia, mas aquele senhor Darcy tem um charme que só cabe a ele. Além do mais, na novel... - Minha mãe desatou a falar e eu revirei os olhos.
- Mãe! O que você descobriu com a Elisa? - Interrompi-a.
- Ah, sim. Não me corte assim, menino! Não foi assim que eu te ensinei! Enfim, se você me deixar chegar ao ponto do que queria dizer...
Lancei-lhe um olhar significativo, sentando-me na maca da qual eu fugira mais cedo, no setor de queimados.
- A Elisa me disse que você tinha se acidentado e vim para cá no mesmo minuto! Já não basta eu ter que ficar imaginando como você está botando toda aquela fumaça para dentro, e ainda me vem com essa, de não me contar nem quando algo realmente acontece! - Esbravejou, cruzando os braços, parada em minha frente.
- Desculpa, mãe. – Olhei para baixo, envergonhado. – Acabei me esquecendo de te enviar uma mensagem, mas você sabe que isso aqui é de praxe.
- Deixa a mamãe dar uma olhada.
Puxei meu braço para longe do seu alcance.
- Não, mãe. Tá feio! - Resmunguei.
- Ahá! – Rebateu, com um olhar experiente. – Se não quer me deixar ver é porque valia ao menos uma ligação e ponto. - Ergueu a sobrancelha de maneira convencida.
Gargalhei, abraçando lateralmente seu corpo pequeno, e deixando que o enfermeiro trocasse meu curativo no outro braço. Conversamos por uns minutos depois disso, até que eu consegui convencê-la a ir repousar em casa. Ela podia ser uma senhora até que ativa, principalmente para uma aposentada, mas também já não tinha mais o mesmo pique.
Depois de ser liberado, fiz o caminho de volta para o quarto de . Assim que entrei no cômodo, porém, a cena que vi me fez berrar instantaneamente. estava de olhos semi abertos, provavelmente tentando se habituar a claridade. Ela tentava se mexer e se livrar dos tubos que a auxiliaram a respirar até o momento. Seu olhar transmitia dor, confusão e pânico.
- JANE! DR. JAMES! - Chamei e corri para perto da cama de , colocando minhas mãos em seus ombros, tentando acalma-la.
- Calma, calma... - Pedi e ela fixou o olhar no meu, parando de se debater.
- O que aconteceu? - Dr. James apareceu com Jane ao seu encalço. Assim que viu os olhos de abertos, ele sorriu. - Bem-vinda de volta, .


Parte 2

Ponto de vista: Jones.


Eu não entendia o que estava acontecendo, mas sabia que provavelmente estava em um hospital. A luz ainda incomodava meus olhos e eu queria, mais do que qualquer coisa, entender a situação em que eu me encontrava. A mulher que deveria ser a enfermeira se aproximou e sorriu para mim. Continuei com o olhar nela, desviando-o somente para os dois homens parados ao meu lado.
- Vou tirar o tubo agora, tudo bem? - Jane perguntou, chamando minha atenção e eu balancei a cabeça levemente em confirmação.
A enfermeira lentamente puxou o tubo, que passou raspando por minha garganta. Comecei a tossir imediatamente, sentindo um desconforto na região.
- Tudo bem, ? Sou o Dr. James. Como está se sentindo? - Dr. James perguntou, pegando sua lanterna ocular e checando meus olhos. Pisquei algumas vezes. - Consegue falar?
- Ac... - Pigarreei, tossindo mais um pouco. - Acho que sim. - Consegui completar e olhei afita para todos que estavam ali. - O que aconteceu?
O homem que não usava vestes de hospital suspirou e passou a mão pela cabeça, bagunçando o cabelo de maneira nervosa. Dr. James e Jane o encararam e ele se aproximou da cama novamente.
- Preciso que mantenha a calma, . - Dr. James disse, colocando a mão em meu ombro. - vai te contar o que aconteceu, mas agora preciso que saiba que você dormiu por três meses. - Arregalei os olhos ao ouvi-lo, uma sensação de pânico começando a surgir lentamente por meu corpo.
Quem é ? E como assim eu dormi por três meses?
- Eu não entendo... - Comentei, olhando para os três, implorando que me explicassem logo.
- Antes de qualquer coisa, você precisa ficar calma e não pode fazer muito esforço. - Dr. James disse. - Seu corpo está fraco e vai levar um tempo para que você se habitue. Tudo bem?
Balancei a cabeça em confirmação, ansiosa para que começassem a me contar tudo o que perdi e como cheguei até ali.
- Houve um incêndio... - O tal começou, aproximando-se de minha cama. Meu olhar se fixou nele, implorando para que ele acabasse logo com aquilo. - Nós chegamos lá para atender o chamado e...
- Nós? Quem é você? - Perguntei, franzindo o cenho.
- Eu e minha equipe. Sou , bombeiro. - Ele respondeu e eu me mantive quieta, esperando que ele continuasse. - Nós chegamos lá para atender o chamado e descobrimos que o foco do incêndio foi uma chapinha que esqueceram ligada no banheiro.
Estreitei meus olhos, tentando me recordar de qualquer detalhe sobre o que ele estava me contando. Alguns flashes vieram a minha mente e a sensação de estar sendo engolida pelo fogo fez eu me encolher na cama. Olhei para meu corpo, só então me dando conta de que haviam cicatrizes de queimaduras em meus braços.
- O quarto mais atingido foi o de seus pais e já os encontramos s...
Oh, não. Não diga as palavras, por favor. Não diga...
- ...sem vida. - completou.
Soltei um gemido alto e mordi meus lábios com certa força, fechando meus olhos no exato momento em que os senti encherem de lágrimas. Levei minhas mãos até meu rosto de forma a me consolar mas assim que toquei minha pele, arregalei os olhos novamente.
- Meu rosto, ele... - Comentei baixinho, com medo da resposta. - Eu estou com queimaduras no rosto?
- No rosto, no peitoral e nos braços. - Dr. James disse. - O local mais atingido foram seus braços e o peitoral, as queimaduras do rosto foram mais leves, mas mesmo assim, algumas cicatrizes permanecerão, mesmo que pequenas...
Não respondi, um pouco em choque com todas as informações que me estavam sendo passadas. Meus pais faleceram. Haviam cicatrizes de queimaduras em praticamente metade de meu corpo. E ainda não tinha acabado, eu sabia que não. Dr. James e Jane fizeram um sinal e se retiraram do quarto, deixando-me sozinha com .
- Meus pais... - Falei, suspirando e limpando algumas lágrimas que insistiam em escorrer. - E minha irmã? Sara?
- Tiramos você e sua irmã ainda com vida da casa. - O bombeiro voltou a falar. - Trouxemos as duas para cá, mas a sua irmã não... - Ele parou, respirando fundo e balançando a cabeça em negação. O desespero começava a tomar conta de meu corpo. - A sua irmã não sobreviveu.
Olhei para o teto enquanto lágrimas grossas desciam por meu rosto. Eu estava sem reação. Meus pais e minha irmã estavam mortos. Eu não tenho mais ninguém. Meu Deus do céu, eu não tenho mais família. Um soluço alto escapou por meus lábios e eu fechei os olhos, apertando-os para que as lágrimas saíssem todas de uma vez. A dor que eu sentia dentro de mim não se comparava a qualquer outra que eu já tinha experimentado. Continuei a chorar, soluços e mais soluços saindo de minha boca. Senti uma mão envolver a minha e aperta-la, de forma a me passar conforto. Respirei fundo e abri os olhos, encarando o bombeiro a minha frente. Olhei para nossas mãos entrelaçadas e franzi o cenho. Ele percebeu e se afastou no mesmo momento.
- Desculpa, eu... - Começou a falar, visivelmente constrangido. - Desculpa. Te acompanhei durante esses três meses, quase todos os dias, e ver você finalmente acordada e passando por tanta dor, eu...
- Eu não preciso que sintam pena de mim. - Respondi, soando mais áspera do que pretendia, mas não me importei. - Olha, , agradeço por tudo o que fez, mas eu quero ficar sozinha. Gostaria que fosse embora.
Ele me olhou com as sobrancelhas arqueadas em surpresa, o pouco de brilho que existia em seus olhos sumindo no mesmo momento. Por fim, acabou dando de ombros.
- Tudo bem. Agora você já acordou, então posso ir pra casa, mesmo. - Respondeu, virando-se e pegando seu casaco em cima da poltrona. Deu alguns passos em direção a porta mas se virou novamente, olhando diretamente para mim. - Espero que fique bem. Obrigado pela companhia nos últimos meses. Até mais.
E saiu do quarto, deixando-me confusa. Como eu pude ser companhia para ele se passei os últimos três meses dormindo? Eu nem o conhecia, por Deus! Eu só queria dormir e acordar novamente para descobrir que tudo não passou de um pesadelo ruim. Precisava lidar com essa dor da única maneira que conseguiria: sozinha, porque era assim que eu seria daqui para frente.

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Dizem que se acostumar à perda de um membro de seu corpo é um processo complicado. Saber que aquela parte que você possuía e governava não existe mais não é o pior. O esquecimento, esse sim é o tormento maior. É você estender o braço para alcançar um copo, mas perceber que não pode, porque o membro não faz mais parte de seu corpo. A dor fantasma que assombra aquele órgão alienado de nosso corpo dificilmente vai embora, permanecendo como um lembrete do que estava ali.
A sensação de perder um familiar é semelhante. Alguém com que você convivia diariamente, com quem compartilhava tudo sobre sua vida e em quem contava para qualquer tipo de situação. Agora imagine sensação três, quatro, cinco vezes mais forte. Era como se eu não tivesse braços nem pernas, como se tivessem sido arrancados de mim, de uma vez só. E a dor também não era física, presente concretamente ou passível de ser consertada. Não, esse tipo de sofrimento é do tipo que te acompanha como uma verdadeira assombração, onde quer que você vá, seja em forma de memórias ou espalhadas por todos os lugares em que já esteve.
De certa forma, mesmo antes do médico me atualizar sobre os fatos, eu já sabia. Não costumava acreditar em efeito borboleta, mas a vida me forçou através daquela tragédia. Como poderia ignorá-lo se fui eu quem usei a chapinha e deixei-a ligada para que minha irmã usasse em seguida, pôde causar tamanha destruição? Vidas foram perdidas, minha irmã e meus pais... Eu tentava a todo custo não deixar a culpa me corroer, porque se deixasse eu teria desmaiado de dor. O peso das correntes que eu agora carregava, atadas a mim como algemas, me pareciam insuperáveis, e até irreparáveis. Mesmo tendo sobrevivido, eu não tinha dúvidas que estava quebrada por dentro.

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- Como estamos hoje, ? - Despertei, ouvindo uma voz masculina perguntar.
Na verdade, despertar não era a expressão certa. Não conseguia entender o processo estranho de minha mente para determinar quando eu estava ou não acordada. Porém, sempre que eu estava, o homem, que agora eu sabia se chamar , sempre estava lá. Eu podia ouvir e até sentir algumas coisas, mas não conseguia arranjar forças para abrir meus olhos. Um barulho confuso de comerciais e propaganda soou, alto demais para meu gosto. Eu queria berrar para desligarem aquilo e me deixarem dormir em paz. Mas a voz grave voltou a quebrar o que antes era um silêncio agradável em minha mente.
- Ah, não acredito! A Origem. De novo. Assisti essa bosta ontem. - Disse, gargalhando.
Foi como se ele martelasse em minha têmpora, já que naquele ponto minha dor de cabeça estava insuportável. E mais uma vez quando eu já havia me acostumado com os sons que provavelmente eram do filme, a voz voltou a tagarelar. Ele só podia estar brincando comigo.
- , você já pensou sobre o quanto essa história é louca?! Quer dizer, ele parte do princípio que uma máquina nos permite entrar na cabeça de outra pessoa enquanto ela está sonhando. Mas será que todos sonham da mesma forma?
Estou vendo, querido. Se eu pudesse, estaria revirando meus os olhos para ele. A fonte constante da minha irritação continuou seu monólogo, parando somente para mastigar algo que fazia um crack crack insuportável.
- Fico me perguntando se você realmente me ouve. Não sei se seria algo bom ou ruim, porque a quantidade de coisas que eu já disse aqui...
Sorri internamente enquanto o homem gargalhava. Tarde demais para retirar todas as coisas que já me disse, cara. Quando acordar vou me certificar pessoalmente de arrancar sua língua.
– Olha, tudo isso fica entre nós, ok, parceira?
Um estrondo fez meu coração pular uma batida e senti um líquido estranho correndo pelo meu braço. ECA! Que merda era aquilo?!
- Ufa, - Disse ele, rindo de nervoso. – Essa foi por pouco. Mas que mer... – Praguejou.
Ah, então ele era a fonte da gosma gelada... Senti um tecido sendo esfregado de qualquer jeito em minha pele, mas a substância deveria ser açucarada porque não fora de muita ajuda.
- Senhor , como estamos hoj... O que está fazendo?
Percebi uma voz feminina indagar. Confesso que me senti bem representada com sua pergunta.
- Ahn, nada, só checando o pulso da .
Mentiu o homem, descaradamente.
- Ah, da próxima vez, tente um pouco mais embaixo, de preferência abaixo do cotovelo, no pulso dela mesmo. - Ouvi-a rebater.
Não sabia quem era a tal mulher, mas já a considerava muito.
- E eu já disse que pode me chamar de , Jane! – Ouvi o homem dizer. – Infelizmente é provável que nos vejamos por um tempo.
- Paciência, Senhor... . – Completou a enfermeira enquanto checava meu pulso. – Ela irá acordar em seu próprio tempo, o senhor verá.
- Eu espero... Mas ainda sim, imagine a dor de acordar para descobrir que toda sua família se foi?!
- Às vezes eu acredito que ela já saiba... Quer dizer, talvez seja esse sej...
A enfermeira continuou, com a voz gentil, mas eu já não ouvia mais nada do que dizia.
Minha família.
Não entendia o que estava faltando nesse tempo todo, e agora descobri serem as pessoas mais importantes da minha vida. Como pude esquecê-los?! E agora saber que tinham ido...
Ido para onde?! Não pode ser o que estou pensando. Continuei a mentir para mim mesma, mas sabendo em meu coração que o tom de só podia se referir à morte.
Ok, cérebro, agora é a hora de me desligar novamente. Por favor...
Mesmo com minha súplica, meu corpo fez o contrário, e eu não poderia estar mais alerta. Meus pensamentos foram tomados por tristeza e a culpa. E quando eu estava à beira de um colapso mental, o tom de voz calmo de sussurrou perto de meu ouvido.
- Não desista, . Não desista.


Acordei em um susto. Ao abrir os olhos, reconheci o quarto de hospital. Bufei, um pouco frustrada. Não aguentava mais ficar ali. Contudo, ao mesmo tempo em que eu queria ir embora, não tinha onde ficar. Eu não tinha mais casa, ela fora destruída no incêndio. Fui informada de que receberia um apartamento novo da minha seguradora, mas, mesmo assim, não se assemelharia em nada à minha casa, ao meu lar.
- ? Bom dia. - Dr James disse ao entrar no quarto. - Tenho uma ótima notícia.
- Diga que vou poder sair daqui, por favor. - Pedi, esperançosa, vendo-o sorrir em confirmação.
- Temos alguns exames pra fazer hoje e, se tudo estiver ok, no fim do dia você poderá ir pra casa. - Respondeu, sorrindo para mim. - Já tem onde ficar?
- Sim... - Respondi, com a voz baixa pela falta de ânimo. - O seguro da casa me garante um apartamento. Ontem o segurador veio aqui, me explicou e entregou-me uma chave. Só preciso comprar algumas coisas. - Dei de ombros, mordendo o lábio em seguida.
- Bom, não vai ser fácil. Mas você está viva, sobreviveu e sei que com o tempo, por mais difícil que seja, conseguirá retomar sua vida. Nós estaremos sempre disponíveis para lhe ajudar no que estiver ao nosso alcance. - Dr. James assegurou-me e eu sorri em agradecimento. - Vamos começar os exames?
- Por favor! Não aguento mais ficar aqui. - Respondi e ele riu.
Apertando um botão, a cama abaixou e eu pude me sentar e colocar os pés para fora, encostando-os no chão. Levantei-me e com a ajuda de Dr. James, seguimos para dar início a longa bateria de exames.
Algumas horas depois e eu me encontrava novamente na cama, mas dessa vez estava vestida e aguardando as últimas instruções antes de ser, finalmente, liberada para ir embora.
- Você precisa voltar em um mês para check-up, . - Dr. James disse assim que terminou de fazer anotações em sua prancheta. - Pronta pra recomeçar?
- Na verdade, não. - Respondi, me levantando da cama e indo até a poltrona. Peguei minha bolsa e coloquei-a em meu ombro. - Mas vou conseguir.
Dr. James sorriu, soltou sua prancheta e fez o inesperado: puxou-me para um abraço. Seus braços me envolveram e por alguns segundos, me permiti ser abraçada por ele.
- Vai dar tudo certo, . - Ele disse assim que nos afastamos. - Eu vou te passar meu celular pessoal, você já tem o da Jane e se quiser o de ...
- Eu nem o conheço, James. - Cortei-o, dando de ombros.
- Você também não conhecia a mim e Jane. - Rebateu, arqueando uma sobrancelha. Eu revirei os olhos. - Bom, tudo bem.
- Obrigada por tudo. - Agradeci novamente e juntos saímos do quarto.
Ainda antes de ir embora, me despedi de Jane e do restante da equipe que acompanhou meu caso durante os meses em que estive dormindo. Quando finalmente saí do hospital, franzi o cenho para a claridade e respirei fundo, inspirando o ar fresco pela primeira vez depois de muito tempo.
- Certo... - Falei a minha mesma, abrindo minha bolsa e procurando o papel com o endereço do apartamento que seria meu lar de agora em diante. - Acho que é muito longe pra ir andando e tenho certeza que Dr. James disse algo sobre não fazer caminhadas longas. Taxi? - Chamei quando cheguei a margem da calçada, erguendo a mão assim que um veículo amarelo passou por mim.
Assim que o carro parou, abri a porta e me sentei no banco de trás, passando o endereço ao motorista em seguida. Encostei a cabeça no banco e suspirei, um pouco nervosa. Então, era isso. Depois de uma vida inteira com meus pais e com minha irmã sempre ao meu lado, eu estava sozinha. E precisava aprender a viver assim.

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- Boa noite, !
Boa noite, ?! Eu estou em coma, não sei nem que mês estamos.
- Hoje trouxe uma surpresa. Vi umas moças falando sobre esse livro no metrô e resolvi comprar para lê-lo para você. Não sei se é do tipo que você gosta, ou que seja do tipo que gosta de ler... Quer dizer, não que eu ache que você é inculta nem nada do tipo. Não que quem não gosta de ler seja necessariamente inculto. Bem...
Meu deus, esse homem deve ter tido muita dificuldade para convidar uma menina para o baile da escola.
- Desculpe, enfim, é só que tem gente que não curte muito. O livro se chama... A garota do calendário.
Ah, era só o que me faltava. Agora além de ver filmes e narra-los para mim, eu ainda teria que ouvir sua voz lendo um livro adolescente.
- “Amor verdadeiro não existe. Passei anos imaginando que existisse. Na verdade, achei que tivesse encontrado”. Nossa, essa moça não se decide. – Comentou ele, rindo.
Bem, ao menos um de nós está se divertindo aqui.
- “Ele era a estrela do time de beisebol. O melhor que a escola já teve. Grande, tinha mais músculos que cérebro e o pin... do tamanho de um amendoim com casca”. Ok, chega de leitura por hoje, .
Agradeci por ter desistido. Porém, meu momento de não durou muito.
- Desculpa, . Eu realmente estou aqui para lhe fazer companhia, não queria que você ficasse sozinha. Eu conheço a solidão e não é nada bonita. Você não merece isso.
E você merece, ? Contestei em pensamento, querendo tanto franzir minha testa que acho que ela realmente chegou a se mover um ou dois milímetros. E quase como se estivesse me escutado, ele continuou.
- Eu precisei seguir esse caminho. Já presenciei o quanto é difícil ter um parente ou se relacionar com alguém da minha profissão. A incerteza é enlouquecedora e eu não sentenciaria ninguém a isso.


Mais uma vez acordei agitada, mas, dessa vez, ao abrir os olhos encontrei meu quarto. O teto branco descascando me encarou de volta, me lembrando de deprimente nova realidade. De minha vida antes, ao coma e agora isto... Cansei de mudanças. Foram muitas em um tempo curto demais para que eu conseguisse absorve-las. Suspirei, me virando na cama e afundando o rosto nos travesseiros. Outra coisa que eu não aguentava mais eram esses malditos sonhos.
Somente mais um enigma para minha mente remoer. Seriam meros sonhos, fantasias de minha mente fértil? Ou seriam memórias, momentos de meu coma os quais eu - inexplicavelmente - esquecera? Mas a questão que mais me atormentava era o denominador comum entre eles. A voz grave que sempre estava presente. Era ele. . O maior pé no saco da história.
Chutei as cobertas para longe, balançando a cabeça contrariada e me levantei, indo para o banheiro para lavar o rosto. Só havia uma coisa racional a se fazer em uma situação como aquela. Era muito simples: não dormir. E quem diria que isso seria algo tão difícil de fazer depois de três malditos meses desacordada? Mas, infelizmente, o corpo humano tem suas próprias vontades, e isso foi exatamente o que constatei na noite do dia seguinte quando adormeci sentada no sofá, rodeada de livros que pensei que me manteriam acordada. Mera ilusão.

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- ! Você não deveria estar cuidando desse machucado na ala de queimaduras? – Disse a enfermeira, que já estava há alguns minutos revirando meu corpo em testes.
Ai deus, no que esse homem se meteu agora?! Pensei, balançando a cabeça metaforicamente.
- Eu já conheço o procedimento, Jane. Vim só dar uma passada aqui na . Voltarei para lá em alguns minutos.
Senti a enfermeira começar a me examinar com suas mãos frias. Era muito estranho não conseguir recuar em momentos como esse.
- A Sadie não te avisou? Tem alguém aqui para vê-lo. – Ela falou, tateando meu braço.
Namorada, ? Um pouco sem noção da parte dele em trazer alguém para o quarto de outra mulher.
- A mim? Talvez seja alguém do trabalho.
Ainda se faz de desentendido... Ainda não o conheço, mas deve ser um típico playboy, pelo visto.
- Ah, aí está ela.
Disse a enfermeira com um tom animado, perdendo muitos pontos em meu placar. Se não fosse aquela coisa toda do ter me “salvado de uma casa em chamas” e dela ter “recuperado minha pele queimada” eu teria cortado completamente a relação com esses dois ridículos.
- Mãe! – Disse , me fazendo gargalhar internamente.
Ouvi a voz dos dois sumindo e quis berrar: ESPERA ! QUERO CONHECER A SENHORA !
- Tadinho, parecia tão envergonhado. – Comentou a doutora. – Se você acordar, , tem que dar um jeito nesse rapaz.
Nem me diga, Jane. Nem me diga...


Mais uma noite, mais um sonho - ou memória. Havia prometido a mim mesma que caso sonhasse mais uma vez, adiantaria minha visita a Dr. James, para perguntar algumas coisas a ele. Com isso em mente, me levantei e fui tomar um banho.
Depois de ajeitar o apartamento - não que eu tivesse muito a fazer, já que ele ainda estava relativamente vazio -, saí de casa e peguei um taxi em direção ao hospital que foi meu abrigo durante os últimos meses. Em poucos minutos já estava andando pelos corredores, cumprimentando algumas pessoas.
- ? - Ouvi Dr. James chamar e me virei, encontrando-o com o cenho franzido. - O que faz aqui? Ainda faltam alguns dias para o seu retorno...
- Oi pra você também, Dr. James. Tá muito entediante ficar em casa. - Sorri divertida para ele, que cerrou os olhos, me olhando de maneira desconfiada. - Tô brincando. Quero te perguntar algumas coisas.
- Ah, tudo bem. Vem comigo, vamos até o meu consultório.
Juntos, caminhamos pelo hospital. Eu me sentia estranhamente em casa, como se todos aqueles sons fossem familiares. Isso era deprimente de se constatar, principalmente considerando minha experiência de quase morte. Ao chegar na sala do Dr. James, me acomodei em uma das poltronas em frente à sua mesa enquanto ele se sentou em sua cadeira. Arrumou alguns papéis e finalmente se voltou para mim.
- Então? - Perguntou, encarando-me com atenção.
- Eu ando tendo alguns sonhos... - Comecei, me ajeitando na poltrona.
- Sonhos? - Franziu o cenho, um pouco confuso.
- Talvez sejam lembranças... - encolhi os ombros - de quando eu estava em coma.
Dr. James permaneceu me encarando por alguns segundos, até que abriu um sorriso e apoiou seus braços em sua mesa.
- Não é incomum. O que você vê nesses sonhos?
- Basicamente eu, deitada na cama e inconsciente. Aquele homem, , falando sem parar. Você ou a Jane checando meus sinais vitais...
- É normal. Seu subconsciente guarda essas memórias, mesmo você não estando acordada, em alguns momentos tinha lapsos de consciência e conseguia acompanhar o que acont...
- James, você esqueceu seu... - Uma voz feminina interrompeu e eu e James nos viramos para a porta a fim de ver quem era. Assim que viu que o médico não era o único sozinho na sala, interrompeu a si mesma. - Me desculpa, achei que estivesse sozinho.
- Tudo bem, Elisa. - James sorriu para a mulher.
- Eu volto outra hora. - Ela respondeu, abrindo um sorriso para ele. Depois, voltou seu olhar para mim e franziu o cenho. - ?
Tentei, mas não consegui ligar o rosto a um nome. Provavelmente eu não a conhecia.
- , essa é Elisa. - Dr. James interviu, vendo que eu não conhecia a mulher. - A equipe dela que atendeu ao chamado na sua casa.
- Me desculpa, eu não lembro... - Abri um sorriso pequeno, um pouco sem jeito. - Mas acho que eu devo agradecer, né?
- Ah, claro que não lembra. - Elisa disse e se aproximou, sorrindo docemente. - E não tem porque agradecer, estávamos somente fazendo nosso trabalho. - Balançou a mão em resposta, como se não fosse nada. - Mas o você deve conhecer!
Fiz uma careta assim que ouvi o nome dele, trocando um olhar com Dr. James, contendo uma revirada de os olhos.
- Sim, conheço o dito cujo.
A mulher franziu o cenho, confusa.
- O que têm contra o , querida? - Ela perguntou, apoiando-se na poltrona vazia ao meu lado.
- Nada. Eu juro. É que ele é tão... Não sei dizer, ele simplesmente... Me irrita. - Expliquei, ouvindo ela e James rirem.
- Ah, isso aí ele faz com todos. - Ela gargalhou, revirando os olhos. - Mas é um homem maravilhoso, tem um coração muito bom. Achei que imaginasse, já que ele vinha aqui todos os dias te fazer companhia. Agora pergunta se ele veio ficar com o Danny quando ele ficou internado? E olha que nosso amigo foi liberado em uma seman...
- Todo dia? - A interrompi, incrédula. - Ele veio todo santo dia...?
- Por três meses... Sim, . - Dr. James respondeu.
- Mas por quê?! - Questionei, franzindo o cenho. - Ele nem me conhecia...
- tem um bom coração. Eu, se fosse você, tentaria conhece-lo melhor. - Elisa respondeu, piscando para mim e dando a volta na mesa, aproximando-se de James e dando um selinho nele. - Te vejo a noite?
O médico assentiu, sorrindo para Elisa. Ela se afastou novamente e caminhou até a porta.
- Bem, foi um prazer conhecê-la, . Visite a gente qualquer dia desses. iria adorar. - Sorriu e saiu pela porta.
Em minha cabeça, as memórias que tive com se limitavam somente ao que eu me lembrei. E eu pensava que ele vinha ao hospital por algum motivo e resolvia passar um tempo no meu quarto ou qualquer coisa do gênero. Eu pensei em tudo, na verdade, menos que ele tinha me feito companhia todos os dias durante os três meses em que passei dormindo.
Alguns minutos depois, me despedi de Dr. James e resolvi ir a pé para casa, no meu próprio ritmo, para tentar colocar os pensamentos no lugar. Minha mente logo voou para . O bombeiro que salvou minha vida e que havia me feito companhia enquanto eu estava em coma, sem ao menos me conhecer. Por que ele fez isso? Eu precisava conversar com ele para saber. Porém, ao constatar isso, me lembrei de como eu praticamente o expulsei de meu quarto quando acordei, sendo que tudo que ele fez foi me dar apoio e estar ao meu lado, não me permitindo ficar sozinha, mesmo que eu já tivesse perdido toda minha família.
A caminhada me fez bem. Levei pouco mais de uma hora para chegar em meu apartamento. Fechei a porta, deixando minha bolsa na mesa. Andei até a sala e passei pelo corredor, parando no meio dele para me olhar no grande espelho que tinha ali. Aproximei-me o máximo que podia, observando meu rosto, pescoço e início do peitoral. Levei minha mão até minha bochecha, passando os dedos levemente pelas leves cicatrizes que as queimaduras causaram. Suspirei um pouco alto, descendo o toque para meu pescoço, seguindo as linhas tortas do tecido cicatricial.
Não era feio ou horrendo. Eram cicatrizes pequenas, mas, ainda assim, estavam ali. E eu não as odiava, mesmo elas me lembrando de tudo que perdi. Pelo contrário, apesar do grande trauma, as cicatrizes me ajudavam a constatar o quão forte eu era. Eu sobrevivi a um incêndio, acordei depois de três meses em coma e, apesar de todas as perdas, eu ainda estava em pé e tentando, a todo custo, seguir com minha vida. E eu não pretendia desistir.
Com esse pensamento em mente, me dei conta de que eu já tinha demorado demais para procurar . Veja bem, não que eu ache que seremos namorados ou que eu queira viver um romance agora. Mas havia um motivo, mesmo que ainda desconhecido, para ele ter entrado em minha vida dessa maneira, justamente no momento em que eu perdi tudo. Eu acreditava fielmente nisso.
Era por isso que, algumas horas depois, eu me encontrava parada em frente ao prédio do corpo de bombeiros onde ele trabalhava. E sim, eu estava nervosa. Eu sequer me lembrava com clareza do rosto dele, onde eu estava com a cabeça quando achei que era uma boa ideia vir até o trabalho de ? Bufei, um pouco irritada comigo mesma. Eu estava quase desistindo e dando a volta quando ouvi uma voz me chamar.
- ?
Me virei e levantei o olhar, encontrando Elisa me encarando com um sorriso.
- Ei... - Cumprimentei, abaixando os ombros. - Eu não sei bem o que eu vim fazer aqui.
- Ah, acho que você sabe, sim. - Ela riu assim que se aproximou, passando o braço por meu ombro. - Achei que fosse demorar mais.
- Eu também. Na verdade, eu acho melhor eu ir e...
- Não, não. - Elisa disse, virando-se de frente para mim. - Do que você tem medo?
- Sinceramente? Eu não sei. - Respondi, dando de ombros. - Eu não o conheço, Elisa. Ele passou três meses comigo e eu não o conheço, não sei nada sobre ele. Não sei nem como começar a agradecer por tudo e...
- E você acha que ele te conhece, ? - Elisa perguntou, arqueando a sobrancelha e sorrindo levemente. - Você estava em coma, dormindo, nunca trocaram uma palavra durante esse tempo, e mesmo assim, ele sempre esteve lá. Com certeza ele pensou que o que estava fazendo era loucura, mas ele se apegou a você, mesmo sem conhece-la. Ele também não te conhece.
- Ele tá aí? - Perguntei, mordendo o lábio, um pouco insegura.
- Sim. Você quer entrar ou quer que eu diga pra ele vir aqui fora?
- Acho que prefiro entrar. - Cruzei os braços, encolhendo um pouco meu corpo.
- Vem comigo, então. - Elisa disse e começou a andar, comigo em seu encalço. - Ei, pessoal! - Chamou quando entramos no prédio. Todos os bombeiros que estavam ali se viraram, alguns abrindo a boca em surpresa, outros sorrindo e alguns não entendendo nada. - Cadê o babaca do ?
- Ele foi... - Um deles começou a responder, mas foi interrompido.
- ?
Eu reconheceria aquela voz de longe. Não tive tempo de gravar o seu rosto, já que o expulsei assim que acordei do coma, então, quando ouvi sua voz, o arrepio que passou por meu corpo foi intenso, trazendo de volta todas as lembranças que meu subconsciente guardou.
deu alguns passos em minha direção, um pouco sem jeito. Ele sorriu brevemente e indicou uma porta com a cabeça, passando por mim e andando até ela. Fui atrás dele e saímos para uma espécie de pátio, com alguns materiais de treinamento e uma cesta de basquete, que julguei ser onde eles treinavam e passavam o tempo livre.
- Eu não sei o que dizer. - Ele falou, colocando as mãos nos bolsos e olhando para frente, enquanto eu observava seu rosto. - Não esperava você aqui.
- Pra ser bem sincera, eu também não. - Respondi, voltando meu olhar para frente quando ele me encarou. - Acho que preciso agradecer por algumas coisas e...
- Você não precisa, .
- Eu preciso, . Vou me limitar somente a dizer que você não precisava ter passado todos os dias dos últimos três meses comigo, mas agradeço por ter feito. - Agradeci, encostando-me na parede, ainda com meu olhar para frente. - Se não fosse por você, as memórias que estou tendo seriam brancas, solitárias e provavelmente apavorantes.
- Memórias? - Questionou, virando-se de frente para mim. - Você...?
- Eu me lembro de alguns momentos. - Dei de ombros, também me virando para ele. - Dr. James disse que é meu subconsciente e que é normal. E aí ele e Elisa me contaram sobre você e sobre o tempo que passava comigo.
- Elisa? - Franziu o cenho, confuso.
- Ela apareceu no meio da consulta, acho que eles estão juntos e...
- Elisa minha chefe e James seu médico? Juntos? - perguntou, arregalando os olhos. - Eu não acredito nisso! Eu preciso contar pros caras e... - Cruzei os braços, arqueando uma sobrancelha e encarando-o em questionamento. - Tudo bem, eu não vou contar pra ninguém.
- Obrigada. - Respondi, reprimindo uma risada e voltando meu olhar para frente. - Enfim, eles me contaram algumas coisas, o que me ajudou a entender melhor as lembranças. Por isso eu preciso te dizer obrigada, , por ter me feito companhia quando eu não tinha mais ninguém.
continuou a me olhar, seus olhos não se desviando dos meus em nenhum momento. Abriu um sorriso antes de voltar a falar.
- Você pode não acreditar, mas a sua companhia foi essencial pra mim. Eu quem preciso agradecer e... - Começou a falar, mas eu o interrompi.
- Ah, por favor. - Dei uma risada baixa. - Você sim não tem motivos pra agradecer.
- Mas eu...
- Vamos fazer o seguinte? - Perguntei, voltando a ficar de frente para ele. - Você me paga um café, me conta tudo sobre os últimos três meses e assim ficamos quites.
- Assim? Só um café? - Questionou divertido, cruzando os braços.
- Eu ia sugerir um milk-shake, mas a última vez que me lembro você derrubou em mim, então...
fechou a cara e eu gargalhei de sua reação.
- Um café tá ótimo. - Ele respondeu assim que parei de rir. - Eu gostaria muito de...
- Te conhecer melhor. - Completei sua frase e ele sorriu para mim, balançando a cabeça em confirmação.
Retribuí o sorriso e ficamos alguns segundos nos encarando desajeitadamente, antes de voltar nosso olhar novamente para a frente, a tempo de ver o sol começando a baixar no horizonte.
Minha irmã sempre amou o pôr do sol. A forma como o alaranjado e o rosado preenchiam o céu, sempre a tiravam o fôlego. Minha mãe, uma artista, vivia deixando pinturas dessa cena pela casa, para que Sara encontrasse e ficasse feliz. Quando era meu pai que acabava encontrando, ele elogiava o trabalho de minha mãe e lhe dava um beijo, dizendo que a amava.
Apesar de suas boas intenções, meus pais não compreendiam que o que mais contava para Sara não eram as belas cores do céu, mas sim o simbolismo de tudo aquilo. O fim de um ciclo, e o início de outro. Aquela fração de certeza de que o mundo continua em pé mesmo após todas as tragédias do dia a dia. Para minha irmã, era reconfortante saber que no fim do dia, o pôr do sol sempre estaria ali para lembra-la disso.
Ali, naquele momento, em pé junto a - o homem que não entrara em minha vida por acaso - eu sabia que não importavam nossos medos, traumas e demônios do passado. Eu me sentia segura, pois tinha uma sensação crescente de que talvez, só talvez, no fim das contas, Sara estivesse certa. Não há o que temer quanto ao futuro. O sol somente se põe hoje, para poder renascer glorioso no dia de amanhã.


Epílogo

- Amor, podemos ir em uma livraria? – Perguntou , erguendo a sobrancelha sugestivamente para o homem a seu lado. - Tem um livro que alguém nunca terminou de ler pra mim...
Ele corou violentamente, sabendo exatamente a que ela se referia com aquilo. Já fazia um ano que os dois estavam juntos, mas mesmo assim, a mulher ainda brincava com as coisas que fez enquanto ela dormia. E por mais que ele achasse engraçado, toda santa vez, fingia-se de chateado para ganhar alguns pontos com a namorada. Ninguém é de ferro, não é?
- Dá para esquecer isso, ? – Perguntou, emburrado.
- Oh, que fofo você com essa carinha. Tá merecendo um milk-shake! Acho que tem uma sorveteria aqui perto. Quem sabe eu não te deixo lamber do meu braço? - Sugeriu, gargalhando ao ver a carranca do namorado.
- Vem aqui, sua malvada. – Replicou , dando um bote e lhe pegando pela cintura, jogando-a pendurada em seu ombro.
- , seu retardado, estamos no meio do clube, por Deus! - berrou, dando tapinhas nas costas dele e balançando as pernas.
O homem continuou a caminhar, ignorando as pessoas que passavam por eles, como se nada estivesse acontecendo. Ele havia acabado de busca-la no Clube Santa Mônica, onde ela trabalhava desde que Dr. James a liberou para voltar à ativa. Os horários dos dois eram complicados, principalmente diante da irregularidade dos turnos de , mas ela entendia, não só seus horários malucos, como os riscos que ele precisava passar todos os dias para salvar vidas. entendia, para a surpresa e admiração dele.
, por sua vez, vivia cada dia como um presente e agradecia a ele por isso todas as noites. Ela ficou seis meses frequentando uma psicóloga, e mesmo não tendo resolvido todas as questões relacionadas ao acidente, no geral, a mulher parecia em paz, tranquila, mesmo sentindo falta de sua família constantemente.
- Olha só, você não precisa ficar demonstrando que tem músculos e que é tão gostoso para todo mundo ver. Eu já sei, acredite em mim. – Suspirou, cansando de se debater. Ela apoiou os cotovelos nas costas do rapaz. - Agora me solta.
- Não. – Respondeu .
- Eu ouvi bem? – Rangeu os dentes, e arqueou a sobrancelha, mesmo que ele não pudesse ver.
- Não até que você deixe pra lá essa coisa de ficar me zoando pelas coisas que disse enquanto estava em coma.
- Por que eu faria isso, se é tão divertido zombar de você? – Perguntou . – Não gosta do som da minha risada, é isso?
- , todo mundo sabe, por Deus! O que é dito durante o coma, fica no coma! - Ele respondeu, fazendo a gargalhar alto.
Ela sabia que ele tinha revirado os olhos ao ouvi-la gargalhando. Quando se acalmou, suspirou e passou as mãos pelos olhos, limpando-as lágrimas que deixou escapar. Aproveitando-se da visão da bunda dele e de seu acesso a ela, ela esticou sua mão e deu um tapa nela, que foi prontamente revidado por ele.
- Babaca. – Murmurou , revirando os olhos.
não era o rei das manifestações de carinho em público.
- Eu ouvi isso. - Ele disse.
- Era pra ouvir mesmo. Me larga, ! - Pediu, debatendo-se novamente.
- Diz que vai parar!
- Digo nada!
- Então aprenda a viver aí, por que eu não vou te soltar. - respondeu, decidido.
- , amor, seja racional. Eu estou até confortável. Você que vai cansar. - disse, fingindo apoiar os braços no ar e deitando a cabeça sob eles.
O homem parou, refletindo um pouco sobre o que ela tinha dito. provavelmente não aguentava mais a posição, mas mesmo assim, insistia em dizer que estava confortável. Ele sorriu e a mulher pensou estar ganhando a disputa entre eles, mas, nunca seria capaz de realmente saber o motivo pelo qual o homem sorria.
Mais cedo, ao caminhar até o clube, passou por uma joalheria e viu na vitrine um anel que gritava pelo dedo de , tão perfeito e delicado quanto ela - talvez a parte da delicadeza não parecesse tanto. Não estava planejando pedi-la em casamento tão cedo, muito menos procurando por um anel, mas não pôde ignorar a sensação crescente na boca de seu estômago que surgiu quando o viu. Ali mesmo, no meio da rua, ele decidiu que aquele seria o anel que pertenceria a sua futura noiva. Por um impulso, sacou um pouco do dinheiro que tinha em uma conta reservada para ocasiões especiais e comprou a joia. Não se arrependeu nem um pouco, e tinha certeza que assim que pedisse a mão da mulher, o sorriso dela faria valer à pena cada centavo.
Porém, agora não parecia mais ter sentido esperar para pedí-la em casamento. Ele a queria como sua noiva, por que não fazer isso agora? Com isso em mente, e com a caixinha contendo o anel guardada em seu bolso, teve uma ideia.
Começou a caminhar em direção à piscina do clube. Não poderia deixá-la em suas costas por muito tempo, para que não descobrisse sua nova aquisição, mas também não tinha como pegar a caixinha sem que ela visse. Por isso, fez a primeira coisa que veio em sua mente. provavelmente iria ficar possessa, mas ele não se importou, então, quando se aproximou da piscina e a mulher percebeu o que ele faria, ela berrou:
- .. Não se atreva! S... – A fala de foi interrompida assim que ela caiu na água, afundando na piscina.
Sua roupa toda começou a grudar no corpo e ela prometeu mentalmente que mataria assim que tivesse a chance. Porém, quando emergiu, a cena que viu a fez arregalar os olhos e quase gritar de felicidade instantaneamente. Seu namorado estava em sua frente, abaixado, segurando uma pequena caixinha que continha o anel mais bonito que ela já vira em sua vida.
- Você é retardado? - Ela perguntou, a cabeça tombando para o lado e as mãos sendo levadas a boca imediatamente.
- Talvez um pouco. - respondeu, dando de ombros. - Mas eu precisava de uma distração e não tinha como e...
- Então você resolveu me jogar na piscina? - fingiu indignação quando na verdade segurava a risada e seus olhos enchiam de lágrimas de felicidade.
- Sim. - Respondeu simplesmente, dando de ombros. - Você pode calar a boca e me deixar falar? - riu e apertou os lábios, ficando em silêncio. - Eu comprei esse anel hoje, mas não planejei essa situação. Eu vi o anel na vitrine e tudo que consegui enxergar foram seus olhos e a felicidade e calma que eles me trazem, então eu soube que, mesmo não planejando propor, eu precisava comprar pra quando o momento chegasse. E ele chegou antes que eu imaginava, com você pendurada em meus ombros e dizendo que estava super confortável. Ali eu percebi que não tinha porque esperar. Hoje, amanhã ou depois, meu amor por você só vai aumentar. O carinho e a admiração que eu sinto vão crescer cada dia mais. Você quer casar comigo?
berrou inúmeros sim, com certeza, o que fez abrir um sorriso imenso e aproximar-se para beija-la. A mulher, porém, foi mais rápida e passou os braços ao redor do pescoço dele, puxando-o para dentro da piscina antes mesmo que ele pudesse abrir a boca para reclamar. Assim que emergiu, olhou para ela e cruzou os braços.
- Ah, não me olha com essa carranca, meu bem! Você fez isso primeiro! - Ela acusou, jogando água nele.
- Você é uma idiota. – Replicou, revirando os olhos e aproximando-se dela, puxando-a pela cintura.
- Sou a idiota que você ama. – Complementou, docemente, fazendo um biquinho. - E agora, sou sua noiva.
- E agora, é minha noiva. - repetiu e sorriu, aproximando os lábios dos dela e lhe dando um selinho. O homem encarou os belos olhos de , como o bobo apaixonado que era e repentinamente teve uma realização. - Espera! Então isso quer dizer que você vai parar de zombar de mim por tudo que fiz enquanto você tava em coma? - Perguntou, piscando para a mulher.
Ela riu e replicou com seu natural tom provocativo, aquele que ele ouviria pelo resto de sua vida:
- Vai sonhando.


FIM



Nota da Kari: Eu e Gabriela desconhecemos uma coisa chamada limite. Nós duas terminamos, cada uma, um ficstape, e estávamos felizes e radiantes, porque não tínhamos nada pra escrever ate julho. Aí fizemos o que?? Pegamos Halo pra escrever juntas! Êêêêê! Duas descontroladas, inspiração e saiu essa história que vocês acabaram de ler. Eu espero, de verdade, que vocês tenham gostado. Esse casal tá no nosso coração.
Obrigada, Gabi, como sempre, por embarcar nessas loucuras comigo. Amo você!
Até a próxima parceria! <3







Nota da Gabi Heyes: Olá, pessoal! Obrigada por terem lido até o final! Espero mesmo que tenham gostado de Halo. Juro que é a Kari que me leva para essas furadas de entrar em mais e mais projetos. RS. Não sou eu que fico marcando a Karime em posts aleatórios de ficstapes com músicas vagas. Não, eu nunca faria isso. Mas como diz o ditado, quem tem limite é município uahauha. Amarei ler seus comentários, viu? Significa muito para mim e tenho certeza de que para a Kari também.
Nem preciso dizer que amo essa linda parceira que eu tenho que embarca comigo nessas loucuras. Ela sabe que não deixo qualquer um me chamar de anta uahuhas.
Até a próxima, <3!
 

   

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