Finalizada em: 31/05/2021

Capítulo único

— Você era um absoluto babaca, !
— Vai se foder, Grant.
Os garotos reunidos sob a sombra do muro que cercava a grande propriedade do Reformatório S. C. Dawson para Jovens Amotinados matavam o tempo tirando sarro um do outro e fazendo truques com a fumaça dos cigarros. Curtiam o resto do horário de almoço antes de iniciarem as atividades vespertinas, que, assim como as aulas obrigatórias da grade do ensino médio, eles faziam juntos.
Charles Nightingale e Dominic Grant receberam quase um ano antes, numa noite chuvosa, pastoreado para dentro pelo zelador Woolridge. era mais um como tantos ali: um garoto-problema com temperamento explosivo e pais negligentes. A dupla, formada há alguns anos, havia causado uma confusão no almoço substituindo parte dos temperos por outro tipo de erva, e como punição, ficaram responsáveis por monitorar o novo aluno. Não muito tempo depois, o reitor Cole se arrependeria amargamente daquela decisão.
— Ele não está errado, — Charlie defendeu Nick, afastando o círculo de fumaça do amigo de perto do rosto. — Você era mesmo um babaca quando chegou aqui. Bendita seja a guitarra que acalmou a fera.
— Eu não era babaca, vocês é que eram insuportáveis.
— Não, o nosso único problema é que nenhum de nós dois se chama — Dominic superestimou sua capacidade de desviar da pedrada que lhe deu pela provocação. Massageou o braço, rindo do amigo.
— Você não teve mais notícias dela, ? — dando uma última tragada no cigarro antes de apagá-lo na terra, Charlie questionou.
fechou a cara instantaneamente. Jogou o cigarro por cima do muro, pouco se importando com o mato que começava a se acumular ali, tão seco quanto o garoto se sentia ao ouvir o nome da melhor amiga.
— Tem seis meses que ela parou de responder e eu parei de dar a mínima.
— Ah, sim, parece mesmo que você não está nem aí.
— Dominic, eu tenho que concordar com o Cole em uma coisa: você é muito mais agradável quando cala a boca.
— Vem calar, bonitinho.
jogou outro pedregulho em Dominic, que conseguiu desviar dessa vez. Rindo, os garotos se jogaram na grama, e percebeu a ironia de toda aquela situação, se sentindo mais feliz naquele momento do que se sentia em casa, exceto pelos momentos que passava com, bom, com ela.
— Nick, para de me chutar, cacete!
— Desculpa, desculpa — o garoto de sotaque forte desculpou-se e continuou a chutar a canela de Charlie. Quer dizer, não era culpa de Dominic se o loiro estava com a perna bem na direção do pé dele!
Logo Dominic estendeu o tique para as mãos e saiu batucando pelo corpo, tentando achar um ritmo decente e começou a murmurar uma melodia qualquer para acompanhar. Charlie não estava totalmente errado, as aulas de música realmente haviam ajudado a direcionar toda a raiva que ele sentia, ainda mais quando os meninos começaram a se encontrar secretamente em um galpão afastado da casa para aprender instrumentos de verdade, e não aqueles violões clássicos entediantes.
imaginava como seria ter o primo ali. Da última vez que se falaram, Danny estava em Londres, cheio de novidades de toda a cena punk que rolava por lá, e agora, sabe Deus onde estaria (possivelmente fora do país, fugindo do pai de alguma garota com quem tinha dormido). Danny era o tipo de cara que aprontava de tudo e sempre se safava, uma espécie de herói para , e prova de que a família de Linda não estava totalmente perdida.
fechou os olhos e afastou os pensamentos sobre a mãe. Sentia falta dela, apesar de tudo, e não se sentia mal por nunca mais ter pensado no pai. Sentia na garganta o grito que deu ao ver o Mini Cooper creme se afastar dos portões de ferro fundido do reformatório, e se lembrava com nitidez do último olhar do pai o encarando como a um estranho.
— Senhor Nightingale! — um garotinho de uns doze anos, com cara de inocente e assustado, aproximou-se do trio chamando por Charlie. correu os olhos pelo menino, se perguntando que diabos aquela criança teria feito para ir parar de um pedaço de inferno como o reformatório.
— Diga, oh, infante, e talvez ganhes uma recompensa por seus serviços como mensageiro da corte.
— Pelo amor de Lennon e McCartney — Dominic riu soprado, sacudindo a cabeça.
Charlie não tinha a mesma aparência caótica de Nick e , e com um certo esforço, podia até se passar por um bom menino. Aquela era uma situação em que ele fazia questão de se esforçar e admirava isso no amigo. Charlie ainda tinha pesadelos da época que vivia entre orfanatos e casas temporárias até finalmente ser mandado para o reformatório com mais ou menos a mesma idade do garotinho, então tentava ser o mais amigável possível com as crianças da casa.
— O reitor disse que você tem visita — o garotinho informou, arrancando risadas de e Nick.
— Calem a boca, vocês dois — Charlie xingou os amigos, rindo, e pegou um pacote de balas azedas que entregou ao menino. — Valeu, garoto. Vai se divertir.
Levantando-se, bateu as mãos nas calças para afastar os restos de grama, nicotina e migalhas de comida que os meninos haviam saqueado na cozinha. Ajeitou o cabelo e pegou uma bala de menta, pendurando a bolsa tipo carteiro no ombro.
— Olha ele se arrumando todo para encontrar a sugar mommy — Dominic provocou, fazendo barulhos e gestos obscenos para Charlie, que respondeu com outro gesto bastante obsceno envolvendo sinais que sequer conhecia.
— A sua inveja fede, Grant.
— Não mais que você depois de passar a tarde com a sua tia.
— Vai se foder, Nick.
— Você já está indo por todos nós, meu amigo.
gargalhou, preocupado unicamente com o maço de cigarros que a irmã de uma das antigas responsáveis temporárias de Charlie devia trazer. O garoto voltou para o casarão, ignorando as piadas e uivos dos amigos.
— Ainda não sei como ele faz isso — sacudiu a cabeça, acendendo mais um cigarro.
— Isso o que? Manter um mulherão como a Jessica entretido por todo esse tempo ou transar no casarão?
— Eu estava pensando na parte de contrabandear comida, cigarros e maconha para dentro do reformatório, mas você tocou em dois pontos importantes.
— Acho que cabe qualquer coisa naquele sutiã.
Os garotos gargalharam mais uma vez, ouvindo os sinos do casarão soar anunciando o fim da hora do almoço. Juntaram as coisas, jogaram a sujeira por cima do muro e seguiram para a quadra poliesportiva.

Os dormitórios já estavam, em sua maioria, silenciosos. A ala feminina não tinha mais nenhuma luz acesa, enquanto na masculina, alguns quartos ainda tinham certa movimentação. O quarto compartilhado no segundo corredor do terceiro andar, com as paredes pintadas de um branco ainda mais sem graça que o creme do Mini Cooper dos , abrigava o trio que dividia um baseado.
sabia que era coisa boa quando se sentia leve e ria até faltar ar nos pulmões de qualquer bobagem que Nick dissesse. Sempre mantinha um caderno por perto e anotava as “ideias geniais” que tinha durante as alucinações para usar em alguma música, muito embora soubesse que jogaria a maior parte delas fora simplesmente por não conseguir entender a própria letra quando voltava à sobriedade.
Aquela não era das boas.
Sentindo a cabeça girar e um embrulho tomar conta do estômago, fechou os olhos tentando afastar as memórias do acidente; o som da batida, a imagem de com o braço quebrado no hospital e o olhar de preocupação do Sargento, tão mais paternal que o de Robert. Ouviu o trovão anunciando a chuva forte do lado de fora do quarto, e foi transportado para o dia em que foi deixado no reformatório. não sabia dizer se o aperto no peito era efeito da droga ou resto da raiva que sentia dos pais e de si mesmo, e daquele maldito médico com aqueles malditos remédios!
— Merda! — ouvindo as batidas fortes na porta, viu Nick, que ainda tinha algum nível de sobriedade, levantar-se apressado para abrir a janela enquanto Charlie sacudia algumas cobertas para afastar a nuvem de fumaça criada dentro do quarto. Empurrou as coisas para debaixo da cama e tentou manter os olhos abertos.
— Boa noite, senhor Grant — o reitor Cole saudou com aquele ar de desprezo mal disfarçado na voz.
— Boa noite, senhor Cole.
Passando pelo garoto de cabelos espetados, o reitor entrou no quarto com as mãos cruzadas atrás do corpo, segurando um envelope endereçado a Charles Nightingale. As sobrancelhas levemente arqueadas e os lábios torcidos para baixo acompanhavam o olhar frio que analisava cada canto do cômodo. Cheirou o ar algumas vezes, torcendo o nariz, e de olhos fechados, respirou fundo, buscando cada grão de paciência e autocontrole que tinha no corpo para não jogar os três jovens pela janela aberta.
— Senhor Nightingale, gostaria de vê-lo na minha sala. Agora.
O garoto de fios loiros e pele alva controlava o tremor nas mãos, mas não podia controlar o rubor nas bochechas.
— Agora? Aconteceu alguma coisa, senhor?
— Tenho apenas algumas perguntas para o senhor.
O reitor saiu do quarto, e Charlie lançou um olhar questionador para os amigos antes de sair atrás do homem. e Nick se entreolharam em silêncio por longos minutos, até terem certeza de que o enviado do cão e Charlie estavam longe o suficiente.
— Você viu? Ele achou o pacote de balas. Charlie foi descuidado dessa vez — esfregou o rosto, nervoso, subitamente consciente pela injeção de adrenalina.
— Pelo menos ele não esqueceu os cigarros na sala do Cole, também.
— E acha que isso faz diferença? Cole sentiu o cheiro de maconha no quarto e os olhos do Charlie estão mais vermelhos que a cara dele.
fechou a janela e estendeu uma toalha no chão molhado de chuva antes de se enfiar em um pijama e se deitar. Nick parou em silêncio por uns segundos, e quase pode ouvir as engrenagens girando na cabeça do amigo.
— Eu me surpreenderia se Cole conhecesse o cheiro da erva.
— Ele deve ter achado que era o seu perfume — provocou com a voz já arrastada pelo sono. Recebeu de Nick os dois dedos do meio em riste, e riu. — Vai esperar pelo Charlie?
Dominic sentou-se na cama, olhando para o céu escuro desfazendo-se em água do outro lado da parede. Pegou um livro na mesa de cabeceira ao lado da beliche que dividia com o loiro e deu de ombros, mantendo os olhos fixos na chuva.
— Não, só estou sem sono agora. O bastardo que lide com os deslizes dele.
— Hm — analisou o amigo de cima a baixo, e achou melhor guardar seus pensamentos para si. — Ok. Boa noite, então.


bocejou tentando não emitir nenhum som. Ajeitou a gravata e endireitou as costas assim que a professora de latim entrou na sala, ainda estranho ao novo comportamento. As sete fileiras de carteiras perfeitamente alinhadas representavam bem o sistema ao qual tinha que se submeter agora, e a ardência que ainda sentia na região lombar era lembrete constante de uma das poucas tentativas do garoto de se rebelar contra aquilo.
Todas as salas do casarão eram parecidos com a sala da coordenadora pedagógica da antiga escola de : brancas, tediosas e se você reparasse bem, poderia ouvir Madonna ecoando pelos corredores. Mais ou menos como as professoras que lecionavam ali, somadas as rugas e voz monótona e robótica que faziam quase sentir falta da inspetora Simms.
Com a autorização da professora, os alunos se sentaram para mais uma manhã de aulas. Nick, atrás de , chutava a cadeira do amigo, que fazia barulho ao bater na cadeira vazia de Charlie à frente dele.
— Senhores e Grant, eu devo concluir que o Senhor Nightingale tenha partido deste mundo e esteja aqui em espírito, bagunçando os móveis e atrapalhando a minha aula?
— Não, senhora, embora isso seja algo que ele realmente faria se não estivesse mais entre nós — Nick respondeu, forçando ainda mais seu sotaque já carregado de Doncaster. , diferente da maioria dos alunos, não segurou a risada e ganhou um olhar duro da professora.
— Uma hora de detenção comigo para o senhor após as aulas, senhor Grant. Quem de vocês poderia me informar onde o senhor Nightingale está, então? Não acredito que ele tenha perdido o ônibus escolar — e velha devolveu com um sorrisinho irônico.
Nick se ajeitou na cadeira e desviou o olhar.
— Ele não estava se sentindo bem, senhora Wright.
— Pois então diga a ele que eu espero um relatório de cinco páginas com o conteúdo das aulas de hoje assim que ele estiver se sentindo melhor.
— Sim, senhora.

— Charlie devia ter acordado. Era melhor aguentar a Wright com sono do que ter que fazer esse relatório — Nick resmungou enquanto caminhavam de volta para o quarto.
— Ele vai ficar bem, só precisa sussurrar meia dúzia de palavras bonitas para qualquer menina da sala e esperar que alguma delas faça o trabalho para ele.
— Hm, às vezes eu queria ter aquela cara de herdeiro da rainha.
! Dominic! Justo quem eu estava procurando.
A dupla parou de andar, virando-se na direção da voz rouca e cansada que os chamava. O homem de cabelos brancos e sorriso amigável carregava um balde cheio de feno e um ancinho velho, e não podia ignorar a raiva que sentia ao vê-lo naquele estado. Ford Woolridge era a figura paterna decente que nunca teve desde a hora que botou os pés para dentro da propriedade Dawson pela primeira vez. Tudo bem, estava mais para uma figura de avô. Ford era o zelador do reformatório, responsável por cuidar das crianças, dos animais, dos funcionários e da propriedade, com tarefas claramente inapropriadas para sua idade e condição física.
— Ford! Que bom te ver. A que devemos a honra? — Nick saudou o velho, melhorando de humor instantaneamente.
— Ah, Dominic, continue falando assim e eu posso até acreditar que suas longas horas de trabalho no celeiro comigo são porque você realmente gosta de mim, e não por culpa do seu amor pelo caos — riu, enquanto Nick deu de ombros, sorrindo também. — Queria poder convidá-los para tomar um chá, mas o trabalho não acaba e eu preciso apenas entregar um recado a .
— Um recado para mim, Ford? Aconteceu alguma coisa?
— Não, é só um recado do reitor Cole. Ele quer que você vá até a sala depois do almoço, parece que você vai receber a visita de uma psicóloga — Ford olhou para os lados e se aproximou dos meninos, diminuindo o tom de voz. — Ela é mesmo sua psicóloga, não é, ?
Nick gargalhou, e deu uma cotovelada no amigo.
— Deve ser, Ford, eu nem sabia que ia receber alguém. Isso tem cara de ser coisa da minha mãe — estalou a língua, imaginando se teria que tomar algum outro remédio milagroso. — Mas com certeza não é o tipo de visita que Charlie recebe.
— Ah, o garoto Nightingale. Eu ouvi tudo ontem à noite, sabem, a sala do reitor não é tão longe do meu quarto. Como ele está?
— Está bem, o bastardo. Ainda deu a desculpa de ter chegado tarde no quarto para matar aula e dormir até mais tarde — Nick cruzou os braços, sarcástico.
Ford acenou com a cabeça, em concordância. Tinha uma compreensão no olhar que havia visto poucas vezes na vida. Reconhecia nos olhos do zelador os de , que esteve ao seu lado nos seus piores momentos, os de Mary-Ann, mãe de , que cuidou do garoto quando sozinha não dava conta, e os do Sargento Hall, quando resolveu dar a o mesmo voto de fé que Stevie havia dado.
— Eu entendo. Imagino que ele não gostaria de chamar atenção dos outros alunos com o rosto daquele jeito.
Nick e trocaram um olhar rápido, com urgência.
— De que jeito, Ford?
— Ora, vocês não viram? Talvez não tenha deixado marca, então. Fico mais tranquilo — o zelador suspirou, aliviado, e logo arregalou os olhos pequenos para os meninos. — Não contem a ele que eu falei sobre isso, ele não ia gostar.
— Tudo bem, Ford. Obrigado pelos recados.
— Não precisam me agradecer, é o meu trabalho. Agora vão, aproveitem o almoço.

— Charlie! — abriu a porta do quarto com força, assustando o garoto na cama de cima da beliche. Vendo os amigos, Charlie rapidamente se virou para a parede e puxou o cobertor para cima da cabeça. Irritado na mesma medida em que se preocupava com o garoto, escalou os primeiros degraus da escada de madeira e descobriu o rosto do loiro. — Porra, Charlie! Quando você ia contar essa merda para a gente?
Sem olhar para os rapazes, Nightingale levantou a cabeça, revelando a mancha roxa que cobria metade do lado esquerdo do rosto. Nick, que estava estranhamente quieto até o momento, puxou pela gola da camisa, sem dar a mínima para o barulho alto que ele fez quando caiu em cima da mesa de cabeceira e derrubou a luminária.
— Desce daí, Charlie. Nós vamos falar com aquele desgraçado agora.
— Pelo amor de Deus, Nick. O que você acha que vai conseguir falando com ele, além de uma cara fodida que nem a minha?
Dominic subiu na escada, encarando Charlie nos olhos.
— Tem uma psicóloga vindo falar com o , ela vai poder fazer alguma coisa. E se não puder, pelo menos a gente destrói a sala do Cole.
— Grant, é sério, esquece isso. Cole achou a merda do sutiã da Jessica e uma camisinha usada na sala dele logo depois da visita. Não adianta nada criar caso com isso. Eu fiz merda e me dei mal.
— EU NÃO VOU ESQUECER ISSO, CHARLIE — irritado, Nick gritou com o amigo e tentou afastar o resto do cobertor à força.
— Ai! — Charlie se encolheu quando as mãos de Dominic acertaram seu tronco e se arrependeu por não ter se controlado.
— O que foi, Charlie? — inquiriu, firme e mais controlado do que Nick.
— Não foi nad—
— Charles! Não me trate como idiota se não quiser que eu te trate como um, também. O que mais aconteceu ontem à noite?
Encabulado, com os olhos começando a ficar vermelhos e cheios de lágrimas, Charlie tirou a camiseta que usava na noite anterior, revelando diversas marcas vermelhas e arroxeadas pelo tronco e braços. Sentiu um arrepio correr pelo corpo e puxou o cobertor de volta, encolhendo-se na cama como uma criança assustada. Deu um pulo no lugar com o estrondo que Nick criou no quarto quando descontou a fúria que estava sentindo na madeira pesada da porte em uma série de chutes que podiam ter quebrado um dedo ou dois.
ouviu os sinos soarem novamente, indicando o fim da hora do almoço. Respirou fundo, enterrando as unhas curtas nas palmas das mãos em uma tentativa frustrada de se acalmar.
— Fica com ele — ordenou, entregando uma faixa a Dominic para enrolar nos pés.
Saiu do quarto com passos pesados, abrindo caminho entre os alunos pelos corredores com facilidade até chegar na porta da sala do reitor. Bateu com menos força do que gostaria, mas mais do que a etiqueta mandava, e começou a analisar todas as formas de simular um acidente dentro daquele escritório. Não queria se descontrolar na frente dos amigos; Nick era ainda mais impulsivo que , e Charlie estava completamente desestabilizado, mas não sabia como seria sua reação ao ver Grayson Cole.
A porta se abriu e o homem engravatado, enfiado em um terno marrom enjoativo, saiu da sala perturbado. Procurou pela fonte do barulho na antessala do escritório e encontrou encostado ao lado do suporte para barras de ferro da lareira.
— Senhor , eu não vou tolerar qualquer tipo de indisciplina durante essa visita. Espero que o senhor esteja ciente disso e de que seus pais serão informados sobre o seu progresso aqui com base nessa conversa.
— Ou seja, “, não manche o nome da nossa prestimosa instituição ou seus pais vão te abandonar aqui pelo resto da vida”. Tudo bem, eu entendo, mas se me permite uma observação, senhor Cole, sua maior preocupação devia ser eu sair daqui preso por agressão.
Grayson olhou para as mãos de , fechadas em punho, retesando toda a musculatura definida dos braços do rapaz. Pensando na sua própria desenvoltura física, o reitor não quis descobrir onde iria parar caso fosse, de fato, preso por agressão. Manteve a postura austera, as narinas inflando com a respiração pesada que vez ou outra escapava pelos lábios ressecados. Ajeitou os óculos no rosto, e pensou no quanto ele parecia patético longe de suas palmatórias, apitos para coordenar sessões intermináveis de exercícios pesados, varetas e sabe lá o que mais devia ter usado contra Charlie e tantos outros alunos.
— Seu pai fez bem em mandar uma médica para cuidar da sua cabeça, — Cole se aproximou de , os olhos fixos nos do garoto e cobertos por uma sombra que o teria assustado se não estivesse tão afundado nos próprios sentimentos sombrios em relação ao reitor. — Se essa for mais uma visitinha como as do seu amigo, , pode ter certeza de que a sua cara vai ficar bem mais irreconhecível que a dele. Eu não dou o mesmo recado duas vezes. Agora entre, a doutora está te esperando.
Sentindo as linhas finas de sangue escorrerem pelas palmas das mãos, passou pelo diabo desgraçado, como ele e os amigos costumavam chamar o reitor, e entrou no escritório. Ignorou a mulher sentada no sofá e fechou a porta, calculando cada palavra que diria dali para frente, sabendo muito bem que tudo seria documentado e repassado aos pais.
Sentou-se em uma das cadeiras à mesa e finalmente virou-se para a mulher vestida em um terninho xadrez, com saltos pretos baixos e bem lustrados e os cabelos volumosos presos elegantemente no topo da cabeça. A maquiagem meio bagunçada e mais carregada que o necessário faziam o desserviço de envelhecer o rosto bonito escondido atrás do par de óculos antiquados. só percebeu isso tudo, entretanto, depois que saiu do estado de choque inicial.
?!
— Oi, .
A garota sustentava um sorriso sacana, quase desafiador, que desarmou completamente. Assim como não sabia como reagiria ao encontrar o reitor, não tinha imaginado como seria reencontrar depois de quase um ano afastados. E mesmo assim, lá estava ela, usando as roupas da mãe e mentindo para Cole para conseguir contato com o amigo.
estava confuso. Não era claro na cabeça bagunçada do garoto se ele devia ficar feliz por vê-la ali ou com raiva. E se ficasse com raiva, seria mesmo por causa de ou apenas o acúmulo de sentimentos não resolvidos desde que havia chegado ao reformatório? Droga, aquilo tudo fazia a cabeça de doer.
— O que você está fazendo aqui?
— Caramba, ! Primeiro você me larga falando sozinha e agora me recebe desse jeito?
apertou os olhos e esfregou o rosto com as mãos. Precisava colocar os pensamentos em ordem.
— Eu não te larguei falando sozinha, . A primeira coisa que eu fiz assim que me permitiram foi te mandar uma droga de carta contando o que aconteceu depois que eu saí do hospital. Como você entrou aqui?
tinha uma sobrancelha franzida enquanto a outra estava arqueada. Encarava como quem assistia a um show de bizarrices.
— É, você me mandou meia dúzia de cartas até desaparecer. Sabe o trabalho que deu para preparar tudo isso aqui? — apontou para si mesma, irritada. — E só para chegar nesse fim de mundo dos infernos e ouvir “o que você está fazendo aqui?”. Francamente...
Revirando os olhos, largou o corpo no sofá tão marrom quanto o restante do mobiliário do casarão (e até o próprio reitor). Bufou audivelmente e cruzou os braços na frente do corpo, frustrada.
— Eu despareci? — levantou-se, inquieto demais para ficar sentado. — Eu continuei te escrevendo por um mês depois que você parou de me responder, seis meses atrás. Agora você aparece aqui, no meio de um problemão, e espera que eu te receba com flores?
— Ah, meu Deus — foi a vez de se levantar, com um olhar preocupado no rosto. Aproximou-se de e colocou a mão na testa do garoto, falando com voz suave. — O que eles estão dando para você, ? Você está completamente delirante.
afastou, bravo, a mão da garota.
— Sem ironias, . Hoje não é um bom dia.
levantou a mão para tirar uma mecha de cabelo que caiu na frente dos olhos. Estava pronta para disparar a próxima alfinetada quando notou a mancha de sangue no pulso. Com uma preocupação genuína, pegou as mãos de nas suas, e viu as linhas vermelhas escorrendo dos semicírculos criados pelas unhas do garoto.
, o que está acontecendo?
puxou as mãos de volta para perto do corpo, sentando-se no sofá, seguido da garota. era a única pessoa em quem ele pode confiar durante a maior parte de sua vida. Não valia a pena ficar bravo com a amiga por conta de cartas que podiam ou não ter sido respondidas quando se tinha algo muito mais grave acontecendo e ele precisava de alguém para conversar.
— Esse lugar é o inferno, . Eu preferiria morar com quinze Trevors McKinnons a ter que passar mais um dia aqui. Cada criança nova que entra aqui me faz sentir mais vontade de explodir esse casarão, de preferência com aquele desgraçado dentro. Cole faz o Sargento parecer o Papai Noel.
soltou uma risada fria e curta, balançando a cabeça de um lado para o outro. Encarou as mãos e foi tomado, de novo, por uma onda de raiva que ele vinha reprimindo há meses, e que estava prestes a explodir.
— Me surpreende você ainda não ter colocado esse lugar abaixo — riu com um pouco mais de humor, tentando elevar os ânimos.
Virando-se de costas para a amiga, levantou a blusa, mostrando a cicatriz que ardia acima da cintura.
— Eu tentei. Na primeira semana — ajeitou o uniforme novamente, voltando a encarar a garota de boca aberta e olhos arregalados.
, você precisa contar isso para alguém. Sua mãe entenderia, eu tenho cert—
— Minha mãe não respondeu uma única carta minha, . Meu pai veio me visitar, sozinho, depois de um mês. Quando eu contei o que tinha acontecido, o maldito disse que eu estava finalmente recebendo a educação que minha mãe tinha falhado em me dar.
Caíram em um silêncio estranho, mais acolhedor. não sabia o que dizer, e tinha por Robert os mesmos sentimentos obscuros de . , apesar de tudo, estava mais calmo. Não era nenhuma novidade para o garoto que tinha essa habilidade mágica de colocá-lo no eixo com a mesma facilidade que tinha de tirá-lo de lá.
— Eu te escrevi mais umas cinco cartas depois da última que você me mandou, sabe? Te contei sobre a feira de ciências com o Stevie, que foi, surpreendentemente, muito legal. Na carta seguinte eu disse que tinha criado coragem para tirar minha licença, e que a minha mãe estava feliz por finalmente ter uma motorista particular — riu, encarando o teto, sem reparar na lágrima teimosa que escorreu pelo rosto de contra a vontade da garota. — Não me lembro do que eu disse nas outras duas, mas na última eu disse que sentia saudade de você. Perguntei por que você não me respondia mais, mas obviamente não tive resposta para aquela carta, também.
, fugindo de seu modus operandi tradicional, pegou uma das mãos da garota e apertou de leve.
— Na última carta que eu recebi, você me disse que ia para a feira com Hall na semana seguinte. Meu pai deve ter proibido o reformatório de entregar e enviar a minha correspondência — com a cabeça tombada sobre o encosto do sofá, encarou a amiga. — Vou dar um jeito de falar com você de novo, tudo bem?
concordou, acenando com um sorriso contido.
— Eu queria ter vindo te visitar antes, sabe? Mas, você sabe como funciona, menores de vinte e um anos precisam de uma autorização dos responsáveis para entrar aqui. A minha mãe ainda está magoada com você por ter me ignorado nesses últimos meses, então eu tive que esperar a oportunidade de pegar o carro e as roupas dela escondido.
— Tenho certeza de que sua mãe entenderia se visse o buraco em que eu estou enfiado.
— Aposto que sim — a garota riu, afastando de novo a mecha de cabelo que caía na frente dos olhos. — , tem mais alguma coisa acontecendo? Você disse que eu apareci no meio de um problema... Tem alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
se sentou com as costas retas, as mãos fechadas em punho outra vez.
— A menos que você saiba como se livrar de um olho roxo sem precisar de gelo, acho que não tem muito o que fazer, .
, em quem você está planejando bater, agora?
gargalhou.
— Honestamente, no filho da puta do Cole. Mas o problema é o Charlie. Ele foi pego quebrando umas cinquenta regras ao mesmo tempo, e a punição resultou em hematomas por todo o corpo e rosto.
, isso está muito errado, em diversos sentidos. Charlie é o garoto que tem um irmão mais novo que mora com a avó, não é? Eu posso ia falar com eles, alguém precisa tomar uma providência — aumentou o tom de voz sem perceber, agitada.
— Não, esse é o Nick. Charlie é órfão, cresceu entre o orfanato e um monte de lares temporários — explicou, fazendo parar de falar. Pelo que sabia, Grayson Cole podia estar do outro lado da porta tentando ouvir tudo que conseguisse. — , é melhor não tentar fazer nada. Do jeito que as coisas funcionam aqui dentro, pode ser que a gente coloque o Charlie em perigo de novo. E, de qualquer jeito, daqui quatro meses a gente se forma e cai fora daqui.
— Eu... eu não entendo, .
— Vai ter que confiar em mim dessa vez, . Você não imagina o quanto eu tive que me controlar para não acabar com a raça do Cole quando ele saiu por aquela porta, e eu juro que teria feito se fosse sofrer as consequências sozinho.
abriu a boca para retrucar, mas foi interrompida por uma campainha que indicava que já havia se passado uma hora e a visita estava, oficialmente, encerrada. Ajeitou os óculos de volta no rosto e alisou a saia, mudando de postura para entrar na personagem. Uma batida leve na porta foi ouvida, e Grayson logo estava dentro da sala.
— Então, doutora ? Como o senhor se saiu?
— Acredito que responder a essa pergunta seja infringir o código de confidencialidade entre paciente e terapeuta, senhor Cole — a garota disparou, com mais frieza do que achava que era capaz. precisou se esforçar muito mais para segurar a risada do que precisou para não bater no reitor. — , espero ouvir do senhor em breve. Infelizmente, minha agenda não permite visitas frequentes, mas estou disponível para conversar sempre que quiser me enviar uma correspondência.
— Obrigado, doutora . Escreverei para a senhora.
— Bom, acho que isso encerra minha visita. Tenha uma boa tarde, senhor Cole. , me acompanha até a porta.
— Claro, senhora.
Saíram da sala sem dar a chance do reitor se pronunciar. teria dado um maço de cigarros para ver a cara do homem ao ser completamente ignorado daquele jeito.
— Você tem feito aulas de teatro, é?
ajeitou a bolsa no ombro, procurando pelas chaves do carro estacionado perto do portão de ferro.
— Alguém aqui tinha que levar as extracurriculares a sério, não é, mané?
riu, desviando os olhos para os próprios pés.
— Queria entrar nesse carro e voltar para casa com você.
— Vou fazer questão de vir te buscar quando você for absolvido.
— Obrigado, . Me tratar como um detento ajuda bastante na minha situação.
— Vai se ferrar, riu, dando um soquinho no braço de . — Te vejo logo, babaca.
— Espero que sim, nerd.
Com um último sorriso, entrou no carro e deu a partida.
Era a segunda vez que via um carro deixar aquele lugar deixando-o para trás, e não precisava de muito para admitir que essa doeu muito mais que a primeira.


O dia seguinte, para a alegria dos alunos e alunas do Reformatório S. C. Dawson para Jovens Amotinados, começava com uma bela manhã de sábado. Não fosse pelo terror psicológico, agressões físicas, grade horária inflexível e funcionários rígidos, o lugar seria bastante agradável de se viver. A grande propriedade, que antigamente servia como moinho de algodão, se estendia pelo campo de grama baixa e bem cuidada até o pequeno bosque para onde os alunos escapavam sempre que possível para quebrar algumas regras. Do outro lado do terreno funcionava a fazenda de poucos animais, as hortas e o pomar, que supriam parte das necessidades dos internos.
Samuel Carroll Dawson, nascido em 1836, fundou oficialmente na propriedade da família, em 1879, o Reformatório S. C. Dawson para Jovens Amotinados, depois de ter que lidar com o próprio filho adolescente engravidando a namorada também adolescente, manchando o nome da família que era reconhecida por sua conduta moral impecável dentro dos ensinamentos da Santa Igreja. O menino revelou, então, que a ordem para conceber a criança tinha vindo aos dois durante um momento de oração, e o que era uma vergonha passou a ser aclamado em toda a vila. Ainda assim, Samuel os obrigou a se casarem, apesar da pouca idade.
Ter criado sozinho um filho que foi escolhido pelo Senhor trouxe a Samuel uma fama inesperada. Uma primeira carta, inocente, chegou pelo correio, pedindo que o homem acolhesse o filho problemático de uma família humilde da cidade vizinha, Padiham, para que, com o trabalho no moinho e o exemplo do garoto Dawson, o menino se endireitasse. Junto com o pedido, a proposta de um pagamento considerável, a julgar pelas condições da família.
A notícia se espalhou e, em poucos meses a casa já reunia dez garotos. Samuel os geria com pulso de ferro, e via ali a oportunidade de mostrar que a transgressão do filho não era resultado de inabilidade durante sua criação (verdade seja dita, Samuel não era muito cristão, e não comprou a conversa do filho). Cinco anos depois, os meninos saíam adultos, homens, respeitáveis e bem-criados. Outros garotos já os substituíam no trabalho no moinho, e as cartas de inscrição não paravam de chegar. O dinheiro que a fazenda rendia permitia que Samuel se dedicasse inteiramente ao Reformatório, que agora era respeitado e reconhecido por todo o condado.
Em 1984, depois de todo o rock’n’roll, movimento hippie e discotecas, com o auge da cena punk na Inglaterra, a casa abrigava mais de duzentos meninos e meninas cujas famílias ou guardiões acreditavam que uma educação mais rigorosa era o melhor caminho. Três desses jovens dividiam o café da manhã no dormitório com a comida saqueada na cozinha por dois deles, além do pacote de ervilhas congeladas para o rosto do terceiro, que se recusava a sair do quarto.
— Charlie, você vai ter que sair do quarto em algum momento.
— É, cara, você precisa tomar banho — Nick provocou, fazendo uma careta e recebendo uma ervilhada na cara. A essa altura, já estava acostumado a ser acertado pelos amigos.
— Eu tomo mais banhos que você, Grant. Só não tenho feito isso durante o dia.
— Mas eles desligam a água quente às oito horas.
Nightingale deu de ombros e bufou. Mais essa, agora: Charlie estava tomando banhos frios por conta dos machucados.
— Tudo bem, você fica fora dessa, então. Não quero te colocar em mais problemas. Nick, você me ajuda?
, depois do que aconteceu com o Charlie aqui, você acha mesmo que eu ia me arriscar para te ajudar a entrar no escritório do capeta?
— Dom, por favor.
Nick encarou no fundo dos olhos e passou a língua pelos lábios, sorrindo de lado.
— Não me chama de Dom se não for para me deixar dominar você, bonitinho.
arregalou os olhos, sem saber como reagir. Estava acostumado com os flertes de brincadeira de Dominic, mas nunca tinha ouvido nada daquele nível. Charlie limpou a garganta alto, quebrando (em partes) a tensão.
— E qual é o plano? Regravar o clipe de Another Brick in the Wall no pátio?
— Bom...

sentia o coração pulsão na garganta. Nick havia passado a maior parte da manhã reunindo conhecidos de todos os anos e preparando o momento ideal para colocar o plano em ação. Aquela era a ideia mais estapafúrdia que já havia saído da cabeça de qualquer um dos três, mas de tão ridícula que era, era perfeita.
estava na sala de música há quase uma hora e já havia sido visto por dois inspetores em ronda. Teria mais ou menos vinte minutos para vasculhar a sala da reitoria quando Nick começasse a chamar a atenção dos funcionários até que alguém interferisse e saísse à procura dele e de Charlie. O problema de causar problemas era que você virava carta marcada.
Dedilhou o violão clássico em acordes aleatórios com ouvidos atentos. Não demorou muito para Nick dar o sinal. largou o violão e se apressou em direção ao escritório enquanto ouvia o coro de alunos ousados cantando “We don’t need no education”. tentou não rir, mas a ironia era precisa demais, e ele podia ver Dawson se revirando no túmulo que ocupava o miolo do jardim circular no centro do pátio do reformatório. No meio de toda aquela situação inédita, se sentia vivo de novo. Escondeu-se num corredor lateral e viu Grayson Cole sair de sua sala, atraído pela cantoria dos alunos, então entrou no central de comando do inferno.
A conversa com no dia anterior havia deixado intrigado. Robert não podia se importar menos com o filho, e não se daria o trabalho de proibir o garoto de trocar correspondências tanto tempo depois de largá-lo ao portão de ferro pesado naquele fim de tarde chuvosa e fria. Então por que não recebeu as cartas de , por que suas cartas não foram enviadas?
Revirou algumas prateleiras na sala, sem saber exatamente o que estava procurando, mas tinha a sensação de que saberia quando o visse.
Todos para dentro, agora!
Ouviu o reitor gritar, seguido de uma onda de vaias dos alunos. não segurou a risada dessa vez, alimentado pelo nervosismo. Partiu para a escrivaninha e começou a vasculhar os papéis que encontrou por ali, prestando atenção aos sons.
Harriette, pare de correr.
Revistou a primeira gaveta e, além de algumas bugigangas inúteis, achou as chaves de um armário de arquivos velho que ficava no canto da sala. Abriu a primeira gaveta enferrujada e encontrou uma série de pastas com os nomes dos alunos, organizadas alfabeticamente de acordo com a inicial do sobrenome. Pensou um pouco e concluiu que teria menos trabalho se começasse a verificar pela última gaveta.
Zouch, Ziegler, Zachary, !
Pegou a pasta com seu nome, surpreso de ser o único no reformatório. O volume de documentos ali era consideravelmente maior do que em outras pastas, e ao abrir o arquivo, descobriu o motivo.
— Então foi aqui que vocês vieram parar — divagou em voz alta, analisando o bolo de cartas enviadas tanto por quanto por ele.
Dominic Grant, desça já daí e levante suas calças! Uma semana de detenção para o senhor, comigo!
Pelo amor de Deus, Nick! Vai traumatizar as crianças — Charlie gritou da janela do quarto compartilhado pelo trio.
— Eu tenho os piores melhores amigos do mundo — revirou os olhos, se divertindo com a situação.
Vasculhou o restante dos documentos na pasta, encontrando seu histórico escolar, alguns registros da delegacia, atestados médicos referentes ao acidente e aos remédios que o doutor Taylor havia indicado e, por trás de tudo, dois papéis que nunca tinha visto.
— Certidão de... o quê?!


— Eu já falei que o Brendon pode ser seu pombo correio, imbecil. Escreve logo a carta para a .
Nick estava esticado na cama, fumando o último baseado que conseguiu bolar com a erva que ainda tinham. Jessica levava poucas quantidades por vez, para não chamar a atenção, mas agora os meninos não podiam contar com a próxima visita da mulher. Charlie e concordaram em ceder o último fumo a Nick, que reclamava de dores no corpo desde que recebeu a punição de acompanhar os funcionários no trabalho braçal da fazenda, há três dias.
— Você não tem dó de arrastar o seu irmão para a mesma vida que você leva, Grant? — Charlie caçoou, sem admitir que tinha um fundo de verdade naquela pergunta. — Ele é só uma criança.
— Ele tem a idade que você tinha quando chegou aqui, e eu tenho certeza de que enganar a minha vó para despachar uma carta no correio é moleza perto do que você aguentou a vida toda.
Charlie ficou em silêncio, preso tanto no que Nick havia dito quanto na seriedade incomum na voz do amigo.
— Mesmo que eu escreva, Nick — tentou melhorar o quarto retomando o assunto inicial —, vou dizer o que a ela? “Oi, , como vai? Então, meus pais se divorciaram e a minha guarda agora é daquele tirano que bloqueou qualquer contato meu com o mundo exterior, mas como eu sou mais esperto que ele, estou te mandando essa carta para explicar por que não a gente não consegue se falar mais. Com carinho, ”.
Charlie e Nick se entreolharam.
— É, parece bom para mim. Agora escreve isso, e não esquece de colocar um coraçãozinho no final, depois do seu nome.
— Eu te empresto um perfume para colocar na carta.
— Nick, a ideia é conquistar a , e não fazer ela pensar que o caçou um gambá antes de escrever para ela.
— Vai se foder, Nightingale.
— Chega, vocês dois. Parecem um casal de velhas.
Charlie deu um tapa na mão de Nick e roubou o baseado para dar um trago, comprovando o que havia acabado de dizer.
— Mas eu estou falando sério, . Brendon é esperto, ele dá conta. Escreve logo a carta e aquieta seu coração. Ah, e pede para a mandar cigarros e balas azedas.
— Dominic, é o seu irmão de treze anos que vai colocar isso no correio!
Charlie e Nick voltaram a trocar farpas e desistiu de intervir. Enfiou um pedaço de chocolate na boca e pegou o caderno e uma caneta na mesa de cabeceira. merecia um esclarecimento tanto quanto , afinal.


Sete dias excruciantes se passaram após o envio das cartas de e Nick. Sem saber o que esperar naquela quinta-feira, dia em que o correio chegava no casarão, e conhecendo bem a garota, havia passado a semana de olho até mesmo nos pombos que sobrevoavam o lugar.
— Como está a sua cara, Charlie? — enfiando uma garfada de comida na boca, Nick questionou o amigo.
— Melhor que o pescoço do .
— Se vocês conhecessem a , me dariam razão. É sério, ela é louca.
— Gaui, eu -ão asso que ela -eina-ia um -ombo em u-a se-ana — Nick gesticulou como um mimico, mas tinha um grande ponto de interrogação estampado no rosto.
— Ele disse que não acha que ela treinaria um pombo em uma semana.
— Como você entendeu aquilo?! — virou-se surpreso para Charlie, encolhendo-se de dor no pescoço pelo movimento brusco. O loiro bebericou um gole do suco e deu de ombros.
— Depois de quase quatro anos convivendo com esse neandertal, acho que eu aprendi o idioma dele.
Nick terminou de engolir a comida e deu uma cotovelada em Charlie.
, sossega. Pode ser que o Brendon nem tenha conseguido enviar a carta para ela ainda. Ele deve me mandar alguma resposta hoje, e quem sabe ele fale alguma coisa sobre a .
— Por enquanto, deixa os pombos em paz, cara.
Umas meninas da mesa de traz encararam o trio, confusas com o que tinham ouvido. deu um aceno com as mãos, espantando as meninas e voltando a se concentrar na própria comida. Só lhe restava esperar.

Esperar uma ova!
encarava o teto do quarto escuro depois de ter passado o dia inteiro esperando uma resposta de , e tudo o que recebeu foi um “sua amiga quebrou o meu irmão, ”. Brendon não havia contatado Nick, também, e isso era novidade. Desde que Nick chegou no reformatório, não havia se passado uma semana sequer sem que eles se falassem. Não podia ser coincidência.
Ouvindo a respiração pesada de Charlie e os roncos esporádicos de Nick, observou o relógio, e vendo que já eram quase duas da manhã, resolveu dormir. Talvez tenha tido algum problema e não conseguiu responder a tempo. Talvez tenha se esquecido do dia que o correio entrega a correspondência do reformatório. Ou, se ela simplesmente não quisesse mais falar com , o problema era dela!
fechou os olhos e caiu logo no sono. De tanto pensar na resposta de que nunca chegou, a mente do garoto mergulhou nas últimas memórias que tinha da liberdade. Contorcendo-se na cama, sonhou com o enjoo causado pelos remédios e sentiu a cabeça pesada. Como era possível ele ainda ser assombrado por aquela sensação alucinante depois de tanto tempo?
Lembrou-se da consulta médica desastrosa e das brigas dos pais, e foi jogado de volta à infância, Quando Linda e Robert ainda não tinham aprendido a disfarçar seus problemas perto do garoto. Ouviu as portas sendo fechadas com força, os gritos assustadores do pai e o choro da mãe por tantas vezes que ele próprio não saberia dizer quantos anos tinha nas memórias que estava revisitando.
Viu com os cabelos crespos escuros presos em duas marias-chiquinhas com elásticos coloridos e o grande sorriso que ele bem conhecia. Durante todo o ensino fundamental, e até o meio do ensino médio, havia sido a única amiga de , com a ocasional exceção dos garotos com quem andava pelas ruas de Manchester aprontando tudo o que podia. Danny também era um amigo, mas por serem primos, tinham uma certa obrigação de se aguentar, mesmo que não se gostassem. Mas a amizade com Charlie e Nick era uma experiência completamente nova para o rapaz.
Entre lembranças boas e ruins, pode ver o rosto do Sargento Hall alguma vezes. Na maioria delas, estava encrencado, ou havia escapado da encrenca por muito pouco. Clifford Hall não era um cara muito tolerante a desobediências e infração das leis e, apesar de ter livrado a cara do garoto mesmo quando tinha todos os motivos para puni-lo, o sargento era, também, o tipo de cara que conseguia mudar a cabeça de um delinquente problemático com apenas um olhar.
O cara que havia decepcionado depois de sair da delegacia com um voto de confiança e a promessa de dar um rumo melhor para a própria vida, somente para pegar um carro e estilhaçá-lo contra a parede da mercearia com e o filho do sargento como passageiros. Aquela era, provavelmente, a pior lembrança que tinha, mesmo considerando o lar disfuncional em que o garoto tinha crescido. O peso de ter duas vidas completamente em suas mãos e quase ter dado fim a elas era muita coisa para digerir, e ele ainda podia ouvir o som da frente do carro sendo amassada pelos tijolos mais resistentes, enquanto outros caíam por cima do veículo.
, acorda! — com um chacoalhão de Charlie, levantou-se num pulo, sentindo as mãos fechadas como se tentasse segurar um volante. — Arruma as suas coisas, rápido. Tudo o que você conseguir pegar, mas anda logo.
— O que está acontecendo? Cadê o Nick?
— Lá embaixo — Charlie indicou a janela que dava para o pátio. Estava trincada e molhada pelo lado de fora. — Nós somos as pobres mocinhas indefesas sendo salvas, agora, meu amigo.
Jogando uma mochila vazia na direção de , Charlie sorriu e terminou de colocar as últimas peças de roupa dentro da mala. Ainda meio atordoado, juntou os poucos pertences que tinha e seguiu Charlie para fora do casarão.

— É claro que eu estou feliz em ver você, mas você não devia ter vindo!
Ouviram a voz de Nick enquanto passavam pelo grande portal que dividia a área interna da externa. Ao lado de um carro conversível preto, Grant discutia com um garoto menor que, aparentemente, tinha a mesma atitude impulsiva de Nick.
— Eu não ia perder a chance de vir te resgatar daqui, Nick. Para de falar comigo como se fosse a vovó, eu não sou mais criança.
O menino cruzou os braços e Dominic bufou. Charlie e se aproximaram da dupla, finalmente entendendo que o garoto era, na verdade, o irmão mais novo de Nick.
— Brendon? Garoto, você cresceu.
— Charlie! — o rosto de Brendon se iluminou quando viu o conhecido. Se conheciam das raras visitas que o menino pode fazer ao reformatório, e o Grant mais novo adorava o loiro. — Viu, Nick? Charlie acha que eu cresci.
— Está bem, eu já entendi. Agora, a gente pode terminar essa conversa em casa? O que nós estamos esperando para sair logo daqui?
Respondendo à pergunta de Nick, as duas figuras nos bancos da frente saíram do carro.
— A gente estava esperando a bela adormecida ali, mas acho que agora já podemos ir — , encostada na porta do banco do passageiro, respondeu, sorrindo para o amigo.
— Bem-vindo de volta, ! — o motorista cumprimentou, e sentiu o pulso acelerar instantaneamente. Chegou mais perto e observou com a atenção o rosto do garoto vestido de couro preto dos pés à cabeça, cabelos espetados e quase tantos rebites no rosto quanto na jaqueta.
— Stevie?!
— É, a reação costuma ser essa — Stevie estalou a língua, não se importando muito com a surpresa de , na verdade. — Os dias de nerd gago, pobre filho do sargento, Stevie Ha-Ha-Hall, acabaram. E tudo graças a você, .
— É emocionante ver o reencontro de vocês, mas a gente tem que sair daqui antes que alguém apareça — interrompeu, abrindo o porta-malas do carro e indicando aos garotos que guardassem suas coisas ali.
— Espera. Eu... Eu já volto. Esqueci de uma coisa.
, aonde você v—
Tarde demais, já havia disparado para dentro do casarão.
— Ele sempre foi assim? — ajeitado no banco de trás, Charlie puxou assunto com Stevie.
— Era pior.
— Ahn...
Mas não se demorou. Poucos minutos depois, estava correndo de volta ao pátio, tentando fechar a mochila ao mesmo tempo. Enfiou as coisas no carro e sentou-se ao lado de no banco frontal de três lugares. Logo cruzaram os portões de ferro, ouvindo a gritaria do reitor sonolento e furioso atrás deles. mal podia acreditar que estava saindo daquele lugar, e do jeito mais inimaginável possível.
— Tudo bem, mas tem uma coisa que eu ainda não entendi — perguntou, rindo, alguns minutos de viagem mais tarde. — Nosso quarto era no terceiro andar. Como vocês conseguiram nos acordar?
— Está falando sério? — Nick respondeu, surpreso. — Você não ouviu aquele barulho?
— Eu estou surpreso que o Cole não tenha aparecido antes, para falar a verdade — Charlie observou, brincando com a fivela do cinto de segurança.
De trás do volante, Stevie estalou a língua e riu.
, por favor. Eu te ensinei a fazer uma bomba caseira com produtos de limpeza. Acha mesmo que eu não saberia fazer um coquetel molotov?
— Um coquetel molotov?!
não podia acreditar. Pelo menos, isso explicava a janela trincada.


A casa de parecia ter sido revirada por um furacão.
Colchões e cobertores espalhados pela casa inteira podiam ser indicação de uma festa do pijama de arromba, ou, como era o caso, de um abrigo para fugitivos. Com Mary-Ann fora da cidade para um curso rápido de corte e pintura de cabelos, a casa das havia se tornado o ponto central daquela missão de resgate (Brendon quis apelidá-la de “quartel general”, mas esse já era o nome da casa de Stevie).
desviou de alguns braços e pernas jogados pelo chão da sala e caminhou até a cozinha. O sol já era suficiente para iluminar a casa sem auxílio de luzes artificiais, mas ainda era cedo; podia dizer pelo barulho dos carros na rua, ou pela falta dele. Encontrou sentada numa cadeira alta perto da janela, observando o pequeno jardim nos fundos da casa enquanto tomava uma xícara quente de chá.
— Bom dia.
— Bom dia, . Quer chá?
— Não, obrigado. Estou com fome, na verdade.
— Ah — resmungou, colocando a xícara na mesa e abrindo alguns armários. — Acho que nós vamos ter que ir ao mercado. Eu não tive tempo de fazer compras depois que a minha mãe saiu.
— Tudo bem, podemos ir mais tarde.
sentou-se de frente para , que agora ocupava um lugar à mesa. Tinha dormido por apenas poucas horas, mas se sentia completamente descansado pela primeira vez em meses.
— Como você está?
— Bem, eu acho. Só um pouco confuso com tudo isso.
— Stevie te pegou de surpresa, não foi? — riu, acompanhada de , tomando mais um gole do chá.
— Muito! Não achei que eu tivesse tanta influência sobre as pessoas. Talvez eu devesse fazer uma carreira em cima disso. Eu podia gravar uma fita, que tal?
— Acho que eu devia receber parte dos créditos, também. Aquele figurino todo... Pois é, obra minha.
— Você ainda pensa em estudar moda quando terminar a escola?
— Acho que sim. Na verdade, acho que eu nunca considerei outra coisa, apesar do meu talento inegável para tramar planos infalíveis.
riu outra vez, incapaz de discordar.
— A sua mente maligna teria vindo a calhar dentro do reformatório, mas ainda bem que você não estava lá. Se estivesse, não teria conseguido me resgatar.
— Não duvide do meu potencial, .
— Mas eu estou falando sério — buscou a mão da amiga por cima da mesa, encarando-a nos olhos. — Eu não tenho como te agradecer por ter feito isso. Sei que faltava pouco tempo para a gente sair de lá, mas cada dia naquele buraco do inferno era um dia mais perto da insanidade.
— Você já é insano, . Mas não precisa me agradecer, a ideia toda foi do Stevie.
ficou inexpressivo por um minuto.
— Quer dizer que a minha melhor amiga, minha parceira de crime, minha grande salvadora, na verdade, é uma farsa? Quem me tirou de lá foi o filho nerd do sargento?
— Para de drama, deu um tapa ardido no braço do garoto, se divertindo com a conversa. — Eu não ia fazer nada por que você me pediu para não fazer nada, lembra? Mas...
A garota desviou o olhar, analisando a borra na xícara de chá. esperou em silêncio por alguns instantes, dando o tempo que a amiga precisava para processar o assunto, mas não continuou a falar.
— Mas o que, ? O que aconteceu?
, olha... Você vai ter que me prometer que, se eu te contar, você não vai fazer nada, ok?
, do que você está falan—
— Promete?
O garoto suspirou, derrotado. Passou as mãos pelo cabelo, e concordou com a cabeça, contrariado, mas curioso.
— Stevie ouviu uma conversa estranha na casa dele, uns dias atrás, depois do dia que eu te visitei. O sargento estava no escritório com um homem que Stevie não reconheceu, falando sobre os dias de exército dele, de como aquela experiência tinha sido transformadora, e como ele estava feliz de ver o filho mais velho servindo, também.
— E o que tem de estranho nisso, além do fetiche do sargento por homens de farda?
— O homem que estava no escritório com ele era o seu pai, . Ele queria te mandar para o exército assim que você saísse do reformatório.
— Aquele desgraçado me paga — socou a mesa, acordando os outros garotos com o barulho. Com o rosto vermelho e a respiração pesada, começou a andar de um lado para o outro na pequena cozinha, tentando alinhar os pensamentos. — Quem ele pensa que é? O filho da mãe mais hipócrita de toda a Inglaterra, que nunca tentou ser pai, e acha que vai decidir a minha vida agora que eu não tenho mais obrigação nenhuma de seguir as ordens dele?
, senta e me escuta.
— Depois, . Eu preciso encontrar o meu pai.
! — A garota gritou, chamando a atenção do amigo e dos três meninos parados à porta. — Eu podia ter te largado lá até o final do ano letivo e te mandado um aviso sobre os planos do seu pai, mas arrisquei a mim, ao Stevie e ao Brendon para ir até lá buscar esse seu traseiro teimoso. Não faça eu me arrepender dessa decisão, droga.
— Quem sabe fosse melhor me largar lá, mesmo. Eu seria mandado para algum batalhão do outro lado do país e você nunca mais precisaria lidar comigo.
— Quer parar de ser infantil? Daqui para frente você não tem tratamento diferenciado pela polícia, . Com dezoito anos você pode ser preso e julgado como adulto se não tirar algum proveito do tempo que passou do reformatório e mostrar que aprendeu a controlar seu temperamento, e falta pouco tempo para você fazer dezoito, seu idiota.
ficou quieto, apoiado com os braços tensos no encosto da cadeira de madeirassem coragem de encarar a garota.
— Ela é boa — Nick murmurou, concentrado na discussão.
— Deixa de ser fofoqueiro, Dominic. Vem, vamos arrumar aquela bagunça na sala.
Seguindo a deixa de Charlie, os garotos deixaram e sozinhos de novo.
— Eu não vou conseguir me controlar se encontrar com ele na rua, . Todo o último ano foi culpa dele, e tem esse divórcio que eu quero entender. Se ele fez alguma coisa com a minha mãe, eu—
, calma! — se aproximou do amigo e segurou seus ombros, forçando-o a olhá-la. — Eu entendo a sua raiva, mas travar essa guerra com o seu pai não é uma boa ideia. Você é o lado mais fraco da corda.
fechou os olhos e respirou o mais fundo que conseguiu. Sentia as mãos tremerem e a vontade de gritar entalada na garganta ao mesmo tempo que queria se esconder debaixo das cobertas e chorar como uma criança desamparada, pois era assim que se sentia.
— Pega uma blusa. Vamos dar uma volta, você precisa respirar.
— Não quero sair.
— Vai logo — insistiu, falando na voz mansa que só ela tinha. — Vai te fazer bem, e nós estamos do outro lado do bairro. Seu pai não anda por aqui, lembra? Sem riscos.
— Tudo bem, mas só se a gente passar no mercado e comprar alguma coisa decente para comer. Meu estômago está mais vazio que a cabeça do Nick.
riu e concordou. pegou a jaqueta que sentia tanta falta de usar, e saíram. A parte do bairro em que a menina morava com a mãe era bastante parecida com a área em que os moravam, mas era mais alegre e menos engomada. sempre gostou de passear por ali, apesar de ter que ir sempre escondido dos pais. Entraram no mercadinho da rua de trás, encheram algumas sacolas de compras e seguiram para a pracinha.
Com um sorvete cada um, sentaram-se perto dos brinquedos, vendo as crianças correndo de um lado para o outro e se lembrando de histórias da infância e das aventuras que passaram no tanque de areia.
— Foi você que saiu chorando para a saia da minha mãe, reclamando do joelhinho ralado, garoto. Eu sempre fui mais corajosa que você.
— Mais corajosa? E quem foi que entrou naquela casa abandonada para recuperar o ursinho de pelúcia que a madame perdeu, hein?
— Eu! E vale lembrar que o ursinho de pelúcia era seu — respondeu, rindo, e bateu com o sorvete no nariz de . Percebeu o erro que tinha cometido quando a encarou com o olhar desafiador. — , não. ! !
Largando as compras no banco em que estava sentados, correu atrás de circulando pelos brinquedos. Era possível ouvir as gargalhadas e gritos da dupla por toda a praça, mais animados e barulhentos que as crianças que brincavam por ali. Finalmente alcançou a garota, e os dois caíram no chão, quase sem fôlego.
— É isso o que você ganha por mexer comigo, provocou oferecendo uma mão para se levantar.
Caminharam de volta até o banco, soltando o peso dos corpos sobre a superfície de concreto. pegou duas latas de refrigerante nas sacolas e entregou uma a .
— Eu tenho pena da minha mãe que teve que aguentar a gente quase a vida toda. Se nós somos assim hoje, imagina quando a gente era criança?
concordou, tomando um gole da bebida.
— Mas não deve ser tão ruim, vai. Olha aquele casal, por exemplo — apontou para o casal que andava com um carrinho de bebê do outro lado da praça. Caminhavam sorridentes na direção da dupla — Daqui uns anos aquela criança vai correr por aqui, e se eles não forem burros, vão correr junto com ela e se divertir como a gente se divertiu hoje. Eu me perguntei o que eu tinha feito de errado por muito tempo, até entender que a culpa dos meus pais serem pais de merda nunca foi minha. Você imagina aqueles dois sendo pais ruins? Olha só eles, felizes com a criança, e... e tão... espera um pouco.
Conforme o casal se aproximou do banco perto das brinquedos, pode ter uma visão mais clara do que estava acontecendo. O homem alto e jovial era o doutor Taylor, que sorria abertamente para a mulher de estatura diminuta ao lado dele. Os cabelos loiros soltos e escovados, junto com o vestido leve e colorido, davam a ela uma aparência que o garoto nunca imaginou ver, mas agora, tão próximos, era impossível negar: a mulher empurrando o carrinho de bebê era Linda Jones, antes de chamada de Linda , mãe de .

, o que você vai fazer? , fala comigo.
— Eu não posso mais ficar aqui, !
Furioso além do ponto que conseguia reverter, enfiou as coisas de volta no carro de Stevie. Ou, melhor dizendo, seu carro. Stevie entregou as chaves na mão do garoto, na noite anterior, com a desculpa de que precisaria mais do que ele, agora. aceitou com a promessa de que compraria seu próprio carro quando conseguisse um trabalho, sem imaginar que realmente precisaria usar o de Stevie.
— E para onde você vai?
estava parada ao lado do carro, com os braços cruzados e sobrancelhas franzidas. Estava confusa e sem saber como ajudar o amigo. Não achava que aquela era a decisão mais bem pensada que podia tomar, mas não tinha argumentos para convencê-lo do contrário, e não tinha certeza de que queria convencê-lo, na verdade. tinha sido traído duas vezes e ela não podia imaginar como se se sentia.
— Vou procurar o Danny, e depois eu decido o que fazer.
— Danny? Seu primo, Danny? Que está em Londres? — Nick perguntou, achando que tinha ouvido errado.
— Eu sei que parece loucura, mas eu não estou pedindo para vocês entenderem. está certa, se eu ficar por aqui, o sargento não vai ser tão gentil comigo.
— E você vai dirigir de Manchester até Londres por causa disso?
— Charlie, eu prec—
— Ok, se você está disposto a dirigir por todo o caminho, eu vou junto.
— O que? — e Nick perguntaram ao mesmo tempo, com o mesmo tom de surpresa na voz.
— Eu não tenho ninguém além de vocês, . E apesar da gentileza da , eu não posso ficar aqui para sempre, e tenho certeza de que a vó do Grant não ia me receber bem por lá.
— Acho que ela não vai me receber bem — Nick argumentou.
— Se você vai arriscar tudo em Londres, , eu vou junto — sem esperar uma resposta, Charlie entrou de novo na casa e voltou carregando a mala que não havia sido desfeita. Jogou suas coisas dentro do carro, e encarou o amigo, procurando Nick em seguida. — Vai ser mais fácil a gente se virar lá em dupla, mas em trio a gente coloca aquela cidade de cabeça para baixo.
Dominic estava estático.
— Eu... eu não posso — aturdido, balançou a cabeça de um lado para o outro. Observou as reações de todo mundo, até parar em Brendon. — Eu não posso. Prometi que ia cuidar dele agora.
— Eu vou também! — Brendon interrompeu, energético. — Nick, a gente não pode voltar para a casa da vovó, agora. Você pode cuidar de mim em Londres, eu não sou uma criança, mais.
— Brendon, eu não vou levar você para Londres sem nem ter o que comer. Levar uma bronca da vovó é uma coisa, mas não ter uma casa e nem comida é completamente diferente.
— Mas eu quero ir com você!
— Olha só — interveio, percebendo que Dominic não sabia mais como lidar com aquela situação. — Eu não acredito que estou fazendo isso, mas, Nick, se você quiser ir, Brendon pode ficar comigo.
, tem certeza? — perguntou, tentando garantir que a amiga não estivesse tomando nenhuma decisão precipitada. Mas, bom, se estivesse, ele não seria a pessoa mais indicada para julgar.
— A minha mãe com certeza vai achar estranho chegar em casa e encontrar uma criança branca que não seja você, mas tenho certeza de que ela vai entender.
Nick ficou pensativo, tentando alinhar as ideias. Aproximou-se de Brendon, e bagunçou os cabelos do irmão para disfarçar o próprio nervosismo.
— O que você acha, cara? Consegue esperar eu ir para Londres e ajeitar as coisas por lá, primeiro?
Brendon fechou os olhos, respirando fundo e fingindo que não tinha consciência das lágrimas que se formavam.
— Você promete que vem me buscar? Não vai me abandonar como a mamãe fez com a gente?
— Ah, amigão — Nick abraçou o irmão com força, se lembrando da última vez que viu a mãe, enquanto segurava Brendon ainda bebê no colo. — Não vai dar tempo nem de você sentir saudade de mim, eu prometo.
Enquanto Nick buscava suas coisas dentro da casa com ajuda de Brendon e Charlie, encarou o fato de que precisava se despedir, também, e sentiu o coração acelerar. Quando foi mandado para o reformatório, pego totalmente de surpresa, não teve tempo de falar com e estava focado demais em lidar com a própria raiva para sentir o afastamento. Agora, ele não tinha essa vantagem.
— Certeza que não quer vir com a gente?
— Você não soube? Acabei de adotar um filho de treze anos.
— Mané! — riu fraco, sem ver muito humor naquela situação. — Você vem nos visitar, não é?
— Claro. Fazer turismo exótico por baixo das pontes de Londres sempre foi meu sonho.
— Seu otimismo me comove — acenou com um floreio, brincando. — Vou sentir sua falta por lá.
— Eu sei, você não teria sobrevivido até hoje sem mim.
— Não teria, mesmo.
mordeu a bochecha, balançando o corpo e brincando com os próprios pés. observou bem o rosto da garota, que estava virado para o chão, até ouvir uma fungada de leve.
...
Em um impulso, a garota puxou o amigo para um abraço engraçado pela diferença de altura. Não queria ficar sentimental, mas analisando a própria vida, era fácil perceber que havia passado mais tempo ao lado do garoto do que sem a amizade de .
— Vê se arranja um colchão para mim no seu cafofo, viu?
— Já era parte do plano.
Charlie e Nick se juntaram à dupla, despedindo-se de e entrando no carro. Com um último abraço, despediu-se também, e assumiu o volante, dando partida em direção ao futuro mais incerto que podia imaginar.

— Nick, pega a minha mochila aí no fundo — pediu, uma hora de viagem depois. — Antes de sair, eu voltei na sala do Cole e trouxe presentes para vocês.
— Olha só, como ele é generoso — Charlie brincou, dando uma tragada no cigarro e soprando a fumaça janela afora.
— Cacete, . Você roubou o reformatório? — entregando uma pasta amarela a Charlie, Nick riu, encantado com o que estava vendo.
— Mas é claro. Tem mais informações sobre vocês, aí, do que vocês mesmos sabem.
— Chegando em Londres nós vamos te pagar uma cerveja, não é, Charlie? — Dominic riu, esperando a resposta do amigo. Charlie encarava a pasta aberta, lendo com atenção o primeiro documento que encontrou. — Charlie?
— Meus pais — respondeu baixinho, sem muito controle do que dizia. — Aqui tem os nomes dos meus pais.



Fim



Nota da autora:Oiê!
Obrigada por terem lido até aqui!
02. Misfit era para ser a parte dois da história do , mas como vocês devem ter percebido, a saga dele não acabou aqui. A autora se empolgou? A autora se empolgou! HAHAHA
Nessa parte vocês conheceram Nick e Charlie, que prometem um pouco mais de protagonismo na terceira (e última, se Deus quiser, porque agora isso aqui já criou vida própria e eu não mando em mais nada) parte.

A primeira parte dessa história vocês encontram em 11. Teenagers.

See ya ♥




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