Finalizada!

Único

A epifania surgiu no momento mais inoportuno possível.
só sabia dizer que doía. Doía tanto, mais do que se permitiria deixar doer normalmente. Mas intrinsecamente, era sabido que existiam níveis de dor que eram controlados, e aqueles que transbordavam a borda do copo, jorrando e jorrando com intensidade bruta até que não restasse mais nada.
Aquela dor podia jorrar por dias. Principalmente porque era uma confirmação da qual correu o tempo todo, e agora levaria uma vida para superá-la.
E uma vida parecia ser tempo demais para uma garotinha de 17 anos.
Quando olhou para o céu ao lado do aeroporto e viu o avião dele se afastando por entre as nuvens há milhares de quilômetros por hora, decidiu que guardaria aquela sensação de frustração para ser usada em qualquer futuro que seja. Um futuro onde não se permitiria ser tocada tão intensamente para que convivesse com as marcas depois.

🌹💔

Harvard
6 anos depois


— Espere, o quê?
O rapaz franziu a testa e se aproximou até o meio da mesa. Não sabia se não tinha entendido a pergunta por causa da música alta ao redor ou porquê estava sendo, mais uma vez, totalmente imprevisível com as palavras.
Mas não havia nada de imprevisível no seu pedido.
— Disse pra não tocar no meu copo — repetiu ela, trazendo o objeto para mais perto do corpo — Deixa impressões digitais.
O garoto quis perguntar que diferença fazia isso, já que estavam no meio de uma festa universitária que já estava muito além de impressões digitais, e onde a lei da física sobre dois corpos não ocuparem o mesmo espaço parecia uma completa incoerência a quem reparasse direito nas cenas ao redor.
— Tá legal… — ele balançou a cabeça, aceitando o pensamento — Então, sobre o que estávamos falando antes…
— Estou terminando com você.
O garoto piscou os olhos algumas vezes, passando uma língua pelos lábios até limpar a garganta.
— Sim, eu entendi essa parte — ele disse mais baixo do que gostaria — Mas ainda não entendi porquê.
— A vibe passou. Tenho certeza que você entende como é.
— Eu não entendo, — retorquiu ele, com uma breve expiração — Não entendo com você. Achei que estava tudo bem, que a gente…
— Não. Péssima escolha de palavras. Só vai tornar tudo pior — e ela já estava preparando-se para levantar, sem maquiar nenhuma expressão de cansaço — Esse papo de “não é você, sou eu” é uma mentira descarada. No meu caso, sim, é você. Mas não é nada pessoal, gatinho. Só deu a nossa hora.
O garoto estava a ponto de ficar surpreso, de abrir a boca naquela expressão desacreditada que qualquer pessoa sã ficaria, mas logo foi puxado para a realidade quando se lembrou de com quem estava falando – e que, de uma forma ou de outra, já esperava por isso.
Todo mundo sempre espera algo desse estilo de Huston.
— Claro. Você quem sabe — e talvez ele se preparasse para falar mais alguma coisa, talvez para tentar uma nova abordagem para fazê-la mudar de ideia, mas já estava se aproximando dele de pé, selando um beijo em sua bochecha até se afastar e sorrir.
— Obrigada pelo papo. Te vejo por aí.
E saiu sem olhar para trás, caminhando apressadamente até a chapelaria para pedir sua bolsa, agarrando o celular do bolso para avisar à Claire, sua colega de quarto desde o primeiro ano, que estava se mandando de mais uma convenção de pobres coitados afetados pela radioatividade acadêmica e que ela não inventasse de dormir em casa porque ia trancar a porta e gostaria de uma noite de sono no sábado à noite sem nenhuma extensão da tal convenção nos ouvidos.
O texto tinha ficado longo demais, então abreviou o máximo possível para garantir que Claire fosse ler as últimas linhas.
Quando pegou sua bolsa de volta, deu uma rápida olhada para trás, na direção do rapaz sentado ainda no mesmo lugar, encarando o limão solto no drink como se ainda estivesse tentando voltando ao mundo real, do qual o tinha catapultado com as poucas e duras palavras.
Pobrezinho. Ia superar. Eles sempre superam. Tinham saído no máximo 3 vezes, e por mais que tenham sido 3 vezes muito, muito boas, iria acabar justamente por isso. Porque estava bom, estava pegando fogo, iria facilmente se transformar em um incêndio se aquelas mínimas faíscas inocentes continuassem caminhando. E aí tinha que acabar. Porque era assim que funcionava: sem elevadores e sem amores instantâneos.
Se sobem rápido, não duram.

🌹💔


A avenida estava um inferno para qualquer Uber que fosse maluco o bastante para aceitar uma corrida.
Depois de 10 tentativas, viu que não seria tão fácil assim. O horário era do último pico e o ponto era um horror sem tamanho, um espaço largo que confundia os infratores de trânsito, fazendo-os pensar que a largura farta do asfalto os dava passe livre para pensar que estavam na pista de Mônaco. grunhiu, frustrada por não ter pensado sobre isso e agora tendo que recorrer à ideias de plano B.
Quando o celular finalmente apitou com uma corrida aceita, ela agradeceu aos céus, esperando o tempo que fosse necessário para ver a placa e o carro despontando na outra rua 3 minutos depois, onde ela quase gemeu de gratidão e correu para a porta de trás.
Mas assim que agarrou na maçaneta do homem, foi surpreendida por uma sombra atrás, uma sombra que surgiu correndo e ofegando, lançando um grito de repente:
— Por favor, me deixa entrar nesse Uber.
pulou com o susto, virando-se para trás com os olhos bem abertos, pronta para ranger os dentes.
— Vai sonhando — murmurou, abaixando a cabeça para entrar e sinalizar para o homem seguir em frente. Mas então, as mãos fortes e rápidas do cara foram de encontro à porta, puxando-a para que se abrissem ainda mais — Ei!
— É sério, estou com uma emergência do outro lado da cidade. Eu pago a corrida.
o encarou pela primeira vez, sem muita raiva desta vez, mas estava escuro, com indícios de chuva e o garoto não queria esperar muito tempo. Simplesmente entendeu que o silêncio era uma confirmação e se enfiou no veículo, fechando a porta imediatamente.
— Pode ir pela Maple, por favor? — ele se virou para enquanto o homem começava a sair — Pra onde você vai?
Quando o carro se moveu e os postes finalmente começaram a ser auxiliados na iluminação com dezenas de letreiros de lojas, sinais de trânsito e luzes de estabelecimentos, o rosto dele finalmente ficou à mostra. E o encarou direito pela primeira vez.
Não era possível.
Se fosse possível…
Então era cruel.
Quando ele franziu o cenho e estava prestes a perguntar se ela estava bem, a luz alheia também iluminou seu rosto. tinha pequenas sardas na área do nariz, mas tinha nascido com os cabelos castanhos como lama, e sempre dissera que sardas eram feitos para ruivas, portanto, passou os próximos anos em tinturas infinitas e idas ao salão de beleza para consertar um acidente capilar ou outro que causava a si mesma dentro de casa.
Mas os olhos de alguém não mudavam. Ele sabia disso. E o reconhecimento foi o mesmo.
?
?
O motorista engatou a marcha e pisou fundo de tal maneira que os pneus de trás guincharam no asfalto, e uma sessão de palavrões baixos saiu da garganta do homem que tinha acabado de cruzar com um dos milhares de malucos que se aventuravam nas ruas de Boston à 1 da manhã.
normalmente chiaria com o cara e exigiria que tivesse mais cuidado com a conduta quando estivesse carregando alguém que não fosse ele mesmo, mas pela sua expressão estupefata para o garoto ao lado, podia-se adivinhar que nem sequer tinha reparado nesse detalhe.
— Caramba, que surpresa — ele falou primeiro, depois de abrir e fechar a boca algumas vezes.
— Eu que o diga — murmurou ela, mais baixo do que o habitual, sentindo um nó incomum dar voltas e voltas pela garganta, um nó de ouro choque. Vanner. Como podia?
Ela sempre achou que tinha acontecido algo com ele. Algo grave, como perder os dedos ou a capacidade de leitura de cartas bobas escritas em folhas de papel sem pauta.
— Você está… Nossa. Isso é vermelho?
— Sim — concordou com a cabeça devagar — Combina melhor com as sardas.
— Combinam mesmo — sorriu, e talvez quis desviar os olhos na mesma hora porque era o mesmo sorriso — Combinavam bem antes também.
Ela deu um riso sem humor.
— Só você dizia isso.
— E sempre foi verdade — ele levantou um ombro. Apenas um, como fazia antes, quando queria demonstrar indiferença. Finalmente, a mente e as memórias de estavam começando a estourar, aquela que ainda guardava cada pedacinho de — O que fez nos últimos anos?
Ela tentou imitar o gesto, mas não era tão boa quanto ele.
— Entrei na faculdade. Entrei no mestrado. Estou saindo dele. Tentando empregos. Nada demais — ela olhou o movimento pela janela. Estava fazendo exatamente o que tinha dito a ele que faria. Completamente imutável. sendo , daqui até a eternidade.
A constatação fez sorrir.
— Ciência da computação?
— Essa foi a faculdade. Agora sou quase mestre em engenharia de hardwares eletrônicos.
Ele sorriu mais ainda. podia ver o orgulho cintilando naqueles olhos.
— E você? — perguntou ela, antes que desistisse — O que faz em Boston?
— Hospital.
Ela se virou para ele com rapidez.
— Você está bem?
— Estou ótimo. Só um pouco atrasado pra abrir o crânio de um senhor de 70 anos, mas acho que ele aguenta mais uns minutos.
piscou os olhos enquanto sentia a pressão do carro agora disparando direto para a lateral da pista, onde o terreno do hospital geral de Boston era visível há poucas quadras à frente, delimitadas por um grande muro de pedra que te obrigava a dar uma enorme volta.
O motorista resmungou mais uma vez: “por que não disse antes, rapaz?
pediu desculpas gentilmente com um gesto de cabeça. Ela não culpava o motorista. Quem pensaria que um garoto daqueles fosse médico?
Juntos, os dois se entreolharam ao mesmo tempo, perguntando e respondendo coisas implicitamente.
— Então você é o quê? Neurologista?
— Na verdade, sou pediatra. Mas um dos médicos da neuro precisou apresentar uma palestra no congresso de Citogenética da universidade, então vim substituí-lo. A cirurgia não podia esperar.
— Então, está de passagem?
— Cheguei faz 10 minutos. Como pode ver, já me perdi na primeira oportunidade. Já estava achando que eu teria de subir os degraus daquele pub e dormir no segundo andar.
— Ele já estaria muito ocupado, eu te garanto — fez uma careta. Ele riu abertamente, deixando um pouco de nervosismo ir embora, e aquele sorriso translúcido novamente não ajudou na missão de de fingir normalidade. Era Venner, caramba. O único cara por quem ela se apaixonou na vida.
O único por quem ela quebraria as costas para fazê-lo abrir um sorriso.
A razão e a solução do labirinto mental no qual ela tinha se enfiado nos últimos anos.
Sob as mãos de , estava o telefone quase descarregado e a pele úmida de quem não sabe como agir. As próximas palavras se perderam enquanto o carro andava mais rápido e o destino final se aproximava, mais um destino final de mais um lapso de possível felicidade que a acometia junto com .
— Você… Você está…
E então o tranco do carro estacionando quase a jogou para a frente, seguido de mais um pedido de desculpas do motorista enquanto resmungava um “chegamos”.
olhou para , a dúvida crepitando nas pupilas, trajando todas as inseguranças que ela mesma emanava naquele espaço, centenas de dúvidas e perguntas que gostaria de fazer antes que ele sumisse para sempre, assim como sumiu naquele avião há 6 anos, quando não teve opção a não ser partir.
E partiu justamente quando ela percebeu que o amava. O que tornou tudo mais cruel ainda.
Com um enorme suspiro, escancarou a porta, mas não saiu imediatamente. Em vez disso, inspirou todo o ar que podia captar do ambiente e abriu a boca para dizer:
— Estudei medicina em Oxford em vez da Cornell, meu pai acabou sendo transferido para a Inglaterra 6 meses depois de chegarmos à Ithaca e foi um baque, tivemos problemas familiares, a morte da minha avó, mais uma transferência e a frustração da minha mãe. Ela levantou paredes contra ele e culminaram em um divórcio, gritos e minha independência financeira. Fui residente no Hospital St. Mary em Londres e depois vim embora para os Estados Unidos por um convite do New York Presbyterian Hospital. Não era minha primeira opção, mas precisava de um prestígio maior antes de cogitar a Harvard. E recebi esse convite de hoje — ele suspirou ao terminar as frases emendadas uma na outra, e sentiu que tinha entrado em um estado de dormência — Vim às pressas e não tive tempo de ver um lugar pra ficar, mas se você conhecer uma boa cafeteria — ele tateou os bolsos até puxar um cartão triangular de visitas, estendendo-o para ela — Podemos tomar um café e conversar. Daqui há 18 horas. Vou querer muito um expresso.
Ela quis gritar, seja lá por qual motivo. Talvez para forçar assim as palavras que se amontoavam na glote, tantas e tantas letras acumuladas por anos a fio que na hora H estavam muito agitadas para saírem com coerência.
A única coisa plausível que e sua recente inabilidade motora foram capazes de fazer foi assentir com a cabeça e apertar o cartão com mais força.
— T-tudo bem — gaguejou, o que era inédito. O coração dela parecia estar na frente daquela porta de novo, a porta chamada Vanner que se estendia sem limites no escuro do seu coração, o único lugar iluminado de um corredor inteiro no breu.
Ele sorriu e olhou para a porta giratória do grande hospital.
— Me liga. Quero que me ligue, .
E fechou a porta, correndo para se espremer entre uma girada e outra da porta, acenando para ela da janela antes que desaparecesse novamente de sua vista.
Ela ficou parada por um minuto, talvez três, até cinco. O motorista murmurou alguma coisa, e ela deve ter respondido outra, mas o pontinho por onde havia sumido agora se transformava lentamente em uma miniatura, depois se transmutando em uma linha falsa da cidade. As mãos dela ainda tremiam e agarravam o cartão. O medo a invadia sem pudor. O medo de ver a luz do fim do túnel e seguir para ela, porque poderia ser mentira, certo? Poderia ser invenção do seu cérebro. Estava presa no labirinto sem Venner há muitos anos, então podia ponderar que a volta dele fosse uma mentira.
. O único cara que tinha feito o que os outros tentavam fazer. O amor de infância que se estendia para a vida adulta, sem querer saber o quanto isso era bom ou ruim. O cara que a arrancou lágrimas por ter simplesmente despertado seu coração.
achou que poderia chorar agora, ali mesmo, naquele carro com aquele desconhecido desbocado. Poderia chorar até que ele dissesse palavras chulas como “vai ficar tudo bem, ele vai estar aqui amanhã” mesmo que odiasse pessoas que achavam que isso funcionava. Odiava todos que esperavam que ela se recuperasse tão fácil depois que as lágrimas começavam.
não era algo que se recuperava de um dia para o outro, de um ano para o outro, nem de uma década para outra.
Antes que chegasse ao alojamento, ela já estava anotando o número no telefone, temendo que aquele cartão voasse com o vento que não estava soprando do lado de fora, ou que tropeçasse e o deixasse cair no bueiro ao pé das escadas como uma cena de sitcom, ou que pombos o tomasse nos bicos e sumissem no céu escuro, qualquer coisa imaginária e de pouquíssima porcentagem de acontecer. estava em frenesi, sentindo um alarme no coração soar para uma hora que havia passado há muito tempo, o alarme que imaginou que soaria quando reencontrasse depois de tantos anos.
Estava soando agora. Assim como outra coisa, que causava medo, apreensão e adrenalina.
Ah, estou me apaixonando. Ah, não, estou me apaixonando outra vez.
Achei que o avião estivesse caindo
Como você deu meia volta?


FIM


Nota da autora: Sem nota.


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